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Capítulo Um
Com um silvo e uma pancada, as portas deslizaram e se abri-
ram, deixando a mulher no ponto de ônibus. Aparente-
mente indiferente ao vento que vergastava e aos golpes da chuva,
ela ficou olhando o veículo entrar de novo em seu movimento de
trovão, trocando a marcha ao descer laboriosamente a ladeira. Só
quando ele finalmente desapareceu de vista atrás das sebes de
roseira-brava, ela se virou para olhar os aclives relvosos que
subiam dos dois lados da rua. Através do aguaceiro, eles pare-
ciam sumir no cinza desbotado do próprio céu, de modo que era
difícil dizer onde um começava e outro terminava.
Fechando o casaco no pescoço firmemente, ela partiu,
pisando nas poças de chuva no asfalto esfarelado da beira da rua.
Embora o lugar estivesse deserto, havia nela uma precaução
enquanto olhava o caminho à frente e de vez em quando fitava
por sobre o ombro. Não havia nada de particularmente furtivo
nisto – qualquer jovem num lugar igualmente isolado podia ter
os mesmos cuidados.
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Sua aparência dava poucas pistas de quem ela era. O vento
fustigava o cabelo castanho no rosto de maxilar largo, obscure-
cendo as feições num véu em eterna mutação, e as roupas não
tinham nada de extraordinário. Se alguém passasse por ali, era
muito provável que a tomasse por uma moradora, talvez indo
para casa, para sua família.
A verdade não podia ser mais diferente.
Ela era Sarah Jerome, uma colonista foragida que tentava
salvar a própria vida.
Caminhando um pouco mais, ela subiu de repente pela
beira e se lançou por um espaço na sebe. Desceu num pequeno
buraco do outro lado e, mantendo-se abaixada, girou para ter
uma visão clara da rua. Ali, continuou por uns bons cinco minu-
tos, escutando e observando, atenta como um animal. Mas, além
da pancada da chuva e os golpes do vento em seus ouvidos, não
havia nada; ela estava verdadeiramente só.
Sarah amarrou um cachecol na cabeça, em seguida saiu do
buraco. Afastando-se rapidamente da rua, atravessou o campo
diante de si em direção ao abrigo de um muro de pedras soltas.
Depois, subiu um aclive, mantendo o ritmo acelerado ao chegar
ao topo do morro. Ali, em silhueta contra o céu, Sarah sabia que
estava exposta e não perdeu tempo em continuar, descendo para
o outro lado, entrando no vale que se descortinava diante dela.
Em toda a volta, o vento, canalizado pelos arredores, impe-
lia a chuva em vórtices retorcidos e confusos, como minifura-
cões. E, através disso, alguma coisa rangeu, algo que ela registrou
pelo canto dos olhos. Sarah ficou paralisada, virando-se e tendo
um breve vislumbre da forma clara. Um arrepio desceu por sua
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coluna... O movimento não pertencia ao balanço da urze nem à
pulsação da relva... Tinha um ritmo diferente.Ela olhou fixamente o lugar até que viu o que era. Ali, na
lateral do vale, um cordeiro novo entrava em seu campo de visão,cabriolando em saltos caóticos, em meio às moitas de gramínea.Enquanto Sarah observava, ele de repente lançou-se atrás de umgrupo de árvores raquíticas, como se tivesse se assustado comalguma coisa. Os nervos de Sarah chiaram. O que o teria assusta-do? Haveria mais alguém por perto... Outro ser humano? Sarah seretesou, depois relaxou ao ver o cordeiro aparecer novamente,desta vez acompanhado da mãe, que ruminava distraidamenteenquanto o mais novo começava a se aninhar em seu flanco.
Era um alarme falso, mas não havia sugestão de alívio norosto de Sarah, nem de diversão. Seus olhos não se demoraramno cordeiro que começava a saltitar de novo, o pelo feito lã dealgodão virgem, em acentuado contraste com o manto áspero esujo de lama da mãe. Não havia espaço para diversões na vida deSarah, não agora, nem nunca. Ela já verificava o outro lado dovale, vasculhando-o em busca de qualquer coisa que estivessefora de lugar.
Então, partiu de novo, preferindo seguir pela quietude celtada vegetação luxuriante e sobre as lajes lisas de pedra, até chegara um regato aninhado no vale. Sem hesitar nem por um momen-to, atravessou as águas claras como cristal, alterando sua rotapara a do regato, às vezes usando as pedras cobertas de musgocomo degraus, quando lhe serviam como um meio mais rápidode se locomover.
Quando o nível da água subiu, ameaçando chegar acima deseus sapatos, ela pulou de volta à margem, acarpetada de um
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manto verde e elástico de relva aparada pelas ovelhas. Ela conti-nuou no mesmo ritmo inexorável e, logo, uma cerca de arameenferrujado entrou em seu campo de visão, e depois a trilha ele-vada da fazenda que ela sabia que passava por trás da cerca.
Em seguida, Sarah localizou o que procurava. Onde a trilhacruzava com o regato, assomava uma ponte de pedras grosseiras,as laterais esfarelando e precisando desesperadamente de umareforma. Seu curso junto ao regato levou-a diretamente para lá eela partiu num trote em sua pressa de chegar. Minutos depois,estava em seu destino.
Abaixando-se sob a ponte, ela parou para tirar o cachecol eenxugar os olhos. Depois, atravessou para o outro lado, ondeficou inteiramente imóvel ao examinar o horizonte. Caía oentardecer e o brilho rosado das luzes recém-acesas na rua come-çava a se infiltrar por uma tela de carvalhos, que escondiam tudo,exceto a ponta do campanário de uma igreja na cidadezinha dis-tante.
Ela voltou a um ponto pela metade da parte de baixo daponte, inclinando-se enquanto o cabelo agarrava na pedra áspe-ra acima. Localizou um bloco irregular de granito projetando-selevemente da superfície. Com as duas mãos, ela começou amovê-lo como se quisesse abrir algo, empurrando-o para aesquerda e direita e depois para cima e para baixo, até que ele sesoltou. Tinha o tamanho e o peso de vários tijolos e ela grunhiupelo esforço ao se curvar para colocá-lo no chão a seus pés.
Endireitando o corpo, Sarah espiou o vazio, depois enfiou obraço no vão até a altura do ombro e tateou seu interior. Seurosto encostou na alvenaria e ela encontrou uma corrente, quetentou puxar. Estava presa. Por mais que tentasse, não conseguia
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demovê-la. Ela xingou e, respirando fundo, preparou-se paramais uma tentativa. Desta vez, a corrente cedeu.
Por um segundo, nada aconteceu enquanto Sarah continua-va a puxar a corrente com uma só mão. Então, ela ouviu o somde um trovão distante, emanando das profundezas da ponte.
Diante dela, encaixes até agora invisíveis se abriram com umborrifo de pó de argamassa e líquen morto, e um buraco irregu-lar, do tamanho de uma porta, abriu-se à sua frente à medida queparte da parede recuava e em seguida subia. Depois de um últi-mo baque que fez toda a ponte tremer, tudo voltou a ficar emsilêncio, a não ser pelo gorgolejar do regato e o tamborilar dachuva.
Penetrando no interior escuro, ela pegou uma pequena lan-terna no bolso do casaco e a acendeu. O tênue círculo de luzrevelou que ela estava em uma câmara de uns quinze metros qua-drados, com um teto alto o bastante para lhe permitir ficar ereta.Ela olhou em volta, registrando a poeira que pairava ociosamen-te no ar e as teias de aranha, grossas como tapeçarias podres, for-mando grinaldas no alto das paredes.
O lugar fora construído pelo trisavô de Sarah no ano antesde ele levar a família ao subterrâneo para uma nova vida naColônia. Mestre de obras por profissão, ele usou todas as habili-dades que tinha para esconder a câmara por dentro da pontedilapidada e esfarelenta, escolhendo de propósito um lugar aquilômetros do nada, na estrada raras vezes utilizada da fazenda.E nem os pais de Sarah puderam responder por que exatamenteele teve todo esse trabalho. Mas, qualquer que fosse sua intençãooriginal, este era um dos pouquíssimos locais em que ela se sen-tia verdadeiramente segura. Certa ou errada, ela acreditava que
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ninguém a encontraria ali. Sarah tirou o cachecol e sacudiu ocabelo, soltando-o e permitindo-se relaxar.
Seus pés no chão coberto de saibro romperam o silêncio
sepulcral ao seguirem a uma prateleira de pedra estreita, na pare-
de de frente para a entrada. Nas duas extremidades da prateleira,
havia dois pinos de ferro verticais e enferrujados, com um manto
de couro grosso cobrindo as pontas.
– Faça-se a luz – disse ela com delicadeza. Sarah estendeu a
mão e puxou ao mesmo tempo os dois mantos, expondo dois
globos luminosos, mantidos no alto de cada pino por garras de
ferro vermelhas e escamosas.
Do tamanho aproximado de nectarinas, essas esferas de
vidro emitiram uma luz verde e sinistra com tal intensidade que
ela foi obrigada a proteger os olhos. Era como se a energia dos
globos tivesse sido acumulada sob as capas de couro e agora se
revelavam em sua recente liberdade. Ela esfregou uma das esferas
com a ponta dos dedos, sentindo sua superfície gelada e tremen-
do um pouco, como se tocá-las conferisse uma espécie de ligação
com a cidade oculta onde eram comuns.
A dor e o sofrimento que ela havia suportado sob esta mesma
luz.
Ela pôs a mão no alto da prateleira, limpando a grossa cama-
da de limo que a cobria.
Como Sarah esperava, sua mão se fechou numa pequena
bolsa de polietileno. Sorriu, pegando-a e sacudindo para remover
a sujeira. A bolsa estava fechada com um nó, que ela rapidamen-
te desfez com os dedos frios. Retirando o pedaço de papel bem
dobrado de seu interior, ergueu-o à altura do nariz para cheirá-
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lo. Estava úmido e bolorento. Ela sabia que a mensagem estava
ali havia vários meses.Embora não houvesse alguma coisa esperando por ela sem-
pre que fazia essa visita, Sarah se xingou por não ter vindo antes.Mas raras vezes se permitia verificar a intervalos menores de seismeses, uma vez que este procedimento de “caixa de correiomorta” trazia riscos a todos os envolvidos. Estas foram as únicasvezes em que ela entrou em contato indireto com alguém de suaantiga vida. Sempre havia um risco, embora pequeno, de que omensageiro fosse seguido ao sair da Colônia e surgir na superfície,em Highfield. Ela também não podia ignorar a possibilidade deter sido vista ao fazer a viagem de Londres. Nada era garantido. Oinimigo era paciente, sumamente paciente e calculista, e Sarahsabia que nunca abandonaria seus esforços de capturá-la e matá-la. Ela precisava ser melhor do que eles em seu próprio jogo.
Sarah olhou o relógio. Sempre variava o trajeto ao chegar esair da ponte e não podia perder tempo para caminhar pelocampo até a cidade vizinha, onde pegaria o ônibus para a viagemde volta.
Ela devia estar a caminho, mas seu anseio por notícias dafamília era demasiado. Este pedaço de papel era sua única ligaçãocom a mãe, irmão e os dois filhos – era como um bote salva-vidas.
Sarah precisava saber o que continha. Ela cheirou o bilhetenovamente.
Além de sua necessidade de qualquer informação sobre eles,havia algo mais que a impelia a se desviar dos procedimentos cui-dadosamente elaborados que seguia tão impecavelmente sempreque fazia uma visita à ponte.
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Era como se houvesse um cheiro distinto e indesejado nopapel, erguendo-se acima dos odores de mofo e bolor da câmaraescura. Era pungente e desagradável – era o fedor de más notícias.Suas premonições lhe serviram bem antes e ela não ia começar aignorá-las agora.
Com um pavor crescente, ela fitou profundamente a luz doglobo mais próximo, manuseando nervosa o papel enquantoreprimia o impulso de ler o que trazia. Depois, espantada consigomesma por ser tão fraca, ela fez uma careta e o abriu. Parada dian-te da prateleira de pedra, ela o examinou sob a luz esverdeada.
Sarah franziu o cenho. A primeira surpresa era que a mensa-gem não trazia a letra de seu irmão. A caligrafia infantil lhe eradesconhecida. Tam sempre as escrevia. Sua premonição estavacerta – de imediato, ela entendeu que alguma coisa estava errada.Ela virou o bilhete e deu uma olhada até o fim para ver se haviaalgum nome assinado ali. “Joe Waites”, disse ela em voz alta,sentindo-se cada vez mais inquieta. Isso não estava certo; Joe devez em quando agia como mensageiro, mas a mensagem deviater vindo de Tam.
Ela mordeu o lábio com ansiedade e começou a ler, dispa-rando pelas primeiras linhas.
– Ah, meu bom Senhor – disse ela, ofegando e sacudindo acabeça.
Leu a primeira parte da carta novamente, incapaz de aceitaro que havia ali, dizendo a si mesma que devia ter entendido mal,ou que aquilo era algum equívoco. Mas estava claro como o dia;as palavras escritas com simplicidade não deixavam dúvidas. Eela não tinha motivos para duvidar do que a carta dizia – essasmensagens eram a única coisa em que ela confiava, uma constan-
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te em sua vida de deslocamentos e inquietude. Davam-lhes umarazão para continuar em frente.
– Não, não o Tam... não o Tam – ela gemeu.Como se tivesse sido golpeada, ela vergou na prateleira de
pedra, apoiando-se nela para se equilibrar.Sarah respirou fundo, trêmula, obrigando-se a virar a carta e
ler o resto, sacudindo a cabeça com veemência e murmurando:– Não, não, não, não... Não pode ser...Como se a primeira página já não tivesse sido bem ruim, o
que estava no verso foi demais para ela. Com um gemido, ela seafastou da prateleira e foi para o meio da câmara. Balançando-see se abraçando, levantou a cabeça para olhar o teto, sem nada ver.
De repente, ela precisava sair dali. Partiu pela entrada numapressa frenética. Deixando a ponte atrás de si, ela não parou.Enquanto cambaleava às cegas pela margem do regato, a escuri-dão crescia rapidamente e a água ainda caía num chuvisco insis-tente. Sem saber para onde ia e sem se importar com isso, elaescorregava na relva molhada.
Sarah não havia se distanciado muito quando tropeçou namargem e entrou no regato, caindo com um espadanar. Ela seajoelhou, as águas claras se fechando em sua cintura. Mas sua dorera tão devoradora que ela não sentiu o frio enregelante. Suacabeça girava nos ombros como se estivesse presa na agonia maisintensa.
Ela fez uma coisa que não fazia desde o dia em que escapoupara a Crosta, o dia em que abandonou os dois filhos pequenose o marido. Começou a chorar, primeiro algumas lágrimas,depois foi incapaz de se controlar e elas desceram por seu rostoem rios, como se uma represa tivesse se rompido.
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Sarah chorou sem parar, até não lhe restar nada. Seu rostoera uma máscara de cólera fria como pedra enquanto ela selevantava devagar, escorando-se contra o fluxo do regato. Suasmãos molhadas se fecharam em punhos e ela os lançou ao céu,gritando a plenos pulmões, o som cru e primitivo se expandindopelo vale vazio.
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