Título: O ensino de História na Escola Fundamental:
Cadê a História daqui?
ENGRACIA ALVES CARDOSO
Professora PDE - Área de História
Resumo: O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a
possibilidade de utilizar o cinema e a história local no ensino de História,
refletindo sobre as experiências de trabalho decorrente da Proposta de
Implementação do Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE,
desenvolvido na Escola Estadual Dona Macária – Ensino Fundamental,
localizada no município de Conselheiro Mairinck, Estado do Paraná. Este
artigo apresenta dois momento distintos da implementação da proposta: o
resultado do trabalho como o filme Narradores de Javé e a oficina Cadê a
história daqui?
Palavras-chave: História local. ensino de História. cinema.
Este texto apresenta reflexões sobre a possibilidade da utilização
do filme e a história local no ensino de História, relatando experiências
decorrentes de um projeto de capacitação do Governo do Estado do
Paraná.
Cabe salientar que os resultados aqui apresentados foram
elaborados a partir de depoimentos, relatos, coleta de fontes históricas em
arquivos familiares, escolares, públicos e particulares, além de
fundamentação teórica.
A opção pelo tema proposto justifica-se inicialmente pela
possibilidade de produzir subsídios para reflexões acerca da história do
município de Conselheiro Mairinck, apresentando elementos que além das
evidências documentais, facilitem o acesso a versões produzidas por
pessoas que vivenciaram fatos marcantes, mas na maioria das vezes
passaram despercebidos pela história oficial.
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Nesse sentido, procura-se dar voz às pessoas anônimas que
escondem em sua memória a essência de um passado recente.
Nossa preocupação maior foi oferecer aos alunos oportunidades
de entender a história da cidade através dos personagens vivos e ativos
da comunidade, sem enfatizar dados factuais presentes nos ditos
históricos do município.
Nessa perspectiva, importa salientar que aprendendo a partir do
que está mais próximo, utilizando linguagens diferenciadas, o processo
ensino-aprendizagem torna-se interativo, atrativo, dinâmico e prazeroso
para os alunos.
Este trabalho que foi desenvolvido, tendo em vista uma
abordagem teórico-prática, teve como principal propósito motivar
discussões sobre a história das cidades e o papel do historiador,
despertando no aluno um interesse sobre a história de sua própria cidade.
Percebi que o filme poderia constituir-se num recurso muito
válido, como chamamento dos alunos para o tema em questão. No
entanto, fiquei em dúvida quanto ao filme a ser utilizado. Minha
orientadora sugeriu Narradores de Javé1. Não poderia haver melhor
sugestão, pois esse filme desencadeou uma série de reflexões históricas
muito significativas, tornando-se assim, o fio condutor de todo meu
projeto, o qual culminou com a oficina “Cadê a História daqui?”.
É interessante observar que ao utilizar o filme no ensino de
História, não pude deixar de levar em conta a observação de Bittencourt:
Os filmes não são registros de uma história tal qual aconteceu ou vai acontecer, mas representações que merecem ser entendidas e percebidas não como diversão apenas, mas como um produto cultural capaz de comunicar emoções e sentimentos e transmitir informações. (BITTENCOURT, 2004, p.253).
1 Narradores de Javé (2003). Direção: Eliane Caffé. Elenco: José Dumont, Matheus Nachtergaele, Gero Camilo, Nelson Dantas, Rui Resende, Nelson Xavier, Luci Pereira, Jorge Humberto e Santos. Ao saberem que a cidade onde vivem (Javé), seria inundada para construção de uma usina hidrelétrica os moradores decidem preparar um documento que conte os fatos históricos do local, como tentativa de salvar a cidade da destruição.
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Não se pode deixar de concordar com a autora, tendo em vista
que o filme “Narradores de Javé” despertou nos alunos uma infinidade de
sentimentos, valores e emoções relacionadas ao contexto histórico
vivenciado.
A respeito do filme como fonte documental, Marc Ferro (1988),
um dos historiadores pioneiros mo emprego do filme como fonte histórica
afirma: “o filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção,
intriga autêntica ou pura invenção, é História”.
Na visão de Ferro, o filme deve ser abordado não apenas como
uma obra de arte, mas também como um produto, uma imagem-objeto,
cujo significado estaria naquilo que testemunhou.
A esse respeito Le Goff alerta: o documento não é qualquer coisa
que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou
segundo as relações de forças que ai detinha o poder. E é o próprio Le
Goff (1987) que inspirado na noção de documento/monumento de Michel
Foulcalt, afirma: o documento é monumento. Resulta do esforço das
sociedades históricas para impor ao futuro, voluntária ou
involuntariamente determinada imagem de si próprias.
A partir desses pressupostos, nossa proposta leva em conta o
fato do cinema apresentar valores culturais, políticos, sociais e morais,
revelando sentimentos e emoções, além de se constituir em ferramenta
de apoio fundamental.
É Napolitano (2003) que afirma: trabalhar com o cinema em sala
de aula é ajudar a escola a reencontrar a cultura ao mesmo tempo
cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo no qual a estética, o lazer, a
ideologia e os valores sociais mais amplos são sintetizados numa mesma
obra de arte.
Diante de tais considerações, cabe ressaltar que o primeiro
trabalho de que se tem notícia relativa ao valor do filme como documento
histórico data de 1898; foi escrito pelo câmera polonês Boleslas
Matuszewski e se intitula: “Um nouvelle source de l’histore: création d’un
depôt de cinematographie historique“. Ele defendia o valor da imagem
cinematográfica, que era por ele entendida como testemunho ocular
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verídico e infalível, capaz de controlar a tradução oral. Matuszewski (1983)
julgava que o evento filmado era mais verdadeiro que a fotografia, na
medida em que esta última admitia retoques.
A sétima arte, como também é conhecida o cinema nasceu na
França em 1875 com os irmãos Lumiére, que num café parisiense
reproduziram, numa grande tela para uma pequena platéia que observava
maravilhosa as imagens em movimento. Foram apenas dois pequenos
filmes, que retratavam a saída dos operários da fábrica Lumiére e a
chegada de um trem à estação, mas esse episódio mudaria pra sempre o
uso das imagens.
Sabe-se que no Brasil a história do cinema começou em 19 de
junho de 1896, com o cinegrafista italiano Alfonso Segreto que, ao voltar
da Europa a bordo do navio Brésil, filma a entrada na baía de Guanabara.
Depois, ele passa a realizar documentário juntamente com sue irmão
Paschoal Segreto, e ambos se tornam praticamente os únicos produtores
de cinema até 1903.
Por outro lado, a primeira referência sobre o cinema como fonte
para a história, a chegar ao Brasil foi o artigo de Marc Ferro intitulado “O
filme, uma contra análise da sociedade”, publicado na coletânea História:
novos objetos, cuja primeira edição é de 1976.
Um outro aspecto importante nos trabalhos de Ferro é sua
afirmação de que o filme é um agente da história, e não só um produto.
Ferro ressalta ainda que o cinema pode ser também um agente de
conscientização.
Essa afirmação de Ferro reforça o que tenho observado em sala
de aula, que a partir do trabalho com a história local e o uso do cinema
nas aulas de História, o ensino-aprendizagem adquire um novo significado,
despertando nos alunos o interesse e a reflexão crítica.
De acordo com Guerra e Diniz (2007), “os filmes podem ser
utilizados tanto para introduzir um conteúdo quanto para finalizar as
discussões acerca do mesmo. [...] é importante reservar um espaço para
que os alunos tenham a oportunidade de comentar [...] suas impressões
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diante das imagens apresentadas. [...] através do filme, pode ocorrer um
aproximação maior com fatos/momentos passados”.
No espaço aberto para discussões, argumentações e
questionamentos sobre o filme “Narradores de Javé”, os alunos
destacaram algumas frases e cenas provocativas que geraram
importantes reflexões: - “Qual é a história certa? É a que foi e não a que
conta?” – “Uma terra vale pelo que produz, mas pode valer mais ainda
pelo que esconde?” – “Quando a gente mais precisa de tempo, ele voa”.
Numa turma de 7ª série, a cena do filme em que o personagem
Antonio Biá entrevista um líder de um grupo de quilombolas, facilitou meu
trabalho sobre a África e sua influência na cultura brasileira, paranaense e
mairinquense, no que tange a linguagem, costumes, danças e música. Um
grupo de alunos adeptos da capoeira solicitou que o filme fosse revisto,
pois queria aprender a música, a dança e “pegar” o ritmo dos tambores.
Outra constatação que chamou a atenção dos alunos foi o fato de
que todos queriam fazer parte da história de Javé e que cada entrevistado
apresentava uma versão diferente para o mesmo fato histórico. O trabalho
com o filme em sala de aula, demonstrou a importância que o cinema
exerce no ensino de História. No entanto, sabe-se que a introdução de
filmes nas salas de aula data dos anos oitenta e que ainda hoje, é uma
atividade utilizada na maioria das vezes, apenas como recurso ilustrativo,
sem nenhuma preparação prévia.
Diante dessa constatação, Fonseca (2004) faz um importante
alerta: [...] Com relação à operacionalização do trabalho em sala de aula,
acreditamos ser de extrema importância a preparação prévia do professor,
ou seja, ele deve ter domínio em relação ao filme e clareza total da
inserção do filme no curso, bem como dos objetivos e do trabalho a ser
realizado após a projeção.
A esse respeito Napolitano completa:
Fomentar o interesse e uma postura crítica nos alunos são premissas para o professor de História [...] sempre haverá uma análise a ser feita, e por traz desta, um objetivo a ser alcançado pelo professor, que deve ter [...] sempre em mente um conjunto de objetivos e metas a serem atingidos. (NAPOLITANO, 2003, p. 79)
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Nesta perspectiva, não se trata de exigir do professor que se
torne um crítico profissional, mas que adquira algumas informações
básicas que tornarão seu trabalho em sala de aula muito mais produtivo.
Fica evidente a partir do exposto, que cabe ao professor,
enquanto pesquisador, buscar subsídios que amplie sua visão e
proporcione ao aluno a compreensão de sua realidade e do contexto
histórico em que ela se acha inserida.
Assim, torna-se relevante atentar para a seguinte observação: “É
necessário que o professor tenha objetivos pedagógicos bem definidos
quando resolve usar o vídeo. É importante que [...] escolha um vídeo
adequado à matéria estudada.” (LEITE,1997, p. 74).
Considerando tal afirmação, pode se dizer que, quando decidi
trabalhar a história local, procurei seguir recomendações metodológicas
acerca do uso da linguagem fílmica em sala de aula, tomei a iniciativa de
utilizar o filme na íntegra, dividindo-o em duas partes para não se tornar
cansativo.
Tendo em vista a clareza quanto ao objetivo proposto, elaborei
um roteiro procurando enfatizar os elementos essenciais que seriam
focados antes, durante e após a exibição do filme.
Com o intuito de não dispersar a atenção, recomendei que num
primeiro momento não fossem realizadas anotações, assegurando-lhes
que no momento oportuno o filme poderia ser revisto e se faria as
anotações consideradas necessárias.
Atendendo solicitações de alguns alunos, antes de iniciar a
sessão, passei algumas informações gerais sobre o filme. Durante a
exibição fiz algumas pausas rápidas pra observações, comentários e
esclarecimentos. Também houve pedidos para algumas cenas e falas
consideradas duvidosas.
No final de cada parte do filme, após reflexão, questionamentos e
comentários, os alunos reuniram-se em pequenos grupos para trocar
idéias, discussão de questões referentes ao filme: as idéias percebidas nos
diálogos, o que representam os personagens, os valores que merecem
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destaque, as semelhanças e diferenças entre a cidade de Javé e a cidade
de Conselheiro Mairinck.
Na intenção de aproximar o aluno da realidade vivenciada pelos
personagens ofereci oportunidade para simulações, comparações, através
de indagações:
- Como você sentiria/agiria se soubesse que sua cidade seria
inundada para a construção de uma usina hidrelétrica?
Na seqüência propus um tempo para que pudessem discutir
comentar, argumentar e anotar as impressões e sentimentos diante das
imagens e fatos apresentados. Em decorrência desse trabalho realizado,
percebi uma infinidade de possibilidades pedagógicas propiciadas pela
utilização de filmes no ensino de História.
A análise desse filme, cuja trama vivenciada pelos moradores de
Javé gira em torno do resgate da história da cidade, a qual para salvar-se
de uma eminente inundação, precisa de um documento histórico,
despertou nos alunos a preocupação quanto a deficiência de fontes -
históricas referente a cidade de Conselheiro Mairinck.
Considerando que a utilização de filme no ensino de História traz
resultados satisfatórios, é bom lembrar da afirmação de Monterde (1986):
O cinema se converteu, por méritos próprios, num arquivo vivo das formas
de passado ou, por sua função social, em um agudo testemunho de seu
tempo e como tal, em um material imprescindível para o historiador que
assim queria olhá-lo e utilizá-lo.
A afirmação de Monterde nos impele a apresentar pequenos
trechos das anotações feitas pelos alunos após a sessão do filme
Narradores de Javé.
− [...] Para ser salvo da inundação o vilarejo de Javé precisava de uma
história escrita. Biá não conseguiu escrever absolutamente nada! Mas
escrever o que? Eram tantas e distintas histórias. Além do mais cada
pessoa entrevistada apresentava uma versão diferente sobre a origem
de Javé; todos se colocavam como personagem principal da história [...]
mas que fique bem claro: Javé não tinha uma história concreta, mas
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todos os que um dia foram seus habitantes tinham construído, cada
um, uma história de Javé. (Géssica Souza da Silva, 8ª A)
− [...] Javé seria inundada para a construção de uma hidrelétrica, a
menos que tivesse um documento científico, comprovando sua origem.
[...] O povo era analfabeto, coube a Biá o dever de escrever a história.
Ele ficou confuso, pois cada entrevistado contava uma história
diferente sobre o fundador de Javé, Indalécio. [...] Algumas pessoas
foram embora; outras insistiram em ficar e salvar a cidade onde seus
mortos estavam enterrados. [...] Se acaso acontecesse isso com minha
cidade que eu amo de paixão, sinceramente não sei o que faria; acho
que morreria de tristeza. ( Thais Mikaela, 8ª A).
− [...] A história de Javé estava apenas na cabeça das pessoas. Então
chamaram Biá para passar pro livro. Nas entrevistas foi a maior
confusão, alguns queriam aparecer mais que o outro no livro [...] Até
que a cidade foi inundada. Sobrou só o sino que fazia parte da história,
porque anunciava todos os acontecimentos da cidade. Conclusão: eu
achei que o filme mexe muito com a cabeça da gente, porque se fosse
minha cidade, minha reação seria desesperadora e triste, mas um dia
quem sabe eu ia me conformar, pois essa é a realidade de várias
cidades hoje em dia, destruídas não só pela água do progresso, mas
por terremotos, guerras e muito mais [...] Graças a Deus que isso não
acontece aqui. (Mariane, 8ª A)
Sem dúvida, os trechos acima citados reforçam o que aqui já foi
dito a respeito da diversidade de estratégias decorrentes da exibição de
um filme.
Nesse aspecto, na execução deste projeto procurou-se levar em
conta o comentário do historiador francês Marc Ferro: [...] considerar as
imagens tais como são com a possibilidade de apelar pra outros saberes
para melhor compreendê-los. (1997, p.203)
Partindo de tais constatações, percebeu-se que na exibição do
filme houve uma identificação muito forte dos alunos com os moradores
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de Javé, no que diz respeito aos costumes, modo de vida, paisagens,
sentimentos. Em suma, a história de Javé despertou nos alunos o interesse
por outras histórias, por sua própria história, tanto que numa das
discussões sobre o filme, uma frase chamou a atenção da turma: “Como
juntar as histórias que estão “espaiadas” na cabeça do povo?“ Um dos
alunos sugeriu que saíssemos pela comunidade “caçando histórias”.
“Então não pensei duas vezes e concordei: é isso mesmo que vamos fazer,
vamos juntar as histórias ‘ espaiadas” na cabeça do povo mairinquense e
passar para o papel!
Eis aí o segundo foco do nosso projeto: organizar uma oficina
onde pudéssemos realizar um levantamento da história de
Conselheiro Mairinck.
Considerando que a sala de aula é um dos espaços onde os
saberes são construídos, a oficina: Cadê a história daqui?” surgiu como
ferramenta capaz de entre outras possibilidades, exercitar a pesquisa, a
análise, a investigação, a reflexão, a argumentação e a vivência do povo
mairinquense.
Inicialmente nossa intenção era trabalhar com alunos de 6ª série,
conforme o estabelecido no projeto de implementação, mas, em virtude
do interesse demonstrado por alunos de outras séries, inscrevi na oficina
alunos de 5ª a 8ª séries, do período da manhã, da Escola Estadual Dona
Macária – EF.
A oficina teve duração de dezesseis horas, assim distribuídas:
1º momento – em grupo os alunos analisaram fotos da cidade, do
ano de 1968. Cada grupo escolheu seis fotos consideradas interessantes.
Com a ajuda do mapa da cidade e de pontos de referência, identificaram o
lugar fotografado. Na visita in loco, foram tiradas fotografias procurando
focalizar o mesmo ângulo da foto antiga. Após montagem de painel com
fotografias antigas e atuais os alunos foram instigados a refletir e discutir
sobre as mudanças e permanências e as alterações do espaço que
influenciaram a história da cidade.
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2º momento – realização de levantamento de dados da história
local em arquivos familiares, religiosos, escolares, prefeitura municipal,
câmara municipal, cartório.
3º momento – coleta de depoimentos, relatos, causos, objetos e
fotografias antigas. Alguns depoimentos e entrevistas foram colhidos na
sala de aula, outros na residência do depoente ou no local de trabalho.
Houve casos em que o depoente quis falar no banco da praça e até em
frente ao bar mais antigo da cidade.
4º momento – organização de uma exposição de fotografias,
documentos, depoimentos, objetos antigos e representação teatral dos
causos, manifestações populares, uso e costumes da comunidade
mairinquense, na década de 60. Essa atividade foi aberta para toda escola
e comunidade.
Os momentos retratados nos fizeram refletir que, entender a
história da cidade através dos personagens vivos e ativos da comunidade,
faz com que as transformações sociais, sejam apreendidas com mais
profundidade. É nesse sentido que as autoras e Schmidt e Cainelli fazem
uma afirmação muito apropriada:
O trabalho com documentos históricos podem ser ponto de partida para a prática de ensino da História, [...] os documentos não serão tratados como fim em si mesmo, mas deverão responder às indagações e às problematizações de alunos e professores com o objetivo de estabelecer um diálogo como o passado e o presente, tendo como referência o conteúdo histórico a ser ensinado.( SCHMIDT e CAINELLI, 2004, p.95)
A afirmação das autoras é reforçada a partir da seguinte fala: A
diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo o que o
homem diz ou escreve, tudo o que constrói, tudo o que toca, pode e deve
fornecer informações sobre eles.
Observa-se dessa forma que quando o aluno de maneira
consciente e crítica compreende a história que o construiu, tem a
tendência de ampliar seus horizontes de pesquisa e com maior
intensidade reconstrói a sua identidade, passando da oralidade para os
registros documentais.
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Portanto, a partir do momento que o educando torna-se partícipe
do processo ensino-aprendizagem, o resgate da identidade de sua
comunidade, começa a aprofundar-se, como bem nos esclarece Mendes,
2004:
[...] trazendo à tona acontecimentos, atores e lugares comuns ao estudante faz com que este se aproxime da disciplina, percebendo a relação dialética entre o passado desconhecido e o presente tão próximo. Pode-se a partir desse ponto, estabelecer uma problematização que estimule o aluno a sair da curiosidade ingênua, conduzindo-o a um conhecimento crítico da realidade. (MENDES, 2004, p. 17)
No que diz respeito ao exposto, é interessante observar que
nossa preocupação no decorrer deste projeto, foi privilegiar a memória
escrita ou recuperada pela oralidade, tomando o devido cuidado de não
reproduzir a história oficial. Direcionamos nossa pesquisa, como já foi
visto, aos arquivos familiares, públicos, religiosos, escolares e particulares,
investigando o perfil da memória histórica ali construída, questionando
dados e fatos, apontando novas fontes, possibilitando que pessoas
comuns passem a serem vistas como sujeitos históricos.
Durante a realização da oficina Cadê a história daqui?, os alunos
demonstraram grande interesse a respeito dos personagens da história
local, queriam saber por exemplo: quem foi Conselheiro Mairinck e Maria
Souza? A que se deve a mudança do nome do patrimônio de Maria Souza
para Conselheiro Mairinck?
Tais questionamentos são muito comuns são só entre os alunos,
mas também na comunidade mairinquense.
Na seqüência, apresento um trecho do histórico da cidade de
Conselheiro Mairinck considerado como fonte histórica oficial, coletado na
prefeitura municipal:
“Conselheiro Mairinck teve sua origem por volta da década de 20,
tendo como primeira moradora uma anciã viúva por nome de Maria Souza,
a qual ignoramos de onde, supõe, porém que veio do estado de São Paulo
ou Minas Gerais, residia numa choupana construída de ripões e coberta de
taboinhas de piso de chão batido. Originando-se o nome do pequeno
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povoado de Patrimônio da Maria Souza, em homenagem a primeira pessoa
a residir na região, cujo nome ficou muito conhecido na região, até hoje
muitos ainda a conhecem por “Souza”.
O nome de Patrimônio de Maria Souza somente desapareceu
quando pela Lei 790, de 14 de novembro de 1951, foi elevado à categoria
de Distrito Judiciário, tomando o nome de Conselheiro Mairinck, originado
pela grande posse de terra na região, pertencente à família de Francisco
de Paula Mairinck, residente no Rio de Janeiro. “Posteriormente, sua filha
D. Maria José Paranhos Mairinck, doava uma quadra a Cúria Diocesana,
onde foi construída uma tosca igreja de madeira coberta de telhas”.
Os dados acima (transcritos na íntegra) foram coletados na
Prefeitura Municipal de Conselheiro Mairinck e se constitui na única fonte
oficial da história do município.
Após análise desse documento surgiram muitos
questionamentos: quem elaborou o histórico? Em que contexto? Qual
finalidade? Quais as fontes utilizadas? Porque as informações a respeito de
Maria Souza são tão vagas? Afinal, consta no histórico que ela era muito
conhecida até na região. E quando o autor do texto fala sobre a região
passa a impressão de que há um equívoco do que venha a ser essa região.
Seria uma referência ao município ou seria mais abrangente?
Outro personagem muito polêmico é o Conselheiro Francisco de
Paula Mairinck: quem foi afinal? A grande posse de terra na região justifica
tal homenagem? Em quais outros municípios da região e até do Brasil ele
teria latifúndios? Parece ser uma figura importante no meio político do Rio
de Janeiro, mas onde buscar tal informação?
Torna-se evidente, a partir de tais questionamentos que nossa
função como professor de história é rever tais documentos com um olhar
investigativo, instigando o aluno a “ler nas entrelinhas”, desconstruindo,
construindo, reconstruindo um novo saber histórico.
Entre os documentos levantados na prefeitura municipal e nas
pesquisas do professor Otto Leão E. Paasche, primeiro diretor da Escola
Estadual Dona Macária, encontrou-se na capa de uma revista, além do
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retrato, a biografia do Conselheiro Francisco de Paula Mairinck a qual
passa a ser transcrita na íntegra:
“O Conselheiro Mairinck, nasceu na praia do Saco do Alferes,
cidade Nova, a 08 de dezembro de 1839, foi elevado à pia de batismo a 2
de janeiro de 1840, na capela do Menino Deus, na Matriz de Santa Rita.
Filho do vereador José Carlos Mairinck e Dona Maria Emília Bernardes, era
irmão do Visconde de Mayrinck (João Carlos) e de Dona Clara Margarida
Mayrinck Rebello. Sobrinho da marquesa de Itamaraty e da baronesa de
Alegrete. Estudou na escola Militar de Porto Alegre, já aos 14 anos, e na
Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Foi diretor do Banco comercial do Rio
de Janeiro, presidente da Estrada de Ferro Sorocabana. Faleceu a 31 de
dezembro de 1906 na cidade do Rio de Janeiro e foi sepultado a 01 de
janeiro de 1907 no cemitério de São Francisco Xavier”, no Rio de Janeiro.
Como já afirmamos a análise do histórico do município foi alvo de
vários e importantes questionamentos, estimulando novas pesquisas junto
a moradores antigos, lideranças políticas da época, cartórios (Conselheiro
Mairinck, Jaboti e Tomazina), livro tombo da Paróquia Sagrado Coração de
Jesus de Conselheiro Mairinck, Mitra Diocesana de Jacarezinho.
Nessa busca muito pouco foi encontrado. O livro tombo da
Paróquia faz algumas referências à família do Conselheiro Mairinck e
apresenta a mesma informação, contida no histórico municipal, sobre
Maria Souza. No entanto, nas discussões provocativas da oficina, ficou
muito evidente que embora a história oficial não tenha registros sobre
Maria Souza, ela era na realidade muito popular. Alguns depoentes
afirmam que ela era benzedeira, outros que era parteira, como é o caso de
dona Amélia, que afirma que dona Maria Souza teria realizado o parto do
qual ela nasceu.
Outro fato que chamou atenção durante a pesquisa, foi a
constatação pelo grupo de que ainda hoje, principalmente na zona rural
do município, um número elevado de pessoas referem-se a cidade de
Conselheiro Mairinck, pelo antigo nome “Souza”. Isso acontece com tanta
naturalidade que as pessoas nem se dão conta do fato.
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Em função das constatações descritas, tornam-se conveniente
salientar a afirmação de Ecléa Bosi (1994): A memória não é oprimida
apenas porque lhe foram roubadas suportes materiais [...], porque outra
ação mais daninha e sinistra, sufoca a lembrança: a história oficial
celebrativa cujo triunfalismo é a vitória do vencedor a pisotear a tradição
dos vencidos [...]
Tal ponto de vista pode ser completado por Jacques Le Goff
(1992), o qual afirma que a verdadeira função dos historiadores deve ser
“trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não
para a servidão dos homens”.
Por conseguinte, cabe a nós professores/pesquisadores, utilizar
de diversas metodologias, fonte e linguagens, visando a produção do
conhecimento histórico. Segundo Schmidt e Cainelli (2004), “ensinar
história é construir um diálogo entre o presente e o passado, e não
reproduzir conhecimentos neutros e acabados sobre fatos que ocorreram
em outras sociedades e outras épocas”.
Para tanto, o ensino da história local, que trata das
especificações das localidades, tem uma grande importância, pois ele
pode de diferentes formas produzir junto aos alunos uma história que
parta de um acontecimento ou de um cotidiano que eles conhecem,
sempre relacionado aos fatos e acontecimentos nacionais e universais.
A esse respeito constatei nas discussões da oficina, que os alunos
relacionavam com tamanha facilidade fatos colhidos na comunidade, com
os acontecimentos mais amplos. Um grupo de alunos, analisando fotos de
jovens mairinquenses na praça da cidade e, num desfile cívico, no ano de
1968, percebeu no corte do cabelo, nas roupas e nas atitudes, a influência
do movimento jovem guarda, do Regime Militar e do capitalismo
americano.
Cabe aqui salientar a afirmação de Hofling (2008): a reconstrução
da história de um local é trabalho amplo, desencadeia um conjunto de
forças no imaginário individual e coletivo de todos.
Outro autor que enfatiza a afirmação acima é Jungblut:
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[...] A História local propicia ao pesquisador uma idéia muito mais imediata do passado, permitindo que a memória nacional possa ser encontrada ou re-encontrada, ouvida, lida nas esquinas, nas ruas, nos bairros. Fazer História local é estabelecer relações entre a micro e a macro história; é privilegiar o particular, sem desprezar o geral, numa complementação entre ambas. (JUNGBLUT, 2008, p.44):
O mesmo autor ainda ressalta que: [...] A História local deve
enfatizar a existência de uma multiplicidade de tempos históricos que
convivem concomitantemente na realidade de um mesmo país – ou de
uma região. (JUNGBLUT, 2008, p.42)
Considerando tais pressupostos, torna-se evidente que a história
local deve abordar muito mais do que simplesmente os acontecimentos
históricos oficiais, levando em conta outras fontes, como relatos orais,
depoimentos, acervo fotográfico, revistas, entre outras.
Essas fontes ajudam o aluno a repensar o presente, valorizar o
passado e questionar seu papel no contexto histórico em que vive.
Na minha opinião, uma das maiores “descobertas” dos alunos
envolvidos na oficina foi o resgate da história do “Cine Santa Catarina”.
Além de depoimentos, trouxeram para a exposição cadeiras do cinema,
auto-falante, fitas. Foi realmente emocionante ouvir a história do cinema
local, sendo contada por um aluno, normalmente muito tímido, mas muito
à vontade para imitar a voz usada na “chamada”, que era feita pelo
Senhor Ogg, proprietário do cinema: “Essa é a voz do Cine Santa Catarina,
anunciando para hoje mais uma grande atração cinematográfica: “O Jeca
e a freira”, com Mazzaropi”.
O depoente que na época era auxiliar do Senhor Ogg, forneceu o
material necessário e orientou o grupo de alunos sobre a maneira como
tudo funcionava.
Um outro depoimento que chamou muito a atenção dos alunos,
foi do Senhor Silvio de Oliveira Manata. Ele é filho de portugueses. Sua
família veio pra Conselheiro Mairinck no ano de 1957, para trabalhar na
lavoura, denominada “safra”. Explicou como funcionava esse sistema que
segundo se percebe nos depoimentos, foi a base da economia do
“patrimônio Maria Souza”.
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Afirmou que é aposentado, mas que tem muito orgulho de sua
profissão de sapateiro. Ele levou para a sala instrumentos que utilizava na
fabricação de calçados, demonstrando na prática como era seu trabalho.
Num trecho do depoimento ele afirma [...]. Deixei de ser sapateiro porque
o povo do sítio foi embora para a cidade e o movimento acabou [...] eu
fazia bota, botina de roça, sapato de passeio.
Após a entrevista levei os alunos a refletirem sobre como as
mudanças ocorridas no Brasil, no mundo e no estado podem interferir no
cotidiano das pessoas. Esse movimento migratório citado pelo depoente, é
confirmado pelo Censo Demográfico do Paraná 1970 (IBGE), sendo que a
população mairinquense nesse ano era constituída por 6552 habitantes
caiu para 3554 habitantes, no ano de 2007.
Nesse contexto, as autoras Schmidt e Cainelli nos chamam a
atenção para importância da história local: “O estudo com a história local
ajuda a gerar atitudes investigativas, criadas com base no cotidiano do
aluno, além de ajudá-lo a refletir acerca do sentido da realidade social“.
(SCHMIDT E CAINELLI, 2004, p.113)
Ainda sobre essa questão, as autoras afirmam: ”O trabalho com a
história local pode ser instrumento idôneo para a construção de uma
história mais plural, menos homogênea, que não silencie a multiplicidade
de vozes dos diferentes sujeitos da história”. (SCHMIDT E CAINELLI, 2004,
p.113)
Minha preocupação com a história local não é recente, sendo que
nesses trinta anos de docência, sempre instiguei tal pesquisa,
especialmente sobre conselheiro Mairinck, onde resido desde março de
1963. Meu avô paterno decidiu vir para cá na ânsia de possuir mais
terras,pois ele sempre afirmava:” ouvi falar de uma região do Paraná onde
há muita terra fértil e barata”. “Assim, fiz parte de uma das “leva” de
paulistas que veio para o norte Pioneiro atraídos pela propaganda, que
segundo Schmidt, foi feita, até boca a boca”. (SCHMIDT, 1996, p. 73)
No ano de 2004, atendendo solicitação do NRE de Ibaiti, eu, em
parceria com a professora de Geografia, fiz uma pesquisa sobre a história
da Educação do município de Conselheiro Mairinck. “Esse trabalho
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privilegiou em grande parte a história oral, de maneira que na oficina’”
Cadê a história daqui?”, utilizei dois depoimentos considerados relevantes
na história local. Vejamos:
1. No depoimento do primeiro cartorário da cidade, Senhor Dario
do Nascimento, percebe-se a riqueza do passado, que ficou tão vivo em
sua memória.
“Em 15 de outubro de 1946, data em que cheguei nesta cidade, o
patrimônio se denominava Maria Souza; tinha umas quinze ou vinte casas
de madeira, uma igreja pequena [...]. A fundadora foi Dona Maria Souza.
[...] O nome de Conselheiro Mairinck originou-se do Conselheiro Francisco
de Paula Mairinck [...] parte das terras passou a pertencer ao espólio de
Maria José Paranhos Mairinck, sendo inventariada passou aos herdeiros
Celina Mairinck e Guiomar Mairinck Lessa. Algumas terras foram vendidas
ao Dr.Marins Alves de Camargo e este por meio de procuração loteou os
terrenos em pequenas áreas que foram plantadas as lavouras de milho,
feijão, arroz, café. Em virtude da família Mairinck, foi dado o nome às ruas:
Dr. Marins de Camargo, Dona Celina,Dr. Rui de Camargo, Dr, Natel de
Camargo, estes residentes em Curitiba.
Os pioneiros que desbravaram a região foram: Antonio Valério,
Estevão Bueno, Inácio Lírio da Cruz (Inácio Paulista), Pedro Sebastião de
Oliveira e outros. ( transcrito na íntegra) Depoente Dario Mauricio do
Nascimento – 75 anos falecido em agosto de 2005).
Este depoimento esclareceu muitas dúvidas, principalmente
sobre os nomes das ruas, que a população mairnquense desconhecia.
2. [...] O povoado hoje denominado Conselheiro Mairinck, iniciou-
se com um aglomerado de uns poucos ranchos, onde num desses ranchos
morava uma anciã de idade avançada que se chamava Maria Souza. [...]
os ranchos existentes era de safristas, isto é, de pessoas que faziam roças
pra engorda de porcos.[...] as terras da região pertencia à família
Paranhos Mairinck, cujas terras somava muitos alqueires. [...] tendo como
ponto atrativo o Rio das Cinzas, e a fertilidade da terra foi atraindo muita
gente para o local. [...] as primeiras famílias que vieram alojar nestas
paradas foram: o velho Estevão, Antonio Valério, Joaquim Jardim, Decílio
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Domingues, Pedro Sebastião, Francisco Rodrigues e Dona Macária,
Lourenço Nunes. Mais tarde vieram as famílias Ferreira, Vitorino Daniel e
outros. [...] foi eleito por sufrágio de votos o senhor José Feliciano Santana
[...] o município de Conselheiro Mairinck pertenceu à comarca de
Tomazina, mais tarde passou a pertencer à comarca de Ribeirão do Pinhal,
atualmente pertence à comarca de Ibaiti. Há de se notar que nas décadas
de 1962/64 o município era estimado em 7000 habitantes, constava mais
ou menos 400 propriedades rurais. Com a entrada dos grandes
fazendeiros, os pequenos sitiantes sentiram-se oprimidos e foram
vendendo suas propriedades, e os fazendeiros foram se alastrando. Hoje
em dia não tem nem 200 propriedades e o povo reduziu para menos de
4000 habitantes. Portanto, o município está nas mãos de uma dúzia de
fazendeiros. (Clarindo Rodrigues de Souza, funcionário público municipal
aposentado – 83 anos – falecido em fevereiro de 2008).
É interessante observar nos depoimentos, que apesar de haver
divergências sobre determinados fatos, referentes à origem e fundação da
cidade, existem outros que se identificam e se assemelham.
Nota-se que existem divergências quanto à fundadora Maria
Souza, no que diz respeito à origem da mesma, seria mineira ou paulista?
Há também muitas versões sobre o local do rancho de Maria Souza, e,
quanto aos filhos que teve.
Quanto aos primeiros moradores há unanimidade entre os
depoentes, os quais ofereceram valiosas fontes que farão parte de nosso
acervo histórico.
A respeito das fontes, Peter Burke nos lembra:
a evidência oral, a fotografia, as imagens em geral estão quase atingindo a sofisticação da crítica do documento escrito. O importante é ressaltar o valor, especialidades e limitações das fontes, cabendo aos historiador/professor de história, mediante o seu tema e sua problemática, selecioná-las e interpretá-las adequadamente. Elas se completam, e dependendo da pesquisa, certas fontes podem ser mais “preciosas” do que outras. O problema está em como trabalhá-las, independentemente de serem escritas, orais ou visuais (BURKE, 1992, p. 23).
Dentro dessa perspectiva de Burke, nosso projeto trará um novo
olhar sobre a História da cidade de Conselheiro Mairinck. A qual passa a
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partir de agora ter um novo significado, podendo ser analisada a partir de
vários pontos de vista.
Levando em conta que nosso município está prestes a completar
47 anos de emancipação política, no trabalho com a oficina, selecionamos
depoentes a partir de 60 anos de idade. Tínhamos perguntas previamente
preparadas, mas procuramos deixar o depoente à vontade para trazer à
tona suas lembranças.
Muitas vezes as respostas do depoente, estimulavam os alunos a
questionarem fatos não previstos em nosso planejamento, tornando o
depoimento muito mais proveitoso e interessante.
Os alunos demonstraram curiosidade a respeito dos causos,
costumes, lazer e festas. Selecionamos alguns trechos de causos,
considerados engraçados, que foram representados pelos alunos:
− [...] quando morria alguém às vezes era levado em rede. Batia o sino
da capela e todos se perguntavam: 'toque de morte, quem morreu? E
todos iam pra igrejinha pra ver o defunto. Certo dia o caixão estava
colocado em cima do banco e todos se acotovelavam em volta do
caixão. Eu convidei a todos pra rezar o terço. De repente um homem
desmaiou em cima do caixão, o defunto revirou do caixão e algumas
pessoas assustadas gritaram: “o falecido viveu”. Foi tamanha correria,
os que estavam dentro da capela queriam sair, os que estavam fora
queiram entrar para ver o que estava acontecendo, Na correria um
homem de bota pisou no meu pé, arrancou a minha unha...[..] foi um
susto danado e muita dor . (Maria Calila – professora - 61 anos).
[...] Certa vez um time veio de longe jogar bola aqui. Eles andaram
umas doze léguas a cavalo. Tudo ai bem, até que um senhor que
estava perto do gol começou a picar fumo com um canivete pontudo.
Um jogador chutou a bola com força, ela bateu na ponta do canivete e
estourou. O jogo acabou pois não tinha outra bola (Geni Marques –
dona de casa – 74 anos).
[...] Antigamente os casamentos eram realizados no cartório de Jaboti,
e, na Igreja era feito na época das festas, que era quando, os padres
capuchinhos vinham de Tomazina [...] certa vez ia ter um casamento,
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prepararam aquela festança. No dia do casamento, choveu pra daná e
o rio encheu que dava medo. Ai a coisa ficou feia, os noivos não
queriam mudar a data do casamento, pois estava tudo pronto, passar
no rio daquele jeito era perigoso. Tinha um sujeito muito corajoso, e
bom cavaleiro que falou: vamo dá um jeito nisso, eu passo o rio a nado
com meu cavalo, trago o juiz de paz até a beira do rio, e vocês esperam
na beira do rio do lado de cá. Assim foi feito: o juiz de paz gritava do
lado de lá do rio: o senhor fulano de tal, aceita a senhora fulana de tal
como sua esposa? O noivo todo animado gritava: aceito. Depois fez a
mesma pergunta pra noiva, que gritou apressadinha: aceito, sim
senhor. Então declaro casados e quando a enchente passar vão lá em
Jaboti assinar o livro.[...] foi uma festança daquelas.
(José Ferreira (Juquinha))
[...] naquele tempo a família Marins de Camargo tinha mais de 5 mil
alqueires de terra por aqui. Era uma fazenda de arrendo. O falecido
Pedro Sebastião, é que cuidou de tudo durante muitos anos. Depois a
fazenda foi loteada e as pessoas faziam safra de porco. Quando alguém
ia atrás de um lote, eles falavam: “acha uma água onde você possa
fazer o rancho, põe as marcas e aí pode derrubar a mata e fazer safra”.
Essas terras que hoje são do Nei Minardi, José Henrique, Vicente Café,
era tudo da família Mairinck. Existia muito safristas, mas só me lembro
do Pedroso e da família do Dédi que eram grandes safristas [...] Era
tanto porco que às vezes tinha que ser colocado marca. [...] Mais ou
menos até lá por 1954, a safra de porco dominava.[...] mas depois
começou a safra de feijão e algodão, aí já foi mais os paulistas e os
mineiros. É, mas também veio muito nordestino trabalhar aqui nas
lavouras e serrarias. Vocês mesmo conheceu o Dario, o cartorário, era
nordestino e o José Batista, que chegou a ser o 1º prefeito daqui de
Conselheiro, era nordestino também [...] Da Maria Souza sei pouca
coisa, não sei se veio de Jaboti ou de Siqueira Campos, lá pelos anos de
1944. O rancho dela era onde hoje mora seu Abílio. O comércio era
fraco e vendia a prazo, com o pagamento no fim da safra. (José
Rodrigues dos Santos -Zé Rita – sitiante 76 anos).
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[...] Eu me chamo Messias de Siqueira, tenho 73 anos, nasci em Jundiaí
do Sul – Paraná. Vim para Conselheiro Mairinck com dois anos de idade.
Meus pais vieram em 1913, da cidade de Natércia, Sul de Minas Gerais
para a cidade de Jaboti. A viagem durava 30 dias e o meio de
transporte usado era o cargueiro, puxado por animal. Em 1914 minha
família mudou para a cidade de Jundiaí do Sul, onde permaneceu até
1932, quando vieram definitivamente para Conselheiro Mairinck, bairro
dona Macária. Meu pai se chamava Francisco Aniceti de Siqueira e
minha mãe Macária Custódio da Silva (patrona da Escola Estadual dona
Macária). Aqui em Conselheiro, antiga Souza, só existia uma venda do
Senhor Valério. A igreja era de madeira. O padre na época vinha da
cidade de Tomazina duas vezes no ano, no mês de janeiro na festa de
São Sebastião e em junho na festa de Nossa Senhora de Santa Ana. Os
casamentos eram realizados na igreja com essas vidas do padre, e no
civil era feito em Jaboti. Não havia cadeia, quando brigavam eram
amarrados nos coqueiros até o dia seguinte. Quando ainda não existia
escola pública, lá pelo anos de 1940, havia um professor itinerante
conhecido por José Rosa, que lecionava pra os filhos dos fazendeiros e
de alguns agregados. (Messias de Siqueira- sitiante – 74 anos).
Alguns fatos importantes assinalados nos depoimentos transcritos:
Muitos depoentes vieram de Minas Gerais para Siqueira Campos, Jaboti
e depois Conselheiro Mairicnk.
Vários depoentes citam o professor itinerante José Rosa, que pelo que
consta era uma espécie de professor particular, que percorria as
fazendas à cavalo, alfabetizando os filhos dos que podiam pagar e dos
empregados das fazendas. Ficava de dois a três meses em cada local.
A referência ao sistema de safra é apontada na maioria dos
depoimentos sendo segundo Ruy C. Wachowcz: [...] no início do século
XX a suinocultura passou a ser atividade dominante [...] a grande
produção de suínos no Norte Pioneiro atraiu a atenção dos grandes
frigoríficos brasileiros [...] o sistema empregado na criação de porcos
era o da safra (WACHOWCZ, 1987, p.96-98).
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Êxodo rural e queda do número de habitantes.
Número elevado de fazendas, em detrimento de pequenas
propriedades.
Analisando os depoimentos e relatos até o momento descritos,
vislumbra-se, que o Projeto de Implementação do Programa de
Desenvolvimento Educacional – PDE comprovou que é possível construir a
consciência histórica dos alunos e da comunidade envolvida nessa
experiência com a história local.
Galzerani (1998), ao justificar a importância da história local, se
reporta ao filósofo Walter Benjamim:
[...] no momento atual, em que se aceleram os processos culturais globalizantes, as tradições locais tendem a desaparecer. [...] Os homens têm perdido a sua dimensão temporal e cultural, para assumir um comportamento homogeneizador, que afeta as suas sensibilidades, os seus gostos, os seus traços culturais. (GALZERANI, 1998, P 37)
A memória, a tradição e as experiências vividas estão presentes
em cada etapa dessa pesquisa. Alguns trechos de depoimentos de alunos
que participaram do projeto, falam por si mesmo:
- [...] no mês de maio eu e meus colegas participamos da oficina: Cadê a
história daqui?”Fizemos uma pesquisa muito interessante sobre o passado
de Conselheiro Mairinck [...] descobrimos que antigamente onde hoje é o
Bar do OGG funcionava um cinema, chamado “Cine Santa Catarina”,[...]
fizemos uma exposição de fotos e objetos antigos. Comparamos o ontem e
o hoje. Foi muito interessante, legal mesmo, pois as fotos, os objetos e
recordações antigas que antes não tinha valor, hoje são considerados
como “símbolos” do passado de nossa cidade.[..] passamos um pouco do
que aprendemos, um pouco do nosso conhecimento, para outras pessoas
que ainda não tinham essas informações . Adorei participar dessa oficina,
porque descobri coisas que eu nem imaginava sobre minha cidade. (Thais
Mikaela - 8ª)
- [...] eu quis participar dessa oficina como intuito de aprender mais sobre
Conselheiro Mairinck, Nós da 8ª série já fizemos esse trabalho com a
professora Engracia, a oficina foi uma continuação do trabalho. [...] com a
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oficina redescobrimos a história daqui, aprendemos a valorizar nossa
cidade. Por mais pequena que ela seja, é rica em histórias importantes e
engraçadas. [...] durante a oficina saímos para entrevistar pessoas, tirar
fotografias para comparar com as antigas que a professora tinha [...]
vimos que nos anos que passaram a cidade teve várias mudanças.[...] a
exposição foi muito legal mesmo e muito visitada.[...] na minha opinião
essa oficina deveria ter mais vezes, para que mais pessoas conheça a
verdadeira história de Conselheiro Mairinck, contada por pessoas antigas
[...] hoje posso dizer que agora sei a nossa história e tenho certeza que
todos que participaram da oficina se encantou com tudo que aprendeu
(Andreia Maria dos Santos 8ª A).
Este trabalho baseado em dados e recursos conseguidos com
depoimentos, coleta de informações da população, fotografias e objetos
antigos, arquivos familiares, escolares, religiosos e populares,
proporcionou uma valorização do próprio sujeito que redescobriu sua
história e sua cultura.
A partir do Projeto de Implementação do PDE, o qual focalizou a
História Local e o uso do cinema nas aulas de História, foi possível
descobrir as continuidades e as rupturas, constatando-se que o tempo
passado permanece vivo e está bem próximo de nós, nas falas, nos
costumes e causos, nos sentimentos, nas lembranças que se imaginava
esquecida.
Concluindo, podemos reafirmar que o filme nas aulas de História,
constitui-se numa ferramenta muito eficaz provocando no aluno uma
postura crítica, frente à sua realidade.
No caso específico deste projeto, o filme Narradores de Javé,
além de fornecer subsídios que desencadearam uma série de estratégias
educativas, despertou nos alunos sentimentos, emoções e um grande
interesse em investigar a história da sua cidade.
A oficina “Cadê a História daqui?”, foi o espaço pedagógico criado
a partir desse filme. Essa oficina, possibilitou uma interação entre a Escola
e a comunidade, abrindo caminho para uma nova abordagem no ensino
de História.
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Espera-se, portanto, que não só os alunos, mas também a
comunidade como um todo, uma vez inteirada de sua própria história,
queiram buscar sempre mais e passe a olhar o passado como algo, sujeito
ao dinamismo do presente.
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