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UMA ANÁLISE DA REGRA HUGOLINIANA DE 1219 doi: 10.4025/XIIjeam2013.aguiar1
AGUIAR, Veronica Aparecida Silveira1
Hugolino dei Conti di Segni nasceu no ano de 1170 em Anagni, cidade na qual
recebeu a sua primeira formação religiosa. Estudou direito em Bolonha, é considerado um
dos papas “juristas” segundo a historiografia, e provavelmente, conseguiu o título doutoral
na faculdade de Teologia de Paris. Sobrinho de Inocêncio III, foi cardeal-bispo de Ostia e
Velletri. Embora, a carreira de Hugolino não se iniciou apenas com a subida de Lotario dei
Conti di Segni como o papa Inocêncio III (1198-1216). No ano de 1198 Hugolino foi
elevado ao cargo de capelão papal e de cardeal diácono de São Eustáquio. E somente em
1206, tornou-se cardeal-bispo de Óstia.
Nesta comunicação pretende-se fazer um exercício de análise da Regra de
Hugolino de Óstia de 1219, elaborada para dar forma canônica às comunidades femininas
de inspiração evangélico-pauperista que surgiram em diversos lugares como imitação ou
não do mosteiro de São Damião. A forma vivendi que reuniu os diversos conventos de
inspiração franciscana deveriam observar as novas ordenações e forma de organização
jurídica que representavam uma das afirmações mais explícitas e completas da necessidade
de regulamentação para a vida religiosa das comunidades femininas.
Conforme a Enciclopedia dei Papi2, o cardeal Hugolino encontrou-se pela primeira
vez com Francisco de Assis no dia 14 de maio de 1217 na cidade de Firenze, exatamente
depois de um Capítulo geral dos frades, celebrado na Porciúncula, dentro da qual havia
sido decidido o envio de frades pelo mundo cristão e fora da Itália. A partir daquele
momento, o cardeal de Óstia teria iniciado a sua atuação política dentro do movimento
Franciscano. Era um momento delicado para os frades, porque a fraternitas não tinha
adequado-se as prescrições conciliares com a sua nova forma de vida, somente havia
obtido a aprovação oral dada pelo papa Inocêncio III (1198-1216) em 1210.
1 Bacharel, Licenciada e Mestre em História pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora Assistente II de História Antiga e Medieval na Universidade Federal de Rondônia e Doutoranda em História Social na Universidade de São Paulo. 2 CAPITANI, Ovidio. “Gregorio IX”. In: ENCICLOPEDIA dei Papi. Roma: Istituto della Enciclopedia italiana, 2000, 2v, p. 363.
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Respondendo ao pedido de Francisco de Assis, o papa Honório III (1216-1227)
teria dado um “protetor” aos franciscanos, mas o nome de “dominus de Ostia” teria sido
escolhido pelo próprio Frei Francisco segundo as hagiografias de Boaventura. Em 1217,
Hugolino de Óstia utilizou-se dos poderes que lhe foram dados pelo papa Honório III,
visitava os movimentos novos e mosteiros femininos da região em que era responsável,
sobretudo dos lugares que almejavam seguir o modelo de São Damião. Na Ordem
franciscana a função do cardeal protetor era corrigir as situações de perturbação, ele agia
como um guia disciplinador “externo”, que cuidava das intervenções coercitivas que aos
poucos se tornavam necessárias e também exercia influência para a formulação de uma
Regra definitiva, mais articulada e orgânica, para ser submetida à aprovação pontifícia.
Desta forma, a figura de cardeal protetor existe desde 1217, data na qual inicia o
processo de institucionalização do movimento Franciscano. As funções do cardeal protetor
estão explicitamente descritas na normativa franciscana no final do capítulo XII da Regra
de 1223: “Ad haec per obedientiam iniungo ministris, ut petant a domino papa unum de
sanctae Romanae Ecclesiae cardinalibus qui sit gubernator, protector et corrector istius
fraternitatis, ut semper subditi et subiecti pedibus eiusdem sanctae Ecclesiae stabiles in
fide (cf 1Col 1,23) catholica paupertatem et humilitatem et sanctum evangelium Domini
nostri Jesu Christi quod firmiter et promisimus, observemus.”3. Além disso, o IV Concílio
de Latrão de 1215 colocou como uma necessidade a normatização dos novos movimentos
religiosos dentro de um dos modelos normativos existentes, a fraternitas foi aos poucos
forçada a assumir uma forma institucionalizada dentro da normativa canônica vigente,
apesar de ter criado um novo modelo, o Apostólico. Consequentemente, Inocêncio III
esforçou-se para que as Ordens mendicantes entrassem licitamente na Igreja4.
Assim, o cardeal Hugolino agia como intermediador dos frades menores perante o
papa. Da mesma forma, atuava e persuadia o movimento Franciscano a mostrar a
disponibilidade à institucionalização, que deveria se enquadrar aos moldes das demais
Ordens religiosas, não perdendo a sua especificidade mendicante. Oficialmente, Hugolino
foi nomeado como “cardeal protetor” pelo papa Honório III no ano de 1219, período na
qual redigiu a Forma vitae para as damianitas, conhecida como Regra Hugoliniana. Antes
de tudo, a presença de Hugolino de Óstia na Ordem Franciscana foi importante e ocupou
3 MENESTÒ, Enrico & BRUFANI, Stefano (org.). Fontes Franciscani. Assis: Porziuncola, 1995, p. 180. 4 BOLTON, B. A Reforma na Idade Média século XII. Lisboa: Edições 70, 1983, p. 79.
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uma posição central5, principalmente no que se refere às comunidades femininas de
inspiração evangélico-pauperista que não queriam propriedades, mas havia o problema de
garantir a posse da casa em que elas moravam.
Desde o princípio, as damianitas estabeleceram relações intrínsecas com a
fraternitas de Francisco de Assis. Na verdade, a criação de comunidades femininas na
linha dos franciscanos deu-se por uma série de atos do cardeal protetor da Ordem,
Hugolino de Óstia, futuro papa Gregório IX (1227-1241), que almejava a criação da
Segunda Ordem com o objetivo de atender uma necessidade de participação feminina
religiosa na Igreja, ter uma ramificação feminina dentro da Ordem dos frades e também
por interesse político de Inocêncio III (1198-1216). Tendo em vista os interesses acima
citados, não podemos afirmar que Clara foi a fundadora da Segunda Ordem Franciscana
com a sua vestição em 1212 e vale lembrar que só podemos utilizar o termo “Clarissa” a
partir de 1263, data em que o papa Urbano IV (1261-1264) reformulou a Regra de Clara e
estabeleceu uma homogeneização dos conventos de seguimento franciscano com a difusão
da Segunda Regra que foi escrita por ele6.
Enfim, as “Irmãs pobres” possuíam um estreito vínculo com a primeira geração dos
frades. No entanto, o movimento feminino Franciscano, sobretudo, as sorores Minores de
São Damião, igreja doada de Francisco à Clara de Offreduccio em 1212, iniciaram um
processo mais rápido de adequação e enquadramento jurídico aos moldes institucionais
monásticos que a Igreja permitia naquele período.
Assim, a Regra de Hugolino não foi escrita somente por ele, há indicações
históricas de que Frei Felipe Longo, um dos companheiros de Francisco, foi um colaborar
na redação do texto, porque ele era o visitador das Irmãs Pobres. O tempo de uso da Regra
de Hugolino foi de 1219 até 1247, quando foi substituída pela Regra de Inocêncio IV
(1243-1254). Além da “resistência” a imposição da Regra de São Bento e as exigências do
cardeal protetor em relação ao jejum e ao silêncio, Clara e as Irmãs “resistiram” às outras
imposições alheias ao modelo evangélico-pauperista que havia prometido a Francisco. O
objetivo de Hugolino era dar respaldo jurídico às comunidades femininas que estavam
sendo incorporadas ao movimento Franciscano. Embora, não haja nenhum documento
curial enviado a São Damião estabelecendo a Regra Hugoliniana, sabemos que Clara de
Assis utilizou este texto em sua normativa. 5 BOLTON. Op. cit., p. 38. 6 ALBERZONI, Maria Pia. Chiara e il papato. Milão: Edizioni Biblioteca Francescana,1995, p. 18.
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Outra observação importante refere-se ao fato de que há três versões ou edições
desta Regra Hugoliniana: de 1219, de 1238 e de 1245, com pequenas diferenças.
Utilizamos neste texto a tradução em português das Fontes Clarianas7 de José Carlos
Corrêa Pedroso, trata-se da primeira versão da Regra Hugoliniana, que foi enviada ao
mosteiro de Pamplona em 1229 e publicado pela primeira vez por Omaechevarria em
1970, na primeira edição do BAC.
Conforme já mencionamos, em 1219, o cardeal Hugolino, protetor da Ordem
Franciscana, estabeleceu ao mosteiro de São Damião uma Regra nova ou Forma vitae que
recebeu o nome a posteriori de “Constituições Hugolinas”, assim as “Irmãs Pobres” eram
obrigadas a observar a Regra beneditina com alguns acréscimos de Hugolino, o que
provocou novas tensões, por isso Clara pedia constantemente aos papas uma garantia do
“privilégio” de viver na Santa pobreza prometida a Francisco, o privilégio de viver uma
vida sem privilégios, um privilégio que garantia a vida sem garantias8. O mosteiro de São
Damião na qual Clara era abadessa sempre seguiu mais os escritos de Francisco e o
Privilégio da Pobreza do que a Regra de Hugolino ou de Inocêncio IV. Na verdade, não
sabemos até que ponto foi utilizado a Regra de São Bento e de Hugolino em São Damião,
contudo, são textos referências para a elaboração da Regra de Clara em 1253.
O modelo cisterciense influenciou bastante as “Constituições hugolinianas” que aos
poucos serviu de base para a construção de outras Regras para a Ordem de São Damião.
Apesar de o formulário de Hugolino de Óstia não mencionar São Damião de Assis e nem
Santa Maria de Montecelli, mosteiros com trajetória peculiar em relação aos demais,
sabemos que podem ter sido utilizados conjuntamente com as Bulas papais. Neste texto o
nosso objetivo é compreender os principais aspectos e significados que teve a normativa
mencionada para as comunidades femininas, pretendemos examinar como e com quais
elementos elaborou Hugolino de Óstia a sua Regra em 1219.
Outra referência importante é a bula Sicut manifestum est de 17 de setembro de
1228, tradicionalmente chamada de “Privilégio da Pobreza”, que foi promulgada na visita
do papa Gregório IX ao convento de São Damião. A resposta da Carta papal transpareceu a
preocupação de Clara e companheiras com a vontade de manter-se fiel a “Altíssima
pobreza” prometida a Frei Francisco de Assis. Segundo Caroli, uma leitura nupcial da
7 PEDROSO, José Carlos Corrêa. Fontes Clarianas. Petrópolis: Vozes, Cefepal, 1994, p. 146-154. 8 BARTOLI, Marco. Clara de Asís. Madri: Editorial Franciscana Aránzazu Oñate (Guipúzcoa), 1992, p. 110-111.
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“Altíssima pobreza” que era típica das Cartas de Clara na qual defendia um propositum de
virgindade que identificava com o seguir “Cristo pobre” revela que a pobreza e a sua
aplicabilidade são as bases do convento de São Damião9. Sem dúvida, a Sicut manifestum
est foi uma bula essencial na qual o papa Gregório IX demonstrou uma atenção
significativa ao caráter evangélico de vida assumido e vivido pelas irmãs do convento de
São Damião em Assis. Posteriormente, a mesma Carta pontifícia foi enviada a outros
conventos de seguimento franciscano, por exemplo, endereçada as irmãs de Santa Maria de
Monteluce e as irmãs de Perugia, confirmando que São Damião não estava em isolamento.
Indubitavelmente, o objetivo de Gregório IX seria a unificação do monaquismo feminino
sob a Regra beneditina com uma ênfase na clausura e com sutilezas jurídicas para a
aquisição de bens móveis.
Na Carta Quo elongati de 1230, Gregório IX acabou estabelecendo uma distinção
entre o monaquismo feminino franciscano e os demais conventos femininos, porque
autorizava a entrada dos frades menores nos conventos em lugares não compreendidos pela
clausura devido a pregação, já os conventos femininos franciscanos só permitiriam a
entrada dos frades com uma autorização especial da Igreja Romana com a função de
dificultar a entrada dos Menores. Em resumo, isso causou uma reação de Clara e suas
irmãs que identificavam laços diretos e particulares com Frei Francisco e com a Ordem dos
Menores, vínculos que provocaram momentos de tensão entre Clara e o papa Gregório IX.
Feito essas considerações passamos a análise da Regra de Hugolino, futuro papa Gregório
IX.
Na introdução da Regra Hugoliniana da versão de 1229, o papa Gregório IX
recorda que quando escreveu a Regula era ainda um cardeal protetor, portanto, estava “em
um posto inferior”. Esta versão sofreu poucas alterações em relação a 1219. Hoje, o
pergaminho original em latim, encontra-se no mosteiro de Santa Maria de Olite, na
Espanha.
Quando nos pedem alguma coisa justa e honesta, tanto a virtude da equidade quanto a boa ordem exigem que, pela solicitude de nosso cargo, façamos que o pedido seja devidamente atendido. Por isso, filhas queridas no Senhor, colocando-nos de acordo, de muito boa vontade, com os vossos justos desejos, houvemos por bem inserir neste documento a
9 CAROLI, Fonti Francescane, nuova edizione. Scritti e biografie di san Francesco d’Assisi. Cronache e altre testimonianze Del primo secolo francescano. Scritti e biografie di santa Chiara d’Assisi. Testi normativi dell’Ordine Francescano Secolare. Padova: Editrici Francescane, 2004, p. 1944.
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Forma e modo de viver que, estando ainda em um cargo inferior, como legado na Toscana e na Lombardia, demos a todas as pobres monjas reclusas, pois queremos que sejam observados inviolável e perpetuamente em vosso mosteiro, e o confirmamos por nossa autoridade apostólica e reforçamos com a garantia deste documento10.
Conforme o trecho acima mencionado do preâmbulo, a Forma de vida das “pobres
monjas reclusas” é viver dentro da Igreja Romana. Além disso, averiguamos que a
fraternidade e pobreza defendidas por Clara ficaram de fora na Regra de 1219. Neste outro
excerto fica mais claro que o principal objetivo era o de regulamentar as Comunidades
femininas dentro da normativa canônica de maneira mais rápida e concisa, sem
preocupação com a identidade franciscana.
Como toda verdadeira Religião e toda instituição aprovada consta de certas regras e medidas, e também de certas leis disciplinares, quem quer que deseje levar uma vida religiosa vai desviar-se do caminho reto se não procurar diligentemente observar uma regra determinada e certa em seu comportamento e uma disciplina em seu modo de viver, por não observar as linhas da retidão.
A pobreza que é um conceito fundamental do movimento Franciscano está
completamente ausente da Forma vitae Hugoliniana, que possui características de regra
mais do que de “Constituições”.
Por isso, queridas filhas no Senhor, como decidistes, por inspiração da graça divina, caminhar pela senda árdua e estreita que leva à vida, e escolhestes levar uma vida pobre para lucrar as riquezas eternas; resolvemos descrever resumidamente para vós a observância e a forma dessa religião, para que cada uma de vós saiba o que fazer e também o que deve evitar, para que nenhuma, dando a desculpa de que não sabia, atreva-se perigosamente a fazer o que está proibido ou não foi concedido.
Apesar de alguns trechos da Forma vitae ou Regra de Hugolino transparecer a ideia
de que as Irmãs escolheram a Regra de São Bento como forma de organizar a vida no
mosteiro em que pertenciam, fica claro em outra parte que era uma decisão do cardeal
protetor em conjunto com o plano político da Igreja Romana como veremos abaixo.
10 Conforme já mencionamos, optamos pela tradução de José Pedroso da Regra de Hugolino da primeira versão. Ver: PEDROSO, José Carlos Corrêa. Fontes Clarianas. Petrópolis: Vozes, Cefepal, 1994, p. 146-154.
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... entregamos-vos a Regra de São Bento, em que se reconhece como norma a perfeição das virtudes e a maior discrição, e que foi recebida desde o início com devoção pelos Santos Padres e aprovada com veneração pela Igreja Romana, para que a observem em tudo que de maneira alguma se comprovar contrário à mesma Forma de vida que Nós lhes damos, e de acordo com a qual decidistes pautar especialmente a vossa vida.
Na Regra Hugoliniana, verificamos uma rigorosidade no tocante à clausura que
diminuirá na normativa de Inocêncio de 1247 e na Regra de Clara de 1253.
... observem esta lei de vida e de disciplina fervorosamente. Pois devem permanecer encerradas todo o tempo de sua vida; e, depois que tiverem entrado no claustro desta religião, assumindo o hábito regular, a nenhuma delas será dada licença ou faculdade de sair jamais daí, a não ser que por acaso algumas sejam transferidas para algum lugar para plantar ou edificar a mesma religião.
Conforme o trecho acima mencionado, essa rigidez da Norma está presente não
somente na clausura. No capítulo quatro aparece também como uma forma de controle da
entrada de noviças que passariam por uma provação de “coisas duras e ásperas”.
Mas a todas as que quiserem abraçar esta Religião e deverem ser admitidas, antes que mudem de hábito e assumam a Religião, serão expostas as coisas duras e ásperas pelas quais se vai a Deus e que terão que observar firmemente de acordo com esta Religião, para que depois não se desculpem com a ignorância.
A divisão em quatorze partes da Regra Hugoliniana foi dada a posteriori., quando
esta Regra foi adotada nos vários mosteiros de seguimento franciscano, a Ordem ainda não
era estabelecida, a Regra de São Francisco é de 1223. Além disso, como vemos neste
excerto abaixo a leitura e o aprendizado eram estimulados nos mosteiros, o que diferencia
de outras normativas religiosas.
E se houver algumas jovens, ou mesmo um pouco maiores, capazes e humildes, a abadessa, se lhe parecer bem, faça com que sejam instruídas nas letras, indicando-lhes uma mestra idônea e discreta.
Em outro ponto observamos que a rigidez não era somente na clausura, mas o
silêncio para a Regra de Hugolino é algo mais rigoroso do que na Regra de Clara. Assim,
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as “esposas de Cristo” não podiam falar livremente para se comunicar com as outras e
existia todo um controle no momento em que se podia falar.
O silêncio contínuo seja constantemente observado por todas, de maneira que não lhes seja permitido falar nem umas com as outras nem com outra pessoa sem licença, com exceção das que tiverem algum outro encargo que não possa ser executado convenientemente em silêncio. Essas poderão falar do que diz respeito a seu ofício ou trabalho, onde, quando e como parecer bem à abadessa. Mas quando alguma pessoa religiosa, secular ou de qualquer dignidade pedir para falar a alguma das senhoras, avise-se primeiro a abadessa. Se ela permitir, vá ao locutório mas tenha sempre pelo menos mais duas consigo, as que forem mandadas pela abadessa, que escutem tudo que lhe for dito ou que ela disser.
Outro aspecto de rigidez normativo está no jejum que é bastante rigoroso segundo o
capítulo sete. O “manjar” mencionado abaixo reporta a palavra “pulmentum” que significa
um prato de carne ou sopa.
Para jejuar observe-se esta norma: em todo tempo devem jejuar todos os dias, abstendo-se nas quartas e sextas-feiras da quaresma também do manjar e do vinho, a não ser que tenham que celebrar nesses dias a festa principal de algum santo. Nesses dias, quartas e sexta-feiras, sirvam-se na refeição das Irmãs, se houver, frutas, frutos da terra ou verduras cruas. E jejuem a pão e água quatro dias por semana, e na quaresma de São Martinho, três dias.
Em relação às vestes das Irmãs Pobres, não há uma definição de cor, mas
provavelmente era pano de cor escura a vestimenta utilizada, porque não havia uma
identidade formada naquele momento, assim como a institucionalização, o hábito estava
em construção.
Quanto às roupas, observe-se o seguinte: cada uma tenha duas túnicas e um manto, além do cilício ou estamenha, se o tiverem, ou do saco. Tenham também escapulários de pano leve e religioso, ou de estamenha, se quiserem, de largura e comprimento adequado, conforme o exigirem a condição e a estatura de cada uma; vistam-nos quando estiverem trabalhando ou fazendo alguma coisa que não lhes permita usar adequadamente o manto. [...] Cortem seu cabelo de maneira redonda; e nenhuma seja tonsurada de outra maneira se isso não for exigido por uma evidente enfermidade corporal.
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Às vezes, as palavras “cilício, estamenha e saco” se equivalem no latim medieval.
Essas três palavras referem-se aos panos grosseiros, roupa comum aos pobres e usado por
religiosos, sendo assim, ainda não havia um modelo definido.
Outra parte da Regra de Hugolino bastante inflexivo refere-se à entrada de pessoas
no mosteiro, seja religiosos ou leigos.
Quanto à entrada de pessoas no mosteiro, preceituamos firme e rigorosamente que jamais alguma abadessa ou suas irmãs permitam entrar no mosteiro alguma pessoa religiosa ou secular, ou de qualquer dignidade. E isso não seja absolutamente lícito a não ser para alguém e para aquilo que tiver recebido, concessão do Sumo Pontífice, ou nossa, ou, depois de nós, por aquele que, como nós, tiver recebido especialmente do papa o cuidado e solicitude especial de vós. Pois, quando morrer o cardeal ou bispo da Igreja Romana que for especialmente encarregado de vós, devem cuidar solicitadamente de pedir que sempre seja nomeado pelo senhor Papa outro de seus irmãos. Ao qual vós deveis recorrer especialmente quando precisardes, através do visitador ou de um mensageiro próprio. Excetuam-se dessa lei de ingresso aqueles que a necessidade exigir que entrem para fazer algum trabalho necessário.
No capítulo dez da Regra de 1219, a rigorosidade quanto à entrada de pessoas no
mosteiro é bastante acentuada conforme mencionado. Ademais, a figura do visitador e sua
função revela um plano político do cardeal protetor para os mosteiros em que era
responsável.
Cuide a abadessa que não se esconda alguma coisa do visitador, por ela ou pelas outras senhoras, sobre o estado do mosteiro na observância da Religião na unidade do amor mútuo. Pois isso seria um mau indício, uma ofensa a ser gravemente punida. Aliás, queremos e mandamos que sugiram diligentemente ao visitador, em público ou em particular, como for melhor, as coisas que, de acordo com a sua forma de vida, tiverem que ser estabelecidas ou corrigidas. Mas as que agirem diferentemente, a abadessa ou outras, sejam condignamente punidas, como for conveniente.
Por último, seguindo os postulados de Herbert Grundmann11, não podíamos deixar
de mencionar o quanto a Forma vitae que entendemos por Regra, principalmente porque as
características emanadas nas fórmulas jurídicas de Hugolino de 1219 demonstra isso, uma
adequação aos preceitos canônicos, inclusive do IV Concílio de Latrão. Para finalizar, a
fórmula de vida que é um recurso retoricamente elaborado e utilizado em larga escala pela 11 GRUNDMANN, H. Moviment religiosi nel Medioevo. Ricerche sui nessi storici tra l'eresia, gli Ordini mendicanti e il movimento religioso femminile nel XII e XIII secolo e sulle origini storiche della mistica tedesca. Bologna, 1974.
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instituição eclesiástica para regulamentar as Ordens Religiosas regulares. A Regra
enquanto gênero retórico situa-se no contexto das outras Regras monásticas e das
Constituições de outros institutos religiosos, realiza a função de “lei constitutiva”. É o
resultado da autenticação dada pela Igreja (elemento jurídico) mais o elemento espiritual
(representado pela experiência de vida da comunidade religiosa regular).
Queremos e ordenamos que esta fórmula de vida, aqui escrita de maneira breve, seja observada por todas, em toda parte, uniformemente. De modo que a unidade de vida e os costumes conformes unam e ajuntem no vínculo da caridade as que estão separadas pela distância dos lugares.
De 1220 a 1230, as relações entre Clara e o papa Gregório IX foram tensas, porque
Clara insistia nos laços diretos com os frades menores, com a memória de Francisco e com
o “Privilégio da Pobreza” que foi dada ao mosteiro de São Damião. Já Gregório IX tinha
um projeto político para o monaquismo feminino com a posse de bens e a clausura de
acordo com a influência beneditina e cisterciense, além de almejar uma forte distinção
entre a Ordem masculina dos frades menores e a Ordem feminina de São Damião. Enfim,
como resposta as prerrogativas de Gregório IX, Clara e as Irmãs exerceram um
afrouxamento das suas relações com o papa nos anos trinta do século XIII que percebemos
através das Cartas de Clara e de suas irmãs, uma forma de demonstrar a não neutralidade e
“resistência” em relação às medidas impostas a elas12.
Em suma, a Regra Hugoliniana teve um tempo relativamente curto de duração nos
conventos femininos de inspiração evangélico-pauperista, sendo depois substituído
paulatinamente pela Regra de Inocêncio IV de 1247. A rigidez de Hugolino e preceitos
incomuns ao seguimento franciscano feminino provocaram insatisfações não somente ao
mosteiro de São Damião, conforme atestamos através das Cartas e de inúmeros pedidos
para garantir o “Privilégio da pobreza” e uma ligação mais estreita com os Menores. A
Regra de Hugolino representa um enquadramento rápido do seguimento feminino, como
resultado de um projeto político da Igreja, que destoava da interpretação da pobreza de
Clara de Assis e demais companheiras. Por isso, tantos pedidos de aproximação com os
frades menores que eram negados pela Igreja ou contornados de maneira que não atendia
as demandas dos mosteiros. Após a Regra bulada de 1223, essas Cartas das damianitas se
12 MERLO, G. Em nome de São Francisco. História dos Frades Menores e do franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes; FFB, 2005, p. 96.
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multiplicaram ainda mais e as bulas papais também, isso por si só, revela uma insatisfação
e “resistência” ao modelo não franciscano que era o tempo todo imposto pela Cúria
Romana. A ideia de Hugolino era fazer uma Regra para toda a Ordem, o problema
principal configurava no fato de que os mosteiros eram independentes uns dos outros e
seguiam regras diferentes, além disso, o modelo que ele queria para a sua jurisdição
organizacional destoava fortemente do modelo franciscano, o que evidentemente provocou
conflitos e não somente com o mosteiro de Clara de Assis.
REFERÊNCIAS:
Fontes
CAROLI, Ernesto (org.) Fonti Francescane, nuova edizione. Scritti e biografie di san Francesco d’Assisi. Cronache e altre testimonianze Del primo secolo francescano. Scritti e biografie di santa Chiara d’Assisi. Testi normativi dell’Ordine Francescano Secolare. Padova: Editrici Francescane, 2004.
MENESTÒ, Enrico & BRUFANI, Stefano (org.). Fontes Franciscani. Assis: Edizioni Porziuncola, 1995, pp. 2291-2307.
PEDROSO, José Carlos Corrêa. Fontes Clarianas. Petrópolis: Vozes, Cefepal, 1994.
TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes, 2ª edição, 2008.
Obras gerais
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ALBERZONI, Maria Pia. Chiara e il papato. Milão: Edizioni Biblioteca Francescana, 1995.
BARTOLI, Marco. Clara de Asís. Madri: Editorial Franciscana Aránzazu Oñate (Guipúzcoa), 1992.
BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média século XII. Lisboa: Edições 70, 1983.
CAPITANI, Ovidio. Gregorio IX. In: ENCICLOPEDIA dei Papi. Roma: Istituto della Enciclopedia italiana, 2000, 2v, pp. 363-380.
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CREMASCHI, Chiara Giovanna. “Pobres Damas, irmãs pobres, clarissas”. In: CAROLI, Ernesto (org.). Dicionário franciscano. Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 578-585.
GRUNDMANN, Herbert. Moviment religiosi nel Medioevo. Ricerche sui nessi storici tra l'eresia, gli Ordini mendicanti e il movimento religioso femminile nel XII e XIII secolo e sulle origini storiche della mistica tedesca. Bologna, 1974.
MARINI, Alfonso. Gli scritti di Santa Chiara e la Regola. In: Chiara di Assisi. Atti del XX Convegno internazionale. Assisi: Centro Italiano di Studi Sull’Alto Medioevo, 1993, pp. 107-156.
MENESTÒ, Enrico. Lo stato attuale degli studi su Chiara d'Assisi. In: CLARA CLARIS PRAECLARA. Atti del Convegno Internazionale Clara Claris Praeclara. Assisi 20-22 novembre 2003. Assisi: Porziuncola, 2004, pp. 1-25.
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco. História dos Frades Menores e do franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes; FFB, 2005.