ALEXANDRE GUILHERME RIBEIRO
UMA HISTÓRIA SOCIAL DO SURFE
MONOGRAFIA DE BACHARELADO E LICENCIATURA EM HISTÓRIA REFERENTE À DISCIPLINA DE PESQUISA SUPERVISIONADA DE HISTÓRIA, DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ, SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES.
ORIENTADOR: LUIZ CARLOS RIBEIRO.
CURITIBA 2003
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EPÍGRAFE “Quero filmar um surfista, a movimentar-se constantemente na borda de um tubo. Essa posição é a metáfora da vida para mim. Da vida altamente consciente. Quero que pensem no tubo como sendo o passado e eu sou um agente evolutivo e o que tento fazer é estar nesse ponto quando se está a ir para o futuro, mas se tem de estar em contato com o passado... é aqui que se tem o poder... e se é totalmente impotente, mas também se tem o controle mais preciso possível nesse momento. E usar o passado... o passado está a empurrar-nos para diante, não é?”
(Timothy Leary, em conversa com o editor da Surfer em 1977)
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de expressar meus sinceros agradecimentos a meus familiares e
amigos. Principalmente a meu pai José Orelis Ribeiro, por suas memórias sobre
os anos de juventude (1960-70), que me auxiliaram na contextualização da
sociedade brasileira durante o Regime Militar. Aos primeiros surfistas
paranaenses Fernando Boscardin e Edson “Crespo” sobre suas informações
sobre a subcultura surfista paranaense das décadas de 1960/70/80. Aos meus
fiéis amigos César, Delton e Carlos pelas rodadas de cerveja que me ajudaram a
liberar o stress causado pela pesquisa acadêmica. Ao Iron Maiden. E a minha
doce namorada Verônica Pacheco, por me incentivar a fazer esse trabalho, e me
aturar nos momentos finais de integra do mesmo.
DEDICATÓRIA
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Dedico esse trabalho a meus avós Wladomiro Adamzycz, Silvio Ribeiro e
meu padrinho Jorge Luiz Hekerman . Para sempre na minha memória.
Resumo
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O objetivo desta monografia será entender o desenvolvimento do surfe mundial, resgatando a história do desporto através de uma perspectiva analítica que priorizará a investigação dos fatores sociais, culturais, políticos e econômicos inerentes ao processo. Partindo da tese de que a prática do surfe se desenvolveu em sociedades denominadas "primitivas" e contemporâneas como uma atividade de forte conotação social e cultural, influindo na organização e diferenciação identitária de grupos humanos, o presente trabalho pretende responder quais às especificidades desse processo em três tipos específicos de formação societária: a havaiana do século XVIII-XIX, a norte-americana e a brasileira do século XX. Apesar de recorrer a análise antropológica do surfe em sociedades tribais polinésias, com o intuito de apreender o surgimento e desenvolvimento inicial dessa prática, a pesquisa se delimitará a compreender os significados do surfe contemporâneo. Principalmente no que se refere a sua assimilação por grupos jovens americanos e brasileiros e a esportivização da atividade na segunda metade do século XX, com sua absorção e adaptação à sociedades liberais/democratas, através de sua institucionalização e comercialização.
Abstract
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The purpose of this monography to understand the development of the surf through out the world, by the analysis of its social, cultural, political and economics factors. Assuming that this sport was born and developed in some societies called “primitives” and contemporaneous with a strong influence in the social and cultural identity, making difference including in the political organization of several human groups, the present work intend to answer some questions about this effects in three main others societies: the Hawian in the XVII-XIX centuries and the North-American and Brazilian in the XX century. In spite of the use of the anthropology analysis of the surf in the Polinesian societies, where it was born, only to understand the launching and development of this sport, the focus of this research is concerned about what it means in a most contemporaneous stage by the democrat societies, mainly its institutionalization and trade, specially by the North-American and Brazilian groups, during the second half of the XX century.
SUMÁRIO
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INTRODUÇÂO..............................................................................................7
CAPÍTULO I
1. PRÉ-HISTÓRIA DO SURFE
1.1- Simbologia do surfe nas sociedades tribais
polinésias...............................................................................................12
1.2- O surfe havaiano e o expansionismo ocidental dos séculos XVIII-
XIX..........................................................................................................23
CAPÍTULO II
2. O SURFE NO SÉCULO XX
2.1- Revitalização e expansão do surfe havaiano no início do século
XX.............................................................................................................28
2.2- O surfe na segunda metade do século XX: sociabilidade, comercialização e
exibição.......................................................................................................36
2.3- A “contracultura surfista” americana dos anos
1970............................................................................................................46
2.4- Profissionalização, institucionalização e espetacularização do surfe nos
anos 1980/90...............................................................................................48
CAPÍTULO III
3. SÓCIOGÊNESE DO SURFE NO BRASIL
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3.1- O esporte no
Brasil.....................................................................................................................57
3.2- Os primeiros surfistas do
Brasil..........................................................................................................61
3.3- Introdução e desenvolvimento do surfe no Brasil: 1950-
1970...........................................................................................................63
3.4- Institucionalização e “indústria do surfe” no
Brasil..........................................................................................................75
3.5- O Brasil e a “nova mundialização” do surfe dos anos
1990...........................................................................................................85
CONCLUSÃO............................................................................................88
REFERËNCIAS...........................................................................................90
INTRODUÇÃO Nos últimos anos tem se falado muito no Brasil sobre a “História do surfe”
mundial e regional. No entanto a escassa produção acadêmica brasileira referente
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ao assunto, aliada a satisfação de interesses empresariais de revistas
"especializadas", tem esclarecido muito pouco a respeito do significado da prática
do surfe nas sociedades "primitivas" e contemporâneas. Esquivando-se da
complexidade inerente ao processo de gênese e desenvolvimento do surfe pelo
mundo, alguns livros e veículos de comunicação, aliados ao mercado, têm
negligenciado a investigação histórica do desporto, preocupando-se em destacar
figuras ilustres e fatos curiosos dentro de uma descrição positivista e evolutiva do
processo.
Recentemente uma conceituada revista de surfe do Brasil tomou para si a
iniciativa de elaborar um livro sobre a história do surfe internacional e brasileiro1,
com o apoio financeiro de diversas empresas de roupas de surfe espalhadas pelo
país. O resultado não poderia ser diferente, através de uma linguagem
romanceada o autor fala sobre a história do surfe no Brasil, preocupando-se com
a participação sócio-econômica de regiões onde estão situadas as maiores
empresas de equipamentos de surfe do país. Além disso, a obra procura
descrever a história do surfe mundial e regional como se o processo estivesse
descolado de determinações político-econômicas.
O objetivo desta monografia é entender o desenvolvimento do surfe
mundial e brasileiro, resgatando a história do desporto através de uma perspectiva
analítica que priorizará a investigação dos fatores políticos, econômicos, sociais e
culturais constitutivos do processo. Apesar de se tratar de uma pesquisa
essencialmente bibliográfica, o presente trabalho pretende estimular, através de
uma contextualização mundial e regional do surfe e do surgimento de possíveis
incógnitas resultantes de aspectos específicos desse processo, o estudo da
história do desporto a partir da exploração das diversas fontes primárias (orais e
escritas na forma de jornais e revistas) existentes. Além disso, pretende incentivar
a investigação de um fenômeno social característico dos séculos XIX-XX que
apesar da complexidade, só recentemente começou a ser significativamente
1 Desde o começo de 2002 a revista paulista Alma surf, vem anexando as suas edições trimestrais, encartes sobre períodos da “história do surfe”. No início de 2003, esse material se transformará em um livro intitulado “Surf Gênese: A história da evolução do surf”, e será vendido nas lojas de acessórios de surfe.
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analisado no Brasil pelas ciências humanas: o desporto nas sociedades
industriais modernas.
Há mais ou menos dois anos atrás fui contratado por uma empresa de
roupas esportivas para realizar uma pesquisa bibliográfica sobre a “história do
surfe”. Apesar da curiosidade que tive em relação ao tema, iniciei meus trabalhos
com uma idéia pré-concebida da gênese do esporte ao qual me propunha a
analisar: uma simples diversão de jovens burgueses americanos da década de
1960. No entanto, ao debruçar-me sobre o material que a empresa dispunha
sobre a origem e desenvolvimento da prática do surfe pelo mundo, fiquei surpreso
com a riqueza e complexidade do processo.
Partindo da tese de que a prática do surfe se desenvolveu em sociedades
“primitivas” e contemporâneas como uma atividade de forte conotação social,
influindo na organização e diferenciação identitária de grupos humanos, o trabalho
pretende responder quais as especificidades desse processo em três tipos
específicos de sociedade: a havaiana do século XVIII – XIX, a norte-americana, e
a brasileira do século XX. Apesar de recorrer a análise antropológica do surfe em
sociedades tribais polinésias, com o intuito de contextualizar e analisar o
surgimento e desenvolvimento inicial dessa prática, a pesquisa se delimitará a
compreender os significados que o desporto assume no século XX com sua
absorção e adaptação às sociedades capitalistas contemporâneas.
Dentro dessa perspectiva a pesquisa sobre a história social do surfe
contemporâneo buscará apreender a influência dessa prática na caracterização
contracultural de grupos jovens que encontrarão em uma atividade não-
convencional um elemento de resistência cultural e social. Assim, será analisada a
constituição dos primeiros subgrupos surfistas americanos e brasileiros dos anos
1950 a 1990. No entanto, eventualmente, serão conduzidos alguns apontamentos
sobre a configuração sócio-econômica do surfe no século XXI. Para tanto, a
estrutura metodológica do trabalho se constituirá num debate bibliográfico
embasado, essencialmente, em obras antropológicas, sociológicas e históricas.
O primeiro capítulo, intitulado, Pré-história do surfe, buscará ao menos se
aproximar, dada à complexidade do tema, dos significados da prática e do culto
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do surfe nas sociedades tribais polinésias enfatizando a sua importância social e
religiosa para os polinésios havaianos. Apesar da escassez de material teórico
sobre o assunto algumas obras de antropologia social polinésia, de intelectuais
europeus e havaianos, auxiliaram a presente pesquisa num modesto ensaio sobre
a historicidade e simbologia do surfe nas sociedades ditas "primitivas". Apesar do
trabalho se dedicar ao entendimento da prática do surfe no final do século XX,
recorro a essa análise com o intuito de apreender o que um ato, aparentemente
simples, de apanhar uma onda no oceano, pode representar à dinâmica social e
psicológica dos primeiros seres humanos a praticar significativamente essa
atividade.
O segundo capítulo, intitulado O surfe no século XX, propõem, através de
um debate bibliográfico entre historiadores (como Eric Hobsbawm) e surfistas-
jornalistas (como Drew Kampion), compreender a expansão da cultura do surfe
pelo mundo destacando a formação da subcultura surfista americana e a
comercialização e institucionalização do desporto.
Através do surgimento do subgrupo jovem nos Estados Unidos nas
"décadas de ouro" do capitalismo americano, o surfe se desenvolverá como um
modo de vida alternativo ao conservadorismo da sociedade americana, e a praia
se tornará o ambiente configuracional de um novo grupo com regras, simbologia e
linguagem específicas. Mais tarde esse grupo "marginalizado" será absorvido
pelas instituições e economia capitalistas na forma de clubes, associações, regras
de competição (que envolverão atletas cada vez mais profissionais), pelo mercado
destinado aos equipamentos de surfe e pela institucionalização do desporto, que
proporcionará ao Estado moderno um maior controle sobre a prática do esporte e
dos agentes envolvidos.
O terceiro e último capítulo, Sóciogênese do surfe no Brasil, trata do
surgimento e desenvolvimento da cultura do surfe no Brasil destacando os
principais fatores externos e internos que contribuíram ou não para esse
processo. A partir de uma breve contextualização da introdução e
desenvolvimento dos desportos e do surfe no Brasil, o capítulo objetivará entender
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o processo de constituição identitária dos subgrupos surfistas brasileiros,
destacado o caso carioca.
Dentro desse contexto se observará o surgimento e desenvolvimento da
cultura surfista no Brasil, resultantes de fatores externos como a expansão da
indústria cultural norte-americana e do capital internacional, durante a segunda
metade do século XX, e internos relacionados à transformação comportamental
da juventude brasileira frente ao Estado a aos determinismos familiares. A partir
daí serão analisados o movimento de “desmarginalização” dos subgrupos
surfistas através da absorção dos símbolos materiais e culturais de sua existência
às instituições e economia liberal-democratas na forma da profissionalização e
expansão da indústria de acessórios, destinada à prática do desporto no Brasil.
A partir de uma breve contextualização da sóciogênese dos desportos no
Brasil no final do século XIX e início do XX, destacando a obra do sociólogo
Ricardo Lucena (O Esporte na Cidade), segundo a qual os desportos surgem no
Brasil com uma forte conotação social em meio a um processo de urbanização e
modernização da sociedade, o capítulo se apoiará nessa tese para entender a
gênese social do surfe brasileiro na primeira metade do século XX.
Posteriormente, o capítulo buscará apreender o processo de esportivização e
massificação do surfe brasileiro, decorrente dos avanços do capital internacional
pós-Segunda Guerra Mundial (principalmente nos anos 1950 e 1980), e do modo
de vida surfista norte-americano divulgado através de veículos de comunicação de
massa, como, cinema, revistas, rádio e televisão.
A contextualização política, econômica, cultural e social inerente ao
processo de constituição das subculturas jovens brasileiras (surfistas e não-
surfistas) da segunda metade do século XX, serão embasadas em obras de
autores como Marcos F. E. Napolitano (Cultura e poder no Brasil contemporâneo,
2002), M. Foracchi (O Estudante e a Transformação da Sociedade Brasileira,
1977) e Zuenir Ventura (1968, O Ano que não Acabou, 1988). Apesar da crítica
inicial à obra de Marcelo Árias (Surf Gênese. A História da Evolução do Surf,
2002), não podemos descartá-la como importante referencial descritivo dos
principais acontecimentos da história do surfe brasileiro. Além disso, pela
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bibliografia sobre o assunto ser quase inexistente no Brasil, a análise crítica de
algumas revistas especializadas e fontes virtuais nos orientarão no entendimento
do desenvolvimento social do surfe no país.
O entendimento do desenvolvimento social do surfe nos Estados Unidos e
Brasil contará com a teoria sociológica de Norbert Elias, no intuito de apreender
as motivações psicológicas e sociais que influenciaram a busca de jovens urbanos
pela excitação de uma atividade não-convencional como o surfe.
Através desse direcionamento metodológico a conclusão do trabalho
procura revelar quais as particularidades da sociogênese do surfe mundial e
regional bem como uma tipologia dos primeiros surfistas americanos e brasileiros.
CAPÍTULO I
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1- PRÉ-HISTÓRIA DO SURFE
1.1- Simbologia do surfe nas sociedades tribais Polinésias.
O termo pré-história é utilizado pelos historiadores para designar o período
de tempo anterior ao surgimento da escrita (Dines : 1971, 5526). Trata, portanto,
da análise das sociedades chamadas "primitivas". No entanto, descartando
qualquer abordagem evolucionista e reducionista que esse termo sugere sobre o
processo histórico, devemos procurar entender a lógica organizacional inerente a
essas sociedades. Assim, nos desvinculando de qualquer tipo de concepção
eurocêntrica da realidade, observaremos que, apesar de ágrafos, esses grupos
possuem uma cultura rica e complexa de significados. É dentro dessa perspectiva
que devemos entender a pré-história do surfe.
Segundo a obra de Leonard Lueras, inicialmente os primeiros povos a
praticar o surfe com maior intensidade foram sociedades tribais localizadas no
Pacífico Sul, conhecidas pelos europeus como polinésias, que apesar da não
possuir escrita, passavam a essência de sua cultura de geração em geração
através da estória oral. Analisando algumas dessas estórias baseadas em lendas
e mitos contadas pelos grupos mais antigos das ilhas polinésias, o autor verifica
que muitas delas se referem à prática do surfe envolvida por uma forte
significação sócio-religiosa (Lueras : 1984). No entanto, antes de nos atermos à
análise da relação dos polinésios com o surfe, devemos situar no espaço e no
tempo a origem social dessa prática.
É impossível e até desnecessário tentarmos detectar quem foram os
primeiros homens a serem arremessados pelas ondas. No entanto, dada a
importância e intensidade com que essa prática é realizada em algumas regiões
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do globo torna-se interessante para a compreensão do significado da
representação do surfe para o ser humano primitivo, apreendermos as causas
sociológicas e geográficas de sua origem e desenvolvimento na antiguidade.
Segundo as pesquisas arqueológicas e antropológicas empreendidas por
intelectuais como Ben Finney da universidade de Honolulu, no Havaí, o surfe
(praticado em um “pedaço de madeira”, e não em canoas) surgiu a mais de quatro
mil anos atrás, quando habitantes do sudeste da Ásia começaram a estabelecer
contato com o mar, movimentando-se em direção às ilhas que pontilham o sul do
Oceano Pacífico. Para o pesquisador nessa época o surfe era uma diversão
dominada pelas crianças (especialmente os garotos), além de ser utilizado pelos
navegadores e pescadores para retornar à praia de forma mais rápida (Finney :
1996, 20).
Apesar de não descartar a idéia do surfe ter sido significativamente
praticado por tribos primitivas, onde hoje se situa o Peru e regiões da África, como
Senegal e Gana, o autor enfatiza que somente na Polinésia é que o surfe foi
praticado com maior intensidade na antiguidade (Finney : 1996, 25). Um dos
fatores que explica essa hipótese seria o fator geográfico.
O litoral peruano e africano (ou de qualquer outra grande civilização
marítima antiga, como a Fenícia e a Celta), são essencialmente continentais
enquanto a Polinésia2 é a região com maior quantidade de ilhas do planeta. Além
do mais essas extensões de terra são muito pequenas, fazendo com seus
habitantes dependam do mar para sobreviver, o que acabou resultando no
desenvolvimento de uma cultura marítima peculiar.
Expandindo-se, então, pelas pequenas ilhas do Pacífico Sul vários
agrupamentos humanos desenvolveram uma cultura baseada no relacionamento
íntimo com a natureza e principalmente com o oceano. Para Finney esse fato
torna-se evidente quando nos primeiros séculos da era cristã os taitianos e,
posteriormente, os havaianos incorporam à funcionalidade de sua estrutura social
e religiosa, cultos e atividades sociais baseadas nas forças marítimas da natureza.
(Finney : 1996)
2 Originalmente a palavra “polinésia” significa “várias ilhas”. (Williams : 1996).
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Nesse momento a origem do surfe assumiria uma conotação mitológica,
uma vez que, como veremos, as ondas representavam as “mudanças de humor”
de deuses. Segundo a mitologia havaiana originalmente os deuses habitavam o
Havaí na forma dos elementos da natureza. As divindades representadas pelo
fogo (lava), a terra, a água (ondas) e o vento teriam moldado as ilhas antes do ser
humano existir. (Beckwith : 1970) Além disso várias lendas apontam, como
primeiros surfistas do arquipélago havaiano, chefes tribais que após sua morte
teriam se tornado semideuses. (Beckwith : 1970)
Os historiadores poderiam criticar ironicamente qualquer pretensão a um
resgate histórico da "gênese do surfe". Assim, a título de explicação e delimitação
de meu objeto inicial de pesquisa algumas observações tornam-se necessárias.
Não busco entender e analisar a origem da mera diversão que apontei acima,
mas sim o momento que essa simples brincadeira é assimilada à vida social,
religiosa e até econômica das sociedades primitivas polinésias. Para tanto
utilizarei, junto à análise do surfe, estudos antropológicos relacionados à
importância do jogo primitivo e das cerimônias para a existência dos grupos
societários polinésios.
Portanto, inicialmente, não utilizarei o termo surf que segundo a língua
inglesa significa simplesmente "arrebentação, onda" (Marques; Draper : 1994) e
se refere a uma tradição conceitual reducionista do surfe, resultante dos primeiros
contatos da sociedade científica/industrial européia com os habitantes das ilhas
polinésias. Antes da colonização do Havaí pelos ingleses no século XVIII, o surfe
era conhecido como he’enalu, e ao contrário do que essa expressão significa no
atual dialeto havaiano, essa atividade possuía uma função e simbologia
totalmente diferente da sua concepção contemporânea.
He'enalu no dialeto moderno havaiano significa algo como "fazer surfe, ou
cavalgar na onda" (Pukui : 1992). Mas "fazer surfe" no antigo Havaí não era
simplesmente descer uma onda em cima de um pedaço de madeira que poderia
ser uma canoa, ou, como eles chamavam, uma “tábua de surfe", e sim uma das
maneiras pelas quais os havaianos expressavam suas relações uns com os
outros e com o "mundo dos espíritos".
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Como nos aponta Finney, além do peso (mais leve), da quantidade e forma
das pranchas antigas encontradas no Havaí revelarem que o he'enalu era muito
mais praticado que no Taiti3, essa prática foi profundamente associada às
cerimônias religiosas e a formação (hierárquica) da sociedade. Mas qual o
significado do culto e necessidade de surfar, além é claro do divertimento, a ponto
dos havaianos reverenciarem as ondas como se fossem deuses, como veremos
adiante?
Nesse momento poderíamos nos deparar com mais uma explicação
geográfica, sem descartar, é claro, o caráter sociológico que essa hipótese
pressupõem. Se levarmos em consideração a teoria sociológica do totemismo de
autores como A. R. Radcliffe Brown e Émille Durkheim onde as tribos polinésias
veneravam a natureza e seus fenômenos como se fossem deuses, por sua
sobrevivência estar estritamente relacionada a esses elementos (Brown : 1973)
(Durkheim : 1973) e a ligarmos à constituição da arquitetura natural das ilhas
havaianas (Wallace : 1983) não é de se admirar que o agrupamento humano que
se desenvolveu naquela região produzisse uma estrutura religiosa tão rica e
complexa. E, o que é mais interessante, vinculada à prática do he’enalu, na
medida em que, como veremos, constituía uma atividade que a partir do contato
direto com o mar, ou com fenômenos marítimos catastróficos de uma natureza
incontrolável, e, portanto divina, representava a busca de uma relação mais
"objetiva" do homem primitivo com o mundo sobrenatural.
No que se refere à influência da natureza das ilhas do Havaí na formação
do imaginário mitológico havaiano, Drew Kampion nos relata que:
As ilhas do Havaí são o paraíso terrestre consumado. Elevando-se altas e verdes acima das praias de areia branca, que contrastam com um mar quente cor de turquesa, as ilhas vulcânicas ainda ativas eram sublimes, poderosas, icônicas, dramáticas (...) Os seus grandes cumes e formações rochosas, monolíticas e arquetípicas, as crateras ativas de lava borbulhante, o estrondo rítmico do mar sempre presente a toda volta, a respiração alternada dos ventos alísios, as tempestades e furacões de Kona produziram as imagens inconscientes
3 Esse aspecto demonstra a especificidade do caso havaiano em relação ao desenvolvimento da prática do he’enalu, uma vez que essa atividade já era realizada no Taiti, antes de ser introduzida por taitianos e samoanos nas ilhas havaianas. (Finney : 1996).
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fundamentais para o desenvolvimento de uma grande mitologia cultural. (Kampion; Brown: 1998, 30) Se somarmos a essas análises a já citada obra de Leonard Lueras na qual
ele nos mostra que, ao relacionar-se com o mar o antigo havaiano costumava
anexar grande misticismo e atribuir características humanas, como por exemplo,
aquelas associadas as "mudanças de humor" do oceano quando este estava
calmo ou agitado (Lueras : 1984, 30), podemos supor ao menos que os havaianos
encaravam o mar e, em especial as ondas, como fenômenos de representação do
mundo sobrenatural, da "fúria" ou da "satisfação" dos deuses.
Esses dois momentos refletiam, por exemplo, a falta ou abundância de
alimentos (peixes), ou de ondas. No segundo caso, quando as ondas estavam
agitadas ou escassas, os havaianos se reuniam na praia ao redor de um feiticeiro
chamado Kahuna4 que realizava uma cerimônia na qual batia com folhas
bananeira (que representavam rendição e subordinação) nas águas do oceano,
entoando rezas que eram cantadas em voz alta (Lueras : 1984). Em sua obra,
Ben Finney nos oferece uma idéia de como eram as rezas direcionadas ao surfe:
“Arise, arise, ye great surfs from Kahiki. The powerful carling waves. Arise with
pôhuehue. Well up, long ranging surf.” (Finney : 1996, 27)
Além disso, segundo o antropólogo Ben Finney existem perto de algumas
praias do Havaí plataformas de pedra que antigamente eram utilizados como
templos (heiau) nos quais os havaianos se reuniam para “rezar pelas ondas”
(Finney : 1996). Dessa forma, se aliarmos essa perspectiva à teoria totêmica que
citamos acima, não seria nenhum absurdo sugerir que alguns grupos tribais
havaianos, situados próximos ao mar, tivessem como símbolo representativo às
ondas. Tudo isso demonstra o profundo significado religioso que o he'enalu
assumia nas sociedades havaianas.
Partindo da concepção de Bronislaw Malinowski na qual o homem primitivo
carrega de misticismo tudo aquilo que foge a sua compreensão “científica”
(Malinowski : 1984), poderíamos entender a prática do he’enalu como
representação da “comunicação” com o divino, estabelecida junto a rituais
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envolvidos no objetivo de “controlar” as águas tempestuosas e ameaçadoras das
violentas ondas do Havaí. Promovendo, dessa forma, um relativo domínio sobre a
natureza, característico da vontade do homem primitivo cuja sociedade
privilegiava a coragem e a habilidade guerreira.
Isso se torna mais evidente quando observamos a construção das
pranchas e canoas havaianas. Para alguns autores como Glyn Williams os
polinésios possuíam habilidades náuticas extraordinárias - baseadas num
conhecimento imenso das correntes marítimas, das posições das estrelas durante
todo o ano, dos ventos dominantes e dos hábitos das aves migratórias – (...)
(Williams : 1996, 75).
Além disso, o aprimoramento dessa cultura marítima relacionada à
observação atenta dos fenômenos da natureza possibilitava aos polinésios
movimentar-se com rapidez em grandes distâncias, e direcionar-se a partir do
desenvolvimento de técnicas de navegação baseadas na movimentação e
intensidade das ondas5.
Esse método de navegação permitia aos polinésios calcular a distância de
uma ilha no oceano através do tamanho e força das ondulações (Kampion; Brown
: 1998, 29). Segundo Thomas Holmes o desenvolvimento dessas técnicas
possibilitou aos taitianos descobrirem o Havaí, um dos lugares mais isolados do
mundo, muito antes dos europeus. (Holmes : 1993)
Expandindo-se pelo maior e mais violento oceano do planeta esse
relacionamento íntimo dos polinésios com os mares do sul do Pacífico logo
assumiu uma forte conotação religiosa. Dentro dessa perspectiva nada explicita
melhor a concepção de Malinowski, segundo a qual diferentes sociedades
desenvolvem diferentes quocientes do sobrenatural dependendo das dificuldades
com que se defrontam (Sahlins : 1970, 152), do que a quantidade de deuses
invocados pelos havaianos para se construir uma canoa. Ainda mais se ela fosse
confeccionada para realizar grandes navegações. Nesse momento eram
4 Espécie de chefe espiritual havaiano. (Kampion; Brown : 1998, 34). 5 Um exemplo elucidativo da influência da natureza na navegação polinésia nos é dada por Thomas Holmes, ao salientar que o nome das principais embarcações polinésias, Hokule’a, significa “seguindo Kole’a”, que é
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necessários rituais que chegavam a incluir o sacrifício humano (Holmes : 1993).
Apesar de não descartarmos a hipótese de que esses rituais existiram para a
construção de "tábuas de surfe", a maioria dos sacrifícios eram realizados em
sinal de respeito aos deuses (representados na natureza) quando uma grande
quantidade de árvores era cortada na floresta. (Holmes : 1993, 33)
A confecção das pranchas, assim como das canoas, eram realizadas por
um experiente navegador/sacerdote através de um ritual específico de
comunicação com o mundo sobrenatural, como nos é contado por Drew Kampion:
Ao fazer as suas pranchas os primeiros havaianos realizavam vários rituais. Quando se escolhia uma árvore, colocava-se um peixe Kuma vermelho no seu tronco como oferta de pagamento. Dizia-se então uma oração antes de a derrubar. A árvore era depois cortada segundo as dimensões da prancha usando um enxó de pedra e levada para a casa das canoas para lhe ser dada a forma final com coral e pedra áspera. Antes de se usar a prancha, realizavam-se outros ritos e cerimônias em sua homenagem. (Kampion; Brown : 1998, 30) A pessoa encarregada da construção deveria estar livre de pensamentos
negativos. Além disso, enquanto construía a prancha ou a canoa era aconselhável
que se isolasse do resto da sociedade, e que prestasse atenção na simbologia de
seus sonhos, que segundo a tradição oral ditariam a forma dos objetos marítimos.
(Holmes : 1993)
A seriedade dessa atitude espiritual dos havaianos poderia ser explicada
por Malinowski e sua experiência nas ilhas Trobriand. Segundo o antropólogo
Marshall Sahllins:
Malinowski ainda exemplificou, adicionando um já famoso contraste entre os rituais que acompanhavam, em Trobriand, a pesca na lagoa interior ("feita de maneira absolutamente tranquila e fácil") e a perigosa aventura no mar aberto. Em conexão com o primeiro, "onde o homem pode depender inteiramente de sua habilidade e conhecimento", não há magia; mas, no segundo, "cheia de perigo e incerteza", a magia é extensiva. (Sahllins: 1970, 151)
um pássaro que migra pelo Pacífico em direção ao norte. Essas embarcações teriam levado os primeiros navegadores do Taiti, que situa-se ao sul do Pacífico, a chegar ao Havaí, no norte. (Holmes : 1993)
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Levando em consideração que o Havaí produz as maiores e mais violentas
ondas do planeta e baseando-se na análise de Malinowski sobre as relações do
homem "primitivo" com o sobrenatural a partir do medo e da vontade de dar
sentido ao incogniscível, poderíamos entender o he'enalu e os rituais envolvidos
em sua prática como a representação mental da tentativa de estabelecer
relações de poder e domínio com um fenômeno da natureza incontrolável,
assustador, "irracional" e portanto divino.
Ainda no que se refere à construção das pranchas, Ben Finney nos relata
que existiam três tipos fundamentais: a Olo, que era usada pela antiga nobreza da
ilha; a Alaia, que pertencia às pessoas comuns e as tábuas pequenas usadas
pelas crianças. Além do tamanho (a Olo possuía quase cinco metros e a Alaia três
metros) a diferença que podia existir entre as tábuas nobres e as "populares" era
relacionada à qualidade da madeira. A Olo era feita de uma árvore rara chamada
Wiliwili, cuja madeira era macia e resistente enquanto que a Alaia era feita de Koa
uma árvore em abundância no antigo Havaí. (Finney : 1996)
A partir dessas observações notamos que a antiga sociedade havaiana era
baseada numa forte estrutura hierárquica de poder, onde os chefes tribais (ali'i) (e,
posteriormente os reis quando as ilhas foram unificadas) que descendiam de
figuras mitológicas assumiam o comando de suas tribos hereditariamente (Morgan
: 1979). Apesar disso o sucesso que os membros da nobreza obtinham na guerra
e nas atividades marítimas6 lhes promovia maior credibilidade perante seu grupo.
Além da navegação o he'enalu era uma dessas atividades importantes, e não só
para os chefes tribais. O espírito guerreiro dos havaianos era moldado e
fortificado desde criança na luta com as ondas furiosas de suas ilhas.
No entanto, apesar da popularidade o he'enalu era praticado com mais
intensidade e qualidade pelos chefes tribais (que tinham mais tempo livre), uma
vez que essa atividade lhe promovia certo status em relação a seus súditos:
6 Segundo Lueras a maioria das lendas que falam sobre os feitos heróicos dos chefes colocam-no como um exímio navegador e um grande surfista. (Lueras : 1984)
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Of all the Hawaiians who surfed, it was the ali'i or hereditary chiefly class who claimed the highest reputation for dedicated proficiency with board and wave. Freed from the daily chores of farming and fishing, the ali'i embraced the challenge of such sports as surfing, hõlua-sledding, and canoe-leaping. They were a majestic aristocracy, often taller, broader, and stronger than the commoners. Their status as leaders depended, in part, on their strength and stamina. Strenuous sports such as surfing therefore served to keep them fit for the physical requirements of their chiefly position, as well as to furnish them with many hours of enjoyment (Finney : 1996, 40).
Partindo do pressuposto de que a habilidade com que o havaiano lidava
com o mar, era reflexo do "controle" que exercia sobre a natureza, podemos
entender o he'enalu como uma atividade que proporcionava ao guerreiro-surfista
exprimir sua coragem e relativa superioridade perante os outros membros de sua
tribo. Isso fica claro quando Ben Finney nos relata as ferozes competições que
ocorriam no antigo Havaí através do he'enalu. Antigamente o surfe era um dos
vários jogos primitivos que existia no Havaí. Através do he'enalu todos aqueles
que possuíssem canoas, pranchas ou instrumentos de caça e pesca, apostavam
seus bens e às vezes a própria liberdade e de sua família, que em caso de
derrota tornavam-se escravos do surfista vencedor. O "jogo" era violento uma vez
que se baseava num duelo entre dois competidores, realizado nos vales rochosos
do Havaí. Consistia numa disputa em que um surfista desafiava outro a remar
com sua "tábua" até a “arrebentação”7. O surfista vencedor seria aquele que
pegasse a onda adequada e tivesse habilidade suficiente para desviar de corais e
rochas salientes chegando na praia primeiro (Finney : 1996, 45, 46).
É interessante notarmos o caráter ritualístico dessa disputa quando um
chefe tribal desafiava outro da mesma região ou de ilhas diferentes. Quando isso
ocorria os chefes reuniam-se na praia escolhida, com uma comitiva de súditos
que incluía guerreiros e cantores. Enquanto o chefe surfava os cantores eram
encarregados de recitar em voz alta canções poéticas cujo enredo exaltava a
coragem e as habilidades marítimas de seu senhor. Além disso, assistiam a
competição, que podia durar um dia inteiro, comendo um porco que era assado
em um buraco na areia. (Finney : 1996)
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Apesar de todos os homens havaianos desafiarem-se uns aos outros em
torno do surfe apostando os materiais que permitiam sua sobrevivência, como foi
visto acima, os principais torneios eram realizados entre os chefes tribais. Apesar
dessas informações a respeito do he’enalu competitivo, ainda permanece obscuro
a real finalidade dessas "partidas". Serviam para fortalecer a imagem heróica do
chefe perante sua tribo, ou era a representação de um aspecto social mais
significativo como um conflito intertribal, com as consequências que a vitória de
um dos dois lados acarretaria no caso de uma guerra real?
Além disso o he'enalu estava envolvido com mais dois importantes
elementos constitutivos das relações sociais havaianas: a questão do taboo8 e do
relacionamento sexual. Segundo a antropologia social apesar do taboo estar
ligado a fatores sobrenaturais, representando a sacralidade dos sacerdotes ou
dos chefes tribais, está muito mais associado no Havaí à organização social do
que ao caráter religioso. (Brown : 1973, 173)
Através de uma suposta ligação com o sagrado esses agentes sociais
tornam-se intocáveis estabelecendo um distanciamento das demais pessoas que
compõem a sociedade, diferenciando-se socialmente na estrutura organizacional
do grupo e instituindo normas que tornam acessível à governabilidade. (Brown :
1973)
A sacralidade dos chefes mais ilustres estende-se aos objetos tocados por
eles. Ben Finney nos mostra um exemplo disso ao relatar que no Havaí as
pranchas e as ondas surfadas pelos nobres eram proibidas de serem
compartilhadas, e quem o fizesse era condenado à morte (Finney : 1996, 41). O
taboo associado ao he’enalu servia para acentuar a diferenciação social dos
grupos havaianos uma vez que, além de intocáveis esses surfistas possuíam os
melhores locais das praias para praticar o he’enalu acompanhado por seus
familiares consanguíneos (Finney : 1996, 41).
7 “Arrebentação” é uma palavra usada na gíria surfista para designar o local onde a onda se forma. (Kampion; Brown : 1998) 8 O termo taboo vem da palavra polinésia tabu, que significa “proibido”. (Brown : 1973, 167).
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No que se refere às relações conjugais polinésias o he’enalu assume um
papel importante dentro do grupo societário havaiano. Como relata Finney tanto o
homem como a mulher havaiana relacionava-se através de códigos
comportamentais fornecidos pela prática do he’enalu. Essa aproximação dava-se
a partir da exibição de seus corpos nas “tábuas de surfe” ou quando um surfista
conseguia surfar na mesma onda que sua parceira até a praia :
This equality and sexual freedom added zest to the sport and were important to its widespread popularity. No doubt many an amorous Hawaiian, who on some day didn't feel at all like surfing, found himself paddling for the breaker line in pursuit of his lady love, knowing full well that if a man and woman happened to ride the same wave together, custom allowed certain intimacies when they returned to the beach (Finney : 1996, 38).
Apesar do distanciamento analítico que procurei estabelecer em relação às
considerações iniciais de meu objeto de pesquisa, é possível que, aparentemente,
o surfe apresente-se neste capítulo, como principal determinante das práticas
sociais polinésias. Não obstante, procurei apenas entender essa prática marítima
como um dos elementos que compõem as várias maneiras dos havaianos se
relacionarem com o “mundo espiritual” e “material”, apesar de não haver uma
diferenciação dicotômica visível entre esses dois “mundos” nas sociedades
“primitivas”, como tende a existir, por exemplo, na sociedade ocidental moderna.
1.2 - O surfe havaiano e o expansionismo ocidental dos séculos XVIII – XIX.
Em 18 de novembro de 1778, os primeiros europeus a avistar o Havaí
ancoraram próximos a uma das ilhas do arquipélago havaiano (O’ahu) que ficaria
conhecido nos primórdios do descobrimento como Ilhas Sandwich (Kampion;
Brown : 1998, 31). O capitão que comandava a expedição, o inglês James Cook,
havia sido contratado pelo governo inglês para descobrir novas rotas marítimas de
comércio, bem como descrever os aspectos naturais e humanos das diversas
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ilhas que encontrasse pelo caminho. E que futuramente acabariam por fornecer
mão-de-obra e matéria-prima para abastecer as máquinas inglesas e dinamizar o
comércio ocidental dos séculos XVIII-XIX. Período caracterizado pelo processo de
industrialização européia (Williams : 1996).
Ao estabelecer os primeiros contatos com os havaianos James Cook foi
surpreendido pela recepção amistosa dos habitantes do arquipélago que,
incentivados pelo capitão iniciaram as primeiras trocas comerciais (Cook : 1945,
114). Segundo o antropólogo Marshall Sahllins essa relação amigável só foi
possível porque o capitão inglês foi confundido pelos havaianos com um de seus
deuses, uma vez que a chegada de Cook às ilhas coincidiu com o dia em que os
ilhéus realizavam uma cerimônia em homenagem a Lono, o deus da fertilidade,
provavelmente para agradecerem pela abundância dos alimentos (Sahlins : 1990).
Dessa maneira é compreensível a surpresa de Cook que ao descer de seu
navio foi tratado como um chefe tribal, ao mesmo tempo em que conhecia a ilha,
acompanhado pelos Kahunas. Caminhando por algumas ilhas havaianas o
capitão Cook ressalta em suas anotações fatos que lhe chamaram a atenção.
Impressionasse, por exemplo, com a habilidade e intimidade com que os
havaianos lidavam com o mar, principalmente ao presenciar mulheres nadando
com bebês em águas agitadas (Cook : 1945, 119) Ou quando observa um “jogo”
no qual os nativos eram arremessados pelas ondas em grande velocidade (Cook :
1945, 215).
Apesar de não saber bem o que se tratava, James Cook presenciava o
he’enalu havaiano em sua forma competitiva, mas não foi o primeiro encontro.
Anteriormente Cook já havia observado os polinésios deslizar nas ondas com
canoas, e ao ancorar pela primeira vez no Havaí seu navio foi envolvido por um
"cardume" de homens e mulheres em canoas, "tábuas de madeira" ou
simplesmente nadando (Cook : 1945, 203). Pela primeira vez o he'enalu era
descrito através dos olhos e da escrita ocidental.
Apesar da “cordialidade” inicial dos primeiros contatos entre europeus e
polinésios alguns episódios anotados no diário de Cook nos revelam indícios do
choque cultural que se propagaria com a colonização efetiva das ilhas polinésias.
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Dentre esses acontecimentos merece destaque àquele no qual marinheiros de
Cook queimam algumas pranchas de madeira na ausência do capitão e são
violentamente agredidos por alguns ilhéus que acabam sendo mortos (Cook :
1945, 63). Essas pranchas que poderiam ser destinadas ao he’enalu,
provavelmente estavam investidas de um profundo significado religioso.
Durante o século XIX, a polinésia foi invadida por uma nova safra de
exploradores aos quais podemos destacar diversos missionários e botânicos
como Charles Darwin (Darwin : 1937). Com o intuito de estreitar os laços
comerciais incentivados pelo impulso de uma nova transformação dos meios de
produção (Segunda Revolução Industrial), e por ideólogos europeus dos Estado-
nações capitalistas (Hobsbawm : 1988), inicia-se um processo de colonização do
Havaí que acabaria por afetar a estrutura funcional daquela sociedade. Um modo
de produção voltado para a subsistência não sobreviveria ao desencadeamento
de uma colonização baseada na exploração dos recursos naturais do arquipélago
havaiano e de novos mercados consumidores. Tudo isso envolto por uma nova
concepção da vida litorânea ocidental promovida sobretudo pelo expansionismo
inglês do século XVIII, fortalecido através das obras artísticas e do advento da
religião natural. (Corbin : 1989)
Dessa forma a quebra do sistema de taboo que proporcionava a simbologia
necessária à preservação do poder monárquico existente9 foi gradativamente
extinto10, possibilitando a troca dos sistemas políticos e, conseqüentemente, a
efetivação da exploração econômica do conjunto das ilhas, cada vez mais ligadas
ao modo de produção capitalista (Finney : 1996, 53, 54, 56, 57)
Dentro desse processo imperialista de colonização em busca de matéria-
prima e novos mercados (Hobsbawm : 1988), que culminou com a anexação do
Havaí ao território americano em 1898, a língua e os costumes nativos foram
gradativamente combatidos pelos missionários, paralelo a alfabetização e
9 A monarquia havaiana surgiu no século XIX após a unificação do arquipélago empreendida por Kamehameha, o grande, através de guerras inter-tribais. (Finney : 1996) 10 Esse processo tornou-se visível, quando num gesto simbólico, Liholiho, filho e sucessor de Kamehameha I quebrou o taboo real fazendo suas refeições publicamente com outros homens e mulheres. (Finney : 1996, 53)
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cristianização dessas populações. Pelo menos das que ainda não haviam sido
contaminadas e dizimadas pelas doenças estrangeiras.
Segundo Kampion:
Esses missionários não só impuseram um rigoroso paradigma protestante a um povo exuberante, enquanto as doenças lhes destruíam os corpos, como também os restringiam a um vestuário “modesto”, os obrigaram a falar uma nova língua e os desencorajaram em relação ao sexo casual, ao jogo e as brincadeiras no oceano. A associação do surf ao nudismo, à sexualidade, apostas, exuberância desavergonhada, informalidade, alegria ignorante e liberdade eram contraproducentes relativamente aos desígnios dos pais da igreja que, curiosamente, acabaram por possuir a maior parte da terra das ilhas. (Kampion; Brown : 1998, 34) Em meio a essa política expansionista da hegemonia capitalista que visava
a troca de paradigmas culturais para concretizar e estreitar os laços de poder e
dominação econômica (Hobsbawm : 1988), o he’enalu11, que era considerado
pelos colonizadores como um simples passatempo que desviava o havaiano do
trabalho agrícola foi severamente reprimido.
Segundo Ben Finney as fontes missionárias descrevem essa atividade
como um “passatempo nacional” no Havaí, pois todos os nativos o praticavam
com muita intensidade e largavam tudo que faziam quando “sentiam no vento”
boas ondas se aproximando com as marés (Finney : 1996). Além disso, como foi
visto acima, a prática do surfe incentivava a poligamia entre os havaianos e o
culto a forças sobrenaturais contrárias ao ideário cristão e de uma economia
européia de caráter acumulativo cada vez mais organizada e comercial.
No final do século XIX o povo havaiano era minoria em sua própria ilha, a
guerra biológica aliada à violenta domesticação do povo a um novo modo de vida,
reduziu uma população estimada em 400.000 (quatrocentos mil) habitantes na
época do descobrimento inglês, para 40.000 (quarenta mil) em meados de 1890
(Kampion; Brown : 1998, 32). Como nos conta Ben Finney foi nessa época que a
monarquia havaiana, que pretendia tornar o Havaí um reino independente, foi
11 Assim como outras práticas rituais de harmonização com o mundo sobrenatural, como a dança Hula e a cerimônia de confraternização com os deuses, Lu’au.
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deposta através de uma “revolução” liberal encenada por americanos apoiados
pela marinha dos Estados Unidos da América (Finney : 1996, 53). O já
enfraquecido sistema de taboo e outros elementos reguladores da sociedade
havaiana eram então definitivamente extintos e substituídos pelos ideais
republicanos europeus e sua infra-estrutura governativa. No entanto, apesar da
severa repressão, alguns agrupamentos nativos isolados conseguiram preservar
resquícios de suas raízes culturais ancestrais.
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CAPÍTULO II 2- O SURFE NO SÉCULO XX 2.1- Revitalização e expansão do surfe havaiano no início do século XX. Durante os séculos XVIII e XIX o imaginário da sociedade industrial
européia assume uma nova concepção sobre a vida ao ar livre e especialmente
sobre a vida a beira-mar (Corbin : 1989). Dentro desse contexto existe uma
transformação conjuntural das relações do homem com o mar. O caos e a
insegurança envolto por um sentimento de descontrole perante as forças da
natureza que existia em tempos anteriores, reestrutura-se sob a forma de um
novo ideário.
Como nos explica Alan Corbin, antes do século XVIII a imaginação
européia enxergava o mar através de uma forte conotação religiosa que lhe
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investia um caráter maligno, uma vez que suas manifestações pouco previsíveis,
criavam receio em uma sociedade industrial e científica, que buscava a
racionalidade de uma vida ordenada sob o domínio da natureza, expressa no
desenvolvimento de novos meios de produção (Corbin : 1989).
Segundo Corbin a partir do século XVIII o mar que tinha a característica de
ser impuro e imoral12 começa a ser tomado por famílias burguesas em busca dos
benefícios medicinais que as águas salgadas passam a proporcionar ao
imaginário ocidental. Para Corbin, essa transformação da mentalidade européia
do gosto pelo mar é promovida, fundamentalmente, pelo cientificismo do século
XVIII e pelo advento da religião natural fortalecida por obras intelectuais, como
livros e quadros, bem como do desejo do homem de domesticar o oceano (Corbin
: 1989, 48). Mas, além de tudo, a praia começa a se tornar o lugar de fuga dos
burgueses da multidão que começa a acumular-se nas cidades industrias (Corbin
: 1989, 33), buscando na organização da natureza litorânea em balneários uma
nova reconfiguração de seu status social.
Assim, a história do desejo da beira-mar do ocidente inicia-se paralelo à
diferenciação entre a vida urbana e a litorânea. Nesse sentido se aliarmos as
idéias fundamentais da obra de Norbert Elias intitulada A busca da Excitação
(Elias : 1992) às observações de Corbin, perceberíamos que, além de status, a
praia, e principalmente o contato do homem com o mar, psicologicamente vão
atuar, nesses primeiros tempos de aproximação, como um mecanismo de
equilíbrio do homem "artificial", civilizado e urbano com suas raízes naturais e
instintivas (Corbin : 1989, 73).
Evidentemente, a estruturação dessa nova mentalidade ocidental durante o
século XIX, aliada a expansão do capitalismo americano pré-Primeira Guerra
Mundial, proporcionará no início do século XX a modernização e organização da
natureza litorânea do arquipélago havaiano, resultando, posteriormente, na
transformação das ilhas em um dos principais pólos turísticos do planeta. Como
nos mostra o escritor Drew Kampion a partir desse novo avanço imperialista
12 Além de ser conhecida como o local onde se despejavam as impurezas dos esgotos das cidades que cresciam, a praia era entendida como um lugar pecaminoso, onde as mulheres andavam com os cabelos soltos e os pés nus. (Corbin : 1989)
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diversos homens de negócio que aportaram nas ilhas havaianas enxergaram nos
resquícios da exuberante cultura local uma "mina de ouro" em potencial (Kampion;
Brown : 1998).
Paralelo ao processo de organização do espaço urbano e de saneamento
junto ao crescente número de hotéis que começavam a erguer-se, foi fundado em
meados de 1915, na praia de Waikiki13, o primeiro clube de canoagem e surfe do
mundo (o Outrigger Canoe and Surf Club), como uma maneira de preservar essas
atividades que deveriam ser assimiladas ao planejamento urbanístico
impulsionado pelo turismo. Notamos assim que a sobrevivência do surfe
havaiano, que estava quase extinto no início do século XX, deu-se graças a sua
absorção ao sistema capitalista através de sua gradativa institucionalização e
espetacularização. Esse fato torna-se evidente quando observamos que a
construção desse clube é atribuída ao "pai da produção automobilística em série",
Alexander Hume Ford, e de um romancista americano chamado Jack London, que
encontrou na divulgação da exótica cultura havaiana, e especialmente do surfe,
um poderoso enredo para a comercialização de seus livros (Kampion; Brown :
1998, 35, 36).
Tendo em vista que essa primeira associação de surfe era formada
basicamente por europeus e americanos, devido à descriminação racial que os
havaianos locais sofriam, posteriormente constituiu-se um clube formado só por
havaianos nativos, o Hui Nalu (Kampion; Brown : 1998). A repulsa dos havaianos
em relação aos ocidentais, chamados de ha'oles14, desenvolveu-se a partir de sua
colonização e acentuou-se na medida que, discriminados em seu próprio território
(principalmente por sua pele escura) alguns nativos isolaram-se demonstrando
certa resistência em abandonar suas crenças e práticas seculares.
A violência inerente a esse isolamento provavelmente estendeu-se às
praias e ondas (Kampion; Brown : 1998, 36). Segundo o sociólogo Norbert Elias, a
institucionalização e regulação dessas atividades promovida pelo surgimento dos
13 Esse processo ocorreu fundamentalmente na praia de Waikiki (a antiga capital do império havaiano), por ser no início do século XX o local mais habitado do Havaí. (Finney : 1996) 14 Desde o início da colonização européia os havaianos desenvolveram em seu idioma novas palavras. Haole é usado até hoje no Havaí para designar o estrangeiro, “homem branco sem o sopro da vida”. (Pukui : 1999)
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clubes, "absorveram-nas" à infra-estrutura de sociedades industriais complexas
em formação, atuando na relativa pacificação dos indivíduos, uma vez que
práticas que antes eram isoladas e individuais tornaram-se competitivas, e, o que
é mais importante, gradativamente envolvidas por um conjunto de regras, que
apesar de diminuir a violência preservaram uma tensão-excitação agradável à
saúde mental dos indivíduos (Elias : 1994) (Elias; Dunning : 1992). É nesse
momento que o antigo he'enalu começa a ser conhecido definitivamente como
surf, transformando-se em desporto na primeira metade do século XX,
devidamente incorporado às instituições da sociedade moderna ocidental.
A domesticação da violência nos "passatempos" havaianos implicaria, na
visão de Norbert Elias, fundamentalmente no desenvolvimento do surfe desportivo
e da canoagem de competição, que por sua vez, permitem a integração,
sobrevivência e sociabilidade dos indivíduos nas sociedades capitalistas
modernas a partir de uma reconfiguração das relações sociais (Elias : 1994) (Elias
Dunning : 1992, 50). Isso se torna mais evidente quando incorpora e transforma
as manifestações violentas daqueles que, a princípio, são vistos como não
civilizados, e portanto "observam de fora da sociedade" (classificados por Elias de
outsiders) as ações daqueles que "pertencem" a ela (os estabelecidos) (Elias;
Scotson : 2000).
Assim, na primeira metade do século XX, o surfe realiza um movimento
contrário ao que estava fadado no final do século XIX, e, a partir de sua
reestruturação nas praias havaianas, migra para os Estados Unidos e Austrália.
Os primeiros surfistas dos Estados Unidos foram três jovens da realeza havaiana
que, enviados para as universidades americanas em 1885, preenchiam as horas
vagas dos estudos para surfar na foz de um rio da Califórnia (Kampion : 1998, 36;
Finney : 1996).
No entanto, oficialmente, o responsável pela introdução do surfe na
América foi um havaiano descendente de irlandeses chamado George Freeth. Já
na Austrália essa iniciativa é associada a um príncipe nativo da extinta nobreza
havaiana, Duke Paoa Kahanamoku. Ambos atletas foram apoiados por
empresários americanos, com o intuito de incentivar direta e indiretamente essa
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prática na região. É notório observarmos o apelo comercial dessa investida, uma
vez que o surfe era uma atividade exótica e vista com curiosidade, George Freeth
fez sua primeira demonstração nos Estados Unidos para uma festa de
inauguração de uma estrada de ferro. Já Duke, o havaiano considerado "pai do
surfe moderno", surfou “acidentalmente” na Austrália, após ser convidado pela
Associação de Natação de Nova Gales do Sul para fazer demonstrações de nado,
pois nessa época já era campeão olímpico dos cem metros livres ganhos na
Suécia em 1912 com a equipe norte-americana.
Paralelo a esses acontecimentos, o aumento do turismo no Havaí
possibilitou o desenvolvimento de pranchas mais leves que as antigas "tábuas de
surfe" havaianas, tornando o surfe cada vez mais acessível a um número
crescente de pessoas. Isso contribuiu para uma perceptível "transformação" do
desporto que assumia suas características modernas.
Segundo Drew Kampion, o americano ex-aviador Tom Blake foi o
"visionário" responsável por essa "evolução instrumental" do desporto,
construindo a sua "prancha oca de remar" baseada nos modelos das antigas
pranchas dos nobres havaianos15 (Kampion; Brown : 1998). A posterior
publicação das etapas de construção desse novo modelo de pranchas em uma
revista americana de mecânica, proporcionou a introdução e desenvolvimento da
prática do surfe em outros lugares do mundo, inclusive no Brasil, como veremos
adiante (Revista Fluir : n. 180, 2000).
Como nos mostra o historiador Marcello Àrias, as demonstrações de surfe
nos Estados Unidos juntamente com a divulgação da revista de Tom Blake e de
seu surfe em águas californianas, inspiraram a prática do desporto entre os jovens
de classe média americana das décadas de 1920 e 1930, que passaram a
construir suas próprias pranchas na garagem de suas casas.
Como nos relata Kampion:
15 Blake é conhecido também por ser o primeiro surfista a usar quilhas na prancha. (Kampion; Brown : 1998) As quilhas são pequenas peças com formato de “barbatana de tubarão” utilizadas na traseira inferior das pranchas para possibilitar ao surfista o movimento da prancha.
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(Tom) Blake visitava anualmente o Havaí, continuando a viver no Sul da Califórnia, onde a cena de surf crescia. Inspirados por Freeth e Duke, e pelas revolucionárias pranchas ocas de Blake que facilitavam o surf, o número de "haoles da costa" (tal como eram chamados pelos havaianos) aumentou durante os loucos anos 20 e, quando chegou a Depressão nos anos 30, uma das poucas coisas que os miúdos sem dinheiro podiam fazer era ir para a praia (Kampion; Brown : 1998, 48)
Segundo Àrias, posteriormente na década de 1930, Meyers Butte foi o
primeiro (...) a manufaturar pranchas de surfe em uma pequena fábrica de sua
família. Isso aconteceu em 1932, quando as pranchas eram feitas com madeiras
extremamente duras e pesadas, tais quais as conhecidas redwoods (Àrias : 2002,
cap. III, 04). Formava-se assim os primeiros grupos de surfe dos Estados Unidos,
situado no litoral californiano, germinando um processo de diferenciação social
que se concretizaria nos Estados Unidos da década de 1960, onde os surfistas
constituiriam uma subcultura com regras, linguagem, heróis, lendas e simbologia
específicas. (Kampion; Brown : 1998)
No entanto para Àrias, o surgimento da indústria do surf só aconteceria
anos mais tarde, na cena californiana dos anos 50. Isso ocorreu em parte graças
ao desenvolvimento econômico e tecnológico das duas grandes guerras do século
XX (Hobsbawm : 1995) que acabaram por proporcionar aos jovens surfistas
americanos, que se dedicavam cada vez mais à construção de pranchas, um
considerável desenvolvimento no design e na diminuição do peso desses
artefatos. Isso ocorreu principalmente devido ao surgimento de madeiras mais
leves e da fibra de vidro que inicialmente era utilizada na construção de aviões e
veículos marítimos da Segunda Guerra Mundial (Young : 1996).
Dentro dessa perspectiva não podemos deixar de notar que junto à história
social do surfe existe a história tecnológica das pranchas, uma vez que esse
instrumento caracteriza o surfista, e por vezes expressa materialmente as
representações e experimentações mentais (angústias, expectativas, etc) de seus
"pilotos" reestruturando o desporto sob novas bases. Assim para quem estuda o
surfe e sua cultura as pranchas e suas "evoluções" são fontes imprescindíveis.
Portanto a partir de agora vamos nos ater mais ao seu desenvolvimento.
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Segundo Marcello Àrias:
Um dos pontos cruciais para o crescimento da indústria de manufatura de pranchas de surf foi a contínua evolução dos materiais, e o aparecimento da madeira balsa contribuiu como um de seus maiores propulsores. Na transição dos anos 40 para os 50, a grande maioria dos surfistas californianos surfavam com as velhas redwoods (...). A manufatura era difícil (...), entretanto com a chegada da madeira balsa, tudo ficou mais fácil e um punhado de garotos partiram para as garagens e iniciaram pequenas fábricas. Dale Velzy e Hap Jacobs faziam as famosas Velzy and Jacobs. Hobie Alter iniciou seu trabalho em Dana Point.(...) Porém de todos os pioneiros que citamos acima, foi Dale Velzy o primeiro que passou realmente a viver de surf, mais precisamente de ... surfshops! (Àrias : 2002, cap. III, 06,07)
Além disso não devemos esquecer que, como nos mostra Drew Kampion, o
que diferencia o surfe de outros esportes da primeira metade do século XX, é a
falta de padronização, mesmo porque não havia instituições que regulassem os
andamentos da prática. Nesse sentido a diferenciação social interna ao grupo
surfista (herança das antigas competições havaianas) determinada pelas
manobras mais audaciosas, e pela busca de uma excitação mais perto do perigo
(“radical”) reorganizava a longo prazo os estilos de surfe e de pranchas:
A reavaliação das pranchas de surf que se seguiu ao desenvolvimento e patentear da prancha de remar oca de Tom Blake transformou quase imediatamente a própria natureza do surf. Em vez de reproduzirem com reverência velhos designs havaianos, os surfista começaram a experimentar novos tipos de pranchas. Uma série de acontecimentos acabaria por modificar o caráter das pranchas de surfe, pelo caminho, alterar a forma de surfar. Um desses acontecimentos teve lugar na rebentação de Brown (no Havaí), John Kelly, Fran Heath e Wally Froiseth surfavam numa tarde de 1934 e estavam a ter problemas com as suas pranchas clássicas de tail (cauda) larga. (...) Frustados os surfistas regressaram à praia, colocaram uma das pranchas num suporte para serrar madeira e cortaram-lhe as "ancas", acabando com uma cauda de apenas 13 centímetros de largura em forma de V na popa.(...) As novas pranchas foram batizadas de hot curl porque permitiam um surf muito mais rápido e radical na aspiral, ou curl, da onda. (...) As pranchas hot curl de cauda estreita requeriam um novo estilo de surf (Kampion; Brown : 1998, 54).
Dentro desse contexto de constituição dos subgrupos surfistas, nos
Estados Unidos da primeira metade do século XX, além das pranchas, outros
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símbolos materiais de expressão e identificação cultural começaram a se formar.
Como nos mostra Àrias:
Nossas bermudas de surf também podem ter saído de uma brincadeira entre Velzy, Barney Briggs e mais alguns malucos. Um certo dia, esses rapazes foram até um bazar do Exército de Salvação e compraram longas bermudas de marinheiro, que alcançavam os joelhos. Eram largas, confortáveis e adequavam-se ao estilo descompromissado dos surfistas. Uma brincadeira marcante é sempre relembrada pelos surfistas que viveram aquela época. Conta a lenda que Velzy e seus amigos organizaram uma competição para ver quem sobreviveria mais tempo dentro de um desses bermudões! A regra era clara: viva dentro de seus bermudões! (...) A imundice deve ter chegado aos limites (...), mas serviu de estímulo ao nascimento da moda... Usar esses bermudões se tornou algo cool (Àrias : 2002, cap. III, 08,09).
Dentro desse contexto apesar da primeira fábrica de pranchas de surfe ter
surgido nos Estados Unidos em meados de 1930, foi só em 1950, a "década de
ouro americana" (Hobsbawm : 1995) que as primeiras pranchas de fibra de vidro
começaram a ser criadas e experimentadas pelo engenheiro Bob Simmons e,
posteriormente, desenvolvidas por seus sucessores (Greg Noll e Mike Bright), e
fabricadas pela primeira grande fábrica de pranchas da Califórnia, a Greg Noll
Surfboards. A inauguração da fábrica em 1965 é marcada pelo crescimento da
marca que começou a fornecer pranchas para o crescente mercado da costa leste
americana (Àrias : 2002, cap. III, 13). O sonho californiano tornava-se americano.
Mas esse era só o começo, segundo Àrias, o ano de 1958 viu surgir uma
outra enorme revolução na indústria do surf. (...) Hobie Alter e o estudante de
matemática e física Gordon Clark interessaram-se pela química de poliuretano e
resolveram juntos iniciar a expansão de alguns blocos de espuma, que resultaria
no surgimento da Hobie Surfboards (Àrias :2002, cap. III, 14).
Ainda, segundo Àrias:
A revolução havia começado! O poliuretano gerou a possibilidade de se reproduzirem pranchas com maior facilidade, sem que o fabricante ficasse na dependência da qualidade da madeira disponível no mercado, que comumente apresentava variações de peso, porosidade, etc. A expansão da espuma trouxe muito mais profissionalismo para a indústria do surf. (Àrias : 2002, cap. III, p. 14)
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2.2- O surfe na segunda metade do século XX: sociabilidade,
comercialização e exibição.
Além do desenvolvimento das pranchas, como nos relata Drew Kampion,
na década de 50 a indústria do surf explodiu na Califórnia. Nesse período o
mercado destinado ao surf começou a se formar e a ganhar identidade. (...) surf
shops, filmes, roupas e revistas especializadas ganharam força (Kampion; Brown :
1998, 50).
Na década de 1960, o auge da economia e do consumismo americano
chega ao cumulo de fabricar pranchas em série, num período em que o mercado
tentou incorporar o surf como uma diversão de massas, como havia feito com o
cinema do Estados Unidos entreguerras.
O acentuado consumismo dessa época foi incentivado pela
profissionalização do surfe, onde o principal representante foi o americano Phil
Edwards, e pelo empresariado que percebeu o poder de compra de um novo
grupo social jovem que começava a se constituir de forma mais concreta,
invadindo os campi universitários, as salas de cinema e as praias. Com a
profissionalização e crescente absorção da subcultura surfista ao mercado
capitalista, o surfe começava a assumir uma nova forma que causou a repulsa
dos primeiros "ratos de praia" americanos, como Mickey Dora que, como forma de
protesto, agredia os surfistas novatos que tentavam surfar "nas suas ondas".
Essa dicotomia criada entre os surfistas estabelecidos e os outsiders fica
clara quando entendemos o significado do surfe para os primeiros. Para os
subgrupos surfistas da década de 1920/30 o surfe era mais do que uma simples
diversão. Proporcionava uma diferenciação social e comportamental de jovens
cada vez menos dependentes do conservadorismo dos pais. Dentro dessa
perspectiva aqueles que rompiam os costumes tradicionais, largando os estudos e
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um “futuro brilhante” para se aventurar no Havaí, e, por vezes, permanecer por lá,
eram idolatrados como verdadeiros heróis. (Kampion; Brown : 1998)
Nos anos 1950,1960 e 70 a oposição às determinações familiares dos
grupos jovens surfistas americanos estende-se ao Estado, identificando-se com a
contracultura jovem mundial. Nesse caso o movimento de resistência juvenil
realizado em maio de 1968 na França é paradigmático. Esse movimento de
caráter estudantil, resultante do crescimento do público universitário em todo
mundo, que além da oposição comportamental estava investido de forte
conotação política, e que, de forma geral, reivindicava os direitos das “minorias”,
acabou por influenciar a formação das subculturas jovens em vários países, e, em
especial a dos grupos surfistas. A partir do final dos anos de 1960 essa
resistência comportamental existe nas subculturas surfistas americanas, mas
paralela à crescente comercialização e exibição do desporto aliada aos meios de
comunicação de massa em expansão e da tentativa de absorção do surfe pelas
forças de mercado.
O fato é que ao contrário da previsão catastrófica de alguns pensadores
econômicos norte-americanos, após a Segunda Guerra Mundial os Estados
Unidos conheceram os "Anos Dourados" da economia (Hobsbawm : 1995, 253).
O reflexo desse desenvolvimento atuou, sobretudo da reconfiguração do tecido
social, reestruturando-o sob novas bases. Segundo o historiador Eric Hobsbawm
houve nas décadas de 1950/60 uma revolução social e cultural que proporcionou
aos jovens americanos um relativo e gradativo despreendimento comportamental
do conservadorismo familiar americano, criando uma subcultura própria ao recém
ampliado campo de comportamento publicamente aceitável (Hobsbawm : 1995,
327).
Ainda para Hobsbawm :
A cultura jovem tornou-se matriz da revolução cultural de um sentido mais amplo de uma revolução dos modos e costumes, nos meios de gozar o lazer e nas artes comerciais, que formavam cada vez mais a atmosfera respirada por homens e mulheres urbanos. Duas de suas características são portanto relevantes. Foi ao mesmo tempo informal e antinômica, sobretudo em questões de conduta pessoal.
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Todo mundo tinha de "estar na sua", com o mínimo de restrição externa, embora na prática a pressão dos pares e a moda impusessem tanta uniformidade quanto antes, pelo menos dentro dos grupos de pares e subculturas (Hobsbawm : 1995, 323)
É, portanto na década de 1960 que haverá uma mudança significativa dos
costumes através do aumento do número de pessoas que vão buscar na praia
símbolos materiais e culturais de identidade. Ou, na perspectiva de Norbert Elias,
contrabalançar as tensões que as pressões derivadas do stress inerente às
sociedades (capitalistas) proporcionam (Elias; Dunning : 1992, 73). Uma vez que,
segundo Hobsbawm, essa subcultura via na juventude o fim e não o estágio
preparatório para a vida adulta (Hobsbawm : 1995, 319), o esporte, prática
fundamentalmente juvenil, foi a atividade que mais caracterizou esse grupo social
(Hobsbawm : 1995, 319). Um processo que coincidia com a construção
estereotipada da imagem do surfista como um "ser bronzeado que não era muito
ligado ao trabalho", uma vez que esses jovens confrontavam em certa medida
seus interesses com os das tradicionais famílias capitalistas americanas. Mas que
de uma forma ou de outra, começavam a ser absorvidos pela economia e
instituições da sociedade a qual buscavam se distanciar culturalmente.
No que se refere à comercialização do modo de vida jovem
especificamente em relação ao estilo de vida surfista em construção, a produção
cinematográfica hollywoodiana, e de selos independentes, começaram a perceber
na década de 1960 o mercado consumidor de um grupo que cada vez mais tinha
consciência de si mesmo. A indústria cinematográfica começou a investir na
produção de filmes que destacavam a cultura dessa nova camada social
"marginalizada". Os enredos das produções de Hollywood vão se preocupar em
construir (ou destruir) a imagem do grupo surfista, bem como de "heróis" e ícones
da juventude cujo comportamento não se enquadra aos tradicionais padrões de
conduta americanos, dos quais se "distanciarão". Já as produções independentes,
normalmente realizadas pelos próprios surfistas, se preocuparão inicialmente em
registrar e assistir com os membros do grupo as manobras nas ondas (Kampion;
Brown : 1998). No entanto, quando os filmes surfistas anexaram às manobras nas
ondas uma estória que retratava um pouco do estilo de vida de seu grupo, a
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originalidade de um enredo caracteristicamente juvenil permitiu que produções
com baixo custo passassem a ser exibidas em rede nacional. Baseados no desejo
de liberdade, simbolicamente representada pelo nomadismo de viver viajando "em
busca da onda perfeita", dentre os diversos roteiros da década de 1960, sem
dúvida, o de maior expressão é Endless Summer de Bruce Brown, cujo enredo
retrava as aventuras de dois surfistas seguindo o verão e as ondas ao redor do
mundo.
Como nos conta Àrias:
O final dos anos 50 assistiria ao nascimento de outro importante movimento pertencente ao crescente cenário da indústria do surf: os filmes de surf. Esse capítulo da história pode ser dividido em dois atos completamente distintos. O primeiro deles diz respeito aos filmes produzidos pelos próprios surfistas. Tais películas retratavam com honestidade o seio dessa subcultura, e seus idealizadores foram também os diretores, os camera-makers, os patrocinadores (...) O segundo ato, por outro lado, diz respeito aos patéticos filmes hollywoodianos, que em sua maioria retratavam a cena surfística de forma caricaturizada e grotesca, e objetivavam a simples extração de lucros da juventude americana, recém-contaminada pelo vírus desse "novo" movimento (Àrias : 2002, cap. III, 18).
Dentro desse contexto é de extrema relevância, como nos relata
Hobsbawm, percebermos nas décadas de 1950/60 a origem e o desenvolvimento
da música destinada ao público jovem: o rock' n roll (Hobsbawm : 1995, 320). E,
mais especificamente, como assinala Kampion, a subdivisão desse estilo musical,
que atuará na construção de uma maior identificação dentro do grupo surfista,
além de distingui-lo de outros subgrupos jovens, através dos signos de sua
linguagem: a surf-music, representada principalmente pelos acordes da guitarra
de Dick Dale. Segundo Drew Kampion, se a espuma e os filmes de má qualidade
lançaram a moda do surf nos anos 60, o verdadeiro reforço foi o som brusco da
música de surf (Kampion; Brown : 1998).
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Devidamente identificada com o subgrupo surfista, a surfmusic foi o
primeiro subgênero do rock a dividir-se em instrumental16 e vocal17, e a ser
alimentada por um desporto.
Apesar de inicialmente a surf-music reunir somente os adeptos do surfe,
na década de 1960 ocorre a divulgação desse estilo musical pelas rádios
americanas, devidamente facilitada pela política pós-guerra americana de
alienação das massas jovens.
Segundo Kampion:
Um tributo ao poder desta música foi a forma como a cultura do surf montou a sua onda cada vez mais pela terra adentro. Em 1962 e 1963, nasceram bandas de surf por todo o país. Nas garagens e em todos os ginásios de liceus, os adolescentes formaram bandas e tocaram em bailes locais. O brilho eufórico da América do pós-guerra entrou no início dos anos 60 e, talvez pela última vez, a música pop teve uma qualidade naif que sugeria que a vida era óptima e que todos se divertiam. Mesmo que não hovesse nenhuma Surf City "com duas raparigas por rapaz", como cantavam os Beach Boys, não havia problema. A música do surf permitia às pessoas partilhar de modo vicarial do sonho da Califórnia (Kampion; Brown : 1998, 76)
Dentro desse processo de constituição, caracterização e divulgação da
subcultura jovem surfista, gradativamente absorvida pelo mercado americano,
surge também no final da década de 1950 a primeira revista especializada em
surfe: a Surfer Magazine. (Kampion; Brown : 1998) Pela primeira vez, fotos de
surfistas em ação eram registradas em ângulos cada vez mais impossíveis. O
surgimento das revistas contribuiu para o aumento da espetacularização do surfe,
uma vez que os surfistas faziam manobras cada vez mais audaciosas para
aparecer nas fotos e conquistar o status que essa atitude promovia.
Posteriormente, por ser mais "acessível", a revista Surfer, devidamente associada
às empresas de acessórios de surfe em crescimento, foi um dos principais
16 Nesse estilo de surfmusic a distorção da guitarra lembra o barulho do mar. (Alma Surf : n. 150, 2001) 17 A surfmusic vocal é cantada e constituída por letras que revelam os elementos simbólicos envolvidos na prática do surfe. Além disso procura descrever a sensação de se montar uma onda. (Alma Surf : n. 150, 2001)
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veículos de comunicação a divulgar e incentivar significativamente a prática do
surfe a um número cada vez maior de pessoas pelo mundo.
Como nos mostra Àrias:
Outro fato de extrema relevância ajudou a alavancar o incipiente profissionalismo: as revistas de surf. Em 1959, John Severson datilografava sua primeira cópia da revista Surfer. Em meados dos anos 70, já estabelecida no mercado, muda o nome para Surfing. Com o advento da mídia especializada, o esporte tinha condições de documentar sua história, proporcionando assim uma eficiente forma de divulgação às empresas do ramo (Àrias : 2002, cap. III, 08, 09).
Além disso, paralelo ao desenvolvimento dos meios de comunicação de
massa, a indústria do surfe, atenta ao autoreconhecimento de seu público alvo,
investiu na fabricação de trajes cujos modelos propiciavam às pessoas identificar-
se com determinado segmento da "sociedade jovem" a qual pertencia, e que se
estratificava internamente (surfistas, hippies, punks, etc.).
No que se refere ao desenvolvimento do vestuário surfista, apesar da
glorificação de personagens e pouca imparcialidade da obra de Marcelo Àrias ao
analisar o desenvolvimento da indústria de roupas de surfe18, chegando até
mesmo a colocar-se como membro anacrônico daquele grupo surfista americano
dos anos de 1960 (Àrias : 2002, cap. III), algumas de suas observações são
plausíveis de discussão se as extrairmos seu caráter propagandístico:
O meteórico crescimento da indústria das pranchas gerou o desenvolvimento de tendências paralelas, que vieram somar-se a este crescente mercado. A surfwear captou os padrões de comportamento de nossa tribo e traduziu-os em tecidos, usados em roupas e outras vestimentas. Símbolos representativos de nossa unidade comportamental. No início, as primeiras surfshops vendiam somente pranchas. Posteriormente, passaram a vender nossos uniformes, nossas marcas, que nos uniam enquanto tribo, nossas bermudas, nossas camisas, nossa identidade. Já falamos a respeito da Rochlen' Company, uma das primeiras fábricas de bermudas, e da mitológica Hang ten. Porém, esse fértil período também viu surgirem outros monstros sagrados de nossa indústria. Um jovem havaianos de nome Craig Sugihara veio das ilhas checar o desenvolvimento econômico da Califórnia e potencial de mercado da surfwear. No meio dos anos 60, Craig trabalhava como laminador para Charles Galanto e Greg Noll, em uma fábrica de Honolulu. Nesse período, juntamente com Tak Kawahara, um dos shapers de
18 Isso torna-se evidente quando percebemos que seu livro é patrocinado por uma revista especializada ligada as maiores empresas de roupas de surfe do Brasil e do mundo. (Àrias : 2002)
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Greg Noll, Craig fundou a Town e Country Surf Desings, hoje uma das maiores empresas de surfwear do mundo, gerada nos anos dourados (...) (Àrias : 2002, cap. III, 16).
Dentro do desenvolvimento mercadológico do surfe gradativamente
absorvido pela economia e instituições da democracia capitalista americana
através da mídia especializada, das músicas e da venda de produtos e acessórios
destinados à prática do desporto, para um grupo social jovem que na década de
1960/70 encontrava-se "plenamente caracterizado", ocorreu a profissionalização e
institucionalização do surfe, e sua concretização como desporto moderno. Nessa
perspectiva é interessante notarmos as mudanças sociais e técnicas que esse
processo acarretou.
Como vimos anteriormente, o surfe surgiu e se desenvolveu nos Estados
Unidos como um importante diferenciador social de populações jovens que
começavam na década de 1920/30 a despreender-se dos costumes das
tradicionais famílias americanas, "isolando-se" na praia das guerras e das
estagnações e avanços do mercado, passando na década de 1960 a integrar
esse sistema de valores macro-sociais e econômicos com o advento da
massificação do desporto.
No entanto, a crescente comercialização do desporto paralelo a
padronização que a profissionalização do surfe resultaria nas décadas de 1960/70
causou o acirramento de uma subdivisão interna dos grupos surfistas americanos:
entre os surfistas mais antigos, denominados Soulsurfers19; dos novatos; e
daqueles que começaram a “trabalhar sobre as ondas” através de
concursos entre clubes e de competições individuais que começaram a surgir
regionalmente e internacionalmente. Dentre os surfistas que começaram a se
profissionalizar merece destaque Phil Edwards, um dos primeiros a usar uma
prancha "de assinatura", representando nos campeonatos uma das primeiras
fábricas de pranchas a confeccioná-las com seu logotipo: A Hobie SurfBoards.
19 Grupo de surfistas que “ganhava a vida” fora da praia e que buscava no surfe a diversão, a identificação cultural (que se fortaleceu com a popularização do surfe), e pelo estilo de vida baseado na livre expressão associada à contracultura jovem nascente no Estados Unidos da década de 1960/70. (Kampion; Brown : 1998)
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O primeiro campeonato de surfe do mundo ocorreu na Austrália em 1964
realizado em grande parte por um editor do filme Endless Summer, anos após
gravar algumas cenas nas ondas australianas onde conheceu bons surfistas
como Midget Farrelly. O êxito desse campeonato, vencido por Farrelly, reuniu
surfistas de várias partes do mundo e possibilitou que o surfe se desenvolve
acentuadamente nessa região. A partir de então os campeonatos realizados nos
Estados Unidos, Austrália e Havaí começaram a ser dominados por surfistas
australianos que atuaram no desenvolvimento de novas maneiras de pegar onda.
Nat Young foi um dos principais protagonistas dessa mudança. (Kampion; Brown :
1998)
Essa mudança comportamental do surfista em cima da prancha pode ser
explicada pela padronização do surfe, a partir do advento dos campeonatos
mundiais, contrapondo-se ao caráter exibicionista em voga nos Estados Unidos da
década de 1960 quando o surfe passava do divertimento/lazer para a competição.
O fato é que as competições de surfe são baseadas (como na antiguidade) no
domínio e harmonia do surfista sobre a onda, e da sua habilidade em realizar
manobras que muitas vezes quase ultrapassam os limites da física. Uma maneira
de conquistar além da premiação um melhor status no grupo social ao qual
pertenciam.
No entanto a espetacularização do surfe na Califórnia fez com que a
atividade ficasse reduzida ao exibicionismo de loucuras sobre as pranchas. Na
Austrália, provavelmente o surgimento e organização de um campeonato paralelo
à padronização do desporto através de um conjunto de regras e de objetivos
acabaram por determinar ações técnicas diferentes dos surfistas americanos. O
essencial era o controle sobre a onda dentro daquilo que os australianos
chamaram de "envolvimento total". Não bastava mais ficar pendurado no nariz da
prancha por mais tempo20, era necessário aproveitar a onda em toda sua
extensão.
20 O chamado Noseriding era a manobra mais importante dos primeiros campeonatos de surfe dos anos 1960/70. Consistia em ficar com os dedos de ambos os pés por mais tempo na parte superior, ou “nariz da prancha”. (Àrias : 2002)
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Como veremos mais adiante, o processo de espetacularização do surfe
será expressivo, a partir dos anos 1980, num período em que a mídia, junto à
procura da "radicalidade" pelos surfistas, ligada ao status do exibicionismo e da
busca da excitação inerente a prática do surfe, proporcionarão mais uma
mudança expressiva nas pranchas. As transformações da história social do surfe
tornam-se mais perceptíveis nesse momento se levarmos novamente em conta a
transformação das pranchas. Como já foi visto a pontuação dos primeiros
campeonatos era baseada na aplicação do noserinding, no entanto o crescente
exibicionismo do desporto aliado a proliferação dos campeonatos promoveram,
em parte, o surgimento da prancha curta (shoartboard) em detrimento da longa
(longboard) e das manobras mais "radicais" que essa transformação
proporcionaria. Como conseqüência, esse fato acabou por distanciar mais os
Soulsurfers, que eram surfistas ligados ao estilo de vida dos primeiros grupos de
surfe americanos, que apesar de pertencer à classe média, "rebelavam-se" contra
seus valores, dos surfistas profissionais, que, em grande parte, se iniciaram no
surfe com a popularização do desporto. Dentre os Soulsurfers da califórnia o mais
expressivo contestador da "evolução do surfe" foi Mickey "Da cat" Dora. Como
nos conta ironicamente Drew Kampion:
Mickey Dora é o Muhammad Ali do surf. Um homem com todas as contradições - um murmurador de eloquência sublime; um artista machista (é pintor); um vadio da praia em estado natural, um afável frequentador da alta sociedade. A sua fúria eloquente contra as forças de crescimento e ganância era a de outros rebeldes notáveis. A única esperança, dizia, eram os "vagabundos" (Kampion; Brown : 1998, 84).
E mais adiante:
No (campeonato) Malibu Invitational Surf Classic de 1967, competindo pela última vez, Mickey Dora arrancou numa onda e fez um trim (ajustar a posição do corpo para que a prancha deslize o mais rapidamente possível) perfeito sobre a sua face verde azulada até, passar em frente aos juízes, se curvar, baixar os calções pretos e expor o rabo nu aos dignitários e espectadores presentes. Dora detestava concursos e o controle "fascista" que exerciam sobre os surfistas, as praias e as
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ondas. Chamava aos juízes dos concursos "anormais senis do surf" (Kampion; Brown : 1998, 113).
Dentro desse contexto de estratificação e diferenciação interna paralela a
massificação do desporto, é interessante notarmos também as primeiras
manifestações sérias de violência e demarcação de território entre "grupos" rivais
de surfe, visíveis, como nos aponta Kampion, já na década de 1950:
Embora (Mickey) Dora fosse o único surfista de Malibu a resistir à maré de gremmies (surfista novato), calouros e cowboys que invadiam o Jardim do Éden de Malibu, tornou-se o símbolo da resistência. O culto do "bairrismo", cujas raízes remontavam aos primeiros dias de Waikiki e à divisão da sua praia em territórios, tornou-se moda e floresceu em Malibu dentro de água. A uma área excelente da praia perto da extremidade do molhe dava-se o nome the pit (o buraco). Era aqui que estava a elite de Malibu e todos os gremmies do San Francisco Valley que para aqui vinham tinham de passar pela estreita abertura da vedação e pelo buraco a caminho da rebentação. Para muitos, era a primeira vez que se expunham ao tipo mais rude de insulto e abuso profano (...). A estrada afastava-se da praia em direção às ondas. Uma nova ordem social estava em formação (Kampion; Brown : 1998, 85).
A contradição de que fala Kampion sobre Dora está relacionada ao fato do
surfista mais contestador da indústria do surfe ter contribuído para seu
desenvolvimento uma vez que, como Phil Edwards, Dora "vendia" seu nome para
as pranchas. Apesar do posterior envolvimento do surfista no mercado do surfe
em formação é interessante notarmos sua previsão catastrófica que a associação
do surfe com a economia resultaria nos anos posteriores.
“Esses negociantes de carne de Wall Street desejam unificar o surf apenas para lhe extrair a riqueza. Neste regime ‘profissional’, o surfista será forçado a ficar totalmente subserviente aos poucos que estão em posição de controlo” (...) Por volta do fim dos anos 60, os surfistas “soul” orientados para a natureza defendiam uma política de crescimento lento que se opunha à intrusão de concursos nos seus locais de surf. Numa entrevista de 1969 para a revista Surfer, Mickey Dora, já a viver grande parte do ano no estrangeiro, às custas, segundo rumores, de fraudes e à beira da iminente expatriação disse: “A chegada do ‘profissionalismo’ ao desporto será o golpe final. O profissionalismo destruirá completamente qualquer controlo que o desportista tem atualmente sobre o
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desporto”. “O profissionalismo é negro!”, disse em coro com Mickey Dora, John Scott, de Santa Cruz, num artigo da Surfer. (Kampion; Brown : 1998, 144)
2.3- A “contracultura surfista” da década de 1970
Tendo em vista o retrocesso econômico das "décadas de crise" da
economia mundial a partir de 1970 (Hobsbawm : 1995), o auge do
desenvolvimento expressivo da identidade do subgrupo surfista da década de
1960 declina, afetado pela crescente popularização do desporto e pela
resistência de determinados grupos, resultando numa crise generalizada dos
campeonatos e da indústria do surfe. A resistência cultural ocorreu a partir da
associação dos Soulsurfers, ao ideário hippie contra a comercialização e
institucionalização do desporto.
Como nos relata Àrias:
A era pós-revolução minimodel (das pranchas pequenas) coincidiu com a era Vietnã e pós-Vietnã. Pela primeira vez o surf absorvia um movimento cultural mundial, o peace and love (paz e amor), e o reinterpretava conferindo-lhe um caráter híbrido, que misturava a pluralidade comportamental da juventude contemporânea com a singularidade característica dos movimentos que ocorreram no seio de nosso esporte. As grandes imagens psicodélicas apossaram-se do surf... Os cabelos foram ficando compridos à medida que as pranchas foram diminuindo de tamanho (Àrias : 2002, cap. III, 16, 17)
Dentro dessa perspectiva a cultura do surfe que originalmente possuía um
aspecto místico assimilou aos seus símbolos de identidade os cultos as religiões
orientais e o uso das drogas para "expandir o espírito". Dessa maneira, e de
volta, ao Havaí o surfe assumirá uma gradativa reestruturação técnica e social.
Ainda, como nos conta Àrias:
Todo esse movimento também se refletiu no recém-estabelecido profissionalismo. Particularmente no Havaí, Dick Brewer dava continuidade ao movimento iniciado na Austrália. Brewer era um engenheiro da aeronáutica que optou por virar a sua vida ao avesso, tornando-se guru dos surfistas havaianos. Reinterpretou a revolução das
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minimodels, adaptando-as às poderosas ondas havaianas. (...) Essas eram pranchas específicas para o surfe gigante (...) O nível do surf foi elevado a um novo patamar, e com isso novos nomes começaram a surgir, indicando uma visível divisão entre os surfistas. No futuro haveria os profissionais de ondas pequenas e os profissionais de ondas gigantes...(...) Dick Brewer também ficou conhecido por ser um franco defensor da utilização das drogas de expansão do espírito e da consciência. Nessa época as experimentações com vários tipos de drogas estava em voga. "Sexo, drogas e rock'n roll era a tônica da juventude mundial. "Sexo, drogas rock'n roll e surf" era o lema de muitos surfistas também (Àrias : 2002, cap. III, 17 18).
Segundo Drew Kampion, além de consumir drogas alguns surfistas
passaram a contrabandiá-la em pranchas de surfe ocas (Kampion; Brown : 1998,
129). Além disso, todo esse ambiente de experimentação, mutação cultural e
instabilidade, paralelo ao “engatinhamento” do profissionalismo dos atletas e da
organização, arrecadação e premiação dos campeonatos mundiais, resultou como
nos conta Àrias, no fracasso do campeonato mundial de 1970 realizado na
Austrália. Sobretudo, graças ao não comparecimento de surfistas que estavam
interessados na mera exibição do surfe financiada pelas revistas e empresas de
roupas (que passou a incentivar o surfe de ondas grandes), conflito entre
participantes, politiquices, mau comportamento e falta de ondas (Àrias : 2002, cap.
III, 18, 19):
O campeonato de 1970 prenunciava um período confuso, repleto de problemas com drogas, polícia, mortes, localismo selvagem no Havaí (incentivado, em parte, pelos grupos nativos surfistas e pela política de revitalização cultural do governo havaiano) e a voraz busca de uma nova identidade (...) O enorme salto evolutivo do surf foi demasiado intenso, tanto para o esporte quanto para alguns surfistas. O desequilíbrio produzido gerou muitas quedas, e a procura de um novo paradigma, mais centrado e planejado, seria a tônica dos próximos anos (Àrias : 2002, cap. III, 19). Dessa forma a falta de estrutura interna aliada ao descaso da contracultura
jovem iria caracterizar a prática do surfe dos anos 1970. Sua sobrevivência coletiva dependia da sua organização institucional e inserção no mercado. 2.4- Profissionalização, institucionalização e espetacularização do surfe nos anos 1980/90
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A história da cultura mundial do surfe dos anos de 1980 e 1990 é marcada
pela revitalização institucional e econômica do desporto. Esse processo de
transformação conceitual do surfe ocorreu a partir da mundialização de sua
prática, da sua efetiva institucionalização e profissionalização, por um novo e forte
impulso da indústria e da competitividade e pela conseqüente descaracterização
identitária dos anos anteriores, resultando numa expressiva ramificação interna do
subgrupo surfista a partir da década de 1980.
A segunda metade do século XX é marcada pela reestruturação técnica e
social do surfe uma vez que é absorvido “definitivamente” pelas instituições,
economia e cultura de massa da sociedade democrático-liberal ocidental. Como
nas décadas anteriores a prática do surfe nesse período é marcada pela evolução
técnica. No entanto sua singularidade encontra-se no aumento substantivo da
publicidade vinculada ao desporto, e, conseqüentemente, pelo seu
reconhecimento por um número maior de novos praticantes e de pessoas não tão
ligadas ao mundo do surfe, mas ao do comércio. Além disso, é notório
observarmos, paralelo a esse processo de expansão da indústria do surfe, o
aumento da violência decorrente da divisão interna (já iniciada em 1960) do grupo
surfista, entre os denominados Soulsurfers, os surfistas novatos de um lado e
profissionais de outro.
Apesar da pluralização e relativa indefinição identitária que assume no
início da segunda metade do século XX, como subgênero cultural absorvido pelo
ideário hippie, o surfe dos anos 1970 é marcado pela introspecção do surfista que,
influenciado pela filosofia oriental junto ao culto às drogas busca na sua prática a
“harmonização com a natureza e consigo mesmo”. Essa desaceleração do
processo de profissionalização e industrialização do surfe, ocorre junto à
estagnação da economia norte-americana, pós-Guerra do Vietnã.
Apesar da relativa paralização da cultura de massa dos anos 1970
influenciada pela crise econômica (Hobsbawm : 1995) o surfe desse período é
caracterizado por invenções técnicas que mais tarde contribuirão para a
revitalização da indústria do surfe e expansão de sua prática nas décadas
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posteriores. Apesar da profunda crise econômica internacional, outros fatores de
ordem interna ao subgrupo surfista contribuíram para que algumas invenções
isoladas, que em outras épocas facilmente impulsionariam a indústria do surfe,
não se desenvolvessem nos anos 1970.
A evolução técnica das pranchas de surfe do século XX sempre foi
marcada pela resistência dos surfistas mais ortodoxos. A partir da década de
1960 essa oposição acentua-se tendo em vista a crescente absorção do surfe
pela mídia e forças de mercado que culminariam, mais tarde, com o processo de
profissionalização e pelo aumento de surfistas promovido pela relativa
domesticação do desporto a partir do desenvolvimento tecnológico (Kampion;
Brown : 1998 , 125). Se levarmos novamente em consideração a evolução formal
das pranchas como documento histórico para apreender o impulso do mercado do
surfe nos anos 1980, três experiências merecem destaque.
A primeira delas é o leash21, introduzido em 1971 e rejeitado inicialmente
pelos surfistas soul (Kampion; Brown : 1998, 125), que não eram adeptos do surfe
de exibição, uma vez que essa invenção permitia uma maior espetacularização do
desporto aos surfistas que passaram a realizar manobras mais audaciosas sem o
risco de perder a prancha.
1971 também foi o ano que surgiu a prancha mais popular do século XX,
confeccionada pelo surfista/engenheiro Tom Morey : a Bodyboard (prancha de
corpo). Sobretudo pelo baixo custo proveniente do tamanho reduzido e da
ausência de quilhas, segundo Kampion, a Bodyboard foi outro marco nos anais da
democracia da água salgada, (...) demonstrou ser a prancha de surf do povo (...)
São baratas, portáteis (...) (Kampion; Brown : 1998, 127). No entanto, a
transformação do surfe num desporto cada vez mais competitivo a partir de 1980,
favorecendo a profissionalização das competições e dos surfistas, deve-se, no
que se refere a evolução técnica das pranchas, a invenção da prancha thruster de
três quilhas pelo australiano Simon Andersen.
Paralelo a essa metamorfose formal do surfe ocorre a sua
espetacularização, ou será o contrário? A absorção gradativa do surfe nos anos
21 Elástico que une o surfista à prancha.
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1980 pelos veículos de comunicação de massa como revistas e a televisão que
acabam por patrocinar caças a ondas grandes, os chamados surfaris22, e torneios
cada vez mais competitivos que acabam por construir uma aura de
sensacionalismo ao desporto.
Além disso a expansão do surfe a partir da proliferação dos meios de
comunicação de massa nos países de terceiro mundo nos anos 1980,
contraditoriamente começa a resgatar o surfe da descaracterização subcultural
que estava fadado nos anos 1960/70 pela massificação de sua prática e
influência do ideário hippie. No entanto esse processo ocorre através de uma
reestruturação sócio-econômica e cultural jamais vista na história mundial do
surfe, acompanhada da reconfiguração internacional de sua prática. Uma das
novidades será o surgimento dos primeiros ídolos internacionais, como o havaiano
Gerry Lopez, a estruturação do profissionalismo e dos campeonatos e o
envolvimento tardio de Hollywood.
No entanto, apesar da revitalização cultural inicial, a expansão da indústria
do surfe dos anos 1980/90 junto à proliferação dos campeonatos de uma maneira
jamais vista, mais uma vez acabou por intensificar uma nova descaracterização
dos elementos identitários do subgrupo surfista, restrito a uma parcela da
população, para a extensão do modo de vida surfista a jovens que se vestiam
como surfistas ouviam suas músicas mas nunca haviam pisado na areia, nem se
quer possuíam uma prancha, ou se possuíam nunca usavam. Decorrente de sua
emancipação comercial e publicitária o surfe desse período passou por uma
reestruturação técnica e institucional visivelmente conturbada quando observamos
sua recepção pelos surfistas remanescentes de 1970, influenciados pela já citada
visão profética de seus antecessores, que viram esse processo germinar
(Kampion; Brown : 1998, 144).
Junto ao avanço das competições tornava-se cada vez mais necessário a
sua organização e regulamentação uma vez que esses torneios começavam a ser
transmitidos pela Televisão (Kampion; Brown : 1998, 146). Baseados num modelo
22 Verdadeiras expedições, onde um grupo seleto de surfistas e fotógrafos viajam ao redor do mundo em busca de ondas perfeitas em verdadeiros paraísos ecológicos. (Kampion; Brown : 1998, 126) Sem dúvida os surfaris
contribuíram para, além da espetacularização do desporto, a sua mundialização na década de 1990.
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dirigente dos desportos europeus, como o tênis e o golfe, em 1980 empresários e
surfistas americanos buscaram reunir os surfistas competidores profissionais em
torno de uma federação, a International Professional Surfers Association (IPSA).
Segundo Kampion, o objetivo era incentivar a competitividade e o profissionalismo
dos atletas, a promoção do desporto e proteção dos interesses dos atletas frente
aos patrocinadores. Para o mercado relacionado ao surfe crescer, ao contrário
das décadas anteriores, era necessário estabilizar-se perante as crises cíclicas do
capitalismo. Dentro dessa perspectiva a divulgação do surfe deveria ocorrer junto
ao ordenamento e padronização de sua prática. Dessa forma as competições
internacionais passaram a congregar um conjunto de regras que atuariam numa
maior racionalização e “pacificação” do desporto. Além disso, frente à nova
massificação da prática do surfe no final do século XX, o amadorismo e a
profissionalização chega como uma maneira do surfista diferenciar-se
internamente num subgrupo social cada vez mais estratificado pelas interpéries do
mercado.
Apesar da fundamentação econômica e publicitária, a primeira tentativa de
oficialização do surfe não durou muito tempo. No entanto a idéia persistiu e o ex-
campeão de surfe de 1968, Fred Hemmings, levaria adiante o projeto de
constituição de uma associação profissional de surfe que limitasse o poder do
empresariado sobre os surfistas e campeonatos e promovesse uma melhor
organização através da intermediação dos surfistas na relação dos torneios com o
mercado. Mas, é claro, isso não ocorreu sem críticas. Segundo Kampion,
contrapondo um artigo na revista Surfer, de contestação de um Soulsurfer
chamado John Scott contra o profissionalismo, Hemmings escreveu o surfe
profissional (Kampion; Brown : 1998, 146).
Dentro desse clima contestatório o primeiro campeonato mundial
organizado por essa associação em 1972 foi dissolvido pela restrição de grupos
Soulsurfers aos profissionais que invadiam suas praias. Segundo Kampion, quatro
anos depois Hemmings fundaria a International Professional Surfers (IPS) para o
fim expresso de apresentar o desporto limpo e saudável do surfe a um público
importante (e consumidor) (Kampion; Brown : 1998, 153) . Mais uma vez as
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desavenças internas acabariam por desintegrar as aspirações unificadoras
profissionais americanas. Como nos conta Kampion, é só em 1982 que essa idéia
vai se concretizar definitivamente com a fundação da Association of Surfing
Professionals (ASP), devidamente apoiada pelos dólares de uma das maiores
empresas de equipamentos de surfe americanas. (Kampion; Brown : 1998, 153).
Além da interferência da indústria do surfe na profissionalização e
institucionalização do desporto, surgiram outras associações de surfistas nos anos
1980 que contribuíram para melhorar a imagem do surfista e efetivar a
oficialização do surfe. A participação dos surfistas na Surfrider Fundation, uma
organização que buscava proteger os oceanos através da conscientização
ambiental contra a poluição, nos mostra a nova posição do surfe nos anos 1980
bem como o seu grau de absorção à macro-sociedade. Além disso a bandeira
levantada pela Surfrider Fundation reuniu surfistas e não-surfistas às praias para
protestar e consumir os símbolos de identificação subcultural que congregavam os
protestantes a sua “causa”.
Dentro dessa conjectura o vestuário surfista, elemento identitário mais
massificado da cultura-surfe, se desenvolveu profundamente nos anos 1980/90
expandindo-se por todos os Estados Unidos (Kampion; Brown : 1998, 161).
Inicialmente associadas ao Havaí, as camisas havaianas apareceram nas revistas
e filmes americanos da década de 1940 e 50 estrategicamente vestidas por
celebridades como o presidente Harry Trumam e Elvis Presley, com o intuito
inicial de intensificar uma forte fonte de renda para o Estado norte americano: o
turismo no Havaí. Posteriormente as estampas floridas das camisas havaianas
passaram a associar-se, junto aos calções, através do aumento de novas
empresas e propagandas dos anos 1980, aos surfistas, e mais tarde aos jovens
de maneira geral.
No fim dos anos 80, o surf voltou para se vingar, explodindo de estilo por todos os Estados Unidos. De fato, foi a convergência de três desportos de prancha (o surf, o skate e a estrela ascendente do snowboard) que aumentou o impacto, criando o poderoso nexo de imagem radical, atitude despreocupada e arte de rua contemporânea que apanhou a juventude da América e a lançou para a praia com a mudança dos ventos da moda. Enriquecidas, as empresas de vestuário de surf, mais consolidadas, mostravam-se arrogantes. “Senão faz surf, não comece”, sugeria imperiosamente a primeira página de um anúncio da Gotcha. “Se faz surf,
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nunca pare”, aconselhava a segunda. “Ataque a onda!”, “Surfe até doer!”, “Choque Futuro!”, gritavam os anúncios. De repente, um ator da Califórnia estava na Casa Branca e todos queriam ser uns surfistas “vagabundos”. Embora as empresas de renome de vestuário de surf que tinham sobrevivido aos anos 70 e 80 se preparassem para os lucros há muito esperados, uma avalanche de novas empresas entrou na luta, tentando cada uma delas ultrapassar as outras com expressões, aparências e poses “autênticas”. As revistas de surf aumentaram de tamanho para mais de 200 páginas por número (de um padrão de 10 nos anos 70 e de uma média um pouco acima disso nos anos 80). As principais marcas de vestuário de surf foram apanhadas pelas grandes casas comerciais e o produto entrou no mercado em massa como nunca acontecera antes. (Kampion; Brown : 1998, 161)
Em 1990 a estréia de um novo filme, Surfers: The Movie, contribuiria para
impulsionar o culto ao surfe. No entanto a excessiva popularização da subcultura
surfista em grande escala acabaria por comercializá-la ao extremo,
descaracterizando-a novamente frente aos interesses de um mercado cada vez
mais ampliado por novas empresas. Segundo Kampion, as receitas que entravam
para o desporto através das empresas de vestuário significavam mais dinheiro
para os surfistas patrocinados (Kampion; Brown : 1998, 164), atuando na
construção de verdadeiras “marcas ambulantes” como o surfista símbolo do surfe
competitivo e agressivo dos anos 1990: o americano Kelly Slater.
O surf mudou quando o dinheiro se tornou demasiado para resistir. Começou por ser pouco – (28 dólares pela “melhor onda” no Bells Beach Classic de 62); e depois foi aumentando cada vez mais – 2000 dólares pelo primeiro lugar de Terry Jones no segundo concurso de noserinding de Moorey em 66; 330 dólares pela vitória de Corky Carroll no primeiro Smirnoff Pro-Am em Santa Cruz em 1968; 2000 dólares pelo primeiro lugar de Nat Young no Makaha Smirnoff em 70; 3000 dólares pela vitória de Michel Peterson no Coke Surfabout de 74, em Sidney; um prêmio total de 1000 dólares para o primeiro Pipeline Masters de 71; e 130 000 dólares para o Masters de 1996, com 20000 dólares para o vencedor, Kelly Slater (Kampion; Brown : 1998, 144, 145)
Nesse período as lojas de surf também expandiram seus faturamentos com
a invenção de acessórios, e no incentivo à popularização do surfe (Kampion;
Brown : 1998, 167). Ainda mais com o lançamento da segunda parte do filme
Endless Summer de Bruce Brown e com a participação do surfista do momento,
Kelly Slater (consagrado tetracampeão mundial de surfe), no seriado televisivo
americano Bay Watch. Nos anos de 1990, o departamento de marketing das
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revistas e empresas de surfe investiram na espetacularização do desporto como
nunca havia se visto antes, explorando o exotismo característico do surfe para
alavancar as vendas (Kampion; Brown : 1998, 177). Quanto maior perigo o surfe
representasse maior seria o espetáculo, status para o surfista e movimentação de
capital.
Dentro do contexto de evolução técnica e instrumental do surfe, é notório
observarmos a transformação da linguagem surfista americana e australiana,
profundamente alterada nas últimas décadas do século XX. Como nos conta
Kampion:
Uma subcultura define-se, em parte, pela sua linguagem. No início, um “gremmie” era um “gremlin”, um perturbador prejudicial e não um verdadeiro surfista. Mas depois tornou-se um termo quase carinhoso e, quando a influência australiana se espalhou em Torquay e Sidney, deixaram subitamente de ser gremmies e passaram a “grommets”. É uma linguagem que se está sempre a alargar por, pelo menos, três razões: para descrever novo território, para a diferenciação subtribal e devido a influência exterior. Os surfistas falam hoje (1994) de “ramps”, “ollies”, “shack time”, “schralping”, “barneys” e todo um léxico de termos gerais e específicos mais ou menos significativos consoante a nossa proximidade em relação à subcultura ou à sub-subcultura. Mas a língua inclui a experiência – os pequenos atos e as grandes jogadas, os trajos, as pranchas e a arte. A linguagem inclui as imagens de um panteão de fotógrafos, de Blake a Ball, passando por Brown, Maki, Grannis, Stoner, Brewer, Wilkings, Divine, e muitos mais a trabalhar todos os dias, construindo um dicionário do vocabulário visível do surf. (...) A linguagem inclui também todos os locais, de Waikiki a Malibu, de G-Land a J-Bay, de Gilgo Beach a Johanna. E os veículos: Olo e Alaia, tábua e caixa de charutos, Hot Curl e Malibu Chip, produção em massa e por encomenda, elephant gun e noserider, fundo em V e minigun, quilha dupla e thruster, shortboard e longboard. (Kampion, Brown : 1998, 180).
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E mais adiante no que se refere à evolução técnica, Kampion nos relata
que, o strapsurfing23 é um dos extremos mais recentes do desporto. Houve os
noserides de 10 segundos de David Nuuhiwa nos anos 60; os tubos de cinco
segundos de Shaun Thomson e Rabbit, de Davey Miller e Lopez nos anos 70; as
ondas de 7 metros e meio de Waimea, Makaha e Third Reef (...) (Kampion; Brown
: 1998, 191). O surgimento dessas várias modalidades incentivadas, em parte,
pela mídia e pela indústria do surfe, acabaram por ramificar ainda mais o
subgrupo surfista investindo-lhe novos símbolos e padrões de comportamento.
Existem os surfistas de Town-in, Kitsurf (surfe auxiliado por uma grande “pipa”), os
amadores, os profissionais etc. Além disso, a influência da televisão nos
campeonatos de surfe acabou por alterar a estrutura dos eventos. Um exemplo
disso é que nos campeonatos Town-in as ondas começaram a ser medidas pela
frente, uma vez que esse tipo de critério possibilitou apreender o tamanho exato
da onda, resultando num maior sensacionalismo das competições para os
espectadores.
No que se refere à evolução técnica e instrumental dos anos 1990 aliada a
essa ramificação societária do grupo surfista, como explicar a volta das pranchas
longas (longboard) famosas na primeira metade do século XX?
Sem nos atermos muito a essa indagação, penso que a indústria descobriu
na fabricação de pranchas longas24, uma maneira de atrair um nicho de
23 Surfe de ondas grandes, também conhecido como Tonw-in. Nos campeonatos dessa modalidade os surfistas são levados por jet-skis até ondas que chegam a altura de um prédio de oito andares. (Revista Fluir : 2002) 24 Essas pranchas permitem um surfe mais fácil com menos movimentos e “radicalidade”.
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mercado25 que se distanciava do surfe. Esse processo acabou por alargar o
número de consumidores, a partir da remodelação conceitual do surfe, através da
mídia especializada e do marketing empresarial a partir de um ideário que apesar
de não extinguir o caráter agressivo e jovial das pranchas pequenas, acrescentava
“novos” pranchões às lojas, para um “novo” grupo dentro do subgrupo já
constituído. A credibilidade dessa hipótese sustentasse atualmente na
proliferação dos encontros, competitivos ou não, de surfistas antigos
denominados Surf Legends realizados e financiados por empresas de roupas de
surfe.
Em contrapartida, saindo do reducionismo de se explicar um fenômeno
social a partir das implicações inerentes a atuação das forças de mercado,
poderíamos sugerir que a volta do longboard representa a volta da “verdadeira”
essência da prática primitiva do surfe pelo homem: a simples diversão ou
harmonização introspectiva com a natureza, em prol da cultura da exibição e do
consumismo de um subgênero social que se desgastou, ao descaracterizar-se
constantemente, e dissolver-se na massificação e na artificialidade de suas auto-
representações materiais.
25 Os surfistas mais antigos que não se adaptaram física e até ideologicamente as pranchas curtas, ou simplesmente “pessoas de meia idade” não tão ligadas a esportes caracteristicamente jovens.
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CAPÍTULO III
3- SOCIOGÊNESE DO SURFE NO BRASIL
3.1- O esporte no Brasil.
Antes de nos atermos à introdução da prática do surfe nas praias
brasileiras, e de seu posterior desenvolvimento, como uma subdivisão
denominada “radical” do desporto moderno, devemos apreender, de um modo
geral, a gênese das práticas esportivas na sociedade brasileira que datam do final
do século XIX e início do XX.
Para o sociólogo Ricardo Figueiredo Lucena, a esportivização dos
passatempos ocorreu no Brasil (em especial no Rio de Janeiro) como um dos
agentes disciplinadores dos hábitos de uma sociedade em transformação, que se
redefinia a partir de um modo de produção agrário, rumo a modernização de suas
estruturas político-econômicas, através da importação das instituições
democrático-liberais européias. (Lucena : 2001)
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Da mesma forma, para Nicolau Sevcenko, o Brasil do final do século XIX
passava por profundas transformações em sua sociedade. Com o fim do período
Imperial, um liberalismo econômico crescente, intercalado por momentos de crise
nos diversos setores da sociedade, começou a ditar a necessidade de seu
reordenamento. A internacionalização do capital provocada pela expansão dos
mercados europeus acabou por pressionar a economia periférica do império
brasileiro recém industrializado, afetando seu modo de produção essencialmente
escravo e exigindo sua reorganização sob uma forma cada vez mais mecanizada
e assalariada que atendesse a dinâmica competitiva da economia-mundo e de
suas instituições democráticas. (Sevcenko : 1998)
A pressão do mercado externo aliado ao fim da escravidão implicou no
aumento de uma mão-de-obra livre, resultante da imigração de um contingente
europeu de trabalhadores, bem como a formação de uma indústria nacional que
atendesse a maior demanda na produção de bens de consumo. Para abastecer o
mercado internacional e para a população assalariada, que começava a impor
pela sua presença, um espaço cada vez mais urbano. (Sevcenko : 1998)
Sobrepondo-se, assim, ao mundo rural, a formação das cidades inaugurou
relações humanas mais estreitas e interdependentes. Segundo Nicolau Sevcenko
e Ricardo Lucena, a inserção do esporte no ambiente urbano está
intrinsecamente ligada, do ponto de vista das novas elites de comerciantes, a uma
necessária reorganização do espaço de convivência, uma vez que essa instituição
passou a atuar no reagrupamento das relações sociais. Nessa redefinição das
relações de poder e domínio, o esporte, além de disciplinar e organizar os
costumes de uma elite dirigente em construção, promoveu a sua diferenciação
social, através do status que a participação nos eventos esportivos passou a
proporcionar nesse momento, em relação a outros grupos sociais formados por
homens livres localizados no mesmo ambiente urbano.
Além do esporte os monumentos públicos, arquitetura e instituições
européias vão atuar, segundo Sevcenko, através de uma simbologia de distinção
coletiva no imaginário popular, uma vez que a base legítima do poder
governamental consiste na substituição empreendida pelo Estado dos símbolos
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específicos e arcaicos de poder por outros universais e modernos. (Sevcenko :
1992, 98, 99) Esse processo viabilizaria dois fatores cruciais na construção do
Estado brasileiro empreendido pelas elites dominantes: a identidade nacional e
monopólio da violência.
Assim, o esporte como instrumento civilizador elitizado, além de atuar na
divisão das funções humanas possibilitou a partir de uma convivência mais
regulada, regrar diversas emoções existentes no seio dessa sociedade. No
entanto, longe de eliminar a tensão nascida do estreitamento das relações sociais
e de trabalho, de certa forma, o esporte contribuiu para cultivá-la num ambiente
de maior competitividade econômica. Dessa maneira, devemos entender a
gênese do esporte no Brasil como a inserção de um conjunto de signos e regras
que contém no “jogo” a representação da tensão do processo civilizador em
construção. Uma simbologia competitiva que passa a fundamentar a constituição
do imaginário de uma sociedade cada vez mais baseada numa economia de livre
comércio.
Entretanto a durabilidade desse distanciamento entre a elite e as camadas
mais baixas da população tornou-se instável na visão de Lucena, uma vez que o
Estado moderno que se formava no Brasil desse período, era caracterizado por
“doses homeopáticas” de democracia e individualização. Assim, posteriormente,
os outsiders começam a conquistar seu status na prática dos esportes, passando
da arquibancada para o campo. Esse movimento culminaria com a transição do
esporte como lazer para sua institucionalização no decorrer do século XX, uma
vez que, paralelo à constituição do meio urbano e da crescente expansão do
modo de vida europeu, a prática esportiva seria o palco de novas configurações
de relações humanas cada vez mais complexas e interdependentes.
Nessa perspectiva, ao analisar a urbanização de São Paulo da década de
1920, através da implantação de um ideário de modernização europeu, Nicolau
Sevcenko nos mostra que apesar desse processo ser realizado aos “pedaços”,
materialmente representado no contraste entre a arquitetura moderna em
contraste com uma tradição arcaica, o autor nota que essa década foi marcada
por uma certa democratização do espaço urbano, principalmente no que se refere
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ao acesso à cultura de massa e lazer. A indústria cinematográfica, em
prosperidade galopante, sobretudo os estúdios norte-americanos, beneficiários
exclusivos dos transtornos que a guerra impusera aos concorrentes europeus,
supera os teatros e adquire um papel proeminente como forma popular de lazer
nas grandes cidades. (Sevcenko : 1992)
No capítulo sobre a sociogênese do esporte no Brasil, Ricardo Lucena nos
apresenta no final do século XIX o turfe, como a primeira grande prática esportiva
brasileira. Uma vez que era representada, sobretudo, pelo cavalo, o símbolo de
poder dos Barões e do colonizador português do passado, num momento de
transição dos signos de poder de uma sociedade agrária para uma industrial. No
que se refere aos esportes aquáticos o autor destaca o remo no início do século
XX, salientando que no remo, “um novo grupo de homens participa de sua prática.
Talvez os filhos desses barões buscassem agora se distinguir dos pais pelos
próprios passatempos, muito embora esses barões estivessem presentes como
administradores” (Lucena : 2001, 117,118). Mais adiante, notaremos que esse
mesmo aspecto da constituição social do remo, refletir-se-á na introdução do surfe
no Brasil. Ambos esportes realizados essencialmente na praia, por grupos juvenis.
É portanto já nesse momento, que a praia torna-se palco de configurações sociais
proporcionadas pela prática e apreciação de competições aquáticas:
O remo era assim um esporte útil porque, certamente, congregava uma parcela da população cada vez mais ativa e ansiosa pela ocupação do espaço social e político: os jovens, que, na sociedade patriarcal, mantiveram-se à sombra dos mais velhos como forma de angariar poder e prestígio. Primeiro dentro de casa, depois, por decorrência, entre a criadagem e, por fim, nos poderes públicos constituídos. Agora ascendiam a condição de participantes não apenas como mera sombra do que eram seus pais, tios e avôs, mas como jovens que começavam a se libertar do poder quase absoluto e tirânico dos homens. (Lucena : 2000, 120)
No que se refere às praias brasileiras no início do século XX o autor nos
relata que As regatas eram, assim, a conquista definitiva de um espaço urbano
quase que totalmente relegado ao desprezo: a praia. Antes evitada e desprezada,
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lugar onde se despejavam as imundices de cidade, o mar e a praia agora
compunham espaços comuns da vida social. (Lucena : 2001, 124)
3.2- Os primeiros surfistas do Brasil.
Dentro dessa nova perspectiva de relacionamento do brasileiro com o mar,
na década de 1930 surgem os primeiros surfistas do Brasil. Apesar da presente
pesquisa preocupar-se em não enaltecer “personagens fundadores” da história do
surfe mundial e brasileira, alguns nomes merecem destaque no que se refere aos
primeiros “passos” dos brasileiros sobre as águas. Sempre tendo em vista os
aspectos econômicos e culturais externos que possibilitaram a introdução e,
posterior desenvolvimento dessa prática no Brasil.
Na segunda metade da década de 1930 os primeiros surfistas do Brasil
arriscaram-se nas ondas do litoral de São Paulo em cima de “tábuas de madeira”.
Apesar da pouca importância, atualmente existem duas versões sobre “quem foi o
primeiro” surfista brasileiro. A primeira aponta em 1938 Osmar Gonçalves como
um dos primeiros a confeccionar uma “prancha oca havaiana” junto com outros
dois amigos, a partir do projeto de uma revista americana chamada “Popular
Mechanics”. Os rapazes teriam adquirido essa revista com o pai de Osmar, após
uma de suas viagens ao exterior.
Recentemente um americano naturalizado brasileiro de 85 anos, chamado
Thomas Rittscher, declarou em uma entrevista, surfar no Brasil desde 1936, além
de afirmar ser o dono da revista que teria proporcionado o surfe a Osmar.
Deixando de lado os mitos a cerca da introdução do surfe brasileiro, devemos nos
ater aos reais propulsores da sóciogênese e desenvolvimento dessa atividade no
Brasil. Reflexo dos ditames do expansionismo cultural e econômico norte-
americano, de uma classe média com crescente poder aquisitivo e da formação
de uma subcultura jovem cada vez mais auto-consciente.
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A crise econômica mundial dos anos posteriores a 1929 somados a
gradativa centralização do poder na sociedade brasileira e de uma herança
esportiva aquática que priorizava o status das corridas de regata, fez com que o
surfe não se desenvolvesse como uma subcultura identitária da juventude
brasileira do início do século XX.
Apesar da existência de alguns veículos de comunicação de massa, como
rádio e cinema, a cultura no Brasil da década de 1930 é predominantemente
consumida pelas elites. A partir da década de 1940 o Estado Novo de Getúlio
Vargas (1937-45) vai investir no desenvolvimento do capitalismo brasileiro a partir
de transformações mais profundas ligadas ao imaginário político e social. No
entanto, para uma cultura se impor como legítima, precisava passar de uma
cultura de elite para uma de massa. (Ortiz : 1988)
Esse processo ocorreu através do investimento estatal numa indústria
cultural direcionada a difundir uma nova idéia de sociedade. (Ortiz : 1988, 52) A
indústria cultural ditatorial objetivava, a partir da despolitização dos conteúdos
expostos pelos veículos de comunicação, instaurar uma reforma política e cultural
na sociedade brasileira. Através de uma censura, que ora negava os conteúdos
culturais, ora buscava através deles disciplinar as ações dos indivíduos. (Ortiz :
1988) Além disso, como nos mostra Renato Ortiz, Não se pode esquecer que os
anos 40 marcam uma mudança na orientação dos modelos estrangeiros entre
nós. Os padrões europeus vão ceder lugar aos valores americanos, transmitidos
pela publicidade, cinema e pelos livros em língua inglesa que começam a superar
em número as publicações de origem francesa. (Ortiz : 1988, 71)
Assim é só no Rio de Janeiro dos anos 1950 que o Brasil vai conhecer seu
primeiro grupo de surfistas. Esse movimento ocorreu a partir de uma mudança
comportamental resultante, em parte, do avanço da economia e indústria cultural
brasileira ligada à expansão da hegemonia cultural norte-americana. Esse vínculo
entre a industrialização e modernização sócio-cultural nacional baseada no capital
estrangeiro tornou-se evidente na política desenvolvimentista adotada por
Juscelino Kubitscheck., visando a integração identitária brasileira. Essa transição
ideológica culminou com a reestruturação do imaginário jovem do modo de
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apreender a vida e as relações sociais. Principalmente com os pais. Como
veremos adiante, esse processo acabou por encontrar no esporte, na música e no
meio acadêmico, símbolos de identificação e contestação de uma subcultura
jovem em formação.
Dentro dessa perspectiva, a prática não-convencional e pouco acessível
economicamente do surfe, do mergulho e da pesca submarina, atuarão na
constituição de grupos jovens que buscarão nessas atividades se diferenciar do
restante da sociedade, em especial do determinismo de seus pais. Paulo
Preguiça, Irencyr Brandão e o mergulhador descendente de italianos Arduíno
Colasanti foram os indivíduos que mais se destacaram nos primeiros grupos
surfistas cariocas, num momento em que o surfe começava a assumir o valor
social que era agregado ao mergulho e a caça submarina.
As primeiras pranchas brasileiras eram pesadas tábuas de madeira, que
logo começaram a ser construídas em maior quantidade a partir de materiais com
um mínimo de qualidade. A primeira fábrica artesanal de pranchas do Brasil foi
fundada por Irencyr e localizava-se em Jacarepaguá. Mas como se deu o
processo de introdução e desenvolvimento efetivo do surfe no Rio de Janeiro via
indústria cultural? Ou, em outras palavras, como se deu a massificação de uma
prática essencialmente ligada ao lazer e à diferenciação social de grupos
médios/altos cariocas?
3.3- A introdução do surfe no Brasil : 1950 - 1970.
O período compreendido entre as décadas de 1950 e 1970 caracterizado
pelos “anos dourados” da economia americana pós Segunda Guerra Mundial, vai
ser marcado pelo crescimento econômico brasileiro26, apesar de eventuais crises
cíclicas inerentes ao desenvolvimento capitalista. Esse processo resultou na
transformação das estruturas produtivas, na conseqüente reestruturação social e
na progressiva comercialização da cultura.
26 Apesar de realizar-se de forma mais modesta que o caso norte-americano.
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71
Apesar da cultura popular de massa desenvolver-se no Brasil, como vimos
anteriormente, desde a década de 1940, é só nos anos 1960/70 que existe um
significativo aumento da dimensão do mercado de bens simbólicos. Possibilitando
que as produções culturais, ainda restritas na década de 1950, atingissem uma
massa cada vez mais diferenciada de consumidores. (Ortiz : 1988)
Esse contexto de transformação sócio-econômica possibilitou o aumento
do poder aquisitivo de um número maior de pessoas, paralela ao aumento da
demanda por atividades de lazer e cultura, do aumento da participação da mídia
e, sobretudo, da mudança comportamental dos indivíduos. Assim, é através da
introjeção de valores individualistas e consumistas que se deu à introdução e
desenvolvimento do surfe no Brasil. Nesse período o esporte passou cada vez
mais a deixar de ser um privilégio das elites e de possuir um caráter de
diferenciação social, para transformar-se numa cultura de massa. No entanto
devemos nos ater as especificidades primordiais desse processo.
Essencialmente uma cidade portuária, o Rio de Janeiro da década de
1930/40 era constantemente tomada por navios estrangeiros comerciais e
militares americanos, onde os jovens marinheiros surfavam rusticamente (em
colchões de ar) nas ondas cariocas (Trip : n. 90, 2001). Posteriormente na década
de 1950 o Rio de Janeiro tornava-se cada vez mais “o cartão postal do Brasil”
num momento em que o turismo tomou um impulso, com a relativa estabilidade do
capitalismo internacional pós-Segunda Guerra. Isso ocorreu na mesma época em
que o imaginário jovem americano ligado ao ideário do “sonho californiano”
começava a ser explorado pelos meios de comunicação americanos.
Dentro dessa perspectiva, o Rio de Janeiro como principal via brasileira de
entrada da cultura de massa estrangeira, possibilitou a nascente subcultura jovem
carioca o acesso a uma série de elementos simbólicos do ideário “contracultural”
americano. De maneira geral, esse processo ocorreu com a proliferação dos
aparelhos de televisão, rádios e revistas. No que se refere aos grupos jovens
surfistas, o crescente número de turistas ao longo da década de 1950/60, que
começaram a invadir as praias cariocas, acabaram por influenciar os grupos
jovens brasileiros. Vários surfistas estrangeiros, como o australiano Peter Troy,
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aportaram nas praias cariocas, ajudando a divulgar o surfe individualmente,
incentivando a sua prática em 1964, aos pequenos grupos que começavam a se
formar (Fluir : n. 200, 2002). Assim, inicialmente a introdução do surfe no Brasil
ocorreu de forma indireta. Como nos conta Marcello Àrias:
Pelo fato do Rio de Janeiro ser um dos pontos turísticos mais visitados da terra, foi natural a chegada de pranchas de surf estrangeiras, trazidas pelos pilotos das empresas aéreas comerciais. Isso em pouco tempo gerou um novo impulso no surf brasileiro culminando com a organização da Federação Carioca de surf, em 15 de junho de 1965. A entidade foi idealizada por quatro pessoas (...), e apesar de seu caráter extra-oficial, devido ao baixo número de atletas filiados, teve sua cota de importância em nossa história, uma vez que através dela foi idealizado o primeiro campeonato de surf do Brasil (Àrias : 2002, 06, cap. III).
A passagem de Peter Troy pelo Brasil é apontada pelo livro “A História do
Surfe no Brasil” publicado pela revista “Fluir”, como o fato que impulsionou o
desenvolvimento do surfe brasileiro na década de 1960. Em 2002 Peter retornou
ao Brasil trazendo na bagagem o diário que o acompanhou em suas viagens ao
redor do mundo. A revista “Fluir” imediatamente publicou trechos de suas
impressões sobre a passagem pelo Brasil. Através desses trechos podemos
visualizar o contexto social e técnico do surfe brasileiro na metade dos anos 1960.
Em 1964, a prática do surf no litoral brasileiro estava restrita a um pequeno grupo
de mergulhadores cariocas que pegavam onda de pé-de-pato sobre rudimentares
pranchas de compensado naval, as “madeirites”, sem ter noção do que era
manobrar uma prancha – eles apenas cortavam a parede (da onda) em linha reta.
(Fluir : n. 200, 2002)
Peter Troy foi um dos primeiros surfistas a viajar atrás de ondas pelo
mundo. Ao passar pelo Rio de Janeiro em 1964, ele influenciou o
desenvolvimento técnico e instrumental do desporto, auxiliando Irencyr Brandão
na construção de pranchas e realizando manobras nas ondas que logo chamaram
a atenção da mídia e do crescente número de espectadores que se aglomeravam
nas praias do Arpoador, em busca do status que esse local começava a
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proporcionar aos jovens cariocas. Em trecho de seu diário podemos notar as suas
observações sobre o surfe brasileiro da década de 1960:
“Queridos pai e mãe, com o término dos passeios a lugares turísticos, e sendo o próximo dia domingo, pensei que um dia relaxando na praia de Copacabana vendo o talento local e dando um mergulho ou outro entre banhos de sol, seria uma boa maneira de passar o dia. Até agora eu não havia percebido que havia ondas, ou que o ato de surfar fosse conhecido aqui, e enquanto eu estava cruzando a rua a caminho da praia, fui de certa maneira surpreendido ao ver dois brasileiros jovens lá na praia com pranchas de surf (estas pranchas eram mais ou menos versões estendidas das nossas ‘pranchas de passar roupa’, que os ‘caipiras’ usam com o bico virado para cima, com a exceção que elas tem 9 pés, uma quilha e também algum volume e definição de shape). Então eu me aproximei desses rapazes com a idéia de emprestar uma dessas pranchas e, após uma conversação dificultosa, eles conseguiram me explicar que aqui nessa parte da praia, eles não podiam surfar (devido as condições do mar, ondas grandes e longas, e de pranchas que inviabilizavam manobras) (...) Nós então caminhamos até o final da praia, entramos por algumas ruas centrais (...) e ao redor de uma esquina podia ser avistada uma ponta de pedra acomodada ao final de uma longa praia com bastante atividade – carros, garotos e garotas, dúzias de pranchas de surf, barracas de cachorro-quente, pescadores nas pedras, barracas de Coca-Cola, algodão-doce, guardas de praia, ambulâncias, carrões, patrulha marítima e surf.” (Fluir: n. 200, 2002)
Várias informações são importantes nessa passagem. Além de
percebermos a existência de um grupo surfista brasileiro, ele é acompanhado pelo
apoio logístico do governo carioca, bem como da expansão do modo de vida
consumista norte-americano, num período em que o estilo de vida surfista
californiano é absorvido pela comunicação de massa.
Mais adiante a matéria revela que, nos dias seguintes Peter iria repassar
sua tecnologia de shaper para que Irencyr e outros surfistas pudessem fabricar as
primeiras pranchas de fibra de vidro feitas no Brasil, permitindo a evolução do
esporte a um novo patamar de performance e aceitação. (Fluir : n. 200, 2002)
Além disso, as manobras de Peter e seu estilo de vida foram intensamente
divulgados pelos veículos de comunicação brasileiros, e por órgãos do governo
carioca, incentivando a prática do surfe, através de sua exibição, a um número
maior de pessoas.
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Toda a fraternidade esportiva do Rio de Janeiro me festejou com honras, convites, hospitalidade, aceitação (...). Fui entrevistado por revistas, jornais; filmado para a televisão e para noticiários de cinema; solicitado para autógrafos, fotos, etc.; apresentado a personalidades e requisitado para opinar em técnicas de salvamento; atraí multidões de espectadores para a praia, crianças, pais, avós, etc., e me imploraram para dar uma exibição de surf, e em geral fui premiado com o reconhecimento (...) (Fluir : n. 200, 2002)
Em suma, na década de 1950/60 começou a formar-se no Brasil uma
subcultura jovem que ao buscar diferenciar-se do conservadorismo de suas
famílias, constituiu um subgrupo que tinha no esporte e em outras formas de
expressão e contestação social, símbolos de identificação cultural. Assim, nesse
momento a cultura juvenil que passou a desenvolver-se nesse período não
possuía muita diferenciação interna.
Posteriormente, na década de 1960/70, com o advento da forte
centralização administrativa das estruturas sócio-políticas brasileiras
(principalmente após 1964), os grupos surfistas buscaram distinguir-se de seus
pais e dos determinismos da máquina estatal. Nesse momento a prática esportiva
passou a refletir além de aspirações sociais, contestações políticas. Dessa forma,
o desenvolvimento inicial desse grupo social brasileiro é caracterizado
historicamente por promover, através de um estilo de vida baseado num ideário
de liberdade e “desapego a bens materiais”, além de uma resistência
comportamental, uma oposição político-ideológica, como era o caso da maioria
dos jovens desse período. (Napolitano : 2002)
Ao estudar os elementos de resistência cultural e política dos jovens
brasileiros durante o Regime Militar, Marcos Napolitano nos mostra como a
Doutrina de Segurança Nacional influenciou a resignificação da simbologia de
protesto. A partir do momento que os meios e espaços convencionais de
expressão política (livros, praças etc) eram refreados pela ação dos órgãos
ditatoriais, a arte, a música e locais não-tradicionais de ação política passaram a
refletir as aspirações políticas de grande parte da juventude brasileira da década
de 1960/70. (Napolitano : 2002)
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Apesar de não possuir um engajamento político-ideológico forte como a
maioria dos jovens universitários do Brasil da década de 1970 (Foracchi : 1977),
o subgrupo surfista desse período assumia, assim, uma posição “contracultural”
confundindo-se com artistas, ativistas e outros revolucionários. Nesse período a
praia (em especial as cariocas) era o local onde essa configuração social juvenil
reunia-se, representando o lugar simbólico da liberdade de expressão que não
existia no meio ditatorial urbano27. Segundo Zuenir Ventura, depois das “festas
embaladas por debates político-econômicos revolucionários” da juventude carioca
dos anos 1960, a praia era o lugar onde se passava a limpo os acontecimentos da
véspera, e onde se escolhiam as versões que seriam veiculadas dali para a frente.
(Ventura : 1988, 24)
Nessa perspectiva a oposição comportamental dos surfistas em relação ao
restante da sociedade, isenta da visão marxista, segundo a qual os movimentos
de contestação social só podem ser organizados por grupos com o auxílio de
intelectuais, nos indica que a simbologia do surfe nesse período era utilizada para
expressar (somando-se a outros grupos jovens) os descontentamentos políticos e
sociais da juventude brasileira.
A intensificação da construção de símbolos de contestação social e política
aparentemente despolitizada , expressa no vestuário, na linguagem etc, culminou
no caso dos surfistas brasileiros com sua diferenciação dos demais jovens,
passando a constituir pequenos grupos com identidades culturais próprias. No
entanto, ao contrário dos Estados Unidos, esse processo ocorreu de forma mais
lenta (mas não menos intensa) no Brasil em vista do autoritarismo de suas
instituições.
Dentro desse contexto, 1968 é elucidativo do protesto jovem contra os
limites ao pluralismo político imposto pelo Estado. Nesse período a revolução
comportamental da juventude brasileira foi expressiva na rejeição à família, nos
movimentos feministas, nas relações extraconjugais e na simbologia referente ao
culto às drogas. Segundo o jornalista Zuenir Ventura, o uso de drogas no Brasil
27 LIMA, F. F. 30 anos sem o Píer de Ipanema. Disponível em: <http://www.brasilsurf.htm.com.br> Acesso em: 27 mar. 2003.
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dos anos 1960/70 era mais do que uma simples rebeldia, era quase uma
experiência espiritual, e em alguns casos até ideológica. (Ventura : 1988) Nesse
período o uso de drogas pelos surfistas tornou-se freqüente. Um dos surfistas
mais conhecidos do Rio de Janeiro, Arduíno Colasanti, que, como vimos
anteriormente, era membro de um dos primeiros grupos de surfe do Brasil, era
considerado um “guru das drogas”. (Ventura : 1988, 40)
Dentro dessa perspectiva da transgressão como estágio superior de
percepção onde a atitude política se confunde com a simbologia de protesto
comportamental, poderíamos entender que a participação dos grupos surfistas
nesse movimento foi expressiva. Uma vez que a cultura surfista é baseada no
desbunde comportamental e que essa atitude era fortificada pela repressão
política do Brasil dos anos 1960/70.
Nesse sentido, ainda sobre a resignificação dos espaços de protesto,
Napolitano nos indica que após o ato institucional número cinco, houve uma
reestruturação dos parâmetros de ação política dos movimentos jovens brasileiros
de 1968 a 1977. A tensão social evidenciada em 1968, onde a Passeata dos 100
Mil foi um dos acontecimentos mais expressivos, fez com que o Regime Militar
adotasse medidas extremas de controle da população. O AI-5 foi um desses
mecanismos de ação repressora do Estado Autoritário-Burocrático brasileiro. A
implantação desse dispositivo institucional objetivava a despolitização da vida
social dos brasileiros. (Napolitano : 2002)
A partir de então a ação política passou a ocupar espaços não-
convencionais de expressão. (Napolitano : 2002, 16, 17) A praia se constituiu num
desses novos locais de protesto à centralização e censura do Regime Militar
brasileiro. Nessa perspectiva o Píer de Ipanema foi um dos redutos de uma
geração de jovens que buscavam num ambiente litorâneo a liberdade de
expressão que não existia na cidade.
Além de possuir boas ondas, o Píer de Ipanema era um lugar estratégico
para os jovens “revolucionários” brasileiros da década de 1970. Como nos indica
Fernando “Fedoca” Lima, um dos primeiros fotógrafos de surfe do Brasil, ao
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comentar sua exposição de fotos, intitulada “30 anos sem o Píer de Ipanema”,
realizada em 2 de junho de 2002, em Ipanema no Rio de Janeiro:
A construção de um emissário submarino no início de 71, criou diversas circunstâncias especiais, o canteiro de obras protegia a praia dos olhares de quem passava na Av. Vieira Souto, formando um oásis de liberdade: as ‘Dunas da Gal’. Além disso, a escavação feita para assentar os tubos condutores de esgoto, acabou provocando uma alteração na profundidade do mar. Por ficar mais raso, começou a formar ondas perfeitas para o surf. As famosas ‘ondas do Píer de Ipanema’. ”30 anos sem o Píer de Ipanema”, celebra essa época com fotos de surfistas pioneiros, dos artistas, músicos e outros personagens que freqüentavam aquele pequeno, porém revolucionário pedaço de areia. Figuras clássicas como o menino do Rio, Petit, Gal Costa, Evandro Mesquita, Scarlet Moon, André de Biase, Monique Evans, Caetano, Pepe, entre outros (...) Além do registro fotográfico, peças cedidas por personagens ilustres serão exibidas. Entre as peças destaca-se um quadro do Evandro Mesquita à óleo que retrata de forma caricatural os personagens do Píer. Também o “Gatão de meia idade”, do Miguel Paiva, estará presente em algumas tirinhas publicadas no jornal “O Globo”. (...) Registros históricos de “O Pasquim” e da revista “Brasil Surf” também estarão sendo exibidos28.
Além de refúgio para surfistas, intelectuais e atores, o Píer de Ipanema
contribuiu, em certa medida, para o desenvolvimento técnico e institucional do
surfe no Brasil. Com a realização de campeonatos com algum nível de
organização, visível, por exemplo, na divisão entre categorias “adultas” e “juvenis”.
O Píer foi um marco na história do surf no Brasil. A experiência de pegar ondas difíceis como aquelas, proporcionou aos surfistas da cidade, base para se projetarem nacional e internacionalmente. Foi a época de ouro do surf carioca, onde aconteceu o primeiro campeonato carioca de surf da era das pranchinhas, em dezembro de 1972. Durante vários anos a “galera do píer “ tomou conta do cenário brasileiro do esporte. Os campeões Otávio Pacheco (seniors) e Daniel Friedman (juniors) são dois bons exemplos da geração Píer29.
28 LIMA, F. F. 30 anos sem o Píer de Ipanema. Disponível em: <http://www.brasilsurf.htm.com.br> Acesso em: 27 mar. 2003. 29 LIMA, F. F. 30 anos sem o Píer de Ipanema. Disponível em: <http://wwwbrasilsurf.htm.com.br> Acesso em: 27 mar. 2003.
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No que se refere aos primeiros passos da indústria do surfe no Brasil, é
dentro do contexto de expansão do capitalismo internacional a uma “sociedade
militarizada” que no final da década de 1960 o Brasil vai conhecer sua primeira
fábrica de pranchas de poliuretano idealizada por um coronel da aeronáutica,
chamado José Freire Parreiras Horta. Ciente da proliferação da prática do surfe
nas praias cariocas, Parreiras adquiriu junto a Gordon Clark, uma licença para
expandir seus blocos de espuma em nosso país, e desde os anos de 1968 até
1972 produziu centenas de pranchas, ao mesmo tempo em que monopolizava o
mercado brasileiro (Àrias : 2002, 07, cap. III). Assim, os pesados pranchões de
madeirite das décadas anteriores adequavam-se as mutações tecnológicas
exteriores dando lugar as minimodels (pranchas de forma curta em moda nos
Estados Unidos).
A construção em massa de pranchas no Rio de Janeiro era acompanhada
por uma nova safra de grupos surfistas e de destaques individuais como Rico de
Souza. Apesar de existirem nos anos de 1960 outras produções independentes
de pranchas em outras regiões do Brasil como em São Paulo, o monopólio da
produção e venda em massa de pranchas só seria quebrado na década de 1970 e
80 com o aprimoramento técnico do surfe e da proliferação dos construtores de
pranchas individuais. Essa transição da fabricação de pranchas iguais para
confecção individual, levando em conta as características do atleta, se deu,
através de uma nova concepção do surfe e como uma forma de contestação dos
surfistas brasileiros da década de 1970 à crescente massificação do desporto.
Dentro desse contexto é interessante notarmos a evolução técnica da
prancha de surfe brasileira. Inicialmente na década de 1930/40 ela segue o
modelo americano/havaiano desenvolvido por Tom Blake (a “Tábua Oca de
Remar”) e pranchões sólidos caracteristicamente havaianos. Esses modelos eram
confeccionados artesanalmente pelos brasileiros através de revistas americanas.
Nas décadas de 1950/60, os pranchões sólidos de madeirite passaram a ser mais
utilizados, ao invés da prancha oca. Por ser mais fácil de ser confeccionado e pela
influência das pranchas que eram sensação nas praias californianas, as Malibu,
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cujo formato era divulgado pelas revistas especializadas de surfe americanas e
pelos filmes cinematográficos envoltos pelo ideário do “sonho americano”.
A influência da indústria do surfe internacional na construção das pranchas
brasileiras, foi significativa, no entanto, não podemos esquecer que, apesar das
pranchas seguirem uma padronização externa, sua forma sempre assumiu algum
nível de especificidade resultante de sua adaptação as condições geográficas do
litoral brasileiro. Apesar de toda a dificuldade que a confecção das pranchas
assumiam nesse período. Como nos mostra Marcelo Árias, falando sobre um dos
primeiros construtores de pranchas do Brasil.
Orácio também foi um grande fabricante de pranchas (grande no sentido de importante), em uma época em que a falta de estrutura era gritante. Mas, para ele, nada era problema. Se não era possível adquirir uma plaina elétrica, o shape era feito raladores de coco. Na falta de espátulas para o trabalho com resina, sacos de leite improvisados faziam essa função. (Árias : 2002, cap. V, 08,09)
A partir de 1970 a influência do ideário hippie ao grupo surfista brasileiro,
baseado num estilo de vida alternativo e no uso das drogas, (para libertação do
espírito), aliado a vários surfistas que vieram residir no Brasil, e a proliferação de
campeonatos nacionais e internacionais, possibilitaram uma renovação no design
das pranchas brasileiras, a partir da experimentação de várias formas e estampas.
Nesse período as pranchas começaram a ser construídas com tamanho mais
reduzido e com quilhas, com o intuito de possibilitar aos surfistas melhores
manobras, direcionando a prancha com mais facilidade e aproveitando a onda em
toda a sua extensão.
Apesar de dividir a praia com as tradicionais pranchas longas, as pranchas
curtas começaram a ser produzidas no Brasil na década de 1960, seguindo uma
tendência norte-americana de busca por uma maior “radicalidade” nas manobras
sobre as ondas, influenciada pelo desenvolvimento da indústria de acessórios,
inserção na mídia e campeonatos internacionais. No entanto, a prancha curta só
se desenvolveu no Brasil dos anos 1970, com a expansão dos campeonatos de
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surfe e institucionalização do desporto. Pois possibilitava aos atletas maiores
chances de vitória uma vez que permitia movimentos mais audaciosos nas ondas.
Além disso, esse movimento de renovação instrumental do surfe no Brasil
refletia a oposição dos surfistas mais antigos à relativa massificação do desporto
nas praias cariocas, iniciada pelo comandante Parreiras nos anos 1960, com a
construção de pranchas em série. A padronização cultural imposta pelo Estado
ditatorial desse período acabou por incentivar os surfistas na busca de novos
símbolos de identificação que o diferenciassem do restante da população,
passando a confeccionar pranchas que levavam em conta as características
individuais dos surfistas.
Assim, a comercialização da cultura surfista expressa na fabricação de
pranchas em massa criou uma ruptura interna do subgrupo brasileiro entre os
“surfistas de fim de semana” e aqueles que enxergavam no surfe mais do que
uma simples diversão, mas um meio de expressão social e política. E, em alguns
casos, principalmente quando a atividade misturava-se com o uso de drogas que
atuavam na “abertura das portas da percepção da mente”, o surfe possibilitava
uma experiência espiritual para esses “surfistas de alma”.
Assim, apesar do desenvolvimento econômico dessa época, a sociedade
brasileira era fortemente reprimida pelo Estado, que buscava garantir a
governabilidade através de uma padronização cultural direcionada por órgãos
públicos de censura dos veículos de comunicação. Nesse momento ser diferente
nas ações, nas roupas, na linguagem, enfim, no modo de vida, denotava mais do
que uma revolta comportamental, mas contra toda a acomodação política e social.
O desenvolvimento da simbologia da cultura surfista brasileira da década de 1970
reflete a resignificação dos meios de expressão e contestação política de uma
sociedade que passou a consumir símbolos culturais cujo conteúdo era
intensamente despolitizado pela ação do Regime Militar.
Com o desenvolvimento da indústria internacional do surfe no Brasil da
década de 1980/90, bem da inserção dos atletas brasileiros nos campeonatos
internacionais, as pranchas serão profundamente influenciadas pelo design norte-
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americano e australiano, baseado na agressividade de estampas e num formato
mais curto que possibilitará manobras cada vez mais velozes e sensacionais.
Dentro desse contexto, é notório acrescentarmos que as primeiras
décadas da indústria e da prática do surfe no Brasil, desenvolveu-se de maneira
desorganizada graças à falta de uma infra-estrutura que absorvesse o processo
de forma menos traumática. No entanto, como nos indica Marcelo Árias, O
movimento da indústria californiana se repetiria aqui, com alguns anos de atraso.
Vários rapazes adquiriram habilidades na arte de alisar blocos de poliuretano,
assim como na arte de trabalhar com resina (Àrias : 2002, cap. V, 08). Além da
proliferação das revistas americanas, inúmeros estrangeiros que visitavam ou se
estabeleciam no Rio de Janeiro da década de 1970 passaram a influenciar a
construção das pranchas brasileiras e a evolução técnica do desporto (Àrias :
2002, cap. V, 09). Esse fato ajudou a divulgar a prática do surfe e a organizá-la
institucionalmente. Principalmente com o gradativo intercâmbio dos surfistas
brasileiros e estrangeiros através das competições internas e internacionais que
se iniciavam com o apoio de empresas não ligadas ao surfe que começaram a
perceber o crescente número de jovens que compareciam nos eventos.
3.4- Institucionalização e “indústria do surfe” no Brasil.
Segundo o historiador Eric Hobsbawm, a auto-consciência dos grupos
jovens tornou-se dominante nas economias de mercado mais desenvolvidas, uma
vez que essa massa concentrada detinha um poder de compra maior (Hosbawm :
1995, 320). No entanto, a reestruturação social sob novas bases comportamentais
difundiu-se, a partir dos anos 1960/70, em várias partes do mundo, através da
proliferação dos veículos de comunicação de massa. Apesar de subdesenvolvido,
o Brasil desse período teve um relativo crescimento econômico, permitindo que
jovens médios/altos da população, com um maior poder aquisitivo, se
desprendesse do determinismo de suas famílias e até certo ponto do Estado.
Inicialmente ligado à contracultura jovem brasileira doas anos 1960/70, o
ideário de vida alternativa surfista será incorporado ao mercado e as instituições
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brasileiras dos posteriores. Na década de 1980, a expansão do ideário de
redemocratização brasileira, cuja imagética foi arquitetonicamente construída pela
imprensa para assegurar a governabilidade do país por grupos dominantes da
sociedade (Napolitano : 2002, 135,136), os subgrupos surfistas serão
gradativamente absorvidos pelas instituições capitalistas, na forma das
associações, federações, profissionalização e do desenvolvimento da indústria de
acessórios.
O fato é que, à medida que aumentava o número de adeptos da prática do
surfe no Brasil da década de 1970, através da transformação comportamental e
da popularização do desporto entre os jovens de classe média, tornou-se
necessário sua organização institucional na forma de associações, bem como da
absorção das competições a regras específicas. Esse processo fez com que as
subculturas em formação se estabelecessem no tecido social de maneira mais
expressiva que nos anos anteriores.
Em 1971 o paulista Paulo Jolly Issa foi um dos responsáveis pela segunda
tentativa organizacional da prática do surfe através da criação da “Associação de
surf de Ubatuba” (ASU), (Àrias : 2002, cap. V, 10). Essa associação promoveu na
década de 1970 e 1980 vários campeonatos de surfe, que apesar de ter um
caráter nacional, contava somente com a participação de cariocas e paulistas. A
rivalidade e violência do encontro desses dois subgrupos brasileiros demonstra o
nível acentuado de diferenciação interna que os grupos surfistas possuíam já na
década de 1970. Segundo Àrias, esse período pode ser considerado embrionário
do profissionalismo no Brasil. Repleto de rivalidades entre cariocas e paulistas. A
rixa era tamanha que em 1974 nem mesmo o palanque do evento foi poupado. O
pobrezinho foi incinerado pela turminha de Santos, insatisfeita com os resultados
da competição. (Àrias : 2002, Cap. V, 10).
Para o historiador um dos motivos das brigas era o resultado das
competições, uma vez que os cariocas ganhavam dos paulistas por possuírem um
pouco mais de estrutura e apoio financeiro, tendo já em 1975 uma das primeiras
equipes de surfe do Brasil (Àrias : 2002, cap. V, 10). No entanto essa violência
não se resume ao resultado do evento. Mas é decorrente da auto-afirmação do
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grupo paulista, em formação, sobre o carioca. A partir da negação do “outro” é
que o indivíduo e os grupos sociais constroem sua identidade. Além disso, a
posição de outsiders do grupo paulista em relação ao inserido e institucionalizado
surfe carioca, fez com que a agressão refletisse de imediato a sua insatisfação e
necessidade de pertencimento. Dentro desse contexto, na década de 1970 vai
haver uma proliferação de federações e associações de surfe pelo Brasil, e a
gradativa absorção do surfe as instituições capitalistas brasileiras.
O gradativo aumento da auto-consciência desse subgrupo jovem na
década de 1970 a partir da proliferação das federações e dos campeonatos que
reuniam surfistas de diversos locais do Brasil, bem como a tendência mundial da
espetacularização do modo de vida jovem pelos meios de comunicação, logo
despertou o interesse de grandes empresas, revistas e canais de televisão. Como
nos conta Àrias:
Entre 1975 e 1983 (...), Saquarema sediou torneios que uniram os diversos clãs de surfistas de nosso país. Esses eventos foram todos realizados pela Associação de Surf de Saquarema, fundada nos moldes da ASU e que veio a produzir os maiores campeonatos já vistos no Brasil. Era uma época em que o Brasil agonizava com a ditadura militar, com repressões, prisões e proibições de todos os tipos. Em contrapartida, o surf ao mesmo tempo em que se organizava e dava os primeiros passos rumo ao profissionalismo, refletia todo um movimento cultural mundial, pautado nas experimentações das drogas que “abriam a consciência”, no sexo livre, e no rock’n roll tupiniquim, que começava a mostrar suas garras com Os Mutantes, O Terço, Rita Lee, etc. Nem é preciso dizer que essa mistura mostrou-se bombástica. Confusões, brigas e prisões foram a tônica desses eventos. Porém, nem tudo foi negativo. Foi aí que o surf conquistou o interesse de grandes empresas, tais como a CCE, a Antártica, a Rede Globo, o Jornal do Brasil, o Canal 100, a revista Pop entre outras. (Árias : 2002, cap. V, 12)
Apesar de ser mal visto pelas tradicionais famílias burguesas brasileiras por
situar-se “à margem” da sociedade, e por estar inicialmente ligado à contracultura
jovem nascente no Brasil, o surfe, por ser um desporto caracteristicamente,
jovem, exótico e espetacular, logo em seus primeiros anos da década de 1980
chamou a atenção dos veículos de comunicação e das empresas nacionais.
Envoltas por um ideário narcisista do esporte, importado da cultura de massa
norte-americana, que começava a influenciar a mídia esportiva brasileira.
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Assim a partir dessa gradativa absorção da cultura surfista à “grande
mídia”, notamos o desenvolvimento do profissionalismo dos atletas, que passaram
a competir nacional e internacionalmente, patrocinados pelas empresas de
acessórios. E foi nesses eventos, também, que nomes novos no cenário nacional
começaram a solidificar suas carreiras, como, Pedro Paulo Lopes, o Pepê, que
além de ganhar o evento em 76, foi protagonista de um feito ainda mais louvável,
seis meses antes, ao obter a sexta colocação no Pipeline Masters, o campeonato
de surf mais famoso de todos os tempos, disputado em águas havaianas (Àrias :
2002, cap. V, 12).
A crescente inter-relação do surfe brasileiro aos eventos e desenvolvimento
técnico internacional junto à queda do regime militar, iria atuar na adaptação da
“contracultura” surfista brasileira característica da década de 1960/70 pelas
estruturas institucionais da sociedade capitalista brasileira da década de 1980, na
forma das Associações estaduais de surfe que começavam a se espalhar pelo
Brasil. A institucionalização e o gradativo aumento do círculo de profissionais no
Brasil, ocorreu paralelo ao aumento da produção e venda de acessórios para o
surfe, bem como dos investimentos da indústria internacional do surfe nos
campeonatos brasileiros, que passaram a congregar, dessa forma, as
competições à divulgação e ao consumismo de artigos vinculados a prática do
desporto.
Segundo Àrias:
A década de 1970 ainda vivenciou o terceiro membro da trilogia sagrada dos campeonatos de surf dessa época, os internacionais Waimea 5000. Esses megaeventos foram realizados entre os anos de 1976 e 1982 (...). A praia do Arpoador sempre foi o palco mais importante dos Waimea 5000, muito embora, em alguns anos o cenário tenha mudado. (...) Na primeira versão, Alberto Pecegueiro, (...) e Nelson Machado (dono da Waimea Surfshops) uniram forças e sensibilizaram a então entidade máxima do surf mundial, International Professional Surfers, a investir no potencial nascente do surf brasileiro (Árias : 2002, cap. V, 13).
Paralelo a essa movimentação internacional, empresas brasileiras como a
“Wolksvagen”, “CCE”, entre outras, foram atraídas pelo aumento do público que
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começou a participar desses megaeventos. Além de agregar novos
patrocinadores o surfe brasileiro contava com a participação de ícones do surfe
profissional internacional (em campeonatos sediados no Brasil) para alavancar
sua prática. (Àrias : 2002, cap. V, 13). Todo esse processo acabou por reordenar
o surfe e a subcultura jovem ligada a ele sob novas bases sócio-econômicas.
A gradativa concretização da auto-consciência identitária do subgrupo
surfista brasileiro, com território30, linguagem, vestuário e comportamento
específicos, ocorre efetivamente nos anos 1970/80, como vimos inicialmente
ligada aos símbolos de contestação social, cultural e política.
Junto à democratização do estado brasileiro dos anos 1980 essa
simbologia será gradativamente absorvida pelas forças de mercado através da
institucionalização e profissionalização do surfe carioca e paulista. Promoveu a
diferenciação interna dos surfistas profissionais e amadores e o surgimento da
mídia especializada. Alberto Pecegueiro idealizou e fundou a primeira revista de
surfe do Brasil : a “Brasil Surf”. No entanto, as publicações duraram até o fim dos
anos de 1970, o período em que o surfe brasileiro entrou em crise.
Como nos conta Marcelo Àrias:
Depois de um período de glórias compreendido entre os anos de 1964 (com a passagem de Peter Troy pelo Brasil) e 1979 (término da revista Brasil Surf), o que se viu foi um enorme hiato evolutivo no surf nacional. Era necessário que alguém chamasse a responsabilidade para si, no que dizia respeito à organização. Mas os surfistas só pensavam em viajar, surfar ou gerir seus próprios negócios. (...) Era evidente que o surfe não sobreviveria sem a estruturação de novas associações, federações e órgãos que trabalhassem na enfadonha porém necessária área burocrática. Somada a essa incompetência administrativa, podemos listar ainda a enorme inflação que assombrava nossa economia durante esse período como uma das razões para a ocorrência desse declínio.(Árias : 2002, cap. V, 14, 15)
A década de 1980 é marcada pela revitalização do surfe brasileiro. Esse
processo ocorreu com a concretização de sua institucionalização. Dessa forma, a
efetiva absorção do surfe às instituições e, sobretudo, ao mercado ditaria o
30 Locais litorâneos como o píer de Ipanema no Rio de Janeiro. LIMA, F. F. 30 anos sem o Píer de Ipanema. Disponível em: http://www.brasilsurf.htm Acesso em: 27 mar. 2003.
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reordenamento do desporto. O crescimento da profissionalização e
institucionalização do desporto ocorreu paralelo ao aumento da competitividade,
desenvolvimento técnico e inserção do surfe na mídia, sob uma nova roupagem.
Esse processo ocorreu entre outros fatores político-econômicos, sobretudo, com a
inserção, desde a década de 1970, do Brasil nas competições internacionais.
Uma vez que, a partir daí, os eventos passaram a refletir uma organização
padronizada pelas regras do circuito internacional de surfe e tendências
mercadológicas das empresas envolvidas no patrocínio dessas competições.
No embalo do avanço do capital internacional das empresas de acessórios
de surfe no Brasil e de sua padronização cultural, surgiu o primeiro programa de
surfe e esportes de ação da televisão brasileira: o “Realce”, que a princípio havia
sido projetado para ser uma revista (Àrias : 2002, cap. V, 14). A entrada do
ideário de estruturação mundial dos campeonatos era orquestrada nesse período
por empresários/surfistas catarinenses e cariocas. Que tinham como objetivo
proporcionar uma reestruturação administrativa da prática profissional do surfe,
através da refundação dos eventos competitivos, a partir de um padrão
organizacional externo31.
Três fatores fundamentais refletem o reordenamento da prática do surfe no
Brasil na década de 1980. A fundação da Associação Brasileira de surf
Profissional (ABRASP), que tinha por objetivo reunir os surfistas e empresários
em torno de objetivos comuns; a participação da iniciativa pública e privada
(empresas internacionais) na infraestrutura dos eventos e a inserção das
competições de surfe e do modo de vida surfista nos veículos de comunicação de
massa.
Essa reorganização tinha como principais características difundir a prática
do surfe investindo no atleta através de premiações expressivas em dinheiro e
viagens competitivas no exterior, aumentar a competitividade através de regras
baseadas nos campeonatos internacionais e, o mais importante, buscar o
investimento de empresas esportivas em ascensão. Num prazo de quatro anos os
31 Difundido pela constituição de regras do circuito de surfe profissional mundial, e pela conseqüente padronização esportiva, do surfe brasileiro ao internacional, decorrente desse processo.
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resultados dessa reformulação foram expressivos. Em 1982 o primeiro
campeonato da década de 1980, o “I Festival Olímpikus de Surf”, registrava uma
participação de 116 atletas, e no “OP Pro 86” em 1986 existiram 768 inscritos
(Àrias : 2002, cap. V, 15). Como salienta Àrias, o número de inscritos aponta para
a expansão da indústria do surfe no Brasil. Principalmente àquela relacionada ao
vestuário e a mídia especializada ou não.
Segundo Àrias, a indústria do surfe estabeleceu-se com maior intensidade
no centro industrial do Brasil: o estado de São Paulo. O vestuário nacional
inicialmente confeccionado nos moldes exteriores divulgados pelas revistas
especializadas por surfistas/empresários, foi logo apoiado e absorvido pela
representação de empresas estrangeiras como a Lightning Bolt, OP e Town and
Country, que já investiam nos campeonato brasileiros através de contatos com o
empresariado local. A partir do estabelecimento dessas empresas, que viam na
constituição e auto-definição da cultura surfista brasileira um bom investimento, o
mercado destinado ao surfe se expandiu no Brasil. Além disso os
empresários/surfistas representantes dessas empresas aumentaram as chances
dos surfistas conseguirem patrocínios. (Àrias : 2002, cap. V, 16)
Nesse momento a imprensa brasileira especializada em surfe cresce e
organiza-se junto à expansão dos campeonatos e do estabelecimento das
empresas de acessórios de surfe. No embalo da divulgação do culto ao corpo e
da espetecularização do surfe, as primeiras revistas da década de 1980 vão
apostar na comercialização da cultura do surfe brasileiro seguindo o modelo dos
veículos de comunicação exteriores. A divulgação de mitos e produtos nessa
época ocorreu paralela a espetacularização do surfe às massas de consumidores
em potencial. A nova configuração da prática do surfe nesse momento passou a
priorizar a competição dos atletas profissionais e amadores.
Dentro dessa perspectiva, as principais revistas e roupas brasileiras,
financiadas fundamentalmente pelas marcas internacionais de acessórios,
passam a seguir um padrão mundial de signos e valores. É dentro desse contexto
que surgiu, em 1983, uma das principais revistas de surfe da atualidade: a “Fluir”.
Além disso, a televisão foi um grande agente institucional da revitalização do surfe
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dos anos 1980, com a idealização de alguns programas que exaltavam a cultura
jovem, “bronzeada” e “atlética”. A Televisão encontrou no surfe um instrumento de
aglomeração das massas jovens e médias, surfistas e não-surfistas, congregando
qualidades que ditavam a moda, o corpo e o comportamento das pessoas. Além
do já citado programa “Realce”, um dos programas de maior impacto comercial
que tentaram conquistar um número maior de pessoas não-surfistas ao estilo de
vida surfista, poderíamos citar o seriado “Armação Ilimitada” da Rede Globo de
Televisão. Além de quase todas as novelas que tinham como cenário o Rio de
Janeiro.
Assim, a institucionalização efetiva do surfe brasileiro ocorreu na década de
1980, paralela a comercialização de sua cultura. Em 1988 foi fundada a
“Associação Brasileira de Surf Profissional” (ABRASP), com uma legislação que
prioriza a normatização e estabilização das tempestuosas relações dos surfistas
profissionais com os “homens de negócios” do surfe brasileiro. Posteriormente, os
“Anos Dourados” do surfe brasileiro, conheceu, em 1987, o primeiro campeão
brasileiro dessa nova etapa organizacional do surfe: Paulo Sérgio Matos. É
também nessa época que o Brasil conquista o primeiro campeonato mundial
amador em Porto Rico, com o paraibano Fábio Gouveia.
Dentro desse contexto, a década de 1980 é marcada pelo surgimento da
associação dos surfistas profissionais, e da proliferação das associações dos
surfistas amadores. Essa estruturação ocorreu paralela a comercialização do
surfe e da transição da atividade recreativa para uma muito mais competitiva. O
fato é que a crescente espetacularização, aumento da competitividade e mutação
técnica e instrumental do surfe que atuavam na movimentação de capital das
empresas que patrocinavam os eventos, acabaram por reconfigurar a prática
social do desporto. Investindo-lhe mais valores sócio-econômicos do que os de
resistência cultural.
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A transformação do surfe decorrente de sua absorção pelas forças de
mercado, sem uma estrutura institucional brasileira que organizasse essa
movimentação, com lucros para ambos os lados, gerou contestações internas
entre os empresários32 e os surfistas. As associações surgiram então como uma
maneira de delimitar as ações da economia de livre mercado no desenvolvimento
técnico e esportivo do surfe33.
Por ser uma região onde o profissionalismo ocorre, ainda hoje, de forma
lenta devido, essencialmente, à incompatibilidade de interesses entre surfistas e
patrocinadores, podemos visualizar o conflito citado acima no caso paranaense,
através de uma reportagem realizada em 1991, quando o surfe começava a se
institucionalizar nessa região: A nova geração do surf paranaense mostra que o
esporte no estado mudou pra valer. Foi enterrada a história negra, que era
marcada pela inveja e mediocridade dos patrocinadores. Todos os surfistas que
compareceram ao circuito ‘Wave Rider’ mostraram que o espírito de união é a
principal arma da vitória. (Gazeta do Povo, 13 out. 1991)
Nesse sentido, analisando a legislação da Associação Brasileira de Surfe
Profissional, logo notamos uma contraposição entre as diretrizes da “Ata de
Fundação” e do seu “Estatuto”. Inicialmente, o conselho decisório seria composto
por cinco representantes de evento e cinco representantes de surfistas.
Igualando, assim, os interesses dos patrocinadores e competidores. No entanto, o
capítulo III (“Da Administração Social”), seção 01 (“Do Conselho Diretor”), artigo
16, salienta que, o Conselho Diretor é constituído de 09 membros, sendo
composto por quatro representantes de evento e cinco representantes de
surfistas34.
32 Muitas vezes não ligados ao surfe, mas ao “mundo dos negócios”. 33 Regras de competição – ABRASP. Disponível em: http://www.abrasp.com.br>. Acesso em: 10 nov. 2002. 34 Ata de fundação (ABRASP). Disponível em: <http://www.abrasp.com.br> Acesso em: 08 jun. 2002.
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A partir do momento em que o conjunto da legislação evidencia que o
“Conselho” é responsável pelas principais decisões regulamentares dos
campeonatos de surfe, fica evidente a unilateralidade das ações dos surfistas
sobre os patrocinadores, como forma de refrear, ao menos teoricamente, suas
ações. Isso se torna mais evidente quando percebemos, no artigo 02 do capítulo I,
que a ABRASP tem por objetivo defender os interesses dos associados (atletas
profissionais) perante os órgãos públicos e privados35. Além disso, no artigo 13 do
capítulo II, fica clara a relativa supremacia das decisões da “Diretoria”36, quando o
documento salienta que ela tem o direito de substituir qualquer membro do
conselho fundador que não esteja cumprindo com suas funções de forma
efetiva37.
Se levarmos ainda em consideração que as regras das competições são
estabelecidas pelos membros da ABRASP junto à padronização normativa da
instituição máxima do surfe profissional internacional (ASP), veremos que sua
adaptação às especificidades técnicas e comerciais brasileiras é promovida pelos
membros da associação dos profissionais sediada no Rio de Janeiro. Assim, se
compararmos as regras internacionais com as do circuito nacional, veremos
algumas modificações decorrentes dos interesses dos surfistas, empresários e
órgãos públicos, que promovem os eventos. No entanto, de maneira geral
podemos notar que ambas as regras estimulam a competitividade e a
agressividade das manobras na determinação das pontuações.
35 Ibid. 36 Formada por sócios/fundadores, que são basicamente empresários/surfistas. 37 Ata de fundação (ABRASP). Disponível em: <http://www.abrasp.com.br> Acesso em: 20 jun. 2002.
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No que se refere ainda a institucionalização do surfe no Brasil, um dos
motivos que interferem na não-profissionalização do surfe no Paraná pode ser,
em parte, resultado da influência da legislação nacional. Uma vez que a
realização dos campeonatos estaduais está ligada a carga representativa dos
surfistas e entidades estaduais no Conselho decisório da ABRASP38. A
participação de atletas e empresários paranaenses nas decisões do “Conselho
Diretor” da entidade federal poderia contribuir para a realização de eventos no
Estado. No entanto, essa representação é refreada pela perpetuação de alguns
“sócios/fundadores” (de Estados como o Rio de Janeiro, São Paulo e Santa
Catarina) no círculo decisório da entidade.
Além disso, um dos problemas atuais dos atletas se refere à arbitragem
dos eventos serem realizadas por não-surfistas. Segundo os surfistas
profissionais a colocação de não-praticantes em funções de avaliação técnica
acaba por prejudicar injustamente o resultado dos campeonatos. Como nos
mostra a contestação dos surfistas Peterson Rosa e seu irmão Maicon Rosa à
arbitragem da etapa de um campeonato internacional realizado recentemente em
Santa Catarina:
“Tinham que colocar ex-surfistas para julgar a gente, mas pagam pouco, então temos que agüentar esses manes, que não pegam onda, não entendem bem e tão sempre na noite. Temos que ficar nas mãos deles.” As palavras de Peterson Rosa, ainda transtornado pelo julgamento de sua sétima onda na final do Onbongo Pro Surfing (“perna” brasileira do circuito mundial do WQS [World Qualifyng Series] – segunda divisão do surfe – em Florianópolis) e posterior eliminação, dão o tom de uma reivindicação antiga dos surfistas: mudanças na arbitragem. (...) É um absurdo, sempre rola isso com os brasileiros. E ainda na casa da gente! Isso tem que mudar (...) observou Maicon Rosa (...) O polêmico resultado que motivou a indignação não só dos surfistas como do público presente na Praia Mole, ocorreu na sétima onda de Peterson. Ele deu um “flooter” muito difícil (surfou na crista da onda) e caiu praticamente no nada, se equilibrando e dando uma batida extremamente rápida na continuação. A nota anunciada foi 5,23. Com isso, Rosa caiu da primeira para a terceira colocação e acabou ficando de fora da final. Segundo o surfista as manobras que fez mereceriam no mínimo um 6,5 (que o classificaria para a final). “Mas é sempre assim, depois eles olham no vídeo, dizem ‘sorry’ (desculpa), dão um tapinha nas costas e nós é que temos que pagar uma multa por ter reclamado.” (Gazeta do Povo, 05 nov. 2002)
38 Ata de fundação (ABRASP). Artigo 17, seção 01, capítulo III. Disponível em: <http://www.abrasp.com.br> Acesso em: 20 jun. 2002.
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3.5- O Brasil e a “nova mundialização do surfe” dos anos 1990.
O surfe brasileiro dos anos 1990, com algumas especificidades, segue o
contexto internacional de espetacularização acentuada de sua prática e,
conseqüentemente da influência crescente da mídia na regulação e padronização
organizacional do desporto. Dentro desse contexto, e como vimos anteriormente,
a mundialização do surfe nos anos 1990 foi proporcionada pela expansão de sua
indústria e de uma nova concepção de se “encarar” as ondas.
Esse novo padrão de comportamento sobre as ondas, foi ditado pelas
forças de mercado e pela crescente inserção do surfe na mídia. Isso é notório,
quando percebemos que nos anos 1990 a prática do surfe é pautada na
agressividade, velocidade e manobras com um grau de audácia nunca vista antes.
No entanto, se por um lado entendemos o sensacionalismo do “surfe-espetáculo”
como fenômeno resultante da gradativa comercialização de sua prática às
massas, devemos entender essa tendência como uma forma de diferenciação
social que começou a se refletir nas manobras dos campeonatos que passaram a
congregar um índice maior de atletas.
A comercialização da cultura jovem dos anos 1990, evidencia-se na
tendência pós Guerra Fria, de fortalecendo do mercado sobre a cultura e
ideologia, resultante do avanço das instituições liberal-democratas e do
enfraquecimento do Estado em detrimento das ações transnacionais de empresas
privadas (Hobsbawm : 1995). Podemos apreender o caráter comercial da cultura
jovem dos anos 1990 e sua relativa despolitização, através da ótica de Àrias, onde
nos mostra que os surfistas tinham ainda como trilha sonora os barulhentos e
ensurdecedores hardcores californianos, uma releitura do punk isenta do caráter
político. (Àrias : 2002, cap. V, 19) Apesar dessa observação representar uma
perspectiva marxista reducionista do “ser político” na sociedade contemporânea, é
notório observarmos que a produção cultural de massa da década de 1990 foi
marcada por um ideário de “ausência de contradições” políticas e econômicas nas
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sociedades, fomentadas pelo Estado norte-americano através do ideário de
globalização. (Hobsbawm : 1995)
Foi dentro desse contexto de fortalecimento das empresas patrocinadoras
dos campeonatos nacionais e internacionais de surfe e da massificação do
desporto com elevação do número de praticantes, que o Brasil começou, nos
anos 1980/90 a competir no circuito mundial de surfe (WCT) e em sua divisão de
acesso (WQS), através de dois surfistas brasileiros, chamados Teco Padaratz e
Fábio Gouveia (Àrias : 2002, cap. V, 19), e a desenvolver a prática interna do
surfe.
O aumento da participação de países de “terceiro mundo”, como o Brasil,
no alto escalão do surfe mundial nos anos 1990, nos indica a nova configuração
mundial do surfe resultante da reestruturação produtiva e social do mundo do final
do século XX. Esse processo, ocorreu paralelo ao enfraquecimento dos Estado-
nações em prol do mercado e interesses privados, e da diminuição do caráter
nacionalista das competições entre as equipes surfistas de países desenvolvidos,
resultando no aumentando da individualização e do culto a personalidade de
determinados atletas pelos meios de comunicação.
Dentro do contexto de espetacularização mundial do surfe, é notório
observarmos, atualmente, a exploração da mídia e das empresas de acessórios
de surfe no patrocínio de campeonatos de ondas grandes, realizados
principalmente no Havaí, onde dezenas de radares metereológicos se espalharam
pelas ilhas, na busca das maiores ondas. Além disso, o mais interessante é que
essa “busca” é patrocinada pelas instituições administrativas do governo norte-
americano. Assim podemos caracterizar o surfe do final do século XX e início do
XXI através do advento do Tow-in39. Dentro dessa nova subdivisão do surfe
mundial, o Brasil conta com a participação de vários surfistas e de um título
mundial em 2002 com Rodrigo Resende (Fluir: n. 198, 2002)
O excitamento de surfar verdadeiras montanhas de água aliada a grandes
premiações e ao status que esse feito proporciona ao surfista dentro de seu
39 Campeonatos de ondas grandes, onde o surfista é levado até a onda com a ajuda de jetskis. Kampion, Brown : 1998). Atualmente esses campeonatos passaram a ser intensamente explorados por programas de T.V. nacionais e internacionais.
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subgrupo, promove nos dias atuais verdadeiras expedições de surfistas atrás das
maiores ondas do planeta. O desenvolvimento desse tipo de competição nos dias
atuais, nos remete a reflexões sobre a “busca da radicalidade” que sempre
acompanhou o surfe, bem como do aumento do perigo dos esportes no final do
século XX, e da interferência da mídia especializada ou não em sua execução.
Segundo Àrias: Atualmente, e principalmente depois do advento do ‘Tow-in’ e de
sua penetração nos canais abertos de televisão, a medida das ondas passou a
ser feita corretamente, ou seja, pela face. Isso gera mais impacto e é mais
sensacional (Àrias : 2002, cap. V, 20).
A globalização do surfe nos anos 1990 é assim caracterizada pela
exploração propagandística e competitiva do desporto, em oposição ao caráter
recreativo do inicio do século XX. Essa transição resultou na reestruturação da
dinâmica social do surfe, que no início do século XXI desenvolveu um sistema de
novos signos e valores qualitativos de inclusão e exclusão, resultante da
reconfiguração interna do subgrupo. Dentro desse contexto o surfe se insere
como uma prática competitiva de crescente espetacularização da sociedade
contemporânea.
Conclusão
Os principais resultados obtidos na pesquisa sobre a história social do
surfe, revelam que a atividade se desenvolveu em sociedades orientais primitivas
e ocidentais contemporâneas como um elemento de unificação e diferenciação
identitária de diversos grupos humanos.
Na sociedade polinésia havaiana a prática do surfe influenciou fortemente
as relações sociais e a religião. Uma vez que as sociedades primitivas possuíam
na ancestralidade familiar, no jogo e na guerra a representação do poder
governamental, atividades marítimas como o surfe, possibilitavam aos líderes
expressar seu domínio/harmonia sobre a natureza e, conseqüentemente, sobre
seu povo. Na mesma perspectiva, o jogo do surfe era realizado entre os
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havaianos comuns diferenciando-os socialmente através de uma relação de poder
e força.
Por outro lado, além de influenciar as relações humanas, o surfe
intermediava de certa forma a relação dos homens com o mundo sobrenatural.
Esse processo era visível nas cerimônias de construção das pranchas e na
relação de harmonia do surfista com uma natureza divinizada, expressa na força
incontrolável das poderosas ondas do arquipélago havaiano.
No que se refere à prática do surfe nas sociedades ocidentais do século
XX, a atividade proporcionou um modo de vida alternativo a jovens que buscavam
diferenciar-se culturalmente do conservadorismo das estruturas sociais e políticas
norte-americanas e do Estado ditatorial brasileiro. Nessa perspectiva a praia
tornou-se o ambiente configuracional de um novo grupo social com regras,
linguagem, vestuário e simbologia específica.
Na segunda metade do século XX (mais precisamente nos anos 1960
americanos e 1980 brasileiros) esse grupo “marginalizado” é absorvido pelas
instituições e economia liberal-democratas na forma de clubes, associações,
profissionalização e comercialização dos símbolos de identificação cultural. Dentro
desse contexto, as regras de competição e organização dos campeonatos, serão
influenciados e moldados (na maioria das vezes) pelas forças de mercado,
representados por empresas e veículos de comunicação, que buscarão na
preservação da tensão/excitação decorrente do aumento da competitividade dos
eventos, uma maior espetacularização do desporto, a partir dos anos 1980. Com
o intuito de dinamizar a indústria de acessórios, que passará a patrocinar, em
substituição aos órgãos públicos, os campeonatos e os competidores.
Dentro dessa perspectiva, se por um lado o trabalho procurou entender a
introdução e desenvolvimento do surfe nas sociedades contemporâneas, como
inicialmente ligado a fatores de diferenciação social, por representar através de
uma prática esportiva e de lazer diferente de qualquer outra, uma comunhão
identitária de jovens que buscavam de certa forma chocar a opinião pública, se
opondo comportamentalmente a ela. Por outro lado, a conclusão do presente
trabalho entende esse processo como resultante da procura dos jovens por
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passatempos mais dinâmicos, que refletissem mimeticamente a liberação das
tensões inerentes a interdependência das relações sociais e das reconfigurações
dos meios de produção das sociedades capitalistas do século XX.
Esses dois fatores, inserção ao mercado (mídia) e procura por excitação,
significativamente atuantes no desenvolvimento da história social do surfe na
segunda metade do século XX, é visualizado ao longo da pesquisa através da
evolução técnica do desporto e das pranchas. Que a partir dos anos 1980
começam a ser confeccionadas para permitir manobras cada vez mais agressivas
e sensacionais, para um número crescente de espectadores.
Além disso, é notório observarmos que a institucionalização do surfe
buscou “domesticá-lo” para torná-lo menos instável aos investidores públicos e
privados, bem como proporcionar ao Estado um maior controle sobre o desporto e
os agentes envolvidos. Indivíduos que inicialmente encontraram na prática de uma
atividade não-convencional elementos de distinção social e de resistência política
e cultural.
REFERÊNCIAS
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