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Texto 4 - SANTIAGO, Mylene Cristina; AKKARI, Abdeljalil; MARQUES, Luciana Pacheco. Os caminhos do interculturalismo no Brasil. In: ___. Educação intercultural: desafios e possibilidades. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 15- 33. 1 Os caminhos do interculturalismo no Brasil Neste capítulo, propomos refletir sobre o processo de emergência da perspectiva intercultural no Brasil; para isso, buscamos traçar as influências teóricas que iniciaram essa perspectiva no país. Em um cenário de grande complexidade e dificuldade em assumir mudanças de concepções e de práticas discriminatórias nas instituições escolares e na sociedade como um todo, vemo-nos diante do desafio de compreender os limites e as distâncias entre as proposições teóricas/legislativas e as práticas institucionais e atitudinais dos seus atores. Reconhecemos avanços nas proposições acadêmicas e na produção científica voltada para a perspectiva cultural, entretanto experiências interculturais ampliadas para a reformulação dos valores, das políticas e das práticas que sustentam as instituições escolares ainda são raras e incipientes. Buscaremos estruturar nossas argumentações sobre a emergência da perspectiva intercultural no Brasil, compreendendo as particularidades desse processo que se encontra em construção e, posteriormente, defendendo a adoção de uma interculturalidade crítica no contexto educacional brasileiro. A emergência da perspectiva intercultural: compreendendo as particularidades do caso brasileiro Na América Latina e, particularmente, no Brasil, a questão multicultural apresenta uma configuração própria, uma vez que, nas palavras de Candau (2011), nosso continente foi marcado por um processo de colonização que processou ora a eliminação física do “outro”, ora sua escravização, resultando em uma violenta forma de negação de sua alteridade. Nesse contexto, a educação escolar no continente latino-americano exerceu um papel fundamental no processo de homogeneização cultural, que teve como função a consolidação de uma cultura de base ocidental e eurocêntrica, que silenciou vozes, saberes e culturas de determinados grupos (CANDAU; RUSSO, 2010). De acordo com Candau (2011, p. 156-157), no que se refere à educação multicultural:

Texto 4 Os Caminhos Do Interculturalismo No Brasil

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Os caminhos do interculturalismo no Brasil

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  • Texto 4 - SANTIAGO, Mylene Cristina; AKKARI, Abdeljalil; MARQUES, Luciana Pacheco. Os caminhos do

    interculturalismo no Brasil. In: ___. Educao intercultural: desafios e possibilidades. Petrpolis: Vozes, 2013. p. 15-

    33.

    1 Os caminhos do interculturalismo no Brasil

    Neste captulo, propomos refletir sobre o processo de emergncia da perspectiva

    intercultural no Brasil; para isso, buscamos traar as influncias tericas que iniciaram

    essa perspectiva no pas. Em um cenrio de grande complexidade e dificuldade em

    assumir mudanas de concepes e de prticas discriminatrias nas instituies escolares

    e na sociedade como um todo, vemo-nos diante do desafio de compreender os limites e

    as distncias entre as proposies tericas/legislativas e as prticas institucionais e

    atitudinais dos seus atores.

    Reconhecemos avanos nas proposies acadmicas e na produo cientfica

    voltada para a perspectiva cultural, entretanto experincias interculturais ampliadas para

    a reformulao dos valores, das polticas e das prticas que sustentam as instituies

    escolares ainda so raras e incipientes.

    Buscaremos estruturar nossas argumentaes sobre a emergncia da perspectiva

    intercultural no Brasil, compreendendo as particularidades desse processo que se encontra

    em construo e, posteriormente, defendendo a adoo de uma interculturalidade crtica

    no contexto educacional brasileiro.

    A emergncia da perspectiva intercultural: compreendendo as particularidades do

    caso brasileiro

    Na Amrica Latina e, particularmente, no Brasil, a questo multicultural apresenta

    uma configurao prpria, uma vez que, nas palavras de Candau (2011), nosso continente

    foi marcado por um processo de colonizao que processou ora a eliminao fsica do

    outro, ora sua escravizao, resultando em uma violenta forma de negao de sua

    alteridade. Nesse contexto, a educao escolar no continente latino-americano exerceu

    um papel fundamental no processo de homogeneizao cultural, que teve como funo a

    consolidao de uma cultura de base ocidental e eurocntrica, que silenciou vozes,

    saberes e culturas de determinados grupos (CANDAU; RUSSO, 2010).

    De acordo com Candau (2011, p. 156-157), no que se refere educao

    multicultural:

  • No Brasil, a reflexo sobre esta temtica tem sua especificidade e vai penetrando lentamente na vida acadmica. No cotidiano escolar ainda est muito pouco presente. Nos anos que levamos aprofundando esta temtica, no foi nada fcil identificar propostas educativas concretas que tenham uma referncia explcita a questes que podem ser situadas no mbito das preocupaes multiculturais. A maioria das escolas em que de alguma forma o tema penetra se limita a adicionar alguns contedos que tm que ver com a pluralidade cultural, a ressignificar comemoraes e outras prticas escolares espordicas nesta perspectiva ou a adotar uma perspectiva assimilacionista e/ou compensatria. Em geral, predomina uma abordagem que no afeta a globalidade do currculo, no desenvolve processos de construo de identidades culturais em que se fortaleam a auto-estima e o autoconceito dos alunos provenientes de grupos excludos e discriminados, nem se promove o seu empoderamento.

    Segundo a autora, as prticas denominadas multi/interculturais adotadas nas

    escolas esto associadas folclorizao e adoo de datas comemorativas, o que no

    corresponde a um processo de descolonizao do currculo escolar, descontruo dos

    processos que historicamente naturalizaram e subalternizaram grupos sociais. As prticas

    pedaggicas, a despeito de marcos legislativos e de lutas sociais, no tm efetuado esforo

    que corresponda a resultados reais na promoo e no empoderamento dos grupos

    excludos.

    Diante desse cenrio pouco otimista, destacamos algumas ocorrncias que

    marcaram a emergncia da dimenso cultural na educao brasileira. Atribumos a Paulo

    Freire, na dcada de 1950, no Nordeste brasileiro, a inovao da prtica e da teoria

    pedaggicas, ao defender a importncia de se considerar o universo cultural dos

    educandos no processo de alfabetizao de adultos. Outra contribuio relevante do

    educador foi a importncia atribuda dimenso cultural no seu mtodo, que no

    denominava o espao de operacionalizao da alfabetizao como salas de aula, mas

    como crculos de cultura, apontando para uma no hierarquizao das culturas que ali

    se encontrariam e oferecendo uma perspectiva para lidar com a diferena cultural, o que

    hoje se aproxima, em alguns aspectos, do que se configura como perspectiva intercultural

    (CANDAU; LEITE, 2006).

    A Nova Sociologia da Educao (NSE) teve repercusso no final da dcada de

    1970, sua teoria se opunha teoria do dficit lingustico e cultural, que compreendia que

    os estudantes das camadas populares traziam para a escola uma linguagem e uma cultura

    deficiente e inadequada, justificando, dessa forma, o quadro frequente de fracasso escolar

  • desses estudantes. Segundo Candau e Leite (2006) onde as teorias legitimavam e

    percebiam o dficit, a NSE enxergava a diferena cultural, que poderia ser lida como

    deficincia no espao escolar devido estrutura social vigente, que determinaria a

    constituio de escolas voltadas para os grupos sociais das elites.

    Nos anos 1980, perodo ps-ditadura militar, ocorreu um movimento de renovao

    curricular e democratizao do espao escolar predominantemente nas regies Sudeste e

    Sul, impulsionado pelas eleies de governos de oposio ao regime militar. A inteno

    prioritria desse movimento era melhorar a qualidade do ensino oferecido na escola

    pblica e reduzir as altas taxas de repetncia e evaso escolar que penalizavam,

    principalmente, as crianas das camadas populares. Tais mudanas curriculares propostas

    foram subsidiadas pela pedagogia crtico-social dos contedos e pela educao popular,

    duas tendncias pedaggicas de significativa importncia na configurao do campo do

    currculo na dcada em questo. De acordo com Moreira (2012b), as duas tendncias

    eram concordantes com a necessidade de se teorizar a partir da situao especfica da

    realidade educacional brasileira, bem como com a urgncia de se construir uma escola de

    qualidade para os alunos das classes populares; todavia divergiam radicalmente em

    relao ao contedo a ser ensinado nessa escola.

    Nos anos 1990, Moreira (2012b) acrescenta que as reformas curriculares foram

    influenciadas pelos estudos culturais, pelo ps-modernismo e pelo ps-estruturalismo, os

    textos mantiveram a preocupao com o conhecimento escolar, abordando temas como:

    relao entre saber e poder no currculo, a transversalidade no currculo, novas

    organizaes curriculares, as interaes no currculo em ao, o conhecimento e o

    cotidiano escolar como redes, o currculo como espao de construo de identidades, o

    currculo como prtica de significao, a expresso das dinmicas sociais de gnero,

    sexualidade e etnia no currculo, o multiculturalismo. Entretanto, o autor destaca que:

    Toda essa efervescncia, segundo algumas anlises, no se revelou

    suficiente para a superao do distanciamento entre a produo

    "terica" e a realidade vivida no cotidiano das escolas (Souza, 1993),

    bem como para a formulao de currculos em sintonia com as

    especificidades do contexto brasileiro. Em outras palavras, o que se

    sugere que o discurso elaborado no Brasil, nos anos 90, por seu carter

    complexo e abstrato e pela escassez de proposies que oferece para os

    profissionais da educao, no chegou ainda a nortear novas prticas e

    reformas (MOREIRA, 2012b, p. 118).

  • De forma similar, Koff (2006) constatou que vrias pesquisas realizadas no pas

    nos ltimos anos tm demonstrado uma predominncia em nossas escolas de uma cultura

    escolar rgida que enfatiza simplesmente processos de transmisso de conhecimentos e se

    dirige cultura de determinados atores sociais, dialogando pouco com o contexto cultural

    das crianas e dos jovens que dela fazem parte.

    No que tange legislao brasileira, a Constituio Federal de 1988 foi um marco

    legislativo na redefinio das relaes entre o Estado brasileiro e as comunidades

    indgenas, assegurando s mesmas o direito a uma educao escolar diferenciada,

    especfica, intercultural e bilngue (FLEURI, 2003).

    A Constituio afirma ainda que o Estado garantir a todos o pleno exerccio dos

    direitos culturais e acesso s fontes da cultura nacional, apoiar e incentivar a

    valorizao e a difuso das manifestaes das culturas populares, indgenas e afro-

    brasileiras. A nfase na valorizao cultural dos grupos culturalmente marginalizados, ao

    nosso entender, explicita a necessidade de transformar o cenrio de excluso, a fim de

    garantir os princpios democrticos expressos no documento, porm, em termos prticos

    e concretos, essa situao no se consolida, determinando a necessidade de outras

    intervenes no campo legal e nas polticas pblicas para efetivao de tais processos

    democrticos e de participao para todos.

    Para Fleuri (2012), o tema da diferena e da identidade cultural, assim como o

    reconhecimento da multiculturalidade e a perspectiva intercultural aparecem de forma

    mais consistente no campo da educao no Brasil com o desenvolvimento do Referencial

    Curricular Nacional para as Escolas Indgenas, com as polticas afirmativas das minorias

    tnicas, com as diversas propostas de incluso de pessoas portadoras de necessidades

    especiais na escola regular, com a ampliao e o reconhecimento dos movimentos de

    gnero, com a valorizao das culturas infantis e dos movimentos de pessoas de terceira

    idade nos diferentes processos educativos e sociais.

    Podemos considerar ainda que os Parmetros Curriculares Nacionais

    (BRASIL/MEC, 1997), que elegeram a pluralidade cultural como um de seus temas

    transversais, oficializaram o reconhecimento de uma perspectiva intercultural no processo

    educacional brasileiro. Entretanto, Akkari e Santiago (2010) analisam que, embora a

    incorporao da temtica da pluralidade cultural como interveno curricular represente

    esforo na promoo de uma educao democrtica e possa ser considerada como ponto

    de partida para repensar prticas pedaggicas e curriculares direcionadas diversidade

  • cultural, a tendncia em tratar a diversidade cultural como tema transversal pode limitar

    essa abordagem ao currculo formal, sem que uma educao multicultural seja

    efetivamente implementada e vivenciada nas prticas curriculares e no cotidiano escolar.

    Na mesma perspectiva, Canen (2007, p. 105) destaca que:

    O multiculturalismo como horizonte de trabalho docente no um

    "adendo" ao currculo: deve, ao contrrio, impregnar estratgias,

    contedos e prticas normalmente trabalhados em aula pelo professor

    [...]. Nesse sentido, mais uma vez, refora-se o papel do professor como

    pesquisador constante de sua prtica, construindo, no seu cotidiano,

    perspectivas multiculturais que resultem em discursos alternativos, que

    valorizem as identidades, desafiem a construo dos esteretipos e

    recusem-se a congelar o "outro".

    A perspectiva multicultural se configura em uma proposta de educao para a

    alteridade aos direitos do outro, igualdade de oportunidades, uma proposta democrtica

    mais ampla que, no mundo anglo-saxo, se define como Educao Multicultural e que,

    nos pases europeus, assume diferentes denominaes: pedagogia do acolhimento,

    educao para a diversidade, educao comunitria, educao para a igualdade de

    oportunidade ou, simplesmente, educao intercultural. Para alm da polissemia

    terminolgica e da evidente diversidade de propostas interculturais expressas nos

    diferentes contextos locais, a sua riqueza consiste na multiplicidade de perspectivas que

    interagem e que no podem ser reduzidas por um nico cdigo ou esquema a ser proposto

    como modelo transfervel universalmente (FLEURI, 2003).

    No que se refere emergncia do multiculturalismo no Brasil, Moreira (2012a)

    destaca o papel de crescente centralidade que a cultura tem adquirido nos fenmenos

    sociais contemporneos. Nas suas palavras:

    Esse papel constitutivo da cultura, expresso em praticamente todos os

    aspectos da vida social, reconhecido e destacado: a cultura assume

    cada vez mais relevo, tanto na estrutura e na organizao da sociedade

    como na constituio de novos atores sociais. Assiste-se a uma

    verdadeira revoluo cultural, expanso de tudo que se associa

    cultura. Ainda, o conceito de cultura tem seu poder analtico e

    explicativo, na teorizao social, significativamente reforado. Da sua

    importncia em discursos, prticas e polticas curriculares (MOREIRA,

    2012a, p. 16).

  • O autor acrescenta que um segundo aspecto decorrente da centralidade das

    questes culturais; trata-se da diversidade de culturas, que convive, paradoxalmente, com

    fortes tendncias de homogeneizao cultural. O cenrio de lutas entre as distintas

    identidades culturais, assim como as tentativas de reconhecimento e de representao em

    polticas e prticas sociais so conflituosos e nos trazem um cotidiano marcado por

    mecanismos de excluso social, o que certamente impe desafios para a organizao da

    escola e do currculo.

    Finalmente, Moreira (2012a) destaca a associao das diferenas culturais s

    relaes de poder. Nas suas palavras: No h como analisar essas diferenas sem levar

    em conta que determinadas minorias, identificadas por fatores relativos classe social,

    gnero, etnia, sexualidade, religio, idade, linguagem, tm sido definidas, desvalorizadas

    e discriminadas por representarem o outro, o diferente, o inferior (p. 17-18).

    A educao intercultural no Brasil est situada diante das hierarquizaes sociais,

    e o mais complexo problema a ser enfrentado reconhecer as diferenas e integr-las a

    um contexto que no as anule. De acordo com Sansone (2012, p. 24):

    Embora os temas das sociedades indgenas, das relaes raciais e,

    sobretudo, da sociedade escravocrata e das religies afro-brasileiras

    tenham sido fundadores para as cincias humanas no Brasil, somente

    nos ltimos anos que as questes tico-polticas levantadas por este

    campo de investigao alcanaram visibilidade na sociedade [...]. Duas

    grandes questes tm contribudo para sensibilizar a sociedade a

    respeito das desigualdades sociais entre grupos de cor no Brasil: as

    propostas de ao afirmativa em favor de negros, ndios e egressos da

    escola pblica para acesso universidade, e a necessidade de

    implementar a Lei Federal 10639 de 2003. Neste segundo caso, trata-se

    de uma primeira tentativa, generosa, mas desorganizada e

    descapitalizada, de criar um multiculturalismo brasileira.

    Para o autor, o movimento na direo da ao afirmativa e do multiculturalismo

    no pode servir como forma de evitar a questo mais ampla das desigualdades sociais

    extremas e estruturais que caracterizam pases como o Brasil. Ao afirmativa que no

    enfatiza a luta contra as desigualdades incua.

    Embora haja evidncias que indicam que os educadores atribuem importncia s

  • questes da diferena e da identidade cultural, Akkari e Santiago (2010) identificaram

    que o sistema de ensino brasileiro no se encontra preparado para lidar com a

    interculturalidade mesmo com a existncia de leis e normatizaes que determinam a

    insero das discusses etnico-raciais no contexto escolar, nas aes cotidianas de ensino-

    aprendizagem nas escolas e no processo de formao docente , prevalecendo o

    monoculturalismo curricular, que transforma diferena em desigualdade, e naturalizando

    preconceitos e esteretipos que se traduzem no insucesso escolar.

    A adoo de uma perspectiva intercultural pode repercutir no cotidiano das

    instituies educacionais, favorecendo o dilogo entre as diferenas e problematizando

    discursos que essencializam as identidades. Os autores destacam a importncia de se

    formar profissionais da educao interculturalmente orientados, conscientes da

    necessidade de promover um ensino culturalmente sensvel que considere as perspectivas

    dos alunos provenientes de diversos grupos culturais e com identidades mltiplas de

    gnero, raa, padres lingusticos e outras.

    No que se refere implementao de polticas pblicas, Silva (2003) destaca a

    necessidade de atingir o sistema educacional em todos os seus nveis, englobando todos

    os atores da comunidade escolar. Sem esses elementos, qualquer proposta poltica

    educacional de interveno em contextos educativos multiculturais perde sua

    potencialidade de transformao.

    Ao admitirmos que o projeto educativo em uma perspectiva intercultural se

    encontra em construo no pas, defendemos a adoo de uma interculturalidade crtica

    no contexto educacional brasileiro, o que, nas palavras de Giroux (1997), representaria

    tornar o pedaggico mais poltico e o poltico mais pedaggico.

    Ao inserirmos a escolarizao na esfera poltica, podemos redimensionar as

    relaes de poder presentes em nossa sociedade e reconhecermos a necessidade de se

    estabelecer um carter mais democrtico no sentido de rompimento com as injustias

    econmicas, polticas e sociais. Por outro lado, admitir prticas pedaggicas que

    incorporem interesses polticos sensveis aos estudantes como agentes crticos pode

    representar o compromisso de assumir a natureza emancipadora do conhecimento e do

    uso do dilogo crtico como possibilidade de articular um projeto intercultural que

    reconhea as diferenas como possibilidade de enriquecimento das experincias

    pedaggicas para todos os atores escolares.

    Por uma interculturalidade crtica no contexto educacional brasileiro

  • O contexto do interculturalismo no Brasil coloca-nos diante do desafio sobre

    como deve ser essa experincia, acarretando a necessidade de uma reviso criteriosa da

    forma pela qual o Brasil e suas culturas tm sido representados na escola e na

    universidade.

    Walsh (2009, p. 21-22), ao fazer uma distino entre a interculturalidade funcional

    e a interculturalidade crtica, considera que

    Enquanto a interculturalidade funcional assume a diversidade cultural

    como eixo central, apontando seu reconhecimento e incluso dentro da

    sociedade e do Estado nacionais (uninacionais por prtica e concepo)

    e deixando de fora os dispositivos e padres de poder institucional-

    estrutural, que mantm a desigualdade, a interculturalidade crtica parte

    do problema do poder, seu padro de racializao e da diferena

    (colonial, no simplesmente cultural) que foi construda em funo

    disso. O interculturalismo funcional responde e parte dos interesses e

    necessidades das instituies sociais; a interculturalidade crtica, pelo

    contrrio, uma construo de e a partir das pessoas que sofreram uma

    histrica submisso e subalternizao.

    A diferenciao trazida pela autora nos faz indagar sobre o tipo de

    interculturalidade que tem sido produzida nas/pelas polticas educacionais e sociais

    brasileiras e de que forma as mesmas tm sido consolidadas nas prticas sociais e em

    salas de aula. A ideia de partir do problema estrutural-colonial-racial um caminho

    promissor para a transformao das estruturas, instituies e relaes sociais, que no se

    limita s esferas polticas, sociais e culturais, mas se amplia s fronteiras do saber e do

    ser; o que para Walsh (2009) significa a preocupao com os processos de excluso,

    negao e de subordinao de conhecimentos que se privilegiam uns sobre outros,

    naturalizando a diferena e ocultando as desigualdades que se estruturam e se mantm

    em seu interior. Desse modo, o projeto intercultural que defendemos se constri como

    ferramenta que ajude a visibilizar os mecanismos de poder presentes em nossa sociedade

    e que provoque a desestabilizao de pensamento e conhecimento totalitrios e

    universais. Nesse contexto, a autora prope:

  • A interculturalidade crtica como ferramenta pedaggica que questiona

    continuamente a racializao, subalternizao, inferiorizao e seus

    padres de poder viabiliza maneiras diferentes de se viver e saber e

    busca o desenvolvimento e a criao de compreenses e condies que

    no s articulam e fazem dialogar as diferenas num marco de

    legimitidade, dignidade, igualdade, equidade e respeito, mas que ao mesmo tempo alentam a criao de modos outros de pensar, ser, estar, aprender, ensinar, sonhar e viver que cruzam fronteiras (WALSH,

    2009, p. 25).

    Como projeto poltico e social, a interculturalidade crtica exige uma pedagogia

    que afirme a diferena em seus aspectos histrico-poltico-sociais e de poder. No que se

    refere construo de prticas educativas orientadas por uma perspectiva intercultural, o

    trabalho requer que seja oferecido aos estudantes mltiplas situaes que permitam

    compreender o mundo a partir de diferentes formas scio-histricas que possibilitem a

    reflexo sobre seu prprio contexto e sobre outras realidades. O dilogo entre culturas

    viabiliza a integrao entre diferentes tipos de saberes e prticas que outros grupos

    humanos produzem, criam e recriam nas suas experincias histricas, de modo

    contextualizado, evitando-se assim a reproduo de saberes que tradicionalmente

    circularam nas escolas como dados e universais (MARTNEZ et al., 2009).

    A perspectiva intercultural impe radicais mudanas na organizao do currculo

    e do planejamento escolar. Essa abordagem se refere a uma aprendizagem significativa,

    social e culturalmente situada, que promove uma proposta dialgica e de encontro entre

    membros de culturas diferentes, possibilitando atitudes que desenvolvam sentimentos

    positivos em relao diversidade tnica, cultural e lingustica (PINEDA, 2009).

    Ao afirmar que educao intercultural no pode ser reduzida a algumas situaes

    e/ou atividades realizadas em momentos especficos nem focalizar sua ateno

    exclusivamente em determinados grupos sociais, Candau (2009) destaca que esse

    processo trata de um enfoque global que deve afetar todos os atores e a todas as dimenses

    educativas, assim como os diferentes mbitos em que ele se desenvolve. Para que isso

    ocorra, faz-se necessrio repensar tambm o processo de formao dos professores e a

    relao que as universidades tm com a temtica intercultural.

    Canen e Oliveira (2002, p. 73-74) acrescentam que:

  • Perceber a prtica pedaggica multicultural como uma prtica que se

    constri discursivamente, por causa de intenes voltadas ao desafio

    construo das diferenas e dos preconceitos a ela relacionados, parece

    ser um caminho central para a concepo de uma formao de

    professores multiculturalmente comprometidos. Em tempos de choques

    culturais e intolerncia crescente quanto queles percebidos como

    diferentes, a educao e a formao de professores no podem mais se omitir quanto questo multicultural. Narrar nossas experincias,

    dialogar com movimentos sociais e com prticas efetivadas nessa linha,

    bem como incrementar nossas pesquisas sobre pedagogias

    multiculturalmente comprometidas so, sem dvida, alguns caminhos

    promissores para a concretizao do ideal multicultural no currculo em

    ao.

    A dimenso discursiva trazida pelas autoras relevante para o processo de

    mudana que uma perspectiva intercultural demanda para nossa sociedade, pois,

    conforme Fairclough (2001), mudanas na organizao e na cultura so, de modo

    significativo, mudanas nas prticas discursivas. Em outras palavras, o discurso uma

    prtica no apenas de representao do mundo, mas de significao do mundo,

    constituindo e construindo o mundo em significado.

    Nesse processo de significao em que o discurso contribui para (re)construir as

    relaes sociais e de poder entre as pessoas, Candau (2005, p. 33-35) enumera alguns

    desafios a serem enfrentados para construirmos uma educao intercultural na perspectiva

    crtico-emancipatria:

    - penetrar no universo de preconceitos e discriminaes presentes na

    sociedade brasileira;

    - questionar o carter monocultural e o etnocentrismo;

    - articular igualdade e diferena;

    - resgatar os processos de construo das nossas identidades culturais;

    - promover experincias de interao sistemtica com os outros; - reconstruir a dinmica educacional;

    - favorecer processos de empoderamento.

    H um longo caminho a ser traado para alcanarmos prticas discursivas e

    atitudinais que integrem um carter intercultural em nossas instituies educacionais e na

    sociedade como um todo. Para que isso ocorra, necessrio identificar e eliminar as

    barreiras que se expressam em prticas discriminatrias nas instituies e em outros

  • espaos sociais, como tambm reconhecer que o direito educao se traduz na

    participao e na aprendizagem de todos, em todos os nveis da educao.

    O processo de reconhecimento das mltiplas identidades presentes em nossas

    instituies educacionais est vinculado reconstruo da dinmica educacional, que

    requer: relaes de poder horizontalizadas entre os atores escolares; seleo de currculos

    significativos e plurais que rompam com as prticas eurocntricas e universais de saberes;

    e proposio de um processo de incluso em educao que afirme a valorizao das

    diferenas como oportunidade de elaborao de novos saberes e aprendizagem.

    Para que tais mudanas ocorram, faz-se necessrio articular as polticas pblicas

    em educao como os processos de formao de professores, possibilitar a participao

    de forma decisria dos grupos sociais na elaborao e na implementao de polticas que

    objetivem ampliar as perspectivas interculturais na educao e na sociedade. E,

    sobretudo, faz-se urgente pensar e construir a(s) proposta(s) intercultural(is) que

    desejamos para nossa realidade.

    Referncias

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