UNIDADES TÓPICAS E NÃO-TÓPICAS
Na história da análise do discurso francófona, a noção de formação discursiva, de início
muito valorizada, conheceu um claro declínio a partir dos anos oitenta, sem no entanto se
apagar ; continua ainda bastante utilizada, mas com um estatuto que não é muito claro. A partir
dessa constatação, parece que se abre uma alternativa: dar-se conta desse refluxo, prognosticando
o apagamento progressivo de uma noção vaga que pertenceria a uma época passada, ou, ainda,
mostrar que a marginalização da noção de formação discursiva testemunha um desvio da análise
do discurso. De minha parte, prefiro seguir uma terceira opção que consiste em mostrar o
interesse – e os limites – dessa noção; o que supõe uma reflexão sobre a natureza das unidades
reivindicadas atualmente pelos analistas do discurso, e, também, sobre a natureza da própria
análise do discurso.
Esse trabalho de esclarecimento não é supérfluo. Campo de pesquisa recente e que agrupa
correntes muito diversas, a análise do discurso tornou-se um domínio de pesquisa extremamente
ativo no mundo inteiro. Mas ela sofre de um déficit de legitimidade dada a heterogeneidade de
seus conceitos e procedimentos. Também não se beneficia da indulgência atribuída às disciplinas
de aplicação (como a didática das línguas ou a tradução automática) que podem se legitimar
pelos serviços que prestam a este ou àquele setor da sociedade. O que não quer absolutamente
dizer que não haja aplicação da análise do discurso. Ela apresenta, além disso, a particularidade
de não se referir a um gesto fundador: para ela, não há um Durkheim ou um Saussure, mas a
reavaliação de práticas de análise textual mais antigas e a convergência progressiva, nos anos
1980 e 1990, de correntes européias e anglo-saxãs que apareceram e se desenvolveram
independentemente umas das outras. Essa « convergência » não vai, no entanto, no sentido de
uma homogeneização; ela significa somente que existe constituição de um verdadeiro campo.
I
Uma dupla paternidade
Este texto é em parte inédito; ele resulta da reescritura de um artigo publicado em 2003 em Romanistisches Jahrbuch (Band 43, p.109-118) sob o título « Que unidades para a análise do discurso ? »
Quando nos defrontamos com a noção de formação discursiva, somos obrigados a situá-la
em relação a dois tipos de categorias que se privilegiam hoje em dia na análise do discurso: umas
giram em torno do « posicionamento » da construção e da gestão de uma identidade em um
campo discursivo, outras em torno do « gênero » (de texto, ou de discurso, como veremos), isto
é, dos dispositivos de comunicação verbal em uma dada sociedade. Porém, sobre esse ponto, as
coisas não são claras.
A noção de « formação discursiva », com efeito, sofre e se beneficia simultaneamente de
uma dupla paternidade: aquela de Michel Foucault, que a introduziu em 1969 na Arqueologia do
Saber, mas que não reivindica absolutamente a análise do discurso, e aquela de Michel Pêcheux,
que fez dessa noção a unidade de base da chamada « Escola francesa de análise do discurso »,
em sentido estrito1, a qual ancora sua inspiração no marxismo althusseriano, na psicanálise
lacaniana e na lingüística estrutural.
No caso de Michel Foucault, é difícil – dizer isso é pouco – fixar o valor do conceito de
« formação discursiva », que se transforma sem cessar no fio da Arqueologia do Saber. O leitor
oscila constantemente entre uma interpretação em termos de « regras » e uma outra em termos de
« dispersão », a ponto de aí se perder. Percebe-se isso em particular no capítulo II (« As
formações discursivas »), no qual Foucault parece obedecer a duas injunções contraditórias :
definir os sistemas e desfazer toda unidade. Daí as formulações serem, à primeira vista, um
pouco desconcertantes :
« Tal análise não tentaria isolar, para descrever sua estrutura interna, pequenas ilhas de
coerência; se atribuiria a tarefa de suspeitar e trazer à luz os conflitos latentes; mas estudaria
formas de repartição (...)
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante
sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as
escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e
funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e conseqüências,
1 Oponho esse « sentido estrito » àquilo que eu chamo de as « tendências francesas » em análise do discurso, que
convocam pressupostos teóricos muito diferentes.
inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como « ciência » ou « ideologia »,
ou « teoria » ou « domínio de objetividade » (Foucault, 1969/1987: 43) 2.
Nessa passagem, a formação discursiva é apresentada simultaneamente como conjunto de
enunciados submetidos a uma mesma « regularidade » (2° parágrafo) e « dispersão » que excede
toda « coerência » (1° parágrafo ). Essa dupla linguagem, bem condensada naquilo que pretende
ser talvez um oxímoro (« sistema de dispersão ») dá trabalho aos exegetas da obra de Foucault ;
não faltarão soluções engenhosas para resolver essa dificuldade, mas aquele que se inscreve nos
procedimentos das ciências humanas ou sociais tem o direito de ficar perplexo.
Para Michel Pêcheux, nós dispomos de uma formulação muito mais clara no artigo
escrito em colaboração com Claudine Haroche e Paul Henry, « A semântica e o corte
saussuriano » (Pêcheux et al., 1971). O termo é emprestado de Foucault, mas se inscreve na rede
conceitual do althusserianismo, ao qual se filia Pêcheux, que usa constantemente « formação
social» e « formação ideológica ». A referência aos « clássicos do marxismo » lhe permite
definir a formação discursiva como « determinando o que pode e deve ser dito (articulado sob a
forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) a
partir de uma posição dada em uma conjuntura dada » (Pêcheux et al., in Maldidier, 1990: 148).
Vemos aparecer nesse trecho a « posição » e o «gênero», por meio dos exemplos dados entre
parênteses, que são todos gêneros de discurso. No entanto, essa noção de « posição » não é
aquela de « posicionamento », no sentido que esse termo adquire correntemente em análise do
discurso. O posicionamento se define no interior de um campo discursivo, enquanto a
« posição », da qual fala Pêcheux, é inscrita no espaço da luta de classes.
Os parênteses abertos no trecho extraído de Pêcheux (« articulados sob a forma… »)
podem, a priori, ser objeto de uma dupla leitura, segundo se dá ênfase « àquilo que pode e deve
ser dito » ou « articulado sob a forma de uma arenga. ». Na primeira leitura, a menção a diversos
gêneros é acessória; na segunda, o discurso não pode ser « articulado » senão por meio de um
gênero de discurso; e é preciso, então, pensar a relação entre « posição », de uma parte, e
« arenga», « sermão » etc., de outra parte. O itálico de insistência sobre « o que pode e deve ser
dito », mas também o conhecimento do pensamento de Pêcheux incitam a optar pela primeira
leitura, que relega a segundo plano a problemática do gênero. É a « posição » que é
determinante, e o gênero de discurso não parece ser outra coisa que o lugar onde se manifesta
2 As referências para o público brasileiro são dadas com a paginação da tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 3a edição (N.T).
alguma coisa que, por essência, está escondido, seguindo nesse aspecto o modelo psicanalítico
dominante na época.
Percebe-se que a noção de formação discursiva é tomada, desde a origem, segundo duas
problemáticas muito diferentes, que não definem claramente suas relações com o par
« gênero »/ « posicionamento ». Além disso – e este é um ponto importante quando se trata de
análise do discurso - os corpora de referência dos dois autores são muito diferentes: Foucault
busca seus exemplos na história das ciências; Pêcheux, na luta política (nota-se que os gêneros
citados entre parênteses privilegiam claramente os gêneros com finalidade ideológica aberta). O
valor de « formação discursiva » é então consideravelmente afetado.
Uma situação confusa
Atualmente os analistas de discurso estão longe das linhas programáticas de Foucault e
Pêcheux. À diferença das definições de « gênero» e de « posicionamento » ou de suas
transformações terminológicas, em relação às quais os pesquisadores discutem abundantemente,
a de « formação discursiva » é, na maioria das vezes, empregada como evidente. A título de
exemplo, pode-se considerar o livro de Jean-Michel Adam, Lingüística textual. Dos gêneros de
discurso aos textos (1999). A seção 2 do capítulo 3 se intitula « Gêneros, interdiscurso e
formações discursivas ». O leitor espera a definição dessas três noções; o que acontece
efetivamente para as duas primeiras. Para a terceira, encontra-se a seguinte definição:
Seguindo a definição da Arqueologia do saber : « Chamaremos de discurso um conjunto
de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva » (Foucault,
1969/1987:135). Os discursos se formam de maneira regrada no interior do espaço de
regularidade que constitui um interdiscurso. Essas regularidades não são outras que os
gêneros próprios a uma formação sociodiscursiva. (Adam, 1999: 86).
Se o termo é colocado em evidência no título, sua explicação continua, no entanto, pouco
explícita : é o « discurso » que é definido em relação à « formação discursiva ». Aparentemente,
o autor tem necessidade da noção de formação discursiva para nomear um excedente, alguma
coisa que não seria redutível ao gênero, nem ao posicionamento. Além do mais, Adam passa de
« formação discursiva » à « formação sociodiscursiva », sem que se saiba exatamente se os dois
termos são sinônimos. A partir dos contextos de emprego de « formação sociodiscursiva » nesse
livro, pode-se pensar que se trata de variantes, mais ou menos equivalentes a « tipo de
discurso » : assim o capítulo 8 apresenta « uma mudança de formação discursiva » (título da
página 175), reformulada em « mudança de formação sociodiscursiva », a qual revela ser a
passagem de um fait divers a um poema, do discurso jornalístico ao discurso poético. Certamente
tal uso não corresponde nem à problemática de Foucault, nem àquela de Pêcheux.
Poderíamos fazer levantamentos sistemáticos dos empregos de « formação discursiva »
nos trabalhos de análise do discurso, para circunscrever mais precisamente sua área de uso, sua
margem de variação, segundo as vias tradicionais da análise lexicológica. Confiando em minha
experiência de leitor, na maioria das vezes emprega-se ‘formação discursiva’ « na falta de uma
expressão melhor », nas situações em que o analista encontra um conjunto de textos que não
corresponde a uma categorização clara.
Pode-se encontrar uma ilustração na obra recente de Annie Kuyumcuyan, Diction et
mention3 que se inscreve na teoria modular de Roulet, isto é, em uma outra problemática que
aquelas que deram origem à noção de formação discursiva. Essa noção não se encontra aí
definida, mas encontram-se enunciados como este :
Sem dúvida pareceria incongruente tratar de interação narrativa literária à seqüência de
observações relativas à análise dos diálogos, considerando as diferenças múltiplas (de
gênero, de disciplina, de intenção…) que separam suas formações discursivas respectivas.
(2002 : 250)
O autor, devendo opor narração literária e conversação autêntica, lança o termo « formação
discursiva » sem dúvida porque ele é vago e porque permite evitar noções mais bem
especificadas, mas inadequadas aqui, como « gênero » ou « tipo de discurso ».
Esse embaraço não é próprio de um ou outro pesquisador; quando redigi o verbete
« Formação discursiva » para o Dictionnaire d’analyse du discours, co-dirigido com P.
Charaudeau, eu mesmo substituí « formação discursiva » por « posicionamento », devido à
incapacidade em que me encontrava de atribuir-lhe um estatuto bem claro.
3 Bern, Peter Lang, 2002.
II
Não se pode dar um estatuto mais claro à noção de formação discursiva se não se leva em
conta o conjunto de termos que designam as categorias sobre os quais a análise do discurso
trabalha. Vou, então, distinguir dois grandes tipos de unidades: as unidades tópicas e as unidades
não-tópicas.
As unidades tópicas
1. As unidades territoriais
Há unidades que se poderiam chamar de unidades territoriais, as quais correspondem a
espaços já « pré-delineados» pelas práticas verbais. Pode se tratar de tipos de discurso
relacionados a certos setores de atividades da sociedade: discurso administrativo, publicitário,
político, etc., com todas as subdivisões que quisermos. Esses tipos englobam gêneros de
discurso, entendidos como dispositivos sócio-históricos de comunicação, como instituições de
palavras socialmente reconhecidas. Mesmo os gêneros que são definidos pelo próprio autor
também o são no interior de práticas verbais instituídas, como é freqüentemente o caso em
literatura ou em filosofia. Tipos e gêneros de discurso são tomados em uma relação de
reciprocidade: o tipo é um agrupamento de gêneros; todo gênero só o é porque pertence a um
tipo.
Isso dito, a noção de tipo de discurso é heterogênea; trata-se de um princípio de
agrupamento de gêneros que pode corresponder a duas lógicas diferentes: a do co-pertencimento
a um mesmo aparelho institucional e a da dependência em relação a um mesmo posicionamento.
Com efeito, não é a mesma coisa falar de « discurso hospitalar » e de « discurso comunista ». O
« discurso hospitalar » consiste na interação dos diversos gêneros de discurso em um mesmo
aparelho, no caso, o hospital (reuniões de trabalho, consultas, receitas, etc.). O « discurso do
partido x », por outro lado, consiste na diversidade dos gêneros de discurso produzidos por um
posicionamento determinado no interior do campo político (jornal cotidiano, panfletos,
programas eleitorais etc.). No primeiro caso, estamos em uma lógica de funcionamento do
aparelho. No segundo, em uma ótica de luta ideológica, de delimitação de um território
simbólico contra outros posicionamentos; os gêneros aí se agrupam, então, em dois níveis: o
nível do posicionamento e o do campo ao qual esse posicionamento concerne. Mas nada impede
que se aborde também o discurso de um partido político como discurso de aparelho: nesse caso,
são os gêneros de discurso ligados ao funcionamento do partido que serão levados em conta.
2. As unidades transversas
Em análise do discurso, fazemos apelo igualmente às unidades que poderíamos chamar
de transversas, no sentido em que elas atravessam textos de múltiplos gêneros de discurso.
Podemos falar aqui de registros definidos a partir de três tipos de critérios: (a) lingüísticos; (b)
funcionais; (c) comunicacionais:
(a) Os registros lingüísticos são freqüentemente definidos sobre bases enunciativas: a
mais célebre tipologia é aquela que E. Benveniste (1966) estabeleceu entre « história » e
«discurso». Ela foi complexificada em seguida, em particular por J. Simonin-Grumbach
(1975) e Jean-Paul Bronckart (Bronckart et al., 1985). Há também tipologias fundadas
sobre as estruturações textuais, como as « seqüências» de Jean-Michel Adam (1999).
(b) Quanto aos registros definidos por critérios funcionais, conhecemos o célebre
esquema das seis funções de Jakobson, mas há outros, que se esforçam em classificar os
textos postulando que a linguagem é diversamente mobilizada segundo ela desempenhe
uma ou outra função dominante.
(c) Há também as unidades definidas por uma combinação de traços lingüísticos (em
geral enunciativos), funcionais e sociais para atingir registros de tipo comunicacional:
“discurso cômico », « discurso de vulgarização », «discurso didático», etc. Esses
discursos investem em certos gêneros privilegiados, eles não podem estar fechados
nesses gêneros. A vulgarização é a finalidade fundamental de certas revistas ou manuais,
por exemplo, mas ela aparece também no jornal televisado, na imprensa cotidiana, etc.
As unidades não-tópicas
As unidades não-tópicas são construídas pelos pesquisadores independentemente de
fronteiras preestabelecidas (o que as distingue das unidades “territoriais”). Por outro lado, elas
agrupam enunciados profundamente inscritos na história (o que as distingue das unidades
«transversas»).
1. As formações discursivas
Unidades como « o discurso racista », « o discurso colonial », o « discurso patronal », por
exemplo, não podem ser delimitadas por outras fronteiras senão aquelas estabelecidas pelo
pesquisador; e elas devem ser especificadas historicamente. Os corpora aos quais elas
correspondem podem conter um conjunto aberto de tipos e de gêneros do discurso, de campos e
de aparelhos, de registros. Podem também, segundo a vontade do pesquisador, misturar corpus
de arquivos e corpus construídos pela pesquisa (sob a forma de testes, entrevistas, questionários).
É para esse tipo de unidade que o termo « formação discursiva », me parece, pode convir.
Com efeito, pode-se afinar bastante a caracterização dessas formações discursivas, que
abrem outras possibilidades além daquelas que exemplificam entidades como « o discurso
racista». A delimitação e o estudo dessas últimas implicam realmente a construção de corpora
heterogêneos, mas os textos de gêneros diversos que se encontram assim reunidos são unificados
em um nível superior por um foco único que os faz convergir: atrás da diversidade dos gêneros e
dos posicionamentos que dizem respeito aos textos do corpus assim construído, encontra-se a
onipresença de um «racismo» inconsciente que governa a fala dos locutores. Mas nada impede
que se definam as formações discursivas que não sejam igualmente organizadas a partir de um só
foco.
Ilustrarei essa reflexão por meio de um exemplo extraído de meus próprios trabalhos.
Interessando-me recentemente pela relação ideológica que se estabeleceu no fim do séc. XX
entre os europeus e os «indígenas» de regiões «exóticas», defini uma configuração de textos
distribuída em dois conjuntos: de um lado, romances, de outro manuais escolares4. Os romances
4 « As " Viagens extraordinárias " e o discurso escolar », Comunicação no Colóquio « Do escrito à tela: Julio
Verne e os povos indígenas », Maison de la Culture d’Amiens, 2005 (no prelo).
eram constituídos pelas Viagens Extraordinárias de Júlio Verne5; os manuais eram os da escola
republicana leiga que se desenvolvia naquela época na França. Integrei assim, em um mesmo
espaço, dois conjuntos discursivos, os quais, por certo, tinham uma visão educativa, mas não
eram relativos nem ao mesmo gênero, nem ao mesmo tipo de discurso; não se dirigiam ao
mesmo público, nem veiculavam uma mesma ideologia. No entanto, pareceu-me que colocar em
relação esses dois conjuntos de textos seria produtivo de um ponto de vista da análise do
discurso, sem que fosse necessário postular que tais conjuntos constituíam a manifestação de um
mesmo princípio escondido: esses dois focos estavam ligados (do contrário, o fato de relacioná-
los seria arbitrário), mas suas diferenças não eram anuladas em proveito de uma unidade
superior.
Proporei, então, discutir dois tipos de formações discursivas: aquelas que são « unifocais »
(o « discurso racista », por exemplo) e as que são « plurifocais » (a configuração que associa os
romances de Júlio Verne e os manuais escolares, por exemplo). Com esse objetivo, uma incursão
em direção à polifonia bakhtiniana pode se mostrar útil. Sabe-se que um dos domínios no qual o
pensador russo investiu a noção de polifonia foi o romance : ele opõe os romances monológicos,
estruturados por um ponto de vista dominante, e os romances que, como os de Dostoievski,
confrontaram pontos de vista divergentes ao invés de serem dominados pelo ponto de vista
onisciente do narrador6. Mais que no romance, o domínio no qual essa distinção é mais evidente
é o teatro, no qual há um « arquienunciador», responsável pela peça, e os diferentes locutores
que são os personagens (Maingueneau, 1990, cap. 7): uma peça mostra o confronto entre pontos
de vista, os quais o arquienunciador tem por missão unificar pelos menos esteticamente. É, com
efeito, a tensão constitutiva do teatro que leva a combinar uma irredutível heterogeneidade dos
pontos de vista e uma unificação de ordem estética.
Mutatis mutandis, o analista do discurso que configura uma formação discursiva
plurifocal é um pouco como um dramaturgo. Da mesma maneira que este constrói um espaço no
qual as posições que se confrontam não estão unifocadas, o analista do discurso, a partir de
hipóteses de trabalho argumentadas, associa diversos conjuntos discursivos em uma mesma
configuração sem, no entanto, reduzir sua heteronímia. Mas trata-se de uma analogia parcial:
enquanto o dramaturgo não faz senão mostrar na cena a interação das vozes, o analista do
5 Vinte Mil Léguas Submarinas, Cinco semanas em balão, Casa a vapor, etc.6 La poétique de Dostoievski, trad.fr., Paris, Seuil, 1970. No português do Brasil, A poética de Dostoïevski, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1981. (NT).
discurso é obrigado a justificar explicitamente o dispositivo que ele constrói, apoiando-se sobre
saberes e normas de argumentação partilhadas pelas comunidades de pesquisadores aos quais ele
pertence.
Contudo, não é suficiente comparar vários conjuntos discursivos para que se possa falar
de formação plurifocal: é preciso ir além da simples comparação, que visa apenas melhor
depreender as especificidades de vários conjuntos discursivos. Com efeito, quando há
plurifocalização, a configuração não coloca em relação conjuntos autônomos, mas cria uma
unidade específica, que não se deixa reduzir a seus componentes. É em definitivo a orientação
dada à pesquisa que permite decidir se se trata de uma simples comparação ou de uma
plurifocalização. Consideremos, por exemplo, a tese em análise do discurso sustentada por C.
Oger en 20027, o qual constrói seu corpus associando os relatos da banca examinadora de três
concursos de altos funcionários franceses. A priori, podem-se entrever três possibilidades de
tratamento de um tal corpus: (1) uma comparação, uma análise contrastiva de três sub-corpora ;
(2) a definição de uma formação discursiva unifocal, que mostra que os três sub-corpora são de
fato regidos por um mesmo sistema de regras ; (3) a definição de uma formação discursiva
plurifocal, que mantém a heterogeneidade de três sub-corpora.
O caso (2) pode ser ilustrado pelo modo de pensar de Michel Foucault em As palavras e
as coisas (1966), no qual o autor faz convergir três conjuntos discursivos (« História natural »,
« A análise das riquezas», « A Gramática geral ») à primeira vista incomparáveis. Seu trabalho
consiste em mostrar que, na realidade, esses três conjuntos são regidos por um mesmo sistema de
regras, além da evidente diferença de seus objetos. A convergência que o analista revela não é
dada de início: tal convergência produz acontecimentos cujo interesse aumentará quanto mais
inesperada for a configuração de textos da qual tal convergência resulte.
Para o caso (3), eu penso dar o exemplo de minhas pesquisas – já antigas – sobre o
discurso religioso no século XVII8. Quando eu construí um « espaço discursivo » que
relacionava duas unidades tópicas, neste caso, dois posicionamentos em um mesmo campo – o
humanismo devoto e o jansenismo -, não era para comparar esses dois posicionamentos, mas
7 Candidatos-modelo, culturas e métodos. A prova de cultura geral em três concursos de seleção de elites da função pública (Escola de Guerra, Escola Nacional de Administração, Escola Nacional de Magistratura). Analyse de discours des rapports de jurys, tese defendida em 22 de novembro de 2002, em Paris XII.8 Voir Genèses du discours, Liège, 1984 (trad. para o português do Brasil por S. Possenti, sob o título Gênese dos discursos, Curitiba, Criar, 2005).
para construir uma unidade bifocal, uma interação fundada sobre um processo de
« interincompreensão» regulada.
É então necessário ressaltar o caráter dinâmico e agentivo do termo «formação» em
«formação » discursiva. Em vez de considerá-lo em uma perspectiva puramente estática como
referindo-se a uma entidade já existente, o analista, em função de sua pesquisa, dá forma a uma
configuração original. Isso permite o afastamento de uma concepção « especular » da construção
de corpus. Freqüentemente, com efeito, considera-se o corpus como uma espécie de condensado,
de espelho de um conjunto de textos cuja unidade seria dada de antemão; daí as discussões
acirradas para saber se o corpus é suficientemente « representativo ». A questão da
representatividade é, sem dúvida, fundamental, mas ela não deve permitir que se esqueçam as
operações que permitem instaurar esse corpus. Isso é verdadeiro quando se trata de uma
formação discursiva «unifocal» e é ainda mais evidente, quando se trata de uma formação
discursiva «plurifocal»: nesse último caso, os conjuntos textuais postos em relação não são
dados, mas seu encontro em uma mesma formação discursiva é uma espécie de ato violento do
analista, uma contestação das fronteiras que estruturam o universo do discurso.
Poderíamos igualmente ilustrar essa idéia por meio de exemplo da pintura abstrata em
oposição à pintura figurativa. Os especialistas o sabem bem: a pintura figurativa não é em nada o
desdobramento de uma realidade já existente, mas é inegável que seu caráter figurativo tende a
ocultar o arbitrário de seus códigos. Não é a mesma coisa para a pintura abstrata que, ao
contrário, coloca em evidência a independência da representação pictórica em relação à
“realidade”. E da mesma maneira que um quadro abstrato visa de início a interrogar nosso acesso
a essa « realidade», uma formação discursiva plurifocal coloca em primeiro plano as
interrogações que a pesquisa produz. Ela mostra que o pesquisador constrói uma certa
configuração de textos para constranger o universo do discurso a responder às questões que ele
elaborou.
O recurso às formações discursivas plurifocais é arriscado. O analista deve, com efeito,
satisfazer simultaneamente a duas exigências cuja compatibilidade não é evidente. É preciso, de
um lado, liberar-se parcialmente dos recortes preestabelecidos, de modo a definir um modo de
acesso a certo setor da produção discursiva; de outro lado, é preciso que a configuração que se
constrói não seja arbitrária a fim de dar uma inteligibilidade àquilo para o qual foi concebida.
Procedendo assim, o analista se encontra exposto a todas as formas de delírio interpretativo e de
circularidade, ameaçado de encontrar no fim aquilo que ele formulou no início. Além disso, é
difícil não reduzir, in fine, toda a forma de plurifocalização a uma forma de «unifocalização »,
porque, diante de um texto ou um conjunto de textos que parecem heterogêneos, as rotinas
interpretativas que as instituições universitárias valorizam incitam a procurar um princípio
unificador, uma coerência escondida.
2. Os percursos
Pratica-se também em análise do dicurso o estabelecimento em rede de unidades de
diversas ordens (lexicais, proposicionais, fragmentos de textos) extraídas do interdiscurso, sem
procurar construir espaços de coerências, constituir totalidades. O pesquisador pretende, ao
contrário, desestruturar as unidades instituídas definindo percursos não esperados : a
intepretação apóia-se, assim, sob a atualização de relações insuspeitas no interior do
interdiscurso. Tais percursos são, hoje em dia, consideravelmente facilitados pela existência de
programas de informática que permitem tratar corpora muito vastos.
Podem-se também considerar os percursos de tipo formal (por exemplo, tal tipo de
metáfora, tal forma de discurso relatado, de derivação sufixal...); mas, nesse caso, se não se
trabalha sobre um conjunto discursivo bem especificado (em particular um gênero de discurso ou
um posicionamento), cai-se em uma análise puramente lingüística. Podem-se igualmente
considerar percursos fundados sobre materiais lexicais ou textuais (por exemplo, a retomada ou
as transformações de uma mesma fórmula em uma série de textos, ou ainda as diversas
recontextualizações de um « mesmo texto »). É assim que um trabalho foi desenvolvido sob a
fórmula « depuração étnica » (Krieg-Planque 2003); trata-se, antes de tudo, de explorar uma
dispersão, uma circulação, e não de relacionar uma seqüência verbal a uma fonte enunciativa.
Esses « percursos » suscitam reações ambivalentes. É com efeito muito sedutor
atravessar múltiplas fronteiras, circular no interdiscurso para fazer aparecer relações invisíveis
particularmente propícias às interpretações fortes. Mas o reverso da medalha é a dificuldade em
justificar as escolhas operadas e, então, corre-se o risco daquilo que chamamos, habitualmente,
de delírio interpretativo, ou, mais simplesmente, o risco de se encontrar na conclusão aquilo que
se propôs no início.
Se retomarmos os diferentes tipos de unidades que evocamos, chegamos assim a um
quadro:
Unidades tópicas Unidades não-tópicas
Territoriais Transversas Percursos
Tipos / Gêneros de discurso
Gêneros concernentes a campos
Gêneros concernentes
a aparelhos
Registros lingüísticos
Registros funcionais
Registros
comunicacionais
Formações discursivas
Unifocais Plurifocais
Entre esses modos de agrupamento de unidades discursivas, aqueles que despertam mais
facilmente alguma suspeita são as unidades não-tópicas : « formações discursivas » e
« percursos ». Com efeito, elas não são estabilizadas por propriedades que definem fronteiras
pré-formatadas (qualquer que seja a origem dessa formatação), o princípio que as agrupa é uma
decisão tomada exclusivamente pelo analista. Não se poderia, no entanto, exagerar a distância
entre unidades tópicas e não-tópicas. De uma parte, as unidade tópicas, por mais « pré-
formatadas » que sejam, colocam ao pesquisador múltiplos problemas de delimitação, como
sempre ocorre nas ciências humanas ou sociais. Por outro lado, a construção de formações
discursivas ou de percurso não está submetida a um único capricho dos pesquisadores: há um
conjunto de princípios, de técnicas que regulam esse tipo de atividade hermenêutica. É verdade
que essas « regras da arte » estão freqüentemente implícitas, que elas são adquiridas por
impregnação, mas podemos presumir que, com o desenvolvimento da análise do discurso, a
construção das unidades será cada vez menos deixada ao capricho dos pesquisadores. Aliás,
mesmo as práticas hermenêuticas que não se submetem jamais a critérios de cientificidade
desenvolvem verdadeiros métodos de leitura: assim, a famosa teoria dos « quatro sentidos » da
Escritura na exegese cristã ou as técnicas de leitura praticadas pelos psicanalistas.
III
Essa rápida síntese das unidades às quais recorrem os analistas do discurso não coloca
apenas problemas de metodologia, mas nos obriga a interrogar sobre a natureza mesma desse
domínio de pesquisa. Muitos estão tentados a se restringir às unidades « tópicas », isto é, às
unidades « de domínio », que julgam as únicas suscetíveis de serem objetivadas ; outros,
privilegiando uma visão radicalmente « interpretativa », preferem, ao contrário, apegar-se apenas
às unidades « não-tópicas ».
De meu ponto de vista, não pode haver análise do discurso, no sentido de uma disciplina
caucionada empiricamente e integrante das ciências humanas, se ela não construir um saber
sobre as unidades tópicas, aquelas que se apóiam sobre cartografias dos usos linguageiros. Mas
não pode também haver análise do discurso se houver exclusão das formações discursivas e dos
percursos, isto é, de unidades que contrariam as fronteiras preestabelecidas. Restringir a análise
do discurso apenas às unidades tópicas seria denegar (no sentido psicanalítico) a realidade do
discurso, que é colocada em relação permanente do discurso e do interdiscurso : este último
« trabalha » o discurso, que em retorno o redistribui perpetuamente. É desse impossível
fechamento que me parece testemunhar a persistência da noção de formação discursiva : não
haveria análise do discurso se não houvesse agrupamentos de enunciados inscritos nas fronteiras,
mas, por outro lado, também não haveria análise do discurso, se o sentido se fechasse nessas
fronteiras.
Estabeleci há algums anos uma distinção entre a abordagem « analítica » e a abordagem
« integradora » (Maingueneau, 1991 : 26); tratava-se já de um modo de evidenciar – na
conjuntura da Escola francesa dos anos 1960 e 1970 – essa fissura que impede a análise do
discurso de fechar-se sobre ela mesma. É necessário assumi-lo : estamos lidando com uma
« disciplina » que estava cindida por uma fissura constitutiva. É impossível fazer a síntese entre
uma abordagem que se apóia sobre fronteiras e uma que se nutre dos limites pelos quais a
primeira se institui. Entre as duas há uma assimetria irredutível. Os partidários das fronteiras têm
bons argumentos para sublinhar os riscos ligados ao uso das unidades não-tópicas ; por outro
lado, os partidários das unidades não-tópicas podem também com facilidade mostrar que uma
infinidade de relações interdiscursivas atravessam as unidades mais tópicas; e que a sociedade
está permeada de conjuntos de palavras que, embora não tenham um lugar determinado, são
mobilizadoras : o sentido é fronteira e subversão da fronteira, negociação entre pontos de
estabilização da fala e forças que excedem toda localidade. Situação eminentemente
desconfortável porque vemos assim se justaporem, isto é, se intricarem, muitas vezes, na mesma
pesquisa, dois modos de abordagem heterônomos.
Tanto Foucault quanto Pêcheux procuraram preservar simultaneamente o caráter tópico das
unidades mobilizadas pela análise do discurso e sua inconsistência. A problemática de Pêcheux
fazia assim coexistir uma visão do discurso profundamente « analítico » - de inspiração
precisamente psicanalítica - que acentuava o processo de deslocamento, de condensação ou a
presença escondida e invasiva do interdiscurso no discurso, e uma visão cartográfica em termos
de « posição de classe », de « formação ideológica ». Em outro registro, Foucault também
apresentava uma visão dupla da discursividade, consistente e inconsistente ao mesmo tempo :
« sistema » e « dispersão ». É preciso levá-la em consideração de uma maneira ou de outra: a
análise do discurso não pode se fechar em um espaço homogêneo e compacto.
ARQUEOLOGIA E ANÁLISE DO DISCURSO*
Um inevitável mal-entendido
Limitarei duplamente meu objetivo. Primeiro, porque me interessarei apenas por A
Arqueologia do saber. Segundo, porque me interrogarei não sobre a contribuição de Michel
Foucault para uma filosofia da linguagem de inspiração pragmática ou para uma teoria do
poder e da ideologia, mas sim para a sua contribuição ao campo mais específico da análise do
discurso. Estou consciente de que isto pode parecer um modo curioso de fazer justiça a um
pensador considerando apenas um setor reduzido de sua obra e, sobretudo, de inscrevê-lo em
uma problemática que não é verdadeiramente a sua. Falar da contribuição de Michel Foucault
para o campo da análise do discurso só é possível no interior de um mal-entendido
fundamental : Foucault jamais se colocou como fundador de uma disciplina, senão de um
modo irônico que não deve nos iludir.
Poderia me justificar dizendo que nós estamos aqui em um congresso de pragmática,
não em um congresso de historiadores da filosofia. Porém, não se trata de recorrer a
justificativas tão pouco teóricas : não apenas a história dos percursos criativos é feita de
bifurcações, de mudanças inesperadas, de acréscimos, etc, mas ainda, em se tratando de
Foucault, é difícil invocar qualquer ortodoxia para essa reflexão que pretende mais abrir
pistas do que construir um sistema.
A Arqueologia não é um texto isolado na obra de Foucault; ela se inscreve em um
percurso entre As palavras e as coisas e a série de obras sobre a sexualidade. Situada,
juntamente com A ordem do discurso, entre a série de livros de orientação claramente
epistemológica e textos de tonalidade mais política, a Arqueologia embaraça os
comentadores, mesmo se todo bom especialista em filosofia se empenha em estabelecer
conexões entre esse livro e o resto da obra de Foucault.
Considerando a multiplicidade das correntes que atravessam o campo do discurso, não
se pode esperar que o conjunto dos analistas do discurso se interessem pelo empreendimento
de Foucault. Mas sua contribuição à análise do discurso não passa despercebida. O ano em
que foi publicada A Arqueologia do saber foi também o ano em que o número 13 da revista
Langages intitulado “A Análise do discurso” apareceu na França sob a forma daquilo que se
chamou mais tarde “Escola francesa”. A coincidência da simultaneidade dessas publicações é
importante para o historiador das idéias. “A Escola francesa de análise do discurso”, muito
influenciada pelo marxismo de Althusser e a psicanálise de Lacan, quebrava a continuidade
dos textos para estabelecer conexões invisíveis e revelar assim o trabalho de uma espécie de
inconsciente textual. Este procedimento da análise do discurso acreditava produzir uma
“ruptura epistemológica”, contribuindo para construir uma verdadeira ciência da ideologia
fundada simultaneamente sobre a lingüística estrutural, sobre o marxismo e sobre a
psicanálise. Eis que o livro de Foucault, longe de se inscrever nessa perspectiva, abria uma
concepção de discursividade que era orientada diferentemente. Como não se tratava apenas
de um conjunto de intuições brilhantes e como Foucault propunha uma rede fechada de
conceitos a serviço de uma concepção forte e coerente do discurso, ele não poderia deixar de
exercer uma forte atração sobre os analistas do discurso. Com efeito, A Arqueologia do saber
exerceu uma influência que poderíamos dizer « oblíqua », na medida em que essa obra se
afastava das correntes dominantes, mas sem definir claramente um espaço alternativo,
associado a um aparelho metodológico explícito.
Não vou retraçar a história complicada das relações entre Foucault e a análise do
discurso. O fato essencial é que o refluxo das correntes dominantes no fim dos anos sessenta
deu uma visibilidade crescente à Arqueologia, que se beneficiou do sucesso que as correntes
pragmáticas alcançaram no conjunto das ciências sociais e em lingüística, particularmente
pelo viés das teorias da enunciação. Mas sobre este ponto não se deve ser vítima de uma
ilusão retrospectiva, fazendo de Foucault o iniciador de problemáticas da análise do discurso
que, em realidade, não puderam ser marcadas por ele senão de forma indireta.
Ressaltarei primeiro alguns aspectos que, em meu ponto de vista, tornam difícil a
exploração do procedimento de A Arqueologia do saber. Evidenciarei, em seguida, algumas
idéias-força desse livro que me parecem produtivas para a análise do discurso, ao menos para
o tipo de análise do discurso que me interessa.
Um texto inapreensível
Não se podem discutir enumerar todas as dificuldades que A Arqueologia suscita quando
se tem a idéia inoportuna de interrogá-la do ponto de vista da análise do discurso. Há uma, no
entanto, que é radical: como ler tal texto? É necessário acreditar no autor quando ele se
propõe a refundar « essas disciplinas tão incertas de suas fronteiras, tão indecisas em seu
conteúdo que chamamos de história das idéias, ou do pensamento, ou das ciências, ou dos
conhecimentos »9 (p.23) ?
Não é que seja absolutamente necessário ordenar todos os livros em uma categoria, mas,
do ponto de vista em que nos colocamos aqui, essa ordenação é um obstáculo considerável. O
texto de Foucault tem de estranho o fato de entrelaçar modos de exposição claramente filosóficos
e outros que parecem provir de procedimentos clássicos nas ciências sociais. É assim que certos
capítulos da II e III partes propõem uma encenação eminentemente filosófica. Por exemplo, no
capítulo II, I (« As unidades do discurso ») o autor entende « libertar-se de todo um jogo de
noções que diversificam, cada uma à sua maneira, o tema da continuidade » (p.23), « deixar em
suspenso as unidades que se impõem da maneira mais imediata » (p.25), « colocar fora de
circuito as continuidades irrefletidas pelas quais se organiza, de antemão, o discurso que se
pretende analisar » (p.27), fazer aparecer « em sua pureza não-sintética, o campo dos fatos do
discurso » (p.29), projetar « uma descrição dos acontecimentos discursivos » (p.30), etc.
Reconhece-se aí a estrutura e o estilo da dúvida hiperbólica cartesiana ou da redução
fenomenológica
Outra dificuldade: a discordância entre o corpus de referência e a abrangência dos
conceitos colocados em circulação. O corpus de referência é em sua maior parte emprestado
de As palavras e as coisas, isto é à genealogia de algumas ciências desde a Renascença. A
isto se acrescentem materiais emprestados à história da medicina, primeiro campo de estudo
do autor. Trata-se então de um corpus reduzido se se pensa na amplitude e na radicalidade
das reflexões sobre « unidades do discurso » (II, I), « as formações discursivas » (II, II) ou
« a função enunciativa » (II, III), etc. Foucault o reconhece, aliás, no início do livro: o
privilégio atribuído às « ciências do homem » não é senão « um privilégio inicial . É preciso
ter em mente (...) que a análise dos acontecimentos discursivos não está, de maneira alguma, 9 As referências para o público brasileiro são dadas com a paginação da tradução de Luiz Felipe Baeta Neves,
Rio de Janeiro, Forense Universitária, 3a edição.
limitada a semelhante domínio » (p.34). Não podemos criticar o autor por se apoiar sobre um
corpus limitado; por outro lado, podemos nos perguntar se a especificidade de tal corpus não
modifica a própria teoria. Trata-se com efeito de tipos de textos para os quais a materialidade
lingüística e textual parece, erroneamente, aliás, mais facilmente escamoteável para outros.
Ainda que Foucault tenha falado de « discurso » ou de « função enunciativa », ele manipula
elementos que se situam em um nível de alguma forma pré-lingüístico. Isso não deixa de
influir sobre a concepção do discurso que ele propõe. Estas linhas são reveladoras:
O que se descreve como « sistemas de formação » não constitui a etapa final dos
discursos, se por este termo entendemos os textos (ou as falas) tais como se apresentam
com seu vocabulário, sintaxe, estrutura lógica ou organização retórica. A análise
permanece aquém desse nível manifesto, que é o da construção acabada (…) se ela
estuda as modalidades de enunciação, não põe em questão nem o estilo, nem o
encadeamento das frases; em suma, deixa esboçada a disposição final do texto.
(1969/1987 : 83-84)
Tal tipo de afirmação é dificilmente compatível com os postulados de qualquer análise do
discurso, que não pode senão recusar tal concepção estratificada segundo a qual a organização
textual seria apenas um fenômeno de superfície e as estratégias interacionais seriam redutíveis ao
estatuto de assessório: « estilo », « retórica »…
Essa dificuldade entra em consonância com aquelas que a noção mesma
de « arqueologia » suscita. O livro começa com a reivindicação de um projeto, transformar
os « documentos » em « monumentos », e persegue longamente essa metáfora
arqueológica ; mas trata-se também constantemente de « análise enunciativa » e de
« prática discursiva ». Percebe-se uma tensão constante entre a inspiração claramente
estruturalista dessa « arqueologia » e o movimento de pensamento que coloca em primeiro
plano a « função enunciativa » e, mais amplamente, as problemáticas que atualmente são
familiares às correntes pragmáticas.
Sobre esse ponto, não se pode ignorar a transformação posterior das ciências da
linguagem; um dos sintomas mais evidentes de tal transformação é o sucesso das
problemáticas da análise do discurso. Restringindo a lingüística ao estudo da frase, a
Arqueologia proporciona as condições necessárias para a preservação de suas ambigüidades.
Foucault recusa toda contribuição da lingüística que ele reduz a uma ciência da « língua » no
sentido saussureano, ou da « competência » no sentido chomskyano. Porém, não se pode ler a
Arqueologia deixando de lado a situação epistemológica que prevalecia na ocasião de sua
redação, na segunda metade dos anos sessenta. Dando uma concepção tão pobre da
lingüística, Foucault se confere o direito de reservar o campo do « discurso » à arqueologia
que ele parece promover, embora atualmente se esteja cada vez mais convencido de que se
deve estudar o discurso recorrendo-se às ciências da linguagem e não as ignorando ou
relegando-as a um espaço reduzido.
Algumas idéias-força
No entanto, um certo número de noções elaboradas pela Arqueologia constituem idéias-
força para a análise do discurso, ao menos para o estilo de análise do discurso que me
interessa.
• A afirmação daquilo que, no meu ponto de vista, funda toda verdadeira análise do
discurso, a saber, a opacidade do discurso, que não é redutível nem à língua, nem a instâncias
sociais ou psicológicas. Foucault tem fórmulas penetrantes sobre o assunto :
« Mas não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa
e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele,
e sim, pelo contrário, mantê-lo em sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que
lhe é própria (…) Gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de
contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um
léxico e uma experiência ; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que,
analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes
entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática
discursiva (…). Tarefa inteiramente diferente, que consiste em não mais tratar os
discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou
a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que
falam. » (1969/1987 : 54 e 56)
• Essa afirmação da irredutibilidade da ordem do discurso se marca em termos de
« prática discursiva », o que implica uma subjetividade enunciativa irredutível às formas
clássicas. Amarrando assim estreitamente discurso e instituição nos dispositivos de
enunciação que permitem simultaneamente o surgimento de eventos enunciativos os quais
constituem, por sua existência mesma, eventos, Foucault desestabiliza ainda as partilhas
tradicionais:
« O discurso, assim concebido, não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de
um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz : é, ao contrário, um conjunto em que
podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si
mesmo. É um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares
distintos. (…) não é nem pelo recurso a um sujeito transcedental nem pelo recurso a uma
subjetividade psicológica que se deve definir o regime de suas enunciações (= das
enunciações de uma formação discursiva10) » (1969/1987 : 61-62).
• Quanto à problemática do arquivo, ela permite a não redução do espaço do discurso a
uma topografia de textos de múltiplos tipos : o discurso não é jamais um dado, ele surge
sustentado por um ruído de práticas obscuras que o configuram e o fazem circular segundo
trajetórias que se confundem com seus múltiplos modos de existência :
« Entre a língua que define o sistema de construção de frases possíveis e o corpus que
recolhe passivamente as palavra pronunciadas, o arquivo define um nível particular : o
de uma prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como tantos
acontecimentos regulares, como tantas coisas oferecidas ao tratamento e à manipulação.
Tal prática não tem o peso da tradição; não constitui a biblioteca sem tempo nem lugar
de todas as bibliotecas; mas não é, tampouco, o esquecimento acolhedor que abre a
qualquer palavra nova o campo de exercício de sua liberdade; entre a tradição e o
10 A explicação entre parênteses foi feita pelo autor do artigo na versão francesa.
esquecimento, ela faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados
subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. É o sistema geral da
formação e da transformação dos enunciados.» (1969/1987 : 149-150).
• Tal problemática leva a guardar distância em relação à hermenêutica espontânea que
guia a análise de textos :
« A análise do pensamento é sempre alegórica em relação ao discurso que o pensamento
utiliza. Sua questão, infalivelmente, é: o que se dizia no que estava dito? A análise do
campo discursivo é orientada de forma inteiramente diferente; trata-se de compreender o
enunciado na estreiteza e singularidade de seu acontecimento; de determinar as condições
de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações
com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de
enunciação ele exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa
de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser outro (...). » (1969/1987 :
31)
Há em tal postura algo de ascético que não pode ser levado ao extremo. No entanto, trata-se
de uma condição sine qua non para aceder plenamente à discursividade, para não atravessar o
discurso como uma superfície fina de modo a chegar a um sentido que não lhe é próprio.
• A essas idéias de abrangência extremamente geral, acrescentarei uma que concerne mais
particularmente ao tipo de análise do discurso sobre o qual trabalho há alguns anos, a de
« discursos constituintes », isto é, discursos (religioso, literário, científico, filosófico, etc.)
que em uma determinada sociedade gerenciam os fundamentos da imensa massa de palavras
sem serem fundadas por elas. Parece-me que o aporte de A Arqueologia é aqui de grande
importância, devido à crítica radical que esse livro faz dos pressupostos do procedimento
filológico: quando Foucault recusa noções como « visão de mundo », « autor »,
« documento », « influência », « contexto », etc., ele libera espaço para um procedimento de
análise do discurso centrado sobre o que chamo « instituição discursiva », enlaçamento
recíproco de um uso da língua e de um lugar nesses dispositivos de enunciação que são os
gêneros de discurso. Apoiando-se sobre A Arqueologia, sobre as teorias da enunciação
lingüística e a pragmática, pode-se repensar todo um conjunto de práticas e de noções
imemoriais que ainda dominam nossa abordagem do texto.
Falei apenas em função de minha concepção de análise do discurso imagino que outros
considerariam diferentemente A Arqueologia, ou mesmo não privilegiariam necessariamente
esse livro na obra de Foucault. Reconheço que minha leitura foi duplamente infiel. Quando
esse livro foi publicado, ele pode ter parecido não atual. Não se via imediatamente como
ligá-lo aos saberes que o cercavam : com efeito, foi uma série de transtornos posteriores que
o tornaram cada vez mais legível. Somos, então, incitados a lê-lo, como eu o faço, da
maneira pela qual Foucault se recusava a ler os textos dos outros: como a prefiguração de um
discurso a vir.
Minha leitura foi também infiel no sentido de haver interrogado essa obra a partir de uma
disciplina cuja legitimidade Foucault recusa. Se devêssemos comentar Foucault como
filósofo, deveríamos procurar compreender a ambivalência de A Arqueologia e mostrar
como, simultaneamente, ela estrutura e desfaz seu discurso. Porque o desenvolvimento de
seu pensamento não é ambivalente por acidente; é a condição de um modo de pensar que
instaura meticulosamente um mundo conceitual mas que ao mesmo tempo esquiva, por meio
de uma série sempre aberta de negações ou denegações, toda fundação e todo território.
OS DISCURSOS CONSTITUINTES11
Problemas de delimitação
Até hoje não foi justificada a necessidade de se agrupar numa unidade consistente
discursos como o discurso religioso, o filosófico, o literário, o científico, etc. Enquadrá-los
em uma mesma categoria, a de discursos constituintes, permite porém pôr em evidência
propriedades comuns que são invisíveis ao primeiro olhar. Semelhante categoria possibilita
abrir um programa de trabalho que nos parece promissor.
A pretensão desses discursos, assim chamados por nós de “constituintes”, é de não
reconhecer outra autoridade que não a sua própria, de não admitir quaisquer outros discursos
antes deles. Isso não significa que as diversas outras zonas de produção verbal (a
conversação, a imprensa, os documentos administrativos, etc.) não exerçam ação sobre eles;
bem ao contrário, existe uma interação constante entre discursos constituintes e não-
constituintes, assim como entre discursos constituintes. Mas faz parte da natureza destes
últimos negar essa interação ou pretender submetê-la a seus princípios. Os discursos
constituintes operam a mesma função na produção simbólica de uma sociedade, uma função
que nós poderíamos chamar de archeion. Esse termo grego, étimo do latino archivum,
apresenta uma polissemia interessante para a nossa perspectiva: ligado a archè, “fonte”,
“princípio”, e a partir daí “comando”, “poder”, o archeion é a sede da autoridade, um
palácio, por exemplo, um corpo de magistrados, mas também os arquivos públicos. O
archeion associa assim intimamente o trabalho de fundação no e pelo discurso, a
determinação de um lugar associado a um corpo de enunciadores consagrados, e uma gestão
da memória.
Discursos como o religioso, o científico e o filosófico são evidentemente constituintes.
O discurso político nos parece operar sobre um plano diferente: ele se situa na confluência
dos discursos constituintes, sobre os quais se apóia (invocando a ciência, a religião, a
filosofia, etc.), e os múltiplos extratos da doxa da coletividade. Mas se, fundamentalmente, os
discursos constituintes se definem pela posição que ocupam no interdiscurso, pelo fato de
11 Artigo inédito resultado da síntese de diversos textos publicados sobre o assunto desde aquele que eu escrevi com F. Cossutta em 1995 (Langages n° 117, 1995, p. 112-125).
não reconhecerem discursividade para além da sua e de não poderem se autorizar senão por
sua própria autoridade, mais importante do que os listar, é compreender o modo de
“constituição” que os caracteriza. Não se pode responder sim ou não à pergunta que interroga
se a psicanálise, por exemplo, é um discurso constituinte: conforme a concebia Lacan, não há
dúvida, mas quando se trata de uma simples disciplina terapêutica, certamente não. Tudo
depende da maneira como ela se institui.
Seguindo essa lógica, em contrapartida, nada impede de considerar a literatura um
discurso constituinte, embora isso choque a alguns. Sem dúvida porque mais ou menos
conscientemente assimilam “constituinte” e “fundador”. A reflexividade fundamental,
segundo a qual um discurso constituinte não pode obter autorização senão de si próprio,
varia, na verdade, conforme o discurso considerado. A “constituição” não funciona de um
único modo, ela adota tantos regimes quanto são os distintos discursos constituintes. Não é
então porque não reflete seu fundamento sob o modo do conceito ou da revelação divina que
a literatura não pertence a essa categoria.
Os discursos constituintes dão sentido aos atos da coletividade, eles são a garantia [os
fiadores] de múltiplos gêneros do discurso. O jornalista às voltas com um debate sobre um
problema social recorrerá muito naturalmente à autoridade do intelectual, do teólogo ou do
filósofo. Mas o inverso não acontece. Os discursos constituintes possuem, assim, um estatuto
singular: zonas de fala em meio a outras e falas que pretendem preponderar sobre todas as
outras. Discursos-limite, situados sobre um limite e lidando com o limite, eles devem gerar
textualmente os paradoxos que seu estatuto implica. Junto com eles vêm à tona, em toda sua
acuidade, as questões relativas ao carisma, à Encarnação, à delegação do Absoluto: para não
se autorizarem apenas por si mesmos, devem aparecer como ligados a uma Fonte
legitimadora. Eles são ao mesmo tempo auto e heteroconstituinte, duas faces que se supõem
reciprocamente: só um discurso que se constitui tematizando sua própria constituição pode
desempenhar um papel constituinte para outros discursos. O paradoxo constitutivo do
funcionamento de tais discursos é que esse Absoluto que os autoriza é supostamente exterior
ao discurso para lhe conferir sua autoridade, mas deve ser construído por esse mesmo
discurso para poder fundá-lo. Se tomamos o exemplo do discurso humanista devoto (que
surge no fim do século XVI e dura até a primeira metade do século XVII), sobre o qual
trabalhamos (Maingueneau, 1983 e 1984), veremos que ele instaura a figura de um Deus
“doce” para legitimar sua doutrina contra-reformista, mas essa “doçura” é na verdade
elaborada pelos próprios textos que a reivindicam.
Pode-se apreender essa constituição segundo duas dimensões:
- A constituição como ação de estabelecer legalmente, como processo pelo qual o
discurso se instaura, construindo sua própria emergência no interdiscurso.
- Os modos de organização, de coesão discursiva, a constituição no sentido de um
agenciamento de elementos formador de uma totalidade textual.
Essas duas dimensões convergem para constituição no sentido jurídico-político,
aquele de um texto que serve de norma e garantia aos comportamentos da coletividade. Os
discursos constituintes pretendem delimitar, com efeito, o lugar comum da coletividade, o
espaço que engloba a infinidade de “lugares-comuns” que aí circulam.
Falamos aqui dos discursos constituintes de nosso tipo de sociedade, em sua essência
herdeiros do mundo grego. Porque, conforme a época e as civilizações, a função de
archeion não mobiliza os mesmos discursos constituintes. Em nossas sociedades, tais
discursos são ao mesmo tempo unidos e dilacerados por sua pluralidade. Sua existência se
faz inseparável da gestão dessa impossível coexistência, através de configurações em
reformulação constante. Cada discurso constituinte aparece ao mesmo tempo interior e
exterior aos outros, os quais ele atravessa e pelos quais é atravessado. Assim, o discurso
filosófico, em sua versão tradicional, atribuiu a si a missão de assinalar o lugar dos outros
discursos constituintes, e se viu, não menos constantemente, contestado pelos que ele
pretendia se subordinar. Na realidade, os discursos constituintes se excluem e se atraem em
uma irredutível imbricação : o discurso científico, por exemplo, é incapaz de se afirmar sem
invocar a cada instante a ameaça do discurso religioso ou do discurso filosófico, os quais
não cessam de renegociar seu estatuto em relação a ele.
A filosofia não admite, como regra geral, deixar-se estudar como um discurso entre os
outros; é o que testemunha a pobreza dos estudos empreendidos nessa direção. Mas é
preciso relativizar sua dupla pretensão de ser auto-constituinte e de legiferar sobre as
pretensões que emanam de outros tipos de discurso. É, aliás, o declínio da pretensão
hegemônica da filosofia, bem como os desenvolvimentos fecundos das disciplinas da
linguagem, que têm dado muito mais consistência a um projeto de análise do discurso
filosófico. Esse projeto supõe que se articulem as operações discursivas ao seu substrato
lingüístico, para apreender em sua especificidade esse tipo de discurso que visa à
explicitação máxima de suas próprias condições de possibilidade. Eis o que nem as teorias
do reflexo (Lukàcs), nem as do sintoma (Altusser), nem as do arquivo (Foucault)
permitiriam pensar.
Uma análise da “constituição” dos discursos constituintes deve assim se ater a mostrar
a articulação entre o intradiscursivo e o extradiscursivo, a imbricação entre uma
representação do mundo e uma atividade enunciativa. Esses discursos representam o
mundo, mas suas enunciações são parte integrante desse mundo que eles representam, elas
são inseparáveis da maneira pela qual geram sua própria emergência, o acontecimento de
fala que elas instituem. Não procuraremos, como no procedimento estruturalista, uma teoria
da “articulação” entre o texto e uma realidade muda, não-textual: isso nos levaria a
pressupor uma separação que queremos superar. Na verdade, a enunciação se manifesta
como dispositivo de legitimação do espaço de sua própria enunciação, a articulação de um
texto e uma maneira de se inscrever no universo social. Recusamo-nos, assim, a dissociar,
na constituição discursiva, as operações enunciativas pelas quais se institui o discurso, que
constrói, assim, a legitimidade de seu posicionamento, e o modo da organização
institucional que o discurso ao mesmo tempo pressupõe e estrutura.
Uma categoria insólita
Interessar-se pelos discursos constituintes é ir de encontro a uma certa rotina de
trabalhos em análise do discurso, onde se tem a tendência em privilegiar as interações
conversacionais, ou então tipos de discurso como o discurso publicitário, midiático, político,
escolar, etc. Compreende-se que a análise do discurso, que é uma disciplina recente, tenha,
primeiramente, investido nos enunciados que tradicionalmente eram negligenciados pelos
estudos universitários: assim era mais fácil justificar seu lugar. Mas essa restrição não conta
verdadeiramente com qualquer sustentação teórica: não há motivos para a análise do discurso
se desinteressar de tal ou qual tipo de discurso.
A dificuldade em abordar textos “constituintes” se explica também por uma certa
resistência das correntes dominantes em análise do discurso, que muitas vezes privilegiam os
enunciados que não são submetidos a fortes restrições institucionais. Para além da questão da
oralidade, importa também a questão da distância : distância entre sujeito falante e posição
de enunciação, distância entre as intenções comunicativas e a significação do texto, distância
entre instâncias de produção e de recepção. Certas facetas desse preconceito “fonocentrista”
foram reveladas e criticadas por Derrida em sua célebre Gramatologia. Trabalhar sobre
enunciados tão “distantes” em todos os sentidos que os relacionam aos discursos
constituintes, é partir do princípio de que o universo do discurso é radicalmente diverso.
Coisa que não é tão fácil de admitir. Durante séculos se pensou que certos tipos de textos
privilegiados (os literários e os religiosos, em particular) eram a fala por excelência;
atualmente tem-se a tendência de pensar que a “verdadeira” fala é a interação oral e que não
há verdadeira fala senão lá, onde não há “escrituralidade”. Sem dúvida, seria mais realista
aceitar que não existe uso da fala que seja o verdadeiro uso, que esta, como o Ser em
Aristóteles, se diz de diversas maneiras. O postulado do primado do interdiscurso não
implica que esse interdiscurso tenha um centro nem que ele seja homogêneo.
Falar de “discursos constituintes” é igualmente manejar uma categoria de estatuto
tipológico bem incerto. Os analistas do discurso12 manipulam habitualmente tipologias que se
baseiam em critérios de três ordens:
- As tipologias lingüísticas - na verdade, enunciativas - são independentes dos
conteúdos e das finalidades do discurso. Elas se apóiam, em geral, sobre a
problemática aberta por E. Benveniste13, que opunha enunciados ancorados na
situação de enunciação (“discurso”) a enunciados que rompem com sua situação
de enunciação (“história” ou “narrativa”). Essa bipartição foi refinada por diversos
autores, em particular J. Simonin-Grumbach (1975) e J.-P. Bronkart e seus
colaboradores (1985)14.
- As tipologias funcionais dividem os discursos segundo sua finalidade. Essas
classificações oscilam entre a atualização de funções muito abstratas, de ordem
comunicacional, como é o caso do célebre modelo de R. Jakobson (função
expressiva, referencial, fática, conativa, etc.), e funções de ordem claramente
12 J. Simonin-Grumbach (1975): “Pour une typologie des discours”, in Kristeva J. et al. (éds.): Langue, discours, société, Paris, Seuil. J.-P. Bronckart. et al. (1985): Le fonctionnement des discours. Un modèle psychologique et une méthode d’analyse, Neuchâtel-Paris, Delachaux e Niestlé.13 “L’homme dans la langue”, in Problèmes de linguistique générale, Paris, Gallimard, 1966.14 Ver em particular o artigo de André Petitjean (1989).
sociológica ou psicossociológica (função lúdica, de conhecimento, de preservação
dos laços sociais, etc.).
- As tipologias situacionais são construídas a partir de gêneros de discurso
definidos sob critérios sócio-históricos: o telejornal, o romance policial, o
editorial, o sermão, etc. Esses gêneros de discurso são eles próprios incluídos
nesses tipos de discursos, correspondendo a setores da atividade social (discurso
político, midiático, literário, etc.). “Tipo” e “gênero” são assim duas faces da
mesma realidade: um tipo de discurso é constituído de gêneros, todo gênero se
destaca sobre o fundo de um tipo de discurso determinado. Podem-se igualmente
recortar os discursos em função da produção e da circulação de enunciados no
âmbito de instituições singulares (os gêneros do discurso no hospital, no tribunal,
etc.) ou se apegar a posicionamentos ideológicos (discurso patronal, comunista,
etc.) em um campo discursivo. Como “tipo” e “gêneros”, as noções de “campo” e
de “posicionamento” são duas maneiras diferentes de abordar a mesma realidade:
um campo é definido por uma rede de relações entre posicionamentos.
Onde aí se situaria a noção de “discurso constituinte”? Ela não se deixa encerrar
em nenhuma dessas três tipologias, ela as atravessa. Na verdade, ela se assenta sobre
propriedades ao mesmo tempo enunciativas, funcionais e situacionais. Agrupar numa
mesma classe discursos do tipo religioso, científico, literário, filosófico, para citar os mais
evidentes, implica supor uma certa função (dispor da mais forte autoridade), um certo
recorte de situações de comunicação de uma sociedade (há lugares, gêneros ligados a tais
discursos constituintes) e um certo número de invariantes enunciativos. Esses discursos
partilham ainda de numerosas propriedades ligadas a sua maneira específica de se inscrever
no interdiscurso, de fazer emergir seus enunciados e de fazê-los circular. Pode-se então
falar aqui de uma categoria propriamente discursiva, que não se deixa reduzir nem a uma
grade estritamente lingüística, nem a uma grade de ordem sociológica ou psicossociológica.
Posicionamento, comunidade discursiva, paratopia
Os discursos constituintes supõem um conflito permanente entre diversos
posicionamentos. Essa noção de “posicionamento” (doutrina, escola, teoria, partido,
tendência, etc.) é demasiado pobre; ela implica apenas que os enunciados são relacionados
a diversas identidades enunciativas que se delimitam umas as outras. Eis um tema
recorrente na análise do discurso da França: a unidade de análise pertinente não é o
discurso em si mesmo, mas o sistema de referência aos outros discursos através do qual ele
se constitui e se mantém; referir-se aos outros e referir-se a si mesmo não são atos
distinguíveis senão de modo ilusório; o interdiscurso não se encontra no exterior de uma
identidade fechada sobre suas próprias operações. Certamente o posicionamento pretende
nascer de um retorno às coisas, de uma justa apreensão do Belo, da Verdade, etc. que os
outros posicionamentos teriam desfigurado, esquecido, subvertido etc., mas essa visada por
um termo que exorbita os discursos é na realidade atravessada por esses outros discursos.
Esses posicionamentos são eles próprios inseparáveis de grupos que os elaboram e os
fazem circular, gerindo-os. A partir do momento em que se trata de discursos-limite, que
são, além disso, discursos maximamente “autorizados”, não é ao conjunto dos membros da
sociedade que cabe avaliar, produzir e gerir os textos constituintes, mas a comunidades
restritas. É nesses grupos que se mantém uma memória e que os enunciados podem ser
avaliados em relação às normas, partilhadas pelos membros da comunidade associada a tal
ou qual posicionamento (por exemplo, tal grupo de pesquisa em sociologia) e pelos
membros da comunidade do mesmo campo, para além dos diversos posicionamentos (a
comunidade dos sociólogos, para retomar nosso exemplo).
O paradoxo, que é apenas aparente, é que para falar em nome de Deus ou em nome da
Ciência e se dirigir ao conjunto dos humanos, é preciso na realidade se dirigir a uma
comunidade reduzida. Os enunciados cujo alcance é global emergem de maneira
essencialmente local: os produtores desses textos se põem de acordo com as normas
internas de um grupo, não diretamente com uma doxa universalmente partilhada. Os
lugares institucionais de onde emergem os textos não se ocultam por trás de sua produção,
eles a moldam através de uma maneira de viver. Certamente as normas do grupo se fundam
sobre princípios transcendentes, mas estes últimos só são invocados através da mediação
das normas desse grupo. Não se pode conceber o romantismo sem a “boêmia”, nem os
escritores das Luzes, do século XVIII, fazendo-se abstração da rede internacional da
“República das Letras”. Não há independência entre as normas que regem os modos de
vida da comunidade e o “conteúdo” de seus posicionamentos.
As diversas escolas filosóficas do mundo helênico não são as correntes ou escolas de
ciências humanas ou os laboratórios da física contemporânea, mas em todos esses casos o
posicionamento supõe a existência de redes institucionais específicas, de comunidades
discursivas que partilham um conjunto de ritos e normas. Pode-se distinguir comunidades
discursivas de dois tipos, estreitamente imbricadas: as que geram e as que produzem o
discurso. Um discurso constituinte não mobiliza apenas autores, mas uma variedade de
papéis sócio-discursivos: por exemplo, os discípulos das escolas filosóficas, os críticos
literários dos jornais, os juízes, etc.
A forma que toma uma “comunidade discursiva”, que não existe senão pela e na
enunciação de textos, varia às vezes em função do tipo de discurso constituinte em questão
e de cada posicionamento. Este último não é somente um conjunto de textos, um corpus,
mas uma imbricação entre um modo de organização social e um modo de existência de
textos. De nada serve imaginar os escritores das Luzes independentemente da rede
internacional da “República das Letras” ou os autores jansenistas independentemente dos
“solitários” de Port-Royal. Enquanto a escola epicurista era centrada sobre a figura de um
mestre venerado e se referenciava em um corpus dogmático, os discípulos de Pyrhon
consideravam a idéia mesmo de escola uma contradição com o espírito do ceticismo; mas
em um caso como noutro, doutrina e funcionamento institucional eram indissociáveis. O
discurso literário, de sua parte, inclui numerosos escritores que pretendem operar fora de
qualquer pertencimento; mas essa é justamente uma das características da literatura, qual
seja a de suscitar uma tal pretensão, de jogar com a tensão entre a criação solitária e o
pertencimento a grupos.
Falar assim de “comunidade discursiva” é afirmar que, por um movimento de
envolvimento recíproco, a comunidade é cimentada por discursos que são o produto dessa
comunidade. Esta problemática converge para outros trabalhos realizados em análise do
discurso, em particular sobre o discurso científico. Mas ela não está ainda suficientemente
elaborada; ela é, com efeito, muito sensível à diversidade dos discursos constituintes
concernidos, mas também aos posicionamentos no interior de cada campo. No discurso
religioso, por exemplo, os conflitos entre posicionamentos correspondem evidentemente,
para aqueles que o reivindicam, a modos de vida distintos; o que não é necessariamente o
caso dos posicionamentos científicos.
Em se tratando de discursos constituintes, o estatuto do autor não pode ser, de
qualquer forma, evidente: um filósofo ou um escritor não podem se pôr nem no exterior
nem no interior da sociedade, eles estão condenados a alimentar sua obra do caráter
radicalmente problemático de seu próprio pertencimento a essa sociedade. Sua enunciação
se constitui através dessa impossibilidade mesma de atribuir para si um verdadeiro “lugar”.
Localidade paradoxal a que nós chamamos de paratopia. Não se trata do caso de um
indivíduo, mas de uma condição de possibilidade para o campo filosófico, literário etc., que
não é a ausência de qualquer lugar, mas uma difícil negociação entre o lugar e o não-lugar,
uma localização parasitária, que vive da própria impossibilidade de se estabilizar. Não que
a filosofia ou a literatura tenham um funcionamento incomensurável em relação a outros
domínios de atividade (pode-se falar aí também de estratégias de promoção, de carreiras,
etc.), mas se não quisermos ficar aquém desse excesso que os funda, não podemos
considerá-los como uma atividade qualquer. Sem “localização” não há instituições que
permitam legitimar e gerir a produção e o consumo de obras; mas sem “des-localização”
não há verdadeira obra, porque é uma força que excede toda a sociedade que confere sua
legitimidade aos que falam do interior dos discursos constituintes.
Para o discurso filosófico, a paratopia aparece desde o início, com Sócrates discutindo
“na praça pública, nos balcões de bancos e em outros lugares” (Apologia de Sócrates, I).
Enunciador da ágora, Sócrates “pertence” na verdade a um lugar que excede qualquer lugar.
Posteriormente, a filosofia vai se definir por uma série de lugares mais ou menos parasitários,
dos quais ela se apropria mais ou menos longamente: assim, na antiguidade, a Academia, o
Pórtico, o Liceu etc. Ao lado desses lugares que tendem a se institucionalizar, filósofos como
os Cínicos alardeiam a paratopia em sua versão extrema: o barril de Diógenes vagando pela
cidade.
Esse pertencimento paradoxal que é a paratopia não é nenhuma origem ou causa, ainda
menos um estatuto: não é necessário nem suficiente ser um marginal “de carteirinha” para ser
tomado pelo processo de criação. A paratopia não é uma situação inicial: só há paratopia se
elaborada através de uma atividade de criação e de enunciação. Chateaubriand bem que
gostaria de ter sido “objetivamente” um aristocrata do Antigo Regime que não encontrou seu
lugar no mundo advindo da Revolução Francesa, ele não tinha nenhuma necessidade de
organizar uma criação em torno dessa tensão, que só posteriormente se tornou paratópica .
Nem suporte, nem quadro, a paratopia envolve o processo criador, que também a envolve:
criar uma obra é em um só movimento produzir uma obra e construir através dela as
condições que permitem produzi-la. Não há situação paratópica exterior a um processo de
criação: dada e elaborada, estruturante e estruturada, a paratopia é ao mesmo tempo aquilo do
que é preciso se libertar pela criação e aquilo que a criação aprofundou, ela é
simultaneamente o que dá a possibilidade de aceder a um lugar e o que proíbe qualquer
pertencimento.
Inscrição e midium
O caráter constituinte de um discurso confere uma autoridade particular a seus
enunciados, que são investidos de toda a autoridade conferida por seu estatuto enunciativo.
Mais do que de “enunciado”, de “texto”, ou de “obra”, a questão aqui é de inscrições. O
conceito de inscrição contraria qualquer distinção empírica entre oral e gráfico: inscrever
não é necessariamente escrever. As literaturas orais são “inscritas”, assim como inúmeros
enunciados míticos orais, mas essa inscrição passa por vias distintas daquelas pelas quais
passa o código gráfico. A inscrição é radicalmente exemplar; ela segue exemplos e dá
exemplo. Produzir uma inscrição é não tanto falar em próprio nome, mas seguir os traços
de um Outro invisível, que associa os enunciadores-modelo de seu posicionamento e, no
limite, a presença daquela Fonte que funda o discurso constituinte: a Tradição, a Verdade, a
Beleza...
A inscrição se implanta pela defasagem de uma repetição constitutiva, a de um
enunciado que se instala em uma rede saturada de outros enunciados (por filiação ou por
rejeição) e se abre à possibilidade de uma re-atualização. Uma das características dos
enunciados pertencentes aos discursos constituintes é estarem ao mesmo tempo mais ou
menos fechados em sua organização interna e reinscritíveis em outros discursos. Por sua
maneira de se situar em um interdiscurso, uma inscrição se dá ao mesmo tempo como
citável (é conhecido, por exemplo, o quanto os filósofos fazem uso de fórmulas
generalizantes15). Mais amplamente, um estilo em literatura, um esquema de raciocínio
15 Ver o capítulo 8 deste livro.
científico, embora consubstanciais a uma obra, podem ser re-atualizados por discípulos ou
epígonos ou reinscritos em contextos diferentes.
A inscrição se distribui por degraus de hierarquias instáveis. Certos textos adquirem
um estatuto de inscrição última, eles se tornam o que se poderia chamar de arquitextos.
Assim, a Ética de Spinoza ou A República de Platão, para a filosofia, os escritos dos Pais da
Igreja, para o discurso cristão. A Odisséia ou A Divina Comédia, para a literatura, etc. Bem
entendido, o estabelecimento de arquitextos legítimos é objeto de incessante debate entre os
posicionamentos, cada um procurando impor os seus ou a sua interpretação daqueles a serem
reconhecidos por todos.
A noção de “inscrição” implica necessariamente uma referência à dimensão
midiológica dos enunciados, para retomar um termo de R. Debray, ou seja, às modalidades
de suporte e de transporte dos enunciados. Um posicionamento não se define então somente
por “conteúdos”. Entre o caráter oral da epopéia, seus modos de organização textual e seus
conteúdos existe uma relação essencial; da mesma forma, entre a mídia televisiva e os
“conteúdos” que aí podem estar investidos. O “suporte” não é um suporte, ele não é
exterior ao que ele supostamente “veicula”. Sobre esse ponto, como sobre outros, trata-se
de superar as imemoriais oposições da análise textual: ação e representação, fundo e forma,
texto e contexto, produção e recepção, etc. Ao invés de opor conteúdos e modos de
transmissão, um interior do texto e um entorno de práticas não-verbais, é preciso conceber
um dispositivo em que a atividade enunciativa articula uma maneira de dizer e um modo de
veiculação dos enunciados que implica um modo de relação entre os homens.
Heterogeneidade discursiva
A análise dos discursos constituintes não se reduz ao estudo de alguns textos
privilegiados (as obras dos grandes sábios, os grandes textos religiosos, etc.) ou de alguns
tipos de textos privilegiados (as produções teológicas para teólogos, os artigos científicos
para cientistas e pesquisadores, etc.). Ela lida com uma produção discursiva profundamente
heterogênea. Uma hierarquia se instaura entre os textos “primeiros” e os que se apóiam
sobre eles para comentá-los, resumi-los, refutá-los, etc. Ao lado da grande filosofia, da alta
teologia ou da ciência nobre, existem as apostilas escolares, os sermões dominicais ou
revistas de vulgarização científica. O discurso constituinte supõe essa interação de regimes
diversos, que têm, cada um, um funcionamento específico. As produções constituintes
consideradas fechadas, aquelas cuja comunidade de enunciadores tende a coincidir com a
dos consumidores, são sempre desdobradas em outros gêneros menos nobres, que são
igualmente necessários. O fato de que na França contemporânea a filosofia tenha se tornado
objeto de manuais de ensino secundário não é um acidente exterior à essência da filosofia,
como se esta última pudesse escapar de toda e qualquer didaticidade.
Sendo mais preciso, pode-se distinguir:
- Os textos ou gêneros primeiros (ou fontes) e os gêneros segundos, distinção que está
na base das problemáticas de vulgarização: de um lado os discursos que supostamente
produzem os conteúdos em sua “pureza”, de outro os discursos que se limitam a
resumir, explicitar, etc., uma doutrina já constituída anteriormente. Desse ponto de
vista, um artigo em uma revista científica será “primeiro”, mas não um manual
universitário ou um artigo em uma revista destinada ao grande público.
- Os gêneros de discurso fechados e os gêneros abertos: de um lado, discursos dos
quais os leitores são escritores potenciais ou efetivos de enunciados do mesmo gênero
(é o caso do discurso científico); de outro lado, discursos em que os leitores, em
número muito mais restrito que os escritores, não estão em posição de escrever
enunciados do mesmo gênero (é o caso de um jornal diário, por exemplo). Essa noção
de “abertura” é de manejo delicado para os discursos constituintes; em filosofia, por
exemplo, ela pode dizer respeito tanto à pretensão original dos textos de serem
abertos ou fechados quanto à realidade de seu modo de consumo. Um texto tem a
pretensão de ser aberto ou fechado quando essa característica decorre da maneira pela
qual ele constrói sua própria cena de enunciação. Por esse ponto de vista, as
Meditações de Descartes, escritas em latim, seriam “fechadas”, e seu Discurso do
método seria “aberto”. Mas essa pretensão pode não corresponder ao uso efetivo que
dele será feito; muitas obras filosóficas são lidas, com efeito, em vários níveis: pode
existir uma leitura “grande público” de Platão ou de Nietzsche.
- Os textos fundadores e textos não-fundadores. Distinção ambígua, que designa tanto
os textos de pretensão fundadora, isto é, os que se apresentam como tais, quanto
aqueles que a posteridade julgou fundadores retrospectivamente em relação à história
do pensamento. Assim, o Discurso do método é fundador tanto de um ponto de vista
quanto de outro, ainda que não seja uma obra “fechada”. O mesmo vale para a
Interpretação dos sonhos, de Freud, que se apresenta como fundador e foi
reconhecido como tal. Os enunciados reconhecidos como fundadores são, por
definição, uma pequena minoria; eles pretendem definir uma nova maneira de fazer
filosofia, física, de escrever romances, etc.
Cada discurso constituinte suscita gêneros “segundos” que lhe são específicos.
“Vulgarizam-se”, por exemplo, os enunciados científicos, e não os enunciados literários.
Para o comentário desses últimos existe um conflito permanente entre duas instâncias de
legitimação: os sábios, legitimados pela Escola, e os amadores, que reivindicam para si uma
relação privilegiada, pessoal com os textos. O que evidentemente não se dá no caso dos
textos científicos. Em conseqüência, as linhas divisórias entre os diferentes discursos
constituintes não são tão simples. Poder-se-ia até dizer que as práticas de comentário dos
textos de Lacan ou de Freud mantêm relações complexas com a exegese religiosa; o que
não quer dizer que sejam a mesma coisa.
Admitiremos, nessa perspectiva, mesmo se isso afronta um ponto de vista bastante
comum, que, em matéria de discurso constituinte, de um mesmo movimento se instauram o
texto a interpretar e seu comentário. Essa idéia contraria representações comuns, para as
quais os enunciados “primeiros” não têm necessidade de enunciados segundos. O paradoxo
é que um texto pode se apresentar dispensando comentários se ele for objeto de um
comentário... As palavras de Cristo parecem ser tanto mais incomensuráveis quanto mais
uma infinidade de comentários não param de tentar esclarecê-las. O acúmulo de
interpretações torna um texto sempre mais interpretável e sempre mais inacessível.
Pode-se falar aqui de um quadro hermenêutico (Maingueneau, 1995b), que confere
aos enunciados primeiros um certo estatuto pragmático, um modo de circulação no
interdiscurso e uma “interpretabilidade”: é preciso comentá-los porque se supõe que a
riqueza de seu sentido excede a capacidade dos intérpretes, porque há um déficit irredutível
de toda interpretação em relação à “herméneia”, à mensagem que, através desses textos, a
Fonte entrega ao comum dos mortais. Em tal quadro hermenêutico, o texto não se
reconheceria cometendo um erro, só há intérpretes deficientes. Ele se beneficia assim de
um estatuto que, em pragmática, se diria “hiperprotegido”: ele pode jogar livremente com
as máximas conversacionais, sem que isso atinja seu prestígio. Logo alguém se esforçará
para restituir e preservar seu significante em sua “autenticidade”, porque o texto é um
monumento (= o que permanece), sempre fora de alcance dos intérpretes que nele se
agarram.
A cena de enunciação
O locutor de um gênero de discurso cotidiano, assim como o professor que dá uma
aula ou o jornalista que redige um fait divers, trabalha no interior de um quadro
preestabelecido que sua enunciação não pode modificar. Ao contrário, quando se trata de
discurso constituinte – mais exatamente os textos “primeiros” de discursos constituintes,
aqueles que são fontes da mais alta autoridade – o locutor deve dizer construindo o quadro
desse dizer, elaborar dispositivos pelos quais o discurso encena seu próprio processo de
comunicação, uma encenação que é inseparável do universo de sentido que o texto procura
impor. A situação de enunciação não é, com efeito, um simples quadro empírico, ela se
constrói como cenografia por meio da enunciação. Aqui –grafia é um processo de inscrição
legitimante que traça um círculo: o discurso implica um enunciador e um co-enunciador,
um lugar e um momento da enunciação que valida a própria instância que permite sua
existência. Por esse ponto de vista, a cenografia está ao mesmo tempo na nascente e no
desaguadouro da obra.
Um dos mal-entendidos que dificilmente falta quando se suscita a noção de cenografia
é que ela é muitas vezes interpretada como uma simples cena, como um quadro estável no
interior do qual se desenrolaria a enunciação. Na verdade, é preciso concebê-la ao mesmo
tempo como quadro e como processo. A –grafia é um processo de inscrição legitimante que
traça um círculo: o discurso implica uma certa situação de enunciação, um ethos e um
“código linguageiro” (ver infra) através dos quais se configura um mundo que, em retorno,
os valida por sua própria emergência. O “conteúdo” aparece assim inseparável da
cenografia que lhe dá suporte .
Em Descartes, por exemplo, o Discurso do método é indissociável de uma cenografia
que, longe de ser apenas um procedimento a serviço de um pensamento, modifica o próprio
estatuto da filosofia. Nessa cenografia, um sujeito que se apresenta como simples detentor
de razão, homem honesto desprendido de instituições religiosas e escolares, afirma a
excelência do “método”, do encadeamento dos argumentos, para um leitor que ele
pressupõe ter uma única qualidade: ser dotado de “bom senso”. O Discurso do método
constrói, assim, sua legitimação ultrapassando as fronteiras que, na época, eram
normalmente atribuídas ao discurso filosófico. Ele coloca na posição de árbitro autorizado
as pessoas honestas: “aqueles que se servem apenas de sua razão natural em toda sua
pureza”, conforme as palavras de Descartes. Não se pode, então, opor a cena de enunciação
e o enunciado como a “forma” e o “conteúdo”: a cena de enunciação é uma dimensão
essencial do “conteúdo”. O cartesianismo não é somente uma doutrina, é a instauração de
certas cenografias através das quais é delineada a doutrina.
Em um romance como “O estrangeiro”, de Albert Camus, o leitor se encontra preso
no processo de legitimação progressivo da cenografia que lhe permite precisamente
enunciar como “estrangeiro”. Quando ele abre esse texto, recebe uma certa palavra estranha
às cenografias romanescas habituais: frases breves, no passé composé*, remetidas a um eu
desinvestido. Aqui, o lugar e o momento da enunciação são um limite último: único “lugar”
e único “tempo” à medida dessa voz de estrangeiridade: logo após a morte da mãe, na praia
do assassinato, na espera da execução. A história tem precisamente por função validar essa
cenografia desconcertante, a leitura preenchendo a lacuna assim criada pelo surgimento da
narrativa.
Código linguageiro
Uma cenografia implica um certo uso da linguagem e é igualmente indissociável dele
Tratando-se de discurso constituinte, a língua (idioma escolhido e o uso que se faz dele) não
pode ser, com efeito, um instrumento neutro, mas está investida como apropriada ao universo
de sentido que o posicionamento pretende impor. Os textos não se desenvolvem na
compacidade de uma língua, mas através da interlíngua, o espaço de confrontação entre
variedades lingüísticas: variedades “internas” (usos sociais variados, níveis de língua,
dialetos...) ou variedades “externas” (idiomas “estrangeiros”). Tal distinção é, aliás, relativa
* “Passé composé” é a forma que tem por característica evocar os acontecimentos referindo-os ao momento da enunciação (NT).
na medida em que a distância entre uma língua “estrangeira” e uma língua “não-estrangeira”
não é estanque: para um europeu letrado, o latim durante séculos não foi uma língua
“estrangeira”. Nessa noção de “código linguageiro” se associam a acepção de sistema
semiótico que permite a comunicação e a de código prescritivo: o código linguageiro que
mobiliza o discurso é, com efeito, aquele através do qual ele pretende que se deva enunciar, o
único legítimo junto ao universo de sentido que ele instaura.
A partir do momento em que se opera sobre a fronteira do dizível e do indizível, é
inevitável que a questão da língua torne-se crucial. A Verdade, a Beleza, o Bem, etc. não
podem se “encarnar” em qualquer idioma. Não é por acaso que durante muito tempo os
cristãos só tiveram acesso à Bíblia em latim, que não era nem a língua de Cristo nem a dos
Evangelhos; mas era a língua da Igreja. Retomando o exemplo do Discurso do método,
notaremos que, àquela época, a língua francesa participa da mesma dinâmica ideológica de
que participa Descartes. O trabalho de purificação articulado pelos letrados e pela Academia
francesa recém–fundada acompanhava o desenvolvimento de um discurso sobre a clareza do
francês, sobre sua suposta conformidade a uma ordem natural do pensamento, concepção que
não é “exterior” ao discurso de Descartes. A dinâmica iluminista do método cartesiano
investiu uma língua que está, na verdade, ela mesma atravessada pela dinâmica de uma
caminhada rumo à clareza. Produz-se assim um apoio mútuo entre duas forças.
Ethos
Um posicionamento não implica apenas a definição de uma situação de enunciação e
uma certa relação com a linguagem: deve-se igualmente levar em conta o investimento
imaginário do corpo, a adesão “física” a um certo universo de sentido. As “idéias” são
apresentadas através de uma maneira de dizer que é também uma maneira de ser, associada a
representações e normas de disciplina do corpo. Discursos de atribuição de referenciais
últimos, construção de um lugar enunciativo que dá sentido às práticas humanas, os discursos
constituintes são portadores de uma esquematização do corpo, mesmo se eles negam essa
dimensão. Retomamos aqui a problemática retórica do ethos. Concebendo-o dentro de uma
perspectiva pragmática, esse ethos emana do “mostrado”: o enunciador é percebido através
de um “tom” que implica uma certa determinação de seu próprio corpo, à medida do mundo
que ele instaura em seu discurso. A legitimação do enunciado não passa somente pela
articulação de proposições, ela é habitada pela evidência de uma corporalidade que se dá no
movimento mesmo da leitura.
Assim, a encenação da enunciação joga sobre três registros:
- um investimento cenográfico do discurso faz deste último o movimento em que se
elabora uma re-presentação de sua própria situação de enunciação;
- um investimento em um código linguageiro permite, jogando sobre a diversidade
irredutível de zonas e de registros de língua, produzir um efeito prescritivo que resulta de
uma conveniência entre o exercício da linguagem que implica o texto e o universo de sentido
que ele manifesta;
- um investimento imaginário dá ao discurso uma voz atestada por um corpo condizente
com a cenografia e com o código linguageiro.
Conclusão
O discurso constituinte implica assim um tipo de ligação específica entre operações
linguageiras e espaço institucional. As formas enunciativas não são aí um simples vetor de
idéias, elas representam a instituição no discurso, ao mesmo tempo em que moldam,
legitimando-o (ou deslegitimando-o) esse universo social no qual elas vêm se inscrever. Há
constituição precisamente na medida em que um dispositivo enunciativo funda, de uma
forma que é de certa maneira performativa, sua própria existência, fazendo como se extraísse
essa legitimidade de uma Fonte da qual ele seria apenas a encarnação (o Verbo revelado, a
Razão, a Lei, etc.). Há assim uma circularidade constitutiva entre a imagem que ele dá de sua
própria instauração e a validação retrospectiva de uma certa configuração da comunicação,
da repartição de sua autoridade, do exercício do poder que ele cauciona, denuncia ou
promove por seu gesto instaurador.
Terminarei com uma questão à qual é impossível se furtar: a da relação entre discursos
constituintes e a análise do discurso que se debruça sobre eles. Esta última está presa em um
paradoxo insuperável, dado que ela, ao mesmo tempo, emana do discurso constituinte
(científico, nesse caso), pretendendo ao mesmo tempo estar acima do caráter constituinte de
qualquer discurso. Se pretender negar esse paradoxo, a análise do discurso cairia na mesma
ingenuidade da Filosofia, da Teologia e da Ciência, quando, em diferentes momentos,
tiveram a pretensão de reinar sobre a totalidade do dizível. Como não está em questão para a
análise do discurso se auto-proclamar a única instância de legitimação, cabe-lhe aceitar estar
incluída no domínio de investigação que procura analisar, ser criticada por aquilo que ela
pretende tomar por objeto.
PROBLEMAS DE ETHOS
Depois de ter sido envolvida no movimento de descrédito da retórica, a noção de
ethos16 – refiro-me, aqui, apenas à noção de ethos discursivo17 – hoje está cada vez mais
presente. Mas, enquanto a retomada dos interesses pela retórica é relativamente antigo (foi
em 1958 que foram publicadas as obras fundadoras de Ch. Perelmann e de S. Toulmin), o
ethos teve que esperar os anos 80 para ocupar um lugar na reflexão sobre o discurso18 : não
somente suscitou comentários como conceito do corpus retórico, mas deu lugar a
prolongamentos novos no quadro das disciplinas que estudam o discurso.
Podemos nos perguntar por que hoje o ethos suscita tanto interesse. Evidentemente,
um tal retorno está em consonância com o domínio das mídias audiovisuais: com elas,
o centro de interesse deslocou-se das doutrinas e dos aparelhos que lhes estavam
ligados para a apresentação de si, ao “look” ; fenômeno que Regis Debray, por
exemplo, teorizou em termos de midialogia. Tal movimento acompanha o
enraizamento de qualquer convicção em uma certa determinação do corpo em
movimento ; testemunha-o a transformação da “propaganda” de antes em
“publicidade” : uma propunha argumentos para valorizar o produto, a outra elabora
em seu discurso o corpo imaginário da marca que supostamente está na origem do
enunciado publicitário.
Não me engajarei mais nesta direção ; aqui, proponho-me só a fazer um certo
número de observações para apreender o que está em jogo nessa noção de ethos. Para ter
Artigo publicado originalmente na revista Pratiques n° 113, junho de 2002, p.55-68.
16Ethos põe problemas de ortografia ; se se quer respeitar as convenções usuais em matéria de palavras gregas, dever-se-ia escrevê-la com um è, mas muitos usam um simples e, o que eu também faço. No plural, escreve-se em geral ethè e não ethoi, porque se trata de uma palavra neutra em grego antigo.17 Há, de fato, uma explicação sociológica da noção de ethos; ela pode, em um sentido, remeter a Aristóteles (Ética a Nicômaco, II 1), mas sobretudo a Max Weber que, em A Ética protestante e o espírito do capitalismo, fala do ethos (sem dar dele, no entanto, uma definição precisa) como de uma interiorização de normas de vida, à articulação entre crenças religiosas e sistema econômico, no caso, o capitalismo. No prolongamento dessa concepção, pode-se citar, por exemplo, o livro de Herbert Mac Closky et John Zaller, The American ethos : public attitudes toward capitalism and democracy, Cambridge (Mass.), 1984.18 No que se refere à França, parece-me que é em 1984 que começa a epxloração do ethos em termos pragmáticos ou discursivos : Ducrot, que integra o ethos a uma coneituação enunciativa (Ducrot, 1984 : 201) e eu mesmo, que proponho uma teoria de ethos em um quadro da análise do discurso (Maingueneau 1984, 1987). Anteriormente, M. Le Guern (1977) havia chamado a atenção para o valor que essa noção tinha na retórica do século XVII.
dela uma visão mais rica, podemos remeter ao volume editado por R. Amossy (1999),
citado na bibliografia. Começarei lembrando as principais características do ethos retórico,
tal como se apresenta desde a problemática aristotélica ; invocarei, em seguida, um certo
número de problemas que se põem quando se quer estabilizar esta noção ; apresentarei,
enfim, minha própria concepção do ethos, insistindo em que esta é apenas uma das
explorações possíveis de uma noção que tem vocação interdisciplinar.
O ethos retórico
Escrevendo sua Retórica, Aristóteles pretende apresentar uma techné cujo objetivo
não é examinar o que é persuasivo para tal ou qual indivíduo, mas para tal ou qual tipo de
indivíduos (1356 b 32-3319). A prova pelo ethos consiste em causar boa impressão pela
forma como se constrói o discurso, a dar uma imagem de si capaz de convencer o auditório
ganhando sua confiança. O destinatário deve, assim, atribuir certas propriedades à instância
que é posta como fonte do acontecimento enunciativo.
A prova pelo ethos mobiliza “tudo o que, na enunciação discursiva, contribui para
emitir uma imagem do orador destinada ao auditório. Tom de voz, modulação da fala,
escolha das palavras e dos argumentos, gestos, mímicas, olhar, postura, adornos etc. são
outros tantos signos, elocutórios e oratórios, vestimentais e simbólicos, pelos quais o orador
dá de si mesmo uma imagem psicológica e sociológica” (Declercq, 1992 : 48). Não se trata
de uma representação estática e bem delimitada, mas, antes, de uma forma dinâmica,
construída pelo destinatário por meio do próprio movimento da fala do locutor. O ethos não
age no primeiro plano, mas de forma lateral. Ele implica uma experiência sensível do
discurso, ele mobiliza a afetividade do destinatário. Para retomar uma fórmula de Gibert
(séc. XVIII), que resume o triângulo da retórica antiga, “instrui-se pelos argumentos ;
move-se pelas paixões; insinua-se pelos costumes”: os “argumentos” correspondem ao
logos, as “paixões”, ao pathos, os “costumes” ao ethos. Para A. Auchlin (2001 : 92), “pode-
se supor que o ethos se constrói sobre a base de dois mecanismos de tratamento distintos,
um que repousa sobre a decodificação lingüística e o tratamento inferencial dos
enunciados, e o outro, sobre o re-agrupamento de fatos em sintomas, operação de tipo
19 Citamos a tradução de M. Dufour (les Belles-Lettres, 1967)
diagnóstico, que mobiliza recursos cognitivos da ordem da empatia”. Compreende-se que,
na tradição retórica, o ethos tenha sido freqüentemente considerado com suspeição :
apresentado como tão eficaz, ou, às vezes, mais, do que o logos, os argumentos
propriamente ditos, torna-se suspeito de inverter a hierarquia moral entre o inteligível e o
sensível.
De fato, na própria Retórica de Aristóteles, o ethos intervém de duas formas. Em
um primeiro emprego, designa um tipo de prova : “Persuade pelo “caráter” (ethos) quando
o discurso é considerado de forma a tornar o orador digno de fé ; nós confiamos, de fato,
mais rapidamente e de preferência em pessoas de bem em todos os assuntos em geral, e
completamente em questões que não comportam nada de certeza, mas deixam um lugar de
dúvida” (1356 a 4-7). Para produzir essa imagem positiva de si mesmo, o orador pode jogar
com três qualidades fundamentais : a phronesis, ou prudência, a aretê, ou virtude, e a
eunoia, ou benevolência. Aristóteles as expõe no início do segundo livro da Retórica:
“Quanto aos oradores, eles inspiram confiança por três razões ; elas são as únicas que,
postas de lado as demonstrações, determinam nossa crença : a prudência (phronesis), a
virtude (areté) e a benevolência (eunoia). Se, com efeito, os oradores alteram a verdade do
que dizem, quando falam ou aconselham, é por todas essas razões ao mesmo tempo ou por
uma dentre elas : ou, por imprudência, não pensam o justo; ou, pensando o justo, calam sua
opinião por maldade ; ou, embora prudentes e honestos, não são benevolentes; é por essa
razão que se pode, conhecendo o melhor partido, não aconselhá-lo” (1378 a 6-14).
Esse ethos retórico recobre uma realidade muito diferente daquela que o termo
designa na Ética a Nicômaco ou na Política : trata-se, com efeito, de um ethos percebido
por um público, e não do ethos característico de um indivíduo ou de um grupo, seus traços
de caráter, suas disposições estáveis. Mas, na Retórica também o ethos designa disposições
estáveis, que são apresentadas de dois pontos de vista complementares :
- O ponto de vista político : o capítulo 8 do livro I, que leva em conta as diferentes
constituições políticas, insiste na necessidade, para o orador, de não empregar o mesmo
discurso segundo esteja diante de defensores da monarquia ou diante de um auditório
convencido por idéias democráticas. Aristóteles fala do “caráter (= ethos) das
constituições”. Os homens que vivem sob uma certa constituição política têm um certo tipo
de caráter (= ethos), e a argumentação do orador deve adaptar-se a isso.
- O ponto de vista da idade e da fortuna : nos capítulos 12 a 17 do livro II, Aristóteles
descreve os traços de caráter particulares dos homens em função de sua idade (juventude,
maturidade, velhice) e de sua fortuna (seguindo a ordem de sua apresentação : a nobreza, a
riqueza, o poder e a sorte). Aristóteles descreve assim os diferentes caracteres que o orador
pode encontrar em um auditório : cabe-lhe escolher as diferentes paixões que deverá
suscitar nele. Como a virtude não é considerada em todos os lugares nem por todas as
pessoas da mesma maneira, é em função de seu auditório que o orador construirá uma
imagem de si conforme à que é considerada como virtude. A persuasão só é obtida se o
auditório pode ver, no orador, que tem o mesmo ethos que vê em si mesmo: persuadir
consistirá em fazer passar em seu discurso o ethos característico do auditório, para dar-lhe a
impressão de que é um dos seus que se dirige a ele.
O ethos retórico, o primeiro emprego, está ligado à própria enunciação, e não a um
saber extra-discursivo sobre o locutor. Este é o ponto essencial : “persuade-se pelo caráter
quando o discurso é tal que torna o orador digno de fé (...). Mas é necessário que essa
confiança seja efeito do discurso, não de uma prevenção sobre o caráter do orador” (1356
a)20. R. Barthes sublinha esse ponto : “São os traços de caráter que o orador deve mostrar
ao auditório (pouco importando sua sinceridade) para causar boa impressão (...) O orador
enuncia uma informação e ao mesmo tempo diz: eu sou isso, eu não sou aquilo”21. A
eficácia do ethos tem a ver com o fato de que ele envolve de alguma forma a enunciação,
sem ser explicitado no enunciado.
Oswald Ducrot conceituou esse fenômeno através de sua distinção entre “locutor-L”
(=o enunciador) e o “locutor-lambda” (= o locutor enquanto ser do mundo), que atravessa
a distinção dos pragmaticistas entre mostrar e dizer : o ethos se mostra no ato de
enunciação, ele não é dito no enunciado. Ele permanece, por natureza, no segundo plano da
enunciação : ele deve ser percebido, mas não deve ser objeto do discurso. “Não se trata de
afirmações elogiosas que o orador pode fazer a respeito de sua pessoa no conteúdo do seu
discurso, afirmações que correm o risco, ao contrário, de chocar o auditório, mas da
aparência que lhe conferem a cadência, a entonação, calorosa ou severa, a escolha das
palavras, dos argumentos... Em minha terminologia, direi que o ethos está associado a L, o
20 Ênfase nossa.21 "L'ancienne rhétorique", in : Communications 16 (1966) p. 212.
locutor enquanto tal : é na medida em que é fonte da enunciação que ele se vê revestido de
certos caracteres que, em conseqüência, tornam essa enunciação aceitável ou refutável”
(Ducrot 1984: 201).
Vê-se que o ethos é distinto dos atributos “reais” do locutor. Embora seja associado
ao locutor, na medida em que ele é a fonte da enunciação, é do exterior que o ethos
caracteriza esse locutor. O destinatário atribui a um locutor inscrito no mundo extra-
discursivo traços que são em realidade intradiscursivos, já que são associados a uma forma
de dizer. Mais exatamente, não se trata de traços estritamente “intradiscursivos” porque,
como vimos, também intervêm, em sua elaboração, dados exteriores à fala propriamente
dita (mímica, vestimentas …).
Em última instância, a questão do ethos está ligada à da construção da identidade.
Cada tomada da palavra implica ao mesmo tempo levar em conta representações que os
parceiros fazem um do outro, e a estratégia de fala de um locutor que orienta o discurso de
forma a sugerir através dele uma certa identidade.
Algumas dificuldades ligadas à noção
Em seus desenvolvimentos históricos, e também nas re-explorações que dela se
fazem hoje, a noção de ethos, por mais simples que possa parecer à primeira vista, coloca
múltiplos problemas, se se quiser caracterizá-la com alguma precisão. Assinalaremos
alguns.
O ethos está crucialmente ligado ao ato de enunciação, mas não se pode ignorar que
o público constrói também representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele
fale. Parece necessário, pois, estabelecer uma distinção entre ethos discursivo e ethos pré-
discursivo. Só o primeiro, como vimos, corresponde à definição de Aristóteles. Certamente,
existem tipos de discurso ou de circunstâncias para as quais não se espera que o
destinatário disponha de representações prévias do ethos do locutor : isso ocorre, por
exemplo, quando se abre um romance. Mas a questão é completamente diferente no
domínio político, por exemplo, quando a maior parte dos locutores, constantemente
presentes na cena midiática, são já associados a um tipo de ethos que cada enunciação pode
confirmar ou infirmar. De qualquer forma, mesmo que o destinatário não saiba nada
antecipadamente sobre o ethos do locutor, o simples fato de que um texto pertence a um
gênero de discurso ou a um certo posicionamento ideológico induz expectativas em matéria
de ethos. Pode-se colocar em dúvida o fundamento dessa distinção entre “pré-discursivo” e
“discursivo”, argumentando que cada discurso se desenvolve no tempo (um homem que
falou no começo de uma reunião e que retoma a palavra já adquiriu uma certa reputação
que a seqüência de sua fala pode confirmar ou não), mas parece mais razoável pensar que a
distinção pré-discursivo / discursivo deve levar em conta a diversidade dos gêneros de
discurso, que ela não é pertinente de forma absoluta.
Uma outra série de problemas advém do fato de que, durante a elaboração do ethos,
interagem ordens de fatos muito diversos : os índices sobre os quais se apóia o intérprete
vão desde a escolha do registro da língua e das palavras até o planejamento textual,
passando pelo ritmo e a modulação. O ethos se elabora, assim, por meio de uma percepção
complexa que mobiliza a afetividade do intérprete, que tira suas informações do material
lingüístico e do ambiente. Há algo ainda mais grave : se se diz que o ethos é um efeito do
discurso, supõe-se que podemos delimitar o que decorre do discurso ; mas isso é muito
mais evidente para um texto escrito do que para uma situação de interação oral. Há sempre
elementos contingentes em um ato de comunicação, em relação aos quais é difícil dizer se
fazem ou não parte do discurso, mas que influenciam a construção do ethos pelo
destinatário. É, em última instância, mais uma decisão teórica do que de saber se se deve
relacionar o ethos ao material propriamente verbal, atribuir o poder às palavras, ou se se
deve integrar a ele elementos como a vestimenta do locutor, seus gestos, e, eventualmente,
o conjunto do quadro da comunicação. O problema é mais delicado se considerarmos que o
ethos, por natureza, é um comportamento que, enquanto tal, articula verbal e não-verbal
para provocar no destinatário efeitos que não decorrem apenas das palavras.
Além disso, a noção de ethos remete a coisas muito diferentes segundo seja
considerada do ponto de vista do locutor ou do destinatário : o ethos visado não é
necessariamente o ethos produzido. O professor que quer dar uma imagem de sério pode
ser percebido como monótono, e aquele que quer dar a imagem de indivíduo aberto e
simpático pode ser percebido como doutrinador ou “demagogo”. Os fracassos, em matéria
de ethos, são moeda corrente.
Na própria concepção de ethos, existem amplas zonas de variação: A. Auchlin
assinala algumas delas:
- O ethos pode ser concebido como mais ou menos carnal, concreto ou mais ou
menos “abstrato”. É a própria questão da tradução do termo ethos que está
em jogo aqui : caráter, retrato moral, imagem, costumes oratórios, atitude, ar,
tom …; o quadro de referência pode privilegiar a dimensão visual (“retrato”)
ou musical (“tom”), a psicologia popular, a moral etc.
- O ethos pode ser concebido como mais ou menos axiológico. Há
tradicionalmente uma discussão sobre o caráter “moral” ou não da prova pelo
ethos. Há ou não autonomia do ethos em relação aos costumes reais dos
locutores ? Atribui-se à retórica latina o preceito segundo o qual, para ser um
bom orador, é preciso antes de tudo ser um homem de bem. Posição que
parece oposta à concepção aristotélica.
- O ethos pode ser concebido como mais ou menos saliente, manifesto,
singular vs coletivo, partilhado, implícito e invisível. Alguns, como C.
Kerbrat-Orecchioni, associam a noção de ethos aos hábitos locucionais
partilhados pelos membros de uma comunidade : “Pode-se, de fato, supor
razoavelmente que os diferentes comportamentos de uma mesma comunidade
obedecem a alguma coerência profunda, e esperar que sua descrição
sistemática permita extrair o “perfil comunicativo”, ou ethos, dessa
comunidade (isto é, sua maneira de se comportar e de se apresentar na
interação – mais ou menos calorosa ou fria, próxima ou distante, modesta ou
imodesta, “inconveniente” ou respeitosa do território do outro, susceptível ou
indiferente à ofensa etc.)” (Kerbrat-Orecchioni 1996 : 78). Um tal “ethos
coletivo” constitui, para os locutores que o partilham, um quadro, invisível e
imperceptível, como tal, do interior.
- O ethos pode ser concebido como mais ou menos fixo, convencional vs
emergente, singular. De fato, é evidente que existem, para um grupo social
dado, “ethé” fixos, que são relativamente estáveis, convencionais. Mas não é
menos evidente que existe também a possibilidade e jogar com esses ethé
convencionais.
De qualquer forma, desde a origem, a noção de ethos não tem um valor unívoco. O
termo “ethos”, em grego, tem um sentido pouco específico e se presta a múltiplos
investimentos: em retórica, em moral, em política, em música... Já em Aristóteles, o ethos é
objeto de tratamentos diferentes na Política e na Retórica, e vimos que, nesse último livro,
ele designa ora propriedades associadas ao orador enquanto ele enuncia, ora disposições
estáveis atribuídas a indivíduos inseridos em comunidades. A isso se acrescentam todos os
problemas postos pela interpretação do corpus aristotélico e, mais amplamente, dos
corpora antigos. Os que têm familiaridade com esses termos não podem ignorar a
quantidade de debates que suscita desde mais de dois séculos a interpretação da menor
passagem dos grandes filósofos gregos …
Não é nossa tarefa aqui atribuir uma interpretação ao conjunto dos empregos de
“ethos” em Aristóteles, mesmo que restringindo-nos à Retórica ; o que nos interessa é,
antes, saber a que título essa categoria interessa a um setor determinado das ciências
humanas contemporâneas, em especial ao estudo do discurso. Não vivemos no mesmo
mundo da retórica antiga, e a fala não é mais governada pelos mesmos dispositivos; o que
era uma disciplina única, a retórica, é hoje dividida em disciplinas teóricas e práticas que
têm interesses distintos e captam o ethos em diversas facetas.
Não é de forma alguma possível estabilizar definitivamente uma noção desse tipo,
que é mais adequado apreender como o núcleo gerador de uma multiplicidade de
desenvolvimentos possíveis. Há uma grande distância, por exemplo, entre os esforços de
M. Dascal para integrar o ethos a uma “retórica cognitiva” fundada em uma pragmática
filosófica (Dascal, 1999) e as perspectivas dos “estudos culturais”, em que o ethos é
associado às questões de diferença sexual e de etniticidade (Baumlin J. et T, 1994). Os
corpora exercem um papel essencial nessa diversificação: aplicada a um texto filosófico do
século XIX, o ethos não põe os mesmos problemas que põe quando aplicado a uma
interação conversacional…
No entanto, limitando-se à Retórica de Aristóteles, pode-se concordar em relação a
algumas idéias, sem prejulgar a forma pela qual elas poderão eventualmente ser exploradas:
- o ethos é uma noção discursiva; ele se constitui por meio do discurso, não é uma
“imagem” do locutor exterior à fala;
- o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro;
- é uma noção fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um comportamento
socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação
precisa, ela própria integrada a uma conjuntura sócio-histórica determinada.
É com esse espírito que vou apresentar minha concepção pessoal de ethos, que se
inscreve no quadro da análise do discurso: mesmo se sua problemática é bem diferente,
parece que não é fundamentalmente infiel às linhas de força da concepção aristotélica do
ethos. Para ficar no espírito desse número de Pratiques, vou enfatizar o escrito.
II
Fui levado a trabalhar a noção de ethos em um quadro de análise do discurso e
sobre corpora que decorrem de gêneros que podem ser considerados “instituídos”, por
oposição aos gêneros conversacionais. Nos gêneros “constituídos”, sejam eles monologais
ou dialogais, os parceiros ocupam papéis pré-estabelecidos que permanecem estáveis
durante o evento comunicativo, e seguem rotinas mais ou menos precisas no
desenvolvimento da organização textual. Nos gêneros conversacionais, ao contrário, os
lugares dos parceiros são seguidamente negociados, e o desenvolvimento do texto não
obedece a restrições macro-estruturais fortes.
Minha perspectiva ultrapassa bastante o quadro da argumentação. Além da
persuasão pelos argumentos, a noção de ethos permite refletir sobre o processo mais geral
da adesão dos sujeitos a um certo posicionamento. Esse processo é particularmente
evidente quando se trata de discursos como a publicidade, a filosofia, a política etc., que –
diferentemente dos que decorrem de gêneros “funcionais”, como os formulários
administrativos ou os instrucionais – devem ganhar um público que está no direito de
ignorá-los ou de recusá-los.
O “fiador”
A meu ver, a noção de ethos é interessante por causa do laço crucial que ela mantém
com a reflexividade enunciativa, mas também porque permite articular corpo e discurso em
uma dimensão diferente da oposição empírica entre oral e escrito. A instância subjetiva que
se manifesta por meio do discurso não pode ser concebida como um estatuto, mas como
uma “voz”, associada a um “corpo enunciante” historicamente especificado.
Enquanto a retórica ligou estreitamente o ethos à oralidade, ao invés de reservá-lo à
eloqüência judiciária ou mesmo à oralidade, pode-se propor que qualquer texto escrito,
mesmo se ele o nega, tem uma “vocalidade” específica que permite relacioná-la a uma
caracterização do corpo do enunciador (e não, bem entendido, ao corpo do locutor extra-
discursivo), a um “fiador” que, por meio de seu “tom”, atesta o que é dito (o termo “tom”
tem a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral).
Isso quer dizer que optei por uma concepção mais “encarnada” do ethos, que, nessa
perspectiva, recobre não somente a dimensão verbal, mas também o conjunto das
determinações físicas e psíquicas associadas ao “fiador” pelas representações coletivas.
Assim, acaba-se por atribuir ao fiador um “caráter” e uma “corporalidade”, cujo grau de
precisão varia segundo os textos. O “caráter”22 corresponde a um feixe de traços
psicológicos. Quanto à “corporalidade”, ela é associada a uma compleição física e a uma
forma de se vestir. Além disso, o ethos implica uma forma de mover-se no espaço social,
uma disciplina tácita do corpo, apreendida por meio de um comportamento. O destinatário
o identifica apoiando-se em um conjunto difuso de representações sociais, avaliadas
positiva ou negativamente, de estereótipos, que a enunciação contribui para reforçar ou
transformar.
De fato, a incorporação do leitor ultrapassa a simples identificação a uma
personagem fiadora. Ela implica um “mundo ético” do qual o fiador é parte pregnante e ao
qual ele dá acesso. Esse “mundo ético”, ativado por meio da leitura, é um estereótipo
cultural que subsume um certo número de situações estereotípicas associadas a
comportamentos: a publicidade contemporânea apóia-se maciçamente em tais estereótipos
(o mundo ético do quadro dinâmico???, dos esnobes, das estrelas de cinema etc.). No
22 Que não confundiremos, evidentemente, com o termo « caráter » , como qual se traduz freqüentemente o « ethos » da Retórica de Aristóteles.
domínio da canção, por exemplo, notaremos que a passagem da simples inclusão de um
cantor em um clip teve o efeito de inserir o fiador em um mundo ético específico.
Propus designar com o termo “incorporação” a maneira pela qual o destinatário em
posição de intérprete – ouvinte ou leitor – se apropria desse ethos. Fazendo um uso pouco
ortodoxo da etimologia, pode-se, de fato, fazer jogar essa “incorporação” em três registros:
- a enunciação da obra confere uma “corporalidade” ao fiador, ela lhe dá corpo;
- o destinatário incorpora, assimila um conjunto de esquemas que correspondem a
uma maneira específica de relacionar-se com o mundo habitando seu próprio corpo;
- essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um corpo, da
comunidade imaginária daqueles que aderem ao mesmo discurso.
Consideremos essa propaganda de aparelhos fotográficos publicada em uma
revista :
IXUS II Descubra o prazer do puro metal. Ixus II é um mini-bloco de aço de
acabamento acetinado e polido em que cada elemento foi pensado para uma
ergonomia exemplar em uma compacidade máxima. A qualidade da imagem é
assegurada por um novo micro-zoom 2x com lente esférica dupla, um auto-foco
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Full metal jacket
Canon : Mostre do que você é capaz
O fiador desse texto não é explicitado, mas o texto o “mostra”, por sua maneira
de dizer: faz o leitor entrar em um mundo mítico viril de matriz tecnológica e de
espírito de aventura (“mostre do que você é capaz”). Mais precisamente, esse mundo
ético é exemplificado pelo exército americano, como o indicam a re-atualização do
nome “Cânon”, a menção ao título do filme « Full metal jacket » e o quepe com as
cores de redes militares, colocado sob o texto e sobre o qual se destaca o slogan :
« Mostre do que você é capaz ». Aqui não é necessário dar a ver o corpo do fiador; a
ativação do mundo ético o faz pelos estereótipos que a cultura de massa veicula sobre
o exército americano.
O discurso publicitário contemporâneo mantém por natureza um laço privilegiado
com o ethos; de fato, ele procura persuadir associando os produtos que promove a um
corpo em movimento, a uma maneira de habitar o mundo; como o discurso religioso, em
particular, é por meio de sua própria enunciação que uma propaganda, apoiando-se em
estereótipos avaliados, deve encarnar o que ela prescreve.
Mas não se pode considerar o ethos da mesma forma em qualquer texto. A
“incorporação” não é um processo uniforme; ela se modula em função dos gêneros e dos
tipos de discurso. O ethos, em um texto escrito, não implica necessariamente uma relação
direta com um fiador encarnado, socialmente determinável. Pode-se ver isso nesse trecho
de um artigo de Marie France (na seção “Vida Privada”), dedicado aos “progressos” que as
mulheres podem realizar em sua sexualidade.
(...) Sim, mas como? Um Pigmalião Papai Noel que chegue bem na hora certa, pronto para
desfazer todos os bloqueios, os medos e as tensões, para nos revelar a nós mesmas e para
transformar nossas tediosas relações em explosão de fogos de artifício, não desce todos os
dias por nossas chaminés... Os cassetes? Os livros? As revistas? Os estágios do tantrismo?
Existe toda uma parafernália pedagógica sobre o assunto, capaz de, em algumas lições,
despertar em você uma jovem Agnès. Mas o método Assimil não é o mais adequado ao
assunto. Nos Estados Unidos, os “Better Sex Video series” propõem, em seu nível 1,
“Técnicas sexuais melhores” ilustradas por alguns casais de boa vontade (...) (Marie France,
janeiro de 1996, p. 48)
Em uma concepção “ingênua” do discurso, seríamos levados a pensar que é o conteúdo
desse texto que importa, que ele é representativo de uma certa “ideologia” da mulher
moderna. De fato, porém, o “conteúdo” é indissociável do ethos de um corpo enunciante
“liberado” de suas tensões. O texto gera sua mensagem (resumida no título “Sexo: sempre
se pode fazer progresso”) por meio de um ethos bem característico. Esse artigo que trata
dos “bloqueios”, das “tensões” do corpo é de fato enunciado por meio de um ethos de
mulher liberada, que joga com as referências culturais (a mitologia grega, o Papai Noel, A
Escola das mulheres de Molière), e que joga também com as tensões da língua (mistura de
registros, metáforas lúdicas...): a mulher que se libera sexualmente é a que poderia falar
assim. A maneira de dizer, de uma certa forma, é também a mensagem; o ethos, que se
considerava funcionar à parte, constitui sem qualquer dúvida uma condição essencial do
processo de adesão das leitoras ao que é dito. Mas esse ethos (que faz pensar no que
prevalece em Libération, por exemplo), não é referível a um estereótipo social delimitado:
é, antes, um ethos jornalístico impreciso, susceptível de atingir categorias sociais muito
diferentes.
Também pode ocorrer que o ethos só tenha existência intertextual:
Não é bom para o homem ficar lembrando o tempo todo que é homem.
Voltar-se para si já é ruim: voltar-se para a espécie, com o zelo de um
obcecado, é ainda pior: é atribuir às misérias arbitrárias da introspecção
um fundamento objetivo e uma justificação filosófica” (1964 : 9).
Nas primeiras linhas da obra de Cioran La Chute dans le temps mostra-se um ethos
moralista clássico, associado de forma privilegiada à máxima. Aqui, o mundo ético que a
leitura ativa não corresponde a um universo de comportamento socialmente atribuível, mas
a uma postura de escrita associada a uma corrente da tradição literária. Isso tem
conseqüências para a relação com o leitor: em um texto desse tipo, o público não é um
dado que se pode circunscrever sociologicamente, um “alvo”; ele é, de certa maneira,
instituído na própria cena de enunciação.
A enunciação joga com o ethos sobre o qual ela se apóia. Certamente, o ethos do
moralista clássico é mobilizado, mas uma leitura mais atenta mostra que é radicalmente não
atual, separado de qualquer sociabilidade.
De fato, um verdadeiro escritor não se contenta em incorporar seu leitor projetando-o
de alguma forma em estereótipos típicos. Ele joga com esses estereótipos por meio de um
ethos singular. Enquanto o ethos publicitário canônico é concebido para ser imediatamente
reconhecido, o ethos da obra de Cioran não pode ser verdadeiramente apreendido a não ser
lendo o próprio texto, entrando progressivamente no universo que ele configura.
E isso pode fracassar. Encontra-se aqui o problema da distância entre o ethos que o
texto, em sua enunciação, pretende que seja elaborado por seus destinatários e aquele que
estes querem efetivamente elaborar, em função de sua identidade ou das situações em que
se encontram.
Encontram-se igualmente fenômenos de ethos composto, que misturam vários ethé.
Assim, nesse cartaz que promove um festival organizado pela associação “Cultura na
fazenda”23:
O festival é um momento, uma emoção, um único olhar absorvido pela
cena, uma concentração do tempo em um espaço reduzido. E, depois, há
o derredor, o adiante, o atrás. Em Beauquesne, o espetáculo acontece no
pátio de uma fazenda. Então, ao redor, obrigatoriamente, há as granjas
e a pastagem. Nas granjas, vêem-se exposições: fotos do festival,
imagens de pessoas, imagens de momentos. Na pastagem, bebe-se com
os amigos, janta-se antes do espetáculo, ceia-se para não ir embora logo.
Fala-se dos espetáculos vistos e dos que serão vistos. Evocam-se
lembranças contadas todos os anos. Às vezes, canta-se, até se toca
música. Enfim, continua-se a viver.
Este texto está ao lado de uma foto com vacas ao fundo. Um ethos assim mistura
ostensivamente traços de ethos de mediador cultural e de ethos rural convencional. Fazendo
isso, permite ao leitor “incorporar” o ethos de um fiador imaginário, combinação
improvável de distinção urbana e de retorno a um mundo rural tido como autêntico.
No capítulo dos ethé discursivos que não permitem estabelecer uma relação direta
com um estereótipo social determinado, evocaremos, por fim, o problema que colocam os
textos em que parece que “ninguém fala”, para retomar a célebre fórmula de Benveniste,
isto é, os enunciados desprovidos de marcas de subjetividade enunciativa. O que pode ser o
ethos de um enunciado (jurídico, científico, narrativo, histórico, administrativo...) que não
mostra a presença de um enunciador? De fato, quando se trabalha com textos que derivam
de gêneros determinados, o apagamento do enunciador não impede que se caracterize a
23 Trata-se do festival « Les comiques agricoles », que ocorreu em 3 e 4 de julho de 1999 em Beauquesne (Picardie).
fonte enunciativa em termos de ethos de um “fiador”. No caso dos textos científicos ou
jurídicos, por exemplo, o fiador, além do ser empírico que produziu o texto materialmente,
é uma entidade coletiva (os sábios, os homens da lei...), que, por sua vez, representam
entidades abstratas (a Ciência, a Lei...), cujos poderes se considera que cada membro
assume quando assume a palavra. Dado que, em uma sociedade, qualquer fala é
socialmente encarnada e avaliada, a fala científica ou jurídica é inseparável de mundos
éticos bem caracterizados (sábios de guarda-pós brancos em laboratórios imaculados, juízes
austeros em um tribunal...), nos quais o ethos assume, conforme o caso, as cores da
“neutralidade”, da “objetividade”, da “imparcialidade” etc.
Assim, somos levados a tomar distância de uma concepção do discurso que se
apresenta por meio de noções como as de “procedimento” ou de “estratégia” e para as quais
os conteúdos seriam independentes da cena de enunciação em que são considerados. A
adesão do destinatário opera-se por um apoio recíproco da cena de enunciação (da qual o
ethos participa) e do conteúdo apresentado. O destinatário se incorpora a um mundo
associado a um certo imaginário do corpo, e este mundo é configurado por uma enunciação
que é assumida a partir desse corpo. Em uma perspectiva de análise do discurso, não
podemos nos contentar, como na retórica tradicional, em fazer do ethos um meio de
persuasão: ele é parte pregnante da cena de enunciação, com o mesmo estatuto que o
vocabulário ou os modos de difusão que o enunciado implica por seu modo de existência.
O discurso não resulta da associação contingente de um “fundo” e de uma “forma” ; não se
pode dissociar a organização de seus conteúdos e do modo de legitimação de sua cena de
fala.
Ethos e cena de enunciação
Por meio do ethos, o destinatário está, de fato, convocado a um lugar, inscrito na cena
de enunciação que o texto implica. Essa “cena de enunciação” se compõe de três cenas, que
propus chamar “cena englobante”, “cena genérica” e “cenografia” (Maingueneau 1993). A
cena englobante atribui ao discurso um estatuto pragmático, ela o integra em um tipo:
publicitário, administrativo, filosófico... A cena genérica é a do contrato associado a um
gênero ou a um sub-gênero de discurso: o editorial, o sermão, o guia turístico, a consulta
médica... Quanto à cenografia, ela não é imposta pelo gênero, mas construída pelo próprio
texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética,
amigável etc. A cenografia é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser
enunciado e que, por sua vez, deve validar através de sua própria enunciação: qualquer
discurso, por seu próprio desenvolvimento, pretende instituir a situação de enunciação que
o torna pertinente. A cenografia não é, pois, um quadro, um ambiente, como se o discurso
ocorresse em um espaço já construído e independente do discurso, mas aquilo que a
enunciação instaura progressivamente como seu próprio dispositivo de fala. Há gêneros de
discurso que se atêm a sua cena genérica, isto é, que não são susceptíveis de permitir
cenografias variadas (cf. o guia telefônico, as receitas médicas etc.). Outros, ao contrário,
exigem escolhas de uma cenografia: é o caso dos gêneros literários, filosóficos,
publicitários (há propagandas que apresentam cenografias de conversação, outras, de
discurso científico etc.)... Entre esses dois extremos, situam-se os gêneros susceptíveis de
cenografias variadas, mas que, mais freqüentemente, mantêm sua cena genérica rotineira.
Assim, há, por exemplo, uma cena genérica rotineira dos manuais universitários, mas o
autor de um manual sempre tem a possibilidade de enunciar por meio de uma cenografia
que se afasta dessa rotina: por exemplo, formulando seu ensinamento por meio da
cenografia de um romance de aventura.
A cenografia, com o ethos da qual ele participa, implica um processo de enlaçamento:
desde sua emergência, a fala é carregada de um certo ethos, que, de fato, se valida
progressivamente por meio da própria enunciação. A cenografia é, assim, ao mesmo tempo,
aquilo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso engendra: ela legitima um
enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cena da qual vem a
palavra é precisamente a cena requerida para enunciar nessa circunstância. São os
conteúdos desenvolvidos pelo discurso que permitem especificar e validar o ethos, bem
como sua cenografia, por meio dos quais esses conteúdos surgem. Quando um homem de
ciência sem exprime como tal na televisão, ele se mostra por meio da enunciação como
refletido, imparcial etc., ao mesmo tempo em seu ethos e no conteúdo de suas palavras.
Fazendo isso, define, por sua vez, implicitamente, o que é o verdadeiro homem de ciência,
e opõe-se ao anti-ethos correspondente.
O ethos de um discurso resulta de uma interação de diversos fatores: ethos pré-
discursivo, ethos discursivo (ethos mostrado), mas também de fragmentos do texto em que
o enunciador evoca sua própria enunciação (ethos dito): diretamente (“é um amigo que lhes
fala”), ou indiretamente, por exemplo, por meio de metáforas ou de alusões a outras cenas
de fala (assim, F. Mitterand, em sua Carta a todos os franceses, de 1988, comparando sua
própria enunciação à fala de um pai de família à mesa da família 24). A distinção entre ethos
dito e ethos mostrado inscreve-se nos extremos de uma linha contínua, já que é impossível
definir uma fronteira nítida entre o “dito” sugerido e o “mostrado”. O ethos efetivo, o que
tal ou qual destinatário constrói, resulta da interação dessas diversas instâncias, cujo peso
respectivo varia segundo os gêneros de discurso. A flecha dupla no esquema abaixo indica
que há interação:
24 Ver terceira parte, « Cenografia e debate público ».
Ethos efetivo
Ethos pré-discursivo Ethos discursivo
Ethos dito Ethos mostrado
Estereótipos ligados a mundos éticos
Se cada conjuntura histórica se caracteriza por um regime específico dos ethé, a leitura de
numerosos textos que não pertencem a nossa esfera cultural (no tempo e no espaço) é
freqüentemente dificultada não por lacunas graves em nosso saber enciclopédico, mas pela
perda dos ethé que sustentam tacitamente sua enunciação. Quando vemos as coplas da
Canção de Roland dispostos sobre uma folha de papel, é difícil restituir o ethos que os
sustentavam. Ora, o que é uma epopéia senão um gênero de performance oral? Sem ir tão
longe, a prosa política do séc. XIX é indissociável dos ethé ligados a práticas discursivas, a
situações de comunicação desaparecidas.
Em outras palavras, de uma conjuntura a outra, não são as mesmas zonas da
produção semiótica que propõem as maneiras de ser e de dizer mais importantes, as que
“dão o tom”. Os estereótipos de comportamento eram outrora acessíveis às elites de
maneira privilegiada por meio da leitura dos textos literários, enquanto que, hoje, esse
papel é atribuído à publicidade, sobretudo em sua forma audiovisual.
Isso é claro para os séculos XVII e XVIII, quando o discurso literário era
inseparável dos valores associados a certos modos de vida. Os inúmeros textos que derivam
da corrente “galante”, por exemplo, não se contentavam em contar certas histórias ou em
expor certas idéias; eles o faziam por meio de um ethos discursivo específico, que
participava de um mundo ético da galanteria: ethos do “natural”, da “amabilidade”...
A especificidade de um ethos remete, de fato, à figura de um “fiador” que, por meio
de sua fala, se dá uma identidade que está de acordo com o mundo que ele supostamente
faz surgir. Uma tal problemática do ethos leva a contestar a redução da interpretação a uma
simples decodificação; alguma coisa da ordem da experiência sensível funciona no
processo de comunicação verbal. As “idéias” suscitam a adesão do leitor por meio de uma
maneira de dizer que é também uma maneira de ser. Tomado pela leitura em um ethos
envolvente e invisível, participa-se do mundo configurado pela enunciação, acede-se a uma
identidade de certa forma encarnada. O poder de persuasão de um discurso decorre em
parte do fato de que ele leva o destinatário a identificar-se com o movimento de um corpo,
por mais esquemático que seja, investido de valores historicamente especificados.
Conclusão
Desde que haja enunciação, alguma coisa da ordem do ethos se encontra liberado:
por meio de sua fala, um locutor ativa no intérprete a construção de uma certa
representação de si mesmo, colocando em perigo seu domínio sobre sua própria fala; é-lhe
necessário, então, tentar controlar, mais ou menos confusamente, o tratamento
interpretativo dos signos que ele produz. A partir desse dado incontornável, muitas
explorações do ethos são possíveis, em função do tipo e do gênero de discurso em questão,
e também em função da disciplina, ou de alguma corrente no interior de tal disciplina, à
qual a pesquisa se liga. Uma análise do discurso como eu a pratico não pode apreender o
ethos da mesma maneira que uma teoria da argumentação, ou uma teoria do discurso de
inspiração psico-sociológica. Esses dois parâmetros (corpo e disciplina), aliás, são apenas
parcialmente independentes: sabe-se que cada disciplina ou cada corrente tem tendência a
privilegiar tal ou qual tipo de dados verbais.
Pode-se, evidentemente, renunciar à categoria do ethos, julgada muito instável, mas
é evidente que ela remete a um fenômeno único, mesmo que ele não possa ser apreendido
de maneira compacta. Como escreveu A. Auchlin, que visa aqui, antes de mais nada, às
interações conversacionais: “a noção de ethos é uma noção cujo interesse é essencialmente
prático, e não um conceito teórico claro (...). Em nossa prática ordinária de fala, o ethos
responde a questões empíricas efetivas, relativas a uma zona íntima e pouco explorada de
nossa relação com a linguagem, nas quais nossa identificação é tal que se colocam em
funcionamento estratégias de proteção” (2001: 93). O importante, quando se é confrontado
com essa noção, é, pois, definir por qual disciplina ela é mobilizada, com qual ponto de
vista, e no interior de qual rede conceitual.
CITAÇÃO E DESTACABILIDADE
Fórmula e destacabilidade
Podemos partir de uma constatação banal: na sociedade, circula um grande número
de enunciados que podemos designar pelo termo vago de fórmulas, ou seja, enunciados
curtos, cujos significante e significado são considerados no interior de uma organização
pregnante (pela prosódia, rimas internas, metáforas, antíteses...), o que explica que sejam
facilmente memorizados. Algumas dessas fórmulas circulam no interior de uma
comunidade mais ou menos restrita (uma seita, uma disciplina acadêmica...); outras são
conhecidas por um grande número de locutores espalhados em vários setores do espaço
social. São exemplos, no espaço de falantes do francês, “Aquilo que se concebe bem se
enuncia claramente” (Boileau), “E se restar apenas um, este serei eu” (Victor Hugo), etc. O
rótulo bem impreciso de “citação célebre” convém a esse tipo de fórmula.
Na verdade, essas citações podem fazer parte de dois tipos diferentes de
funcionamento: existem fórmulas que funcionam como enunciados autônomos e fórmulas
que são citadas para marcar um posicionamento específico que se opõe implicitamente a
outros. A fórmula “autônoma” é, em regra geral, interpretada segundo seu sentido imediato
numa interação entre locutores que não são especialistas no tipo de discurso de que provém
essa fórmula. Desse modo, o verso “Aquilo que se concebe bem se enuncia claramente”,
extraído da Arte Poética de Boileau (1674), é comumente utilizado como fórmula
autônoma em várias circunstâncias. Ele também pode ser utilizado para marcar
determinado posicionamento estético, determinada concepção historicamente datada, das
relações entre o sentido, a linguagem e a subjetividade.
Não basta constatar que determinados enunciados, que funcionam como fórmulas,
foram destacados de um texto. Esse trabalho de destaque não se aplica a qualquer material
verbal; numerosas fórmulas – de fato, a maior parte delas – correspondem a enunciados
que, em seu texto de origem, se apresentavam como destacáveis. Conhecemos o caso das
Texto inédito em português. Publicado em dezembro de 2004 na Revista Polifonia nº 8 – Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – Mestrado da UFMT. Tradução Fábio César Montanheiro – FCL/UNESP-Ar & Roberto Leiser Baronas – UNEMAT/UFMT.
“máximas” ou “sentenças” que abundam em inúmeros textos do século XVI ou XVII: por
suas propriedades lingüísticas, elas se tornam fadadas ao destaque.
Tomemos como exemplo os dois primeiros versos da fábula “O escultor e sua
estátua de Júpiter” de La Fontaine:
Um bloco de mármore era tão belo
Que um escultor o adquiriu.
Esses dois versos não se apresentam como bom candidato ao destaque: trata-se de
um início de narração que evoca um processo singular. Por outro lado, os dois primeiros
versos da moral,
Cada um transforma em realidades
Conforme pode, seus próprios sonhos,
por sua posição tipograficamente realçada e por seu caráter generalizante, são bons
candidatos ao destaque.
Entretanto, ocorre que um enunciado que não tem propriedades de destacabilidade
adquira o estatuto de fórmula; é o caso do começo de Em busca do tempo perdido (“Por
muito tempo, fui dormir cedo”). Mas, a respeito desse ponto, a prosa romanesca está em
desvantagem em relação à poesia regular, que mantém naturalmente uma relação
privilegiada com a destacabilidade. Podemos imaginar, por exemplo, que um locutor, ao
presenciar um pôr do sol particularmente impressionante, invoque o verso de Baudelaire “O
sol se afogou em seu sangue coagulante”. Esse verso não ocupa uma posição relevante no
poema do qual ele é destacado, ele nem é sequer enunciativamente autônomo (ele não é
genérico, nem mesmo iterativo), mas, o simples fato de ser um alexandrino e de ser
fortemente metafórico o predispõe mais à destacabilidade.
A máxima heróica
Vamos examinar um primeiro caso de enunciado que aspira à destacabilidade: o das
“máximas” muito freqüentes no teatro clássico francês do século XVII. Diferentemente da
estética romântica, a literatura clássica, prolongando neste aspecto os Antigos, procurou
constantemente produzir fórmulas destacáveis, “sentenças”. No Cid de Corneille,
encontramos, por exemplo, na boca do jovem herói Rodrigo:
- “Para quem vinga seu pai, não há nada impossível.”
- “O valor não espera a idade.”
Essas são asserções generalizantes que enunciam um sentido completo; são curtas,
bem estruturadas, de modo a impressionar, a serem facilmente memorizáveis e
reutilizáveis. Elas devem, além disso, ser pronunciadas com o ethos enfático conveniente.
Tais “máximas”, ainda que seu conteúdo não tenha nada de original, não são, como os
provérbios, atribuídas à responsabilidade de um Sujeito Universal. São enunciados inéditos,
postos na boca de Rodrigo. Quando uma personagem emite tal máxima, seu caráter de
enunciado novo não é de modo algum indicado, mas, ao contrário – e aí está o dinamismo
essencial de seu gesto: ele oferece sua máxima inédita como se fosse o eco, a enésima
retomada de uma sentença que já seria conhecida e que é evidente.
Essas máximas que se apresentam como destacáveis de seu co-texto se fundam, com
efeito, na combinação aparentemente paradoxal de duas propriedades:
1. Elas devem ser percebidas como inéditas;
2. Elas devem ser percebidas como imemoriais.
É precisamente nesse ponto que se encontra o núcleo do efeito buscado: o
personagem produz algo memorável, isto é, um enunciado digno de ser consagrado, antigo
de direito, novo de fato. É porque é digno de ser antigo que pode aspirar a um estatuto
“monumental”. Ele inaugura a jusante uma série ilimitada de retomadas, apresentando-se
como o eco de uma série ilimitada de retomadas a montante. Esse tipo de enunciado visa,
portanto, produzir na realidade aquilo que não passa de uma pretensão enunciativa:
apresentando-se como uma sentença já pertencente a um saber compartilhado, ele prescreve
justamente por isso mesmo sua retomada ilimitada.
Ele supõe, portanto, uma estrutura temporal totalmente singular, aquela de um tipo
de “citação original” – para retomar uma expressão de Adorno (1981: 29) –, uma estrutura
que Deleuze encontra no fenômeno da festa comemorativa: não é a festa da Federação (14
de julho de 1790) que repete a tomada da Bastilha (14 de julho de 1789) que ela comemora,
mas é a tomada da Bastilha que repete antecipadamente todas as festas da Federação. Esse
paradoxo temporal se encontra de alguma forma realizado na estrutura enunciativa desse
tipo de fórmula, que ultrapassa a si mesma no exato momento em que se enuncia: primeira
enunciação, ela retém de alguma forma em si mesma sua repetição ulterior, ela se
comemora ao se inaugurar.
Além disso, existe uma relação crucial entre heroísmo e sentença. O herói é aquele
que, na atualidade de sua enunciação, manifesta sua autonomia, aquele que por seu dizer
prescreve a si mesmo o que no mesmo movimento prescreve a todos. Esse tipo de fórmula
está, portanto, muito distante de um provérbio, que descreve a ordem do mundo do exterior:
em lugar de constituir heroicamente a lei por intermédio do dizer de um sujeito de
enunciação (“Locutor-L” de Ducrot) que refere a si mesmo como ser do mundo (“Locutor-
λ”), o provérbio implica uma ruptura modal e referencial entre o enunciador e seu
enunciado.
Essa fala de herói é associada a um gestual articulatório e corporal, um ethos
específico, que marca uma adesão total do sujeito. Essa adesão plena, seja ela entusiasmada
ou séria, justifica-se ideologicamente em termos de natureza (a “generosidade” é atributo
das raças nobres) e sua eficácia provém precisamente da miraculosa coincidência entre a lei
e o movimento espontâneo de uma natureza. Máxima e herói são assim considerados no
interior de uma mesma estrutura de exemplaridade. Por definição, uma sentença é uma
enunciação singular, cujo auto-posicionamento dêitico manifesta a autonomia frente a todos
os contextos particulares e a todos os sujeitos imagináveis. Da mesma forma, o herói é esse
indivíduo cujos gestos verbais ou não verbais se universalizam: o herói não realiza atos, ele
realiza aqueles atos que o Homem por excelência realiza, que, nessa situação, todo homem,
se é plenamente homem, deve realizar. Ao proferir essas fórmulas, o herói realiza então
discursivamente a exemplaridade heróica, ele exprime a universalidade do Sujeito
Universal na singularidade do Eu enunciador.
Auto-posicionada, inatingível tanto em seu significante quanto em seu significado,
memorável, a máxima está fadada a se destacar de seu ambiente textual para levar uma vida
autônoma, preservada da decomposição, do esquecimento. Ela pode ser gravada sobre a
pedra, sobre o bronze, passar de um texto a outro.
A fórmula filosófica
Colocaremos essas máximas heróicas em contraste com um segundo tipo de
fórmulas, aquelas que são passíveis de serem destacadas dos textos filosóficos. Deixamos
de lado aqui o caso particular das filosofias (como é o caso na Antigüidade25) que produzem
enunciados diretamente destacados, espécies de slogans que são destinados a servir como
regra de vida ou como suporte à meditação. Nós falamos, ao contrário, de textos que
marcam umas ou outras de suas seqüências como destacáveis. Essa destacabilidade pode
ser indicada de várias maneiras:
Pelo paratexto: ao fazer dele um título (“O existencialismo é um humanismo”26) ou
um intertítulo.
Ao longo do texto propriamente dito: ao lhe destinar uma posição relevante (em
particular, mas não apenas, em posição inicial ou final).
Pela embreagem enunciativa: ao lhe conferir um valor generalizante ou genérico.
Por uma estruturação pregnante de seu significante (simetria, silepse...) e/ou de seu
significado (metáfora, quiasmo...).
Pelo metadiscurso: ao explicitar uma operação que confere um papel-chave a este
ou àquele enunciado (por exemplo, por uma retomada categorizadora: “essa
verdade essencial...”).
Eis um exemplo de seqüência filosófica destacável, que figura no final do capítulo I
das Duas fontes da moral e da religião de Bergson:
25 A respeito disso, conhecemos os trabalhos de P. Hadot.26 Título de uma obra de Sartre em francês.
(...) Ao contrário, tudo se esclarece quando se vai buscar, além das
manifestações, a própria vida. Atribuamos então à palavra biologia o
sentido bem compreensível que ela deveria ter, que ela assumirá talvez um
dia, e digamos para concluir que toda moral, pressão ou aspiração é de
natureza biológica. (1951: 103).
Aqui, a destacabilidade da seqüência que colocamos em itálico é manifesta, ou seja,
acumula posição de destaque textual (posição final de um capítulo de uma obra que contém
apenas quatro), autonomização enunciativa (enunciado generalizante), operação meta-
discursiva (“digamos, para concluir”) que atribuI um papel-chave a esse enunciado; ela é
igualmente curta e paradoxal (em relação à doxa e em relação à representação comum da
doutrina bergsoniana, que passa por espiritualista). Esse enunciado é, então, um candidato
ideal ao estatuto de fórmula filosófica.
Para tal marcação – pela qual o autor distingue um fragmento como destacável, que
de algum modo o formata para uma virtual retomada citacional –, não podemos falar de
citação nem de embrião de citação: é apenas um ato de pôr em evidência que se opera em
relação ao resto dos enunciados que são atribuídos, sem mais, ao locutor.
A fórmula filosófica participa das três dimensões do “espaço filosófico”: campo,
arquivo e rede de práticas. Ela participa do campo na medida em que marca um
posicionamento, a singularidade de uma doutrina assinada: ela delimita um território, traça
uma fronteira que, enquanto tal, separa um interior e um exterior da doutrina. Participa
também do arquivo, visto que se inscreve na memória, no patrimônio da filosofia. Enfim,
ela é inseparável de práticas: uma fórmula filosófica é um objeto de dissertação potencial
para os alunos ou o suporte privilegiado para o comentário de texto num curso de filosofia.
Mas, na medida em que ela joga sobre dois planos (ao mesmo tempo como
enunciado autônomo e como fragmento extraído de um determinado texto), a fórmula
filosófica é tomada no interior de uma tensão constitutiva. Por um lado, é uma enunciação
que se volta sobre sua intransitividade, tipo de dizer profético absoluto, atribuído a uma
Origem que lhe dá foro de autenticidade: daí um efeito de “iconicidade” e a necessidade de
a citar com um ethos apropriado. Mas, por outro lado, é um fragmento de texto que tem a
particularidade de dar acesso ao conjunto de uma doutrina. Poderíamos falar de seu
propósito de “fórmula-chave” ou de “fórmula-mestre”. Chave arquitetônica e chave de
porta, a FF – fórmula filosófica - presumivelmente condensa toda uma doutrina ou parte
dela, e constitui uma via de acesso privilegiada a seu universo de sentido. Podemos, assim,
analisar os dois sentidos de “mestre”: fórmula mestre (condensação ou via de acesso), mas
também fórmula de mestre, atribuída a uma autoridade.
Pela condensação semântica que ela implica, associada a uma estrutura de
significante pregnante, a fórmula filosófica se apresenta como enigmática: ela encerra em si
uma parte de obscuridade, diz e esconde ao mesmo tempo. É uma citação fadada a um
desdobramento, que a projeta sobre a doutrina da qual participa. Esse desdobramento é
regulado por um conjunto de gêneros de discurso codificados pela instituição escolar.
Podemos pensar nos comentários de texto ou nas dissertações, dois gêneros que visam
inscrever a fórmula num intertexto. Pode tratar-se do intertexto “interno”, ou do intertexto
“externo”, de uma rede aberta de textos filosóficos passados ou contemporâneos que
dependem de outros posicionamentos. Esses dois modos de desdobramento são, na verdade,
indissociáveis.
Consideremos este excerto de um manual de filosofia, em seu capítulo dedicado à
religião:
A título de exemplo, tomemos a célebre formulação, proposta por
Marx, e que na vulgata marxista constitui, seguindo a expressão de um de
seus intérpretes mais ilustres (nada menos do que Lênin), a pedra angular
da teoria marxista em matéria de religião. Ei-la: “A religião é o ópio do
povo”. (K. Marx, Contribuition à la critique de la philosophie du droit de
Hegel (1844). Berlin, 1953: 10-1)
Em sua brutalidade abreviadora (ela condensa um dogma ou uma prática), esse
enunciado já saiu de um contexto que atenua sua unilateralidade. Marx havia acabado de
dizer:
O combate contra a religião é, portanto, indiretamente, o combate contra
este mundo cujo aroma espiritual é a religião. A miséria religiosa é
parcialmente a expressão da miséria real, parcialmente o protesto contra a
miséria efetiva. A religião é o suspiro que conduz a criatura oprimida, a
cordialidade de um mundo sem coração, exatamente como é o espírito de
circunstâncias (Zustände) desprovidas dela. Ela é o ópio do povo. (p.169-
70)
A citação é primeiramente dada como fórmula autonomizada, célebre, mas isso para
remontar, de alguma forma, o percurso que vai do destaque à destacabilidade. Isso se faz,
num primeiro momento, pela atribuição de uma referência bibliográfica precisa, que mostra
a conformidade do locutor às normas do curso universitário; num segundo momento, se
processa uma recontextualização, de maneira a transformar exatamente sua exatamente em
fórmula. Uma vez reposta em seu contexto, a fórmula permite “desdobrar” a doutrina
marxista no que toca à religião.
A noção de sobreasseveração e sua exploração nas mídias
Agora que ilustramos essa “destacabilidade” por intermédio de exemplos literários e
filosóficos, podemos introduzir a noção de sobreasseveração e sua correlata, a de
sobreasseverador. As fórmulas célebres são, de fato, a parte emersa do iceberg. Basta
olharmos ao nosso redor para ver que os fenômenos semelhantes são abundantes, em
particular nas mídias.
Num primeiro momento, podemos dizer que uma seqüência sobreasserida num texto
é relativamente breve, de estrutura pregnante no plano do significado e/ou do
significante;
está em posição relevante no texto ou em uma passagem do texto, de modo a lhe
atribuir o estatuto de um condensado semântico, o produto de uma espécie de
sedimentação da realização do discurso;
é tal que sua temática deve estar em relação com o intuito do gênero de discurso, do
texto em questão: trata-se de uma tomada de posição no interior de um conflito de
valores;
implica um tipo de “amplificação” da figura do enunciador, manifestada por um
ethos apropriado.
São evidentes os casos das máximas do Cid ou da fórmula de Bergson. Mas,
dissemos, essa sobreasseveração está também muito presente nas mídias contemporâneas,
particularmente no rádio e na televisão, por meio do fenômeno que as próprias mídias
denominam “pequenas frases”, aqueles enunciados curtos que, durante um curto período de
tempo, vão ser intensamente retomados nos programas de informação. De fato, é
impossível determinar se essas “frases pequenas” são assim porque os locutores dos textos
de origem as quiseram assim, isto é, destacáveis, fadadas à retomada pelas mídias, ou se
são os jornalistas que as dizem dessa forma para legitimar seu dizer. De qualquer forma,
pelo clássico jogo de antecipação das modalidades de recepção, os formadores dos
enunciados, que são profissionais da vida pública, têm tendência a produzi-los em função
dos re-empregos que deles serão feitos.
Com efeito, a citação está inscrita no próprio funcionamento da máquina midiática,
cujos atores gastam seu tempo destacando fragmentos de textos para converte-los em
citações (para os títulos e os intertítulos, as resenhas, os resumos, as entrevistas, etc.).
Tornou-se, assim, uma rotina para os locutores que estão familiarizados com os
procedimentos midiáticos situar enunciados em posições textuais escolhidas – muito
freqüentemente ao final de unidade textual –, de modo a torná-las destacáveis, a favorecer
sua ulterior circulação. É como se os profissionais das mídias (produtores ou consultores
em comunicação) indicassem discretamente os fragmentos que desejam ver retomados.
Vejamos, como exemplo, esta entrevista do ator Samuel Le Bihan na Télé Star (12-
18 de abril de 2003):
Você diz que encarnar um papel novo é partir para a descoberta de si mesmo. O que
você sondou desta vez?
A relação com meu irmão. Quando eu tinha 16 anos, nossos pais se separaram. Ele
abandonou a escola – ele era muito agitado, como seu irmão mais velho – e veio viver
comigo. Eu tinha 23 anos e cuidei dele com toda falta de habilidade de minha idade: eu quis
lhe dar o melhor, para que ele tivesse êxito nos pontos em que eu havia fracassado. Enfim,
eu queria bancar o pai sem ter envergadura para isso.
Com as mulheres, Rapha tem um modo bem infantil de sedução...
Sim, e nisso ele se assemelha a mim: apesar de meus esforços para parecer adulto, há em
mim uma parte da infância que simplesmente pede para continuar. Quando a gente cresce,
sempre quer se passar por homem. Quando eu era adolescente, tinha aimpressão de que me
pediam para pôr minha virilidade em primeiro lugar. Foi preciso ocultar meu lado doido.
Finalmente, é quando eu interpreto ou quando seduzo que volto a ser um garoto.
Os dois enunciados localizados no final da intervenção são destacáveis: por sua
posição ao final de unidade textual, pela presença de um conector reformulativo (“enfim”,
“finalmente”), por sua estrutura semântica pregnante e a referência a processos não
singulares, submetidos à repetição, que remetem a disposições duráveis. Nesse tipo de
artigo, a destacabilidade permite produzir títulos, intertítulos, legendas de fotos. Assim,
nessa entrevista, encontramos dois enunciados destacados entre aspas em posição
paratextual, um após a foto do ator (“há em mim uma parte da infância que simplesmente
pede para continuar”), outro como título (“Com as mulheres, eu me faço de irresponsável”.
Evidentemente, é o gênero que filtra o tipo de enunciados destacáveis semanticamente mais
pertinentes. É normal que, numa entrevista, sejam de preferência as afirmações da pessoa
entrevistada sobre si mesma as marcadas como destacáveis. Por outro lado, numa exposição
filosófica, a destacabilidade diz respeito, acima de tudo, a teses, a enunciados genéricos de
grande teor doutrinal.
Já que o funcionamento das mídias favorece que as seqüências já formatadas se
tornem “frases pequenas”, nada impede que um jornalista converta soberanamente em
“frase pequena”, graças a uma manipulação apropriada, qualquer seqüência de um texto. Os
locutores-origem se encontram, assim, com muita freqüência, na posição de
sobreasseveradores de enunciados que não foram formulados como tais nos textos. Produz-
se, assim, um desacordo essencial entre o locutor efetivo e esse mesmo locutor considerado
como sobreasseverador de um enunciado que foi destacado pela máquina midiática: esse
sobreasseverador é produzido pelo próprio trabalho da citação. De qualquer modo, em
textos que são um produto coletivo constituído de fragmentos textuais em mosaico (em que
intervêm o locutor citado, seu agente, o jornalista, o paginador, o responsável pelo título), a
sobreasseveração não pode ser remetida a uma intenção.
Esse fenômeno é particularmente claro na imprensa escrita, que explora a
sobreasseveração de diversas formas. Existe, evidentemente, a via mais clássica, a dos
títulos dos artigos:
“No Ministério das Relações Exteriores: ‘As declarações fornecidas ao ministro não
são dignas de confiança’ ” (Le monde, 24.01.2004: 8)
Jean-Louis Borloo, ministro da cidade, sobre as áreas urbanas críticas: “As cidades
devem se tornar bairros comuns” (Libération, 10.11.2003: 14)
Mas o fenômeno adquire uma dimensão completamente diversa quando nos
voltamos para formas menos clássicas de citação. Os jornais distribuídos gratuitamente (na
França, particularmente Métro e 20 minutes), por exemplo, apresentam inúmeros quadros
com nomes variados:
A frase que mata - Valéry Giscard d’Estaing: “Raffarin, aquilo foi três meses de ilusão,
três meses de incertezas e, desde então, é a certeza de que ele não está à altura.” (20
minutes, 18.12.2003: 23).
A citação do dia - “Existe um problema europeu, existe uma crise, mas não é o fim do
mundo.” O delegado europeu Michel Barnier, ontem. (Métro, 15.01.2003: 4)
Foi dito! - “Todos aqueles que vivem na França devem se submeter às regras e aos
costumes da sociedade francesa.” O Conselho representativo das instituições judias da
França saudou, ontem, o discurso do chefe de Estado. (20 minutes, 18.12.2003)
Mas pode haver rubricas mais pomposas. Nesse sentido, Métro, num quadro
intitulado “Eles disseram”, faz uma lista de citações a respeito do Oriente Médio,
atribuídas a George Bush, Tony Blair, Ariel Sharon, Dominique de Villepin, Kofi Annan.
Neste último exemplo, existe certa unidade temática. Mas está longe de ser sempre
assim, como o demonstra uma rubrica corrente nos jornais do estilo “news magazines”: as
páginas duplas de citações que formam um tipo de patchwork. Nesse sentido, em Veja, a
rubrica “Veja essa”, que alinha, por exemplo, em 3 de setembro de 2003 (p.34-5), dezoito
citações em que se misturam política e mundo do espetáculo. Eis duas delas:
“O Brasil deve ter cuidado para o espetáculo do crescimento não ser um vôo de
galinha” (Júlio Sérgio Gomes de Almeida, economista do Instituto de Estudos para o
Desenvolvimento Industrial, em entrevista a Paulo Henrique Amorin, no site Uol News.).
“Eu me acho linda.” (Preta Gil, cantora, a filha robusta do Ministro da Cultura, Gilberto
Gil, que posou nua para o encarte de seu CD.)
A autonomização da sobreasseveração frente ao texto de origem vai ainda mais
longe quando existe uma transformação do enunciado, ou de um ou outro de seus
parâmetros enunciativos, quando ele passa ao paratexto. Vejamos, por exemplo, esta
entrevista (4 páginas) do primeiro vencedor do reality show “Le Bachelor” e de sua
“noiva”. Um título extenso ocupa as duas primeiras páginas, sendo retomado no alto da
página seguinte.
Olivier e Alexandra
“Se a coisa não for bem entre nós, vamos contar para vocês”
Ora, o texto de origem, na página seguinte, propõe uma outra versão. O enunciado
em questão não tem Olivier e Alexandra como locutores, mas apenas Olivier; além disso, o
enunciando destacado é bem diferente:
Olivier: Se, algum dia, a coisa estiver menos bem entre nós, não vamos esconder.
Não comentarei aqui as razões dessa transformação, mas vê-se que ela elimina
modulações, de modo a reforçar a autonomia e o caráter lapidar do enunciado, a aproveitá-
lo de modo a ser sobreasserido.
Outro exemplo, uma entrevista com uma atriz, Alexandra Kazan, que tem por título:
Alexandra Kazan
“Para durar nesta profissão, é preciso ser forte”.
Ora, o texto que se segue dá uma versão diferente:
As pessoas não se dão conta, elas têm a impressão de que, quando a gente é
conhecida, a gente chegou lá. Mas é difícil durar. É preciso ser muito forte
psicologicamente. Às vezes sou, às vezes, não. (p. 91)
Um movimento argumentativo complexo, dividido em quatro frases, com
modulações do locutor, é então transformado em uma frase única, generalizante, uma
espécie de sentença.
Isso não é de forma alguma um fenômeno exclusivo da imprensa popular, ainda que
leve em conta a diversidade dos jornais. É desse modo que o diário Le Monde, que pretende
ser um jornal de referência para as elites, recorre a ela, mas marcando sua diferença, ao
menos superficialmente. No meio de um longo artigo (p.22) de 29 de fevereiro de 2004,
intitulado “Os vinte dias que abalaram a redação de França 2”, o texto é salpicado por cinco
enunciados sobreasseridos com aspas e itálico negrito, associados a uma pequena foto em
preto e branco do rosto de seus locutores. O que é original aqui, em relação aos exemplos já
evocados, é que se trata de um processo de segundo grau, em que o destaque incide sobre
uma citação e não sobre uma enunciação primeira. Dessa forma, o trabalho é enormemente
facilitado, já que a própria citação sofreu um primeiro corte, que a aproximou do estatuto
de sobreasseveração.
“Alain Juppé resolveu (...), ele decidiu bater em retirada (...) Uma aposentadoria que
será progressiva” DAVID PUJADAS.
“Nós não estamos muito próximos dos políticos, e veja o que nos acontece.” OLIVIER
MAZEROLLE
“É preciso que todas medidas sejam tomadas para que esse tipo de erro não se
reproduza mais” JEAN-JACQUES AILLAGON
“O erro cometido (...) deve nos levar a rever nossos procedimentos em nossos jornais e
em nossas reportagens” MARC TESSIER
“Não se trata de virar a página, mas de tirar proveito dos ensinamentos daquilo que
aconteceu” ARLETTE CHABOT
Em duas das cinco citações acima, a dimensão sobreasseveradora é enfraquecida
pela marca ostensiva de cortes sob a forma de reticências entre parênteses. Podemos ver
nisso o resultado de um compromisso entre a lógica da sobreasseveração e a necessidade de
preservar o ethos objetivo, sério do jornal, que não se dá ao direito de modificar as falas
citadas. Mas uma análise mais atenta revela que as coisas são mais complicadas. Apenas
dois dos cinco enunciados destacados retomam exatamente as citações do artigo. A de Marc
Tessier, por exemplo, diferencia-se de seu texto de origem no corpo do artigo (assinalamos
com negrito o que foi alterado):
Em um comunicado ele o homenageia, sublinhando que “o erro cometido (...) deve nos
levar, numa ânsia de exigência e de rigor, a rever nossos procedimentos em nossos
jornais assim como em nossas reportagens.”
Podemos observar que o corte já estava, de fato, na citação, sinal de que o desgosta
ao jornalista marcar as mudanças que ele mesmo opera ao converter as citações em
sobreasserções: as modificações executadas, como podemos imaginar, tendem a acentuar o
caráter de fórmula, a favorecer a sobreasseveração.
Não vamos multiplicar os exemplos nem a coleta dos fenômenos de destaque nas
mídias. Apenas sensibilizamos para essa problemática. Podemos, entretanto, à luz dos
exemplos evocados, fazer algumas distinções.
A primeira delas permite opor os enunciados destacáveis aos enunciados
destacados. Os primeiros são aqueles que, por meio de uma marcação apropriada,
mostram-se como podendo/devendo ser destacados. É o caso prototípico dos enunciados
sentenciosos de Corneille ou dos doutrinais de Bergson ou de Marx. Os segundos não são
necessariamente provenientes de seqüências destacáveis.
Uma segunda distinção deve ser feita entre os enunciados destacados
autonomizados e não-autonomizados, distinção que corresponde a uma outra, entre
sobreasseveração forte (enunciados dissociados do texto de origem) e sobreasseveração
fraca (enunciados vizinhos do texto de origem). Os enunciados autonomizados romperam
com o texto de origem. A menos que se faça uma pesquisa, que não está ao alcance de todo
mundo, ninguém vai voltar à entrevista em que Giscard d’Estaing falou mal de Raffarin ou
àquela em que Preta Gil disse que ela se achava bela. Do ponto de vista do consumidor de
mídias, para os leitores, esse texto de origem não existe. No interior da sobreasseveração
“fraca”, oporemos os enunciados destacados de primeiro grau aos de segundo grau
(aqueles que são extratos de uma extração anterior, sob forma de citação).
Os enunciados não autonomizados mantêm um elo com um texto de origem. Esse é
particularmente o caso de todos os fenômenos de colocação de título, em que o enunciado
sobreasserido se encontra, de alguma forma, integrado no corpo do artigo. Vimos que isso
não implicava uma grande fidelidade; bem ao contrário. Isso apenas confirma os resultados
dos trabalhos recentes sobre o discurso direto, que acentuam seu caráter de simulação e a
intervenção constante do locutor que cita.
Num cruzamento entre a antropologia e a análise do discurso
Podemos ir mais longe e nos interrogar sobre as implicações que poderíamos dizer
“antropolingüísticas” da sobreasseveração. Por que esse florilégios de máximas, de
fórmulas filosóficas, de sentenças, de “frases pequenas”, de “frases que matam”, de
“citações do dia”, de “ele disse isso”...?
Num primeiro nível, podemos responder a essa questão invocando, e com razão, as
pressões específicas dos diferentes gêneros ou tipos de discurso. É evidente que a “pequena
frase” é indissociável do funcionamento da máquina televisual ou radiofônica, que a
multiplicação das fórmulas autônomas caracteriza a imprensa dita “popular”, que a forma
filosófica está ligada ao caráter doutrinal do discurso filosófico, às necessidades do ensino,
etc.
Mas isso não basta. A sobreasseveração coloca questões radicais. Começamos, de
fato, a falar de sobreasseveração para enunciados que são modulados de certa forma pelo
locutor no interior de seu próprio discurso. Nessa perspectiva, a sobreasseveração apareceu
como um tipo de amplificação de certas seqüências do texto, o locutor fazendo-se
ocasionalmente de sobreasseverador. Mas fomos confrontados em seguida com uma série
de fenômenos de sobreasseveração atribuídos a um sobreasseverador que não pode
coincidir com o locutor do texto de origem. Isso pode até mesmo dizer respeito a sua
identidade: enquanto que na entrevista o “solteiro”, Olivier, é o único locutor do enunciado
“Se a coisa não for bem entre nós, vamos contar para vocês”, são Olivier e Alexandra que
são os sobreasseveradores do “mesmo” fragmento destacado no título. Nessa perspectiva,
podemos dizer que o sobreasseverador é mais o efeito da sobreasseveração, o correlato do
enunciado, do que sua fonte.
Uma maneira drástica de tirar proveito das conseqüências dessa divergência entre as
duas concepções do sobreasseverador seria dizer que o enunciado destacável implica uma
certa instância de enunciação e que o enunciado destacado implica uma outra, e que pouco
importa que essas duas instâncias sejam ou não indexadas pelo mesmo nome próprio. Mas
essa solução é provavelmente muito brutal: podemos dizer que o Giscard que disse “a frase
que mata” sobre Raffarin – que citamos acima – não tem nada a ver com o Giscard que
produziu o texto de que é extraída essa frase sobreasserida? Se admitíssemos que um
enunciado em um texto e esse mesmo enunciado convertido em sobreasseveração não têm
o mesmo autor, encontrar-nos-íamos numa situação lingüisticamente cômoda, mas
ontologicamente inextricável.
De qualquer forma, somos obrigados a distinguir entre uma sobreasseveração
pretendida (no sentido de uma pretensão pragmática implicada pela enunciação) e uma
sobreasseveração derivada. A primeira seria uma pretensão ligada à enunciação, que marca
enunciados como destacáveis; a segunda resultaria apenas do destaque, ela seria seu
correlato. A convergência entre as duas formas de sobreasseveração variaria segundo a
grande diversidade das práticas discursivas e não poderia jamais ser objeto de consenso. O
ponto de dificuldade são particularmente as sobreasserções “derivadas”, que não seriam
“pretendidas”.
Esse tipo de dificuldade leva a evocar um caso teológico-político célebre, ligado à
controvérsia jansenista, a querela das proposições condenadas pela bula papal Cum
occasionne. Em 1º. de julho de 1649, o síndico da Faculdade de Teologia solicitou à
Sorbonne que condenasse sete proposições heterodoxas sobre a graça divina que ele dizia
ter encontrado nas teses dos estudantes. Ele não dizia explicitamente que essas teses eram
de Jansenius, mas, no contexto, todo mundo compreendeu que se tratava de condenar sua
obra principal, Augustinus, fundadora da doutrina jansenista. O debate se concentrou sobre
as cinco primeiras proposições. Foi pedido ao papa Inocêncio X que arbitrasse a questão, o
que ele fez em 31 de maio de 1653, pela bula Cum occasione, que as condenava.
A objeção dos jansenistas consistia em dizer que essas proposições não figuravam
no texto de Jansenius, que elas não eram objeto de uma asserção de sua parte no livro, que
ele não podia, portanto, ser seu locutor, no sentido modal. Vê-se que os adversários dos
jansenistas operaram uma “sobreasseveração derivada”, por meio de uma mudança que
condensa em alguns enunciados autônomos a doutrina que Jansenius presumivelmente
defende. A segunda proposição, por exemplo, “No estado da natureza decaída, jamais se
resiste à graça interior”, apresenta-se como uma tese vigorosa, atribuída a um
sobreasseverador que a profere diante do mundo. A estratégia de defesa essencial dos
jansenistas consistirá, logicamente, em desfazer esse nó, em romper todo elo entre o locutor
Jansenius e esse sobreasseverador construído pelo trabalho sobre os textos. Neste caso, o
sobreasseverador é particularmente autônomo em relação a Jansenius. Não apenas porque
não se trata propriamente de falar de citações exatas de sua obra, mas também porque se
supõe que esse sobreasseverador assume globalmente sete proposições que o síndico atribui
a diversos estudantes, e cuja unidade doutrinal é na verdade imposta por sua remissão
implícita à doutrina de Jansenius.
A sobreasseveração, qualquer que seja a modalidade, implica numa figura de
enunciador que não apenas diz, mas que mostra que diz o que diz, e presume-se que o que
ele diz condensa uma mensagem forte, induz a uma tomada de posição exemplar. A
sobreasseveração estabelece uma asserção que leva a uma responsabilidade diante do
mundo. O que bem demonstra o termo “proposição” utilizado nessa querela: são ao mesmo
tempo proposições em um sentido gramatical lato, frases, e proposições no sentido de
“discurso significando o verdadeiro e o falso”, para retomar a definição do filósofo
medieval Abelardo.
O sobreasseverador é alguém que se sobrepõe, que mostra o ethos de um homem
autorizado, sob a influência de uma Origem transcendente, que estabelece valores, para
além das interações e das argumentações. Nesse caso, o apagamento da relação com o co-
texto acompanha um reforço do engajamento ilocutório. Quando Olivier e Alexandra
sobreassertam “Se a coisa não for bem entre nós, vamos contar para vocês”, ou Marx, que
“A religião é o ópio do povo”, tanto aqueles quanto este enunciam uma verdade refletida, a
expressão de uma totalidade: uma concepção do amor, da vida, uma doutrina filosófica.
O Augustinus é um in-fólio de mais de 1100 páginas, escrito em duas colunas
comprimidas, e cuja trama textual densa mobiliza e comenta citações. Um livro como esse,
profundamente imerso num imenso intertexto, não tem nenhuma finalidade de suscitar
sobreasserções. Os adversários dos jansenistas não o condenaram integrando elementos de
doutrina numa forma de discurso citado (“a idéia defendida por Jansenius segundo a
qual...”, “Jansenius afirma erroneamente que...”, etc.); eles acreditaram ser necessário
condensar aquilo que pensavam ser sua doutrina em alguns enunciados sobreasseridos.
Queriam condenar proposições, suscetíveis de serem assumidas por um sujeito responsável
diante do mundo, e não se confrontar com um livro que faz uma exposição argumentada,
que desdobra um espaço dialógico de confronto de pontos de vista dentro dos limites
impostos por certo contrato genérico. Tocamos, aqui, no arcaico. Por meio da unidade de
uma sobreasseveração, é a Verdade que torna o movimento de sua manifestação sensível,
ícone verbal pelo qual um Sujeito se concentra em sua unidade imaginária. Trata-se de
retornar para aquém da diversidade genérica, aquém mesmo da espacialidade do texto.
O ponto de vista dos especialistas do discurso – para quem, seguindo a filiação de
Bakhtin, só há fala no interior do horizonte de um gênero de discurso – opõe-se aqui à
ideologia espontânea dos locutores, para os quais se diz o que se pensa, numa relação
íntima entre uma expressão e um querer dizer. Esse ponto de vista do usuário
tradicionalmente é também o de todos aqueles que levam aos tribunais esse ou aquele
enunciado julgado heterodoxo. Para eles, não se trata de remeter a expressão de uma pessoa
má a um gênero, a uma situação. No fundo, tudo se dá como se o corte entre o enunciado
frástico, simples ou complexo, tudo aquilo que pode servir como “fórmula”, e o texto,
remetesse a um corte profundo e obscuro entre aquilo que depende de um gênero de
discurso e aquilo que excede qualquer gênero, entre a pluralidade irredutível dos modos de
subjetivação enunciativas e dos jogos de linguagem e o gesto pelo qual um Sujeito de pleno
direito se coloca diante de uma coletividade associada a um conjunto de valores.
Neste ponto, surge uma questão difícil de não colocar: é possível manter a noção de
sobreasseveração tanto para os enunciados destacáveis, inscritos em seu co-texto, quanto
para os enunciados destacados? Se existe uma mudança de ordem entre o textual e aquilo
que poderíamos denominar o aforístico, que escaparia à oposição entre frase e texto, somos
tentados a nos perguntar se o emprego do conceito de sobreasseveração para os dois casos
em questão não cria uma continuidade artificial entre um e outro.
Parece-nos preferível não confundir uma lógica de sobreasseveração – que faz
aparecer uma seqüência sobre um fundo textual – e uma lógica de aforização (para ser
exato, um destaque aforizante) que implica um tipo de enunciação totalmente diferente:
uma outra figura do enunciador e do co-enunciador, do estatuto pragmático do enunciado.
A aforização atribui um novo estatuto à citação. Não se trata mais de representar, mas de
apresentar, de tornar presente, de fazer ouvir uma reserva de sentido na própria exibição de
uma enunciação, de tornar enigmático um enunciado que manifesta e esconde tudo ao
mesmo tempo, que apela para a interpretação.
A NOÇÃO DE HIPERENUNCIADOR27
1. O sistema de particitação
Quando se analisam os usos da citação, dois planos interagem-se: o dos
procedimentos, categorizados à base de critérios diversos (enunciativos, tipográficos,
sintáticos, prosódicos: discurso direto, indireto, direto livre, discurso direto com que, etc.) e
o dos lugares: gêneros (o jornal, o romance...), tipos de discursos (a imprensa...),
posicionamentos (o discurso comunista, surrealista...).
Nós nos interessaremos por um sistema de citação singular, a “particitação”, uma
palavra-valise que funde “participação” e “citação”. Essa categoria fundamentalmente
pragmática atravessa vários gêneros, sem que, para isso, corresponda a um procedimento.
Mutatis mutandis, poder-se-ia dizer que se trata de um procedimento comparável àquele
dos lingüistas que, seguindo a linha de Benveniste (1966), distinguem vários sistemas
enunciativos (ao menos dois), segundo a relação que se estabelece entre enunciado e
situação de enunciação. Esses sistemas não são tipos28 propriamente ditos, ou gêneros de
discurso, nem feixes compactos de marcadores lingüísticos; são, antes, uma certa forma de
mobilizar o aparelho enunciativo, ao qual estão associados, de modo regrado, alguns
gêneros de discurso e alguns marcadores lingüísticos.
A “particitação” difere da citação prototípica, daquilo que geralmente vem ao
espírito quando se fala de “discurso citado”: corte de um fragmento, explicitação de sua
fonte, inserção em uma situação de comunicação de caso pensado em uma outra situação
(com todos os problemas associados ao conflito de localização dêitica entre os dois
espaços), distância variável entre mundo do discurso que cita e mundo do discurso citado
27 Este texto se constitui numa versão bastante modificada de um artigo publicado na revista Langages no. 156, 2004, p.111-26, sob o título Hyperénonciateur et particitation. Publicado em dezembro de 2005 na Revista Polifonia nº 10 – Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – Mestrado da UFMT. Tradução Roberto Leiser Baronas (UNEMAT/UFMT) & Fábio César Montanheiro (UNESP/CAr) 28 Eu sou favorável, aqui, ao emprego dominante, que faz do tipo de discurso o espaço que engloba os diversos gêneros de discurso de um mesmo setor de atividade. Para uma outra terminologia, ver Bronckart et al. (1985).
em função da estratégia de modalização que o relator adota. No sistema de “particitação”
as coisas se apresentam de modo um pouco diferente:
O enunciado “citado” é um enunciado autônomo, porque ele já o é originalmente ou
porque ele foi previamente autonomizado mediante sua extração de um texto.
Essa citação deve ser reconhecida como tal pelos alocutários, sem que o locutor que
a cita indique sua fonte e nem mesmo deixe claro que ele efetua uma citação por
intermédio de um verbo dicendi introdutor, de um inciso, etc. A propriedade de
citação é marcada apenas por um deslocamento interno à enunciação, que pode ser
de natureza gráfica, fonética, para-lingüística... O enunciado citado é apresentado
em seu significante, dentro de uma lógica de discurso direto, mas levada ao
extremo: não se trata apenas de simular – como geralmente ocorre no discurso
direto –, mas de restituir o próprio significante. Contudo, essa restituição pode
aceitar uma dose de variação, como freqüentemente se mostrou para formas ainda
que comumente consideradas cristalizadas, os provérbios. A restituição do
significante é evidentemente associada ao fato de que não há indicação da fonte da
fala citada.
O locutor que cita mostra sua adesão ao enunciado citado, que pertence àquilo que
se poderia denominar um Thesaurus de enunciados de contornos mais ou menos
fluidos, indissociável de uma comunidade onde circulam esses enunciados e que,
precisamente, se define de maneira privilegiada por compartilhar um tal Thesaurus.
Por sua enunciação, o locutor que cita pressupõe pragmaticamente que ele mesmo e
seu alocutário são membros dessa comunidade, que eles são arrebatados em uma
relação de tipo especular: o locutor cita aquilo que poderia/deveria ser dito pelo
alocutário e, mais amplamente, por todo membro da comunidade que age de
maneira plenamente conforme à esse pertencimento.
Esse Thesaurus e a comunidade correspondente recorrem a um hiperenunciador
cuja autoridade garante menos a verdade do enunciado – no sentido estreito de uma
adequação à um estado de coisas do mundo –, e mais amplamente sua “validade”,
sua adequação aos valores, aos fundamentos de uma coletividade.
Se retomarmos as categorias de Rabatel (2003), pode-se dizer que a particitação é
fundamentalmente uma forma particular de co-enunciação, pois existe acordo em torno do
Ponto de Vista - PDV. Trata-se, contudo, de uma forma particular de co-enunciação, já que
esse acordo, em conseqüência da particitação, é tal que torna inútil outras marcas de acordo
explícitas em torno do PDV. Pode-se avaliar a especificidade desse sistema de citação
colocando-o frente ao discurso direto livre (Rosier, 1999, p.278-98). Aparentemente, trata-
se de fenômenos muito comparáveis, uma vez que nos dois casos ocorre a ausência de
indicação da fonte; mas o Discurso Direto Livre – DDL - privilegia a doxa, o clichê: “O uso
privilegiado do discurso direto livre para produzir discursos-clichê a todos e a ninguém
favorece de algum modo o reconhecimento de segmentos aparentemente não atribuídos, na
verdade, porém, atribuídos a uma pessoa qualquer” (1999, p.296). A particitação, por outro
lado, gera um desnivelamento entre a voz “ordinária” do locutor que cita e uma voz extra-
ordinária. Em ambos os casos, o anonimato da fonte caminha de mãos dadas com o caráter
compartilhado das falas citadas, mas o locutor que cita o DDL se situa acima do propósito
citado, ele não se encontra em uma lógica de co-enunciação.
No estado atual parece-me difícil estabelecer um sistema a priori dos modos de
particitação, pois eles estão em contato estreito com a variedade de situações sócio-
históricas. O mais razoável é, provavelmente, distinguir diversas famílias de particitação,
funcionamentos pragmáticos que apresentam afinidades. É o que vamos fazer aqui,
operando diversos agrupamentos: não será, contudo, uma enumeração disparatada, nem
tampouco a exposição de uma grade sistemática.
2. As particitações sentenciosas
O primeiro grupo de que trataremos é o das particitações “sentenciosas”, para as
quais o apagamento enunciativo é mais evidente.
2.1. A enunciação proverbial
Ficamos um pouco receosos ao tratar da enunciação proverbial sob um novo prisma,
principalmente quando se tem consciência de tudo o que pôde ser escrito sobre esse
assunto29. Na verdade, vamos apenas mostrar por que razões ela depende do sistema de
particitação.
No plano modal, sua característica mais interessante é, evidentemente, o
deslocamento entre aquele que profere o provérbio e aquele que garante sua veracidade.
Berrendonner (1982, p.207-11) fala de uma “citação-eco”, em que a mesma proposição
seria sucessivamente assumida por duas instâncias de fala: SUJEITO UNIVERSAL, depois
EU. Nas palavras de Ducrot (1984), seu “sujeito falante” não é seu “locutor”, aquele que se
apresenta como seu responsável, uma vez que essa responsabilidade é atribuída à
“sabedoria das nações”. Nessa perspectiva polifônica, o enunciado é, de certo modo,
produzido por duas vozes, adotando o sujeito falante um PDV que ele apresenta como
garantido por um SUJEITO UNIVERSAL. Na medida em que a instância validante – um
SUJEITO UNIVERSAL – coincide com o conjunto dos locutores de uma língua, membros
como ele da comunidade cultural e lingüística onde circulam os provérbios, aquele que
“cita” um provérbio participa da comunidade que lhe dá sustentação. (Grésillon et
Maingueneau, 1984).
O provérbio possui com toda certeza as características da particitação. Ele faz parte
de um “Thesaurus” indissociável da comunidade em que ele circula e que se define, entre
outras coisas, por compartilhar esse Thesaurus. Este último não tem contornos bem
delineados e as compilações de provérbios oferecem uma imagem muito imperfeita disso:
apenas um número restrito de provérbios é realmente compartilhado, e existem grandes
variações para os demais, segundo as regiões, os ambientes. Para além de contradições
imediatas entre provérbios, a unidade é assegurada pela remissão a esse hiperenunciador
comumente designado como “a sabedoria das nações” ou “a sabedoria popular”.
Por sua própria enunciação, o particitador de um provérbio confere a si – e a seu
alocutário (seu “particitador”...) o estatuto de membro de uma comunidade. Esta faz, aliás,
mais que estocar provérbios, ela é depositária de uma experiência que permite aos usuários
aplicá-los a situações inéditas oportunamente categorizadas.
29 Para um panorama recente, consulte-se o número 139 da revista Langages (2000).
2.2. O adágio jurídico
O adágio legítimo, do qual se sabe ser bem próximo do provérbio, constitui
igualmente um bom exemplo de enunciado sujeito à particitação.
(1) Cartas têm mais credibilidade que testemunhos
(2) Todos os delitos são pessoais
O adágio em francês sofreu concorrência do adágio em latim por muito tempo:
(4) Os pais são aqueles que o casamento designa como tais.
Esse Thesaurus em latim reforçava o sentimento de pertencimento de seus usuários
à comunidade dos profissionais da justiça, cujo socioleto era, aliás, regularmente
ridicularizado por produções satíricas.
Não retornarei às similitudes de diversas ordens entre provérbio e adágio legítimo;
sobre esse assunto pode-se reportar ao artigo de Gouvard (2000). Entretanto, não concordo
com a idéia segundo a qual os adágios, diferentemente dos provérbios, recusariam a
combinação com “como se diz”:
“Os provérbios, que admitem encadeamento com ‘Como se diz’, não têm fonte determinada: eles remetem a representações estereotipadas, supostamente compartilhadas por todos (...). Por outro lado, os adágios, que não admitem encadeamento com ‘Como se diz’, podem ser interpretados somente em relação a uma das fontes do direito francês, dado que eles têm sentido e legitimidade apenas no quadro das convenções que regem o domínio de especialidade no seio do qual eles são empregados.”30
Para o que nos interessa aqui, a distinção entre a “fonte indefinida” do provérbio e a
“fonte definida” do adágio é secundária: O SUJEITO UNIVERSAL é suficientemente
30 No original: “Les proverbes, qui admettent l’enchaînement avec ‘Comme on dit’, n’ont pas de source déterminée: ils renvoient à des représentations stéréotypées censées être partagées par tous (…). En revanche, les adages, qui n’admettent pas l’enchaînement avec ‘Comme on dit’, ne peuvent être interprétés que par rapport à l’une des sources du droit français, puisqu’ils n’ont de sens et de légitimité que dans le cadre des conventions qui régissent le domaine de spécialité au sein duquel ils s’emploient.” (Gouvard, 2000, p.81)
plástico para aceitar ambos. Tanto em um caso como em outro, o enunciador invoca um
hiperenunciador, uma outra instância não nomeada – seja a sabedoria das nações ou o
Direito francês – reconhecida pelos seus interlocutores, membros da mesma comunidade de
experiência, da mesma tradição. A diferença é que, em um caso (o provérbio) a
comunidade é de ordem natural, no outro (o adágio), ela é de ordem profissional. Que não
se confunda esse hiperenunciador dos adágios jurídicos com o “Legislador”, que é o
hiperenunciador do Direito positivo. Se este último dá sustentação ao Thesaurus das leis, o
primeiro é o responsável por uma experiência coletiva da prática da justiça, ainda que a
maioria dos adágios derive de forma mais ou menos direta de textos de lei.
O adágio jurídico é somente um caso extremo de uma família de particitações que
inclui, além do provérbio, as múltiplas sentenças associadas a certas comunidades de
profissionais: agricultores, pequenos investidores em ações, etc. É justamente porque a
meteorologia ou os negócios da bolsa de valores são, no fundo, incertos, que os membros
do grupo confirmam seu co-pertencimento, apoiando-se em certo número de normas de
comportamento estabilizadas em sentenças que têm como referente um hiperenunciador.
3. As particitações gráficas
3.1. As citações conhecidas
Ao lado dos provérbios, circulam na sociedade muitos outros enunciados curtos,
facilmente memorizáveis, cujo significante e significado são extraídos de uma organização
mais ou menos pregnante (pela prosódia, rimas internas, tropos...). Muitas dessas fórmulas
são extraídas de textos e podem figurar em “dicionários de citações”, onde a noção de
citação recobre de modo vago “frases conhecidas”, “provérbios” e “aforismas”, isto é,
qualquer enunciado curto (geralmente monofrástico) e autonomizado. Os organizadores
desse tipo de dicionário têm o hábito de coletar todo tipo de citação que acham úteis para os
locutores com falta de inspiração, nem sempre atentando para seu conhecimento público e
para sua possibilidade de memorização. De nossa parte, não deixamos de levar em
consideração os enunciados que podem ser objeto de particitações sentenciosas e nos
limitamos a citações que têm por referente um autor individuado: aqui só nos interessam as
citações conhecidas e cujo significante permite que elas circulem facilmente.
Essas citações conhecidas circulam em uma comunidade mais ou menos ampla: por
exemplo, no espaço fracofono se encontrará enunciados como “Aquilo que é bem
elaborado é claramente enunciado”31 (A Arte Poética de Boileau), “Se apenas um
permanecer, eu serei esse um”32 (Os Castigos de Victor Hugo), etc. O mesmo se dá com as
perguntas de jogos televisivos ou radiofônicos do tipo “Quem disse...?”. Nós acabamos de
dar exemplos de versos. E não é por acaso: por suas propriedades, os versos são mais
facilmente destacáveis (Maingueneau, 2005, no prelo). Pode-se imaginar, por exemplo, que
um locutor, em presença de um pôr-do-sol particularmente impressionante, invoque o verso
de Baudelaire “O sol se afogou em seu sangue que se petrifica”33; esse verso não detém
uma posição de destaque no poema, tampouco é autônomo enunciativamente (não é
genérico, nem mesmo iterativo), mas o único fato de ser um alexandrino e de ser
fortemente metafórico, predispõe-no a ser destacável. De modo geral, o caráter de
“evocação” (Dominicy, 1990) da poesia e sua estrutura rítmica pregnante favorecem sua
autonomização. Acontece, contudo, que um enunciado que não tem propriedades de
destacabilidade chega ao estatuto de fórmula conhecida; é o caso do incipit de Em busca do
tempo perdido de Marcel Proust: “Por muito tempo fui dormir cedo”34; mas trata-se
precisamente de um incipit.
Nas comunidades em que circulam, essas fórmulas são suscetíveis de ser
mobilizadas por práticas muito diversas, que não evidenciam necessariamente a
particitação. Para uma fórmula filosófica, por exemplo, não ocorrerá particitação quando,
em um curso, um professor de filosofia comentar uma fórmula (e.g. “O homem é a medida
de todas as coisas”35) como um enunciado considerado em tal texto ou em tal autor.
Inversamente, ocorrerá particitação quando numa conversa entre especialistas de filosofia
se insere uma fórmula sem menção de autor.
3.2. A particitação humanista
31 No original: “Ce qui se conçoit bien s’énonce clairement”.32 No original: “Et s’il n’en reste qu’un, je serai celui-là”.33 No original: “Le soleil s’est noyé dans son sang qui se fige”.34 No original: “Longtemps je me suis couché de bonne heure...”.35 No original: “L’homme est la mesure de toute chose”.
A noção de “citação conhecida” é, na verdade, enganosa. Algumas citações, a
exemplo dos provérbios, circulam em comunidades muito amplas; outras, em comunidades
menores, que ajudam a consolidar. Junto às comunidades fechadas (uma escola, uma
seita...) existem as comunidades amplas; é o caso, por exemplo, dos humanistas do século
XVI, que se reuniam em torno de um Thesaurus. Em Montaigne encontra-se um grande
número de citações em latim que são dadas sem autor:
(5) “Se vós tirastes proveito da vida, vós vos saciastes dela, parti satisfeito”.
Cur non ut plenus vitae conviva recedis ?
Se vós não a soubestes usar, se ela vos era inútil, o que vos importa tê-la
perdido, para que a querer mais ainda?”36
(6) “Aquele que chama Deus em seu socorro enquanto está incorrendo no
vício procede como o trapaceiro que invocaria a justiça em seu auxílio, ou
como aqueles que evocam o nome de Deus como testemunho de mentira”.
tacito mala vota susurro
Concipimus.
Poucos homens existem que ousassem revelar as súplicas secretas que fazem
a Deus (...)”37
36 No original: “Si vous avez fait votre profit de la vie, vous en estes repu, allez vous en satisfait,
Cur non ut plenus vitae conviva recedis ?
Si vous n’en avez su user, si elle vous était inutile, que vous chaut-il de l’avoir perdue,à quoi faire la voulez-vous encore?” (Livre I, XX, Garnier, tome 1, p.95)
37 No original: “Celui qui appelle Dieu à son assistance pendant qu’il est dans le train du vice, il fait comme le
coupeur de bourse qui appellerait la justice à son aide, ou comme ceux qui produisent le nomde Dieu en témoignage de mensonge:
tacito mala vota susurroConcipimus.
É a passagem ao latim, o itálico e a posição tipograficamente destacada que
assinalam tratar-se de uma citação. Quando a familiaridade com o Thesaurus dos
consagrados textos gregos e latinos da Antigüidade é suficientemente grande, o leitor
atribuirá eventualmente (5) a Lucrécio e (6) a Lucain: a comunidade dos “humanistas” se
define justamente por seu conhecimento suposto dos textos desse corpus. O escritor
constrói o lugar de um leitor modelo que compartilha o mesmo Thesaurus e com o qual ele
comunga por sua própria particitação. Nesse dispositivo, os múltiplos autores do corpus
humanista greco-latino valem menos como escritores individualizados do que como as
múltiplas manifestações de um mesmo hiperenunciador, “a Antigüidade”, da qual todos
participam. Dá-se, em conseqüência, uma relação polifônica em três planos e não em dois,
como é o caso no provérbio: o particitador atribui a responsabilidade de seu enunciado a
um autor, não explicitado, mas esse autor por si só é uma manifestação contingente de um
hiperenunciador de que o particitador pretende estar embebido pelo próprio fato de citar
fragmentos de seu Thesaurus.
Nos séculos seguintes, esse Thesaurus vetusto não cessará de suscitar particitações, mas compreendendo uma comunidade de pertencimento bem menos vigorosa. Essa característica da escritura letrada é sinal de que se recebeu uma formação “clássica”, ela reforça a conivência entre escritor e leitor, que se reconhecem mutuamente como compartilhando o mesmo Thesaurus. Quando Freud põe como epígrafe de Traumdeutung
(7) Flectere si nequeo Superos, Acheronta movebo.
ele não precisa sua fonte, construindo o lugar de um leitor modelo familiar da Eneida. Muito evidentemente, essa referência a Enéias e à travessia dos Infernos é pejada de sentido para quem quer compreender a maneira pela qual o fundador da psicanálise representa para si mesmo sua empresa, mas, além disso, esse tipo de particitação é característico de uma certa configuração social e cultural.
3.3. O Thesaurus bíblico
A particitação, de um modo ou de outro, implica uma instância impositiva, que é fonte de valores. No caso de amplas comunidades culturais (citações conhecidas, provérbios..., ou, num grau menor, os humanistas), essa autoridade não é de ordem doutrinal; o mesmo não se dá no caso de religiões escritas ou das escolas filosóficas. No
Il est peu d’hommes qui osassent mettre en évidence les requêtes secrètes qu’ils font à Dieu (…)” (p.358)
cristianismo como no judaísmo, o Thesaurus que torna possível a particitação coincide imaginariamente com um único livro, o Livro.Nesse excerto do Tratado do Amor de Deus de São Francisco de Sales
(8) “Théotime, quem olha para a mulher de seu próximo desejando-a, já adulterou com ela em seu coração, e aquele que amarra seu filho para imolá-lo, já o sacrificou em seu coração.”38
não existe indicação de autor, recorre-se somente ao itálico. Do leitor modelo, cristão neste caso, espera-se que perceba que se trata de uma frase do Cristo (Mateus, cap.5, 28). Observar-se-á que o texto distingue bem as falas citadas propriis verbis e as alusões a uma passagem da Escritura, como aquela no episódio do sacrifício de Isaac na frase que segue (“que amarra seu filho para imolá-lo”).
Nesse exemplo a particitação implica diretamente o hiperenunciador, por menos que se admita que Jesus é Deus: por intermédio do Cristo exprime-se o hiperenunciador que funda o Thesaurus católico, o próprio Deus. Aliás, o enunciador põe em evidência esse encadeamento de identificações enunciador-Jesus-Deus, pois insere a citação em uma frase endereçada ao destinatário do livro (Théotime...), permitindo, de certo modo, que o hiperenunciador se exprima por sua boca. Um modo de mostrar que ele está habitado por Ele. Eis um tipo de citação onipresente nas religiões do Livro: ao particitar fragmentos do Thesaurus, os locutores mostram o Espírito que os habita. Essa prática leva logicamente ao desaparecimento das marcas de discurso citado: cabe ao leitor ou ao ouvinte reconhecê-lo. O verdadeiro crente é aquele que tem essa competência, como se vê atualmente, por exemplo, nos discursos dos oradores fundamentalistas protestantes.
Na verdade, a maior parte da Bíblia constitui-se não de falas que emanam diretamente de Deus, mas de textos de autores anônimos ou míticos que dependem de gêneros de discurso muito diversos (narrativa histórica, mito, poema, provérbio, compilação de leis...) escritos em lugares e épocas distintos. Mesmo no Evangelho, o Cristo só fala por meio do discurso citado. Mas para os membros da comunidade, os múltiplos “autores” da Escritura são apenas porta-vozes do único e verdadeiro Autor (o Espírito de Deus) que os inspira e garante o conjunto dos textos, indiferente à diversidade dos gêneros e das épocas. Sem esse postulado, toda a hermenêutica religiosa rui, já que não se pode mais esclarecer um fragmento da Escritura por um outro. Encontra-se, assim, uma estrutura comparável àquela do Thesaurus humanista: Montaigne e seus pares citam enunciados independentemente dos autores e dos gêneros. No entanto, existe uma diferença: no Thesaurus cristão, o hiperenunciador é ao mesmo tempo locutor (a Bíblia é inspirada por Deus, mas Deus é também um dos locutores), ao passo que no Thesaurus humanista, o hiperenunciador, a Antigüidade, não coincide com nenhum dos locutores citados, que se configuram, cada um deles, em uma manifestação própria.
4. As particitações de grupo
38 No original: (8) “Théotime, qui voit la femme de son prochain pour la convoiter, il a déjà adultéré en son cœur ; et qui lie son fils pour l’immoler, il l’a déjà sacrifié en son cœur.” (Pléiade, livro XII, cap. X, p.966)
Vamos considerar agora uma família bem diferente, as particitações de grupo, que implicam locutores coletivos. Elas visam à fusão imaginária dos indivíduos em um locutor coletivo que, por sua enunciação, institui e confirma o pertencimento de cada um ao grupo.
4.1. As particitações militantes
Essas particitações permitem reforçar a coesão de uma coletividade, opondo-a a um exterior ameaçador (slogans, canto de torcedores, gritos de guerra...). Diferentemente das particitações sentenciosas, as militantes são produzidas por um enunciador coletivo. Neste “coletivo” convém estabelecer uma distinção entre o grupo empírico dos locutores e a entidade de ordem institucional a que é atribuído o PDV. Esta última não pode se reduzir aos indivíduos empíricos que a constituem em um dado momento.
Para ser mais preciso, pode-se distinguir três níveis distintos:(a) os locutores empíricos, os indivíduos que compõem o grupo; assim
considerados, estes não interessam à análise do discurso;(b) o ator coletivo do qual eles participam: um partido, um conjunto de
manifestantes, uma associação;(c) o hiperenunciador que funda os diversos PDVs expressos por esse ator: “a
Esquerda”, “a Nação”, “o Clube”, etc.
Enquanto (b) tem por referente grupos de locutores que formam uma organização em um momento e lugar determinados, (c) tem por referente entidades de alguma forma transcendentes. Essa distinção vai se tornar mais clara nos exemplos que seguem.
Não entraremos aqui nos complexos problemas que a existência dos indivíduos coletivos propõe à semântica e à filosofia. Faremos apenas algumas distinções elementares para analisar esse tipo de particitação, abstendo-nos de qualquer engajamento ontológico a esse respeito39.
4.1.1. O slogan
A noção de “slogan” não apresenta o mesmo valor, conforme se trate de publicidade ou de movimentos políticos. Interesso-me aqui pelo slogan político que, diferentemente do slogan publicitário, depende por natureza do sistema de particitação. O slogan, a exemplo do provérbio, só pode ser repetido. O slogan se caracteriza como duplamente repetível: ele reclama um lugar de particitação (cartaz, panfleto, o mesmo slogan em diferentes suportes); além disso, ele é indefinidamente repetido por aqueles que lhe dão destaque. Ele implica ainda um ethos apropriado: no caso presente, um ethos que marca um empenho total da pessoa. Mas, enquanto as particitações sentenciosas não se constroem sobre a fronteira que distingue a comunidade de outras comunidades, a enunciação do slogan militante implica a existência de um exterior hostil ou indiferente frente ao qual se afirma o grupo. Neste caso, está-se em relação com um NÓS que supõe algo complementar, geralmente um concorrente no mesmo domínio.
Por enquanto, nossa noção de “coletividade” permanece fluida. Para refiná-la, pode-se servir da tripartição de Cruse (1986) que distingue
39 Pode-se avaliar a amplitude dessas dificuldades na obra de Descombes (1996).
Os “grupos” reservados aos humanos, que são consolidados por uma finalidade comum: equipe, empresa, auditório...;
As “classes”, isto é “um conjunto de humanos baseado mais na posse de atributos comuns do que num projeto comum; uma classe tem menos coesão orgânica do que um grupo”: o campesinato, o clero, o professorado, os proletários...;
As “coleções”, isto é, ajuntamentos: montão, multidão, floresta, biblioteca... (1986, p.176)
Na particitação dos slogans militantes estão em causa fundamentalmente coletivos, cuja permanência é assegurada, no tempo, por “grupos” no sentido atribuído por Cruse, e não de “classes” ou de “coleções”. Mas esses grupos podem ser transitórios, como sugere o exemplo do auditório proposto por Cruse. Os grupos militantes quando são transitórios – é o que ocorre nas manifestações políticas ou sindicais – têm até mesmo mais organicidade do que os auditórios: um conjunto de passantes que escutam um camelô, por exemplo. Quando eles são estáveis, são comunidades pré-construídas, anteriores à enunciação, isto é, grupos ligados a um aparelho e dotados de uma memória compartilhada.
No caso de um grupo transitório, está-se em relação com uma comunidade hic et nunc que a enunciação do slogan tem exatamente a função de unir. Quando acontece uma manifestação que reúne uma população heterogênea em torno de uma questão atual, o slogan não tem outra comunidade-suporte senão o próprio grupo que o está enunciando; daí uma tendência para fragmentar os slogans em função dos sub-grupos que compõem essa comunidade transitória. A comunidade transitória fabrica um Thesaurus conjuntural (os slogans co-presentes no espaço-tempo dessa manifestação), que mistura slogans de circunstanciais e outros que passam de uma manifestação à outra. (cf. “É apenas o começo; continuemos o combate”!)40
Ocorre, entretanto, particitação, pois os diversos slogans implicam o lugar de um hiperenunciador cuja autoridade institui o conjunto de slogans compatíveis no espaço da manifestação: essa entidade (“os amigos da Liberdade”, “da Paz”, “os Democratas”, “os Patriotas”, etc.) deve existir para além desse agrupamento fugaz, assegurar uma continuidade imaginária de um agrupamento a outro. Diferentemente da “sabedoria das nações”, que permanece estável, esse hiperenunciador varia em função da opção política dos agrupamentos.
4.1.2. O canto de torcedores
O canto de torcedores (ver Gandara, 1997), diferentemente do slogan, é, por via de regra, preliminar à sua enunciação, fazendo parte do patrimônio do grupo, de uma instituição, no caso, os torcedores de um time esportivo. Essa diferença do slogan nada tem de absoluto, na medida em que nos regimes totalitários os slogans tendem a se cristalizar. Entretanto, é inerente ao político que boa parte dos enunciados desse gênero seja renovada para que eles permaneçam em contato direto e ativo com a conjuntura. Os cantos de torcedores assim como os gritos de guerra salientam acima de tudo uma lógica de Tradição, de repetição ritual, que conduzem à estabilização.
40 No original: “Ce n’est qu’un début, continuons le combat!”
Eis dois exemplos de “canciones de cancha” do futebol argentino.41 O canto (9) põe em evidência a exclusão do adversário, o canto (10) reafirma sobretudo o pertencimento dos locutores ao grupo:
(9)
“Boca no tiene marido / Boca não tem maridoBoca no tiene mujer / Boca não tem mulherPero tiene un hijo bobo / Mas tem um filho idiota
Que se llama river pleit.”/ Que se chama river pleit42.
(10)
“Podran pasar los anos y no salir campeon / Poderão passar anos e o clube não ser campeãoPrefiero ser de Racing y no amargo como vos.” / Prefiro ser do Racing e não amargo como você.
4.2. As particitações de comunhão
Trata-se de particitações de locutor coletivo, que não privilegiam a fronteira da comunidade com o exterior, mas sim a fusão entre os membros do grupo. Exemplo paradigmático disso é, em registros bem diferentes, a oração ou a canção de estudantes de medicina. O esquema pode se complicar quando existe a presença de um intérprete.
4.2.1. A oração
Inscrevendo a oração no sistema de particitação, esclarece-se de modo particular o que pode significar “dizer / fazer uma oração”. As orações pertencem a um mesmo Thesaurus, cujo domínio consolida a comunidade. Esse domínio, como no caso do provérbio, associa uma memória (“conhecer suas orações”) e uma competência comunicativa que permite saber quais orações dizer diante de tal situação e como a dizer. As orações mais prestigiosas da Igreja Católica, o “Pai Nosso”, e a “Ave Maria” são, além disso citações no sentido mais ordinário: a primeira atribuída ao Cristo, a segunda ao anjo Gabriel; na verdade, a comunidade se une em pensamento pela identificação com um hiperenunciador encarnado (o Cristo) cujo anjo é apenas um porta-voz43.
41 Exemplos tomados a Gandara (1997, p.64-6).42 Trata-se evidentemente dos clubes Boca Junior e River Plate.
43 Por alguns aspectos, evocamos a problemática das “denominações citatórias” desenvolvida por L. Perrin, que a estende a textos inteiros: “para mim, toda unidade ou seqüência discursiva formalmente reconhecível, ou simplesmente apresentada, em virtude de suas propriedades formais, como tendo sido objeto de enunciações passadas instaura um significante unitário suscetível de fazer emergir uma denominação citatória. É assim principalmente com as orações, canções, parlendas e outros poemas, para citar apenas alguns gêneros de discurso, que emanam de nosso patrimônio cultural ou literário (e sem nos aventurar por enquanto a prestar conta das formas ou gêneros de discurso que não são textualmente memorizáveis). Uma oração, por exemplo, desde que reconhecida como tal, seja em virtude de suas propriedades formais, seja simplesmente porque ele
4.2.2. As particitações com intérprete
Esse tipo de particitação é particularmente difícil de determinar, na medida em que a variedade de dispositivos de comunicação e das cenografias narrativas que ele torna possível é extremamente grande. O campo que essas práticas cobre é imenso. Pode-se, contudo, distinguir nele dois grandes conjuntos: “narrativos” (conto popular, mito...) ou “poéticos” (canção, poesia).
Essas particitações supõem um dispositivo de comunicação assimétrico. Nas particitações sentenciosas, ocorre uma reversibilidade essencial entre os dois pólos da comunicação: o particitador podia ser qualquer membro da comunidade; dá-se o mesmo, em um grau superior, com as particitações de grupo. Por outro lado, nas particitações com intérprete intervém uma instância mediadora que é dotada de competências superiores àquelas do alocutário, no que diz respeito à relação com o Thesaurus. O alocutário tende a se converter em público. Isso não significa afastamento da órbita da particitação, pois o intérprete aparece como um representante da comunidade, para quem ele atualiza fragmentos de um Thesaurus compartilhado. Aliás, o “público” o demonstra freqüentemente por suas reações: ele resgata as canções, emite sinais confirmativos em momentos apropriados, etc. Nesse caso, cai-se numa lógica de tradição, não de criação. Pode-se evocar aqui repertórios e práticas codificados como aquele do flamenco andaluz ou dos mariachi mexicanos. Mas, de forma mais ampla, um artista se inscreve numa tentativa de particitação a partir do instante em que ele segue um cânone tradicional, cujas regras são dominadas pela comunidade.
Nas particitações narrativas o narrador se apaga para “particitar” uma história virtualmente compartilhada pelo narrador e pelo narratário, membros de uma mesma comunidade cultural. É o caso de uma mãe de família que conta uma história do patrimônio sob a forma “a história de...”: “Eu vou lhe contar a história de...”, “Você conhece a história de...?”. Essas histórias do Thesaurus figuram nas antologias: contos populares franceses, contos de Grimm, de Perrault, etc. É, sobretudo às crianças que esses contos são narrados, pois presume-se que os adultos, membros plenos da comunidade, já os conheçam e possam contá-los. Isso não impede os adultos de escutá-los, confirmando com isso seu pertencimento. O Thesaurus tem por referente um hiperenunciador – “a Tradição”, “o Povo” – figurado na cultura francesa pela conhecida “Mãe Ganso”, que não tem outra função. O manuscrito dos contos de Perrault de 1695 tinha como título Contos de Minha Mãe Ganso, o autor se apagando diante da figura do hiperenunciador (Adam e Heidmann, 2004). É um equivalente, para o conto maravilhoso, daquilo que é a “sabedoria das nações” para o Thesaurus proverbial.
O narrador de um conto maravilhoso se abriga atrás de um hiperenunciador patrimonial, mas, diferentemente do que acontece com a citação conhecida, à qual sua brevidade e sua estrutura pregnante asseguram uma certa estabilidade, para ele não pode se tratar de citar de modo idêntico um enunciado que, por definição, não tem nem autor nem estabilidade. Existe, no entanto, certo número de índices que mostram uma vontade de respeito pelo significante, imposta pelo sistema de particitação, mas incompatível com as condições desse tipo de narração; é assim que os narradores de conto se afeiçoam a
foi previamente memorizada, instaura um significante unitário que nomeia uma situação genérica relativa a suas enunciações anteriores considerada como oração”.
empregar algumas fórmulas (“Era uma vez...”, “Eles viveram felizes e tiveram muitos filhos...”), ou a preservar alguns arcaísmos (“a pequena cavilha cairá” para o Chapeuzinho Vermelho).
Seguindo a mesma perspectiva, poder-se-ia evocar a narração dos mitos. O narrador se coloca como seu particitador, apagando-se segundo estratégias diversas que mobilizam alguns marcadores lingüísticos de ordem testemunhal, um ethos, um certo registro de língua específicos.
5. O hiperenunciador com instâncias de enunciação complexas
Se na particitação não há autor citado, é porque se trata fundamentalmente de uma forma particular de enunciação, em que o acordo entre as duas instâncias é tal que se faz inútil a presença de outras marcas de adesão ao PDV. O hiperenunciador aparece como uma instância que, por um lado, garante a unidade e a validade da irredutível multiplicidade dos enunciados do Thesaurus e, por outro, confirma os membros da comunidade em sua identidade, pelo simples fato de eles manterem uma relação privilegiada com ele.
Todo discurso direto tem uma dimensão mimo-gestual forte, uma teatralidade; o particitador não transgride a regra: é preciso que ele se apague de alguma maneira diante de um hiperenunciador, mesmo se este último não pode ser um locutor propriamente dito. As práticas de particitação são assim ligadas a ethos discursivos característicos que cavam um desnivelamento enunciativo, o locutor, mostrando com isso que ele é apenas o porta-voz contingente de uma Fala vinda não importa de onde, passível de ser assumida não importa por que membro da comunidade.
Para ser preciso, já se pode distinguir entre dois grandes tipos de hiperenunciador, segundo se possa ou não lhe atribuir PDV.
Quando o hiperenunciador é individuado (Deus) ou quando se trata de um tipo de um SUJEITO UNIVERSAL dóxico (provérbios, adágios...), pode-se lhe atribuir a responsabilidade de conteúdos proposicionais. Com um hiperenunciador individuado, a explicitação desses conteúdos deve passar por uma hermenêutica mais ou menos codificada: o que Deus nos quer dizer com isso? Por outro lado, quando não se trata de um hiperenunciador individuado ou dóxico (corpus humanista, contos populares, orações...), a situação é mais delicada. Trata-se, neste caso, mais de uma instância responsável por uma memória do que uma consciência propriamente dita. Certamente, fala-se comumente de “espírito” de um grupo, mas trata-se de um ethos mais ou menos especificado, não de conteúdos proposicionais. No limite, isso pode ser uma identidade sem propriedades semânticas especificadas: particitar um verso de um poeta célebre corresponde a mobilizar uma instância de hiperenunciação inominável, aquela que dá sustentação ao patrimônio artístico, cultural, etc de uma comunidade.
Essa problemática do hiperenunciador se inscreve numa perspectiva mais ampla, que ainda não foi objeto de um tratamento de conjunto na análise do discurso, a das instâncias da enunciação que, na ausência de melhor, poder-se-ia dizer por simples comodidade “complexas”[sic]. Em regra geral, as teorias da enunciação lidam essencialmente com dois tipos de instâncias validantes: individuais e genéricas ou generalizantes (representadas comumente pelo SUJEITO UNIVERSAL da doxa). Na semântica e na filosofia da linguagem, ao contrário, na linha de pensamento do imemorial debate entre nominalismo e realismo, desenvolvem-se ontologias muito mais sofisticadas: que modo de existência deve-se conferir à entidades como “a França”, “o regimento”, “os
jovens”, “a burguesia”, “a opinião pública”, etc.? Os analistas do discurso, por seu lado, abordam essa questão levando em conta a diversidade das práticas discursivas efetivas.
Para além de nosso “hiperenunciador”, pode-se incorporar outras peças a esse inventário. Existe, em particular, o caso dos textos que são objeto de uma elaboração coletiva. Isso recobre fenômenos muito variados, segundo a relação que se estabelece entre os sujeitos que cooperaram e a maneira pela qual o produto final pensa sua própria produção. Por exemplo, a responsabilidade dos textos publicitários é atribuída a um locutor individuado, a marca, cujas propriedades antropomórficas são conhecidas; esses textos são, contudo, notoriamente produzidos por uma agência de publicidade, que os assina de modo extremamente discreto. Existe também certo número de gêneros de discurso que emanam de aparelhos (da ONU aos sindicatos, passando por associações esportivas) em que o texto, atribuído a um enunciador institucional, resulta de uma negociação entre diferentes atores cujo nome figura no documento. Assim sendo, os relatórios do Banco Mundial (Maingueneau, 2000) fornecem a lista dos peritos que se reuniram para fazer o texto. O apagamento da pluralidade dos autores é menor no caso dos relatórios franceses de defesa de tese em letras e ciências humanas. (Dardy, Ducard, Maingueneau, 2002): se o conjunto do texto é de responsabilidade coletiva da banca, entidade indivisível que concede a menção e que é representada por seu presidente, cada parte é de responsabilidade de um único membro dessa banca. Nesse caso não há negociação, mas simples justaposição das contribuições de cada um.
Pode-se evocar também o caso muito banal da imprensa escrita, cujo regime de autoria está longe de ser simples. Cada artigo tem um autor singular, mas a instância que é o jornal transcende essa multiplicidade que encontra o meio de se encarnar no comitê de redação e em seu diretor. É o que permite, por exemplo, dizer que existe um tom específico do Libération, por exemplo, ou que tal jornal tem esse ou aquele posicionamento político.
Poder-se-ia opor, por exemplo, esse “metaenunciador” – que seria o jornal em relação à cada artigo que ele contém – e o “interenunciador” – resultante de uma negociação entre diversos pontos de vista, etc. Mas a coisas se complicam imediatamente: na medida em que essa “interenunciação” emerja da colaboração de pontos de vista convergentes (caso de um grupo unido que redige um panfleto) ou de um compromisso entre pontos de vista opostos (caso de uma moção política redigida por representantes de correntes distintas), na medida em que se trate de um grupo com fins ideológicos, que deve marcar uma posição em um campo, ou de um grupo com fins práticos, que busca apenas fazer funcionar um aparelho, etc.
Pode-se sempre multiplicar os rótulos para distinguir esses variados casos de figura (metaenunciador, multienunciador, plurienunciador, superenunciador, etc.), mas de pronto seria necessário resolver o problema de saber se é possível ou não selecionar categorias de base que, combinando-se, permitiriam explicar a diversidade dos gêneros de discurso atestados. Se tais categorias não existissem, seria necessário renunciar a toda terminologia de alcance global.É plausível que haja essa complexidade das instâncias de enunciação assim como aquela das formas do discurso citado. Os procedimentos de base que permitem citar são limitados, mas a diversidade dos gêneros de discurso, ela própria em estreita relação com a evolução dos suportes materiais, é tal que se descobre sem cessar novas formas de citação, que se confundem com a especificidade de cada um desses gêneros. Entre a estreiteza dos procedimentos de base e a proliferação dos usos do discurso citado, é necessário construir
categorias intermediárias, fundadas sobre grandes partilhas de ordem enunciativa e pragmática que estruturem o universo do discurso.
CENOGRAFIA EPISTOLAR E DEBATE PÚBLICO
Neste artigo, abordarei a carta não como gênero de discurso, mas como cenografia de carta
privada, mobilizada por discursos que pertencem a outros gêneros. Não tratarei de quaisquer gêneros,
mas daqueles que se ligam a debates públicos. Logo, será necessário levar em consideração a
distância constitutiva entre o caráter privado da relação epistolar e o caráter público de seu modo de
existência discursiva.
Esta dupla restrição – restrição do gênero do discurso à cenografia epistolar e restrição da
cenografia epistolar aos gêneros que fazem parte do debate público – exclui, portanto, tanto a carta
privada como gênero, isto é, a “verdadeira” carta de indivíduo a indivíduo, como as cartas,
publicitárias ou administrativas, em particular, que não participam do debate de idéias.
Acabo de falar de “cenografia”, termo que possui para mim um conteúdo preciso, no interior do
que denomino cena de enunciação de um texto. A “cena de enunciação” associa, com efeito, três
cenas de fala, dentre as quais apenas duas estão necessariamente presentes.
A cena englobante é aquela que corresponde ao tipo de discurso, a seu estatuto pragmático.
Quando recebemos um panfleto na rua, devemos ser capazes de determinar se se trata de algo que
remete ao discurso religioso, político, publicitário, etc., ou seja, devemos ser capazes de determinar
em que cena englobante devemos nos colocar para interpretá-lo, para saber de que modo ele interpela
seu leitor. Caracterização mínima, é verdade, mas que nada tem de intemporal: ela define o estatuto
dos parceiros e um certo quadro espaço-temporal. Não se pode falar de cena administrativa,
publicitária, religiosa, literária, etc., para toda e qualquer sociedade e para toda e qualquer época, e as
relações entre essas cenas variam de uma conjuntura a outra.
A cena englobante não é suficiente para especificar as atividades discursivas nas quais se
encontram engajados os sujeitos. Vemo-nos confrontados com gêneros de discurso particulares,
com rituais sócio-linguageiros que definem várias cenas genéricas. O gênero de discurso implica
um contexto específico: papéis, circunstâncias (em particular, um modo de inscrição no espaço e
no tempo), um suporte material, uma finalidade, etc. Cada gênero ou subgênero de discurso define
o papel de seus participantes: num panfleto de campanha eleitoral, teremos um “candidato”
dirigindo-se a “eleitores”; num curso, teremos um professor dirigindo-se a alunos, etc. A “cena
Texto publicado em SIESS, J. (Org.). La lettre: entre réel et fiction. Paris: SEDES, 1998, p.55-72.
genérica” epistolar faz intervirem propriedades em dois níveis: no nível do gênero e no nível do
subgênero, especificados em função da cena englobante (a correspondência administrativa não
pertence à mesma cena genérica que a correspondência privada ou publicitária). Porém, no interior
da correspondência privada, se a análise o exigir, podem-se operar subdivisões segundo a visada
pragmática (carta de amor, carta de pêsames, carta de votos, etc.) e segundo o suporte
(correspondência em papel, eletrônica, etc.). Os gêneros e os subgêneros só podem ser
considerados como tais do ponto de vista por intermédio do qual se constrói a classificação: do
ponto de vista do gênero epistolar, a carta de amor é um subgênero, mas ela é também um dos
gêneros da expressão dos sentimentos amorosos. Na medida em que os gêneros são instituições de
fala sócio-historicamente definidas, sua instabilidade é grande, e eles não se deixam apreender em
taxinomias compactas.
Estas duas “cenas”, englobante e genérica, definem em conjunto o espaço estável no interior
do qual o enunciado ganha sentido, isto é, o espaço do tipo e do gênero de discurso. Em muitos
casos, a cena de enunciação reduz-se a essas duas cenas; porém, uma outra cena pode intervir, a
cenografia, a qual não é imposta pelo tipo ou pelo gênero de discurso, sendo instituída pelo
próprio discurso.
Consideremos, por exemplo, as dez primeiras Provinciais de Pascal, texto ao qual retornaremos
no presente artigo. De um ponto de vista genérico, trata-se de um conjunto de libelos44, jansenistas,
no caso, inscritos em uma controvérsia religiosa. Esses libelos não se apresentam como tais, mas
como uma série de “cartas” dirigidas sucessivamente a um amigo na província. Aqui, a cena epistolar
não é uma cena genérica, mas uma cenografia construída pelo texto, a cena de fala da qual o texto
pretende originar-se. Esses libelos poderiam ter se manifestado por meio de cenografias bem
diferentes sem que se alterasse por isso a cena genérica. A cenografia epistolar, como qualquer
cenografia, tem inevitavelmente por efeito fazer passar a cena englobante e a cena genérica ao
segundo plano, de modo que o leitor se encontre preso numa armadilha: se a cenografia é bem
explorada, ele recebe esse texto primeiramente como uma carta, e não como um libelo.
A escolha da cenografia não é indiferente: o discurso, desenvolvendo-se a partir de sua
cenografia, pretende convencer instituindo a cena de enunciação que o legitima. O discurso impõe
sua cenografia de algum modo desde o início; mas, de um outro lado, é por intermédio de sua própria
enunciação que ele poderá legitimar essa cenografia que ele impõe. Para isso, é necessário que ele
44 N.T. : «Escrito, geralmente curto, difamatório, injurioso ou satírico», segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
faça seus leitores aceitarem o lugar que ele pretende lhes designar nessa cenografia e, de modo mais
amplo, no universo de sentido do qual ela participa. Toda tomada de palavra é, com efeito, em
diversos graus, incursão em um risco, sobretudo quando se trata de gêneros ou de tipos de discurso
que têm necessidade de se impor contra outros pontos de vista e de provocar uma adesão que está
longe de ser já dada.
Em uma cenografia associam-se uma figura de enunciador e uma figura correlata de co-
enunciadores. Esses dois lugares supõem igualmente uma cronografia (um momento) e uma
topografia (um lugar), das quais pretende originar-se o discurso. Trata-se de três pólos
indissociáveis: em certo discurso político, por exemplo, a determinação da identidade dos parceiros
da enunciação (“os defensores da pátria”, “cidadãos honestos”, “administradores competentes”,
“excluídos”, etc.) está em sintonia com a definição de um conjunto de lugares ("a França eterna", "o
país dos Direitos do homem", "a encruzilhada da Europa", "a Europa cristã", etc.) e com momentos
de enunciação ("um período de crise profunda", "uma fase de mutação econômica", etc.) a partir dos
quais o discurso pretende ser proferido, de modo a fundar seu direito à palavra.
Para desempenhar plenamente seu papel, a cenografia não deve, portanto, ser um simples
quadro, um elemento de decoração, como se o discurso viesse ocupar o interior de um espaço já
construído e independente desse discurso: a enunciação ao se desenvolver esforça-se por instituir
progressivamente seu próprio dispositivo de fala. Ela implica, desse modo, um processo de
enlaçamento paradoxal. Desde sua emergência, a palavra supõe uma certa situação de enunciação, a
qual, com efeito, é validada progressivamente por meio dessa mesma enunciação. Assim, a
cenografia é, ao mesmo tempo, origem e produto do discurso; ela legitima um enunciado que,
retroativamente, deve legitimá-la e estabelecer que essa cenografia de onde se origina a palavra é
precisamente a cenografia requerida para contar uma história, para denunciar uma injustiça, etc.
Quanto mais o co-enunciador avança no texto, mais ele deve se persuadir de que é aquela cenografia,
e nenhuma outra, que corresponde ao mundo configurado pelo discurso.
Uma cenografia só se manifesta plenamente quando ela pode dominar seu desenvolvimento,
manter uma distância em relação ao co-enunciador. Em contrapartida, em um debate, por exemplo, é
muito difícil que os participantes possam enunciar por intermédio de suas cenografias: eles não
possuem o domínio da enunciação e devem reagir sem demora a situações imprevisíveis suscitadas
pelos interlocutores. Em situação de interação viva, o que passa ao primeiro plano é, na maioria das
vezes, a ameaça das faces e o etos.
Escolhemos um exemplo de gênero de discurso, o libelo religioso, suscetível de cenografias
variadas. Existem, em contrapartida, gêneros de discurso cujas cenas enunciativas estão a princípio
reduzidas a suas cenas englobante e genérica : a correspondência administrativa, os relatórios de
peritos, as receitas médicas, etc., conformam-se às rotinas de sua cena genérica.
Outros gêneros do discurso são mais suscetíveis de produzir cenografias que se afastam de um
modelo preestabelecido, mesmo que este não seja o caso mais freqüente. Assim, um fait divers ou um
manual de gramática obedecem a rotinas, e tal obediência não implica que se tornem pouco naturais.
Pode-se imaginar que um fait divers adote uma cenografia policialesca ou que um manual de
gramática adote a cenografia de uma narração iniciática.
Nessas condições, podemos distribuir os gêneros numa linha contínua que teria como pólos
extremos :
- de um lado, os gêneros, pouco numerosos, que se limitam à sua cena genérica, que não
suscitam cenografias (por exemplo, o catálogo telefônico, as receitas médicas, etc.);
- de outro, os gêneros que por natureza exigem a escolha de uma cenografia: é o caso dos
gêneros publicitários, literários, filosóficos, etc. Há publicidades que apresentam cenografias de
conversação, outras, de discurso científico, etc. Há também uma grande diversidade de cenografias
que permitem constituir a situação de enunciação narrativa de um romance.
Entre esses dois extremos situam-se os gêneros suscetíveis de cenografias variadas mas que, na
maioria das vezes, limitam-se à sua cena genérica de rotina.
Uma tal variação mostra-se plenamente ligada à finalidade dos gêneros de discurso. O catálogo
telefônico, que não admite cenografia, é um gênero puramente utilitário. Em contrapartida, os
gêneros publicitários mobilizam cenografias variadas na medida em que, para persuadir seu
destinatário, devem captar seu imaginário, atribuir-lhe uma identidade por intermédio de uma cena de
fala que seja valorizadora para o enunciador assim como para o co-enunciador.
Conforme o dissemos anteriormente, nossa contribuição neste artigo volta-se para a cenografia
da “carta pública”. Não se trata de uma categoria genérica bem fundada, mas que permite agrupar
comodamente um certo número de textos. “Público” deve aqui ser tomado em dois sentidos:
- trata-se de textos concebidos para serem difundidos em uma ampla coletividade, que não
se destinam a um indivíduo ou a um grupo de indivíduos;
- trata-se, além disso, de cartas que visam participar diretamente de um debate público
existente ou que visam inaugurar um debate desse mesmo tipo.
Poderíamos considerar que As ligações perigosas45 pertencem ao domínio dessa noção de
« carta pública », já que são impressas para um grande público e intervêm em diversos debates sobre
a educação, a moral, etc. Com efeito, parece-me não se tratar de cartas « públicas » nem no primeiro
sentido, nem no segundo. Não são na verdade cartas, mas um romance por cartas ; trata-se de um
agenciamento, cujas cartas são tão-somente os constituintes. Além disso, mesmo que esse livro
tivesse intenções políticas, no sentido amplo, mesmo que ele alimentasse debates, uma tal visada
somente poderia ser indireta. Nós apenas consideramos aqui os gêneros que têm por finalidade
declarada alimentar o debate público. Nosso objetivo centra-se com efeito em cenografias de carta
privada em gêneros não epistolares que visam agir sobre o espaço público. Ora, existem também
cartas públicas nas quais é a cena genérica que é epistolar. Esse é o caso em particular das « cartas
abertas ». No que nos interessa aqui, essa distinção não é significativa: a cena genérica epistolar
encontra-se em pé de igualdade com o seu estatuto, seu modo de intervenção, ao passo que a carta
privada servindo de cenografia a um gênero do debate público mantém por natureza uma tensão com
seu modo de intervenção. Em tais cenografias não lidamos com cartas privadas que foram desviadas
e endereçadas a um grande público, mas com uma encenação pública da relação epistolar privada, em
um fenômeno de dupla enunciação que pode assumir formas muito diversas. Considerando que uma
correspondência privada deve supostamente ter em vista apenas indivíduos, a carta pública como
cenografia somente pode ser da ordem do tropo: ela não pode ser recebida literalmente, mas sob o
modo do « como se ».
Para textos desse tipo pode-se falar de « tropo » já que o destinatário oficial dessas cartas, o
receptor endereçado, não é o seu destinatário principal, a saber, a opinião pública. Com relação à
interação oral, C. Kerbrat-Orecchioni fala de « tropo comunicacional » na seguinte situação:
«Existe tropo comunicacional cada vez que se opera, sob a pressão do contexto, uma inversão
da hierarquia normal dos destinatários, isto é, cada vez que o destinatário que, em virtude dos
índices de alocução, desempenha em princípio o papel de destinatário direto não representa
senão um destinatário secundário, enquanto o verdadeiro alocutário é na realidade aquele que
possui aparentemente o estatuto de destinatário indireto.»46
Em se tratando de textos escritos considerados no interior de um denso interdiscurso, em se
tratando de textos com cenografia, vemo-nos evidentemente obrigados a afinar esta primeira
caracterização para dar conta de sua complexidade.
45 N.T. : Romance epistolar de Choderlos de Laclos, publicado em 1782. 46 Les interactions verbales, I, Paris, A Colin, 1990, p.92.
A priori a correspondência privada implica um certo número de condições. Cito em particular as
seguintes:
- a comunicação de indivíduo a indivíduo;
- o caráter diferido da enunciação (o leitor lê o texto em uma situação que não coincide com
a situação de sua produção);
- a possibilidade, e mesmo a obrigação moral, de uma resposta;
- o caráter único do texto (o que o distingue do impresso) ;
- um certo número de propriedades da conversação (liberdade de tema, de tom, variedade dos
temas abordados, recusa de toda espécie de « jargão », etc.).
Quando a carta privada se torna cenografia de um gênero de debate público, ela não explora
evidentemente todas essas virtualidades, mas privilegia algumas delas, em função de seu
posicionamento ideológico e da cena genérica à qual está associada. Podemos percebê-lo nos dois
textos que ilustrarão nossa reflexão: as dez primeiras Provinciais de Pascal e a « Carta a todos os
franceses », pela qual François Mitterand apresentou seu programa aos eleitores por ocasião da eleição
presidencial de 1998. Se a última privilegiou a dimensão de intimidade, uma vez que se supõe que a
carta se dirija de um membro da família a outro, as Provinciais enfatizam, dentre outros elementos, o
distanciamento em relação ao jargão teológico e a liberdade de tom.
Esses dois textos são muito diferentes em vários aspectos: não apenas pelo tipo de discurso ou
pela época que lhes correspondem, mas ainda pelo dispositivo de enunciação mobilizado. Não os
abordamos por intermédio da oposição tradicional entre « fundo » (a mensagem a ser transmitida) e
« forma » (a escolha de uma cenografia epistolar para transmiti-lo), mas numa perspectiva de análise
do discurso, remetendo essas cenografias aos campos discursivos nos quais elas intervêm, recusando
dissociar um « conteúdo » ideológico e um « quadro » pragmático.
A cenografia epistolar é explorada nesses dois textos de uma maneira que chamou a atenção
quando eles surgiram. Esse não é sempre o caso. Com bastante freqüência – e muito particularmente
na época clássica, que constitui de algum modo sua idade de ouro – a carta não é senão uma fôrma
passe-partout que permite, ao endereçar um texto («Carta a X a respeito de Y»), melhor inscrevê-lo
em um debate. Compreende-se que a carta se preste tão bem a esse papel. A exemplo do diálogo, ela
possui um estatuto de algo que se poderia chamar de «hipergênero» autoral. Se tantos textos da
Antigüidade e da Europa clássica adotaram essas cenografias é sem dúvida porque carta e diálogo são
estruturas genéricas com coerções pobres e que mantêm uma relação íntima com a conversação. A
carta e o diálogo podem veicular todas as espécies de conteúdos e se prestam às situações de
comunicação mais variadas, explorando de maneiras diferentes esta forma básica da comunicação
verbal que é a troca de indivíduo a indivíduo. A carta pública pode, portanto, corresponder a
dispositivos extremamente diversos que a priori não poderíamos listar exaustivamente.
A categorização genérica mais difundida para as cartas que intervêm em debates públicos é a
da « carta aberta », cujo exemplo mais famoso é o «Eu acuso»47 de Zola. Porém, este dispositivo da
« carta aberta » não convém nem às dez primeiras Provinciais, nem à « Carta » de F. Mitterand,
textos nos quais a relação epistolar se prende à cenografia. A carta aberta dirige-se, com efeito, a dois
destinatários ao mesmo tempo, sendo um deles o destinatário atestado e o outro o público dos leitores
da publicação. Assim, « Eu acuso » é dirigido a um destinatário atestado, o presidente da República
(de onde o subtítulo « Carta ao presidente da República »), mas também aos leitores de « A Aurora »
e, para além deles, ao conjunto da opinião. Esse é também o caso das Provinciais 11 a 16 e 17 a 18,
que são dirigidas respectivamente « aos reverendos padres jesuítas » e « ao reverendo padre Annat,
jesuíta », mas que são difundidas clandestinamente junto ao grande público.
Nossos dois exemplos apresentam características diferentes e mobilizam uma estrutura de
dupla enunciação menos evidente, introduzindo uma instância aparentemente supérflua no processo
de comunicação. As Provinciais 1 a 10 não se dirigem a um destinatário atestado, mas constroem a
ficção de uma troca epistolar entre um cavalheiro48 de Paris e um de seus amigos de província :
«Carta escrita a um provincial por um de seus amigos ». A segunda carta é mesmo seguida de uma
breve « Resposta do Provincial às duas primeiras cartas de seu amigo», a qual faz da terceira carta
uma carta « para servir de resposta à precedente ». Porém, essa estrutura de troca epistolar não irá
muito longe porque essa « Resposta » serve principalmente para citar duas outras cartas, a de um
membro da Academia Francesa e a de « uma pessoa » a « uma dama », dois epistoleiros que
representam de algum modo o público-alvo desses panfletos. Nessas cartas, a ficção da
correspondência privada permite, com efeito, construir dois lugares: o de um cavalheiro epistoleiro
não versado em teologia e o de um destinatário de província também pouco versado em teologia; o
primeiro pretende, por intermédio de suas cartas, manter o segundo informado de um caso que é
então bastante divulgado, a saber, que a Sorbonne ameaça condenar certas proposições do teólogo 47 N.T. : Carta redigida pelo escritor Emile Zola e publicada no jornal L’Aurore, em 13/01/1898, dirigida ao presidente da República, Félix Faure, na qual Zola toma a defesa de Alfred Dreyfus. A referência à carta pelo título «Eu acuso» (no original, «J’accuse») deve-se ao fato de haver sido reproduzido na primeira página de L’Aurore, com destaque, o sintagma «J’accuse» que Zola repetia várias vezes ao final de sua carta, fazendo críticas e reprovando a atitude assumida na ocasião por oficiais de alta patente.48 N.T. : No original, honnête homme, termo que compreende a idéia de cidadão honesto, digno, íntegro.
jansenista Antoine Arnault relativas à graça. Pouco a pouco, a partir da carta 4, as cartas vão estender
o campo da polêmica às práticas dos casuístas, que são encenadas por intermédio do personagem de
um gentil padre jesuíta com o qual o escrevedor49 mantém contato.
A partir da carta 11, como pudemos percebê-lo, o dispositivo muda, uma vez que lidamos
então com cartas abertas. Essa mudança de dispositivo de comunicação corresponde a uma mudança
radical de ethos: enquanto o escrevedor ? das dez primeiras cartas se apresenta por seu discurso como
um homem do mundo distanciado e irônico, aquele que escreve as cartas seguintes assume
diretamente seu estatuto de jansenista para interpelar violentamente, e mesmo com um tom profético,
os adversários efetivos dos jansenistas. Nas dez primeiras cartas, a submissão do escrevedor ? ao
ethos e às normas da carta mundana é condizente com o caráter fictício da cenografia epistolar: a
carta é de um « provincial » em teologia a um outro provincial, ela finge ignorar que constitui um
panfleto que se dirige também a adversários do campo religioso. Em contrapartida, nas cartas abertas
11 a 18, o caráter epistolar permite estabelecer uma estrutura de interpelação direta desses
adversários, sem passar por um desvio de ficção. Desse modo, constrói-se um lugar de destinatário
para o público visado indiretamente pelo próprio modo de difusão da cenografia escolhida, público
explicitamente designado como « as pessoas do mundo », « as próprias mulheres » («Resposta do
Provincial»). «O provincial» permite designar o lugar de leitura dessas « pessoas do mundo », que
são elas também « provinciais» em matéria de controvérsia teológica. Porém, esse destinatário-
modelo instituído pela cenografia que explora um gênero mundano, a carta, não exclui a existência
de um outro destinatário, o qual não é requerido nem por uma interpelação direta, nem pela
cenografia mundana, mas pela própria situação de controvérsia na qual se inscrevem as Provinciais :
os atores «profissionais» do debate teológico (jansenistas, neotomistas, molinistas, etc.). Esse texto
inscreve-se, com efeito, em uma longa cadeia de outros escritos de controvérsia dos quais não faz
senão retomar o conjunto de argumentos; desse modo, ele tem como público natural por definição o
público dessa controvérsia tal como ela se desenvolveu até então. Lidamos aqui com o equivalente de
uma « história conversacional », com uma controvérsia, precisamente. E, aliás, são os atores
profissionais que responderão por intermédio de uma série de outras cartas às quais se faz alusão
desde as primeiras palavras da carta 11: «Vi as cartas que o senhor tem monotonamente redigido em
relação às que escrevi a um de meus amigos a respeito de sua moral». Nessas dez primeiras cartas,
podemos, portanto, distinguir dois destinatários, com estatutos distintos:
49 N.T. : Na tradução de scripteur, adotaremos a forma dicionarizada escrevedor, ou ainda a forma analítica aquele que escreve, de modo a evitar a confusão com écrivain (escritor).
- as pessoas do mundo, destinatário-modelo da cenografia da carta mundana, cujo lugar é
marcado pelo « provincial » e designado explicitamente pela «Resposta do Provincial»; esse
destinatário deve ser convertido em público efetivo;
- o público já constituído pela história da controvérsia, a acumulação dos escritos e de suas
respostas de ambas as partes no curso de vários anos.
Avancemos agora mais de três séculos para considerar a «Carta a todos os franceses» do
presidente-candidato François Mitterand. Sua cena englobante é aquela determinada pelo tipo de
discurso, no caso, o discurso político; sua cena genérica é a do programa eleitoral; sua cenografia é a
de uma carta, uma correspondência privada. O leitor da «Carta» encontra-se simultaneamente às
voltas com essas três cenas, uma vez que é interpelado ao mesmo tempo como cidadão (cena
política), como eleitor da eleição presidencial (cena do gênero de discurso) e como indivíduo que
recebe uma carta (cena reivindicada pelo texto). O quadro cênico do texto (cena englobante e cena
genérica) é, porém, relegado a um plano secundário em proveito da cenografia epistolar que
constitui seguramente um afastamento em relação às normas então dominantes da comunicação
política. Desse modo, o leitor cai numa espécie de armadilha, pois é levado a receber esse texto
como uma correspondência privada, não como propaganda eleitoral. Porém, trata-se apenas da
pretensão ilocutória da enunciação, do quadro pragmático que o discurso pretende impor: é
previsível que um grande número de eleitores, principalmente os que se opõem a Mitterand,
invertam a hierarquia e enxerguem tão-somente o quadro cênico e, assim, para os eleitores, tudo
não passará de propaganda socialista.
Todo discurso pretende convencer fazendo reconhecer a cena de enunciação que ele impõe e
por intermédio da qual se legitima: o homem político que apresenta sua enunciação por intermédio
de uma cenografia de correspondência privada, e não por intermédio de um relato de perito ou de
uma conversa diante da lareira, pressupõe pragmaticamente que uma tal cenografia não é um
simples vetor, mas algo que define um lugar de discurso comum para seus co-enunciadores, um
lugar de discurso condizente com o sentido a ser liberado. Como já o dissemos, a cenografia vem
legitimar o enunciado que, a seu turno, mostra, por intermédio de seu conteúdo, que a cenografia da
correspondência privada é condizente com as palavras proferidas pelo candidato.
Nas Provinciais, percebia-se um distanciamento entre a cena genérica do panfleto religioso e
a cenografia da carta mundana; por sua vez, a «Carta» de F. Mitterand implica uma tensão entre a
cena genérica do programa eleitoral de um presidente a ser eleito pelo sufrágio universal e a
cenografia da correspondência privada. Aliás, desde o início do texto, o autor sente a necessidade de
denegar que seu enunciado pertença ao gênero «programa eleitoral»:
«Não lhes apresento um programa, no sentido habitual da palavra. Eu o fiz em 1981, quando
estava na direção do Partido socialista. Um programa, com efeito, é algo que diz respeito aos
partidos.»
Notamos, contudo, que a modalização autonímica «no sentido habitual da palavra» permite
não ultrapassar a fronteira da noção; aqui o enunciador «joga» com a noção de programa,
permanecendo em seu interior. Enquanto nas Provinciais a ficção epistolar rompia nitidamente com a
cena genérica do panfleto para constituir para si um novo público, aqui o enunciador se recusa a
oferecer uma distinção categórica: a cenografia não deve ocultar a cena genérica.
A dificuldade experimentada por F. Mitterand não é nova. Em um estudo sobre o uso dos
substantivos « programa», « projeto », « proposição » nas eleições legislativas de 197850, J.
Bastuji mostrou que a escolha dessas denominações genéricas era uma coerção da língua; como
« programa » – termo então adotado pelo « Programa comum da Esquerda » – implicava
sujeito coletivo e sistematicidade, o Partido Republicano e o RPR51 escolheram outros nomes no
paradigma dos nomes em pro-, prefixo associado a um esquema de movimento para a frente :
« projeto » e « proposições » eram palavras vistas como mais harmônicas com suas opções
políticas liberais. Dez anos mais tarde, na campanha de F. Mitterand, o recurso a uma
cenografia epistolar torna ainda mais delicado o uso de « programa » : o enunciador se
apresenta como sujeito que fala em seu próprio nome e estabelece uma oposição entre o
representante de partido que ele era e o indivíduo que ele se tornou pela unção presidencial.
Essa cenografia da correspondência privada invoca ela mesma a caução de uma outra
cena de fala : « espécie de reflexão em comum, como acontece de noite, em torno da mesa, em
família ». Assim, o eleitor não somente é alguém que deverá ler uma carta, mas também deverá
participar imaginariamente de uma conversa em família na qual o presidente assume
implicitamente o papel do pai. Esse encaixamento de uma cena de fala em uma outra nada tem
de surpreendente: as cenografias se apóiam freqüentemente em cenas de fala que denomino
validadas, isto é, já instaladas na memória coletiva, seja a título de algo que se rejeita ou de
modelo valorizado. A conversa em família durante a refeição é o exemplo de uma « cena
50 « Sémantique, pragmatique et discours », in Linx, Université de Paris X, n°4, 1981, p.7-45.
51 N.T. : RPR -Rassemblement pour la République, partido neogaullista assim denominado desde dezembro de 1976 e cujas origens remontam à Union pour la Nouvelle République, de 1959.
validada » positiva na cultura francesa. O repertório dessas cenas varia em função do grupo
visado pelo discurso, mas, de modo geral, a qualquer público, por vasto e heterogêneo que seja,
pode-se associar um estoque de cenas que podemos considerar como compartilhadas. A « cena
validada » se apóia em um estereótipo descontextualizado, popularizado pela mídia. Produz-se
no discurso uma interação entre cenografia e cena validada ; é evidente, em particular, que a
cena validada da refeição em família acentua o caráter privado do epistolar.
O leitor da « Carta a todos os franceses » recebe, pois, simultaneamente, um fragmento
de discurso político, um programa eleitoral e uma carta pessoal que se apresenta ela mesma
como uma discussão em família. Essa cena validada é, aliás, retomada no final da « Carta » :
«Começando esta carta, eu escrevia que falaria aos senhores como em torno da mesa, em
família. Essa última palavra não me veio por acaso. Nasci, vivi minha juventude no seio de
uma família numerosa. As lições que dela recebi permanecem sendo minhas mais seguras
referências. »
Se, como foi visto, existe tensão entre a cena genérica de programa eleitoral e a cenografia da
“Carta”, existe também tensão entre essa cenografia e a cena validada da discussão em família: a
discussão é uma interação viva, enquanto uma carta supõe uma enunciação monologal. Essa tensão
não pode ser verdadeiramente suprimida; ela é parcialmente mascarada pelo movimento do texto:
«Escolhi este meio, escrever-lhes, a fim de me expressar acerca de todos os grandes temas
que merecem ser tratados e debatidos entre franceses, espécie de reflexão em comum, como
acontece de noite, em torno da mesa, em família ».
Com efeito, a supressão da tensão é puramente verbal. O grupo nominal “reflexão em
comum” joga nos dois campos: “reflexão” caminha no sentido de pensamento pessoal e “em
comum”, no sentido de discussão. Porém, como pode uma carta ser uma “reflexão em comum”? É na
dinâmica da leitura que se suprime praticamente a dificuldade.
A “Carta” coloca em relação uma comunidade de eleitores-destinatários e um enunciador-
candidato que, por sua enunciação, encontra-se excluído de tal comunidade. Por outro lado, o texto
esforça-se por apresentar destinador e destinatário como pertencendo à mesma comunidade, o que se
verifica nas fórmulas de endereçamento “meus caros compatriotas” e “entre franceses”.
Essa comunidade inclusiva52 é precisamente designada por uma série de entidades que
remetem à não-pessoa: « a França», « a República », «nosso país», « a Nação ». A maiúscula institui
52 Inclusivo deve aqui ser tomado no sentido de um « nós » inclusivo, que compreende simultaneamente o eu e o você.
os referentes em conjuntos transcendentes em relação à diversidade empírica de seus membros, ao
passo que o “nosso” inclusivo apaga a alteridade do destinatário. A frase pela qual o enunciador se
exclui dos partidos (« Um programa, com efeito, é algo que diz respeito aos partidos. Não ao
presidente ou a quem aspira a tornar-se presidente») caminha no mesmo sentido: entre aquele que
escreve e os franceses não se interpõe nenhuma divisão, a “Carta” circula na homogeneidade de uma
comunidade reunida imaginariamente.
A essa série de entidades com valor inclusivo opõe-se seu complementar, a saber, o universo
exterior à França, marcado por “on”53 e por “o mundo”. Esses dois designativos possuem a
particularidade de poderem se referir ao complementar sem excluir os coenunciadores. Com efeito,
se concordamos com o que propõe Evelyne Saunier54, o «on» marca a construção de uma instância
subjetiva sem que entre em consideração a alteridade verificada entre enunciadores / co-enunciadores
/ não-enunciadores. Em outras palavras, o “on” se refere a um ser humano abstraindo o que diz
respeito a seu estatuto enunciativo. O efeito produzido aqui é nítido: o “on”, por definição, não
coincide exatamente com os coenunciadores, mas nem por isso os exclui enquanto seres humanos.
Isto permite isolar a comunidade nacional, reunida “em família”, e, simultaneamente, não dissociá-la
do resto da humanidade, que se supõe esperar algo da França. O designativo “o mundo” vai no
mesmo sentido, uma vez que ele distingue os coenunciadores do resto dos humanos, sem, contudo,
excluir do mundo a França. Com efeito, essas referências de formas pessoais55 não devem ser
dissociadas da cenografia da correspondência privada, que pressupõe pragmaticamente aquilo de que
ela fala: o texto se refere a uma comunidade de franceses que, de certo modo, é constituída por essa
carta que pretende circular no interior de um espaço de pessoas íntimas. O dito e o dizer se sustentam
reciprocamente.
Um programa eleitoral que se apresenta como uma carta faz, desse modo, mais do que apenas
incorporar um conteúdo que lhe é independente: o discurso de F. Mitterand pôde ter um impacto,
pôde chamar a atenção numa dada conjuntura porque precisamente a cenografia da “Carta” não era
um mero procedimento. A esse respeito, o discurso político é comparável a outros tipos de discurso.
Se um filósofo coloca na forma de diálogo um pensamento que nada tem de dialógico, esse diálogo
será percebido como mera roupagem retórica.
53 N.T. : Forma pronominal do francês que, em português, corresponde, grosso modo, a « a gente », « alguém » ou ao índice de indeterminação do sujeito « se ».54 Identité lexicale et régulation de la variation sémantique, Tese de Doutorado de Lingüística, Paris X, 1996, p.428 e seguintes.55 N.T. : No original, repérages personnels.
Para que uma cenografia faça, portanto, sentido, é preciso que esteja em harmonia não apenas
com os próprios conteúdos que sustenta, mas também com a conjuntura na qual intervém. Já
tratamos do primeiro aspecto, colocando em evidência o modo pelo qual o enunciado, já desde suas
primeiras linhas, justifica sua cenografia: a «carta» contesta a cena genérica do « programa » e
permite definir uma comunidade política imaginária. Quanto ao segundo aspecto, é ele que
possibilita à cenografia uma «relação ativa» sobre a conjuntura histórica; é nesse nível que a
analisamos como um “golpe” de política56, sintomático de um certo estado da comunicação política
na França. Certamente uma tal cenografia da correspondência privada participa de um movimento de
fundo da comunicação política, onde o discurso tende a se contentar com a singularidade biográfica
de sua fonte.
Isso permite atenuar a diferença em relação à cenografia epistolar das Provinciais. Pode-se ter
a impressão de que a “Carta a todos os franceses” tem apenas um destinatário, sendo o leitor evocado
na interpelação presente no título o único público capaz de ser considerado pelo discurso. De fato,
nos dois casos, podemos considerar que lidamos com uma dupla enunciação, uma enunciação
dirigida simultaneamente a dois destinatários. Isto é evidente no que concerne ao panfleto jansenista,
que visa ao mesmo tempo, tacitamente, ao “público genérico”, isto é, ao público dessa controvérsia, e
diretamente aos cavalheiros, por intermédio do lugar de leitura cuidadosamente construído para a
figura do “provincial”. No caso da “Carta a todos os franceses”, em contrapartida, parece não haver
senão um único destinatário, os eleitores, leitor-modelo e público genérico, mas podemos afirmar que
existe um segundo destinatário: no universo midiático do qual participa essa enunciação, o
destinatário indireto são os comentadores políticos e os jornalistas, cuja função é glosar o ato
enunciativo presidencial. Produto de uma equipe de comunicação, a “Carta” é um signo destinado a
entrar em um circuito previsível de modos de agir e de interpretações.
A relação entre os dois destinatários não é, contudo, a mesma para os dois discursos.
Poderíamos dizer que as Provinciais jogam um destinatário contra o outro: elas desejam seduzir os
cavalheiros, destinatário implicado, para atacar repentina e inesperadamente os aparelhos
eclesiásticos, destinatário genérico da controvérsia. Aqui, a opinião deve exercer uma pressão
significativa sobre uma parte desse público genérico, as autoridades eclesiásticas, que estão a ponto de
condenar os jansenistas na pessoa de Antoine Arnauld.
56 Cf. P. Lehingue et B. Pudal : «A «Carta a todos os franceses» caracteriza-se por sua diferença expressiva com as enformagens (N.T. : no original, mises en forme) esperadas e tidas como performantes do marketing político. Ela retoma aparentemente um gênero depreciado, considerado como obsoleto" » (art.cit. p.165).
Por sua vez, a “Carta” deseja seduzir os eleitores, seduzir a opinião, destinatário implicado,
dirigindo-se a aparelhos midiáticos, destinatário segundo; porém, nesse caso, não se estabelece uma
oposição entre os dois destinatários, uma vez que se trata, pelo contrário, de mobilizar a mídia a
serviço de uma efetiva sedução do destinatário invocado. Postula-se que é a mídia que pode
influenciar a opinião por intermédio dos discursos que ela vai produzir acerca dessa “Carta”. Há
convergência desejada entre os dois destinatários.
Quanto à “Carta”, ela vai coroar um tipo de discurso político no qual o eleitor é cada vez
menos construído como sujeito político abstrato, sendo, antes, construído como indivíduo, o que é
correlato de uma posição de enunciador que se qualifica como indivíduo dotado de uma biografia e
de uma imagem singulares, e não como porta-voz de um coletivo ou como suporte de uma doutrina.
Avancemos um pouco mais: a própria escolha de uma cenografia epistolar privada distancia-se
igualmente do que se poderia considerar como sendo a nova norma da comunicação política, a saber,
a televisão. Ao empunhar a caneta, colocando em cena o ato de fabricação artesanal dessa carta por
intermédio de uma apropriada publicidade midiática bastante intensa, não se caminha, com efeito, no
sentido contrário: o candidato-presidente coloca-se à distância, como um homem que representa
princípios fundamentais, um homem da palavra inscrita, imemorial, dos verdadeiros valores, contra
os que falam de coisas vazias, supérfluas. Em outras palavras, se, na época das Provinciais, a escolha
de uma cenografia mundana permite estabelecer uma conexão ativa entre a controvérsia religiosa e
atividades discursivas «modernas», ao final do século XX a cenografia epistolar no debate político
produz uma equivalência entre a enunciação e atividades discursivas em vias de marginalização. O
que novamente chama a atenção. Aqui, como nas Provinciais, o essencial passa pela cenografia, e
não pelo conteúdo. Não se pode, desse modo, dizer que o recurso a essa cenografia provoque os
mesmos efeitos de sentido; produz-se uma filtragem, uma hierarquização distinta dos valores virtuais
desse gênero de discurso.
Deve-se, portanto, levar plenamente em consideração a dimensão midiológica da
comunicação epistolar. Para que a cenografia epistolar não pareça “chapada” ou “pouco natural”, é
preciso que ela se conecte com outros planos do discurso. Assim, as primeiras Provinciais não se
contentam em exibir alguns sinais de seu pertencimento ao gênero carta, mas ainda adotam o etos, o
código linguageiro, as normas de comunicação que são os vigentes nos gêneros mundanos. A
cenografia da carta, com efeito, não é intemporal, inscrevendo-se, antes, em normas de discursos
situados. Somente dessa forma é que é possível fazer com que os destinatários admitam que essa
questão teológica lhes diz respeito: trata-se de uma questão teológica que lhes concerne uma vez que
se escreve a eles por intermédio de um discurso que é o deles.
Na medida em que se desenvolvem por intermédio de uma cenografia que se opõe claramente
à cena genérica rotineira, essas duas cartas públicas são, além disso, destinadas a chamar a atenção
na ordem do discurso. Aliás, não é indiferente que esses textos tenham deixado vestígios, ainda que
não o tenham feito na mesma escala: eles suscitam comentários e marcam uma inflexão no próprio
estatuto do discurso do qual se originam. Isto os torna algo bem diferente de um simples
“procedimento”. Sabe-se que as Provinciais marcam um deslocamento na distribuição das
autoridades: dirigindo-se ao público dos não-especialistas por intermédio de um código linguageiro
que é o da racionalidade comum encarnada em um certo tipo de francês, as Provinciais implicam
inconscientemente um novo espaço que será o das Luzes. Em meados do século XVII, a carta é uma
instituição de fala com algum poder sobre a rede de comunicação e constitui um dos vetores
privilegiados do pensamento e da sociabilidade: o estabelecimento de uma rede de correspondência
com membros prestigiosos de um espaço social é um sinal maior da importância de sua posição. Em
um mundo no qual a imprensa é embrionária e a carta é muito freqüentemente destinada a grupos de
leitores, uma boa parte das informações de peso passa por ela.
O epistoleiro é um tipo de enunciador individuado e que visa individualmente aos seus leitores,
e não, como é o caso em um livro, uma instância pouco nítida que se dirige a um público
indeterminado. Isto é o que acontece com a “Carta” de F. Mitterand, na qual a cenografia epistolar
coloca em cena uma figura-chave da família francesa, a imagem do pai, que se supõe pertencer à
mesma comunidade que seus destinatários : é a esfera de intimidade que é evidenciada. Aqui, não se
trata de etos irônico, nem do desejo de brilhar para um círculo escolhido (nas Provinciais, é menos a
dimensão de intimidade do que a de mundanidade que é privilegiada), mas de etos simultaneamente
afetuoso e grave que reúne cada família na organicidade da Pátria. Percebe-se que isso está em
sintonia com a definição das comunidades de pertencimento que implica a carta « privada »
(diferentemente da carta «aberta»): a carta privada é vista como devendo circular em uma esfera de
pertencimento que se justifique por intermédio dessa carta mesma. Em uma perspectiva pragmática,
com efeito, é evidente que a carta não se contenta em pressupor a existência de uma rede, de uma
comunidade, mas contribui no sentido de fazer com que tal rede exista e também no sentido de mantê-
la. O cartão postal de férias não é o simples registro de uma relação, mas contribui para constituir tal
relação. Em um caso como no outro, é preciso enunciar por intermédio das próprias normas dessa
comunidade.
A carta pública tira partido dessa propriedade de interpelação convocando o destinatário
indireto; a carta pode ser endereçada a quem quer que seja, pois, de qualquer modo, ela terá
por destinatário um público. A esse respeito estamos muito perto e muito longe da dupla
enunciação teatral: muito perto porque, como no teatro, toda palavra falada dirigida a alguém
no palco também é dirigida ao público; muito longe também porque o teatro é fictício, enquanto
a carta é por essência parte do real. É claro que isso vale essencialmente para a « carta aberta ».
Com efeito, nas Provinciais, a carta é fictícia; contudo, o anonimato permite deixar o público em
dúvida no que diz respeito à autenticidade das cartas. Na época, muitos se esforçaram por
descobrir pessoas reais escondidas por detrás dos personagens da ficção, como se a carta tivesse
por si mesma uma força de autenticidade tal que provocasse imediatamente um efeito
documentário. O autor das Provinciais, aliás, valeu-se desse poder acrescentando cartas de
resposta ao escrevedor, do amigo do provincial, de um « acadêmico » e de uma « mulher do
mundo ». Isso permite representar no próprio texto um modo de difusão que denega a
artificialidade do texto : não é porque o texto é impresso que todo o mundo o lê, mas porque a
carta é passada de mão em mão, porque ela é copiada, no interior de uma elite. Quanto à
« Carta » de Mitterand, ela não tem necessidade de interpelar, de coagir, uma vez que é
legitimada pela cena genérica : por definição, um programa eleitoral é dirigido aos eleitores. O
destinatário não tem nenhuma necessidade de autentificar um texto que está imerso em sua
realidade.
O que é preciso, desse modo, trazer à reflexão é essa mistura de ficcionalidade, ligada ao
caráter privado/público da carta, e de verismo da carta.
Outra diferença entre os dois textos: o modo de recepção que os textos prevêem para si
mesmos. As cartas ao provincial são, antes de mais nada, destinadas a serem lidas. Se aquele que
escreve se submete tão rigorosamente às normas de discursos dos cavalheiros (um texto curto,
irônico, claro, etc.) é precisamente para modelar a opinião desses destinatários. O texto não se
apresenta como autoridade, mas invoca a autoridade de seus leitores, de seu « bom senso ». Em
contrapartida, há uma evidente defasagem entre o peso (a extensão, em particular) do programa
eleitoral e a cenografia da « Carta », que efetivamente apenas consegue tomar ares de carta em
suas duas zonas estratégicas, a saber, na abertura e no fechamento, que são as zonas das quais
todos tomarão conhecimento, segundo se pensa. Na realidade, não se espera que o público leia
integralmente esse texto que excede todo e qualquer perfil de correspondência privada, mas que
o receba como algo da ordem da correspondência privada a ele endereçada por alguém que se
deu o trabalho de escrevê-lo de forma demorada e paciente. Enquanto as Provinciais, texto
clandestino, fora-da-lei, deve cortar o vínculo com suas condições de produção, apresentando-se
como surgindo de um lugar qualquer do meio em que circula, a « Carta » de F. Mitterand
participa de uma campanha na qual vários discursos são produzidos na televisão, nas revistas
ou nos jornais, acerca do processo de elaboração, do sujeito que escreve. Diferença entre as duas
cenografias epistolares que não remetem a condições apenas extrínsecas, mas ao próprio sentido
que elas pretendem instituir. Com efeito, o anonimato do escrevedor e do destinatário está em
sintonia com uma enunciação que pretende tomar por autoridade as regras do bom senso
comuns aos seres dotados de razão : pouco importa de onde venham as regras, uma vez que se
trata de um tribunal de regras universais. Em contrapartida, a «Carta» só pode adquirir sentido
se referida à familiaridade de um presidente-pai já intimamente conhecido, cujas trajetória
biográfica, idade e experiência constituem a autoridade. Somente uma subjetividade em posição
singular na comunidade pode, desse modo, se endereçar aos franceses para dar conhecimento de
seu programa, e mesmo denegar o próprio estatuto de programa.
No caso de cenografia epistolar associada a cenas genéricas, não basta considerar uma
carta pública como sendo uma carta privada desviada e dirigida a um vasto público ; trata-se,
antes, de uma encenação pública da relação epistolar em um fenômeno de dupla enunciação que
pode assumir formas muito diversas.
O que está em questão é saber se a carta pública pode escapar dessa dupla enunciação, se é
possível imaginar uma carta pública que se dirija diretamente a seus leitores. Uma carta pública
é necessariamente da ordem da dupla enunciação pelo próprio fato de seu destinatário
implicado cavar uma distância em relação ao caráter público de seu modo de difusão : há
sempre lugar para o terceiro desconhecido, não nomeado, aquele que não é o destinatário mas
que é aquele a quem se dirige a encenação. Há ainda uma outra coisa: o espaço no qual se
apresenta e circula a carta pública é um espaço midiático, que não pode coincidir com o
conjunto do corpo social. Existe um lugar abstrato no qual circulam os enunciados ideológicos,
um lugar que se encontra aberto a todos aqueles que participam desse lugar conflitual, um lugar
no qual interagem os diversos campos discursivos (filosófico, religioso, político, literário, etc.) e
que ultrapassa o âmbito de qualquer grupo, de qualquer pertencimento, de qualquer limite
como, por exemplo, o limite que a definição explícita de um destinatário pretende construir.
É evidente que não é nunca a esse espaço público que remetem as cartas públicas, mas a
comunidades imaginárias para além de toda e qualquer compartimentalização, o Outro
derradeiro, referente absoluto. Desse modo, para Mitterand, temos a França, a «Pátria», para
além da mídia e daquela eleição em particular, a comunidade transcendente na história; o
mesmo no caso das Provinciais, onde temos a comunidade da Igreja eterna, para além de toda e
qualquer distinção entre os aparelhos eclesiásticos e os cavalheiros, para além da censura da
Sorbonne.
Devemos, portanto, tornar mais complexo nosso esquema, uma vez que a «comunidade de
pertencimento» suposta pela carta privada é dominada por uma «comunidade de transcendência» que
funda a legitimidade do tropo comunicacional implicado pela cenografia epistolar.
O DISCURSO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS: UM DISCURSO
CONSTITUINTE?*
Neste artigo, eu me interesso pelo discurso das organizações internacionais, mais precisamente
por um gênero de discurso privilegiado dessas organizações: o relatório. Diferentemente de outros
gêneros – em particular, aqueles de circulação interna -, os relatórios são, de certa maneira, a
vitrine das organizações internacionais, a representação que elas oferecem de si mesmas para o
mundo exterior.
Existem diversas disciplinas que se encarregam do estudo do discurso, cada uma sendo
dirigida por um interesse específico; aqui, adoto o ponto de vista da análise do discurso que
apreende os enunciados enquanto a imbricação de um texto e de um lugar social. O objeto dessa
análise do discurso não é, portanto, nem a organização textual nem a situação de comunicação, mas
sim aquilo que as une mediante um modo de enunciação. Considerar os lugares independentemente
das falas que eles autorizam ou considerar as falas independentemente dos lugares dos quais elas
são parte pregnante é, portanto, permanecer aquém das exigências que fundam a análise do
discurso.
Esta teoria atribui, assim, um papel central à categoria de gênero de discurso, considerada, para
além da simples exterioridade entre “texto” e contexto”, como um dispositivo de comunicação ao
mesmo tempo social e verbal, historicamente definido. A partir dessa ótica, não serão chamadas de
“gênero” categorias como a narrativa, a descritiva, a polêmica etc., mas sim as práticas verbais como
o jornal cotidiano, a emissão televisiva, a dissertação filosófica etc., relacionadas a uma determinada
sociedade. O analista do discurso privilegia as condições materiais da comunicação, os papéis que
ela implica para seus participantes, os contratos tácitos que se estabelecem entre eles, seu suporte
material, as restrições que pesam sobre a organização textual etc.
Nesta breve contribuição, não pretendo incluir aspectos técnicos na análise lingüística dos
relatórios publicados pelas organizações internacionais, mas simplesmente questionar se eles
relevam ou não dos “discursos constituintes”1.
Esta noção se impõe a mim a partir de pesquisas que realizei, sobretudo a respeito dos discursos
religioso, científico, filosófico, literário. Ao perceber que muitas categorias de análise se transferiam
facilmente de um discurso a outro, fui levado à hipótese de que existia um campo específico no seio
1 Sobre essa noção, ver Maingueneau (1999)
da produção verbal de uma sociedade, aquele dos discursos que eu propus chamar de “constituintes”,
que partilham um certo número de propriedades quanto às suas condições de emergência, de
funcionamento e de circulação.
Para esclarecer a noção de discurso “constituinte”, pode-se partir de uma constatação banal:
quando há debate sobre um problema social, solicita-se a opinião de indivíduos que falam em nome
da religião, da ciência, da filosofia..., pois se trata de discursos que são, supostamente, dotados da
maior autoridade. São, de certa maneira, os discursos últimos, aqueles que, ao se confrontarem com
um Absoluto, conferem sentido aos atos da coletividade; aqueles para além dos quais não há mais do
que o indizível. Zonas de fala entre outras e falas que se pretendem acima de qualquer outra, esses
discursos limites (localizados sobre um limite e expondo o limite) devem administrar textualmente
os paradoxos que seu estatuto implica. Com eles, colocam-se, com toda intensidade, as questões
relativas ao carisma; para não se apoiarem somente sobre si mesmos, eles devem se colocar, na
verdade, como se fossem ligados a uma Fonte legitimadora: estatuto singular de uma posição
enunciativa que participa, ao mesmo tempo, do mundo ordinário dos homens e das forças que o
ultrapassam.
Aqui, o adjetivo « constituinte » explora dois eixos semânticos de constituir e de seu derivado
nominal constituição:
- A constituição enquanto ato de estabelecer legalmente; nós nos inscrevemos, aqui, no
prolongamento de certas correntes pragmáticas que, ao relacionarem estritamente a enunciação à sua
legitimação, caracterizam o discurso como se ele instaurasse as modalidades de sua própria
emergência;
- A constituição enquanto modo de organização, disposição de constituintes; a análise
relaciona-se igualmente às totalidades textuais construídas sobre as relações de coesão/coerência.
Assim, mediante as operações enunciativas por meio das quais se institui o discurso,
articulam-se a organização textual e a organização institucional, que ele, sempre, ao mesmo tempo
pressupõe e estrutura. Trata-se, então, para o analista, de ressaltar a imbricação de uma representação
do mundo e de uma atividade enunciativa. O “conteúdo” do discurso aparece como inseparável da
maneira como ele administra sua própria emergência, o evento de fala que ele institui.
De fato, um discurso constituinte é, ao mesmo tempo, auto- e heteroconstituinte: na verdade,
somente um discurso que se constitui ao tematizar sua própria constituição pode desempenhar um
papel de constituinte em relação aos outros. Isso não significa que os outros vários tipos de
enunciados (as conversações, a imprensa, os documentos administrativos etc) não ajam sobre eles;
muito pelo contrário, há uma interação contínua entre discursos constituintes e não-constituintes,
como há também entre os diferentes discursos constituintes. Mas é da natureza desses últimos negar
esta interação ou querer submetê-la a seus princípios.
Os discursos constituintes são variados e concorrentes, mesmo que cada um tenha, em um
momento ou outro, a pretensão de ser superior. Durante muito tempo, o discurso filosófico atribuiu a
si mesmo o direito de delimitar o lugar dos outros (religião, ciência, literatura); pretensão
constantemente contestada por aqueles que ele pretendia subordinar. Quanto ao discurso científico,
ele não pode existir sem evocar, a todo o momento, a ameaça que os outros discursos representam
para ele, os quais, por sua vez, não cessam de renegociar seu estatuto em relação a ele. Essa
pluralidade é irredutível: cada discurso constituinte está indissociavelmente ligado a outro na gestão
dessa coexistência impossível; dessa maneira, cada um parece estar, ao mesmo tempo, no interior e
no exterior dos outros, que ele atravessa e pelos quais é atravessado.
O conflito não se exerce apenas entre os diversos discursos constituintes; ele se exerce,
também, no interior dos próprios discursos constituintes, que se apresentam como um espaço de
conflito permanente entre diferentes posicionamentos. É uma característica das sociedades modernas
que os quadros de referência ideológica façam disso o objeto de um debate constante. Essa noção de
“posicionamento” (doutrina, escola, teoria, partido, tendência...) é muito pobre; ela implica somente
que os enunciados estão relacionados às diversas identidades produtoras do discurso que delimitam
umas às outras. A unidade pertinente de análise não é, portanto, o discurso em si mesmo, mas o
sistema de relações entre ele e os outros discursos, o interdiscurso, por meio do qual ele se constitui
e se mantém2.
Todo discurso constituinte se organiza em torno de textos-fontes, indissociáveis de instituições
que garantem que ele é necessário para interpretá-los e dizem que ele está autorizado a fazê-lo.
Pode-se falar aqui de “quadro hermenêutico”, no qual o sentido do texto excede, definitivamente, as
capacidades de seus intérpretes: por mais que se esforcem, eles não poderão esgotar a
“hermeneia”3, a fala essencial que a Fonte reserva especialmente a quem sabe ler. Tal herméneia
não resulta das intenções comunicativas ordinárias, ela não saberia se relacionar a uma
consciência assumida a partir das normas que presidem a comunicação verbal: o texto não tem
2 Trata-se do que tentamos desenvolver em Maingueneau (1984).3 De acordo com a tradição grega, a « hermeneia» encontra-se, antes, do lado da expressão, da manifestação do logos interior; hoje, ao contrário, estamos habituados a associar a hermenêutica à simples interpretação.
autor, no sentido usual; seu “autor” é apenas o é pelo fato de ser o delegado de uma Instância sem
rosto. Ruptura que priva seu “autor”, ao mesmo tempo em que dá autoridade à obra e requer
intérpretes para ela. Colocar-se como enunciador de um texto constituinte não é falar em seu
próprio nome, mas seguir o traço de um Outro, no qual se personificam a Tradição, a Verdade, a
Beleza... Ao escritor inspirado por alguma Musa, fazem eco o pregador habitado pelo Espírito ou o
redator do Código Civil, porta-voz casual da voz do Povo.
Os textos que relevam dos discursos constituintes são, ao mesmo tempo, mais ou menos fechados em
sua organização interna e “reinscritíveis” em outros discursos e em contextos diferentes. Somos
obrigados, dessa maneira, a considerar a dimensão midialógica do discurso (retomando o termo de
R. Debray4), ou seja, as modalidades de suporte e de transporte dos enunciados. O “conteúdo”, na
verdade, não é independente do dispositivo de transmissão; ele implica o conjunto do dispositivo de
comunicação que torna o texto possível.
O enunciado que releva de um discurso constituinte se instala no interior de uma hierarquia de
gêneros de discurso: há enunciados mais “prestigiosos” que outros, pois se encontram mais
próximos da Fonte legitimadora: a grande filosofia, a alta teologia, a ciência nobre... são sempre
reduplicados por outros gêneros, menos nobres: manuais escolares, sermões dominicais, revistas de
divulgação... Instaura-se uma hierarquia entre os textos fundadores - de certa forma,
“autoconstituintes” -, e aqueles que os comentam, os resumem, os interpretam... Alguns textos
transformam-se naquilo que poderíamos chamar de “arquitextos”, como a Ética, de Spinoza, ou a
República, de Platão, para a filosofia; os escritos dos Padres da Igreja, para o discurso cristão...
Mas, é preciso ressaltar, o estabelecimento do cânone de arquitexto legítimo é objeto de um debate
incessante entre os posicionamentos, cada um procurando impor seus próprios arquitextos e a
interpretação que julga ortodoxa.
II
Para uma concepção de discurso que poderíamos chamar de “representacionista”, os gêneros
de discurso “manifestam”, “refletem” “a ideologia” de um lugar, de um grupo; no caso que nos
interessa, observaríamos, por exemplo, nos relatórios do Banco Mundial, a “expressão” da
“ideologia” dessa organização ou da ideologia daqueles que a dominam. Na verdade, é mais
4 Debray (1991).
pertinente raciocinar em termos de “instituição discursiva”, o que significa empregar a relação em
dois sentidos: de um lado, os relatórios das organizações internacionais são instituições de discurso,
dispositivos de produção verbal institucionalizadas; mas, de outro lado, esses relatórios permitem às
instituições constituírem-se como tais: os gêneros de discurso específicos dessas organizações não
surgem como um “complemento” que manifestaria os conteúdos do pensamento que já estão lá ; eles
são, ao mesmo tempo, seu produto e a condição de sua identidade.
Este fato se traduz no funcionamento enunciativo: os textos dos relatórios das organizações
internacionais são também o lugar onde se auto-legitima a comunidade discursiva que produz esses
textos. Em outras palavras, esses textos falam do mundo (do desenvolvimento econômico, da
democratização, dos orçamentos etc) e, num mesmo movimento, legitimam as instâncias que falam
do mundo. É o que se percebe, de maneira quase caricatural, no prefácio do relatório do Banco
mundial (2000), nas palavras do presidente James D. Wolfensohn:
“Poverty amid plenty is the world’s greatest challenge. We at the Bank have made it our mission to
fight poverty with passion and professionalism, putting it at the center of all the work we do” (page
v)5.
A constatação da miséria do mundo é imediatamente sucedida pela auto-qualificação dos
autores. O “we” se refere tanto ao Banco Mundial, enquanto entidade do mundo, considerada
independentemente do discurso, quanto aos enunciadores do texto que contém esse “we”: na
qualidade de enunciadores que escrevem esse relatório, eles lutam performativamente contra a
miséria que é introduzida nas primeiras palavras do texto.
Percebe-se, aqui, o interesse do conceito de «comunidade discursiva”6, que designa os grupos
que existem somente pela e na enunciação de textos que eles produzem e fazem circular: há a
5 A pobreza excessiva é o maior desafio do mundo. Nós do Banco Mundial temos como missão lutar contra a pobreza com paixão e profissionalismo, luta mesma que tem sido o cerne de todo o trabalho que fazemos" (página v).6 Essa noção não é estabilizada na análise do discurso. Eu a introduzi (Maingueneau, 1984) para insistir no fato de que os modos de organização dos homens e de seus discursos são indissociáveis, que as doutrinas são inseparáveis da estrutura das instituições que as permitem emergir e as mantém. Pode-se estender essa noção a toda comunidade restrita de comunicação, organizada em torno da produção do discurso, qualquer que seja sua natureza: jornalística, científica etc. Seus membros partilham um certo número de modos de vida, de normas etc. Pode-se perguntar se a comunidade discursiva não deve incluir nada além dos produtores de textos ou se ela se estende àqueles que participam de sua elaboração ou de sua difusão. A problemática da comunidade discursiva tornou-se, a partir dos anos 1990, um espaço de pesquisa particularmente ativo, mas ela deve ser especificada por considerar a diversidade de tipos de discurso.
imbricação de uma certa configuração textual e do modo de existência de um conjunto definido de
indivíduos. Fenômeno de enlaçamento recíproco: a comunidade é consolidada e legitimada pelos
discursos que são o produto dessa comunidade. É a questão da mediação, dos intermediários, que é,
assim, introduzida: os relatórios das organizações internacionais têm uma importância global –
pretender falar dos problemas do conjunto da humanidade -, mas eles são elaborados localmente, em
lugares institucionais restritos que não se apagam em sua produção, que a elaboram mediante a
maneira de viver de agentes que não têm nada de mediadores transparentes. Nessa perspectiva, todo
estudo de enunciados que se interroga sobre seu modo de emergência, de circulação e de consumo,
sem considerar o funcionamento dos grupos que os produzem e os administram, só pode ser redutor.
Os relatórios das organizações internacionais não são desses gêneros de discurso que ninguém
leria e cuja existência seria imposta por obrigações de ordem jurídica (como esses regulamentos ou
essas ordens afixadas nos cantos das fábricas); na verdade, eles são lidos pelos especialistas (e não
pelo conjunto da humanidade...), capazes de extrair deles os conteúdos implícitos, a partir de índices
de ordens variadas (que vão da apresentação material aos elementos “doutrinários”). No que diz
respeito à extração de implícitos, pode-se distinguir três grandes grupos de textos:
- os implícitos extraídos das interações verbais ordinárias (“Já é tarde”, querendo dizer, por
exemplo, “Você deve ir embora”);
- os implícitos que podem ser chamados de enigmáticos, ou seja, aqueles que se inscrevem no
que chamamos de um “quadro hermenêutico”: interpretação de textos literários, religiosos,
filosóficos... Trata-se, sobretudo, de textos que relevam dos discursos constituintes, os quais
somente os hermeneutas podem ler em sua totalidade;
- os implícitos para especialistas: um relatório de uma organização internacional ou um
relatório de defesa de tese, por exemplo, são compreendidos pelos leitores que sabem “ler
nas entrelinhas”. Os relatórios das organizações internacionais têm como público alvo
aqueles que têm o poder de decisão ou os conselheiros políticos ou econômicos, os
funcionários públicos internacionais e, obviamente, aqueles que participam das organizações
internacionais de mundos que lhes são conexos.
A este último tipo de implícito, relaciona-se tipicamente um fenômeno de “duplo endereço”,
uma vez que dois públicos são visados simultaneamente. O público oficial dos relatórios das
organizações internacionais (aquele da cena de enunciação construída pelo texto) é todo homem ou
mulher de boa vontade, todo membro da humanidade que compreende a língua na qual o relatório é
escrito. Mas o conjunto efetivo de leitores visados é aquele dos especialistas, para quem esses textos
não fazem sentido apenas pelo seu conteúdo, mas também pela sua relação a um intertexto (os
relatórios anteriores do mesmo gênero ou textos de outros gêneros) e em função do saber de que eles
dispõem sobre as relações de força no mundo ou no interior das organizações internacionais. Para
esses leitores especialistas, os relatórios das organizações internacionais são fontes de informação
que podem ser úteis por diversas razões: para tomar uma decisão, para prever certas evoluções, para
redigir um outro relatório etc.
Por definição, esse gênero de discurso cultiva relações complexas com a posição de autor.
Consideremos o “Relatório mundial sobre o desenvolvimento humano 2000”, publicado pelas
Nações Unidas. Prestemos atenção à interessante ambigüidade do título: pode se ler “mundial” tanto
em termos de genitivo subjetivo quando de genitivo objetivo: um relatório que se sustenta no
mundo/um relatório que é feito pelo mundo. Como “o mundo”, enquanto tal, não pode falar, é a
ONU que fala em seu nome. Pode-se reconhecer aqui o estatuto singular da ONU, a qual é,
supostamente, a expressão da Humanidade, do mundo, o qual se auto-analisa numa reflexividade que
é cheia de muitos paradoxos.
O texto desse relatório apresenta dois níveis de autoria: a) um “prefácio” assinado por Mark
Malloch Brown, o presidente; b) o relatório propriamente dito, que é, por definição, anônimo e
atribuído à ONU, considerada enquanto coletividade indivisível. O contraste entre os dois planos é
marcado lingüisticamente pela passagem de um texto enunciado na primeira pessoa eu para um texto
onde o par eu-tu está, metodicamente, ausente. Mas o próprio relatório estabelece a relação entre o
Texto, em sua grandeza, sem autor, e as instituições empíricas que o produziram. Realmente, ao final
do prefácio, aparece um quadro com a lista dos “Membros da equipe encarregada da elaboração do
relatório”; lista que, entre outras funções, visa a mostrar, pela diversidade étnica dos sobrenomes,
que a Humanidade é representada em sua diversidade nesse relatório: “Philip Alston, Sudhir Anand,
Abdullahi A. An Na’im, Radhika Coomaraswamy, Meghnad Desai….“.
Nesse prefácio, encontram-se também advertências que parecem ter uma dupla função:
«Como todas as edições anteriores, esse Relatório Mundial sobre o desenvolvimento humano
se caracteriza pela sua total independência de espírito e pela ousadia de seu pensamento”
(Prefácio, p.iii).
«As análises e recomendações expressas neste relatório não refletem necessariamente as
idéias do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento, nem de seu conselho
administrativo ou de seus Estados membros” (Prefácio, p.iv).
Num nível imediato, pode-se ver aí uma simples precaução; num segundo nível, pode-se ver
a vontade de legitimar esse texto, não simplesmente como a emanação de uma organização, mas
como se fosse inspirado por um Espírito, com letra maiúscula, livre como todo espírito verdadeiro,
acima das instituições. Autorizando-se dessa forma, o texto deseja atribuir a si mesmo um sentido
mais nobre. Acrescenta-se aqui o processo de legitimação dos locutores dos discursos constituintes.
O Relatório do Banco mundial pretende, dessa maneira, não ressaltar as intenções comunicativas
ordinárias: seu texto não tem autor, no sentido usual. A comissão que o elaborou, a exemplo dos
concílios da Igreja, simplesmente deixou que alguma transcendência falasse por meio dela.
Uma outra característica desse gênero de discurso é o “tom” bastante particular de sua
enunciação, que o faz passar facilmente por “desagradável”, “pesado”, típico da “língua de
madeira”, para dizer tudo. Esse tom está relacionado, sobretudo, à ausência de marcas de interação e
de modalizações avaliativas, ao apagamento de referências reflexivas às instâncias de enunciação, a
um uso da língua que recusa toda estetização. Traços típicos de um ethos bem caracterizado.
Convém lembrar que o ethos, a partir da retórica aristotélica, é a imagem que o destinatário constrói
do locutor através da maneira que este se exprime7; trata-se de uma representação elaborada pelo
discurso, mas que se apóia em estereótipos historicamente especificados que preexistem ao discurso.
Na verdade, a legitimação dos discursos não passa somente pela articulação dos conteúdos; ela é
sustentada por um enunciador “fiador”, cuja “corporalidade”, mais ou menos imprecisa, é construída
no próprio movimento da leitura. As “idéias” se apresentam através de uma maneira de dizer que é
também uma maneira de ser, associadas às representações e normas de “disciplina” do corpo na
sociedade: existe um “mundo ético”, um universo de comportamentos estereotipados, correntemente
associados à burocracia sobre o qual se destaca cada uma das enunciações que emanam das
organizações internacionais e que esses textos confirmam ou infirmam.
Este ethos não pode estar dissociado de certo “código linguageiro”8, ou seja, da maneira
específica que têm os gêneros da ONU de investir na diversidade das línguas naturais. Esses textos,
7 Sobre essa noção, ver Amossy ed. (1999)8 Sobre essa noção, ver Maingeuenau (1993 : 101 e seguintes).
na verdade, não se desenvolvem na compacidade de uma língua, mas através de uma “interlíngua”,
um espaço de confronto entre as variedades linguageiras: variedades “internas” (usos de determinada
profissão, níveis de linguagem, dialetos...) ou variedades “externas” (idiomas “estrangeiros”)9.
Distinção, além de tudo, relativa, na medida em que a distância entre língua “estrangeira” e “não
estrangeira” não é fixa (para um europeu letrado, o latim, durante muito tempo, não era uma língua
“estrangeira”, como é o caso do inglês, para muitos funcionários públicos internacionais). Nessa
noção de “código linguageiro”, associam-se as acepções10 de sistema semiótico que permite a
comunicação e de código prescritivo: o código linguageiro que mobiliza o discurso é, na verdade,
aquele por meio do qual o discurso deseja que se deva enunciar, o único legítimo em consideração
ao universo de sentido que ele instaura. É compreensível que os discursos constituintes mantenham,
assim, uma relação essencial com a interlíngua: a partir do momento que se opera sobre a fronteira
do dizível e do indizível, a questão da língua se torna crucial, o que também é verdade a respeito de
todo enunciado que quer ter uma autoridade influente, que pretende se inscrever em e produzir fatos.
Os relatórios das organizações internacionais são gêneros de textos que, certamente, são
escritos em francês, em inglês ou em outro idioma, mas, juridicamente, não são escritos nem em
francês, nem em inglês, nem em nenhuma língua natural, e sim na convertibilidade generalizada dos
diversos idiomas da humanidade. Daí uma impressão bastante peculiar para os leitores: o texto é
escrito em um idioma particular, mas ele lhes parece distante. De certo ponto de vista, ele é escrito
apenas no “código linguageiro” da ONU, o qual se caracteriza por uma pretensão ao apagamento de
especificidades, sejam elas culturais ou lingüísticas, como o manifesta a diversidade étnica da
comissão de redação.
O ethos “neutro” não é, portanto, o mesmo quando se trata de um texto jurídico, de um texto
científico, de um texto da ONU etc. O código linguageiro de um idioma sem particularidades
confere ao ethos distanciado dos enunciadores dos relatórios uma pureza extraordinária, aquela de
9 O termo “interlíngua” corresponde a duas noções bastante diferentes em lingüística. Para as teorias de ensino de línguas estrangeiras, ele designa a língua intermediária, utilizada transitoriamente pelo aprendiz, que mistura língua de partida e língua de chegada. Mas aqui “interlíngua” é considerado como um sentido totalmente diferente (Maingueneau, 1993 :104) ; trata-se de um equivalente de «intertexto» aplicado às variedades lingüísticas. “Interlíngua” designa, assim, o conjunto de línguas e de variedades no interior das línguas que são acessíveis para um locutor que ocupa determinada posição na sociedade. A interlíngua inclui também as línguas “mortas”, por exemplo, o latim ou o aramaico. Para todo texto que pretende de fato fazer sentido, os locutores são obrigados a tomar consciência dos recursos que a interlíngua lhes oferece (sobre esses conceitos de “código linguageiro” e de “interlíngua”: (Maingueneau (1993 : capítulo5).
10 Em lingüística, fala-se de «acepções» quando as diversas significações de uma unidade lexical são próximas, ou seja, quando há polissemia. Se essas diversas significações são muito distantes, fala-se de homonímia (por exemplo, para “manga”, parte da vestimenta, e “manga”, fruta).
um mediador transparente entre a ONU e a humanidade que lhe dá delegação. A cada vez que é bem
sucedida, essa pureza vem confirmar a instância da enunciação que a produz, segundo um processo
de enlaçamento, de sustentação recíproca entre enunciado e enunciação: o mundo que configura a
enunciação dos relatórios das organizações internacionais é um mundo homogêneo, indiferente às
variações étnicas, geográficas, e integralmente acessível aos especialistas; são as propriedades de
certa maneira materializadas nessa enunciação neutralizada.
Nada disso acontece sem alguma incidência sobre o estatuto do enunciador. Os relatórios das
organizações internacionais são escritos em um idioma que funciona de maneira, pode-se dizer,
restrita, ao explorar apenas um número limitado de suas possibilidades sintáticas e semânticas,
projetando, assim, a figura do enunciador “reservado”, cuja singularidade foi banida. Mas a única
coisa evidente nisso tudo é a pretensão associada a esse discurso; para o mundo exterior, esse código
linguageiro é facilmente identificável como um discurso de especialidade entre muitos outros: o
francês (o inglês, o chinês, o russo...) das organizações internacionais. Chamaremos a atenção, aqui,
para o interesse da noção de comunidade discursiva translinguageira, introduzida por J-C Beacco
(1992) para designar essas comunidades internacionais onde a comunicação se efetua geralmente em
várias línguas naturais: comunidades científicas que se reúnem nos congressos internacionais,
empresas multinacionais, organizações internacionais (UNESCO, Organização das Nações
Unidas...), cujas línguas oficiais de trabalho são múltiplas. Essas comunidades surgem como lugares
nos quais os discursos são produzidos através dos mesmos gêneros, sendo que a única variável
visível parece ser, nesse caso, a língua utilizada.
III
Teriam esses relatórios das organizações internacionais relação com os gêneros que relevam de
um novo discurso constituinte? Para que se tratasse de discurso constituinte, seria necessário que os
relatórios não relevassem do discurso político, no sentido habitual do termo. O discurso político, na
verdade, não é um discurso constituinte, mas um discurso que é mediador entre os discursos
constituintes e a doxa, o que explica as relações bastante ambíguas que ele não pode deixar de
estabelecer com os meios de comunicação, tanto hoje em dia como na época da democracia grega.
Cada posicionamento no campo político se opõe a seus concorrentes, apoiando-se, em função de sua
identidade, em tais ou tais discursos constituintes: os discursos tecnocráticos se apóiam
principalmente nas ciências econômicas; os discursos fundamentalistas, no discurso religioso; os
discursos comunistas se apóiam no discurso filosófico... Não se pode, portanto, considerar o discurso
das organizações internacionais como se relevasse do discurso político: ele não se opõe a outros em
um mesmo campo, a partir do momento que ele se beneficia, por definição, de um monopólio
enunciativo. Ele implica uma cena de enunciação bastante notável, na qual a Humanidade é
representada por uma instituição que se dirige aos homens, considerados em sua diversidade. O
discurso que pretende dizer o Universal pela boca de um Enunciador universal pode se imaginar no
direito de exceder os limites do político. É o que se pode observar desde as primeiras linhas do
“prefácio” do relatório mundial sobre o desenvolvimento humano 2000, da ONU, que se apresenta,
de maneira indireta, como diferente do discurso político:
« A luta pelos direitos do homem é, desde sempre, parte integrante do mandato da ONU : é o que
enunciam, ao mesmo tempo, a Carta das Nações Unidas e a declaração universal dos direitos do
homem. Entretanto, durante a guerra fria, os debates sérios sobre as relações entre o conceito e a
noção de desenvolvimento foram, frequentemente, falseados de maneira excessiva pelo discurso
político12” (página iii)
Mas, se o discurso das organizações internacionais não releva, propriamente falando, do
discurso político, deveríamos, por isso, ver nele um discurso constituinte? A resposta a essa questão
não é simples. Se considerarmos a pretensão enunciativa desse discurso, tal como ela surge de suas
modalidades de enunciação, ele é constituinte pela própria maneira como se institui. Mas, se
considerarmos as propriedades dos discursos constituintes, então podemos ser céticos. O Absoluto,
que um tal discurso poderia reclamar para si, lhe faz falta: não basta que o conjunto dos governos
tenha representantes legítimos, para garantir uma relação com um Absoluto, da qual
posicionamentos concorrentes querem se apropriar, ou com um discurso do qual são detentores uma
Tradição, um conjunto de textos consagrados, lidos por hermeneutas autorizados. Parece-me, antes,
que se estabelece uma relação com um discurso que seria o simulacro de um discurso constituinte. O
fato de que os textos das organizações internacionais sejam produzidos por uma instituição que se
coloca acima de toda instituição política e possui um monopólio enunciativo permite produzir um
simulacro de universalidade fundada em um Absoluto. Em nome da posição singular que as
12 O destaque em itálico é nosso.
organizações internacionais ocupam no espaço das produções verbais, seu discurso não pode
funcionar como um discurso político, no sentido habitual do termo, mas ele não alcança por isso o
estatuto de discurso constituinte. Para que ele tivesse acesso a tal estatuto, seria necessário que ele
fosse o equivalente do mito nas sociedades primitivas, o que é – ao menos no estado atual das coisas
– incompatível com o funcionamento das sociedades complexas contemporâneas.
Esse caráter de «simulacro» se encontra em relação ambígua com seu próprio campo. Os
discursos constituintes, conforme se viu, supõem a existência de espaços conflituosos, nos quais
cada “posicionamento” se define em relação aos outros. O que se traduz, na superfície, em
numerosas polêmicas. No caso dos textos produzidos pelas organizações internacionais, há também
rivalidades, segundo as quais cada organização procura impor sua própria concepção do
“desenvolvimento” ou do “progresso”; mas essas lutas são condenadas a permanecer na sombra, elas
são compreensíveis apenas para os especialistas. Torná-las visíveis seria arruinar a própria
legitimidade dessas instituições, submetidas, dessa maneira, a uma “dupla restrição”: é necessário
distinguir-se para ter uma identidade; não se deve distinguir-se, para falar de maneira autorizada,
para ser a própria “Autoridade”. De fato, nessas modalidades de elaboração, um relatório das
organizações internacionais não difere dos relatórios redigidos por aparelhos como os partidos
políticos ou os sindicatos. Trata-se de textos que servem de plano de orientação para um grupo
reunido em torno de um projeto de ordem ideológica e que resultam de negociações difíceis entre
diferentes posições. Nesses gêneros de discurso, produz-se também um distanciamento entre os
redatores empíricos e a posição de Autor, a qual é atribuída a uma instância transcendente que funda
a instituição (o partido X agindo em nome do Socialismo, da Liberdade, da França, dos
Trabalhadores...). Mas, para que o discurso das organizações internacionais seja constituinte, ele
deve se colocar não como discurso de compromisso entre os pontos de vista, mas como fundado no
Absoluto; não como produzido por funcionários públicos e especialistas, mas por homens e mulheres
que se apóiam nesse Absoluto. No entanto, não pode ser o caso. Restam apenas os efeitos de
simulacro, a legitimação desse discurso oscilando entre o filosófico, o religioso e o científico: de um
lado, a remissão a uma filosofia/religião da humanidade que não pode ser muito vaga; de outro, a
remissão a saberes onde a economia ocupa quase todo o espaço.
ANÁLISE DE UM GÊNERO ACADÊMICO*
Em geral, há um consenso entre analistas do discurso de que a noção de gênero
ocupa papel central na disciplina da qual se ocupam. Refletir sobre lugares sociais sem
levar em conta os textos – orais ou escritos – que tais lugares tornam possíveis (redução
social), ou refletir sobre os textos sem levar em conta os lugares sociais aos quais eles
pertencem (redução lingüística), poderia significar que o discurso não está sendo abordado
a partir do ponto de vista da análise do discurso. Como essa noção de gênero discursivo é,
em geral, utilizada para se referir a fenômenos heterogêneos, para começar, devo insistir na
diferença entre gêneros conversacionais e gêneros instituídos; em seguida, estudarei um
gênero instituído típico: o relatório de uma sessão de defesa de tese, tal como é praticada na
França. Esse gênero possui várias propriedades interessantes para a análise do discurso, não
somente porque esse tipo de relatório é fortemente associado a uma esfera bastante familiar
aos acadêmicos, mas também porque ele implica uma configuração original de autoria e
estratégias bastante interessantes de interpretação.
Gêneros discursivos
É amplamente conhecido que dois tipos de classificações de gêneros são utilizados:
por um lado, aquelas empregadas pelos falantes comuns, por outro lado, aquelas elaboradas
pelos acadêmicos. O primeiro tipo supre as necessidades do falante envolvido na produção,
armazenamento ou consumo de certos tipos de textos: o modo como um livreiro classifica
livros não é o mesmo que o de um leitor ou o de um professor de literatura. O segundo tipo
de classificações, especialmente aquele feito pelos analistas do discurso, é elaborado por
acadêmicos que utilizam critérios bastante explícitos. No entanto, mesmo em taxonomias
sistemáticas, há uma grande variedade de tipologias textuais – e, conseqüentemente, uma
vasta variedade de tipologias de tipologias – uma vez que o critério de classificação pode
ser variado (Petitjean, 1989): critérios lingüísticos, critérios funcionais, critérios
situacionais (isto é, as circunstâncias em que se dão os atos de fala), critérios “discursivos”
(isto é, critérios que associam características lingüísticas, funcionais ou situacionais: por
* Este texto foi publicado em Discourse studies, 4, 3, agosto de 2002, p.319-342.
exemplo, aquilo a que denominamos “popularização” da ciência implica procedimentos
lingüísticos específicos, propósitos didáticos específicos, lugares de produção, de
circulação e de consumo específicos para os textos).
Na análise do discurso falado que se faz na França, a categoria “gênero discursivo”
(alguns preferem falar de “gênero textual”) é definida, em geral, por meio de um critério
situacional: refere-se a dispositivos de comunicação sócio-historicamente condicionados
que estão em constante mudança e aos quais são freqüentemente associadas metáforas
como “contrato”, “ritual”, “jogo”... Embora a noção de gênero venha dos antigos poetas e
retóricos gregos, tal concepção de gênero é bastante recente. Há algumas décadas,
principalmente por influência da etnografia da comunicação e das idéias de M. Bakhtin, é
uma noção que tem sido utilizada para descrever uma multiplicidade de enunciados
produzidos na sociedade. Jornais, programas de auditório televisivos, transações em lojas
etc., são considerados gêneros. Esses gêneros podem ser indefinidamente diversificados, de
acordo com o grau de precisão que o analista do discurso queira obter, e são caracterizados
de acordo com critérios tais como papel, finalidade, meio, organização textual... A origem
desses modelos é amplamente reconhecida como sendo o modelo de FALA de D. Hymes
(1967, 1972).
A fim de levar em conta toda essa diversidade, distingui, anteriormente
(Maingueneau 1999), três regimes para a questão dos gêneros:
Gêneros autorais, que são impostos pelo autor, algumas vezes pelo editor. Com
indicações “paratextuais”, como “resenha”, “reflexão”, “aforismo” etc., o autor
reivindica, a partir de uma decisão unilateral (não negociada), a definição parcial da
estrutura da sua atividade discursiva. Esses gêneros autorais estão presentes
principalmente em certos tipos de discurso: discursos literários ou filosóficos, é
claro, mas também os religiosos, políticos ou jornalísticos;
Gêneros rotineiros, que são os gêneros favoritos dos analistas do discurso: revistas,
entrevistas, palestras, negociações comerciais etc. Os papéis de cada um de seus
integrantes são definidos a priori e, em geral, mantêm-se estáveis durante o
processo de comunicação. Os falantes entram em uma estrutura pré-estabelecida
que, em geral, não é modificada. Esses gêneros rotineiros são os que melhor
correspondem à definição de gênero discursivo como um dispositivo de
comunicação social e historicamente condicionado. Seus parâmetros resultam da
estabilização de restrições comunicacionais relativas a situações sociais específicas.
Seria inútil perguntar-se quem inventou esse ou aquele gênero rotineiro: sua
existência resulta de práticas sociais. Um historiador pode dizer quem publicou o
primeiro jornal ou a primeira prescrição médica, mas isso não interessa muito à
análise do discurso, e muito menos a quem utiliza tais gêneros. Eles podem ser
distribuídos em uma escala: em um extremo, gêneros que são ritualizados, o que
deixa muito pouco espaço de manobras para os falantes (gêneros judiciários, por
exemplo); na outra, gêneros que abrem possibilidades para variação pessoal.
Gêneros conversacionais da conversação “ordinária”, que não estão fortemente
relacionados a lugares e papéis institucionais ou a rotinas estabilizadas. A
organização textual e os conteúdos desses gêneros são, geralmente, confusos: sua
estrutura modifica-se constantemente durante a interação. Claro que serão
submetidos a fortes restrições, mas elas são, predominantemente locais. Enquanto
nos gêneros rotineiros as restrições são predominantemente globais e verticais, isto
é, impostas pela “posição”, nos gêneros conversacionais prevalecem restrições
horizontais, que são negociadas pelos parceiros. De fato, não é fácil dividir tais
gêneros em entidades distintas. Usando as palavras de E. Schegloff, eu diria que a
conversação é “aquela organização da fala que não está submetida a restrições
especificamente funcionais ou especificamente contextuais ou a práticas
especializadas de disposições convencionadas” (1999: 407); ao contrário, essa
forma da fala “é parcialmente especificável (e positivamente, não residualmente)
como um sistema distinto de troca verbal com referência à sua organização
distintiva de alternância de turnos” (1999:413).
Hoje, acredito que tal divisão dos gêneros em três regimes não é correta, embora
possa ser útil para fins didáticos. De fato, de um ponto de vista terminológico, o termo
“regime” pode nos levar a acreditar que conversações não são regimes, o que é
preocupante: é bem sabido que há um bom tempo esse termo tem sido usado para referir-se
a interações conversacionais (Coulmas ed., 1981). Isso põe um problema também de um
ponto de vista empírico: parece mais apropriado dizer que “gêneros autorais” são, de fato,
um tipo do que nomeei anteriormente “gêneros rotineiros”. Como resultado, acredito, como
grande parte dos especialistas, que seria melhor distinguir apenas dois regimes genéricos,
submetidos a regras bastante diferentes: gêneros conversacionais, por um lado, e
instituídos, por outro – uma categoria que recobre o que chamei anteriormente de “gêneros
rotineiros” e “gêneros autorais”. Obviamente, essa distinção entre gêneros instituídos e
conversacionais não é nítida: particularmente no caso de conversações ritualizadas, práticas
verbais com propriedades de ambos os regimes podem ser facilmente identificadas. Assim,
ambos os regimes podem estar juntos em um mesmo evento de fala57.
Gêneros instituídos não formam um conjunto homogêneo. Gêneros instituídos
monológicos, tanto orais quanto escritos, aqueles que não implicam interação imediata,
podem ser distribuídos em uma escala de acordo com a habilidade do falante de categorizar
sua estrutura comunicativa e, especialmente, de elaborar uma “cenografia” (Maingueneau,
1993, 1999). Cada gênero do discurso é associado a uma “cena genérica”, que atribui
papéis aos atores, prescreve o lugar e o momento adequados, o suporte, a superestrutura
textual para textos de um gênero particular. Mas, para muitos outros gêneros instituídos,
um outro tipo de cena está implicado: a “cenografia”, que resulta de uma escolha dos
produtores do discurso. Grosso modo, a cena genérica é parte de um contexto, é a própria
cena que o gênero prescreve, enquanto que a cenografia é produzida pelo texto. Portanto,
dois textos que pertencem à mesma cena genérica podem encenar diferentes cenografias.
Uma pregação em uma igreja, por exemplo, pode ser encenada por meio de uma cenografia
profética, uma cenografia meditativa, e assim por diante. No primeiro caso, o orador falará
da maneira como falam os profetas na Bíblia e dará um papel correspondente a seus
destinatários; no segundo caso, ele fingirá que está falando consigo mesmo.
Nem todos os textos possuem cenografia. Como regra, gêneros administrativos, por
exemplo, somente obedecem a normas de suas cenas genéricas. Por sua vez, a publicidade
tem que escolher as cenografias de acordo com estratégias específicas do marketing. Por
exemplo, anúncios de sapatos podem usar uma grande variedade de estratégias. Uma
57 Um problema muito importante (e também clássico) é saber se uma conversação ordinária está fora das categorias dos gêneros. J. Swales, por exemplo, afirma que se trata de “uma ‘forma de vida’ pré-genérica” (Swales, 1990: 59). Outros distinguem vários registros na conversação ordinária, não gêneros, no sentido estrito. De qualquer modo, se “gêneros” são aplicáveis à conversação, não pode ser do mesmo modo como no caso dos gêneros instituídos. Uma discussão desse tema não cabe nesse artigo.
mulher em seu quarto fazendo uma ligação para sua amiga, um jovem garoto descrevendo
seus novos sapatos para sua mãe, etc.
Levando em conta a diversidade de gêneros instituídos a partir deste ponto de vista,
devemos distinguir vários graus:
Gêneros de primeiro grau: gêneros instituídos que não estão submetidos à variação,
ou apenas a uma pequena variação; seus falantes obedecem a fórmulas e esquemas
rigorosamente pré-estabelecidos: listas telefônicas, certidões de nascimento, etc. De
fato, não podemos realmente falar em “autores” de tais textos.
Gêneros de segundo grau: gêneros nos quais os falantes precisam produzir
enunciados singulares ao mesmo tempo em que obedecem a um roteiro bastante
rígido: notícias na TV, correspondência de negócios, etc.
Gêneros de terceiro grau: gêneros que toleram variações, o que dá ao falante a
possibilidade de apelar para uma cenografia original. Um guia de viagens, por
exemplo, pode ser apresentado na forma de uma conversa entre amigos, de um
romance romântico, etc. Em 1988, durante sua segunda campanha presidencial,
François Mitterand publicou seu programa de governo na forma de uma carta
pessoal endereçada ao povo francês (“Lettre à tous les Français”). Esse programa
político foi apresentado por meio de uma cenografia inesperada, mas ele pertencia
claramente àquele gênero, obedecia às suas regras (papéis, tamanho, conteúdo...)58.
Gêneros de quarto grau: gêneros que requerem a invenção de cenários de fala:
propagandas, canções folclóricas, programas de entretenimento na TV... Se alguém
sabe que um texto é uma propaganda de um creme de beleza, isso não é suficiente
para saber por meio de qual cenografia ele será apresentado. É claro que muitas
cenografias são estereotípicas, mas a lógica de tais gêneros exige das pessoas a
eterna inovação. No entanto, tais inovações não devem modificar as estruturas
impostas pelo gênero, nem questioná-las.
Gêneros de quinto grau: gêneros para os quais a noção de gênero em si já põe um
problema. Eles não possuem um formato pré-estabelecido, mas zonas genéricas
sub-determinadas nas quais uma única pessoa, um autor com uma experiência
58 Sobre esse texto, ver Maingueneau (1998).
individual, auto-categoriza sua própria produção verbal. Esses são os tipos de
gêneros aos quais eu me referia anteriormente, quando defini gêneros cujos nomes
são atribuídos por seus autores: “resenha”, “fantasia”, “reflexão”, “ficção”... Esses
autores têm em mãos uma vasta gama de possibilidades para elaborar suas próprias
categorias. Rótulos genéricos, como “jornais”, “talk show”, “palestra”, etc. são
atribuídos a atividades que existem independentemente de tais rótulos (na verdade,
muitas práticas discursivas não têm nomes...); ao contrário, se um autor religioso,
um político ou um moralista chamar seu texto de “meditação”, de “utopia”, de
“relatório”, etc., esse rótulo contribui profundamente para a maneira como tal texto
será interpretado. Aqui, o nome não pode ser substituído por outro nome, não se
trata de um rótulo meramente convencional que permite identificar uma prática
verbal: é a conseqüência de uma decisão pessoal, o vestígio de um ato de
posicionamento no interior de um determinado campo, geralmente inscrito na
memória coletiva. Mas esse rótulo que um autor pode atribuir a seu texto é apenas
uma parte de sua realidade comunicativa: quando um autor chama seu trabalho de
“fantástico”, essa categoria revela muito pouco do processo comunicativo efetivo
que está envolvido. Um rótulo genérico como “revista” refere-se aos parâmetros
gerais deste gênero de discurso, mas o rótulo “fantasia” atribuído por um poeta ao
seu trabalho não se refere à vasta gama de restrições que caracterizam publicações
poéticas em uma dada sociedade.
Gêneros de quarto e quinto graus são em muitos aspectos similares: ambos
precisam construir cenografias estimulantes para convencer suas audiências, dão sentido à
sua própria atividade discursiva e propõem uma estrutura que deve estar em harmonia com
o próprio conteúdo de seu enunciado. No entanto, enquanto os gêneros de quarto grau, por
exemplo, são impostos por obrigações sociais, aparecendo em decorrência de restrições
sociais precisas, os gêneros de quinto grau dependem do modo pelo qual um autor coloca
sua identidade em jogo. Portanto, escolher uma categoria genérica é mais do que uma
estratégia retórica: enquanto textos publicitários têm como objetivo um determinado efeito
(essencialmente fazer pessoas comprar produtos) e estão sempre buscando a melhor forma
de alcançar este resultado, um autor religioso ou um romancista não podem realmente
definir qual o seu objetivo quando estão publicando o seu texto: “sobram , ainda, alguns
gêneros para os quais a finalidade, como critério primeiro, é inadequada”, que “desafiam as
atribuições de propósitos comunicativos” (Swales, 1990: 47).
Um gênero acadêmico
Neste artigo, não poderei analisar exemplos de todos os gêneros instituídos.
Estudarei apenas um gênero que pertence tipicamente aos gêneros de segundo grau: o
relatório de sessões de defesa de tese na França (RSDT). Apesar do crescimento da
internacionalização da escolaridade em muitos outros aspectos, esse gênero está ainda
submetido a critérios estritamente nacionais.
Os acadêmicos que praticam esse gênero buscam cumprir suas normas: não
pretendem modificar as convicções de uma audiência, ou moldar sua identidade por meio
de seus enunciados; apenas querem mostrar que são membros legítimos do mundo
acadêmico, que os legitima fazendo-os ser parte da banca da qual participam. Esse gênero
implica “estratégias de tentativa de perpetuação e de justificativa para manter, dar suporte e
reproduzir identidades” (Van Leuwen and Wodak, 1999: 93), mas, no caso, essa
“identidade” é a de uma comunidade que necessita regular a entrada de “imigrantes” e
checar se eles trabalham de acordo com as normas.
O RSDT está fortemente associado a tradições. Os ritos de uma defesa de tese
diferem de uma disciplina para outra, de um país para outro e, em certos países (na Suíça,
por exemplo), de uma região para outra. Em muitos casos, não há relatórios depois da
sessão de defesa. Neste artigo, vou considerar apenas relatórios de teses em humanidades
(incluindo ciências sociais e humanas) que são defendidas na França; relatórios de
matemática ou física são bem diferentes. No campo das humanidades, o RSDT é escrito
depois da sessão de defesa, e deve resumir as avaliações dos membros da banca. O texto é
destinado a fazer parte da documentação que pesquisadores apresentam quando querem ser
contratados por uma instituição acadêmica ou ser promovidos.
Este gênero é interessante por várias razões. Ele desempenha papel central na vida
dos pesquisadores (inclusive na dos analistas do discurso...): no decorrer de suas carreiras,
terão que defender uma tese, e a maioria deles terá que elaborar um relatório desse tipo
quando participarem de bancas ou comissões. Além desta razão “afetiva”, o RSDT é
interessante também de uma perspectiva pragmática, se levarmos em conta,
particularmente, as formas de subjetividade enunciativa que ele implica, o modo como
restringe sua interpretação, suas estratégias de abrandamento das avaliações negativas e
suas formas originais de discurso relatado. Mas falta espaço para lidarmos com todos esses
aspectos.
Especificações do gênero
O RSDT é identificado pelo contexto institucional no qual aparece. É, tipicamente,
um gênero discursivo estabilizado, em decorrência de uma atividade social, um gênero
cujas regras, que são parte da competência comunicativa dos acadêmicos franceses, são
aprendidas por meio de sua prática. As pessoas que escrevem tais textos não têm
treinamento específico, não podem recorrer a um modelo que possam copiar, mas colocam
em ação regras tácitas de produção. Como um gênero instituído de segundo grau, o RSDT é
altamente ritualizado, o que é normal, se considerarmos suas importantes conseqüências,
que podem ser até mesmo jurídicas, para os membros da comunidade acadêmica. Diria que
o RSDT é o gênero chave de uma “comunidade discursiva” (Maingueneau, 1984: 14),
comunidade que é organizada em torno da produção de textos específicos59. J.-C. Beacco
(1999: 14) propõe a distinção de vários tipos de comunidades discursivas: a) comunidades
discursivas baseadas na economia (companhias...), nas quais nem todos têm permissão para
produzir certos gêneros, e a distinção entre comunicação interna e externa é clara; b)
comunidades discursivas ideológicas, baseadas na produção de valores, crenças... (partidos
políticos, igrejas, associações...) que produzem um grande número de textos militantes; c)
comunidades discursivas midiáticas, que difundem e confrontam opiniões e valores e
organizam a circulação de textos. Estão voltadas para o mundo externo e compartilham de
muitas propriedades das comunidades ideológicas e econômicas; d) comunidades
discursivas baseadas em atividades técnicas e científicas, que produzem conhecimentos 59 Esse conceito de “comunidade discursiva” difere um pouco do conceito de “comunidade de discurso” proposto por Swales (1990). Concordo com boa parte dos critérios que ele utiliza para definir “comunidades de discurso”, mas acredito que falar em “um conjunto de metas coletivas comuns” não é suficiente para caracterizar “comunidades discursivas”, cuja meta principal é produzir textos. Assim, de maneira aproximada, posso dizer que a minha “comunidade discursiva” é um subconjunto da “comunidade de discurso” de Swales. Desta perspectiva, o “Círculo de Estudos de Hong Kong” não seria uma “comunidade discursiva”.
(esse é o caso do RSDT). Nessas comunidades, os gêneros são, essencialmente, “fechados”
(Maingueneau 1992: 120).
O RSDT é um bom exemplo de gênero “fechado”. A oposição entre discursos
“fechado” e “aberto” está fundada na relação entre produtores e receptores de uma
determinada atividade discursiva. Em discursos fechados, produtores e receptores tendem a
coincidir, tanto quantitativa quanto qualitativamente. Esse é o caso da maioria dos escritos
científicos, cujo público é, de fato, composto por pessoas que produzem textos do mesmo
tipo. Nos discursos abertos, por sua vez, existe uma enorme diferença quantitativa e
qualitativa entre a população de produtores e a população de receptores. A esse respeito, os
casos de imprensa popular e de discurso político voltado para as massas são exemplares: a
população de produtores são grupos bastante restritos, com forte identidade, que se dirigem
a uma vasta população de receptores cuja caracterização social é, na maioria das vezes,
muito diferente da dos produtores. Nem todos os leitores (em particular, a comissão
convocadora) são autores de relatórios, uma vez que nem todos compõem bancas, embora
alguns deles as componham eventualmente. Esse caráter “fechado” do RSDT tem uma
conseqüência interessante, que será considerada mais adiante: como as pessoas que o
escrevem são as mesmas que o lêem, elas podem produzir um discurso codificado.
Como um gênero fechado, o RSDT é bastante particular, uma vez que sua função
principal é conferir o direito de entrar na comunidade de pesquisadores – portanto, a
comunidade de pessoas que podem redigir ou ler um RSDT. Quando alguém escreve um
relatório a favor de um candidato, quer dizer, indiretamente, que o candidato poderia
escrever um RSDT. De qualquer maneira, o fato em si de escrever um RSDT confere a
quem o escreve a possibilidade de mostrar-se digno o suficiente de ser membro da
comunidade acadêmica, e implica que ele é um especialista. Como afirma A. Diszak,
“entende-se que especialistas (...) devem combinar alta perícia em um campo com grande
conhecimento da linguagem para a exposição científica” (Duszak ed., 1997:25). Portanto, a
prática deste gênero não pode ser considerada uma tarefa meramente administrativa:
comunidades discursivas mantêm a si mesmas por meio da produção de textos, produção
que pressupõe a coesão da comunidade no interior da qual publicações de pesquisas – a
finalidade desta comunidade – são produzidas. Aqui, devemos pensar em termos de
“instituição discursiva” (Maingueneau, 1991: 169): o gênero é uma pequena “instituição”
verbal, mas, ao mesmo tempo, a instituição (no sentido comum da palavra) da qual este
gênero participa mantém a si mesma por meio dos gêneros que ela possibilita e que, de
alguma forma, tornam possível a própria instituição.
O RSDT pode ser analisado de uma perspectiva local, como iremos fazer, mas é
necessário que seja considerado, também, de uma perspectiva global: um relatório não é
algo insular, mas sim um nó em uma extensa rede: o mundo acadêmico como um todo, que
vem se tornando cada vez mais internacional. O acesso ao status de membro de uma banca
resulta de um convite feito por um “anfitrião” (o orientador da tese), o que pode criar um
comprometimento tanto para o “convidado” quanto para o “anfitrião”. Isso depende das
circunstâncias. Se alguém possui um “capital” considerável de reputação (isto é, se é um
acadêmico famoso), e se aceita participar de uma banca “inferior”, o colega que o convidou
terá com ele uma dívida de gratidão. Por outro lado, se alguém é convidado para fazer parte
de uma banca de prestígio, ficará em débito com o seu “anfitrião”. Como o RSDT circulará
em diversas comissões para ser comentado e servir de base para outros relatórios, haverá
um fenômeno de feed-back em relação à participação em bancas julgadoras: alguns
acadêmicos que têm a reputação de serem severos em seus julgamentos não serão tão
convidados quanto aqueles que têm a reputação de serem condescendentes. Passo a passo,
o mundo acadêmico como um todo é envolvido, sendo considerado como um vasto sistema
no qual a reputação é intercambiada. (Hagstrom, 1965).
Assim como qualquer outro gênero, o RSDT tem como intenção modificar a
situação da qual participa. Sua finalidade explícita é avaliar uma tese e, até certo ponto, o
desempenho do candidato durante uma sessão de defesa. Mas uma de suas finalidades
implícitas é contribuir para o gerenciamento do complexo sistema de relações entre os
membros do mundo acadêmico.
SESSÃO DE DEFESA E RELATÓRIO DE DEFESA
O RSDT deveria ser o vestígio de um outro discurso, um evento de discurso oral,
isto é, a sessão de defesa, que dura, geralmente, três ou quatro horas e deve ser realizada
diante de um público composto, principalmente, por amigos, colegas e parentes do
candidato. Na banca, há de quatro a cinco examinadores, que falam durante a sessão. A
sessão começa com uma exposição do candidato, seguida por interações entre o candidato e
cada membro da banca, algumas vezes entre os membros da banca. Apenas o público é
excluído da interação. Muito pouco disso permanece no RSDT. É claro que o relatório é
escrito depois da sessão, algumas vezes várias semanas depois, mas a razão pela qual o
RSDT é tão diferente da sessão é que esses dois gêneros têm dois status bastante distintos:
um é uma interação ritualizada, é um ato social de “investidura” acadêmica, o outro é um
texto feito para durar, um monumento, no sentido etimológico da palavra. Portanto,
podemos entender facilmente por que, em geral, comentários negativos ditos durante a
sessão são consideravelmente atenuados no RSDT. De fato, é de interesse dos membros da
banca, durante a sessão, valorizar sua face positiva às custas da face positiva do candidato:
mostrar sua capacidade crítica justifica sua presença na banca. Mas não é interessante fazer
o mesmo no RSDT: considerando as múltiplas relações entre os membros da comunidade
científica e o complexo sistema de trocas no qual estão todos envolvidos, a inscrição
irreversível de uma reprovação severa em um documento oficial pode voltar-se contra seu
autor.
No teatro, os espectadores percebem dois atos de comunicação simultâneos: um
entre o autor da peça e o espectador, o outro entre os atores. Em uma sessão de defesa, o
cenário é bem diferente: as interações entre os membros da banca são voltadas
indiretamente para o público. Em termos de “estrutura de participação” (Goffman, 1981), o
público é constituído de “extra-ouvintes” a quem não é dirigida a palavra, mas o falante
está consciente de sua presença e se comporta de acordo com isso. Clark e Carlson (1982)
falam de “participantes laterais” para se referirem a este tipo de cenário no qual o público
desempenha um papel, embora não tome parte na interação. Diferentemente dos “triálogos”
(Kerbrat-Orecchioni and Plantin eds., 1995) dos gêneros midiáticos, a sessão de defesa de
tese não tem nem produtores nem apresentadores: trata-se de um ritual no qual várias
pessoas comandadas pela instituição cooperam informalmente (isto é, sem nenhum
treinamento explícito); seguem regras jurídicas, usos tácitos da comunidade acadêmica à
qual pertencem e, também, máximas conversacionais.
Além disso, essa situação de “triálogo” é diferente daquelas de alguns programas de
TV ou rádio. (Charaudeau, 1991, Antona, 1995) nos quais espectadores silenciosos
representam um público invisível para o qual o programa é, na verdade, dirigido. Nas
cortes, não é o público, mas o acusado, o advogado, o jurado que desempenham o papel
principal, como fazem, em uma defesa de tese, o candidato e a banca. Como os membros
da banca pertencem à parte mais influente da comunidade acadêmica, como o orientador da
tese faz parte da banca, como as relações entre os examinadores são, geralmente,
ambivalentes e são desempenhadas em diferentes níveis (pessoal, científico, institucional),
como a avaliação da tese é um marco muito importante na carreira do candidato, as
interações, ainda que discretas, entre os membros da banca no decorrer da sessão são
fundamentais. Quando um examinador está envolvido em uma interação com o candidato,
suas intervenções são inevitavelmente direcionadas aos outros membros. Mas essa
abundância de sinais é lateral; apenas “os de dentro” – que conhecem o estado das relações
entre os membros da banca – são capazes de dar a eles seu verdadeiro sentido.
Nessas circunstâncias, o RSDT tem que ser radicalmente diferente da sessão de
defesa: o primeiro não pode ser o vestígio, nem mesmo algum tipo de resumo do segundo.
São gêneros independentes, assim como o são uma performance teatral e a sua resenha em
um jornal. Devem ser sublinhados os contrastes entre um gênero que é basicamente teatral
e um gênero narrativo que implica um distanciamento do cenário do evento discursivo
original. O RSDT é um texto feito para ser guardado nos arquivos, voltado a leitores que
não estiveram presentes na sessão de defesa.
Como em muitos gêneros administrativos, os autores do RSDT utilizam muitas
fórmulas estereotipadas e estruturas pré-estabelecidas que são consideradas “normas” de
um texto escrito (Gülich and Krafft, 1997: 242). Essas fórmulas desempenham um papel
central nos gêneros discursivos “fechados”, uma vez que são um tipo de código que
permite que o autor mostre que pertence à comunidade: “a estrutura é reconhecida
simplesmente porque ela é conhecida, porque ela é parte de um código ao qual se tem
acesso (como membro de um grupo ou como coordenador de um dicionário de idiomas)”
Assim, ao “reconhecer” a estrutura, pode-se “reconhecer seu autor como membro de sua
comunidade” (1997: 257). Não estudarei essas fórmulas estereotipadas neste artigo, mas
elas são um componente essencial deste gênero.
OS CONSTITUINTES DO GÊNERO
Vou apenas indicar algumas características do RSDT sem tentar propor um modelo
que seja válido para qualquer gênero do mesmo tipo.
Objetivo
A finalidade explícita do RSDT é a avaliação de uma tese e do desempenho do
candidato durante a sessão de defesa. Essa avaliação é exposta em um documento que
permite a outros representantes da instituição avaliar a aptidão do candidato para obter um
cargo no campo de pesquisas. Mas, como é comum nas ciências sociais, “o objetivo de
práticas sociais, ou de segmentos delas pode ser construído diferentemente nas diferentes
re-contextualizações desta prática (...) Elas são acrescentadas às atividades ou à seqüência
de atividades no discurso. E, por isso, elas são, com freqüência, tema de controvérsia e
debate” (Van Leuwen and Wodak, 1999 : 98). O problema foi identificado por Hymes
(1972) quando pensou sobre o componente “FINALIDADES” no seu modelo de FALA.
Esse é um aspecto da questão da diferença entre explícito e implícito, finalidade direta e
indireta.
Lugar
O lugar das sessões de defesa de tese é regido por restrições jurídicas: a sessão
precisa acontecer no território da universidade onde o orientador da tese trabalha, um
território que pode ser definido com base em critérios legais. Mas para o RSDT, a noção de
“lugar” é, inevitavelmente, mais abstrata: seu “lugar” não são os lugares empíricos onde é
escrito (os membros da banca podem escrever suas contribuições tanto na praia quanto em
seus escritórios), mas o lugar ao qual ele é destinado, o lugar onde ele é arquivado (como
regra, uma universidade ou alguma outra instituição de pesquisa). Outro aspecto
relacionado ao seu “lugar” diz respeito ao espaço no qual ele pode circular. Existe um
“lugar de nascimento” jurídico do RSDT, que mantém o documento e a gravação da sessão
de defesa em sua “memória” (de fato, em arquivos). O documento original pertence à
universidade e uma cópia é dada ao candidato (que não conhece com antecedência o
conteúdo do relatório sobre sua tese). Há, também, o espaço em que o relatório é usado
para avaliar o candidato: as várias comissões que terão que basear nele suas avaliações.
Tempo
A inscrição temporal do RSDT pode ser considerada de pontos de vista variados:
diferentemente de gêneros como notícias veiculadas pela mídia ou pela TV, não podemos
falar em “periodicidade” para o RSDT. Ele acontece diversas vezes ao ano (de fato, com
mais freqüência em alguns períodos do que em outros), mas não há intervalos pré-
estabelecidos entre duas ocorrências. Sua “iteratividade” pode ser apreendida de maneiras
diversas: pela universidade onde ocorre a sessão de defesa, pelo orientador da tese, pelo
candidato, pelos membros da banca. Para o candidato, o RSDT é um documento único (em
princípio, alguém defende apenas uma tese na sua vida, pelo menos na mesma disciplina);
para quem escreve o relatório (o orientador e os examinadores externos), trata-se de uma
prática reiterada: o orientador da tese será, a priori, orientador de outras teses, e durante
suas carreiras os membros da banca participarão de muitas outras bancas. No entanto,
alguns orientadores são muito solicitados, outros, muito pouco: isso dependerá da fama e
do poder do pesquisador, mas também da sua disposição para orientar estudantes. Já os
membros da banca vão de uma banca para a outra intercambiando seus papéis: o presidente
da banca (que pode não ser o orientador da tese) recebe o papel orientador, o orientador
recebe o papel de presidente, e assim por diante. Se, por exemplo, em uma apresentação
anterior, um membro de uma banca X tem seu aluno severamente criticado por um colega
Y, isso pode influenciar o comportamento de X se ele vier a ser membro de uma banca em
que o candidato é um orientando de Y. Qualquer membro do mundo acadêmico sabe disso,
e sabe que os outros sabem que ele sabe disso, e assim por diante: um caso clássico de
conhecimento mútuo que regula o sistema. Logicamente, um examinador será incitado a
escrever um relatório cauteloso se ele sabe que mais tarde precisará de um favor do
orientador da tese que ele está avaliando.
Saber aproximadamente quanto tempo é necessário para a realização de um gênero
é parte essencial da competência genérica. Nenhuma regra explícita determina o tamanho
que um RSDT deve ter, mas existem algumas normas, que resultam da negociação entre
várias restrições. Os autores de um RSDT devem produzir um texto suficientemente
informativo e preciso, que cumpra os propósitos do gênero, mas que não seja muito longo
(senão ele não será realmente lido pelos especialistas). Além disso, eles não querem gastar
muito tempo com isso: escrever um RSDT é considerado, em geral, uma tarefa
“enfadonha” e inevitável. Diferentemente da sessão de defesa, que é um ato social com
algum prestígio, escrever um relatório é uma obrigação burocrática que não valoriza seus
autores. Como um dos efeitos da necessidade de ajustar informatividade com o custo de
escrever e ler o relatório, uma norma tácita estabelece que cada membro da banca deve
escrever cerca de duas páginas.
Cada texto publicado é válido por um certo período, de acordo com o seu gênero:
uma revista mensal é válida por um mês, a Bíblia afirma ser eternamente válida, e assim
por diante. Como muitos documentos jurídicos, o RSDT não pode perder a validade. Essa é
uma das razões pelas quais os autores tendem a suavizar os julgamentos expressos durante
a sessão de defesa: eles sabem que o relatório não pode ser destruído ou modificado depois
de arquivado. Na verdade, essa restrição pode ser modalizada: um acadêmico que publicou
muitos artigos e livros tem pouco a temer de um RSDT, mas a situação é bem diferente
para quem está começando sua carreira. Não há dúvida de que um RSDT “ruim” pode ser
um empecilho, e isso explica porque a escrita de tal documento está submetida a um
controle rígido.
Apresentação do documento
O relatório é constituído de uma sucessão de folhas impressas (hoje, como regra,
com um processador de texto); pode ser curto (4 ou 5 páginas) ou longo (20 páginas, às
vezes mais). A maioria é constituída de cerca de 10 páginas. Algumas vezes, a disposição
material do texto não é perfeita (tinta desbotada, fontes ou espaçamentos heterogêneos...), o
que contrasta com a disposição perfeita esperada da tese do candidato. Isso é um efeito da
natureza dos dois gêneros. O candidato está em uma posição “inferior”, ele precisa propor
um objeto atraente para a banca. Por outro lado, o relatório é escrito por pessoas que
ocupam posições “superiores” e sua função é, principalmente, administrativa: o acadêmico
que escreve tais textos não espera nada em troca, exceto ser considerado adequado ao papel
que a instituição lhe conferiu. É também uma questão de “aparência”: “no caso de
comunicações escritas, a apresentação e o estilo de documentos escritos precisa substituir a
apresentação e o estilo dos participantes. Com uma carta sem um logotipo colorido no
cabeçalho, com uma fonte uniforme e impessoal, o estilo burocrático pode expressar os
mesmo valores que um terno e uma gravata cinzas, sem sequer mencionar qualquer cor”
(Van Leeuwen and Wodak, 1999: 95). A “aparência” é um aspecto daquilo que tenho
chamado de ethos discursivo de textos escritos (Maingueneau 1987, 1998, Amossy, ed.,
1999): eles implicam uma “voz” que tem um tom específico. Os leitores (a partir de sinais
heterogêneos dados pelo texto) constroem uma figura mais ou menos definida do corpo do
falante que corresponde ao texto. A aparência do RSDT não deve ser rebuscada, porque
deve estar de acordo com um ethos austero. Um “bom” RSDT é simplesmente um
documento “limpo”, com uma fonte homogênea e de fácil leitura. Tal austeridade implica
um leitor modelo que adere aos valores tradicionais da ciência, considerada como a busca
da Verdade: supõe-se que um cientista prototípico não se preocupa com a “forma” às custas
do “conteúdo”.
Como qualquer gênero discursivo estritamente controlado por instituições, o RSDT
está associado a uma superestrutura específica e convencional (Van Dijk, 1981), altamente
previsível. J.-M. Adam (1999:69) prefere usar o termo “plano de texto”, que é
historicamente especificado e que permite ao produtor construir e ao destinatário
reconstruir a organização global dos textos de tal ou tal gênero. O plano de texto de um
RSDT pode ser facilmente aprendido por ser altamente ritualizado. Pode ser analisado
como uma sucessão de etapas:
(1) Indicações paratextuais: rótulo genérico (“Rapport sur la soutenance de la
thèse…” ) (“Relatório da sessão de defesa de tese...”), nome do candidato, título da
tese, disciplina, dia e lugar do evento, nome do orientador e dos outros participantes
da banca;
(2) Resumo da exposição do candidato (esta etapa não é obrigatória);
(3) Intervenções de todos os membros da banca; a transição de uma intervenção para
outra é feita por meio de fórmulas: “Le Professeur /M. / Mme X prend alors la
parole/intervient à son tour…” (“O Professor/Sr./Sra. X começa a falar/intervêm na
sua vez …”). As intervenções são apresentadas de acordo com a sua ordem na
sessão de defesa. Essa ordem obedece a regras rígidas: por exemplo, a intervenção
do presidente é sempre a última;
(4) Avaliação final (decisão da banca, distinção);
(5) Assinatura de todos os membros da banca.
Indicações paratextuais (etapa (1)) são passíveis de variações:
“Rapport sur la soutenance de la thèse de doctorat de X” (“Relatório da sessão de
defesa da tese de doutorado de X”);
“Rapport sur la soutenance de la thèse présentée par X” (“Relatório da sessão de
defesa de tese apresentada por X”);
“Rapport de soutenance. Thèse de X” (“Relatório de Sessão de Defesa. Tese de
X”);
“Rapport sur la soutenance de thèse de X” (“Relatório da sessão de defesa da tese
de X”);
“Rapport de soutenance de thèse en vue du doctorat de l’université Y. Thèse
soutenue par X” (“Relatório da sessão de defesa da tese de doutorado da
universidade Y. Tese defendida por X”).
As assinaturas dos membros da banca são precedidas por fórmulas que não são
exatamente frases feitas; variações na tipografia podem também ser notadas:
(a) “Après avoir délibéré, le jury accorde à Monsieur X le grade de DOCTEUR DE
L’UNIVERSITE DE Y avec la mention: TRES HONORABLE avec
FELICITATIONS” (“Depois de ter deliberado, a banca concede ao Sr. X o grau de
DOUTOR PELA UNIVERSIDADE Y, com a distinção: MUITO HONROSA e com
CONGRATULAÇÕES60);
60 NT: A expressão correspondente, no Brasil, seria “X é considerado(a) aprovado(a) COM DISTINÇÃO E LOUVOR”. No entanto, optei por traduzir a expressão palavra por palavra para que as análises feitas pelo autor façam sentido.
(b) “Après délibération, le jury déclare Madame X digne du titre de docteur (spécialité
= sciences du langage), et lui décerne la mention Très Honorable avec
félicitations, à l’unanimité. (En réponse à la demande du Conseil scientifique de
l’université X, le jury précise qu’il estime ce doctorat digne d’être proposé pour un
prix et/ou une subvention pour publication” (“Depois da deliberação, a banca
declara a Sra. X digna de receber o título de doutora (especialidade: ciências da
linguagem), e concede-lhe, por unanimidade, a distinção Muito honrosa e com
congratulações. (Em resposta à solicitação do Conselho Científico da universidade
Y, a banca torna explícito que considera este doutorado apto a ser indicado para
um prêmio e/ou receber um auxílio para publicação)”);
(c) “Après avoir délibéré, le jury, à l’unanimité, accorde la mention TRÈS
HONORABLE AVEC FELICITATIONS à X” (“Depois de ter deliberado, a
banca, por unanimidade, atribui a distinção MUITO HONROSA E COM
CONGRATULAÇÕES a X”);
(d) “Le jury, après avoir délibéré, déclare Madame X digne du titre de Docteur de
l’Université de Y, en Sciences du langage, avec la mention très honorable avec
felicitations, à l’unanimité” (“A banca, depois de ter deliberado, declara a Sra. X
digna do título de Doutora pela Universidade Y, em Ciências da Linguagem, com
distinção muito honrosa e com congratulações, por unanimidade”);
(e) “Après délibération du jury, Monsieur X a été déclaré digne du titre de Docteur
d’Université, avec la mention Très Honorable, à l’unanimité” (“Depois da
deliberação da banca, o Sr. X foi declarado digno do título de Doutor da
Universidade, com distinção muito honrosa, por unanimidade”);
(f) “Après une courte délibération, les membres du jury s’accordent pour attribuer la
mention ‘Très Honorable’. Elle leur paraît bien correspondre à l’appréciation portée
sur le candidat: un chercheur dont le potentiel est évident, capable de proposer et
d’élaborer une ‘thèse’ (au sens plein du mot), dans un domaine où il a commencé à
marquer sa place. Il manque encore un effort de conceptualisation et de
modélisation que l’on sent tout à fait à la portée du candidat” (“Depois de breve
deliberação, os membros da banca concordaram em conceder a distinção ‘Muito
honrosa’. Pareceu a eles que tal distinção corresponde bem à avaliação do
candidato: um pesquisador cujas possibilidades são evidentes, capaz de propor e
elaborar uma ‘tese’ (no sentido pleno da palavra), em um domínio no qual ele
começou a deixar a sua marca. Um esforço de conceitualização e de modelização é
ainda necessário, o que sem dúvida está ao alcance do candidato”).
Reproduzi as fontes originais: como podemos ver, os autores usam livremente
negrito e caixa alta para realçar aquilo que querem. Várias frases feitas são usadas para se
referir a uma mesma coisa: “accorder le grade de…” (“conceder o grau...”), “déclarer
digne du titre de…” (“declarar digno do título…”), “s’accorder pour attribuer la
mention…” (“concordar em atribuir a distinção…”), “accorder la mention…” (“conceder
a distinção…”). Alguns especificam a disciplina a qual a tese pertence, outros não. A única
coisa que parece estável é a fórmula introdutória: “après avoir délibéré/délibération”
(“depois de ter deliberado/da deliberação”), provavelmente por ser um importante
marcador de fronteiras, que marca a passagem das sucessivas intervenções ao veredicto,
atribuído coletivamente pela banca. Vale notar que (b) e (f) comentam a distinção
concedida, mas por motivos opostos: em (b) o comentário diz, indiretamente, que a tese foi
muito bem avaliada, enquanto que em (f) podemos inferir que se trata de um doutorado
bem medíocre.
As intervenções dos membros da banca estão submetidas a um roteiro que estipula
que devem ser dados primeiros os aspectos positivos, depois os negativos, e então deve-se
concluir com uma avaliação global. Este é, pelo menos, o roteiro típico, esperado pela
comunidade acadêmica. A avaliação é estruturada como uma espécie de tópico (no sentido
retórico), cujos dois pólos são a apresentação do texto (tipografia, ortografia, estilo,
bibliografia, projeto) e o interesse científico da tese (corpus, tema, metodologia,
conclusões). Os examinadores podem ignorar o primeiro pólo deste tópico, mas nunca o
segundo.
Autores e destinatários
UM AUTOR PLURAL
O RSDT requer “autores” (os participantes da banca) legitimados pela instituição,
detentores de títulos cuja relação está estabelecida em documentos jurídicos. Sua
legitimidade está baseada apenas no status acadêmico da banca: sexo, nacionalidade, idade,
religião não são pertinentes. Mas a fabricação material do texto é de responsabilidade de
apenas uma pessoa, que chamarei de compilador. Ele não é mencionado no texto, é
realmente um anônimo: se alguém conhece as regras tácitas do gênero, pode imaginar
quem é ele (em geral, o presidente da banca). Porém, a responsabilidade pelo veredicto e a
responsabilidade pelo relatório como um todo é coletiva. Temos, aqui, a manifestação de
uma estrutura de autoria bastante comum no discurso jurídico. Mas se “o Estado”, “a
Corte”, “a Companhia X”, etc. são normalmente representados por um membro da
coletividade (em geral, o presidente), que apõe sua assinatura em nome desta coletividade,
no caso do RSDT todos os membros da banca assinam seus nomes. Isso resulta,
provavelmente, do fato de que cada um, em outro nível, é responsável por sua própria
intervenção.
Portanto, no RSDT a avaliação é ao mesmo tempo divisível e indivisível: divisível
no que diz respeito a cada intervenção (“Sr. X intervém para dizer que...”) e indivisível no
momento do veredicto (“a banca declara...”). Este fenômeno está ligado à ambigüidade
desse gênero, que é, ao mesmo tempo, uma avaliação feita por diferentes pessoas, vários
acadêmicos de uma mesma disciplina, e a “história”, contada a partir de um ponto de vista
neutro, de um evento: a defesa.
O compilador, o acadêmico que “prepara” o texto, desempenha dois papéis:
ele é um organizador, é quem reúne e organiza as diferentes intervenções,
preocupa-se em conseguir as assinaturas, ocupa-se da apresentação material do
texto, adiciona o paratexto;
ele é o narrador também: resume a exposição do candidato61 (mas nem sempre),
insere algumas transições62 e escreve a conclusão — de fato, o veredicto — algumas
vezes com um comentário.
Fiz a distinção em duas partes: narrador e organizador. O “organizador” torna o
texto materialmente compatível com as normas da instituição. O papel do “narrador”
consiste em converter as intervenções orais da apresentação em estágios de uma história.
Ao invés de mencionar as falas, ele precisa “encaixá-las” em uma sucessão de ações:
“Então, o Sr. X intervém e declara que...”, “A Sra. Y intervém e ressalta que....”. Hoje, o
papel de narrador não é dado, em geral, apenas ao compilador, mas é, de fato, distribuído
entre os membros da banca, que são co-narradores de suas próprias intervenções.
No entanto, nem sempre foi assim. É possível distinguir duas fases na produção do
RSDT:
(a) uma situação tradicional, em que um único escrevente era, ao mesmo tempo,
“organizador” e “narrador” e resumia as intervenções dos outros membros em um
relatório em que todos assinavam. Do ponto de vista material, o texto era
homogêneo (um espaçamento, uma fonte...);
(b) em uma outra fase, o escrevente apenas reunia os textos, justapondo-os de acordo
com a ordem das intervenções durante a sessão de defesa. Este é o modo que
prevalece hoje. Tal simplificação se tornou possível porque os membros da banca
aceitaram escrever suas contribuições na terceira pessoa do singular, prontas para
serem inseridas no relatório. De fato, há duas variantes, às vezes presentes no
mesmo texto. Na primeira variante, as diferentes contribuições são justapostas, e o
texto completo é fotocopiado (de modo que o compilador não precisa digitar os
61 Por exemplo: “La soutenance débute à 14H15. Le Président donne la parole à X qui, en moins d’une demie-heure, présente sa recherche avec beaucoup d’aisance, de sobriété et de clarté, en fait un bilan lucide et constructif, et trace des perspectives d’avenir pour continuer et élargir son travail à la fois dans le domaine strictement linguistique et dans le domaine didactique” (“A defesa começa às 14h15. O Presidente dá a palavra a X que, em cerca de meia hora, apresenta sua pesquisa com grande facilidade, sobriedade e clareza, faz um balanço lúcido e construtivo de sua pesquisa e propõe futuras possibilidades de continuar e estender o seu trabalho no domínio estrito da lingüística e no domínio didático”). 62 Por exemplo: “Le Président donne la parole à X, le rapporteur de la thèse, qui commence par complimenter Madame Y pour la présentation très claire et très complète qu’elle a faite de ses travaux “ (“O Presidente dá a palavra a X, relator da tese, que começa parabenizando a Sra. Y pela apresentação muito clara e completa fez de sua pesquisa”).
textos novamente). O resultado de tal procedimento é um texto materialmente não
homogêneo (com várias fontes, tinta mais ou menos desbotada, margens
variadas...). Na segunda e mais recente variante, os membros da banca mandam um
arquivo por e.mail ou entregam um disquete ao compilador, que apenas “organiza”
o texto em um computador. O resultado é um texto perfeitamente homogêneo.
Como tem sido freqüentemente observado por analistas do discurso, evoluções que
à primeira vista são meramente técnicas trazem conseqüências consideráveis em um nível
diferente, se elas reforçam uma evolução de um outro tipo. Trata-se do caso aqui abordado.
O fato de cada examinador escrever sua própria intervenção referindo-se a si
mesmo na terceira pessoa tem um efeito no tom e no conteúdo. Como não há mais um
autor verdadeiro, responsável tanto pela organização quanto pela narração do texto, cada
um, de acordo com regras de ação de coordenação, deve escrever sua própria intervenção
ignorando as reações dos outros membros com quem divide a escrita do texto. Sob tais
circunstâncias, cada um tende a escrever de acordo com rotinas de escrita estabelecidas
pelo gênero, para neutralizar sua singularidade e com a finalidade de produzir um texto
“liso”, que pode facilmente ser ajustado às contribuições dos outros. Em geral, adaptam-se
ao ethos distante e à cena discursiva impostos pelo gênero.
Esse novo procedimento aprofunda uma forte tendência no modo de escrever tais
relatórios: os membros das bancas apresentam poucas avaliações negativas explícitas, o
que exige do leitor a capacidade de ler as críticas nas entrelinhas. Há, aqui, a intervenção de
um processo de conhecimento mútuo, bem conhecido pelos especialistas em pragmática: X
sabe que Y conhece as regras, Y sabe que X conhece as regras e que X sabe que Y conhece
as regras..., e assim por diante. Aqueles que contribuem com o relatório estão cientes da
importância deste gênero para a carreira dos pesquisadores, sabem também que as pessoas
interessadas neste documento (principalmente o candidato, seu orientador e os grupos aos
quais eles pertencem) sabem de sua importância; nessas circunstâncias, eles sabem que
suas contribuições serão julgadas por outros membros da comunidade acadêmica e que
uma avaliação excessivamente negativa (consideradas as normas implícitas da disciplina
em uma certa época) pode voltar-se contra eles. Logicamente, um sistema como esse
necessariamente tende a neutralização das avaliações, de modo a produzir muito poucas
assimetrias na rede de trocas. Conseqüentemente, os membros da banca têm lealdades
divididas: eles precisam neutralizar seus julgamentos a fim de não terem inimigos e
obedecer às normas transcendentes das instituições acadêmicas que requerem deles um
julgamento baseado em suas convicções profundas. Desta forma, há uma difícil negociação
entre a legitimação por meio de uma boa interação com a comunidade e a legitimação por
meio das normas que fundam essa comunidade.
DESTINATÁRIOS E ESTRATÉGIAS DE LEITURA
Quando falamos do “leitor” de um texto, isso pode significar muitas coisas
(Maingueneau: 1990): o público real (as pessoas que lêem o texto), o público genérico (o
público para quem o texto é destinado), o leitor modelo (o tipo de leitor que pode ser
inferido a partir das propriedades do texto), o leitor invocado (aquele explicitamente
especificado pelo texto).
O “público real” do relatório não é, a priori, muito diferente do “público genérico”:
apenas alguns parentes e amigos do candidato, algumas pessoas que trabalham nas
secretarias das instituições acadêmicas, às vezes, alguns analistas do discurso... não
pertencem ao “público genérico”. Esse público genérico não é determinado por meio de
alguma regra explícita que estipularia quem pode ler um RSDT: é o modo como esse
gênero circula que especifica o público, constituído, normalmente, do candidato e das
comissões acadêmicas para as quais esse tipo de documento é entregue. O “leitor modelo”
pode ser facilmente delineado: como um gênero discursivo “fechado”, o RSDT, em
decorrência das suas propriedades lingüísticas, discursivas e enciclopédicas, implica
leitores que pertencem ao mundo acadêmico ou estão familiarizados com ele.
O autor de um RSDT precisa antecipar as estratégias de leitura. Esse gênero permite
duas estratégias principais:
Leitura integral, que segue a continuidade do texto: essa é a leitura prescrita;
Leitura seletiva feita por um leitor especialista que, dominando as regras do gênero,
escolhe algumas passagens destacáveis (particularmente a relação de membros da
banca; as conclusões de cada intervenção, a avaliação final, a distinção concedida).
O gênero favorece uma leitura não-linear, uma vez que é composto de intervenções
que são independentes umas das outras.
Ambas as estratégias são esperadas pelos autores, que são também leitores desse
gênero. Por isso, eles enfatizam cuidadosamente sinais de demarcação entre as
intervenções, geralmente fechados por uma fórmula avaliativa sintética, que é, ao mesmo
tempo, um sinal de fim e um resumo. Abaixo estão alguns exemplos:
“X conclut son intervention en disant le plaisir qu’il a eu à découvrir ce travail et
tous les vœux qu’il forme pour sa très large diffusion” (“X conclui sua intervenção
dizendo o quão gratificante foi avaliar este trabalho e que deseja que ele seja
largamente difundido”);
“En conclusion X estime que Mme Y a réalisé une très bonne thèse”
(“Resumidamente, X juga que a Sra. Y produziu uma tese muito boa”);
“Très satisfait des réponses apportées par la candidate, X se joindra à ses collègues
pour attribuer la mention Très Honorable avec Félicitations”(“Muito satisfeito com
as respostas dadas pelo candidato, X se juntará aos seus colegas para conceder a
distinção Muito Honrosa e com Congratulações”);
“Ces réserves faites, X félicite le candidat pour l’ampleur et la richesse de son
travail” (“Feitas essas ressalvas, X parabeniza o candidato pelo fôlego e riqueza de
seu trabalho”);
“Mais que ces légers regrets ne fassent pas oublier l’essentiel: la thèse de X
constitue un pas important dans un domaine riche et négligé”.(“A despeito dessas
pequenas ressalvas, não devemos esquecer do ponto principal: a tese de X constitui
um passo importante em um campo rico e negligenciado”);
“M X conclut en soulignant la cohérence de ce travail qui force le respect par son
sérieux et sa rigueur” (“Sr. X conclui enfatizando a coerência deste trabalho cuja
seriedade e rigor impõem respeito”).
UMA INTERPRETAÇÃO EM DOIS NÍVEIS
Suponhamos que a seguinte sentença tenha sido retirada de um relatório: “X é um
pesquisador meticuloso cujo trabalho o distingue pela sua seriedade”. Em um primeiro
nível, para falantes que não pertencem ao mundo acadêmico, isso é um cumprimento. Mas,
em um segundo nível, o leitor especialista provavelmente interpretará tal sentença
significando, ao contrário, que o candidato é um pesquisador muito medíocre.
Esse exemplo é bastante artificial, porque a avaliação (positiva/negativa) não é
construída a partir de uma sentença isolada, mas a partir da convergência de vários
indicadores que são ponderados em um cálculo. Um curto cumprimento depois de uma
longa série de reprovações não terá o mesmo valor que o mesmo cumprimento feito no
começo de uma série de proposições elogiosas. O movimento argumentativo que envolve a
sentença também é importante. Comparemos essas duas contextualizações distintas do
nosso exemplo:
(1) “X est un chercheur méticuleux dont le travail se signale par son sérieux (E1). Mais
c’est aussi un chercheur audacieux qui ouvre des pistes nouvelles (E2)” (“X é um
pesquisador meticuloso cujo trabalho o distingue pela sua seriedade (E1). Mas é
também um pesquisador audacioso que abre novos caminhos (E2)”);
(2) “X est un chercheur méticuleux dont le travail se signale par son sérieux (E1).
Il/elle a patiemment relevé toutes les occurrences et dressé des tableaux (E2)” (“X é
um pesquisador meticuloso cujo trabalho o distingue pela sua seriedade (E1). Ele
pacientemente gravou todas as ocorrências e fez tabelas (E2)”).
Em (1), o autor usa um topos argumentativo (Anscombre, 1995): “quanto mais sério
você é, menos criativo você é”, e o inverte em benefício do candidato, eliminando o topos
oposto, negativo nas disciplinas empíricas: “quanto mais criativo você é, menos sério você
é”. Como resultado, E1 é elogioso. O valor argumentativo de “mais” (mas), como
freqüentemente é o caso, permite reverter a direção argumentativa (Ducrot et al., 1980).
Por outro lado, em (2) a segunda proposição confirma o valor negativo de E1, que é
ilustrado por um exemplo.
Vejamos, agora, três fórmulas conclusivas retiradas de nosso corpus. A primeira já
foi mencionada anteriormente:
(a) “Après une courte délibération, les membres du jury s’accordent pour attribuer la
mention ‘Très Honorable’. Elle leur paraît bien correspondre à l’appréciation portée
sur le candidat: un chercheur dont le potentiel est évident, capable de proposer et
d’élaborer une ‘thèse’ (au sens plein du mot), dans un domaine où il a commencé à
marquer sa place. Il manque encore un effort de conceptualisation et de
modélisation que l’on sent tout à fait à la portée du candidat” (“Depois de breve
deliberação, os membros da banca concordaram em conceder a distinção ‘Muito
honrosa’. Pareceu a eles que tal distinção corresponde bem à avaliação do
candidato: um pesquisador cujas possibilidades são evidentes, capaz de propor e
elaborar uma ‘tese’ (no sentido pleno da palavra), em um domínio no qual ele
começou a deixar a sua marca. Um esforço de conceitualização e de modelização é
ainda necessário, o que sem dúvida está ao alcance do candidato”)
(b) “Après délibération, le jury décerne à X le titre de docteur en Y avec la mention très
honorable et les félicitations du jury” (“Após deliberar, a banca concede a X o
título de doutor em Y com a distinção muito honrosa e com congratulações da
banca”);
(c) “Après en avoir délibéré, le jury déclare X digne du titre de docteur en…, et lui
accorde la mention très honorable avec les félicitations du jury, mention accordée à
l’unanimité” (“Depois de ter deliberado, a banca declara X digno do título de
doutor em Y, e concede-lhe a distinção muito honrosa e com congratulações da
banca, distinção dada por unanimidade”).
Em relação a (a), (b)-(c) são avaliações claramente muito mais positivas, como está
indicado pela diferença entre as duas distinções (com vs. sem congratulações). Já em
relação à (b) e (c), é difícil dizer qual é considerada melhor: será a convergência de
indicações presentes em todo o texto que permitirá ao leitor ler uma opinião boa ou ruim.
Essas estratégias de interpretação são típicas do gênero. Geralmente, tais fenômenos
são estudados em outros corpora. Os estudos pragmáticos trabalham, freqüentemente, com
interações cotidianas. Por outro lado, práticas tradicionais de comentário preferem textos
que demandam uma abordagem hermenêutica, no sentido pleno da palavra, isto é, textos
(religiosos, literários...) que se acredita que contenham significados essenciais ocultos para
pessoas comuns. Quando um texto é considerado interno a uma “estrutura hermenêutica”
(Maingueneau, 1995), o intérprete precisa fazer mais do que entender este texto, ele precisa
postular que nenhuma interpretação pode ser realmente suficiente, que o texto está além de
qualquer interpretação. Não podemos falar de “atitude hermenêutica” para textos que são
apenas difíceis de entender, que precisam ser apenas esclarecidos, que não ocultam
qualquer segredo: este é o caso de textos jurídicos ou matemáticos, cujo sentido é obscuro
para as pessoas que não são especialistas.
A distinção entre estratégias interpretativas requeridas por conversações ordinárias
e por textos “hermenêuticos” é muito simplificadora. Na verdade, existem muitas práticas
interpretativas que não se ajustam a ela. Um bom exemplo é a fala psicoterapêutica, na qual
o psicólogo está sempre decifrando as palavras do paciente. Além disso, vários gêneros são
basicamente feitos para serem lidos por dois públicos: um público de “primeiro grau”, que
lê significados literais, e um público de “segundo grau”, que é capaz de extrair proposições
implícitas de um texto que, para pessoas comuns, pode parecer completamente unívoco.
Esse é tipicamente o caso de muitos discursos produzidos por diplomatas ou por políticos.
A dupla leitura é possível porque existem profissionais, especialistas (um público de
segundo grau) que compartilham do mesmo código que os produtores dos textos. Assim,
um discurso político na TV é imediatamente comentado por especialistas para os
telespectadores. Como resultado, esses gêneros são constituídos de forma a agradar as duas
audiências, que estão, com freqüência, fortemente associadas: no discurso político, as
interpretações dadas pelo público de segundo grau freqüentemente têm influência
considerável na recepção do público de primeiro grau.
Essa noção de público duplo é válida também para o RSDT. Em decorrência da
relação espelhada entre autores e leitores desse tipo de textos – uma conseqüência do fato
de se tratar de um gênero fechado – tal gênero é feito para ser lido nas entrelinhas pelos
membros competentes das instituições acadêmicas. Mas esta situação é diferente da
situação do discurso político, que realmente implica dois públicos que têm acesso a dois
níveis diferentes de sentido. Uma vez que o RSDT é, de fato, lido apenas, ou quase apenas
por acadêmicos que pertencem a uma certa disciplina, muito poucas pessoas terão acesso
ao significado literal. Se alguém é membro de tais comunidades, ele deveria dominar a
interpretação desses textos. Além disso, enquanto comentadores políticos, de acordo com
suas posições políticas, divergem em relação a significados implícitos, em geral leitores
acadêmicos de um RSDT concordam no modo com o candidato deve ser avaliado: uma vez
que esse gênero é feito basicamente para a avaliação de uma tese e utiliza fórmulas
estereotipadas, isso não é realmente surpreendente.
Esse fenômeno é, de certa forma, remete àquilo que J. L. Austin (1975: 130) diz
sobre um ato ilocucionário realizado por meio de outro: se um jogador de bridge diz “três
de paus”, ele declara “três de paus”, mas também fornece ao seu parceiro a informação de
que ele não tem nenhuma carta de ouros, o que se dá em decorrência de uma convenção
extralingüística que é conhecida pelos jogadores de bridge. Do mesmo modo, quando se diz
“X é um pesquisador meticuloso cujo trabalho o distingue pela sua seriedade”, declara-se o
conteúdo desse enunciado, mas veicula-se também a informação de que X é um
pesquisador medíocre. Pode acontecer, tanto para o bridge quanto para o RSDT, que o
receptor não domine as convenções, que no caso de bridge são abertamente ensinadas,
enquanto que no caso do RSDT são necessariamente aprendidas por meios informais.
A comparação entre essas duas práticas verbais não pode ir muito longe. O jogador
não tem outra solução a não ser apelar para a comunicação indireta, uma vez que ele não
pode, pelas regras do jogo, falar com o seu parceiro; assim, comunicação indireta é um
componente essencial do jogo. Um jogador que não aceitasse se comunicar indiretamente
não poderia jogar, pelo menos não de forma séria, com bons jogadores. Mas, o autor de um
RSDT que apela para comunicação indireta comporta-se do mesmo modo que em rotinas
convencionalizadas de polidez: pessoas obedecem a elas para serem aceitas na sociedade,
embora não sejam obrigadas a fazer isso; o membro de uma banca pode expressar
explicitamente sua avaliação. Isso se assemelha aos atos de fala indiretos (“você poderia
me passar um pouco de pão?”), que devem suavizar pedidos diretos. O que é paradoxal em
um pedido indireto como esse é o caráter explicitamente oculto do pedido: ele é ao mesmo
tempo oculto e perfeitamente explícito para qualquer falante. Do mesmo modo, em um
RSDT os membros da comunidade acadêmica ouvem enunciados cujo sentido implícito é
completamente claro. Porém, diferentemente dos atos de fala indiretos, declarações de
bridge e enunciados de RSDT não são suspensos: a força ilocucionária de uma pergunta
como “você pode me passar o sal?” é suspensa pelo pedido, enquanto que a força
ilocucionária e o conteúdo de “X é um pesquisador meticuloso cujo trabalho o distingue
pela sua seriedade” ou de “Três de paus” não são suspensos.
Nessas circunstâncias, é possível indagar-se sobre a quem se destinam os
enunciados de “primeiro grau” de um relatório. Pode-se sugerir uma explicação para o fato
de que um enunciado poderia implicar dois lugares de destinatários: um ocupado por um
destinatário ingênuo, que teria acesso apenas aos significados de primeiro grau, o outro
ocupado por um destinatário de segundo grau, um especialista. Essa seria uma estrutura
polifônia (Ducrot 1984). Mas não desenvolverei este ponto neste artigo.
Seria interessante propor um teste. Passagens retiradas de relatórios seriam
apresentadas a três grupos distintos: pessoas instruídas que não pertencem ao mundo
acadêmico, acadêmicos que pertencem à disciplina e acadêmicos que pertencem a
disciplinas muito diferentes. Poderia ser verificado, assim, se pessoas que dominam as
regras de polidez são competentes o suficiente para interpretar corretamente as avaliações
expressas de maneira indireta nos relatórios. Caso contrário, poderia ser presumido que
dominar a interpretação destes relatórios não é um problema de polidez, mas um aspecto da
competência de qualquer acadêmico de qualquer disciplina. É possível, na minha opinião,
que algumas inferências possam ser feitas por qualquer um, algumas são reservadas aos
acadêmicos, e outras a acadêmicos que pertencem à disciplina do relatório. Outra série de
testes poderia ser feita com os indicadores que desencadeiam significados implícitos: ao
modificá-los, seria possível definir com mais precisão o papel desempenhado por eles na
interpretação.
Neste artigo estudei um gênero acadêmico. Além dos problemas específicos
inerentes a ele, acredito que essa análise discursiva pode levantar questões estimulantes
sobre a relação entre as propriedades lingüísticas de textos e as propriedades de
comunidades discursivas (Maingueneau, 1984), isto é, comunidades cuja função principal é
produzir e gerenciar certo tipo de textos. Uma das características essenciais da análise do
discurso é articular modos de dizer com instituições. As mais diversas comunidades
fechadas são similares no modo como lidam com os discursos: para elas, o discurso é, ao
mesmo tempo, uma atividade “transitiva”, que tem como objetivo intervir em uma
realidade social, e uma atividade “intransitiva”, que permite aos membros do grupo
construir suas identidades. Por meio da produção de alguns gêneros acadêmicos
privilegiados, os autores estão constantemente legitimando o lugar que ocupam ou querem
ocupar. Às vezes também transformam, na maior parte das vezes de um modo quase
imperceptível, o próprio campo de suas atividades discursivas.
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