BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
222 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
TRADUÇÃO POÉTICA: “O CORVO” AOS OLHOS DE MACHADO DE ASSIS E
FERNANDO PESSOA
Larissa Degasperi Bonacin1 [email protected]
Dicleia Maria Bastos Schäffel2
RESUMO: Este artigo tem como objetivo principal analisar e comparar as traduções do poema O Corvo de Edgar Allan Poe (publicado em 1.845) realizada por Fernando Pessoa (1.942) e por Machado de Assis (1.883), baseando-se em pesquisas bibliográficas, jornais, periódicos e internet. Antes mesmo da análise das traduções propriamente dita, mister se faz abordar, de forma breve, algumas características da Tradução Poética, e também considerações acerca da Filosofia da Composição de Edgar Allan Poe. Os resultados parciais desse estudo mostram que as traduções realizadas tanto por Machado de Assis quanto por Fernando Pessoa refletem os posicionamentos ideológicos de cada autor frente às suas concepções de tradução, e, além disso, representa também o próprio estilo do tradutor/autor. PALAVRAS-CHAVE: O Corvo; Edgar Allan Poe; Machado de Assis; Fernando Pessoa;tradução poética ABSTRACT: This article aims at analyzing and comparing the two translations of the poem The Raven by Edgar Allan Poe (published 1845), one that was written by Fernando Pessoa (1942) and the other by Machado de Assis (1883), based on literature researches, newspapers, periodicals, and internet. Prior to the analysis of the translation itself, it was necessary a briefly study on some characteristics of the Translation of Poetry, and also on some aspects of the Philosophy of Composition written by Edgar Allan Poe. The partial results from this study reveal that the translation carried out by Machado de Assis and Fernando Pessoa reflect their ideological positions according to the concept of translation they had and, moreover, it also represented the translator’s/author’s style. KEYWORDS: The Raven; Edgar Allan Poe; Machado de Assis; Fernando Pessoa; poetic translation
1 Aluna do curso de graduação Letras Português-Inglês 2 Mestre em Literatura e professora orientadora da monografia
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
223 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
INTRODUÇÃO
Existem 6.703 línguas em todo globo terrestrei. Há ainda, entre sete e oito mil
dialetos, que são variações regionais de uma língua quanto à pronúncia e ao vocabulário. Se
não houvesse essa quantidade de línguas, e se todos nós falássemos o mesmo idioma, não
haveria a necessidade de tradução.
A cada dia que passa, necessitamos mais e mais das traduções para a
universalização do saber e para a comunicação de forma geral. Em tempos de globalização, o
acesso a informações em outras línguas é instantâneo, aumentando cada vez mais, a
importância e a necessidade da tradução.
Tal importância não é de hoje somente. Desde a antiguidade clássica temos
relato de atividades tradutórias, sendo que o documento mais famoso que se conhece desse
ofício na Antiguidade foi a Pedra da Roseta. Encontrada em Roseta, em 1.799, esse fragmento
de basalto continha grafias em três diferentes maneiras: grego, antigos hieróglifos egípcios e
demótico egípcio.
Nos estudos da tradução destacam-se as teorias tradicionais e contestadoras
acerca do assunto, e será com base nessa teoria que se analisará, singelamente, as traduções de
Machado de Assis e de Fernando Pessoa do poema O Corvo de Edgar Allan Poe.
O objetivo principal é analisar e comparar as traduções do poema O Corvo de
Edgar Allan Poe (publicado em 1.845) realizadas por Fernando Pessoa (1.942) e por Machado
de Assis (1.883). Anteriormente à análise propriamente dita, serão tecidos comentários acerca
de alguns aspectos da Tradução Poética.
Após este breve apanhado, serão abordados alguns aspectos da Filosofia da
composição do autor Edgar Allan Poe para então introduzir o poema O Corvo. E por fim
serão apontadas algumas considerações acerca das traduções realizadas por Fernando Pessoa
e as Machado de Assis do poema supra mencionado.
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
224 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
A TRADUÇÃO NOS SÉCULOS XX E XXI: CORRENTES TRADICIONAL E
CONTESTADORA
Bergmann (2008) apresenta-nos a corrente tradicional e contestadora da
tradução na modernidade. Aquela se fundamenta na “visão referencial da linguagem e que
não só exige fidelidade à forma e ao sentido como considera o autor como um produtor de
linguagem autônomo, que controla o seu texto” (BERGMANN, 2008, p. 40). O objetivo do
tradutor então é a transposição do sentido do texto original para o texto traduzido,
preferencialmente preservando a forma. Esta, por sua vez, considera que o tradutor, tal como
o autor do texto original, produz sentidos. Estes conceitos serão úteis no decorrer deste artigo
quando for realizada a análise e comparação das traduções de O Corvo.
A TRADUÇÃO POÉTICA: BREVES CONSIDERAÇÕES
A palavra poesia é originária do grego pôiesis, e quer dizer criação, confecção,
fabrico. É discussão constante dos teóricos da tradução, sobre a possibilidade ou não de se
traduzir poesia. Muitos teóricos passaram muito tempo tentando defender a intraduzibilidade
do texto literário, entre eles Nabokov, Frost, Valéry e Sorescu. (ARROJO, 2007, p. 29).
Não se pretende, com este estudo, entrar nessa celeuma, mas é inegável que ao
traduzir, estamos “criando” uma nova poesia, e isso retoma a própria etimologia da palavra.
Susana Souto Silva (2004), afirma que o tradutor, ao traduzir poesia, “conseguiu deixar-se
surpreender pela forma do poema primeiro/lido, forma esta que o levou a escrever outro texto
também maravilhoso, singular”.
Uma maneira prática e didática de abordar a tradução poética é compará-la à
tradução não literária (DE CUSATIS, 2009). Ao traduzir-se um manual de instruções, por
exemplo, o tradutor deverá atentar-se em preservar apenas o sentido da palavra a ser
traduzida, não importando se ela será mais curta que a original, será terminada em “e” ou “i”
para preservar a rima, etc. A tradução terá a funcionalidade de passar instruções ao leitor e
não com funcionalidade poética.
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
225 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
FILOSOFIA DA COMPOSIÇÃO E O POEMA O CORVO
Uma das mais importantes e mais conhecidas obras de Edgar Allan Poe, foi, sem
dúvida nenhuma o poema The Raven. Depois de tê-lo escrito e vendido por U$15 em 1845,
ele então escreveu o ensaio The Philosophy of Composition (A Filosofia da Composição),
primeiramente publicada em 1.846 pela Graham´s Magazine, onde ele descreve
minuciosamente os passos que seguiu para compor o poema The Raven, afirmando que
“nenhum detalhe de sua composição pode ser atribuído a acidente ou intuição – que o trabalho
foi realizado passo a passo, até o final, com a precisão e a rígida conseqüência de um
problema matemático” (POE, 2008, p. 20). Isto posto, Poe afirma que sua obra foi pensada
rigorosamente passo a passo, tal como um exercício matemático e não resultado da intuição
ou inspiração poética.
The Raven foi publicado pela primeira vez em janeiro de 1.845 no New York
Evening Mirror, e é notável pela musicalidade, pela métrica exata, rimas internas e
combinações fonéticas, a temática é típica do Romantismo, ou até do Ultrarromantismo e
mostra a inexorabilidade da morte (através do corvo) e seu impacto sobre o personagem, que
lamenta profundamente a morte da amada Leonora.
De uma maneira geral, A Filosofia da Composição (2008) introduz três das
teorias de Poe sobre literatura: a extensão da obra; o método e a unidade de efeito.
Explicaremos a seguir brevemente cada uma, exemplificando tal como o autor fez com o
poema O Corvo.
Poe acreditava que toda obra literária deveria ser breve, sendo o seu limite
“uma única sessão de leitura” sob pena de não conseguir afetar intensamente o leitor, não lhe
elevando a alma. Portanto, a obra literária para Poe deveria ter a extensão que fosse possível
fazer a sua leitura em uma única assentada e que o poema deveria ter em torno de 100 versos -
O Corvo possui 108 versos. (POE, 2008, p. 21).
Existe também a questão da escolha de Poe do efeito a ser causado, optando
pela beleza em O Corvo, para tornar seu “trabalho universalmente apreciável”. Escolhendo
então a Beleza como efeito, seu próximo passo foi a escolha do tom, e o autor preferiu a
tristeza, optando então pela morte de uma bela mulher: The death of a beautiful woman is,
unquestionably, the most poetic topic in the world [...], ou seja, “a morte de uma bela mulher
é o tópico mais poético do mundo” (tradução minha). (todos os grifos são meus).
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
226 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
Tendo o tema e tom planejados, delimitada sua extensão e o método, Poe passa
a decidir sobre seu refrão e pretende usar uma palavra nevermore por conter o “[...] o longo
como sendo a vogal mais sonora, acompanhado do r, a consoante mais producente” (POE,
2008, p. 23). Decide então que seu eixo deveria ser o refrão, bem como a repetição do mesmo.
Quanto à versificação, Poe admite que visava a originalidade, pela combinação
dos seus versos, e classifica seu poema, no ritmo como trocaico e na metrificação como
“octâmetro acatalético, alternando-se com heptâmetro catalético repetido no refrão do quinto
verso e terminando com tetrâmetro catalético” (POE, 2008, p. 29).
AS TRADUÇÕES DO POEMA “O CORVO” - PORQUÊ DE COMPARÁ-LAS
O poema O Corvo foi traduzido nas mais diversas línguas, nas neolatinas,
incluindo o catalão, nas eslavas, nórdicas, insuladas, como por exemplo, o Basco e até
artificiais, como o esperanto. Entretanto, em francês que o referido poema foi mais vezes
traduzidas, iniciando-se por Baudelaire e Mallarmé, que o fizeram, entretanto, em prosa.
O poema também foi traduzido diversas vezes para o português, sendo que o
pioneiro foi Machado de Assis. Dentre os outros tradutores em língua portuguesa que
trabalharam a tradução de O Corvo podemos destacar aqui apenas alguns deles como, Juó
Banarére, João Kopke (publicado em 1916/17), o poeta parnasiano Emílio de Menezes
(publicado em 1916/17), Fernando Pessoa (1924), Manuel José Gondin da Fonseca (1931),
Milton Amado (década de 1940), Benedicto Lopes (1956), Rubens Francisco Luchetti (1976),
Alexei Bueno (1980), José Lira Ortigão (1996), João Inácio Padilha (1997), Sérgio Duarte
(1998) (ABRAMO, 1997, p. 66).
Comparar as traduções do poema O Corvo é importante não apenas para saber
como foi o resultado final de cada obra, mas também o momento em que foram escritas, as
escolas literárias onde estavam inseridas e a realidade de cada autor. Sendo assim, quais as
razões que levaram Machado de Assis e Fernando Pessoa a traduzirem O Corvo, de Edgar
Allan Poe? Se os autores decidiram traduzir o referido poema nos seus respectivos tempos,
que novo sentido lhe atribuíram com este deslocamento?
Analisar brevemente o contexto histórico em que a poesia e suas respectivas
traduções foram realizadas também é de extrema importância, pois como afirma Peeter Torop
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
227 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
“cada tradução representa a visão do tradutor, parcial, diferente, expressa na língua de
chegada, uma visão que também subjetivamente muda com o tempo” (apud CUSATIS, 1995).
Traduzir não é apenas passar um texto de uma língua para outra. Para fazê-lo,
deve-se considerar o texto original, o que é traduzido, quando, por quem, para quem e como
foi recebido na cultura de chegada. A “personalidade do tradutor deve ser perfeitamente
conhecida: associada a elementos sociológicos e comerciais (demanda do público), explica às
vezes a escolha do texto; explica sempre o valor e orientação da tradução” (BRUNEL, apud,
ALLEGRO, 2008).
TRADUÇÃO, O POEMA O CORVO E MACHADO DE ASSIS
Machado de Assis, em 1883, traduz o poema The Raven, de Edgar Allan Poe.
Neste período, Machado já havia abandonado o romantismo e entrado na seara realista
brasileira.
O poema supramencionado já havia sido traduzido em diversas línguas, exceto na
língua portuguesa, motivo pelo qual acreditamos ter sido ponto de partida para a tradução de
Machado de Assis.
O autor em questão inicia a discussão travada entre a originalidade ou não da
tradução, apontando para um novo componente da relação literária, do tradutor como autor e
do texto traduzido como dotado de originalidade e autonomia face ao original (BARRETTO,
2008). Tal posição é confirmada com essa afirmação de Machado sobre a tradução do Dr.
Pedro Luis (O grito de uma alma perdida) da poesia de John Greenleaf Whitter (The cry of a
Lost Soul):
A poesia tradução parece poesia original, tão naturais, tão fáceis, tão de primeira mão são os seus versos. Não quero privar os entendedores do prazer de compararem as duas produções, os dois originais, deixem-me assim chamá-los (ASSIS, apud Ferreira, apud Barretto, 2008).
Percebe-se que Machado valoriza o trabalho literário do tradutor como o de um
escritor, com suas particularidades e características próprias em relação ao texto fonte
(BARRETTO, 2008).
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
228 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
Para Bellei, a não literalidade da tradução de Machado para o poema O Corvo,
não foi mera coincidência: “There is a method and purpose in Machado´s desviation from
Poe´s original. He is not translating, he is doing something else” (há um método e propósito
na alteração feita por Machado no poema original de Poe. Ele não estava traduzindo e sim
criando outra coisa) (1987 apud Barretto, 2008)ii.
Essa não-submissão ao texto original, estrangeiro, poderia ser um eco do
sentimento nacionalista de Machado de Assis (BARRETTO, 2008). Dessa forma, segundo
Bellei, “Machado estaria questionando a originalidade de um escritor e o estabelecimento de
uma cultura nacional em um contexto onde é inegável a relação de dependência com originais
prévios representantes de uma tradição literária estrangeira” (1987, p. 59, apud BARRETO,
2008). A intenção então era a apropriação da literatura estrangeira e não mera reprodução
(BELLEI, 1987, apud BARRETTO, 2008).
Portanto, comprovado está que o supra mencionado autor/tradutor brasileiro
poderia ser inserido na corrente contestadora da tradução, conforme vimos nos tópicos
iniciais, pois há um “deslocamento da perspectiva de tradução como transportadora de sentido
para a de tradução como ato interpretativo, produtor de sentidos” (BERGMANN, 2008, p. 47)
“O CORVO” POR FERNANDO PESSOA
Pessoa iniciou seu oficio de tradutor desde cedo, já em 1.907 entra no comércio
como tradutor de cartas e depois correspondente estrangeiro. Em 1924, traduz o poema The
Raven. Neste período, Pessoa se destacava como um autor modernista. Embora a obra já
tivesse sido traduzida para o português por Machado de Assis, Pessoa decidiu traduzi-lo
mudando o foco da primeira tradução em língua portuguesa.
Quem sabe essa escolha feita por Pessoa não seja o reflexo de sua própria
concepção de poesia, pois para ele as palavras eram talhadas na poesia pela emoção
expressando uma ideia, e as palavras, as rimas, o ritmo e a musicalidade que nela se
apresentam auxiliam na própria expressão da ideia, e por esse motivo são muito importantes.
Portanto, o que ele pensa a respeito da poesia pode ser usado para problematizar suas escolhas
tradutórias: "Um poema é a projecção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção
não é a base da poesia: é tão-sòmente o meio de que a idéia se serve para se reduzir a
palavras."iii
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
229 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
Ou então, a escolha de Pessoa foi uma resposta à própria concepção de tradução
da época em que o mesmo vivia, pois naquela data, quem teorizava sobre a tradução eram,
antes de mais nada, escritores e intelectuais conhecidos que a praticavam, e que tendiam a
sacralizar o original (LÓPEZ-GAY, 2006). No início do século XX, época da tradução do
poema O Corvo, por Fernando Pessoa, prevalece a ideia que a tradução deve, sobretudo,
preservar o estrangeiro (ou o alheio) do texto original, e tal característica consolida uma
posição extremamente elitista, sendo “que as traduções serão legíveis apenas para aqueles
leitores suficientemente cultos, com conhecimentos mínimos da cultura do texto original”
(LÓPEZ-GAY, 2006).
E é essa fidelidade que percebemos em sua tradução de O Corvo. Neste sentido,
pode-se incluir Fernando Pessoa como um dos expoentes da teoria tradicional tradutória do
momento, propondo que “o critério base do tradutor deve ser o de transpor para português
tanto o espírito, como a essência da letra, da obra, procurando a mais perfeitamente possível
conformidade […] (formal, semântica e simbólica) da tradução com o texto original”
(ALMEIDA, apud LÓPEZ-GAY, 2006).
COMPARANDO AS TRADUÇÕES DE MACHADO E PESSOA
O objetivo deste estudo é dar subsídios para que os leitores identificarem as
diferenças entre as traduções e terem conhecimento dos prováveis motivos pelos quais elas
existem. Segundo Bellei (1987), tais diferenças existem, pois os autores possuem concepções
diversas acerca da tradução (apud BARRETTO, 2008).
A primeira consideração a ser feita é com relação à palavra nevermore. É de se
lamentar a sua tradução em língua portuguesa seja “nunca mais”, pois o efeito da letra “o”
fechada em Língua Inglesa (nevermore), não se repete no “a” aberto e claro da Língua
Portuguesa (nunca mais). Não gera, portanto a sensação do sombrio, do escuro, do fechado.
Mas essa questão não depende do tradutor e sim da língua. A língua que representa o efeito da
letra “o” fechada do poema original é o francês, que consegue retomar o efeito do nevermore,
com o seu jamais plus (letra “u” fechada”). Entretanto, essa ausência desse efeito específico
ocorre nas duas traduções analisadas, a de Machado de Assis e a de Fernando Pessoa, eis que
ambas são realizadas em língua portuguesa.
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
230 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
Quanto ao sentido, ambos os tradutores conseguem verter para o português sem
que se perca o significado geral do poema. As mudanças de vocabulário se dão para
enquadrar a tradução dentro do estilo de rima, métrica e sonoridade utilizado por Poe. Fazer
isso era de extrema importância, já que para o autor, o que na verdade interessava era o som e
o ritmo alucinante do texto, que vai num crescendo, como o próprio desespero de seu
personagem.
Entre as diferenças estruturais mencionadas acima, vale salientar a diferença em
número de versos em cada estrofe, as quais têm seis versos no poema original, e dez versos na
tradução de Machado, uns octossílabos, outros decassílabos e outros ainda dodecassílabos.
Fernando Pessoa, por sua vez, manteve a estrutura do poema original, ou seja, em sua
tradução, todas as estrofes possuem seis versos, de quatorze sílabas.
Outro ponto a ser ressaltado é a questão da rima, que são inconstantes no poema
original e constantes nesta tradução de Machado, ou seja, AABBCCDEDE. As rimas de
Machado de Assis são próprias e originais.
Fernando Pessoa utiliza em sua tradução, rimas em posições equivalentes, e no
final no quarto e quinto versos de todas as estrofes a repetição ais em tradução do ore do
poema original (grifos meus). Ocorre que, a preocupação de Pessoa com essa fidelidade acaba
por deixar sua tradução com rimas banais. Nesse sentido Barroso afirma que “A rima tríplice
“adormecia”, “parecia”, “batia” é de ingênua facilidade, e surpreende constatar que, ao longo
da composição, para resolver esse problema, um poeta da categoria de Pessoa lance mão de
recursos tão canhestros quanto os da utilização de gerúndios e pretéritos, esbarrando na
banalidade” (apud Borges, 2007, p. 19).
As aliterações também foram alvo de comentários de Borges, e nos ensina que
“Pessoa também faz uso de aliterações em sua tradução, como a repetição da consoante t em
‘lia, lento e triste’, continuando em ‘tomos’, ‘ancestrais’, ‘batia levemente’, ‘Uma visita’,
‘está batendo’ e ‘É só isto’”, de forma semelhante ao original, no qual as aliterações fazem
alusão à batida de portas: napping, tapping, rapping, visitor, muttered (2007).
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
231 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
Entretanto, mesmo que não mencionado por nenhum crítico ou estudioso,
entende-se que também Machado proporciona a aliteração da letra “t” com as palavras
“antiga”, “morta”, “porta”, “tais”, “bate”.
Outro ponto importante a ser destacado é o fato de que Pessoa omite em sua
tradução o nome da amada Lenore, substituindo por pronomes e expressões obscuras à sua
presença, tais como “a amada”, “essa cujo nome sabem as hostes celestiais”, “sem nome
aqui”, “o nome dela”, “ela” (em itálico), “o nome da que não esqueces”. Machado de Assis,
por sua vez, manteve Lenora em sua tradução. Cumpre ressaltar que a figura de Lenore é de
suma importância para o poema, inclusive preconizado pelo próprio Poe na Filosofia da
Composição. Fato é que a mesma é citada oito vezes na versão original, e nenhuma na versão
de Pessoa (JUNIOR, 2009).
1ª estrofe:
Analisando alguns aspectos semânticos das traduções, nesta primeira estrofe
temos a expressão weak and weary – fraco e exausto (minha tradução), que foi substituída
perfeitamente, por “caindo de sono e exausto de fadiga” por Machado, e por um sem sentido
“lento e triste”, de Pessoa.
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary, Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping, As of someone gently rapping, rapping at my chamber door. " 'Tis some visitor," I muttered, "tapping at my chamber door -
Only this, and nothing more." Machado de Assis
Em certo dia, à hora, à hora Da meia-noite que apavora,
Eu caindo de sono e exausto de fadiga, Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta, Ia pensando, quando ouvi à porta Do meu quarto um soar devagarinho
E disse estas palavras tais: "É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."
Fernando Pessoa Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais, E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais «Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.
É só isso e nada mais.»
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
232 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
2ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
Ah, distinctly I remember, it was in the bleak December, And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor. Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrow From my books surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore - For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore -
Nameless here forevermore. Machado de Assis
Ah! bem me lembro! bem me lembro! Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava Sacar daqueles livros que estudava Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará jamais. Fernando Pessoa
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro, E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada P'ra esquecer (em vão) a amada, hoje entre hostes celestiais —
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais, Mas sem nome aqui jamais!
Já na segunda estrofe do poema, analisada logo acima, temos o termo bleak
december, que nos remete ao dezembro gelado do Hemisfério Norte, com neve e ventos
fortes. A tradução de Machado foi “glacial dezembro”, fazendo forte referência ao termo
original, e Fernando Pessoa simplesmente utilizou “frio dezembro”.
O termo dying ember, que faz associação à “brasa” (termo utilizado por Machado
de Assis) de uma lareira, por exemplo, é muito mais pertinente que o simples termo “fogo” da
tradução de Pessoa.
3ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
And the silken sad uncertain rustling of each purple curtain Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before; So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating, " 'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door - Some late visitor entreating entrance at my chamber door -
This it is, and nothing more."
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
233 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
Machado de Assis
E o rumor triste, vago, brando, Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido, Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito, Levantei-me de pronto e: "Com efeito (Disse) é visita amiga e retardada Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada: Há de ser isso e nada mais."
Fernando Pessoa
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais! Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo, «É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais; Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isso e nada mais».
Nessa terceira estrofe, no tocante à semântica, lamentamos que nem Machado de
Assis, nem Fernando Pessoa traduziram a expressão silken sad, pois a seda a que Poe referia-
se poderia ser a representação da pele sedosa da mulher amada.
4ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer, "Sir," said I, "or madam, truly your forgiveness I implore; But the fact is, I was napping, and so gently you came rapping, And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door, That I scarce was sure I heard you." Here I opened wide the door; - Darkness there, and nothing more.
Machado de Assis Minh´alma então sentiu-se forte; Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós - ou senhor ou senhora - Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso, Já cochilava, e tão de manso e manso Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais." Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais. Fernando Pessoa
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante, «Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo, Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi...» E abri largos, franquendo-os, meus umbrais. Noite, noite e nada mais.
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
234 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
Nesta estrofe, a opção de remeter à alma do poeta já no primeiro verso do original
(soul), é traduzido literalmente por Machado como “minh´alma” e omitido por Pessoa. E no
final o termo opened wide do original nos fazendo sentir que não é simplesmente abrir a porta
e sim abrir a porta violentamente, foi capturado apenas por Machado em sua tradução, o qual
utilizou o termo “a porta escancaro”.
5ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
Deep into the darkness peering, long I stood there, wondering, fearing Doubting, dreaming dreams no mortals ever dared to dream before; But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, "Lenore!" This I whispered, and an echo murmured back the word, "Lenore!"
Merely this, and nothing more. Machado de Assis
Com longo olhar escruto a sombra, Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado, Mas o silêncio amplo e calado, Calado fica; a quietação quieta: Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso, Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço; Foi isso apenas, nada mais.
Fernando Pessoa A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais. Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita, E a única palavra dita foi um nome cheio de ais — Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isto só e nada mais.
6ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
Back into the chamber turning, all my soul within me burning, Soon again I heard a tapping, somewhat louder than before,
"Surely," said I, "surely, that is something at my window lattice. Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore - Let my heart be still a moment, and this mystery explore -
" 'Tis the wind, and nothing more."
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
235 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
Machado de Assis Entro co'a alma incendiada. Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela: "Seguramente, há na janela
Alguma coisa que sussurra. Abramos. Eia, fora o temor, eia, vejamos A explicação do caso misterioso Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso. Obra do vento e nada mais."
Fernando Pessoa Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo, Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais. «Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela. Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.» Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
«É o vento, e nada mais.»
Na sexta estrofe, reproduzida acima, temos as traduções da palavra tapping, como
“pancada” (Machado de Assis) e como “batendo” (Fernando Pessoa). Nota-se, claramente que
a sensação de uma pancada na janela é muito mais forte e significativa que um simples bater.
Outro aspecto é que o original refere-se à batida cada vez mais forte (somewhat louder than
before) e não no sentido de maior freqüência, como dá entender Pessoa (“mais e mais”).
O pronome Tis the wind que foi literalmente traduzido por Pessoa como “é o
vento”, foi poeticamente traduzido por Machado como “obra do vento”.
7ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter, In there stepped a stately raven, of the saintly days of yore.
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he; But with mien of lord or lady, perched above my chamber door - Perched upon a bust of Pallas, just above my chamber door -
Perched, and sat, and nothing more. Machado de Assis
Abro a janela e, de repente, Vejo tumultuosamente
Um nobre Corvo entrar, digno de antigos dias. Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas, Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas; Trepado fica, e nada mais
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
236 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
Fernando Pessoa Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais. Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento, Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais, Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.
Foi, pousou, e nada mais.
Na estrofe acima, temos que o original lord or lady, foi mantido por Machado
(lord ou de uma lady), e substituído pela expressão “com ar solene” por Pessoa. Outra
interpretação que poderia ser dada para o pouso do corvo na estátua de mármore é a de que o
mármore, que é frio, poderia fazer uma referência à mulher morta.
Os tempos ancestrais não são “dignos” (Machado), nem “bons” (Pessoa), mas
“santos”, conforme o original (saintly).
8ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling, By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
"Though thy crest be shorn and shaven thou," I said, "art sure no craven,
Ghastly, grim, and ancient raven wandering from the nightly shore - Tell me what the lordly name is on the Night's Plutonian shore!"
Quoth the raven, "Nevermore."
Machado de Assis Diante da ave feia e escura, Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, - o triste pensamento Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "Ó tu que das noturnas plagas Vens, embora a cabeça nua tragas, Sem topete, não és ave medrosa, Dize os teus nomes senhoriais:
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?" E o Corvo disse: "Nunca mais."
Fernando Pessoa E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais. «Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais! Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.»
Disse-me o corvo, «Nunca mais».
Tanto Machado quanto Pessoa omitem em suas traduções a caracterização do
corvo como “ave de ébano” (conforme o original ebony bird), apenas caracterizando-a como
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
237 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
“ave feia e escura” (Machado) e “ave estranha e escura” (Pessoa), deixando de lado toda a
significação associada ao ébano, empobrecendo ambas as traduções (ABRAMO, apud Zanon,
2006).
9ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning - little relevancy bore; For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door - Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door,
With such name as "Nevermore."
Machado de Assis Vendo que o pássaro entendia A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto Coisa na terra semelhante a isto: Uma ave negra, friamente posta Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta Que este é o seu nome: "Nunca mais".
Fernando Pessoa Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro, Inda que pouco sentido tivessem palavras tais. Mas deve ser concedido que ninguém terá havido Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais, Com o nome «Nunca mais».
Nessa estrofe, a palavra “raro” escolhida por Pessoa, aparece tão somente para
rimar com “claro”, eis que no original ungainly significa desajeitado, mal ajambrado
(ABRAMO, apud Zanon, 2006).
10ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
But the raven, sitting lonely on that placid bust, spoke only That one word, as if his soul in that one word he did outpour. Nothing further then he uttered - not a feather then he fluttered -
Till I scarcely more than muttered "Other friends have flown before -
On the morrow he will leave me, as my hopes have flown before." Then the bird said,"Nevermore."
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
238 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
Machado de Assis No entanto, o Corvo solitário Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse Toda sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma, Não chegou a mexer uma só pluma, Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais! Perderei também este em regressando a aurora."
E o Corvo disse: "Nunca mais." Fernando Pessoa
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto, Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento Perdido, murmurei lento, «Amigo, sonhos — mortais Todos — todos lá se foram. Amanhã também te vais».
Disse o corvo, «Nunca mais».
Nem Machado nem Pessoa traduziram placid bust, ou seja, busto plácido, o que é
lamentável, pois retoma a imagem da mulher branca, padrão ideal de beleza de várias épocas,
inclusive do século XXI.
Já a escolha de Machado de Assis é feliz em qualificar o corvo como “solitário” e
não “augusto” como fez Pessoa. (ABRAMO, apud Zanon, 2006).
11ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken, "Doubtless," said I, "what it utters is its only stock and store, Caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster Followed fast and followed faster till his songs one burden bore - Till the dirges of his hope that melancholy burden bore Of "Never - nevermore."
Machado de Assis Estremeço. A resposta ouvida É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado Que o implacável destino há castigado Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: 'Nunca mais.'"
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
239 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
Fernando Pessoa A alma súbito movida por frase tão bem cabida, «Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais, E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este «Nunca mais».
O termo original unhappy master foi literalmente e sabiamente traduzido por
Machado de Assis como “mestre infeliz”, mas, infelizmente, Pessoa não teve a mesma opção,
escolhendo o simples “algum dono”, somente para rimar com “abandono”.
O sentimento do original na expressão melancholy burden bore também foi
traduzido por Machado, quando optou por “amarga e última cantiga”. Já Pessoa optou pela
expressão “canto cheio de ais”, também visando apenas a rima, dessa vez com “Nunca mais”.
12ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
But the raven still beguiling all my fancy into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door;
Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking Fancy unto fancy; thinking what this ominous bird of yore -
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore Meant in croaking "Nevermore."
Machado de Assis
Segunda vez, nesse momento, Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao Corvo magro e rudo; E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera Achar procuro a lúgubre quimera, A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais. Entender o que quis dizer a ave do medo Grasnando a frase: "Nunca mais."
Fernando Pessoa
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura, Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais; E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais, Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele «Nunca mais».
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
240 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
O poema é muito sinestésico, e retoma diversas vezes a tecidos como nessa
estrofe o veludo, que poderia representar a pele da mulher amada e morta. Portanto,
importante a menção do veludo (velvet), que Machado traduz, mas que Pessoa omite em sua
tradução.
13ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom's core; This and more I sat divining, with my head at ease reclining On the cushion's velvet lining that the lamp-light gloated o'er, But whose velvet violet lining with the lamp-light gloating o'er,
She shall press, ah, nevermore!
Machado de Assis Assim, posto, devaneando, Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava, Sentia o olhar que me abrasava, Conjeturando fui, tranqüilo, a gosto, Com a cabeça no macio encosto, Onde os raios da lâmpada caiam, Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam, E agora não se esparzem mais.
Fernando Pessoa Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais, Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais, Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
Outro aspecto que deve ser ressaltado é o fato de que Poe, no original,
provavelmente queria expressar que a ave encarava o amante e o seu olhar o queimava por
dentro (the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom's core). Machado de Assis teve e
expressou essa percepção com a sua tradução “Sentia o olhar que me abrasava”; o que não
ocorreu com a tradução de Pessoa, que simplesmente expressou “À ave que na minha alma
cravava os olhos fatais”.
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
241 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
14ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by angels whose faint foot-falls tinkled on the tufted floor. "Wretch," I cried, "thy God hath lent thee - by these angels he hath sent thee respite---respite and nepenthe from thy memories of Lenore! Quaff, oh quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!"
Quoth the raven, "Nevermore!" Machado de Assis
Supus então que o ar, mais denso, Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando Do quarto, estavam meneando Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais. Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o Corvo disse: "Nunca mais." Fernando Pessoa
Fez-me então o ar mais denso, como cheio dum incenso Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
«Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais, O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».
15ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
"Prophet!" said I, "thing of evil! - prophet still, if bird or devil! - Whether tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate, yet all undaunted, on this desert land enchanted - On this home by Horror haunted - tell me truly, I implore -
Is there - is there balm in Gilead? - tell me - tell me, I implore!" Quoth the raven, "Nevermore."
Machado de Assis "Profeta, ou o que quer que sejas! Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?" E o Corvo disse: "Nunca mais."
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
242 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
Fernando Pessoa "Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais, A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".
Quem nos dá detalhes dessa estrofe é Abramo afirmando que Pessoa alterou
substancialmente os significados do original em sua tradução dessa estrofe e assevera:
1) A estrofe original tem uma focalização intensa nos qualificativos do narrador em relação ao aposento (mais) e ao corvo (menos). Obrigado a encontrar rimas com “medo”, Pessoa não só inventa um “segredo” que não faz qualquer sentido, sequer intrinsecamente à tradução. Segredo de quem, com relação a quê? 2) Levado pelas necessidades da rima, Pessoa faz o narrador afirmar que o corvo o atrai. No original, porém, o narrador jamais admite explicitamente que o corvo o seduza. Deduzimo-lo pelo desenvolvimento da trama, o que é crucial para a estrutura do poema. Com sua escolha de palavras, Pessoa entrega o jogo. 3) Pessoa substitui “Galaad” por um local “longínquo” (apud Zanon, 2006, p. 53).
16ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
"Prophet!" said I, "thing of evil - prophet still, if bird or devil! By that heaven that bends above us - by that God we both adore - Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn, It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore - Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore?"
Quoth the raven, "Nevermore." Machado de Assis
"Profeta, ou o que quer que sejas! Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende! Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala, Dize a esta alma se é dado inda escutá-la No Éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais. Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!"
E o Corvo disse: "Nunca mais." Fernando Pessoa
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta! Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais. Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais, Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!" Disse o corvo, "Nunca mais".
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
243 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
17ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
"Be that word our sign of parting, bird or fiend!" I shrieked, upstarting - "Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore! Leave no black plume as a token of that lie thy soul spoken! Leave my loneliness unbroken! - quit the bust above my door! Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!" Quoth the raven, "Nevermore."
Machado de Assis "Ave ou demônio que negrejas! Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa!, clamei, levantando-me, cessa! Regressa ao temporal, regressa À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fica no meu casto abrigo Pluma que lembre essa mentira tua,
Tira-me ao peito essas fatais Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o Corvo disse: "Nunca mais." Fernando Pessoa
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte! Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais! Não deixes pena que ateste a mentira que disseste! Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais! Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!" Disse o corvo, "Nunca mais".
A fala mais dolorida desta cena, no meu entender, é quando as “garras do corvo
penetram o coração do narrador” (Take thy beak from out my heart, and take thy form from off
my door!). Tal passagem foi majestralmente traduzida por Machado desta forma: [...] “Tira-
me ao peito essas fatais Garras que abrindo vão a minha dor já crua” [...]. Entretanto, o
mesmo não pode dizer da tradução singela e sem sentido de Fernando Pessoa, a qual não
preenche a complexidade do sentimento do narrador: “Tira o vulto de meu peito e a sombra
de meus umbrais!”.
18ª estrofe:
The raven – O Corvo Edgar Allan Poe
And the raven, never flitting, still is sitting, still is sitting On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming. And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor; And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted - nevermore!
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
244 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
Machado de Assis E o Corvo aí fica; ei-lo trepado No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho. Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora Não sai mais, nunca, nunca mais!
Fernando Pessoa E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais. Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha, E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
Essa última estrofe está centrada no corvo, tal como propôs Machado, e não na
“noite infinda”, conforme quer dizer Fernando Pessoa. E o poeta afirma que os olhos do corvo
parecem os olhos de um demônio que está sonhando (And his eyes have all the seeming of a
demon's that is dreaming), tal como traduziu Machado “Parece, ao ver-lhe o duro cenho, Um
demônio sonhando”. A tradução de Pessoa, mais uma vez deixou a desejar, pois menciona
que o “olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha”; tradução esta que não se
coaduna com a cena proposta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebeu-se que a tradução pioneira em língua portuguesa do poema não foi fiel
ao original. Mas, a tradução de Machado de Assis, embora não preserve a mesma estrutura do
original, preserva, no seu ritmo próprio, a emoção proposta inicialmente por Poe. Ou seja, o
efeito proposto por Poe no original do poema é mantido por Machado em sua tradução. Essa
não literalidade na tradução, ou seja, a não submissão ao texto estrangeiro pode ser explicada
pela forte onda nacionalista enfrentada por Machado à época dessa tradução.
Dúvidas não restam quanto à originalidade da tradução de Machado (característica
muito defendida por Poe), em detrimento da estrutura do poema original, mas em benefício da
“excitação ou elevação da alma”, tão preconizada por Edgar Allan Poe. Isto quer dizer que
Machado não se preocupou com a forma, mas tão somente com a semântica. Se muitos
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
245 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
autores, dentre eles Baudelaire e Mallarmé também sacrificaram a forma (traduziram em
prosa), em benefício da semântica, então, porque condenar a tradução de Machado de Assis?
Na tradução do poema The Raven realizada por Fernando Pessoa em 1.924, ao
contrário daquela de Machado, foram mantidos o ritmo e a rima internos presentes no poema
original, mas sacrificando, desta forma, a emoção em detrimento da formalidade. Talvez a
opção de Pessoa pela literalidade da tradução seja o próprio reflexo das teorias da época, nas
quais prevalecia a ideia que a tradução deve, sobretudo, preservar o estrangeiro (ou o alheio)
do texto original, consolidando uma posição extremamente elitista. Ou talvez seja a própria
concepção que Pessoa tinha sobre poesia que falou mais alto, pois para ele as palavras eram
talhadas na poesia pela emoção, expressando uma ideia, e as palavras, as rimas, o ritmo e a
musicalidade que nela se apresentam auxiliam na própria expressão da ideia, e por esse
motivo eram tão importantes.
Portanto, restou comprovado, com base nos conceitos de tradução literal e
tradução livre, que o poema O Corvo de Edgar Allan Poe, valendo-se da equivalência formal
foi traduzido por Fernando Pessoa, preservando desta forma a estética, métrica do poema
original e, utilizando-se da equivalência funcional, foi traduzido por Machado de Assis,
valorizando mais o conteúdo, a impressão a causar, o efeito, a construção da emoção.
Mais do que isso, nota-se que as traduções realizadas tanto por Machado de Assis
quanto por Fernando Pessoa refletem os posicionamentos ideológicos frente à concepção de
tradução, e, além disso, representa também o próprio estilo do tradutor/autor. Para tanto, tal
como a teoria das Belles infidèles, é necessário ser infiel para ser belo.
Concluiu-se então, a despeito da possibilidade de traduzir ou não poesia, que, ao
traduzir uma poesia estamos contribuindo para nosso acervo literário, bem como
disponibilizando a todos os não-falantes da língua traduzida a riqueza literária estrangeira. É
necessário despir-nos dos preconceitos e aceitar a tradução poética como uma maneira de
universalizar a cultura literária, enriquecendo-a. Devemos também não nos deixar amedrontar
pela tradução, com a suposição de que a mesma não será o correspondente exato do original;
não podemos deixar de amar com medo de não sermos correspondidos.
O deslocamento no tempo e no espaço, bem como o papel do leitor, faz com que
Poe surja com uma nova roupagem com interpretações modernas cada vez que suas traduções
são lidas.
BONACIN, Larissa Degasperi; SCHÄFFEL, Dicleia Maria Bastos. Tradução poética: “O corvo” aos olhos de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Eletras, vol. 20, n.20, jul. 2010
www.utp.br/eletras
246 Eletras, vol. 20, n.20, jul.2010
REFERÊNCIAS
ABRAMO, Cláudio Weber. A espada no livro. Disponível em: http://cwabramo.sites.uol.com.br/espada.pdf. Acesso em 22.jun.2009. ARROJO, Rosemary. Oficina de Tradução – A teoria na prática. Série Princípios. 2. Ed. São Paulo: Editora Ática. BERGMANN, Juliana Cristina Faggion e LISBOA, Maria Fernanda Araújo. Teoria e Prática da Tradução. Curitiba: IBPEX, 2008. DE CUSATIS, B. A tradução literária: uma arte conflitual. Cadernos de Tradução, América do Sul, 2 6 02 2009. ECO, Umberto. Quase a mesma coisa. Tradução de Eliana Aguiar; revisão técnica de Raffaella Quental. Rio de Janeiro: Record, 2007. JUNIOR, Sinvaldo. Os ensinamentos de Poe. RASCUNHO, Curitiba, n. 108, pg. 25, abril/2009. LÓPEZ-GAY, Patrícia López. O Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa – Reflexões sobre a Autotradução. Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/artigos/banqueiroanarquista_pt.pdf Acesso em 24.out.2009. OTTONI, Paulo, org. Tradução: a prática da diferença. 2. Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2005. POE, Edgar Allan. A Filosofia da Composição. Tradução de Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. 64p. SILVA, Suzana Souto. O corpo do poema. Disponível em http://www.humanitates.ucb.br/2/corpo.htm, acesso em 22/out/2009. ZANON, Sandro. A difícil tarefa de traduzir – suas armadilhas, seus desafios. Trabalho de Conclusão de Curso – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba, 2006. 82 fls.
i Conforme dados de 1995 do Summer Institute of Linguistics da Universidade do Texas, EUA. ii Tradução minha iii Retirado do site: http://arquivopessoa.net/textos/527, acesso em 22/out/2009.