TEXTOS IMAGÉTICOS E ACONTECIMENTO DISCURSIVO: A HISTÓRIA
ACONTECENDO DIANTE DOS NOSSOS OLHOS?1
Por Alessandro Alves da Silva (PLE-UEM)2
&
Rosiane Moreira da Silva Swiderski (PG-UNIOESTE)3
INTRODUÇÃO
O discurso midiático é uma prática discursiva identitária (NAVARRO, 2009) na
qual se retomam ou se ressignificam mitos do passado, constroem-se memórias e
identidades do presente e do futuro, etc. Nestas práticas discursivas midiáticas, as
identidades não estão prontas e acabadas (HALL, 2009; WOODWARD, 2003), mas em
constante processo de (des)construção.
Constituído de uma esfera “tecnológica”, o discurso da mídia
televisiva desenvolve-se pela arte de saber fazer, de fazer e
de articular, ao mesmo tempo, aparatos de natureza
instrumental e processual, nas dimensões verbais, visuais e
sonoras, cujos efeitos podem, a curto, longo e médio prazo,
apagar, transformar, promover e consolidar ideais modelares
de sujeitos (TASSO, 2006, p. 129, grifos nossos).
A citação acima é bastante produtiva para pensarmos a esfera “tecnológica” do
discurso da mídia, pois sintetiza as inquietações do pesquisador da mídia que se
defronta com textos imagéticos (imagens fixas e em movimento), textos verbais e
sons. Numa mesma produção videográfica tem-se, por exemplo, textos verbais e
imagéticos que, por assim dizer, “conversam entre si”.
Mas antes de prosseguirmos com este texto, é importante explicitarmos qual é
a concepção de discurso por nós trabalhada. Alguns analistas de discursos adeptos às
1 Este artigo é um ensaio inicial que objetiva, dentre outras coisas, mostrar – sem, no entanto, gerar dados
conclusivos - o fato de que o campo teórico da Análise do Discurso necessita ainda de estudos que
considerem a imagem e o corpo, em conjunção com o linguístico, como elementos da materialidade
discursiva. Este gesto de leitura leva o pesquisador da mídia a considerar a imagem como um enunciado
que funde estrutura e acontecimento e o corpo como uma construção discursiva produzida pela mídia,
conforme as relações de saber e de poder articuladas no momento histórico de constituição dos sentidos. 2 Mestrando em Letras (Estudos Linguísticos: Estudos do Texto e do Discurso), pela Universidade
Estadual de Maringá (UEM), sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Navarro. Integrante do Grupo de
Estudos Foucaultianos (GEF/UEM/CNPq) e do Grupo de Pesquisa em Linguagem, Discurso e Ensino
(UNIOESTE/CNPq). E-mail: [email protected] 3 Mestranda em Letras (Estudos Linguísticos: Gêneros Discursivos e Ensino), pela Universidade Estadual
do Oeste do Paraná (UNIOESTE), sob a orientação da Profª. Drª. Terezinha da Conceição Costa-Hübes.
Integrante do Grupo de Pesquisa em Linguagem, Cultura e Ensino (UNIOESTE/CNPq). E-mail:
teses pêcheutianas4
consideram o discurso como um objeto sócio-histórico que precisa
de uma materialidade linguística para se materializar. Tal concepção de discurso
considera como discurso apenas a materialidade linguística, deixando a materialidade
imagética de lado.
Navarro (2009, p. 125) pondera que “o discurso é o resultado de algo que é da
ordem de materialidade linguística e/ou imagética com algo que é da ordem da
história”. Em outras palavras, esta concepção de discurso considera as materialidades
linguística e imagética. Esta é a concepção de discurso a qual se filia este trabalho.
O trabalho de investigação desta pesquisa foi desenvolvido por meio de
recortes de uma produção videográfica (gênero discursivo notícia) relacionada à morte
do ex-vice-presidente José de Alencar, veiculada pela Rede Globo de Televisão em
29/03/2011. Para trabalhar com o corpus de estudo foram utilizados alguns conceitos
do campo de pesquisa denominado Análise do Discurso francesa (AD), via teoria e
método arqueogenealógico de análise de discursos proposto pelo filósofo francês
Michel Foucault, mantendo um diálogo com os estudos culturais, bem como com
outros campos do saber.
Este método arqueogenealógico de estudo dos discursos “busca compreender o
sentido a partir da análise da rede interdiscursiva em que a série se encontra, da
relação, portanto, que um enunciado mantém com os outros” (NAVARRO, 2009).
O ACONTECIMENTO DISCURSIVO: DISCURSO, HISTÓRIA E MEMÓRIA
Sobre a noção de acontecimento discursivo, Foucault (2008) pondera que:
“[...] supõe-se que entre todos os acontecimentos de uma
área espaço-temporal bem definida, entre todos os
fenômenos cujo rastro foi encontrado, será possível
estabelecer um sistema de relações homogêneas: rede de
causalidade permitindo derivar cada um deles relações de
analogia mostrando como eles se simbolizam uns aos outros,
ou como todos exprimem um único e mesmo núcleo
central; supõe-se, por outro lado, que uma única e mesma
forma de historicidade compreenda as estruturas
econômicas, as estabilidades sociais, a inércia das
mentalidades, os hábitos técnicos, os comportamentos
políticos, e os submeta ao mesmo tipo de transformação;
supõe-se, enfim, que a própria história possa ser articulada
em grandes unidades - estágios ou fases - que detêm em si
mesmas seu princípio de coesão” (FOUCAULT, 2008, p. 16)”.
4 Note-se, entretanto, que estão ocorrendo mudanças neste campo científico. Alguns analistas de discursos
adeptos às ideias de Michel Pêcheux começaram, há alguns anos, a empreender pesquisas considerando a
materialidade imagética, além da materialidade verbal.
O acontecimento discursivo pode ser entendido em AD como algo que foge à
estrutura devido ao fato do discurso ser “nó numa rede”, ou seja, entrecruzamento
entre diferentes materialidades discursivas com a história. Um enunciado verbal
presente na estrutura linguística de uma determinada língua pode, por exemplo,
tornar-se um acontecimento discursivo - confira-se como exemplo o enunciado on a
gagné – ganhamos - presente no livro “O discurso: estrutura ou acontecimento?”, de
Michel Pêcheux. No exemplo de Pêcheux este enunciado (ganhamos) presente na
estrutura da língua francesa, e comum em disputas esportivas, é ressignificado pelo
acontecimento discursivo das disputas políticas. O mesmo pode ocorrer com os textos
imagéticos. Além disso, o acontecimento discursivo faz com que vários textos
heterogêneos sejam produzidos e circulem em sociedade: ele mexe com o arquivo.
Quanto ao enunciado, Foucault o concebe (seja ele verbal ou imagético) como a
menor unidade do discurso que o analista de discursos recorta do arquivo. Este
filósofo toma o enunciado como uma função que abarca: 1) um princípio de
diferenciação que engloba o objeto do qual o discurso fala (a morte de José de
Alencar, etc); 2) uma posição de sujeito, considerado em termos de modalidades
enunciativas (apresentadora, repórter, etc); 3) um domínio associado, que diz respeito
às relações entre os enunciados e os demais grupos de enunciados, de modo que este
elemento da função enunciativa aponte para as noções de memória discursiva e
interdiscurso.
Ao relermos Foucault (2008; 2005), ele nos mostra que o enunciado é sempre
acontecimento em diferentes materialidades discursivas. Além disso, ele nos mostra
que o acontecimento é o que o discurso produz ou conjura à sua volta. Muitos
analistas de discursos, calcados neste pensador, consideram que a noção de
acontecimento é crucial para a AD por sua relação com a enunciação – a enunciação é
concebida foucaulteanamente como um evento que não se repete: que é único. As
noções de acontecimento e história serial são constantes nos trabalhos de Michel
Foucault, pois problematizam as relações entre os saberes e os poderes.
A história praticada por Michel Foucault é a “história serial”. Seu objetivo é
estudar as relações entre saberes e poderes em várias práticas discursivas, “a partir de
um conjunto de documentos dos quais ela dispõe”. Transforma-se o documento em
monumento (objeto passível de interpretação) em seus feixes de relações com outros
documentos e com a história, entendida foucaulteanamente como ruptura e
descontinuidade:
Assim, a história serial faz emergir diferentes estratos de
acontecimentos, dos quais são visíveis, imediatamente
conhecidos até pelos contemporâneos, e em seguida, debaixo
desses acontecimentos que são de qualquer forma a espuma da
história, há outros acontecimentos invisíveis, imperceptíveis
para os contemporâneos, e que são de um tipo completamente
diferente (FOUCAULT, 2005, p. 291).
A História Global (ou tradicional) vai considerar as categorias de cronologia,
continuidade, sujeito fundante, unidade e documento. Já a História Geral (ou serial) de
Michel Foucault vai trabalhar com a noção de descontinuidade em vez de continuidade,
de sujeito descentrado (sujeito das práticas discursivas) em vez de sujeito fundante
(origem da enunciação e dono do sentido), de diferentes temporalidades (por exemplo,
um sujeito que vive em nossa época, mas está numa temporalidade de não se usar e-
mail) em vez de cronologia, de séries (séries de séries em seus feixes de relações) em
vez de unidade e de monumento (o documento sendo interpretado em suas relações
com outros documentos e com a história) em vez de documento.
Os “estratos de acontecimentos” dizem respeito aos acontecimentos visíveis e
invisíveis ou a diferentes níveis de acontecimentos. Tomando como exemplo a morte
do ex-vice-presidente José de Alencar, existem acontecimentos visíveis: as coberturas
jornalísticas, as homenagens, os conjuntos de textos que são produzidos em função
deste acontecimento discursivo, os vários enunciadores autorizados pela ordem do
discurso que são convocados para falar sobre este fato, enfim, vários enunciados -
Foucault não se prende apenas ao linguístico: ele também considera as materialidades
imagéticas como enunciados (Confira-se o texto: “Isto não é um cachimbo”, em que
este filósofo faz descrição linguística e leitura e análise de textos imagéticos, bem
como análise discursiva de ambas as materialidades. São materialidades que, de certo
modo, conversam entre si) - que começam a circular socialmente a partir de sua morte.
Já há outros acontecimentos que são invisíveis: possíveis mudanças internas na
estrutura do governo, etc.
DESCRIÇÃO E ANÁLISE DO CORPUS
Nesta seção deste artigo apresentaremos frames recortados de uma produção
videográfica (material audiovisual) sobre a morte do ex-vice-presidente José de
Alencar, bem como uma tabela, na qual há a transcrição das falas presentes nesta
produção. Trata-se de uma notícia veiculada, em 29/03/2011, pelo Plantão da Rede
Globo de Televisão em que o conteúdo temático é a morte de um representante da
política nacional brasileira. Os enunciadores são a apresentadora Fátima Bernardes e o
repórter José Roberto Burnier e os enunciatários são os espectadores.
Antes de prosseguirmos com esta etapa, gostaríamos de enfatizar que serão
brevemente descritos e analisados neste artigo os textos verbais - são textos verbais
orais que foram transcritos para a linguagem escrita, os quais, de certa forma,
dialogam com os textos imagéticos: imagens fixas e em movimento - e imagéticos. Os
demais sons (músicas, jingles, etc), embora entrem na descrição, não serão analisados.
Devido às limitações impostas não desenvolveremos, neste trabalho, questões de
ordem linguística, embora as mesmas entrem na descrição dos enunciados, pois o
nosso foco é a materialidade imagética.
Segue abaixo um quadro com a descrição dos textos verbais (textos escritos e
orais), imagéticos (imagens fixas e em movimento) e verbo-visuais (texto-imagem).
Logo após este quadro, seguem as discussões e frames recortados desta produção
videográfica.
TEMPO TEXTO VERBAL
TRANSCRIÇÃO DAS FALAS
TEXTO IMAGÉTICO
(0:00-0:06) /.../ ((fala dos personagens)) Cenas de novela
(0:06-0:16) /.../ ((jingle)) Vinheta
(0:16-0:27) Int 1 - Morreu agora pouco em São
Paulo o ex-vice-presidente da
república José Alencar ’ ele
lutava contra um câncer no
abdômen e tinha sido
internado as pressas ontem ’
o repórter
Imagens de uma câmera
Cena 1 produzida a partir do
estúdio de gravação
1º Plano – apresentadora
(plano médio)
2º plano – logomarca em tela
de projeção
3º Plano – sala de redação
Cena com enquadramento fixo
Lide (início)
(0:27-0:35) Int 1 - José Roberto Burnier está no
hospital Sírio Libanês e tem as
informações ’ ((Fátima vira de
costa para a câmara em
sentido a tela na qual aparece
a imagem do repórter em
frente ao hospital)) Burnier
Int 2 - Fátima: ((olha para o
relógio)) agora
Imagem de duas câmeras
Cena 1 - estúdio
Cena 2 - local do fato
noticiado (ambiente externo)
1º Plano - apresentadora;
2º Plano - repórter
3º Plano - coletiva organizada
no local do fato
4º sala de redação;
Cenas com enquadramento
fixo
Lide (encerramento)
Notícia (início)
(0:35-1:30) Int 2 - são quatorze ((catorze))
horas e cinquenta minutos há
(aparece a legenda – JOSÉ
ROBERTO BURNIER SÃO
PAULO)) exatamente cinco
minutos o coração do ex-vice-
presidente José de Alencar
parou de bater ’’ zé alencar
termina assim uma agunia ’
de mais de treze anos de
(lutra) contra tumores e de
quase cinco anos de luta
contra este tumor ’ no
abdomên ’ a frequência
cardiaca de zé alencar
((zélencar)) já vinha caindo
durante a madrugada durante
a noite ’ ele foi sedado para
que ele não sentisse dor ’
afinal de contas ele chegou
aqui com muitas dores ’ mas
((mais)) ’ acabou não
resistindo ’ houve uma
falência multipla ’ o
organismo foi ’ se:
deteriorando ’ os parâmetros
todos médicos ’ que são
usados para se avaliar o
estado de saúde de um
paciente ’ foram caindo
aBRUPtamente e a pressão
dele caiu e o coração acabou ’
parando ’ ah: nesse momento
na uti estão os familiares ’ a
mulher ’ os filhos ’ os netos ’
ainda não há
Imagem de uma câmera
Cena 1 - off
Cena 2 - local do fato
noticiado
1º Plano - repórter;
2º Plano - coletiva
Cena com enquadramento fixo
Notícia (continuidade)
Passagem
(1:30-1:52) Int 2 - en/qualquer informação
sobre onde será o velório e
onde ((ondi)) o corpo de/do
((di/du)) ex-presidente será
enterrado ’ é uma luta ’ zé
alencar eh: foi um guerreiro ’
todo mundo sabe ele sempre
disse que ia continuar lutando
’ mas ((mais)) ’ infelizmente
essa doença ’ o sarcoma
acabou vencendo ’ fátima nos
voltaremos a qualquer
instante com outras
Imagem de uma câmera que
dá zoom in
Cena 1 - off
Cena 2
1º Plano - repórter;
2º Plano - imagem da coletiva
Enquadramento fixo da cena
Notícia
Passagem
(1:52-1:54) Int 2 - informações
Int 1 - ok ((Fátima se vira para as
câmeras)) burnier josé de
alencar
Imagem de duas câmeras
Cena 1 – On
Cena 2
1º Plano - apresentadora;
2º Plano - repórter
3º coletiva
4º sala de redação;
Cenas com enquadramento
fixo
Notícia (encerramento)
Comentário da apresentadora
(1:54-2:02) Int 1 - como você disse ’ foi um
exemplo de gueRREiro
((gueRREro)) foi/deu também
um exemplo de simplicidade
e perseverança , como vai
contar o repórter josé roberto
burnier
Imagem de uma câmera
Cena 1
Cena 2 - Off
1º Plano – apresentadora
2º plano – logomarca (tela de
projeção)
3º Plano – sala de redação
Cena com enquadramento fixo
Comentário da apresentadora
(2:02-2:53) /.../ Cenas com imagens de
arquivo que trazem o
personagem da notícia
Biografia produzida por
repórter
(2:53-3:00) Int 1 - então morreu agora à tarde
no início da tarde o ex-vice-
presidente da república josé
de alencar ’ outras
informações você vai ter a
qualquer
Imagem de uma câmera
Cena 1
1º Plano – apresentadora
(plano médio)
2º plano – logomarca
(hyperlink)
3º Plano – sala de redação
Cena com enquadramento fixo
Comentário da apresentadora
(3:00-3:05) Int 1 - momento e a cobertura
completa logo mais no jornal
nacional ((apresentadora
dirige o olhar para a pauta))
Imagem de uma câmera que
dá zoom out
Cena 1
1º Plano – apresentadora
2º plano – logomarca
(hyperlink)
3º Plano – sala de redação
Cena com enquadramento fixo
Comentário da apresentadora
(3:05-3:15) ((jingle)) ((vinheta))
(3:15-3:19) ((áudio da fala dos personagens)) ((cenas de uma novela))
NOTAS E
LEGENDAS
SOBRE A
DESCRIÇÃO
LINGUÍSTICA
DOS
TEXTOS
VERBAIS
ORAIS
NOTA: /.../ - trecho suprimido
(( )) comentário
( ) suposição
/ truncamento
MAIÚSCULA – ênfase
’ aspa simples – subida
leve (algo assim como uma
vírgula);
, aspa simples abaixo da
linha – descida leve ou
brusca
: prolongamento
No quadro acima, temos uma descrição de um material audiovisual
caracterizado como notícia jornalística em que temos, principalmente, textos verbais e
imagéticos na singularidade de seu acontecimento discursivo. No que diz respeito à
estrutura linguística (ILARI & NEVES, 2008) dos textos verbais há um predomínio de
sequências narrativas argumentativas, descritivas e expositivas (pelo viés foucaultiano,
chamar-se-ão de séries enunciativas: E1, E2, etc). Os enunciadores Fátima e Burnier
narram, descrevem e expõem fatos correlatos à morte de José Alencar, constituindo
séries enunciativas. Há, ainda, o uso de substantivos próprios para a troca de falas
entre os enunciadores (Fátima-Burnier). Fátima passa o turno de fala para Burnier por
meio deste substantivo próprio, ou seja, o nome Burnier (ILARI & NEVES, 2008).
Quanto ao léxico (escolha das palavras: “infelizmente essa doença, o
sarcoma”), temos um caso de coesão referencial pelo uso de um sintagma (ILARI &
NEVES, 2008) que funciona como uma expressão nominal definida (o sarcoma) e de
marcação de sujeito no discurso pelo uso do advérbio infelizmente. Os truncamentos
destacados na tabela acima indicam reformulação textual por parte do sujeito
enunciador: por ser um texto oral do gênero discursivo notícia “ao vivo”, é comum a
presença de reformulações textuais (ILARI & NEVES, 2008) na fala do repórter. A
prosódia (emissão de palavras de acordo com a norma padrão – aBRUPtamente) revela
um cuidado com a linguagem jornalística concebida socialmente como um saber culto
produtor de outros saberes e de cultura. Esse cuidado por parte do jornalista também
revela as relações de saber e poder em relação ao que se diz: não se pode falar de
qualquer coisa, de qualquer forma e em qualquer época (FOUCAULT, 1996). E ele
também não diz como quer, mas do modo que os poderes lhe permitem dizer: no caso
do sujeito jornalista, de acordo com a norma padrão da língua. Esta norma padrão não
ocorre o tempo todo na fala, conforme conseguimos perceber nas transcrições das
falas acima (zé alencar, guerrero, etc). Conforme vimos acima, os sujeitos que falam
no interior destes textos, em função deste acontecimento discursivo, ocupam
diferentes posições de sujeito: jornalista que apenas narra, jornalista que comenta e
atribui valoração, repórter que apenas narra, repórter que comenta e atribui valoração,
etc.
No que se refere às estruturas das materialidades imagéticas na singularidade
de seu acontecimento discursivo, na tabela acima foi feita a descrição dessas. Por isso,
vamos nos deter a apenas alguns pontos na análise destas materialidades. Estas
perguntas de pesquisa se impõem em relação a estas materialidades discursivas
imagéticas e, ao mesmo tempo, ajudam a guiar esta breve pesquisa: 1) a partir das
construções das imagens em movimento presentes nesta produção videográfica em
questão, considerando seu caráter de representatividade do real, quais ferramentas da
análise fílmica podem ser identificadas? 2) quais processos de leitura dos discursos
são possíveis considerando suas condições de possibilidade? Tentaremos responder a
estas perguntas no decorrer deste artigo.
No nível do plano, podemos perceber que a apresentadora está em primeiro
plano, em plano médio e em ambiente interno (LAURERT & MARIE, 2009): uma
personagem enquadrada da cintura para cima. Isso dá, discursivamente falando, um
certo tom de sobriedade, equilíbrio e elegância, de modo a dar credibilidade ao
enunciador midiático (jornalista) que enuncia a notícia.
O ponto de vista é apresentado antes de tudo pela localização
da câmera. É o ponto de observação da cena, aquele de onde
parte o olhar. Nenhum ponto de vista é neutro. Todas as
posições de câmera conduzem a uma série de conotações [...].
O ponto de vista talvez seja o parâmetro mais importante no
nível do plano (LAURERT & MARIE, 2009, p. 22).
Figura 1: apresentadora e repórter em primeiro plano e em plano médio.
A apresentadora está em ambiente interno e o repórter em ambiente externo,
mas ambos se encontram enquadrados pela objetiva no mesmo plano. Temos aí as
logomarcas da Rede Globo de Televisão que aparecem rapidamente nesta produção. A
expressão facial séria dos dois, bem como olhar diretamente para o eixo da objetiva,
passa-nos a ideia de que eles de fato estão conversando conosco. Em segundo plano
temos a logomarca em tela de projeção e em terceiro plano a sala de redação. As
cenas têm enquadramento fixo. As imagens são de duas câmeras: uma é a do estúdio
em que se encontra a apresentadora; a outra é a da coletiva de imprensa em que se
encontra o repórter.
Figura 2: repórter Burnier na coletiva de imprensa em ambiente externo.
A repórter também comenta a luta do ex-presidente em relação à sua doença,
adjetivando-o como guerreiro, e dizendo que ele foi um exemplo de simplicidade e
esperança (substantivos abstratos que funcionam discursivamente de modo
semelhante aos adjetivos).
Figura 3: repórter Fátima comentando sobre a vida de José de Alencar.
Sobre a noção de comentário, Foucault (1996) pondera que:
Por ora, gostaria de me limitar a indicar que, no que se chama
globalmente um comentário, o desnível entre o texto
primeiro e o texto segundo desempenha dois papéis que são
solidários. [...] Deve, conforme um paradoxo que ele desloca
sempre, mas ao qual não escapa nunca, dizer pela primeira
vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir
incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido
dito[...]. O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-
lhe sua parte : permite -lhe dizer algo além do texto mesmo,
mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de
certo modo realizado. A multiplicidade aberta, e o acaso são
transferidos, pelo princípio do comentário, daquilo que
arriscaria de ser dito, para o número, a forma, a máscara, a
circunstância da repetição. O novo não está no que é dito,
mas no acontecimento de sua volta (FOUCAULT, 1996, 24 -
26, itálicos do autor, grifos nossos).
O comentário, enquanto enunciação singular, faz emergir o que estava
articulado silenciosamente no texto primeiro e é, ao mesmo tempo, acontecimento
discursivo. Ele reafirma parte dos enunciados que já foram ditos no arquivo. Ao tecer
comentários a apresentadora sai da posição de sujeito de jornalista - que apenas narra
os fatos - e passa a fazer considerações sobre o objeto do qual ela fala: José de
Alencar.
É importante pontuarmos a questão do “ao vivo” deste gênero discursivo
notícia. Nesta produção videográfica, provavelmente foram selecionadas, dentre horas
de gravações, alguns trechos para construir este vídeo: imagens do passado de José de
Alencar, depoimentos, etc. O acontecimento discursivo é ressignificado por meio disso
(por meio destas representações em relação a José Alencar), produzindo sentidos
diferentes ou outros efeitos de realidade destes textos imagéticos em relação ao
sujeito-leitor/sujeito-telespectador que assiste a isso por meio do seu regime do olhar.
Esta representação do real é construída no e pelo discurso da mídia televisiva. Outro
aspecto extremamente importante – considerando ainda a questão do “ao vivo” deste
gênero discursivo notícia - que chama a nossa atenção nesta produção videográfica é
que somos, de certa forma, convidados pelo enunciador midiático (NAVARRO, 2009) a
interpretarmos a história como se ela estivesse acontecendo diante dos nossos olhos.
Em outras palavras, a imagem é utilizada como uma forma de narrativa (MANGUEL,
2001) por meio da qual o enunciador midiático nos narra a história, como algo que
estivesse acontecendo simultaneamente diante de nossos olhos. É possível perceber
que o enunciador midiático assume a posição de sujeito de historiador ao utilizar,
principalmente, as imagens (textos imagéticos) como narrativas (MANGUEL, 2001),
pois, para o senso comum “uma imagem vale mais do que mil palavras”.
Figura 4: José Alencar, em seu início de carreira, como um pequeno
comerciante.
Figura 5: Aliança de José Alencar com Lula.
É essencial destacarmos que a concepção de história veiculada pelo
enunciador midiático, conforme se pode ver nas figuras acima, é a de uma História
Global (ou tradicional), que vai considerar as categorias de cronologia, continuidade,
sujeito fundante, unidade e documento. Além disso, nas imagens acima, bem como
nas demais imagens não mostradas aqui, José Alencar é mostrado como um homem
humilde, batalhador, vencedor, empreendedor de si mesmo, etc. É representado como
um brasileiro que muitos outros brasileiros queriam ser. Como dito anteriormente, há
um consenso, no senso comum, de que “uma imagem vale mais do que mil palavras”.
Daí o uso de imagens como narrativas pelo enunciador midiático.
Recortam-se (do arquivo) e reconfiguram-se (em função de uma memória
discursiva e do interdiscurso) enunciados relativos ao passado de José de Alencar em
função de outros enunciados que estavam circulando e que circularam no momento da
notícia de sua morte em função do acontecimento discursivo de sua morte. Esse
discurso como “nó numa rede” (rede de entrecruzamento entre as diferentes
materialidades discursivas e a história) sedimenta determinados sentidos e não outros
em relação a José Alencar. Estes sentidos não foram sendo sedimentados do nada, mas
em função de determinadas práticas discursivas midiáticas em suas relações com os
saberes e poderes. Estes sentidos em relação a José Alencar constituem saberes e
poderes em relação a este sujeito. “O” sentido, por assim dizer, está inextricavelmente
ligado às relações de saber e poder. Por meio da análise desta produção videográfica -
considerando a dinâmica entre discurso, representação e identidade – percebe-se que
determinados efeitos de sentido (guerreiro, simplicidade, esperança, lutador, humilde,
etc) e não outros vão sendo sedimentados em relação ao objeto dos discursos (José
Alencar) por meio de processos discursivos.
Como vimos neste artigo, diante deste pequeno recorte deste arquivo, o
arqueólogo do saber ou então o analista de discursos iriam escavar estes efeitos de
sentido que foram sendo sedimentados por meio de práticas discursivas em relação ao
seu objeto de análise.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não é novidade afirmar que somos ligados à práticas discursivas em função
de acontecimentos discursivos. Como vimos, o acontecimento discursivo faz circular
uma porção de enunciados (textos verbais e imagéticos). Ele mobiliza enunciados do
arquivo: mexe com o arquivo.
A mídia televisiva, com seus aparatos tecnológicos (TASSO, 2006) e modos de
saber fazer e articular, e ao mesclar diferentes materialidades discursivas, ajuda a
posicionar o regime do olhar dos sujeitos-telespectadores/sujeitos-leitores em função
de determinados gestos de interpretação, de certa forma e em parte, direcionados pelo
enunciador midiático. Tudo isso ajuda a direcionar, em parte, a nossa interpretação, de
modo que pensemos, por exemplo, que José de Alencar só possa ser, discursivamente
falando, pelo menos atualmente, dadas as condições de possibilidade dos discursos,
interpretado como X e não Y. Em outras palavras, temos o enunciador midiático
produzindo história e sedimentando determinados sentidos em relação a outros. Como
dito acima, os sentidos não “caem do céu”, mas vão sendo sedimentados por meio de
práticas discursivas em determinados a priori (a priori pode ser entendido
metaforicamente como uma espécie de aquário que engloba tudo) históricos. No caso
de José de Alencar, por exemplo, os sentidos foram sendo gradualmente sedimentados
pelo enunciador midiático não só no momento da reportagem sobre sua morte, como
também meses antes em reportagens, documentários, etc.
Por fim, é importante ressaltar que há algumas indagações que não foram
respondidas adequadamente neste breve artigo. Uma delas está ligada às complexas
relações de saber e poder nos processos de objetivação e subjetivação por meio de
práticas discursivas midiáticas televisivas. Michel Foucault, grande arqueólogo do
saber, dedicou a sua vida a isso (relações entre saberes e poderes) e teve a humildade
de não dar a sua pesquisa como acabada. Outra está ligada às ferramentas da análise
fílmica e aos processos de leitura dos discursos considerando suas condições de
possibilidade, pois o pesquisador da mídia irá fazer escolhas em função de seu corpus,
da teoria e das perguntas de pesquisa. No momento, estas perguntas continuam em
aberto, de modo a nos incitarem a continuarmos pesquisando sobre estas complexas
questões.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2008.
__________________. Arqueologia das Ciências e História dos sistemas de
pensamento. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
__________________. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. São Paulo: DP & A editora,
2009.
ILARI, Rodolfo; NEVES, Maria Helena de Moura. (Orgs.). Gramática do Português Culto
Falado no Brasil. V. II. Classes de Palavras e Processos de Construção. Campinas:
Ed. da Unicamp, 2008.
LAURERT, Jullier; MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. Tradução de Magda
Lopes. São Paulo: Editora SENAC, 2009.
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e de ódio. Trad. Rubens
Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NAVARRO, Pedro. (O texto como objeto de análise discursiva: questões de sentido,
memória e autoria) In O texto como objeto de ensino, de descrição linguística e de
análise textual e discursiva. Antonio, J. D. & Navarro, P. (orgs.), Ed.: Eduem (ed.).
Maringá-PR, 2009, Vol.1, p. 123-136.
TASSO, Ismara Eliane Vidal de Souza. (Mídia televisiva e políticas públicas de inclusão
na pós-modernidade: igualdade, solidariedade e cidadania) In Estudos do texto e do
discurso: mapeando conceitos e métodos. Pedro Navarro (org.), Ed.: Claraluz (ed.).
São Carlos-SP, 2006, Vol.1, p. 129-152.
WOODWARD, Kathryn. (Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual) In
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu da Silva
(org.). Petrópolis: Editora Vozes, 2003.
Recebido em 09/01/2012.
Aceito em 21/06/2012.