c
Universidade de Brasília – UnB
Instituto de Ciências Humanas – IH
Departamento de Serviço Social – SER
Programa de Pós-graduação em Política Social – PPGPS
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
FORMAÇÃO CONTEMPORÂNEA DO BRASIL:
desenvolvimentismo, lulismo e bloco político-social
VANDERLEI MARTINI
Orientadora: Prof.ª Dra. Ivanete Salete Boschetti
Brasília - DF
Janeiro de 2018
VANDERLEI MARTINI
FORMAÇÃO CONTEMPORÂNEA NO BRASIL:
Desenvolvimentismo, lulismo e bloco político-social
Dissertação apresentada para banca de defesa como
parte dos requisitos necessários para à obtenção do
título de mestre no Programa de Pós-Graduação em
Política Social – PPGPS do Departamento de
Serviço Social da Universidade de Brasília – UnB.
Orientadora: Prof. Dra. Ivanete Salete Boschetti.
Data da defesa: 05/01/2018
Brasília – DF
2018
Ficha catalográfica elaborada automaticamente, com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
MM386fMARTINI, Vanderlei FORMAÇÃO CONTEMPORÂNEA DO BRASIL: desenvolvimentismo,lulismo e bloco político-social / Vanderlei MARTINI;orientador Ivanete Salete BOSCHETTI; co-orientador JoséPaulo NETTO. -- Brasília, 2018. 222 p.
Dissertação (Mestrado - Mestrado em Política Social) --Universidade de Brasília, 2018.
1. Desenvolvimentismo. 2. Lulismo . 3. Bloco PolíticoSocial. 4. Lutas de Classes. 5. Estado. I. BOSCHETTI,Ivanete Salete, orient. II. NETTO, José Paulo, co-orient.III. Título.
AGRADECIMENTOS
Os agradecimentos são necessários, porém, são estranhos e quase sempre insuficientes.
Entretanto, quero reconhecer, em especial, a professora Ivanete pela acolhida no
Programa de Pós Graduação em Política Social - PPGPS e por ter me orientado com
competência impar neste trabalho. Do mesmo modo, ao professor Evilasio e a
professora Elaine que estiveram na banca de qualificação, por terem contribuído de
forma decisiva com suas sugestões e críticas a esta dissertação.
Ao professor emérito da ESS/UFRJ José Paulo Netto, por ter aceitado a coorientação
em meio a tantas tarefas e demandas da classe trabalhadora brasileira e por ter me
proporcionado o desfrute do convívio intelectual, pelos diálogos, pelas discussões e
reflexões e, mais que isso, pela amizade, sensibilidade e profunda solidariedade.
Agradeço a minha companheira Cristiane Francelina Dias, por ter compartilhado
comigo a Vida, as Lutas e os Sonhos; ao meu querido filho Andrei, que sofre com
minha ausência em função das aulas, das leituras e da fase introspectiva na elaboração
deste trabalho.
Aos meus pais e irmãos que semeiam a terra. Pois, ―quem planta espanta seus males se
diz, quem planta é quem colhe e é quem finca raiz”.
Aos professores e companheiros Maristela Dal Moro, Henrique Wellen e Elaine Martins
Moreira, que se dedicaram e coordenaram com paciência o primeiro Curso de Serviço
Social para Assentados da Reforma Agrária em parceria com a Escola Nacional
Florestan Fernandes e o PRONERA. Esse curso possibilitou-me o ingresso no
PPGPS/UnB.
Agradeço a todos os meus companheiros e companheiras de lutas e de caminhada que
me acompanharam em cada etapa da militância e dos estudos.
Aos colegas da turma de mestrado de 2016, pelos debates, diálogos e trocas no decurso
das disciplinas, bem como a todos e todas os/as membros/as do GESST.
Este trabalho não seria possível sem o aprendizado que obtive através da militância e
das lutas no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e com os movimentos
sociais vinculados a Via Campesina. Da mesma maneira, não seria possível sem o
engajamento e dedicação dos Professores (as) do Departamento de Serviço Social da
Universidade de Brasília – UnB, vinculados ao PPGPS, que em seu cotidiano muitos
atuam na perspectiva de romper com as cercas que nos privam do conhecimento
sistematizado.
RESUMO
Essa dissertação analisa os ―modelos de desenvolvimento" e/ou as ideologias
desenvolvimentistas que vigoraram nos últimos anos no Brasil. Dedica-se
especialmente a debater sobre o neoliberalismo, o lulismo e o suposto ―novo
desenvolvimentismo‖ dos governos petistas deste limiar de século. O tratamento ao
tema é desenvolvido a partir da hipótese que os modelos implementados não resolveram
os problemas estruturais da sociedade brasileira, como por exemplo, a fome, a falta de
moradia digna, a violência, a falta de educação pública e de qualidade, a concentração
de terras, o reduzido acesso à saúde de qualidade e entre outros o desemprego estrutural.
Por tanto, os acólitos do neoliberalismo e do desenvolvimentismo já não podem
responsabilizar os trabalhadores, o socialismo e menos ainda os comunistas pelo
fracasso do sistema, pois, o capitalismo foi absolutamente hegemônico nestes últimos
anos. Por isso, discute-se se as magérrimas conquistas sociais, econômicas e políticas
sob a égide do lulismo – do chamado ―novo desenvolvimentismo‖, apoiadas no bloco
político-social hegemônico da esquerda brasileira (PT, CUT e MST) de fato tiveram
algum efeito estruturante e a que custo para o conjunto dos trabalhadores e
trabalhadoras.
Palavras-chave: Desenvolvimentismo, Lulismo, Bloco Político-Social, Lutas de
Classes, Estado.
ABSTRACT
This dissertation analyzes the "development models" and / or the developmentalist
ideologies that have prevailed in recent years in Brazil. It is especially important to
discuss neoliberalism, the lulism and the supposed "new developmentalism" of the PT
governments of this century threshold. theme is developed from the hypothesis that the
models implemented did not solve the structural problems of Brazilian society, such as
hunger, lack of decent housing, violence, lack of public education and quality, land
concentration, the low access to quality health and, among other things, structural
unemployment. Hence, the acolytes of neoliberalism and developmentalism can no
longer hold workers, socialism and even less communists because of the failure of the
system, since capitalism was absolutely hegemonic In recent years, it has been argued
that the meager social, economic and political achievements the so-called "new
developmentalism", supported by the hegemonic political-social bloc of the Brazilian
left (PT, CUT and MST) did indeed have a structuring effect and at what cost to all
workers.
Keywords: Developmentalism, Lulism, Political-Social Block, Class Struggles, State.
LISTA DE SIGLAS
ALN - Aliança Libertadora Nacional
ALCA – Área de Livre Comércio das Américas
BPC – Benefício de Prestação Continuada
CIMI – Comissão Indigenista Missionária
CUT – Central Única dos Trabalhadores
CF – Constituição Federal
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho
CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido CSN – Companhia Siderúrgica
Nacional
CPT – Comissão Pastoral da Terra
CEB – Comunidades Eclesiais de Base
CGT - Comando Geral dos Trabalhadores
CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores Agrícolas do Brasil
COB - Confederação Operária Brasileira
DIEESE – Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas Socioeconômicos
DRU – Desvinculação das Receitas da União
FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
FHC – Fernando Henrique Cardoso
FMI – Fundo Monetário Internacional
FUNRURAL – Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural
HDR - Human Development Report
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
LOA – Lei Orçamentária Anual
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens
MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores
MMC – Movimento de Mulheres Camponesas
MASTER/RS – Movimento de Agricultores Sem Terra do Rio Grande do Sul
MIRAD - Ministério da Reforma Agrária e do Desenvolvimento Agrário
NMS - Novos Movimentos Sociais
ONU – Organizações das Nações Unidas
OCDE – Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
OSS – Orçamento da Seguridade Social
PDRE – Plano Diretor da Reforma do Estado
PEA – População Economicamente Ativa
PEC – Proposta de Emenda à Constituição
PIB – Produto Interno Bruto
PIS – Programa de Integração Social
PLC – Projeto de Lei de Conversão
PREVI – Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil
PRORURAL – Programa de Assistência ao Trabalhador Rural
PT – Partido dos Trabalhadores
PTB - Partido Trabalhista Brasileiro
PCBR - Partido Comunista Brasileiro Revolucionário
PNRA - Plano Nacional de Reforma Agrária
PLOA - Projeto de Lei Orçamentária Anual
RGPS - Regime Geral de Previdência Social
RNB – Renda Nacional Bruta
STR – Sindicato dos Trabalhadores Rurais
URSS - União das Republicas Socialistas Soviéticas
UNE - União Nacional dos Estudantes
ULTAB - União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil
VPR - Vanguarda Popular Revolucionária
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS....................................................................................................3
RESUMO..........................................................................................................................4
LISTA DE SIGLAS.........................................................................................................5
INTRODUÇÃO...............................................................................................................7
CAPÍTULO I
Desenvolvimento do modo de produção capitalista, crise, lutas de classes e os
sentidos do Estado.........................................................................................................25
1.1 Desenvolvimento e crise do modo de produção capitalista.......................................25
1.2 Capitalismo do dependente: Via Prussiana, Revolução Passiva e Modernização
Conservadora.............................................................................................................37
1.3 Abordagens teóricas sobre o Estado Moderno e Contemporâneo.............................42
1.4 Funções do Estado no capitalismo central e no dependente .....................................50
1.5 Transformações econômicas, políticas e sociais no Brasil........................................57
CAPÍTULO II
Da contrarrevolução preventiva ao neoliberalismo...................................................68
2.1 Notas sobre o golpe civil-militar: o fim do modelo de industrialização e as lutas de
classes contemporâneas...................................................................................................68
2.2 Os férteis anos 1980 e a conformação do bloco político-social................................83
2.2.1 A gênese e a constituição do PT............................................................................86
2.2.2 A Central Única dos Trabalhadores.......................................................................88
2.2.3 A gênese do MST...................................................................................................90
2.2.4 Bloco histórico ou bloco político-social.................................................................93
2.2.5 A dialética do bloco político-social........................................................................95
2.3 Neoliberalismo e mudanças na correlação de forças...............................................100
CAPÍTULO III
Ideologia e suposto “novo desenvolvimentismo” no Brasil......................................116
3.1 Notas sobre ideologia..............................................................................................116
3.2 Desenvolvimentismo e consolidação do capitalismo dependente..........................125
3.3 A insustentável apologia (teórica e prática) do ―novo desenvolvimentismo‖.........132
3.4 Notas críticas sobre o suposto ―novo desenvolvimentismo‖...................................147
CAPÍTULO IV
Hegemonia e crise do lulismo.....................................................................................166
4.1 Sobre a categoria hegemonia...................................................................................166
4.2 O fenômeno lulismo................................................................................................172
4.3 Pequena política e transformismo............................................................................185
4.4 Estado, governos, partidos e corrupção...................................................................200
CONCLUSÕES............................................................................................................212
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................215
7
INTRODUÇÃO
As formulações teóricas e políticas sobre o desenvolvimento do capitalismo não
são exclusivas da América Latina e menos ainda o são do Brasil. Posto que o
capitalismo é o modo de produção hegemônico no mundo inteiro, portanto, trata-se de
um tema de debate originário do capitalismo central colocado verticalmente para as
sociedades periféricas do sistema. Naturalmente, as implicações práticas e políticas
sobrepõem-se de maneira diferenciada entre aquelas e estas sociedades: e mesmo entre
os países colocados na periferia do sistema há diferenças.
Em decorrência disso, certamente, devemos desconfiar das teses sobre o
―neodesenvolvimentismo‖ (ou se preferir ―novo desenvolvimentismo‖) e de
formulações em voga de que estaria em curso no Brasil uma nova etapa ou fase do
desenvolvimento capitalista, pois, as diretrizes de tal ideologia assim como as do
neoliberalismo vieram do Banco Mundial – BM, do Fundo Monetário Internacional –
FMI, do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BIRD e do Consenso de
Washington1.
O debate em torno do ―neodesenvolvimentismo‖ (no caso brasileiro ―novo
desenvolvimentismo2‖) teve uma repercussão bastante significativa na América Latina,
em função, principalmente, de dois motivos principais: o primeiro é que os governos
progressistas do continente, em especial a partir dos anos 2000, se apresentaram como
governos ―desenvolvimentistas‖ em oposição aos governos neoliberais anteriores. Os
discursos oficiais afirmavam que este modelo – ou seja, o ―novo desenvolvimentismo‖ -
estaria virando a página do neoliberalismo. Portanto, apresentou-se como uma ideologia
bastante forte, pois, em face dos graves problemas sociais no continente, o clamor por
mudança de modelo era grande em toda a América Latina, inclusive no Brasil.
O segundo motivo, diz respeito à memória ainda viva entre nós, da promessa de
grande crescimento econômico num curto espaço de tempo (1955-60) e daquilo que
ficou conhecido como o ―milagre econômico‖ brasileiro, agora sob a ditadura civil-
militar, entre os anos de 1968 e 1973 aproximadamente. Neste período o Brasil passou
por profundas mudanças econômicas, políticas e sociais. Em 1956, Juscelino
1 O Consenso de Washington foi um conjunto de dez (10) regras firmado em novembro de 1989, em
Washington, pelos representantes do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial (BM) e do
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) que serviram como um ―receituário‖ aos países em
desenvolvimento para promoverem o ―ajustamento macroeconômico‖.
2Termo apaixonadamente defendido por Aloízio Mercadante Oliva (2010) em sua tese de doutoramento
na UNICAMP, numa clara continuidade de Bresser-Pereira (2004) que já havia fornecido os elementos
ideo-políticos de tal ideologia: Bresser-Pereira compunha a banca de defesa da tese de Mercadante.
8
Kubitschek de Oliveira – JK assumiu a Presidência do Brasil e prometeu que de 1955 a
1960, que o Brasil iria crescer “50 anos em 5”. Para que isso se concretizasse, defendia
o Governo à época, que seria fundamental a abertura da economia brasileira ao capital
financeiro internacional. Isso tudo fez com que, pouco a pouco, o seu governo ficasse
marcado pela ideologia desenvolvimentista, ou seja, pela crença de que a aceleração da
industrialização poderia ser obtida por intermédio da ação planejadora do Estado sobre a
economia, rompendo com o tradicional modelo agroexportador.
Em seguida, com os governos de Janio Quadros e João Goulart, pautou-se a
necessidade de reformas de base para desenvolver o país e melhorar a vida do conjunto
dos trabalhadores brasileiros, com destaque para o Plano de Reforma Agrária e a
Reforma da Educação que propunham a realização de campanha para erradicar o
analfabetismo, entre outras. De maneira que recordamos a famosa frase de Darcy
Ribeiro, ao dizer que Jango caiu ―não por defeitos do governo que exercia, mas, ao
contrário, em razão das qualidades dele‖!
Já sob a ditadura civil-militar, projetava-se o desenvolvimento ancorado em
conceitos que tiveram como mote o binômio ―Segurança e Desenvolvimento‖. Delfim
Netto que era Ministro da economia dizia que era precisão ―fazer o bolo crescer para
depois dividir‖. Sabe-se que até os dias de hoje o dito ―bolo‖ não foi divido por igual
com as classes menos favorecidas da sociedade brasileira. Se bem examinada as coisas,
isso não é surpresa, pois, como já observou acertadamente José Paulo Netto ―o padrão
de crescimento extensivo é compatível com estruturas sociopolíticas rígidas e
excludentes‖ (2007, p. 15).
Dentre os objetivos do golpe civil-militar de 1° de abril de 1964, destacam-se o
de impedir as ascensões progressistas – ou, atuar como uma contrarrevolução preventiva
na acepção de Florestan Fernandes (2005) - que despontavam no Brasil e
simultaneamente assegurar a manutenção das altas taxas de lucro dos capitalistas. O
golpe foi orquestrado pelos Estados Unidos, mas teve como suporte o apoio da
burguesia local, saindo vitorioso o grande capital nativo - a agricultura capitalista em
processo de integração com a economia urbana e industrial e o comércio - e o grande
capital estrangeiro. Em função dessas mudanças políticas, econômicas e sociais, de
acordo com Filgueiras e Gonçalves (2007), o país teve neste período taxas de
crescimento bastante elevadas se comparadas àquelas da era subsequente neoliberal de
Fernando Henrique Cardoso – FHC e mesmo em comparação com o chamado período
―novo desenvolvimentista‖ de Luiz Inácio Lula da Silva. Por isso, ―a ditadura militar
9
aparece assim como a consequência inevitável do desenvolvimento capitalista brasileiro
e como uma tentativa desesperada para abrir novas perspectivas de desenvolvimento‖
(MARINI, 2000, p. 94).
Durante os anos 1990, a ideologia neoliberal se desenvolveu e ganhou força na
sociedade brasileira, tornando-se hegemônica, a partir dos governos de FHC (1995-
2002) e da subsequente implementação das suas diretrizes econômicas e do Plano
Diretor da Reforma do Aparelho do Estado de Luis Carlos Bresser Pereira (2005), que
fora elaborado em nome do Ministério da Administração Federal e da Reforma do
Estado - MARE e, depois aprovado pela Câmara da Reforma do Estado em sua reunião
de 21 de setembro de 1995: em seguida foi submetido ao Presidente da República FHC,
que o aprovou integralmente.
No entanto, esse modelo sob o ponto de vista social e econômico colapsou, ou
melhor, deslegitimou-se pela sua incapacidade de responder as demandas sociais e
econômicas das classes menos favorecidas da sociedade, pelo aprofundamento dos
níveis de concentração de renda e pelo baixo crescimento econômico proporcionado.
Contudo, do ponto de vista ideológico e político lograram-se êxitos importantes. Perry
Anderson, em seu balanço sobre o neoliberalismo, conclui que,
economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma
revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o
neoliberalismo conseguiu muito dos seus objetivos, criando sociedades
marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria.
Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau
com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonharam [...] este
fenômeno chama-se hegemonia (ANDERSON, 1995, p. 23).
Entretanto, essa hegemonia, como dissemos, veio a um custo social elevado,
penalizando principalmente a classe trabalhadora. Entre outras coisas, houve contenção
dos salários e aumento do desemprego, que segundo o ideário neoliberal é um
mecanismo natural e necessário de qualquer economia de mercado eficiente. A crise
global da sociedade sob o neoliberalismo revela-se, na crise do Welfare state e na crise
do chamado socialismo real. Ao lado desses fatos, o ano de 1989, como disse
Hobsbawm (2007), foi uma espécie de ―adeus a tudo aquilo‖. O que é curioso, porém,
quando se considera em aspectos gerais os anos de hegemonia neoliberal, é que seus
apologistas e arautos a situam como a forma adequada, modelar e desejável de
organização societária.
10
O assombroso, todavia, é que sob o governo de conciliação ou de composição de
classe3 de Lula (2003-2010) e em meio à crise sistêmica e estrutural do sistema
sociometabólico4 do capital (MÉSZÁROS, 2009) em escala global, quase que como um
paradoxo, a situação econômica internacional apresentou-se extraordinariamente
favorável à economia brasileira em todas as esferas. Em face desta conjuntura favorável,
têm-se alguns índices econômicos e sociais, relativamente, alterados. Entre eles
destacam-se: a retomada da expansão da produção para as exportações de commodities;
a ampliação do mercado interno de bens duráveis por meio da redução de impostos da
linha branca (como por exemplo, geladeira, fogão e eletrodomésticos) e do aumento de
crédito; propalou-se o quase ―pleno emprego‖ (chegamos a uma taxa de 4,5% de
desempregados entre os/as trabalhadores/as formais. Já entre os precarizados, informais,
que representam 51% da População Economicamente Ativa – PEA, essas taxas não
desvelam as precárias condições de trabalho e de subemprego). De acordo com o
Instituto de pesquisas Econômicas e Aplicadas – IPEA (2010), entre 2004-2009, de
cada 10 empregos criados, 8,5 são de até 2,5 salários mínimos. É evidente que é uma
remuneração muito baixa, contudo, isso dá competitividade ao Brasil no cenário
internacional como produtor de mercadorias de baixo custo de produção; a valorização
real do salário mínimo (embora não chegou a alcançar o patamar dos anos 1950/60); as
taxas de crescimento econômico (em 2010, ano atípico, chegou a 7,5%) muito
comemorado pelos próceres dos governos petistas, embora tenha demonstrado
desempenho abaixo da media mundial (4,9%), como observam Filgueiras e Gonçalves
(2007) foi superior que o período de FHC; isso tudo estimulava a euforia da retomada
do crescimento.
No primeiro governo Lula (2003-2006), a economia cresceu em média, 3,5% ao
ano. Um crescimento modesto, mas que representou um salto em relação ao período de
1995-2002, em que FHC governou o país e no qual a economia havia crescido, em
média, apenas 2,4% ao ano. Como a população cresceu em ritmo próximo ao do PIB, o
3 Ao longo do seu governo, Lula aglutinou os mais dispares e antagônicos setores da sociedade. Entre os
partidos políticos compunham a base do governo petista o PMDB, o PP, o PR, o PSB, o PSC, o PC do B.
No campo sindical até a Força Sindical, histórico inimigo sindical, se rendeu ao operário presidente; a
FIESP e também a FEBRABAN, oportunisticamente, elogiavam o novo governo. Ao mesmo tempo o
presidente colocava o boné dos Sem Terra e dos grandes proprietários. Em todo seu mandato teve como
vice-presidente o empresário do ramo têxtil José Alencar do PRB (mas que já tinha sido do PL e do
PMDB).
4 Categoria desenvolvida por István Mészáros (pag. 9 e ss.) In. Crise Estrutural do Capital. São Paulo:
Boitempo, 2009. No capitulo dedicado ao tema, aprofundaremos o sentido dessa categoria.
11
crescimento per capita do PIB foi de apenas 0,9% nesses oito anos, ou seja, menor que
1%.
Já no segundo mandato (2007-2010) de Lula, o PIB cresceu, em média, 4,5% ao
ano. Os investimentos públicos (financiados pelo BNDES) e privados em grandes obras
para os grandes eventos (Copa do Mundo e Olimpíadas) e o controle da inflação abaixo
da meta (6,5%) estabelecida, entusiasmou demasiadamente o governo Lula no auge de
sua popularidade em fins de 2008, o que o levou a afirmar que a crise no Brasil seria
―uma marolinha‖. ―Em dezembro de 2010, o crescimento do PIB chegou a 7,5%. O
desemprego caiu para 5,3% taxa considerada pelos economistas próxima ao pleno
emprego‖ (SINGER, 2012, p. 12).
Mas, esta nova ilusão com o ―desenvolvimentismo‖ durou menos de 10 anos
(2004-2013), quando o sistema sociometabólico do capital fez sentir entre nós os
efeitos, tardiamente, da sua crise sistêmica e estrutural. Dessa maneira, em última
instância, por um lado, ―o governo Lula deve ser responsabilizado pela perda da
extraordinária oportunidade criada pelo contexto internacional‖ (FILGUEIRAS,
GONÇALVES, 2007, p. 58). Por outro, diríamos que pelo avanço do conservadorismo
(e das forças sociais e econômicas de direita) e pelo refluxo generalizado das lutas
sociais antissistêmicas deste limiar de século. Naturalmente que a crise ideológica,
organizativa e representativa em que passa o conjunto das forças sociais coletivas da
classe trabalhadora, não é de exclusiva responsabilidade de um indivíduo, mas da
articulação entre o avanço do capital sobre o trabalho, do fenômeno político
denominado de lulismo e da ideologia desenvolvimentista (estes serão nosso objeto de
análise detalhada ao longo dessa dissertação) dos últimos governos, entre outros.
No período de 2003 a junho 2013, a ideologia do ―novo desenvolvimentismo‖
foi se desenvolvendo, ganhando força e se consolidando no Brasil, até que carregada
por seus ideólogos alcançou o cume, postando-se pretensamente acima da crítica e das
classes sociais. Isso se deu, por um lado, como dissemos anteriormente, graças à
conjuntura econômica internacional favorável às exportações de produtos
manufaturados; por outro, em função da baixa credibilidade da política econômica e
social do neoliberalismo. Contudo, nos últimos dois anos (2014-2016),
aproximadamente, faltam-lhes qualquer elemento sólido em que possa se agarrar.
Dessa maneira, em face das muitas certezas que se tinha, recorro ao velho Marx
que já havia nos alertado para o fato de que ―tudo o que era sólido e estável se
desmancha no ar‖ (2010, p.43). Cunhada há mais de 160 anos, no Manifesto do Partido
12
Comunista, esta foi uma brilhante metáfora para definir ideologias, formas de governos
e modos de produção, que nasceram se desenvolveram e ruíram, como num ciclo de
vida e morte, processual e histórico.
Por certo, pode-se dizer que vivenciamos na história contemporânea do Brasil
uma ―nova‖ ideologia do desenvolvimento. Para Cardoso (1978) essa ideologia
começou com JK ao pretender que a erradicação da miséria, em nome da manutenção
do sistema político-econômico predominante no Ocidente, se traduzisse em
investimentos de origem estrangeira no país, para alavancar o desenvolvimento nacional
e assim substituir o modelo de importações. Contudo, sabe-se que desde Vargas (1930)
a ideologia desenvolvimentista era posta em pauta pelas classes dominantes.
Em sentido estritamente econômico, a ideia de desenvolvimento designa a
expansão da capacidade produtiva de uma determinada sociedade. Em sentido mais
amplo, o termo refere-se a todo o espectro de mudança em procedimentos tecnológicos,
sociais, políticos e culturais que acompanham e facilitam essa expansão.
Consequentemente, há uma ideologia de que o desenvolvimento é bom, que nos lança
para o futuro ou para algo melhor. Um exemplo concreto que corrobora com essa ideia
de progresso é o exemplo de pais para filhos, geralmente os filhos têm mais
oportunidades de estudo e melhores condições de trabalho que os pais. Isso alimenta e
fortifica essa ideologia na sociedade brasileira. Contudo, de acordo com Boron (2010) a
Argentina, o México e o Brasil são os ―eternos países do futuro‖. Ainda, de acordo com
o autor, ―apesar da triste evidência o mito do desenvolvimento capitalista nacional e sua
premissa, a existência de uma burguesia nacional, seguem exercendo um doentio
atrativo nos dirigentes ‗progressistas‘ da América Latina. Isso revela a vitória ideológica
do neoliberalismo na ‗batalha das ideias‘‖ (BORON, 2010, p. 24).
Ora, o debate em torno da temática do desenvolvimento tem ocupado as
discussões no âmbito da academia, dos governos, dos partidos, dos sindicatos e dos
movimentos sociais; em especial a partir da segunda eleição de Luis Inácio Lula da
Silva (2006), quando retornou à cena brasileira a vaga ilusão de ser possível um
desenvolvimento capitalista com melhoras significativas das condições de vida da
classe trabalhadora. Evidentemente, isso se deu, por um lado, em face do colapso de
legitimidade da ideologia neoliberal perante a classe trabalhadora (já anunciado com a
primeira eleição de Lula em fins de 2002); por outro, a partir da retomada, modesta, dos
níveis de crescimento econômico e social.
13
Desde fins dos anos 1990 e limiar deste novo século, o boom das commodities
de celulose, de petróleo, de minérios, de carne e de grãos entre outras, fruto da
especulação financeira e da financeirização da economia, fez com que no período
subsequente o Brasil voltasse a experimentar uma ―marolinha5” de crescimento
econômico, o que possibilitou alguns programas de governo. Destacam-se, entre os
principais, a revalorização do salário mínimo, o Programa de Aceleração do
Crescimento - PAC, o Bolsa Família, o Programa Universidade para Todos - PROUNI,
o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico – PRONATEC e, entre outros, a
liberalização do crédito fácil. Não negamos que foram conquistas importantes, contudo,
como diria Marx, no auge de sua ironia sarcástica, ―na planura imensa, montículos de
terra parecem colinas‖ (2011, p. 587).
As mudanças que ocorreram no mundo do trabalho, no Estado e na sociedade
como um todo, direta ou indiretamente afetaram as formas organizativas e de luta da
classe trabalhadora. Em nosso país, este quadro agrava-se na perda da autonomia e no
abandono do projeto socialista e emancipatório das maiores organizações
representativas dos trabalhadores organizados que compõem o bloco político-social
oriundo de meados dos anos 1980. Este bloco é composto principalmente pelo Partido
dos Trabalhadores - PT, pela Central Única dos Trabalhadores – CUT e pelo
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST. Se, por um lado, há um refluxo
das lutas sociais protagonizadas por esse tipo de organização social, por outro lado, os
trabalhadores e trabalhadoras não deixaram de lutar por melhores condições de vida.
Ressalta-se aqui às manifestações espontâneas das massas urbanas em junho de 2013,
que tiveram pouca influência desses setores tradicionalmente organizados da sociedade.
O pacto social de sustentação dos governos petistas, bem como a política
econômica adotada baseou-se, fundamentalmente, numa continuidade ―aperfeiçoada‖
do paradigma neoliberal. Aperfeiçoamento dado, à priori, pelo cumprimento das
exigências e normativas postas pelo grande capital de maneira absoluta, ao combinar a
ortodoxia político-econômica dos governos anteriores com uma particularidade política
- especialmente durante os dois governos de Lula, acrescentou-se à aplicação do
neoliberalismo um tratamento diferenciado às expressões da ―questão social‖.
Contudo, nesses primeiros anos do século XXI, em que pesem as melhorias
sociais propaladas aos quatros ventos pelos apologistas do ―neodesenvolvimentismo‖, o
5 Alusão à fala do então presidente Lula, a respeito da crise mundial.
14
Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Continua sendo o ―eterno país do
futuro‖. Dois exemplos ilustram bem esse quadro: o primeiro, a desigualdade de renda -
segundo dados do IBGE (2015), a concentração de renda é tão intensa que, para cada
dólar que fica com os 10% mais pobres, os 10% mais ricos recebem 68 – isso coloca o
país no 8º pior índice de desigualdade do mundo, superando todos os países da América
do Sul e ficando apenas à frente de sete países africanos; o segundo, a carga tributária,
ou, sobre quem recai o peso de sustentar o estado de coisas que vivemos. De acordo
com Salvador (2012), 61% dos tributos são de arrecadação indireta (incidem mais sobre
a produção, circulação e consumo) e 39% é de arrecadação direta (sobre a renda e a
propriedade). No entanto, o destino é o oposto – a parte que retorna para a sociedade em
forma de políticas sociais é de apenas 19%, ou seja, do ponto de vista da justiça fiscal,
essa lógica é perversa, injusta e desleal, pois, quem paga os impostos são os mais pobres
e não os ricos e suas propriedades. Desse modo, o sistema tributário brasileiro, por ter
um caráter eminentemente regressivo, tem sido um instrumento a favor da concentração
de renda, onerando os mais pobres e aliviando as classes mais abastadas.
Consequentemente a estas barreiras tidas por alguns como ―intransponíveis‖,
quase que ―naturais‖, os problemas estruturais como a concentração de riquezas e de
poder, a falta de saúde, de educação, de reforma agrária e de moradia, entre outros,
continuam, substancialmente, inalterados como há séculos. Embora, em geral, como
apontamos acima, valorizaram-se demasiadamente alguns avanços como, por exemplo,
no combate a fome; o acesso ao crédito, à educação (sobretudo no ensino privado e à
distância), aos postos de trabalho (especialmente na construção civil) e o aumento do
consumo. Diante deste contexto, os últimos governos (de 2003 até fins de 2013)
gozaram de alta popularidade.
A partir do que foi exposto e das pesquisas desenvolvidas até este momento,
identificamos que há uma considerável produção e publicação acerca dos governos e do
Estado, sobre sua natureza e significado para o país. Entretanto, a maioria destas
produções, por um lado, revela uma massa crítica de insuficiente alcance e algumas
beiram a insignificância, ou seja, são superficiais, pois, no limite, apontam fins
estritamente eleitorais em defesa ou contra o governo, como veremos. Por outro lado,
revelam-se mistificadoras, porque não avançam para uma crítica do papel do Estado
burguês, das classes sociais e da propriedade privada dos meios de fundamentais de
produção. É a forma fenomênica (aparência) em detrimento de uma análise da essência.
15
Partimos da premissa marxiana segundo a qual, ―a exigência de rejeitar as
ilusões a respeito de uma situação equivale à exigência de rejeitar uma situação que
carece de ilusões‖ (MARX, 2010, p. 31). Assim, nos perguntamos: as mudanças
materiais que ocorreram e estão ocorrendo em função do neoliberalismo ou do ―novo
desenvolvimentismo‖ na sociedade brasileira, possibilitarão a superação dos grandes
problemas estruturais - que apontamos a pouco - do nosso país? Ou seja, nossa questão
central de pesquisa trilha na perspectiva de identificar se nos últimos anos as conquistas
sociais, econômicas e políticas sob a égide ―neodesenvolvimentista‖, apoiadas no bloco
político-social de fato tiveram algum efeito estruturante e a que custo para o conjunto
dos trabalhadores e trabalhadoras no Brasil. Consequentemente, o foco da análise será
em torno da ideologia do desenvolvimento e suas implicações para as lutas de classes.
Mais especificamente, nos deteremos na análise das características e das implicações
ideo-políticas do ―novo desenvolvimentismo‖ sobre o bloco político-social.
Esta dissertação não tem a pretensão de dar as respostas definitivas a essas e
outras perguntas afins, mas procura oferecer um esquema interpretativo na trilha da
busca de respostas em uma perspectiva de totalidade. Assim, como hipótese preliminar
de respostas a estas questões, Atílio Boron (2010) nos apresenta além de mais algumas
perguntas - também algumas pistas a serem desenvolvidas. O autor de O Socialismo do
século XXI levanta a seguinte questão; como nossos países continuam mergulhados no
subdesenvolvimento apesar de o capitalismo (modo de produção dominante) ter
experimentado períodos de elevadas taxas de crescimento econômico? E responde a
questão sentenciando que ―o capitalismo é o caminho mais seguro para perpetuar o
subdesenvolvimento‖ (BORON, 2010, p. 9).
Para o autor, subdesenvolvimento é sinônimo de dependência externa, de
vulnerabilidade diante da economia global, de adaptação à divisão internacional do
trabalho e de desequilíbrio na estrutura econômico-social. Finalmente, defende a tese
segundo a qual o Brasil, a Argentina e o México, testemunham, por um lado, a
acelerada decomposição da burguesia nacional; por outro, mesmo que tenha havido
prolongados períodos de crescimento econômico, estes não foram suficientes para fazer
com que estes países superassem as fronteiras do subdesenvolvimento. Há que se
considerar ainda, que existe uma diferença radical entre crescimento e desenvolvimento
econômico.
Em outras palavras: partindo da hipótese de que há um realinhamento acrítico do
bloco político-social desde a vitória eleitoral em 2002, em torno do chamado ―novo
16
desenvolvimentismo‖, torna-se importante o estudo sobre o comportamento político dos
sujeitos sociais coletivos e as lutas de classes em governos de origem popular, pois, o
paradoxo é explícito; como se explica que diante da formação de um governo com
princípios democráticos, determinadas organizações, principalmente o MST, a CUT, a
UNE e o PT tenham arrefecido suas mobilizações e diminuído suas conquistas sociais?
Por que as conquistas estruturais do mundo do trabalho foram e estão sendo
diuturnamente ameaçadas e destruídas? E, por que as pautas estruturais dos movimentos
sociais passaram longe das prioridades do governo?
Destarte, analisar a trajetória do bloco político-social numa perspectiva crítica,
visando compreender do ponto de vista dialético as contradições inerentes aos processos
de rupturas e de acomodações diante das formas sociais hegemônicas, é o ponto de
partida para uma crítica contemporânea ao ―neodesenvolvimentismo‖ - defendido pelo
governo, por seus próceres e até por aliados da sociedade civil. De maneira que estudar
o Estado, os governos, as classes sociais e as lutas sociais e de classes, pressupõe a
articulação com a totalidade social e histórica. Ou seja, é de fundamental importância
para a pesquisa identificar a relação entre Estado, capital e trabalho, considerando-os
como categorias fundantes da economia-política contemporânea.
Quer-se compreender e achar respostas a estas e outras questões e fazer uma
leitura crítica e não apenas aparente ou superficial dos problemas suscitados.
Empreenderemos, em especial, uma pesquisa sobre o Brasil que abstraia do presente
elementos que fundamentem a nossa percepção e apontem as tendências da classe
trabalhadora em nosso país, assim como, das suas principais organizações sociais.
Numa perspectiva crítica, para seguir a velha e boa tradição marxista, intentamos
oferecer elementos para uma crítica à formação social contemporânea brasileira, na
perspectiva de desenvolver formas organizativas melhores e mais completas – na
diversidade de lutas sociais. Como militante e pesquisador social com histórico de
inserção em organizações da classe trabalhadora, espera-se que este trabalho possa
contribuir no processo de formulação e atualização da teoria da revolução brasileira a
partir da compreensão das especificidades do momento atual, tendo em vista pensar,
posteriormente, estratégias para mudar essa realidade.
Partimos da premissa de que apenas e a partir da reflexão crítica e da ação
consciente do conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras organizados se consegue
superar os históricos problemas do país. Os ―modelos‖ de "desenvolvimento" e/ou as
ideologias que vigoraram nos últimos trinta anos não resolveram os problemas
17
estruturais da sociedade brasileira. Entre os mais prementes citamos: a fome, a falta de
moradia digna, a violência, a falta de educação pública e de qualidade, a concentração
de terras, o reduzido acesso à saúde de qualidade e o desemprego estrutural. Enfim, as
condições mínimas e dignas de vida de qualquer ser humano não foram resolvidas –
apesar de o capitalismo ter sido absolutamente hegemônico nos últimos anos: portanto,
já não podem responsabilizar os trabalhadores, o socialismo e menos ainda os
comunistas pelo fracasso do sistema.
Este quadro em tela aponta que as classes hegemonicamente dominantes, do
ponto de vista teórico e político, têm dificuldades em aprender com a história. Florestan
Fernandes (2005) em sua época, já nos alertara que em grande medida os modelos
econômicos transplantados para cá não tinham por meta criar processos econômicos de
desenvolvimento interno, análogos aos que eram produzidos pela integração das
economias centrais. As burguesias alhures, no passado, criaram as suas próprias
instituições e somente usaram o Estado para os arranjos políticos mais complicados. No
Brasil, ao contrário, a burguesia sempre convergiu para o Estado usando-o como um
aparelho de unificação dos interesses da classe dominante, sem que ela tivesse a
necessidade de jogar todas as suas energias para fortalecer, autonomamente, as suas
entidades e partidos políticos.
O presente trabalho surgiu da necessidade de atualizar, numa perspectiva crítica,
a análise da formação social contemporânea brasileira, em especial, em face dos últimos
―modelos de desenvolvimento‖ que vigoraram entre nós e de suas implicações
econômicas e ideo-políticas.
A gênese, o desenvolvimento, a consolidação e as crises dos modelos
desenvolvimentistas desde a contrarrevolução de 1930, como ideologia das classes mais
abastadas da sociedade no capitalismo contemporâneo estruturou a pesquisa, a partir de
uma formulação crítica sobre o período subsequente da industrialização (1930-1980), o
neoliberalismo dos anos 1990 e o que ficou condescendido chamar, pelo menos entre os
mais ferrenhos apologistas dos últimos governos no Brasil, de
―neodesenvolvimentismo‖ ou de ―novo desenvolvimentismo‖.
Circundado por essa temática, a análise da ideologia do desenvolvimentismo
contemporâneo e suas implicações para os blocos político-sociais que compõem as
classes sociais subalternas é o objeto principal desta pesquisa. Dessa maneira, o foco da
investigação centrou-se nos modelos de desenvolvimento econômico, político e social
18
implementados pelos governos FHC e Lula e no bloco político-social6 hegemônico
sobre a classe trabalhadora organizada dos últimos 30 anos. O objetivo geral que
orientou a elaboração desta dissertação foi compreender e problematizar o papel do
Estado (como produto e expressão das lutas de classes num país de capitalismo
dependente) sob o Governo Democrático Popular (2003-2013) na condução das
políticas ditas ―desenvolvimentistas‖ e a posição do bloco político-social formado pela
CUT, PT e MST.
Do mesmo modo, buscou-se caracterizar o atual estágio das lutas de classes em
nosso país e problematizar o movimento das organizações que compõem o bloco
político-social constituído na primeira metade dos anos 1980 (PT, CUT e MST) em sua
relação com o lulismo e seus governos de princípios democráticos e populares. Além
disso, especificamente, demonstrou as posições do bloco político-social formado pelo
PT, MST e CUT em face do neoliberalismo nos anos 1990 e em relação às políticas
―neodesenvolvimentistas‖ adotadas pelo Governo Democrático Popular de Lula e
Dilma. O estudo mostrou que ao final do lulismo e do suposto ―novo
desenvolvimentismo‖ o que ocorreu não foi adesão acrítica e sim uma formulação
estratégica do bloco político-social a um projeto transformista. Pois, a tática e a
estratégia eleitoral do PT revelou-se a mesma para alçar ao poder de Estado.
Para nós - que aprendemos de Marx (2006) - o método de investigação de
pesquisa ou de estudo, difere do método de exposição. Pois, ―a investigação tem de
apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de
desenvolvimento e de perquirir a conexão íntima que há entre elas. Só depois de
concluído esse trabalho é que se pode descrever, adequadamente, o movimento real‖
(MARX, 2006, p. 28). Embora sendo momentos diferentes, investigação e exposição,
são partes constitutivas de um mesmo processo da busca do conhecimento. Desse modo,
visamos captar o movimento real do objeto (sujeito) tal qual ele é, para somente a
posteriori reproduzi-lo idealmente, ou seja, realizada esta primeira etapa de pesquisa, de
investigação, apresentarmos ao leitor, pelo menos parcialmente, alguns dos resultados
de nossa investigação.
Considerando que a realidade social é sempre mais rica que o conhecimento
reflexivo que temos ou podemos ter sobre ela – pois, a realidade social é infinita,
6 Duas observações importantes: a primeira, diz respeito ao conteúdo desta categoria que é em sua origem
gramsciana; a segunda, que quando nos reportamos a esta categoria pensamos no PT, na CUT e no MST
principalmente. Ambas as organizações fundadas na primeira metade dos anos 1980. Voltaremos amiúde
nestes assuntos.
19
complexa, dinâmica e contraditória - durante nossa pesquisa, nos aproximamos
sucessivamente do objeto de estudo. Ou seja, captamos a posição política do bloco
político-social diante da estratégia ―desenvolvimentista‖ do governo ―democrático-
popular‖ visando apreender as múltiplas determinações e o seu modo de ser. Assim,
partimos do abstrato ao concreto para depois fazer o caminho inverso, expresso nessa
dissertação. No método dialético desenvolvido por Marx, ou seja, no materialismo
histórico dialético, a síntese é o concreto; e ―o concreto [o ―neodesenvolvimentismo‖ e
o bloco político-social...] é concreto, porque é a síntese de muitas determinações, isto é,
unidade do diverso‖ (MARX, 2011, p. 54).
Diante do pouco acumulo sobre o tema e do ainda escasso referencial
bibliográfico disponível, tomamos por objetivo desta pesquisa a tarefa política e
intelectual de proceder a uma pesquisa bibliográfica acerca da temática. Não há como
separar o instrumental técnico da perspectiva metodológica. Pois, o primeiro, para além
de um conjunto de técnicas para se aproximar do objeto, envolve também a criatividade
do pesquisador e um conjunto de procedimentos. A metodologia envolve uma teoria de
abordagem em relação a qual método seguir. Assim, priorizamos a pesquisa
bibliográfica e documental sob um ângulo analítico, geral e sintético. Acreditamos que
esta é a fórmula mais segura, pois possibilita um conhecimento do objeto com
perspectiva de totalidade da realidade.
Aludimos a pouco, que todo o conhecimento teórico é relativo e insuficiente,
contudo, isso não significa que compartilhamos da teoria do relativismo do
conhecimento. Ao contrário, nos somamos àqueles que defendem que o estudo que vai à
essência dos fenômenos permite eliminar hipóteses supérfluas e ir além das aparências
fenomênicas, imediatas e empíricas da realidade e dos objetos (sujeitos) estudados. Em
resumo, nosso método de investigação tratou de forma rigorosa e crítica as bibliografias
e documentos que nos auxiliaram a compreender a temática aqui apresentada.
Marx não separava o objeto de estudo do método, menos ainda do objetivo que
se almeja alcançar com determinado estudo. Assim, em sua teoria social, a questão do
método não se resolve isoladamente e se apresenta com um sólido objetivo: fazer a
crítica dos fundamentos, se apropriar, negar e superar; apresentar um profundo
conhecimento científico sobre o modo de produção capitalista. Apresenta-se também,
como um emaranhado de problemas, pois, sua teoria se vincula a uma classe social, ou
seja, a um projeto revolucionário.
20
Contudo, foi somente em 1858, nos Grundrisse, que Marx teve condições de
adequar o seu objeto de estudo – a sociedade capitalista – no seu método de análise.
Consequentemente, ―o método de Marx não resulta de descobertas abruptas ou de
intuições geniais, - ao contrário, resulta de uma demorada investigação‖ (NETTO, 2011,
p. 19). Por conseguinte, pode-se inferir que o método em Marx é uma longa construção
teórica, amadurecida no curso de sucessivas aproximações, que tem início a partir de
1843/44, quando se defronta polemicamente com a filosofia de Hegel - passando pela
economia política clássica de David Ricardo e Adam Smith e o pelo socialismo Francês
– e se completa em seus últimos escritos políticos já em finais dos anos setenta do
século XIX.
Desta maneira, não encontramos o método em Marx no sentido de um conjunto
de regras, de normas ou de uma receita a ser seguida e obedecida. O método em si é um
momento abstrato extraído das formas de ser, ontológicas, dos sujeitos e dos objetos.
Pois, ―no método teórico o sujeito, a sociedade, tem de estar continuamente presente
como pressuposto da representação‖ (MARX, 2011, p. 55). Dito de outra maneira, os
fundamentos a serem seguidos ou revelados, não estão no método propriamente dito,
mas nos sujeitos da pesquisa. Além disso, como apontamos o método não é autônomo
do objeto de pesquisa ou da teoria; em última instância é a realidade que determina o
método a seguir. Segundo Netto,
o método não é um conjunto de regras formais que se ―aplicam‖ a um objeto
que foi recortado para uma investigação determinada nem, menos ainda, um
conjunto de regras que o sujeito que pesquisa escolhe, conforme sua vontade,
para ―enquadrar‖ seu objeto de investigação [...Ainda], não é possível [...]
analisar o método sem a necessária referência teórica e, a teoria social de Marx
torna-se ininteligível sem a consideração do seu método (NETTO, 2011, p. 52-
55).
No processo de apreensão das determinações do objeto estudado, ou seja, de
aproximação sucessiva ao objeto, a subjetividade, os valores e os conceitos cumprem
um papel importante como capacidades (ou propriedades) e categorias do sujeito que
pesquisa. Contudo, um objeto de estudo não é conhecido simplesmente porque o
pesquisador deseja conhecê-lo (ainda que profundamente, pois esse processo não
depende somente da vontade) e nem é apropriado na sua essência só porque o sujeito
usa o método correto. Fatores objetivos e subjetivos são partes constitutivas do método
correto a ser seguido no processo de conhecimento do objeto.
Temos consciência de que qualquer conhecimento teórico obtido no campo das
ciências sociais se dá por aproximação, ou melhor, por sucessivas aproximações. Assim,
21
o pesquisador no máximo apreende as determinações por meio da capacidade cognitiva
e as sistematiza. Isso porque a teoria ou mesmo o conhecimento não criam o real. A
produção do real é própria do real. Neste ponto, Marx se coloca em oposição frontal a
Hegel. Diz ele:
meu método dialético, por seu fundamento, difere do método hegeliano, sendo
a ele inteiramente oposto. Para Hegel, o processo do pensamento – que ele
transforma em sujeito autônomo sob o nome de ideia – é o criador do real, e o
real é apenas sua manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é
mais do que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ela
interpretado (MARX, 2006, p. 28).
Portanto, a representação ideal é a expressão própria captada do objeto real. O
próprio Marx (2006, p.15) alertara que ―todo começo em qualquer ciência é difícil‖.
Assim, se a aparência coincidisse imediatamente com a essência, não seria necessária a
pesquisa. Aqui reside outra questão central e fundamental do método em Marx.
Segundo Lukács, ―quando se trata de questões atinentes ao ser social, assume papel
decisivo o problema ontológico da diferença, da oposição e da conexão entre fenômeno
e essência‖ (2012, p. 294). Desse modo, quando se almeja conhecer o objeto para
transformá-lo, a reprodução ideal do objeto não pode limitar-se aos fenômenos da
aparência, ou suas expressões fenomênicas. Deve-se ir à essência dos fenômenos para
poder compreendê-los e transformá-los.
Considerando que vivemos em uma sociedade dividida em classes, portanto,
dilacerada desde seus fundamentos, compartilhamos da perspectiva de que não há
neutralidade no método ou na pesquisa e menos ainda na metodologia. Como observou
acertadamente Mészáros, ―em parte alguma o mito da neutralidade ideológica – ou a
autoproclamada neutralidade axiológica, da chamada ―ciência social rigorosa‖ – é mais
forte do que no campo da metodologia [...] na verdade, esta abordagem da metodologia
pretensamente neutra tem um forte viés ideológico conservador‖ (2004, p. 301). Torna-
se evidente, nesta discussão, que não há neutralidade na pesquisa (ou em qualquer
ciência social) em função de que, a relação sujeito e objeto no processo do
conhecimento teórico não é uma relação de externalidade – é uma relação em que o
sujeito está implicado no objeto. Dito de outra maneira, no processo de conhecimento,
de produção da teoria, não é o objeto da pesquisa que muda, mas o pesquisador (sujeito)
numa relação dialética entre sujeito e objeto. Ademais que o cientista (ou o pesquisador)
pode definir, a partir de seu ponto de vista ideológico, o destino que quer dar à sua
pesquisa e à sua produção teórica.
22
Francisco Fernándes Buey (2009) desenvolveu a tese de que Marx produziu um
novo materialismo a partir da crítica às ideologias. De acordo com o autor, o novo
materialismo de Marx,
trata-se, para começar, de um materialismo prático: de uma filosofia
materialista prática. Num segundo nível, é um materialismo histórico: uma
teoria da história natural e cultural que contempla o mundo com um continuum
físico-biológico, biológico-social e sociocultural, no qual a particularidade da
espécie humana consiste em se produzir a si mesma e produzir socialmente os
próprios meios de vida. E, em terceiro lugar, é um materialismo econômico:
uma concepção das relações entre os homens, especialmente no mundo
moderno, que registra a primazia que nelas tem as relações de propriedade,
produção, distribuição e consumo de bens, assim como a divisão do trabalho
que se configurou historicamente (BUEY, 2009, p. 135).
Se preferirmos, o método é materialista porque não é o ser humano que põe a
realidade, é esta que reflete no humano; é histórico em função de estar no tempo e em
um determinado lugar (portanto pode mudar); e é dialético, porque a vida não é relação
de causa e efeito, não é linear. Desse modo, a consciência, o espírito e até mesmo a
história não atuam. ―A história não faz nada; ela não trava combates: é o homem real
que o faz (...) a história, não é nada além da atividade do homem perseguindo seus
próprios fins‖ (BUEY, 2009, p. 137).
A importância destes apontamentos justifica-se no fato de que, diferentemente
da perspectiva positivista, para a qual o objeto é que incide sobre o sujeito ou na
fenomenologia em que é o sujeito que incide sobre o objeto, no marxismo, sujeito e
objeto interagem de forma dialética. Pois, a ontologia marxiana afasta, daquela de
Hegel, todo elemento teleológico. Em Marx, no plano ontológico, não existe nada
análogo. Como observa Lukács (2012) todo existente deve ser sempre objetivo
(movente e movido), ou seja, pertencer a um complexo concreto: isso porque, por um
lado, o ser em seu conjunto é visto como um processo histórico; por outro, as categorias
não são tidas como enunciados sobre algo que é ou que se torna, mas sim como formas
moventes e movidas da própria matéria.
Cabe destacar ainda, que para Lukács (2012), a convivência com o desconhecido
é uma determinação ineliminável do mundo dos homens. Contudo, da mesma maneira
que Marx, isso não significa que podemos apenas conhecer o objeto de pesquisa
parcialmente ou singularmente. Isso porque, a realidade não é estática, ou seja, é
dinâmica e processual. Desta maneira, é fundamental incorporar os novos elementos da
realidade que está sempre em movimento. A realidade não é imutável, não é estática. A
realidade é um todo vivo. Em função disso devemos sempre rever nossos conceitos e
23
incorporar os novos conteúdos produzidos pela realidade. A cada novo avanço do
conhecimento, amplia-se, também, as experiências de investigação que podem e devem
ser generalizadas em sentido metodológico.
O método em Lukács apresenta dois traços marcantes:
o primeiro, que a metodologia mais adequada ao conhecimento de um dado
objeto só pode ser determinada com precisão pots festun, isto é, após o
conhecimento do objeto ter sido alcançado [...] e, segundo, também na reflexão
metodológica, evidencia-se o caráter de aproximação de todo movimento
gnosiológico [...] em suma, o método exibe em Lukács, uma definição
ontológica fundante: é sua função social que determina o ser do método
(LESSA, 1999, p.144/145).
A partir do que foi exposto, esperamos ter evidenciado, ainda que sumariamente,
que não é o anunciado do nosso método que determina a melhor apreensão do objeto de
pesquisa. Assim, da mesma maneira que Marx, no que se refere ao método de trabalho,
no decorrer de qualquer pesquisa deve-se apreender a lógica de determinados objetos
específicos e não elaborar uma lógica sobre eles. Daí que, nessa pesquisa de mestrado,
buscamos sempre uma aproximação sucessiva aos elementos constituintes do ―novo
desenvolvimentismo‖ em face do Estado e dos sujeitos sociais coletivos que compõem
o bloco político-social que são um dado imediato, abstrato, portanto, síntese de
múltiplas determinações. Em outras palavras; como diria Lenin, realizamos ―análises
concretas de situações concretas‖. Além disso, buscamos conhecer e interpretar a
história recente de nosso país e seus ―modelos de desenvolvimento‖ e suas implicações,
numa relação dialética, com as lutas de classes, o Estado e a sociedade como um todo.
Assim, pelo que dissemos nesta introdução, esperamos ter deixado claro que
buscamos entender as implicações e o papel do ―novo desenvolvimentismo‖ sobre as
lutas sociais no Brasil e a trajetória do bloco político-social do ponto de vista da
totalidade (que ao lado da mediação e da contradição formam as categorias centrais da
obra marxiana) visando, sobretudo, contribuir para a compreensão da atual formação
social brasileira. Ou seja, aspiramos que as reflexões aqui apresentadas possam vincular
nossa pesquisa a um projeto de superação da atual e hegemônica ordem burguesa.
Nesse caminho de aproximações sucessivas aos elementos constitutivos do ―novo
desenvolvimentismo‖, além do debate teórico sobre a temática pesquisada na
bibliografia já publicada, dialogamos criticamente especialmente com os apologistas do
lulismo e do desenvolvimentismo. Além disso, essa pesquisa fez uso de documentos
fulcrais e medidas institucionais adotadas pelo Governo Democrático Popular que
expressam sua política dita ―novo desenvolvimentista‖. Ou seja, do governo, cotejou-se
24
as políticas econômicas que visavam o dito desenvolvimento e a ampliação das políticas
sociais com a distribuição renda. Também se analisou os posicionamentos políticos e as
ações do bloco político-social (PT, CUT, MST) constantes em seus documentos e
resoluções oficiais públicas.
No primeiro capítulo, aborda-se, em linhas gerais, a partir das formulações de
autores marxistas, o processo de evolução e consolidação do modo de produção
capitalista com suas crises e a particularidade do capitalismo dependente. Além disso,
faz-se uma breve digressão sobre as funções do Estado e o papel deste nas
transformações econômicas, políticas e sociais sob o capitalismo dependente brasileiro.
No segundo capítulo, discute-se o significado do golpe civil-militar, os férteis
anos 1980, o neoliberalismo e a conformação do bloco político-social, a gênese e a
constituição do PT, da CUT e do MST. Consequentemente, analisa-se o fim do modelo
de industrialização e as lutas de classes contemporâneas para além da abordagem teórica
e política sobre o bloco político-social e sua dialética.
O terceiro capítulo aborda categorias chaves como a ideologia e o suposto ―novo
desenvolvimentismo‖ no Brasil. Da mesma forma, disserta-se sobre os fundamentos
teóricos e práticos do ―novo desenvolvimentismo‖ e sobre a crítica marxista.
Por fim, no quarto capítulo, além de prosseguir discorrendo sobre categorias
importantes para compreender o momento atual em que vivemos, como, por exemplo, o
lulismo, a hegemonia, a pequena política e o transformismo - apresentamos alguns
apontamentos a título de hipóteses e como resultados da pesquisa. Destacam-se neste
sentido, as formulações em torno do papel do Estado, dos últimos governos, do bloco
político-social, da corrupção e de maneira geral retoma-se uma crítica à formação social
contemporânea.
25
CAPÍTULO I
Desenvolvimento do modo de produção capitalista, crise, lutas de classes e os
sentidos do Estado
Ao longo deste capítulo, tratar-se-á, em linhas gerais, a partir da abordagem de
autores marxistas, do processo de evolução e as nuances do modo de produção
capitalista. Também a partir dos referidos teóricos, trataremos das crises como sendo
parte constitutiva do capitalismo. Além disso, iremos elencar algumas abordagens
teóricas sobre o Estado e o processo de absorção de parte das reivindicações da classe
trabalhadora sob o capitalismo tardio: portanto, vamos pontuar as diferentes
características ou funções do Estado, especialmente sob o estágio monopolista do
capital e, a partir disso, buscar os elementos centrais que nos possibilitam diferenciar o
papel do Estado no capitalismo central e no de capitalismo dependente.
Também, apresento uma análise do processo de constituição do capitalismo e do
Estado no Brasil. Para esta tarefa, lançaremos mão das categorias formuladas
originalmente por Lenin, Gramsci e Moore Jr., que sob a luz dos clássicos brasileiros,
nos ajudarão a interpretar o processo de desenvolvimento capitalista com as suas
contradições, crises e especificidades nacionais. Ou seja, neste primeiro capítulo, além
de tudo, esboçam-se os elementos centrais das contingências sociais, econômicas e
políticas da formação sócia histórica brasileira.
1.1 Desenvolvimento e crise do modo de produção capitalista
Marx com suas pesquisas sobre a gênese, o desenvolvimento, a consolidação e
as crises da sociedade burguesa, diferentemente de todos os filósofos e economistas de
sua época -, formulou e assim produziu uma teoria social. O grande teórico da classe
trabalhadora dedicou-se ao estudo da sociedade burguesa que emergiu da crise do
Mundo Feudal e que havia se consolidou a partir da Revolução Francesa de 1789. Os
resultados dessas pesquisas aparecem, principalmente, nos Grundrisse (1857/58) e em
O Capital (1867), quando o autor desvela os segredos do modo de produção capitalista
e as correspondentes relações de produção e de circulação. No tempo e espaço de
pesquisa de Marx, ―a Inglaterra é o campo clássico dessa produção‖ (MARX, 2006, p.
16).
26
Por certo, foi a partir do seu método de investigação e pesquisa que se tornou
possível ir à essência e ver as conexões íntimas que há entre os diferentes processos de
evolução das formações sociais de outrora e contemporânea. Isso o possibilitou ver as
diferentes formas de desenvolvimento do capitalismo, como por exemplo, na Alemanha
e na Inglaterra. Desse modo, no estudo sistemático de uma determinada formação
social, deve-se começar a pesquisa pelo fenômeno mais desenvolvido se se quer
compreender os processos ainda em seu estágio embrionário de evolução.
Por conseguinte, para Marx,
a sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização
histórica da produção. Por essa razão, as categorias que expressam suas
relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente
compreender a organização e as relações de produção de todas as formas de
sociedade desaparecidas [...] a anatomia do ser humano é uma chave para a
anatomia do macaco (MARX, 2011, p. 58).
Como a economia burguesa forneceu para o nosso autor a chave para a
compreensão da economia antiga (seja ela a tribal, a escravista ou a feudal), do mesmo
modo, para lograr maior êxito na interpretação dos fatos sociais e das crises estruturais
do capital deve-se começar pelo campo clássico ou pelas formas gerais do capitalismo
contemporâneo. Isso porque o corpo desenvolvido é mais fácil de estudar do que a
célula do corpo. Além disso, convém resaltar em uma perspectiva dialética, como
observa Marini, que,
se é certo que o estudo das formas sociais mais desenvolvidas projeta luz sobre
as formas mais embrionárias [...] também é certo que o desenvolvimento ainda
insuficiente de uma sociedade, ao ressaltar um elemento simples, torna mais
compreensível sua forma mais complexa, que integra e subordina esse
elemento (MARINI, 2000, p. 106-107).
No estudo da história das sociedades humanas, Marx buscou apreender, a fundo,
como os seres humanos se organizam para produzir os seus meios de vida. Disso
constatou que ao longo da evolução dos seres humanos, eles foram se organizando de
diferentes formas para garantir a sua existência. A saber: o Comunismo primitivo; o
Escravismo; o Feudalismo e o Capitalismo. O formulador da crítica da economia
política chamou a isso de modos de produção.
A célebre frase contida no Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels,
―a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes‖
(2010, p. 40) expressa o antagonismo entre as classes que produzem as riquezas e as
classes que delas se apropriam. Por certo, ainda que expressas em formas e meios
diferentes, a eterna luta entre as classes sociais, seja ela no âmbito do Estado, nas
27
eleições, na universidade, na fábrica ou na família, por exemplo, constitui o motor de
toda história. Acrescenta-se a isso o papel decisivo do Estado como síntese da moderna
sociedade capitalista sob o domínio da classe hegemonicamente dominante.
Esta constituição ou este processo pode ser compreendido historicamente. Por
volta do século XV, na Europa ocidental, inicia-se a decadência do mundo feudal e a
abertura da sociedade moderna capitalista, tendo como epicentro a Inglaterra (onde as
forças produtivas estavam mais desenvolvidas) e se estende posteriormente por todo o
velho continente com a Revolução Francesa de 1789. No período de transição do
feudalismo para o capitalismo, indubitavelmente transforma-se o mundo, através do
surgimento da burguesia, do questionamento do absolutismo, das primeiras revoluções
burguesas, do desenvolvimento da navegação, do comércio, das relações comerciais,
das grandes transformações econômicas, dos grandes debates em torno da razão e da fé,
do desenvolvimento das ciências, da busca do conhecimento e da verdade etc. A
sociedade modificou-se substancialmente e a burguesia, sob este ponto de vista, foi
revolucionária porque de fato transformou o mundo - a seu favor.
Concomitante a essas mudanças, a origem do processo de acumulação capitalista
deu-se a partir dos cercamentos dos campos e da expulsão dos camponeses, no que
Marx (2011) chamou de acumulação primitiva. A chamada acumulação primitiva, para
o autor, ―é apenas o processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de
produção. É considerada primitiva porque constituiu a pré-história do capital e do modo
de produção capitalista‖ (Marx, 2011, p. 828). Assim, encontramos no famoso capitulo
XXIV de O Capital, que, além dos saques, do roubo das terras comuns e da
expropriação dos camponeses pela nascente burguesia, constituiu-se em elemento
fundamental da chamada acumulação primitiva a necessidade e o emprego da ―força do
Estado, para regular o salário, isto é, comprimi-lo dentro dos limites convenientes à
produção de mais-valia, para prolongar a jornada de trabalho e para manter o próprio
trabalhador num grau adequado de dependência‖ (Marx, 2011, p. 851). Desse modo,
Marx vê a expropriação como condição básica, como elemento primário de constituição
do capitalismo, portanto, pode-se dizer que sem a expropriação não existiria o sistema
sociometabólico do capital. Consequentemente, desde a gênese histórica do processo da
produção capitalista, percebe-se que o Estado burguês sempre serviu as classes
hegemonicamente dominantes.
Esse prólogo (acumulação primitiva de capital) criou as bases do Modo de
Produção Capitalista – MPC, e ocorreu primeiramente nos países ocidentais da Europa,
28
como a Inglaterra, a Irlanda e a Escócia entre outros, nos idos séculos XV, XVI, XVII e
XVIII. Desde então, ao longo de sua existência, ―o capitalismo moveu-se (move-se) e
transformou-se (transforma-se); mobilidade e transformação estão sempre presentes
nele: mobilidade e transformação constituem o capitalismo, graças ao rápido e intenso
desenvolvimento das forças produtivas que é a sua marca‖ (NETTO e BRAZ, 2007, p.
169 - Itálicos originais).
Consequentemente, para efeito didático, podemos elencar como sugerem Netto e
Braz (2007) três grandes estágios do capitalismo: o primeiro, de aproximadamente 1500
a 1750 -, conhecido como capitalismo comercial, no qual o papel dos comerciantes e
mercadores foi decisivo. Trata-se do estágio inicial do capitalismo, ou seja, aquele em
que a burguesia ainda era revolucionária e os trabalhadores quanto classe social somente
existiam em embrião. O segundo estágio evolutivo do capitalismo, de 1750 a 1870 -, é
conhecido como capitalismo industrial ou concorrencial7. De acordo com nossos
autores, ―essa passagem a outro nível vincula-se diretamente a mudanças políticas (está
a completar-se a Revolução burguesa, com a tomada do poder de Estado) e técnica (vai
irromper a Revolução Industrial)‖ (NETTO e BRAZ, 2007, p. 171). Por fim, o terceiro
de 1880 aos dias atuais -, o estágio do capitalismo imperialista ou monopolista8.
Uma interpretação clássica do imperialismo foi oferecida por Lenin no seu
reconhecido estudo realizado durante a primavera de Zurique (Suíça) e que veio a luz
pela primeira vez em abril de 1916, O Imperialismo, fase superior do capitalismo. De
acordo com Lenin, ―o imperialismo surgiu como desenvolvimento e desdobramento
direto das características fundamentais do capitalismo em geral‖ (LENIN, 2007, p. 103).
Considerado como um estágio particular do desenvolvimento do capitalismo, o
imperialismo, em acepção ampla do termo, é pela sua essência econômica -, o
capitalismo monopolista. Pois, a livre concorrência do estágio anterior, agora,
transformou-se em monopólio.
Assim, para Lenin,
―se tivéssemos que definir o imperialismo numa fórmula curta, diríamos que o
imperialismo é a etapa monopolista do capitalismo. Essa definição
compreenderia o principal, pois, por um lado, o capital financeiro é o capital
bancário de alguns grandes bancos monopolistas fundidos com o capital das
associações monopolistas industrial. Por outro lado, a partilha do mundo é a
7 Esta fase dá-se concomitantemente à primeira revolução industrial 1750 – 1870 e coincidiu com o
aumento da influência política da classe operária, o que levou as classes dominantes á ampliar na fase
seguinte o papel integrador do Estado por meio de novas legislações sociais.
8 Neste período ocorreu a segunda revolução industrial (1870-1945) e a terceira revolução industrial
(1945...).
29
transição da política colonial, que se estende em obstáculos às regiões ainda
não apropriadas por nenhuma potência capitalista...‖ (LENIN, 2007, p. 104).
Mas, sobre essa definição de imperialismo, para o grande dirigente bolchevique,
faz-se necessário incluir os seguintes traços fundamentais:
1) a concentração da produção e do capital atingiu um grau tão alto de
desenvolvimento que origina os monopólios, que passam a desempenhar um
papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital bancário com o
industrial leva ao surgimento, baseado nesse ‗capital financeiro‘ da oligarquia
financeira; 3) a exportação de capitais adquire uma importância cada vez
maior em relação à exportação de mercadorias; 4) formam-se associações
internacionais de capitalistas monopolistas, que partilham o mundo entre si; e,
5) é completada a partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas
mais importantes. O imperialismo é o capitalismo que chegou na fase de
desenvolvimento em que prepondera a dominação dos monopólios e do capital
financeiro, em que a exportação de capitais adquiriu importância marcante, em
que começou a partilha do mundo pelos trustes internacionais e terminou a
partilha de toda a terra entre os países capitalistas mais importantes (LENIN,
2007, p. 104/105).
À definição que o imperialismo é a fase monopolista do capitalismo, acrescente-
se outra ideia central do revolucionário russo, desenvolvida nesta obra que tomamos
aqui como referência. A saber: a tese de que o capitalismo está realmente maduro na sua
fase imperialista, ou seja, a partir da penúltima década do século XIX.
Outra interpretação marxista bastante complementar referente a este estágio do
desenvolvimento do capitalismo foi oferecida pelo Belga Ernest Mandel (1982).
Seguindo a trilha deixada por Marx (especialmente nos Grundrisse de 1857/58), para
Mandel, ―a transição do capitalismo concorrencial para o imperialismo e para o
capitalismo monopolista alterou necessariamente tanto a atitude subjetiva da burguesia
em relação ao Estado, quanto a função objetiva desempenhada pelo Estado ao realizar
suas tarefas centrais (MANDEL, 1982, p. 337). Pois, para Mandel, os monopólios
representam um recurso do capital para preservar e aumentar as taxas de lucros. Assim,
analisando as fontes principais do que o autor chama de superlucros, diz, ―os super
lucros das firmas, operando com uma produtividade acima da média, só poderão ser
explicados por uma transferência de valor à custa das firmas que operam abaixo da
média‖ (MANDEL, 1982, p. 69).
Deve-se registrar, que do ponto de vista histórico, a ascensão do capitalismo
monopolista coincidiu com o aumento da influência política da classe trabalhadora
sobre a sociedade daqueles idos tempos. Lembramo-nos, por exemplo, da Comuna de
Paris de 1871, da fundação da Segunda Internacional Comunista em 1889, por
Friedrich Engels, da constituição em 1890 da Social Democracia Alemã e nos primeiros
30
anos do século XX a grande revolução russa liderada pelos bolcheviques. Portanto,
pode-se dizer que principais transformações deste período histórico foram duas: uma
situada no aspecto político (o crescimento do movimento operário, chegando à
revolução russa) e outra econômica - a concentração e monopolização do capital. Por
conseguinte, aumentou a urgência e o papel integrador do Estado por meio de novas
legislações sociais. Assim sendo, no estágio do capitalismo tardio, verificar-se-á
ampliações das funções do Estado, como veremos adiante por meio das formulações de
Mandel (1982) e outros.
Mas, antes de discorrermos sobre as funções do Estado, contudo, convém, para
efeito didático, subdividirmos este estágio monopolista do capitalismo em três fases
distintas entre si, porém, imbricadas umbilicalmente. Pois, afinal, desde
aproximadamente os anos 1880 aos dias atuais, considere-se que estamos falando de
pouco mais de um século de profundas transformações no modo de produção capitalista.
Assim, na história desse estágio do MPC, Netto e Braz, com base em Mandel, indicam
que temos ―a „fase clássica‟ que vai de 1890 a 1940, os „anos dourados‟, do fim da
Segunda Guerra Mundial até a entrada dos anos setenta e o capitalismo contemporâneo,
de meados dos anos setenta aos dias atuais‖ (NETTO e BRAZ, 2007, p. 192).
A primeira fase (1890-1940) do estágio imperialista do capitalismo é a liberal
ou, se preferirmos, pois assim também é conhecida - fase clássica do capitalismo
monopolista. Se for verdade que aqui já se manifestam tendências que virão à tona no
capitalismo tardio, analisado especialmente por Mandel (1982), nesta fase, contudo, o
grande marco além das duas Guerras Mundiais (1914-1918 e 1939-1945) foi a primeira
grande crise mundial do capitalismo em 1929. Portanto, essa fase clássica é demarcada
pela Segunda Guerra Mundial.
A segunda fase do capitalismo monopolista (1945-1973) corresponde, portanto,
a um período relativamente curto deste estágio imperialista. Contudo, é uma fase
bastante controversa. Pois, após a Segunda Guerra Mundial, vários autores que se
dedicaram ao estudo desta fase lançaram diversas designações que sinalizam diferentes
interpretações. Para Mandel (1982), tratava-se do capitalismo tardio; de outros autores,
especialmente economistas, tornou-se conhecido expressões como os ―anos gloriosos‖,
“anos dourados”, “três décadas gloriosas” ou ainda ―fase de ouro do capitalismo‖
entre outras afins.
De acordo com Behring (2012, p. 172), ―o capitalismo do pós-guerra viveu seus
trinta anos de ‗glória‘, de crescimento fundado no fordismo/keynesianismo, e que
31
geraram uma mais-valia monumental, boa parte dela apropriada na forma de juro, pelo
mundo da finança, que ademais não está afastado da economia real‖. Decerto, ainda que
paradoxalmente (pois, para além da União Soviética sair fortalecida e com legitimidade
do II pós-guerra, registram-se o crescimento do movimento sindical e dos partidos
socialdemocratas ligados aos trabalhadores e a mobilização anticolonialista que pôs fim
a vários impérios colonialistas), ―foram quase trinta anos que o sistema apresentou
resultados econômicos nunca vistos, e que não se repetiram mais‖ (NETTO e BRAZ,
2007, p. 195). Neste período, no entanto, registraram-se no mínimo cinco crises cíclicas.
A saber: 1949, 1953, 1958, 1961 e 1970. Porém, ―seus impactos foram diminuídos pela
regulação posta pela intervenção do Estado (em geral, sob a inspiração das ideias de
Keynes) e, sobretudo, as taxas de crescimento mostraram-se muito significativas‖
(NETTO e BRAZ, 2007).
Pode-se considerar, portanto, que ao longo da história do capitalismo
monopolista no plano internacional, para além desses movimentos cíclicos de crise que
é simplesmente a repetição a cada 10, 7 ou 5 anos, temos ―também como uma sucessão
de períodos mais longos, de aproximadamente 50 anos...‖ (MANDEL, 1982, p. 76). De
acordo com Mandel, até agora temos a experiência de quatro ondas longas: 1) o longo
período compreendido entre o fim do século XVIII e a crise de 1847, basicamente
caracterizado pela difusão gradativa, da máquina a vapor de fabricação artesanal ou
manufatureira, por todos os ramos industriais e regiões industriais mais importantes.
Essa foi a onda longa da própria Revolução Industrial; 2) o longo período delimitado
pela crise de 1847 e o início da década de 90 do século XIX, caracterizado pela
generalização da máquina a vapor de fabrico mecânico, como a principal máquina
motriz. Essa foi a onda longa de primeira revolução tecnológica; 3) o longo período
compreendido entre o início de 1890 e a Segunda Guerra Mundial, caracterizada pela
aplicação generalizada dos motores elétricos e a combustão a todos os ramos da
indústria. Essa foi a onda longa de segunda revolução tecnológica; 4) o longo período
iniciado na America do Norte em 1940 e nos outros países imperialistas em 1945/48,
caracterizado pelo controle generalizado das máquinas por meio de aparelhagem
eletrônica (bem como pela gradual introdução da energia nuclear). Essa foi a onda longa
de terceira revolução tecnológica (MANDEL, 1982, p. 83 e 84). Cada um desses
períodos longos pode ser subdividido em duas partes: uma caracterizada por taxa de
lucros ampliada, crescimento e acumulação acelerada; outra caracterizada por lucros em
32
declínio, crescimento econômico e a acumulação gradativamente desacelerada
(MANDEL, 1982).
Os movimentos ascendentes e descendentes da acumulação de capital no
decorrer de um determinado ciclo econômico, são caracterizados por Mandel da
seguinte maneira: num período de oscilação ascendente, há uma acréscimo tanto da
massa quanto da taxa de lucros, e um aumento tanto no volume quanto no ritmo de
acumulação. Ao contrário, numa crise e no período subsequente de depressão, a massa e
a taxa de lucros declinarão, e o mesmo acontecerá ao volume e ao ritmo da acumulação
de capital. O ciclo econômico consiste, assim, na aceleração e desaceleração sucessivas
da acumulação (MANDEL, 1982, p. 75).
De acordo com esse esquema, segundo Mandel,
deveríamos estar agora [início dos anos 70] na segunda fase da ‗longa onda‘
iniciada pela Segunda Guerra Mundial, caracterizada por uma acumulação
desacelerada de capital. A sucessão mais rápida de recessões nas economias
imperialistas mais importantes (França, 1962; Itália 1963; Japão, 1964;
Alemanha Ocidental, 1966/67; Grã-Bretanha, 1970/71; Itália, 1971, e a
recessão em escala mundial de 1974/75) parece confirmar essa hipótese
(MANDEL, 1982, p. 85).
Em outro estudo posterior e este que citamos, dedicado especificamente a
entender a crise do capital, diz Mandel que ―a recessão generalizada de 1974/75 é uma
crise clássica de superprodução [...] é a conclusão de uma fase típica da queda da taxa
média de lucros. Tal queda é claramente anterior ao encarecimento do petróleo‖
(MANDEL, 1990, p. 23). Trata-se, portanto, que ao ocaso desta fase do capitalismo
monopolista, a crise do sistema deixou de ser apenas cíclica, como aponta Mandel, para
assumir proporções estruturais, conforme definiu Mészáros (2009), pelo fato de ela ser
cumulativa, crônica e permanente e, portanto, avessa a quaisquer correções de rumos
reformistas e paliativos.
Cabe destacar, que por um lado, em face da pressão dos trabalhadores e
trabalhadoras, e por outro, do novo papel do Estado monopolista objetivando legitimar-
se, nesta fase, deu-se a ampliação em todos os aspectos das políticas sociais.
Culminando, assim, na configuração que dariam forma aos modelos de welfare state –
ou, de Estado de Bem-Estar Social. No entanto, esta é uma fase do capitalismo
monopolista dinâmica e particular de determinados países europeus, em um contexto de
crescimento do capitalismo. Ou seja, foi um breve episódio concomitante a longa onda
expansiva do capitalismo.
33
Em Assistência social e trabalho no capitalismo, Boschetti (2016) apresenta o
conceito de Estado Social como categoria mais adequada para a interpretação do caráter
capitalista das ações do Estado em contraste com os conceitos de Welfare State, Etat
Providence, ou, Estado de Bem Estar Social. Em sua argumentação, a opção pelo uso da
categoria Estado Social assenta-se na busca pela explicitação do caráter capitalista das
ações sociais do Estado. Não se confunde com a perspectiva social-democrata alemã de
Sozialstaat que atribuiu ao Estado uma conotação ―socialista‖, como possibilidade
democrata de instituir um socialismo de Estado. Também não se confunde com a
perspectiva liberal anglo-saxã que atribui ao Estado a possibilidade de garantir o bem
estar no capitalismo e nem com a perspectiva francesa de creditar ao Estado qualquer
sorte de providência, divina ou não. Também não se contenta com as traduções literais
de ―welfare state‖ que, intencionalmente ou não, propagam a ideia de igualdade e bem
estar no capitalismo. Fundamentada na abordagem marxiana, o uso da categoria Estado
Social como se propõe aqui, me parece ser mais apropriado para situar sua essência em
uma perspectiva de totalidade nas relações capitalistas (BOSCHETTI, 2016, p. 35).
Segundo a abordagem de Mandel (1982), o fundamento do arranjo sociopolítico
objetivado no ―Estado Social‖ consistia nos ganhos possíveis à classe trabalhadora no
marco da onda longa expansiva do capitalismo monopolista. Ainda de acordo com o
marxista e trotskista belga, os ―anos gloriosos” devem ser entendidos, como uma onda
longa expansiva de crescimento em meio a crises. Essas crises, pode-se dizer
constituíram-se numa série de pequenos episódios; entretanto, o crescimento era
retomado e demonstrou-se dominante neste quadrante.
No aspecto econômico, a euforia dos ―anos gloriosos‖ pós-II Guerra já estava
longe e não animava nem os mais otimistas nos primeiros anos de 1970. A crise do
welfare state em alguns países europeus, evidenciando o fim da longa onda expansiva,
deslegitimava toda a ofensiva capitalista do pós-II Guerra que afirmava que o sistema
havia encontrado o ritmo da marcha segura para seu desenvolvimento e prosperidade.
O Estado Social para Boschetti (2016), já não funcionava mais como uma
espécie de proteção para reduzir os choques entre capital (classe dominante) e trabalho
(classe trabalhadora). A tese segundo a qual era possível humanizar o capitalismo,
conciliando desenvolvimento com políticas sociais universais havia ganhado até mesmo
alguns corações e mentes de parte da esquerda europeia vinculada à Social Democracia.
Ainda que, como se sabe, esta argumentação visava combater as revoluções de caráter
socialista e o comunismo em escala mundial. Mas, por hora, ponha-se isto de lado.
34
Vimos na Europa, ao longo dos anos 1980, o refluxo generalizado das esquerdas, com
os comunistas quase desaparecendo por completo e os socialistas aderindo
vertiginosamente às ideologias neoliberais.
E, finalmente, a terceira fase, denominado neoliberal, a partir de 1970 aos dias
atuais. Como vimos a pouco, são por estes anos que a onda longa expansiva apresenta
sinais de esgotamento e chega ao fim.
O neoliberalismo é considerado a mais recente fase do estágio imperialista do
capitalismo e desenvolveu-se a partir do contexto da crise mundial do sistema. Admite-
se, do mesmo modo, que se trata do início de uma longa onda recessiva. Portanto, do
começo dos anos 1970 até os dias atuais, inverte-se a dinâmica capitalista da fase
anterior. Neste quadrante, as crises voltam a ser predominantes e os períodos de
retomada do crescimento tornam-se cada vez mais conjunturais, efêmeros e localizados.
Este quadro, de acordo com Mészáros (2013), caracteriza-se por ser de uma crise
endêmica, cumulativa, crônica e permanente, que coloca em risco o presente e o futuro
da humanidade através da destruição da natureza e da precarização do trabalho. Para
Mandel, nestes anos vivemos uma recessão generalizada ―que expressa, portanto, de
modo sintético, o esgotamento da onda longa expansiva [...] a nova onda longa se
caracteriza por uma taxa de crescimento média em longo prazo, sem dúvida inferior à
metade daquele dos anos 50 e 60‖ (MANDEL, 1990, p. 13).
Neste sentido, como observa Netto (2011), se o Estado intervencionista
idealizado por Keynes, para salvar o capitalismo, deveria aumentar o gasto público
estatal, emitir maior quantidade de dinheiro, elevar a tributação e reduzir a taxa de juros,
visando ampliar o consumo, agora, sob o período neoliberal, os liberais recolocaram a
falsa necessidade de um Estado mínimo.
É importante assinalarmos que para o pensamento neoliberal, por um lado, as
crises representam um ―mau funcionamento do sistema‖ que necessita, portanto, de
correções pontuais; por outro, dizem que as crises são fruto de excessos de investimento
por parte do Estado, ou ainda, que resulta de múltiplas concessões e direitos sociais aos
trabalhadores. Além disso, dizem especialmente os economistas, que as crises
correspondem ao desequilíbrio entre oferta e demanda ou de não realização de uma
serie de pagamentos.
Porém, o que os economistas não percebem é que uma coisa são as expressões
das crises e outra bem diferente são as causas estruturais delas. Por isso, para além de
não bastar análises da aparência dos fenômenos (deve-se ir à essência deles), não se
35
compreende a fundo as crises capitalistas sem considerar o sistema em sua totalidade.
Desse modo, as razões das crises ―devem ser buscadas nas contradições que operam no
coração do mundo do capital‖ (BEHRING9, 2012, p. 171 – itálico meu).
Retomando as análises e formulações iniciais sobre esta tendência inevitável do
capitalismo, encontramos em Marx no Manifesto comunista (2010), que as crises são
inerentes ao desenvolvimento do capitalismo, dado que a produção capitalista cria
barreiras à sua própria expansão. Ao procurar superá-las, somente o faz por meio de
movimentos restauradores que, ciclicamente, repõem novas barreiras ao seu
desenvolvimento. Este processo é determinado pela incessante busca de lucros e
mediado por iniciativas econômicas e políticas que permitem tanto a existência de
períodos em que prevalece a destruição massiva das forças produtivas quanto a
emergência de ciclos de prosperidade, historicamente em alternância.
Seguindo a argumentação marxiana, para os marxistas Mandel (1990) e
Mészáros (2009) entre outros, a história do desenvolvimento do capitalismo é uma
sucessão de crises cíclicas e estruturais, ou seja, as crises são constituintes do processo
de produção e reprodução ampliada do capital. Do mesmo modo, na trilha de Marx e
dos marxistas que nos apoiamos aqui, observa acertadamente Behring (2012, p. 170)
que ―as crises são de superprodução‖. Para Boschetti, ―a crise é, portanto, uma
manifestação da queda da taxa de lucro‖ (BOSCHETTI, 2016, p. 115). Diríamos que
numa relação dialética, se por um lado a crise é excesso de produção, por outro, é
também de subconsumo, pois, em face da lei geral da acumulação capitalista, a
apropriação das riquezas produzidas é cada vez mais privada. Ou seja, falta a maioria
dos trabalhadores e trabalhadoras os meios financeiros para adquirir os produtos ou as
mercadorias por eles mesmos fabricados.
Cabe destacar que, ―o elemento detonador que provoca as crises de
superprodução pode apresentar diferentes formas: escândalo financeiro, pânico
9 Neste texto, a professora Elaine Behring, faz uma profunda e completa análise de um artigo de Marx
sobre as crises, que não dispomos em português. Trata-se do escrito marxiano de1862 que analisava a
crise de 1857-1858. As notas não chegaram a ser incluídas n‘O Capital e foram originalmente publicadas
por Kautsky com o título ―Teorias sobre a Mais Valia‖ entre 1905-1910. A primeira tradução francesa
com o título ―Théories de La Plus Value‖ foi publicada em 1925. Em 1959, nova versão a partir dos
manuscritos originais foi publicada pela primeira vez em Berlim. Entre 1974 e 1978 três versões
diferentes dessas notas estavam traduzidas e disponíveis na França. A edição utilizada aqui com o título
―Les Crises du Capitalisme‖ foi traduzida e editada por Jacques Hebenstreit em 2009 pela Editora
Demopolis, com substancial prefácio de Daniel Bensaid. Esse histórico consta das ―Notas Editoriais‖
publicadas ao final do volume, que foi analisado pela professora Ivanete Boschetti (2016, p. 110. Nota de
rodapé).
36
bancário, bancarrota de uma grande empresa, mudança de conjuntura e venda
insuficiente em um setor chave do mercado, falta de determinada matéria prima‖
(BOSCHETTI, 2016, p. 122). Mas, enfatiza Mandel (1990, p. 212) que ―o detonador
não é a causa da crise. Apenas a precipita no sentido em que desencadeia o movimento
cumulativo descrito‖. A função da crise de superprodução para o desenvolvimento do
capitalismo é constituir ―o mecanismo através do qual a lei do valor se impõe‖ (Idem, p.
212), ou seja, o mecanismo de produção da acumulação e geração do mais valor.
Desde o início do que Mandel (1990) chamou de a onda longa depressiva, isto
é, desde o ano de 1974, quando começa a primeira recessão generalizada na economia
capitalista internacional depois da II Guerra Mundial, entramos em uma longa fase
depressiva que se caracteriza especialmente por uma taxa de crescimento média, em
longo prazo, que é menos da metade daquela dos 25 anos precedentes e se traduz
notadamente por uma elevação ininterrupta, através dos altos e baixos da conjuntura, do
desemprego, que atingiu quase 40 milhões de pessoas apenas nos países imperialistas.
Conclui Mandel afirmando que,
durante esse longo período depressivo, a acumulação de capital prossegue,
pois, evidentemente, não há crise permanente. Há sempre períodos de recessão
seguidos por períodos de retomada do crescimento. Conhecemos uma recessão
em 1974/75, outra em 1981/82, e uma retomada após essa última, que durou de
1983 a 1986. Mas no curso de todas essas retomadas, o investimento produtivo
– no sentido mais amplo do termo, em novas fábricas que produzem não
somente mercadorias, como também telecomunicações, transportes,
eletricidade, gás, infraestrutura – não manteve o ritmo. Tem havido cada vez
menos investimentos produtivos (MANDEL, 1990, p. 320).
Em A crise do capital (1990), diz Mandel que todas as crises que irromperam
após a década de 1970 impuseram sucessivamente imensas derrotas à classe
trabalhadora, pois,
toda crise de superprodução constitui uma agressão massiva do capital ao
trabalho assalariado. Aumentando o desemprego e o medo do desemprego, a
crise tende a fazer com que os trabalhadores aceitem as reduções (ou
estagnações) dos salários reais, a aceleração dos ritmos de produção, as perdas
de conquistas em matéria de condições de trabalho e de seguridade social, a
redução das proteções construídas na fase de prosperidade contra a pobreza e a
injustiça mais flagrantes. (MANDEL, 1990, p. 231).
Em outra passagem de sua obra, Mandel afirma que,
toda crise capitalista de superprodução golpeia mais fortemente os fracos do
que os fortes, os pobres do que os ricos. Isso é verdade para os países
imperialistas, no que se refere ao proletariado e a burguesia. É verdade para o
patronato, de um lado, e para os grandes monopólios, de outro. É verdade em
escala mundial, no que concerne aos países semicoloniais e dependentes, de
um lado, e aos países imperialistas, de outro (MANDEL, 1990, p. 46).
37
Por tudo o que dissemos, a crise é a ―expressão concentrada das contradições
inerentes ao modo de produção capitalista, a crise é constitutiva do capitalismo: não
existiu, não existe e não existira capitalismo sem crise‖ (NETTO e BRAZ, 2007, p.
157). Porém, como assinalou Mandel (1982) para o capital não há situações
absolutamente desesperadoras.
1.2 Capitalismo Dependente: Via Prussiana, Revolução Passiva e Modernização
Conservadora
Delineamos acima, sumariamente, os traços gerais acerca do desenvolvimento
do modo de produção capitalista, os diferentes estágios, as distintas fases do estágio
imperialista e as crises inerentes a este processo. Agora, nossa reflexão vai para os
elementos particulares, ou periféricos, da constituição do capitalismo fora das
experiências clássicas da Inglaterra, dos Estados Unidos e da França, principalmente.
Porém, como já nos alertou Behring (2008, p. 77), ―essa relação entre a dinâmica do
capitalismo em geral e a inserção específica de determinado país, a partir da mediação
que são estabelecidas pela sua formação econômica, política, social e cultural, não é
efetivamente uma tarefa simples‖. Contudo, esse é um movimento absolutamente
necessário para compreendermos a peculiaridade histórica do Brasil em seu processo de
evolução política, econômica e social sob o modo de produção capitalista.
Cabe destacar, ainda, que não se trata de uma iniciativa inédita10
, pois, já há
consistentes formulações acerca da temática, às quais no decorrer desta síntese nos
apoiaremos. Como o capitalismo não começou no Brasil, embora a invasão portuguesa
coincidisse com a gênese deste na Europa, também as primeiras reflexões sobre as
particularidades do novo sistema não são frutos de formulação brasileira. No entanto,
julgamos fundamental recorrermos às contribuições teóricas de Lenin, Gramsci e em
menor medida à Moore Jr. para compreendermos, assim como o fizeram os pensadores
sociais críticos do desenvolvimento do capitalismo brasileiro.
Lenin desenvolveu o conceito de Via Prussiana11
em 1907, onde buscava
compreender os processos que ele identificava como ―não clássico‖ (como era o caso da
Prússia em comparação aos casos da Inglaterra, França e Estados Unidos); Gramsci
10
Especialmente Florestan Fernandes (2005), Ruy Mauro Marini (2014), Otcavio Ianni (2009), Carlos
Nelson Coutinho (2005), Elaine Behring (2008) Chico de Oliveira (2003), Virginia Fontes (2010) entre
tantos outros citados na bibliografia.
11
Desenvolvido primeiramente no programa agrário da social democracia na primeira revolução russa de
1905-1907. Utilizamos o texto em espanhol por não dispor do texto em português; cf. na bibliografia.
38
desenvolveu um conceito similar durante o período que esteve no cárcere (1926-1937),
ou seja, o de Revolução Passiva para caracterizar os processos de formações que
ocorrem a partir de uma conciliação das frações modernas das classes dominantes com
as classes atrasadas, objetivando excluir as camadas populares da participação mais
efetiva nos processos de transformação social - como era o caso do fascismo na Itália. Já
Barrington Moore Junior (1975), formulou o conceito de Modernização Conservadora
para explicar o processo de transição das sociedades agrárias para sociedades
industriais. Moore Jr. traz como exemplo o caso do Japão e da Alemanha.
Como dissemos, Lenin lançou mão do conceito de via prussiana para explicar o
processo de desenvolvimento do capitalismo na Alemanha de 1871, ano da sua
unificação sob o Império de Guilherme I e da liderança do chanceler Otto Von
Bismarck. Este conceito aparece pela primeira vez em sua análise da história econômica
da Rússia - na ocasião da sua formulação do Programa Agrário da Social Democracia
na Primeira Revolução Russa de 1905-1907. Para o revolucionário russo, a ―via
prussiana” seria um acordo entre os representantes da nascente burguesia e os
integrantes do poder arcaico, grandes proprietários de terras - representado em sua
maioria pelos Junkers. Consequentemente, e estes acordos ―pelo alto‖, no lugar da
revolução burguesa clássica de substituição das forças sociais até então dominantes por
novas forças sociais, instaura-se uma transição que relega à marginalidade a
participação popular e democrática.
Havia, portanto, dois caminhos distintos param se chegar ao capitalismo. Um,
pelo meio clássico, o qual destrói por completo as forças e classes sociais antigas; outro,
com a participação das velhas forças sociais que estavam no poder, e assim, alijando do
processo as classes trabalhadoras. Vejamos a abordagem do autor:
estes dois caminhos do desenvolvimento burguês objetivamente possível, nós
denominaríamos caminho de tipo prussiano e caminho tipo norte-americano.
No primeiro caso, a expropriação feudal do latifundiário se transforma
lentamente em uma expropriação burguesa, junker, condenando os
camponeses a decênios inteiros de uma expropriação e de um trabalho mais
árduo, dando origem a uma pequena minoria de ―Grossbauem‖ (lavradores
fortes). No segundo caso, não existe mais as fazendas de latifundiários, pois,
estas são destruídas pela revolução que confisca e fragmenta as posses feudais.
Neste caso predomina o camponês, que passa a ser agente exclusivo da
agricultura e vai evoluindo até se converter em um fazendeiro capitalista. No
primeiro caso, o conteúdo fundamental da evolução é a transformação do
feudalismo em um sistema de brutal dependência econômica através de dívidas
e expropriação capitalista sobre as terras dos feudais-latifundiários-junkers. No
39
segundo caso, o fundo básico é a transformação do camponês patriarcal em um
fazendeiro burguês (LENIN, 1978, p. 26-27, tradução livre)12
.
O fator decisivo na geração de uma ―via não clássica‖ para o capitalismo, de
acordo com Lenin, como observa acertadamente Coutinho (2005, p. 256) ―é um fator
interno, residindo sobretudo no modo pelo qual o capitalismo resolve a ‗questão
agrária‘; a via clássica implica uma solução revolucionária, com a destruição da grande
propriedade pré-capitalista e a criação de um campesinato livre‖. A via prussiana, como
vimos, não pressupõe essa necessidade.
Gramsci, com o mesmo objetivo de interpretar as transformações econômicas e
políticas ocorridas em seu país, utilizou-se do conceito de ―revolução passiva‖, para
estudar a Itália. O conceito de “revolução passiva‖ classifica a revolução ocorrida na
Itália, com o que seria uma modernização do Estado através de uma série de reformas
ou de guerras nacionais sem passar pela revolução política de tipo francesa radical-
jacobina. Para Gramsci este conceito de ―revolução passiva‖ deve ser utilizado como
critério de interpretação sobre a ―revolução-restauração‖ ou ―revolução passiva‖, a
propósito do processo de formação do Estado moderno na Itália.
De acordo com o revolucionário sardo,
o período da ―Restauração‖ é o mais rico de desenvolvimentos: a restauração
torna-se a forma política na qual as lutas sociais encontram quadros
suficientemente elásticos para permitir à burguesia chegar ao poder sem
rupturas clamorosas, sem o aparelho terrorista francês. As velhas classes
feudais são rebaixadas da condição de ―dominantes‖‘ àquela de
―governativas‖, mas não são eliminadas, nem se tenta liquidá-las como
conjunto orgânico: de classes tornam-se ―castas‖, com determinadas
características culturais e psicológicas, não mais com funções econômicas
predominantes (GRAMSCI, 1999, p. 426).
A categoria gramsciana exprime o fato histórico da ausência de uma iniciativa
popular unitária no desenvolvimento da história italiana, bem como a reação das classes
dominantes frente às possibilidades transformadoras dessas massas populares. Nas
revoluções passivas a força dirigente é o Estado a serviço de um grupo, por intermédio
12
Estos dos caminos del desarrollo burgués objetivamente posible, nosotros denominaríamos camino de
tipo prusiano y camino de tipo norte-americano. En el primer caso, la explotación feudal del terrateniente
se transforma lentamente em uma explotación burguesa, junker, condenando a los campesinos a decênios
enteros de la expropiación y del yugo más dolorosos, dando origen a uma pequeña minoria de
―Grossbauern‖ (―labradores fuertes‖). Em el segundo caso, no existen haciendas de terratenientes o son
destruidas por la revolución, que confisca y fragmenta las posesiones feudales. En este caso predomina el
campesino, que pasa a ser agente exclusivo de la agricultura y va evolucionando hasta convertise em el
granjero capitalista. En el primer caso, el contenido fundamental de la evolución es la transformación del
feudalismo em um sistema de brutal dependência econômica a través de las deudas y explotación
capitalista sobre las tierras de los feudales-terratenientes-junkers.En el segundo caso, el fondo básico es la
transformación del campesino patriarcal em el granjero burgués. (LENIN, 1978, p. 26-27).
40
da intervenção legislativa e da organização corporativa, que coloca à disposição destes
grupos um exército e uma força político-diplomática que introduzem na estrutura
econômica do país modificações mais ou menos profundas na socialização e cooperação
da produção sem tocar na apropriação individual e grupal do lucro. Em relação aos
conceitos de revolução – restauração e revolução passiva verifica-se em Gramsci a
seguinte explicação:
deve-se examinar se a fórmula de Quinet pode ser aproximada da de
―revolução passiva‖ de Cuoco; elas exprimem, talvez, o fato histórico da
ausência de uma iniciativa popular unitária no desenvolvimento da história
italiana, bem como o fato de que o desenvolvimento se verificou como reação
das classes dominantes ao subversivismo esporádico, elementar, não orgânico,
das massas populares, através de ―restaurações‖ que acolheram certa parte das
exigências que vinham de baixo; trata-se, portanto, de ―restaurações
progressistas‖ ou ―revoluções-restaurações‖, ou, ainda, ―revoluções passivas‖
(GRAMSCI, v. 1, 2004, p. 393 - grifos não originais).
Portanto, numa revolução passiva implica sempre a presença de dois momentos:
o da restauração e o da renovação. Assim, num processo de revolução passiva ou de
―revoluções-restaurações‖, as classes dominantes, pressionadas pelos de baixo, podem
até acolher suas exigências, para continuar obtendo o consenso passivo dos de baixo e
assim continuar dominando.
Cabe salientar, e o que é fundamental, que para Gramsci, o conceito de
revolução passiva não parece ser exato somente para a Itália, ―mas também para os
países que modernizaram o Estado através de uma série de reformas ou de guerras
nacionais, sem passar pela revolução política de tipo radical-jacobino‖ (GRAMSCI,
2002, v. 5, p. 202/210. C4, nota 57).
Em Moore Jr., o conceito de “modernização conservadora”, em resumo seria a
ascensão da aristocracia agrária proprietária de terras em coligação com os interesses
comerciais e industriais emergentes. Neste sentido, o eixo central do processo
desencadeado pela modernização conservadora é entender como o pacto político tecido
entre as elites dominantes condicionou o desenvolvimento capitalista no Japão e na
Alemanha, conduzindo-os para regimes políticos autocráticos e totalitários. Desse
modo, para Moore Jr. (1975) as revoluções burguesas na Alemanha e no Japão não
seguiram a versão clássica, como no caso da Inglaterra, da França e dos Estados Unidos,
pois foram revoluções burguesas parciais, visto que não destruíram efetivamente as
estruturas sociais, políticas e econômicas do antigo regime. Pois, de acordo com o
sociólogo americano ―[...] o impulso burguês era muito mais fraco, portanto, não se
chegou a tomar forma revolucionária, a revolução foi derrotada.‖ (MOORE Jr. 1975, p.
41
14). Neste sentido, estas revoluções foram a ―alternativa mais importante da
modernização conservadora, através de uma revolução vinda de cima.‖ (idem, 1975, p.
503).
A partir da breve exposição que fizemos até aqui das categorias de ―via
prussiana‖, de ―revolução passiva‖ e de ―modernização conservadora”, observamos
que as duas primeiras formulações correspondiam às realidades objetivas e históricas
vivenciadas pelos dois autores. O conceito de via prussiana leniniano deu ênfase à
infraestrutura ou à discussão da modernização agrária na Rússia, enquanto o conceito de
revolução passiva gramsciano, enfatizou a superestrutura ou os processos sociais e
políticos de transformação ―pelo alto‖ na Itália. Já as formulações de Moore Jr. sobre o
desenvolvimento do capitalismo no Japão, distinguem-se dos caminhos dos clássicos,
sob o ponto de vista político, embora sem citar Lenin e Gramsci, mas com
determinações análogas àquelas formuladas pelos dois marxistas.
As revoluções burguesas clássicas da Inglaterra, EUA e França, propiciaram a
emancipação política, tornando os homens livres - a classe trabalhadora em especial, e
declaram todos iguais perante a lei. Aqui no Brasil não ocorreu um processo de
revolução clássica como nos países mencionados, mas um processo de reformas e de
acordos entre as classes dominantes. A burguesia brasileira não tinha vocação nem
disposição para emancipar politicamente os homens, não fez a ruptura com o latifúndio
e manteve o coronelismo. As elites brasileiras conseguiram permanecer no poder
fazendo as mudanças ―pelo alto‖, ―por cima‖, ou seja, perpetuando a sua dominação.
Coutinho13
(2005), buscando atualizar o pensamento de Lenin e de Gramsci entre nós,
caracterizou os processos de transformações pelo qual passou o Brasil, como sendo
―não clássico‖; ou seja, como ―via prussiana‖ (formulação de Lenin) e/ou ―revolução
passiva‖ (formulação de Gramsci). O autor brasileiro dará ênfase a Gramsci (sem negar
a importância de Lenin), mas valendo-se principalmente das formulações do pensador
italiano, que caracterizava o Ocidente por uma ―relação equilibrada entre Estado e
Sociedade civil‖. Assim, Coutinho irá caracterizar o Brasil, pelo menos até
aproximadamente 1930, como uma sociedade de tipo ―oriental‖, na qual o Estado era
tudo e a sociedade civil primitiva e gelatinosa.
Lançando mão destes conceitos e formulações, nosso autor irá afirmar que, o
processo de modernização econômica e social do Brasil seguiu uma “via prussiana” ou
13
Para Carlos Nelson Coutinho o conceito de modernização conservadora desenvolvido pelo sociólogo
norte americano é mais palatável nos meios acadêmicos. Lenin e Gramsci eram revolucionários.
42
uma “revolução passiva”. As transformações ocorridas em nossa história não resultam
de autênticas revoluções, de movimentos provenientes de baixo para cima, envolvendo
o conjunto da população, mas se processam sempre através de uma conciliação entre os
representantes dos grupos opositores economicamente dominantes, conciliação que se
expressa sob a figura política de reformas “pelo alto‖ (COUTINHO, 2005, p. 50 -
Itálicos originais).
Portanto, observa-se que não existe um único modelo burguês de transformação
capitalista. Para Florestan (2005) não seguimos uma ―via clássica‖ porque desde o
início ocupamos uma posição dependente no quadro do capitalismo internacional.
Ademais, some-se a isso a questão do imperialismo, o medo do comunismo e o caráter
tardio (1930) do início do nosso processo de desenvolvimento capitalista, ou seja, da
urbanização e do assalariamento industrial. Isso fez com que a burguesia brasileira num
primeiro momento deste processo preferisse se aliar as velhas classes dominantes, para
posteriormente se aliar aos segmentos militares, ao invés de tentar um compromisso
mais permanente com as classes subalternas – se isso ocorresse se ampliaria os direitos
de cidadania entre nós.
1.3 Abordagens teóricas sobre o Estado Moderno e Contemporâneo
Em relação ao debate clássico sobre o Estado, de maneira sintética, podemos
assinalar que neste campo, os diferentes autores e as suas abordagens específicas, ora se
complementam e ora colidem frontalmente - quando se trata da abordagem liberal, da
socialdemocrata e da marxista.
Acrescente-se a isso o fato de que as diversas perspectivas filosóficas, teóricas e
políticas, são históricas e vêm de longa data: desde Platão (429-347 a.C.) e Aristóteles
(384-322 a.C.) em Atenas, passando pela Itália Renascentista com Nicolau Maquiavel
(1469-1527), na Inglaterra com os autores do campo denominado contratualista,
representado por Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704) e na França
com Jean Jacques Rousseau (1712-1778), na Alemanha com Georg Wilhelm Friedrich
Hegel (1770-1831), Max Weber (1864-1920) e os autores da tradição marxista,
principalmente, Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), na Rússia com
Vladimir Ilitch Lenin (1870-1924). A continuidade deste ciclo apresenta-se a posteriori
43
nas obras do italiano Antônio Gramsci (1891-1937) e do trotskista belga Ernest Mandel
(1923-1995) entre outros14
.
Para os autores brasileiros, grosso modo, o Estado constituiu-se unificadamente
antes que a nação e a economia propriamente capitalista. Além disso, é subordinado ao
imperialismo dos países hegemônicos, funcionando de acordo com a lógica dos
interesses internacionais.
Por hora, a título meramente ilustrativo, sublinhamos a definição de Estado de
Weber, em sua obra clássica, Economia e Sociedade (1922). De acordo com sua
conceituação, o Estado é um ente que se define a partir do monopólio e do uso legítimo
da violência em um determinado território. A imagem weberiana de Estado, monopólico
e violento num determinado território, é reproduzida sem grandes variações na América
Latina e particularmente no Brasil. Isso se deu, de acordo com Fernandes (1973) e
Marini (1973), devido o país ser marcadamente de características de capitalismo
dependente15
.
Dos estudos empreendidos até o momento, destacamos as formulações de Hegel,
que significativamente acrescentou formulações acerca do debate sobre a origem, a
constituição, o desenvolvimento e a consolidação do Estado capitalista. Antes de tudo,
cabe destacar, que vários estudos existem sobre o Estado, mas, no limite deste trabalho,
como dissemos, priorizamos os dois citados acima.
No pensamento de Hegel - analisado detalhadamente por Marx em sua Crítica
da filosofia do direito de Hegel16
(2005) - o Estado representa, ou melhor, consiste, no
universal, sendo o particular, as relações econômicas expressas na sociedade civil. Além
disso, os homens e mulheres são divididos por seus interesses concretos, particulares, e
os interesses abstratos, gerais da sociedade. Dessa maneira, em Hegel, a sociedade civil
é a esfera das relações econômicas; é o reino da miséria e da moral dos indivíduos
atomizados e particularistas. Consequentemente era preciso colocar uma racionalidade,
14
Entre os autores marxistas contemporâneos, além de Florestan Fernandes (1920-1995) e Rui Mauro
Marini (1932-1997) destacamos as importantes contribuições do filósofo húngaro István Mészáros
(1930), da historiadora norte-americana Ellen Meiksins Wood (1941-2016), e do brasileiro Carlos Nelson
Coutinho (1943-2012), para citar apenas este – in memória.
15
Sobre este conceito nos deteremos detalhadamente ao longo do trabalho. Cf. formulações sobre esta
categoria em FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica. São Paulo: Globo, 5ª ed., 2005. E, MARINI, Rui Mauro. A dialética da dependência: Uma
antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000. Ambos
citados na bibliografia.
16
Para Marx, ―a crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, teve a mais lógica, profunda e completa
expressão em Hegel‖ (2005, p. 151).
44
uma universalidade – o Estado. Por isso, para Hegel, ―o Estado é a universalização dos
indivíduos e a encarnação da razão universal‖ (apud, MARX, 2005, p. 61).
Em Marx (2005), isso é uma inversão, pois, para o autor, a família e a sociedade
civil constituem os pressupostos do Estado, assim, é preciso entender o Estado a partir
da sociedade, ou melhor, a partir das lutas de classes e correlações de forças. Por
conseguinte, na formulação madura de sua teoria sobre o Estado, Marx (2012) criticou a
credulidade servil ao Estado. Pois, ―não existe Estado livre‖ - o ―Estado é uma
expressão da sociedade civil‖, e é sempre o Estado da classe dominante. Hegel não
considerava a questão política, (a possibilidade da revolução), assim o Estado também
não deveria considerar as diferenças de classes, pois, para ele, o mundo era entre os que
têm os meios de produção e os que não dispõem. Em Marx (2012), como veremos, essa
é uma questão formal, pois o Estado é sempre de classe. No entanto, diga-se que a
concepção de Hegel é própria de um período em que o desenvolvimento extensivo da
burguesia podia parecer ilimitado e, portanto, a eticidade ou a universalidade desta
classe podia ser afirmada.
De acordo com Mészáros,
Hegel deseja preservar e glorificar o Estado, inventando a classe burocrática
―universal‖ como um Sollenquintessencial (um ―dever ser‖); esta cumpre a
função de conciliar as contradições dos interesses em guerra ao preservá-los,
protegendo e assegurando desse modo a permanência da estrutura
estabelecida da sociedade em sua forma antagônica. Marx, em completo
contraste, está preocupado com a transcendência do Estado e da política
como tal... (MÉSZÁROS, 2015, p. 122 - itálicos originais).
Como observa o filósofo húngaro, essa concepção de Hegel constitui o ponto de
partida para as formulações de Marx acerca do Estado e da sociedade civil. Dialogando
com os contratualistas (e com Hegel que dizia que o Estado é a esfera da
universalização), Marx demonstra que o Estado moderno tem sua gênese nas relações
sociais concretas, e não pode ser compreendido como uma entidade em si. Ele percebe
que a sociedade civil burguesa não pode ser compreendida a partir do Estado, como
supunha Hegel; ao contrário, é nas contradições dessa sociedade civil burguesa, em
particular no antagonismo entre as classes sociais, que reside a chave explicativa do
enigma do Estado.
A função principal do Estado, para Marx, é a de garantir a propriedade privada
dos meios fundamentais de produção. Assim, o Estado assegura e reproduz a divisão da
sociedade em classes, ou seja, o Estado é de classes. E, Marx e Engels afirmam que ―o
executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de
45
toda a classe burguesa‖ (MARX, 2010, p. 42). Ou seja, o poder político é um poder
organizado de uma classe para a opressão da outra, e a materialidade institucional do
Estado se limita nos aparelhos repressivos e burocráticos do executivo e no domínio de
classe através da coerção. Desse modo, o Estado aparece em Marx, de acordo com
Coutinho,
como encarnação formal e alienada do suposto interesse universal e, é visto
como um organismo que exerce uma função precisa; garantia da propriedade
privada. Assim, o Estado assegura e reproduz a divisão da sociedade em
classes. O Estado, assim, é um Estado de classe (COUTINHO, 2008, p. 19).
Já de acordo com Mandel, o ponto de partida de Marx para elaborar sua teoria
do Estado Moderno,
é a distinção fundamental entre Estado e sociedade – em outras palavras, a
compreensão de que as funções desempenhadas pelo Estado não precisam ser
necessariamente transferidas a um aparato da maior parte dos membros da
sociedade, o que só veio a acontecer sob condições específicas e
historicamente determinadas (MANDEL, 1982, p. 333).
As formulações de Marx (2012) contidas na sua ―Crítica ao programa de
Gotha17
”, de que ―não existe socialismo de Estado‖ e ―muito menos Estado livre‖,
como propunha Ferdinand Lassalle, entre outros, merecem nossa atenção. Diz Marx que
―tornar o Estado ‗livre‘ não é de modo algum o objetivo de trabalhadores já libertos da
estreita consciência do súdito‖ (2012, p. 42). Pois, como base do Estado existente, está a
sociedade existente e, isso vale também para qualquer sociedade futura. Além disso, ―a
‗sociedade atual‘ é a sociedade capitalista, que, em todos os países civilizados, existe
mais ou menos livre dos elementos medievais mais ou menos modificada pelo
desenvolvimento histórico particular de cada país, mais ou menos desenvolvida‖ (idem,
p. 42). Decerto, sob o ponto de vista de Marx, seria, ainda, nefasto e desmobilizador do
partido. Por isso, para ele, ―cada passo do movimento real é mais importante do que
uma dúzia de programas‖ (Marx, 2012, p. 20). Ou seja, os atos e processos sociais são
mais importantes que qualquer programa de partido.
Ao enfrentar essas e outras polêmicas do ―Programa” com Ferdinand Lassalle,
que havia proposto ao Partido Operário Alemão criar cooperativas de produção com a
ajuda do Estado, Marx então respondeu:
17
Gotha é uma localidade na Alemanha. Foi onde se realizou um congresso de 22 a 27 de maio, de 1875,
de unificação dos dois partidos operários alemães; a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães
(ADVA, na sigla alemã), fundada em 1863, por Ferdinad Lassalle, com o Partido Social-Democrata dos
Trabalhadores – SDAP.
46
depois da ‗lei de Bronze do salário‘ de Lassalle, temos agora a panaceia do
profeta! E ela é ‗conduzida‘ de forma digna! O lugar da luta de classes
existente é tomado por uma fraseologia de escrevinhador de jornal - a
‗questão social‘, a cuja ‗solução‘ se ‗conduz‘. A organização socialista do
trabalho total, em vez de surgir do processo revolucionário de transformação
da sociedade, surge da ‗subvenção estatal‘, subvenção que o Estado concede
às cooperativas de produção ‗criadas‘ por ele, e não pelos trabalhadores‘
(MARX, 2012, p. 40).
Em outras palavras: os programas, ou as políticas sociais, embora sejam
importantes sob o ponto de vista dos trabalhadores e trabalhadoras, elas são processos
contraditórios e não resolvem a ―questão social18
‖. Como vimos em Marx, isso é
fraseologia. A ―questão social‖ é conflito entre capital e trabalho. Portanto, é a origem
das desigualdades econômicas, políticas e sociais.
Estas reflexões marxianas reaparecem em Mandel (1982) quando este faz a
crítica às ilusões ―relativas a um Estado social na falsa crença em uma redistribuição
crescente da renda nacional, que tira do capital para dar ao trabalho‖ (MANDEL, 1982,
p. 339). Acreditar nisso para este autor é reformismo: e o reformismo é para ele a crença
de que o ―Estado social‖ possa assegurar as condições fundamentais de existência.
Dessa maneira, os equívocos em busca das poucas melhorias podem levar à paralisia o
movimento social e político e, rapidamente enfraquecer as lutas sociais e de classes.
O Estado opera em sentido favorável aos trabalhadores quando estes têm
correlação de forças favoráveis. Por isso, para Mandel (1982), somente nestas condições
o Estado social se amplia -, desde que não atinja a lei geral do valor.
No prefácio de “Lutas de classes na França” Engels (1895) desenvolve uma
nova formulação do Estado, não mais como comitê das classes dominantes, mas como
fruto de um pacto; todos os Estados modernos são fruto de um pacto primeiro dos
principais entre si e depois destes com o povo. O eterno companheiro de Marx
argumenta que ―todos os pequenos Estados e de modo geral todos os Estado modernos,
é produto do contrato; do contrato, em primeiro lugar dos príncipes entre si, em
segundo lugar, dos príncipes com o povo‖ (ENGELS, in. MARX, 2012, p. 30).
Portanto, já em fins do século XIX, sabia-se que a dominação de classe não se manifesta
apenas através da coerção, mas também para se legitimar precisa do consenso.
18
Por ―questão social‖ entende-se o conjunto de problemas políticos, sociais e econômicos que o
surgimento da classe operária impôs no curso da constituição da sociedade capitalista. Assim, a ―questão
social‖ esta fundamentalmente vinculada ao conflito entre capital e trabalho (Cerqueira filho, 1982, p. 21,
apud, NETTO, 2011, p. 17). Consequentemente, para Netto, a ―questão social‖ é insolúvel sob o
capitalismo e inexiste qualquer nova ―questão social‖, o que há são novas formas de expressão da velha
―questão social‖ (idem p. 160).
47
Consequentemente, em função destas formulações, Engels foi o primeiro marxista a
compreender o processo de ampliação da teoria e das funções do Estado capitalista.
Em Lenin (2007), a concepção de Estado não difere muito da de Marx. Neste, o
Estado não poderia surgir nem existir se a conciliação de classes fosse possível; assim, o
Estado é um órgão de dominação de classes e de submissão de uma classe por outra.
Aliás, o revolucionário russo se apropria das formulações originais do marxismo e as
enriquece com excertos de A origem da família, da propriedade privada e do Estado -
obra clássica de Engels. Consequentemente, segundo Lenin,
o Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável entre as
classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de
classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a
existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis
(LENIN, 2007, p. 25).
Por isso, para Lenin, a tentativa de conciliação das classes pelo Estado e pelos
governantes, políticos e intelectuais, expressam que estes estão ―profundamente
impregnados dessa teoria pequeno-burguesa e oportunista de conciliação‖ (LENIN,
2007, p. 26).
Antonio Gramsci colocava-se como grande questão, afinal, por que não ocorreu
a revolução na Europa - já que era onde estavam os países mais desenvolvidos do
capitalismo do primeiro quartel do século XX? Como o dirigente do Partido Comunista
Italiano - PCI ficou preso por longos onze anos, há fragmentos da resposta ao problema
que se colocara, como grande intelectual que era nos 29 Cadernos do Cárcere19
. Em
função disso, não encontramos de forma sistemática e por extenso em sua obra uma
resposta a priori. Contudo, há indicações importantíssimas que nos permitem, inclusive,
formular mais adequadamente uma teoria de revolução e do Estado em países de
capitalismo dependente.
Decerto, as determinações que Gramsci emprega ao Estado são diferentes que as
de Marx, mas isso não significa que ele rompeu com Marx; pelo contrário, ele foi fiel à
tradição marxiana. Fundamentalmente porque, o Estado da terceira década do século
XX é bem diferente que o de Marx de 1850. Assim, se a realidade muda, a teoria deve
mudar, pois, não é a realidade que deve se atualizar em relação à teoria, é esta que deve
se atualizar em relação à realidade. Por isso, de todo modo, na teoria marxista
encontramos determinações sobre o Estado que valem somente para cada período e em
cada realidade concreta.
19
Edição organizada por Carlos Nelson Coutinho na Civilização Brasileira; para este debate ver em
especial o v. 3. Maquiavel: notas sobre o Estado e a política. 2016.
48
Em outras palavras, se há na tradição marxista interpretações diferentes sobre o
Estado, isso se deve ao fato das determinações sociais serem diferentes e as realidades
historicamente determinadas. Porém, é preciso destacar que na compreensão de
sociedade política (aqui está o aparato estatal, o exército, as leis, a polícia etc.), Marx,
Engels, Lenin e Gramsci têm uma mesma posição; ou seja, como sociedade política, ou
se preferirmos, o Estado em sentido restrito, exerce sempre uma ditadura e uma
dominação de classe fundada na coerção.
Em Gramsci, portanto, não há negação das ideias centrais de Marx e Lenin; pelo
contrário, ele agrega novos elementos à teoria marxiana e leninista, seguindo algumas
táticas do último e ampliando e aprofundando outras do primeiro. Gramsci foi para a
Rússia em 1922, como representante do PCI. Lá, toma conhecimento com profundidade
do pensamento do revolucionário e dirigente russo. Ele apreende com Lenin duas
máximas; a primeira, que é preciso fazer análise concreta de realidade concreta; e
segundo, que uma coisa é tomar o poder, e outra bem diferente é a construção do
socialismo. Com esse acúmulo, Gramsci se colocou o desafio de entender a realidade da
Itália e quais poderiam ser os possíveis aliados para fazer a revolução.
Para o revolucionário sardo, o Estado é a sociedade política mais a sociedade
civil, mas, acima de tudo também é o espaço de disputa entre as classes sociais
existentes na sociedade civil. Ou seja, para Gramsci (2008, p. 248), ―na noção geral do
Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no
sentido, seria possível dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é,
hegemonia couraçada de coerção)‖. Assim, nas formulações gramsciana, o Estado é a
sociedade civil (conjunto de instituições e de diferentes grupos sociais) e a sociedade
política (aparelhos coercitivos, grupos burocráticos no executivo e legislativo, forças
armadas e judiciárias, imposição das leis etc.). Estas duas esferas constituem o Estado
moderno e servem para transformar ou conservar uma determinada formação econômica
e social.
O Estado é a sociedade política, mas também é o espaço de disputa da sociedade
civil, sendo este a resultante de uma dinâmica relação de forças entre a classe dominante
e as classes subalternas. Desta maneira, o Estado, de acordo com Coutinho (2008) é
para Gramsci, concebido como organismo próprio de um grupo, destinado a criar as
condições favoráveis á expansão máxima desse grupo, mas esse desenvolvimento e essa
expansão são concebidos e apresentados como força motriz de uma expansão universal.
49
Ao se utilizar as categorias de Gramsci para analisar a relação entre Estado e
sociedade civil, faz-se necessário considerar que não existe uma oposição entre
Estado/sociedade política e sociedade civil como o quer o liberalismo, mas uma unidade
orgânica, já que a separação é apenas formal e metodológica, pois a sociedade civil é
um momento do Estado; por certo, a sociedade civil não é homogênea, nela circulam
interesses das classes antagônicas que compõem a estrutura social. Para o pensamento
liberal, a atividade econômica é própria da sociedade civil e, portanto, o Estado não
deve intervir em sua regulamentação.
Com efeito, cabe dizer que o Estado, em todas as sociedades divididas em
classes, seja ela a Escravista, a Feudal ou a Capitalista, é uma expressão, ou melhor,
uma organização própria da classe hegemonicamente dominante atuando para manter a
dominação de uma classe sobre a outra e as condições de reprodução daquela
determinada formação social. Contudo, em cada formação social, nem o Estado, nem as
classes sociais são as mesmas e, menos ainda as contingências sociais. Embora a função
do Estado (de dominação de classe) seja a mesma em basicamente todos os períodos
históricos, ou seja, em todas as sociedades existentes até agora, o modus operandi de
dominação assume sempre formas particulares correspondentes a modos distintos de
organização e dominação de classes. Dessa maneira, diferentes tipos de Estado
correspondem a determinadas relações sociais e correlações de forças entre classes em
luta.
Ernest Mandel, em sua obra clássica “O capitalismo tardio” (1982) descreve o
Estado burguês como um produto direto do Estado absolutista, gerado pela tomada do
poder político e de sua maquinaria institucional pela classe burguesa. Mas, é também
uma negação deste último. Há ainda, acerca do tema, nas formulações do também
trotskista belga que ―o Estado é produto da divisão social do trabalho. Surgiu da
autonomia crescente de certas atividades supraestruturais, mediando a produção
material, cujo papel era sustentar uma estrutura de classes e relações de produção‖
(MANEL, 1982, p. 333).
Por fim, torna-se evidente nessas discussões, desde os clássicos gregos
(passando pela antiga Roma, a Itália Renascentista, a constituição da moderna sociedade
burguesa, que surgiu na Europa ocidental) que existem análises e formulações teóricas e
políticas sobre o Estado, os governos e a sociedade em suas relações complementares e
contraditórias. Por conseguinte, pode-se afirmar que o Estado não pode ser datado da
era moderna – ele é anterior. De acordo com Mandel, ―o Estado é mais antigo que o
50
capital [...] e, por meio da expansão do capital-dinheiro é que o próprio Estado tornou-se
mais explicitamente um instrumento da acumulação progressiva de capital e o parteiro
do modo de produção capitalista” (MANDEL, 1982, p. 335 - Itálicos meus).
A seguir, pontuaremos algumas das características principais do Estado que
emergiu das entranhas do capitalismo monopolista de fins do século XIX aos dias
atuais.
1.4 Funções do Estado no capitalismo central e no dependente
Destacamos anteriormente em nossa exposição as categorias que melhor
expressam a nossa situação social e histórica. Trabalhamos prioritariamente com as
categorias de via prussiana e revolução passiva, pois, estas nos permitem compreender
melhor o processo de desenvolvimento do sistema sociometabólico do capitalismo entre
nós. Nosso objetivo a seguir é demonstrar sinteticamente que sociedade e que Estado se
constituem em nosso país no âmbito do capitalismo dependente, bem como
sumariarmos os elementos centrais sobre a constituição do Estado Social (em alguns
países da Europa) e do capitalismo dependente no Brasil.
Porém, antes de discorrer sobre o processo de evolução do sistema
sociometabólico do capital, cabe evidenciar o significado desta categoria e suas
implicações estratégicas. Quem a formulou em exaustão foi o filósofo marxista István
Mészáros. Para o autor, ―o sistema sociometabólico do capital tem seu núcleo central
formado pelo tripé capital, trabalho assalariado e Estado‖ (2009, p. 11) Ainda de
acordo com o filósofo, ―estas são três dimensões fundamentais e diretamente inter-
relacionadas, o que impossibilita a superação do capital sem a eliminação do conjunto
dos três elementos que compreendem esse sistema‖ (MÉSZÁROS, 2009).
Desse modo, não obstante o núcleo central do sistema sociometabólico do
capital (Estado, Capital e Trabalho Assalariado) ser o mesmo em todos os cantos do
planeta, cada parte desta tríade assume características diferentes em cada país. Estas
anuências são determinadas pelo estágio de desenvolvimento das forças produtivas e a
correlação de forças estabelecidas pelas classes que se encontram em luta.
Consequentemente, o Estado nos países centrais é distinto em cada país, e é muito
diferente dos demais países periféricos e dependentes. Da mesma maneira, o processo
social de constituição, ou melhor, de organização do Estado, também difere em cada
espaço e tempo histórico, sem, contudo, deixar de ser capitalista.
51
Pelo exposto, pode-se dizer que as questões em torno do Estado nos dias atuais
assumem particular importância, tanto do ponto de vista prático, quanto do ponto de
vista teórico-político, pois, as relações capitalistas não se sustentam sem o Estado.
Portanto, se por um lado o Estado cumpre rigorosamente as funções que atendem os
interesses diretos e indiretos do capital monopolista; por outro, ele não é somente
necessário para a reprodução do capital como o era desde a consolidação do capitalismo
a partir da Revolução francesa como Marx (2012) o bem qualificou. Agora, o Estado
pode incorporar interesses das classes subalternas -, tornando ainda mais complexas as
suas funções, como bem descreveu Engels (em 1985) e Mandel (1982).
Diríamos então, que esta característica do Estado aparece especialmente sob o
capitalismo monopolista e contemporâneo. Portanto, sem examinar o Estado sob este
estágio do capitalismo, não se compreende a fundo o modo de produção capitalista, em
especial, num quadro de crise estrutural e sistêmica do sistema sociometabólico do
capital, que vem desde os fins dos anos 1960 e início dos anos 1970.
De acordo com Netto, ―na idade do monopólio, ademais da preservação das
condições externas da produção capitalista, a intervenção estatal incide na organização e
na dinâmica econômica desde dentro, e de forma contínua e sistemática. Mais
exatamente, no capitalismo monopolista, as funções políticas do Estado embrincam-se
organicamente com as suas funções econômicas” (NETTO, 2011, p. 25 - Itálicos
originais).
Sumariamos em algumas páginas atrás, que desde o famoso prefácio de Engels
em 1895 (As lutas de classes na França), podemos compreender que as funções do
Estado capitalista haviam se ampliado. Engels20
, portanto, pode ser considerado como o
primeiro marxista a perceber essa nova característica do Estado sob o capitalismo
monopolista que acabava de nascer. Mas, infelizmente, Engels não viveu o suficiente
para aprofundar essa sua hipótese.
Por isso, retomando as formulações de Marx e Engels, Mandel (1982) propõe-se
a analisar com mais profundidade a função estatal. Pois, as funções repressivas,
coercitivas do Estado, haviam sido cabalmente analisadas pelo marxismo clássico –
num primeiro momento Marx e Engels, seguidos por Lenin - e, posteriormente, Gramsci
e Lukács deram ênfase às funções integradoras e de coesão do Estado. Noutras palavras,
estes últimos autores trabalharam as funções ideológicas na esfera da superestrutura do
20
Para Coutinho, ―Engels foi o primeiro marxista a compreender o processo de ampliação da teoria do
Estado‖ (2008, p.28).
52
Estado no estágio imperialista do capitalismo. Sobre este aspecto, cabe destacar que a
reprodução e a evolução das funções integradoras do Estado efetivam-se pela educação,
pela cultura e pelos meios de comunicação.
Propondo-se dar um passo a mais, mas sem negar as contribuições marxistas
anteriores, Mandel (1982) busca compreender não apenas o Estado em geral, mas as
novas modalidades de intervenção; ou seja, busca apreender as funções do Estado sob o
capitalismo monopolista, pois, essa seria a menos estudada pelo marxismo clássico. Em
face desta constatação, o autor sublinha que as principais funções do Estado são:
1) criar as condições gerais de produção que não podem ser asseguradas pelas
atividades privadas dos membros das classes dominantes; 2) reprimir qualquer
ameaça das classes dominadas ou de frações particulares das classes
dominantes ao modo de produção corrente através do Exército, da polícia, do
sistema judiciário e penitenciário e; 3) integrar as classes dominadas, garantir
que a ideologia da sociedade continue sendo a da classe dominante e, em
consequência que as classes exploradas aceitem sua própria exploração sem o
exercício direto da repressão contra ela... (MANDEL, 1982, p. 334).
Na trilha de Mandel (1982), Netto (2011) aponta que o elenco das funções
econômicas do Estado é o mais variado possível, como, por exemplo:
a inserção como empresário nos setores básicos não rentáveis (nomeadamente
aqueles que fornecem aos monopólios, a baixo custo, energia e matérias-
primas fundamentais), a assunção do controle de empresas capitalistas em
dificuldades (trata-se, aqui, da socialização das perdas, a que frequentemente
se segue, quando superadas as dificuldades, a privatização), a entrega aos
monopólios de complexos construídos com fundos públicos, os subsídios
imediatos aos monopólios e a garantia explicita de lucro pelo Estado. As
indiretas não são menos significativas; as mais importantes estão relacionadas
às encomendas/compras do Estado aos grupos monopolistas, assegurando aos
capitais excedentes possibilidades de valorização; não se esgotam aí, no
entanto – recordem-se os subsídios indiretos, os investimentos públicos em
meios de transporte e infraestrutura, a preparação institucional da força de
trabalho requerida pelos monopólios e, com saliência particular, os gastos com
investigação e pesquisa. A intervenção estatal macroscópica em função dos
monopólios é mais expressiva, contudo, no terreno estratégico: trata-se das
linhas da direção do desenvolvimento, através de planos e projetos de médio e
longo prazo; aqui, sinalizando investimentos e objetivos, o Estado atua como
um instrumento de organização da economia, operando notadamente como
administrador dos ciclos de crise (NETTO, 2011, p. 25/26).
Portanto, é desde a fase do capitalismo monopolista clássico que o Estado atua
com funções diretas (preparação da infraestrutura, portos, aeroportos, estradas, energia)
e indiretas (planos orçamentários, fundo publico, qualificação da força de trabalho,
entre outros) para garantir os ganhos econômicos ao capital. O Estado na sua fase
monopolista surge como poder extra-econômico e atua como representante do
capitalista coletivo, como cioso guardião das contradições externas da produção
capitalista. As funções econômicas do estado se misturam com suas funções políticas. O
53
Estado atua como um vetor extra-econômico para assegurar os objetivos estritamente
econômicos da burguesia. Segundo Netto ―o eixo da intervenção estatal na idade do
monopólio é direcionado para garantir os superlucros dos monopólios‖ (NETTO, 2011,
p. 25 – Itálico meu). Assim, o Estado é capturado pela lógica do capital monopolista e
tem funções econômicas e políticas, diretas e indiretas.
Ademais, como comitê executivo da burguesia monopolista garante o conjunto
de condições necessárias à acumulação e a valorização do capital. É também função
deste Estado a preservação e o controle contínuo da força de trabalho - ocupada e
excedente. Para Netto, ―a preservação e o controle contínuo da força de trabalho,
ocupada e excedente, é uma função estatal de primeira ordem‖ (NETTO, 2011, p. 26 -
Itálicos originais).
Além disso, sob o capitalismo monopolista, mais do que nunca, pelas suas
dinâmicas e contradições próprias, criam-se condições tais que o Estado por ele
capturado, ―ao buscar legitimação política através do jogo democrático, é permeável a
demandas das classes subalternas, que podem fazer incidir nele seus interesses e suas
reivindicações imediatas‖ (NETTO, 2011, p. 29). Nestas condições, que ―a ‗questão
social‘ pode tornar-se objeto de uma intervenção continua e sistemática por parte do
Estado e se põe como alvo das políticas sociais. É através das políticas sociais que o
Estado burguês procura administrar as expressões da ‗questão social‘‖ (NETTO, 2011,
p. 30).
Por isso, neste contexto, surgem as políticas sociais como formas organizadas de
o Estado intervir sem a repressão, beneficiando os trabalhadores ao mesmo tempo em
que atende os interesses do capital.
Foi no estágio monopolista do capitalismo (1890 – 1940, também conhecido
como o período do imperialismo clássico) que o Estado passou a responder às
manifestações da ―questão social‖ por meio do desenvolvimento de políticas sociais,
como elementos centrais e determinantes do desenvolvimento capitalista. ―No final do
século XIX o Estado capitalista passa a assumir e a realizar ações sociais de forma mais
ampla, planejada, sistematizada e com caráter de obrigatoriedade‖ (BEHRING e
BOSCHETTI, 2011, p. 64). Ainda de acordo com as autoras, ―as políticas sociais, como
processo social, se gestaram na confluência dos movimentos de ascensão do capitalismo
com a Revolução Industrial, das lutas de classes e do desenvolvimento da intervenção
estatal‖ (2011, p. 47). E, ―sua generalização situa-se na passagem do capitalismo
concorrencial para o monopolista, em especial na sua fase tardia após a II guerra
54
mundial‖ (idem). Seguindo a mesma argumentação, acrescenta Netto (2011, p. 21), ―no
capitalismo monopolista, as funções políticas do Estado imbricam-se organicamente
com suas funções econômicas‖.
A partir de 1945 foram reconhecidos os direitos sociais na Europa, e,
posteriormente, na década de 50 e 60 constituiu-se em alguns países o Estado Social
capitalista. Assim, o Estado intervindo na economia, assume como função principal a
preservação e o controle da força de trabalho, buscando a coerção e o consenso.
A partir dessa fase, o Estado combina e articula as funções econômicas
(preservar os lucros) e as políticas (legitimidade) sendo obrigado a incorporar outros
sujeitos sociopolíticos. Mas, o Estado somente reconhece a política social a partir da
luta da classe trabalhadora. Noutras palavras, é pela pressão dos trabalhadores e medo
do socialismo que se constituem e se reconhece por parte do Estado a necessidade das
políticas sociais. Não se pode esquecer que a União Soviética sai fortalecida do pós II
Guerra.
Desta maneira, devemos perceber as políticas sociais em um duplo movimento,
o movimento do capital e o da luta de classes. Pois, as políticas sociais são formas
organizadas de o Estado intervir sem a repressão, beneficiando os trabalhadores ao
mesmo tempo em que atende aos interesses do capital. Contudo, sem a luta dos
trabalhadores e trabalhadoras, provavelmente, não haveria políticas sociais, ou elas
assumiriam uma conformação de tal modo restrita que beneficiaram exclusivamente o
capital. Do mesmo modo, estas sempre estarão em relação dialética com o movimento
do capital e as lutas de classes. Portanto, as políticas sociais sempre carregam esta
contradição de beneficiar o capital e o trabalho, embora beneficiem muito mais o
primeiro.
Destacamos mais uma vez, que sob o capitalismo monopolista, a mediação do
conflito social se realiza através das políticas sociais, como observam acertadamente
Behring e Boschetti (2011) entre outros. Para Netto, ―é através das políticas sociais que
o Estado burguês procura administrar as expressões da ‗questão social‘‖ (NETTO,
2011, p. 31). Além disso, as políticas sociais se referem ao processo de reprodução da
força de trabalho, através de recursos públicos e privados, também se referem á
dimensão política, ou seja, a busca de legitimidade por parte do Estado.
Entretanto, embora o papel do Estado ampliou-se muito ao longo do
desenvolvimento do estágio imperialista do capitalismo, ele nunca perdeu seu caráter
55
coercitivo. Neste sentido, podemos observar a força do Estado nas expropriações que se
mantêm desde as origens do modo de produção capitalista.
Sobre este debate em torno das expropriações, Boschetti (2016) recupera as
ideais centrais de Marx e aquelas desenvolvidas por Virginia Fontes (2010) e a crítica
desta às formulações de David Harvey (2004)21
. A autora ressalta que o capitalismo não
pode ser reduzido ao movimento das expropriações e estas, tampouco, devem ser
relacionadas exclusivamente à acumulação primitiva como um momento ou período
anterior ao capitalismo. Para a autora, as expropriações são processos permanentes e
condição da constituição e expansão da base social do capital, ou seja, não há aqui
qualquer dualidade, mas sim uma relação dialética intrinsecamente determinada entre
expropriação e base social, leia-se unidade entre todos os momentos do processo de
produção e reprodução do capital.
Para qualificar e particularizar esse processo, Fontes (2010, p. 44) afirma que a
expropriação primária original das massas campesinas ou agrárias da posse da terra não
se limita a um ―momento‖ pré-capitalista (acumulação primitiva), mas permanece e se
aprofunda no capitalismo contemporâneo. Enfim, de acordo com Boschetti,
a imensa disponibilização de trabalhadores expropriados de suas condições de
subsistência não só agudiza a desigualdade de classe em todo o mundo, como
também favorece a exploração da força de trabalho pelo capital, que tem à sua
disposição uma imensa massa de trabalhadores que têm no trabalho a única
forma de sobrevivência (BOSCHETTI, 2016, p. 129).
Nos dias atuais, podemos citar, por exemplo, a expropriação das terras indígenas
e quilombolas, a expropriação da participação política, dos direitos sociais, civis e
econômicos, entre outros. Nesses termos, ―a subtração de condições materiais que
possibilitam à classe trabalhadora deixar de vender sua força de trabalho e asseguram
sua subsistência em determinadas situações (como é caso das aposentadorias, seguro
desemprego, seguro saúde) também pode ser entendida como um processo de
expropriação‖ (FONTES, 2010, p. 42).
O que é apontado como fecundo nesse debate, para Boschetti (2016), é
compreender a expropriação como processo de subtração de condições históricas de
reprodução da força de trabalho, por meio da reapropriação, pelo capital, de parte do
21
Como esse tema das expropriações é polêmico e não é o objeto principal de nossas reflexões, para um
aprofundamento do debate cf. HARVEY, David. O Novo Imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
Especialmente os capítulos 3 e 4, onde o geógrafo marxista busca compreender a atualidade do modo de
produção capitalista, para isso desenvolve o conceito de espoliação. Veja também, FONTES, Virgínia. O
Brasil e o Capital Imperialismo – teoria e história. Rio de Janeiro: FIOCRUZ- EPSJV e UFRJ, 2010. Em
especial o capítulo 1, onde a historiadora marxista defende a tese de que há uma expropriação primária.
56
fundo público destinado aos direitos conquistados pela classe trabalhadora. Pois, como
sintetiza Fontes (2010, p. 93) ―as expropriações são a contraface necessária da
concentração exacerbada de capitais e que, menos do que a produção de externalidades,
são a forma mais selvagem da expansão (e não do recuo) do capitalismo‖. Trata-se,
portanto, como aponta Boschetti,
de qualificar a bárbara subtração de direitos sociais por meio de sucessivas e
avassaladoras contrarreformas nas políticas sociais, que obrigam a classe
trabalhadora a oferecer sua força de trabalho no mercado a qualquer custo e a
se submeter às mais perversas e precarizadas relações de trabalho, que
exacerbam a extração da mais valia relativa e absoluta (BOSCHETTI, 2016, p.
130/131).
Por isso, ―as perdas no campo do trabalho e das políticas sociais alteram o
sentido e significado do Estado Social, impondo à classe trabalhadora um agressivo e
‗renovado‘ processo de expropriação social‖ (BOSCHETTI, 2016, p. 122).
Como já anunciado, a perspectiva de Estado Social capitalista aqui adotado,
situa-se numa relação dialética e contraditória entre o capital e o mundo do trabalho.
Isto é, para Boschetti,
o Estado Social mantém sua função de regulação e distribuição de parcelas do
excedente social e não deixa de participar da reprodução ampliada do capital,
mas realiza as funções de reprodução da força de trabalho e de manutenção da
população não trabalhadora nos limites da sobrevivência. No âmbito da
previdência e saúde, a ação estatal se limita cada vez mais à manutenção de
sistemas públicos mínimos ou básicos (os chamados planos de base) e regula a
instituição de planos privados abertos e/ou fechados que se constituem em
novos nichos de acumulação. No âmbito do trabalho, reedita a antiga e
insolúvel tensão entre assistência social e trabalho, mas agora com novas
nomenclaturas e configurações chamadas políticas de ativação da proteção
social (BOSCHETTI, 2016, p. 137).
No âmbito do Estado Social, portanto, de acordo com Boschetti,
foram reduziram direitos conquistados pela classe trabalhadora; Esta tendência
geral foi agressiva tanto nos países do capitalismo central em que a
previdência e a saúde públicas atingiram a quase totalidade da população,
como nos países do capitalismo periférico, em que estas políticas ficaram
longe da possibilidade de universalização. Desde a década de 1970 direitos
sociais como aposentadorias, pensões e saúde são acusados de serem os
―vilões‖ que impedem a superação da crise estrutural do capital, sob a
acusação neoliberal de absorvem parte importante do fundo público, de
onerarem as empresas e impedirem o desenvolvimento. De ―motor‖ do
crescimento na perspectiva keynesiana, o Estado Social passa a ser acusado
pelos neoliberais e por setores da socialdemocracia de ser um ―freio‖ ao
crescimento econômico. Desde então, se sucedem as críticas ao ―peso‖ do
Estado social, às suas ―despesas‖ crescentes e às ―generosas‖ prestações
sociais, o que levou à proliferação de medidas conservadoras de ―ajustes‖
destinadas a superar a crise. Estas medidas constituem, na verdade, estratégias
de restauração capitalista na busca de ampliação das taxas de lucro, e que
impõem perversas perdas sociais à classe trabalhadora (BOSCHETTI, 2016, p.
122).
57
Cabe destacar que, diferentemente de alguns países Europeus ou mesmo dos
Estados Unidos, o Brasil nunca experimentou um amplo e Estado Social, exceto, como
protocolo de intenções na Carta Magna de 1988. Embora desde Getulio Vargas (1930)
tenhamos conquistado algumas importantes políticas assistenciais, de acordo com
Boschetti (2016) a assistência social é uma política social que compõe o Estado Social,
portanto, capitalista. Para a autora, o Estado capitalista regula as políticas sociais. Em
função disso, por exemplo, nos anos 1990 a crise foi concebida como esgotamento de
um modelo (o fordista-keynesiano), razão da proposta de menos Estado social, mais
mercado e a supressão das regulamentações do trabalho e de qualquer controle do
capital em prol da ideologia e do projeto neoliberal.
Sob o neoliberalismo, principalmente no seu auge durante a década de 1990, o
Estado Social brasileiro viveu um processo de contrarreforma, como bem o definiu
Behring (2008), portanto, de reforma conservadora e regressiva. O seu argumento em
favor desta caracterização fundamenta-se no fato verossímil de que os últimos governos
brasileiros – desde a redemocratização do país - tiveram como meta, entre outros
ataques ao mundo do trabalho, a desconstrução de direitos sociais já conquistados, o que
permite a autora defender a tese de que estamos numa época de contrarreforma
(BEHRING, 2008, p. 171 e SS.). Ao Estado, em seu novo papel, coube a função de
privatizar os setores rentáveis, salvar os monopólios falidos, pagar altos juros para os
rentistas, levar a cabo a abertura comercial etc. Sem abrir mão, contudo, de sua função
coercitiva.
Assim, nas condições atuais, temos que enfrentar a ―questão social‖ tendo
consciência que ela é insolúvel sob o capitalismo; a alternativa que se apresenta é a
supressão. Precisamos lutar para melhorar as condições de vida do povo, mas isso só se
resolve em definitivo mexendo nas estruturas da sociedade capitalista.
1.5 Transformações econômicas, políticas e sociais no Brasil
O processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil não se deu da mesma
maneira e nem ao mesmo tempo em que ocorreu nos países centrais. Desde o início, a
partir da colonização portuguesa, fomos compelidos a enviar nossas riquezas naturais
por meio de Portugal aos países centrais do capitalismo. Porém, nossa formação
econômica e social, embora bastante vinculada com a Europa, apresenta características
singulares. Como aponta Fernandes,
58
a dependência e o subdesenvolvimento não foram somente impostos de fora
para dentro, ambos fazem parte de uma estratégia, repetida sob várias
circunstâncias no decorrer da evolução externa e interna do capitalismo, pela
qual os estamentos e as classes dominantes dimensionaram o desenvolvimento
capitalista que pretendiam, construindo por suas mãos, por assim dizer, o
capitalismo dependente como realidade econômica e humana (FERNANDES,
2005, p. 262).
Desta maneira, podemos dizer que desde a colonização portuguesa (1500-1822)
até aproximadamente 1930, a economia brasileira baseava-se na produção de produtos
primários voltados para exportação. Foi o padrão de ―desenvolvimento‖ que perdurou
por mais tempo (cerca de 430 anos) ao longo da nossa história. Destes longos anos,
cerca de 380 foram baseados no trabalho escravo, principalmente dos negros trazidos da
África, mas, também havia, em menor proporção, a escravidão dos povos autóctones. O
trabalho escravo foi utilizado principalmente na agricultura - com destaque para a
produção de açúcar nas grandes fazendas e na extração do ouro, sendo assim essencial
para o ―desenvolvimento‖ do modelo à época.
Portanto, o Brasil no período colonial (1500-1822), como colônia portuguesa e,
no período imperial (1822-1889) sob os reinados de D. Pedro I e II, ―desenvolveu-se‖
baseado no trabalho escravo, voltado para exportação e acumulação de riqueza dos
países centrais22
. Por conseguinte, num primeiro momento exportamos pau-brasil,
açúcar, ouro, e no início do século XX, o café. Este modelo ficou conhecido e
caracterizado como sendo agroexportador, levado a cabo pelas elites brasileiras, desde o
período colonial até os primeiros anos da Era Vargas (1930-194523
). No período
subsequente de industrialização (1930-1980) o centro de acumulação de capital
deslocou-se para as fábricas nas cidades24
.
Importa observar que o Brasil da época colonial e imperial era uma sociedade
pré-capitalista, mas subordinada ao capitalismo central por meio do mercado mundial.
Neste contexto histórico e social, as instituições (agências ou entidades da classe
trabalhadora) eram incipientes ou até mesmo efêmeras. Por exemplo, os partidos
políticos, o parlamento e o sistema de educação não iam muito além da catequese
proporcionada pela Igreja. Entretanto, as agências (entidades) da sociedade civil que
22
Grande parte do pau-brasil, do couro e da carne, mas principalmente do ouro não ficava em Portugal
que em relação aos demais países europeus, em termos capitalistas, era um dos menos desenvolvido à
época.
23
Como se sabe, Getúlio volta ao poder 1950 e fica até o suicídio em 24 de Agosto de 1954.
24
Desenvolveremos com mais profundidade os principais aspectos deste período mais a frente.
59
exprimiam os interesses das classes dominantes eram fortes e gozavam das benesses do
Estado. Em contraste com o Estado das classes dominantes, as agências que exprimiam
os interesses das classes trabalhadoras eram frágeis, principalmente em função da
repressão exercida pelas classes hegemônicas e o seu Estado coercitivo. Disso conclui-
se que a sociedade civil não era homogeneamente desenvolvida.
A independência do país em 1822, sob esta conjuntura econômica e política, foi
considerada por Coutinho (2005) como resultante de uma manobra ―pelo alto‖ ou como
um golpe palaciano desprovido da participação da sociedade civil; ―assim, a
independência se fez por uma simples transferência política de poderes da metrópole
para o novo governo brasileiro – se fez à revelia do povo‖ (COUTINHO, 2005, p. 22).
Cabe destacar, que somente no início do século XX (1909) tivemos um ensino
superior com status de universidade, portanto, nossos espaços de sistematização eram
bastante débeis, ou seja, a sociedade brasileira era muito diferente das sociedades
europeias. Por lá já haviam indústrias, cidades urbanizadas e uma classe trabalhadora
organizada - o proletariado. No Brasil, contávamos com pouquíssimas indústrias, os
meios de transporte e de comunicação eram precários, a economia era agrária com base
na exploração do trabalho escravo - que só foi formalmente abolido na penúltima
década do século XIX (1888). Além disso, não havia classe trabalhadora estruturada
como nos países do centro do poder capitalista. Depreende-se daí que na sociedade
brasileira o problema crucial não era a chamada ―questão social‖ como na Europa
(movimento operário, pauperização absoluta produzida, conflito entre capital e trabalho
etc.) e sim a questão da escravidão e da independência.
Não obstante a esta realidade brasileira, adversa e limitante, desde o início do
século XX vários pensadores se dedicaram a interpretar a realidade socioeconômica do
país através de ferramentas teóricas distintas, contudo, buscaram entender as causas
dessa nossa condição.25
Cabe apontar, que o alcance das formulações não era idêntico,
autores como Sérgio Buarque e Gylberto Freire, por exemplo, formularam uma
―interpretação‖ do Brasil cujo objetivo seria, ao fundo, o de consagrar as virtudes do
mercado e da iniciativa privada sobre o Estado, entre outras problemáticas que não são
possíveis abordar neste trabalho.
25
Dentre aqueles dedicados ao estudo sistemático da nossa realidade, destacam-se pensadores da estatura
de Caio Prado Junior (1907-1990), Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), Gilberto Freyre (1900-
1987), Darcy Ribeiro (1922-1997), Celso Furtado (1920-2004), Octavio Ianni (1926-2004), Florestan
Fernandes (1920-1995), Francisco de Oliveira, entre outros.
60
Compartilhamos das formulações de Fernandes (1973), em ―Capitalismo
dependente e classes sociais na América Latina” e das teses contidas em ―A Revolução
Burguesa No Brasil‖ (2005), onde apontam como característica fundamental da
formação social brasileira a perspectiva elitista das nossas classes dominantes. Destaca-
se, ainda, que os processos de mudanças pelo qual passou nosso país, são marcadamente
feitos ―pelo alto26
‖.
Em decorrência desta particularidade brasileira, de acordo com Fernandes (1973,
p. 60) ―as burguesias nacionais [as classes dominantes] foram os artífices do capitalismo
dependente [...] e, constantemente usam o Estado para atingir seus fins‖.
Consequentemente observa acertadamente o autor que;
ao contrário de outras burguesias, que forjaram instituições próprias de poder
especificamente social e só usaram o Estado para arranjos mais complicados e
específicos, a nossa burguesia converge para o Estado e faz sua unificação no
plano político, antes de converter a dominação socioeconômica no que Weber
entendia como ―poder político indireto‖. As próprias ―associações de classe‖,
acima dos interesses imediatos das categorias econômicas envolvidas, visavam
a exercer pressão e influência sobre o Estado e, de modo mais concreto,
orientar e controlar a aplicação do poder político estatal, de acordo com seus
fins particulares (FERNANDES, 2005, p. 240).
Nesta quadra histórica anterior a 1930, as principais classes sociais constituíam-
se com os escravos, os senhores de escravos - também conhecidos como oligarquia
rural, os comerciantes e traficantes de escravos, os sertanejos, os artesãos e os feirantes.
Os povos expropriados – negros e indígenas foram protagonistas das lutas sociais pela
liberdade, portanto, contra a escravidão, ou, se quisermos, contra o estado de coisas a
que eram submetidos.
As lutas sociais desenvolveram-se, principalmente, em torno da luta pela terra,
transformada em mercadoria, ou, propriedade privada de poucos, a partir da lei de terras
de 1850. Ressaltamos que a abolição oficial da escravidão ocorreu somente 38 anos
depois da publicação da referida lei. Em nossa história, desde a chegada dos
portugueses, e até os dias atuais, ocorrem lutas sociais e pela terra.
A título de ilustração desta trajetória de lutas sociais, destacamos algumas delas,
como por exemplo: as lutas dos quilombos no século XVII, XVIII e XIX (um dos mais
conhecidos e importantes foi o Quilombo dos Palmares, localizado na região da Serra
da Barriga em Pernambuco, que no auge de sua organização chegou a reunir de 15 a 20
mil pessoas); a Cabanagem (1835 a 1840), importante revolta popular que aconteceu na
26
Entende-se mudanças ―pelo alto‖, como uma formulação análoga aos conceitos de ―via prussiana‖,
―revolução passiva‖ e/ou modernização conservadora.
61
província do Grão-Pará - região norte do Brasil, atual estado do Pará – o movimento
recebeu este nome porque grande parte dos revoltosos era formada por pessoas pobres
denominadas cabanos e que moravam em cabanas nas beiras dos rios da região. O
movimento popular da Balaiada (1838), no Maranhão, contrário ao poder dos
aristocratas rurais que dominavam aquela região; Canudos (1893-1897) na Bahia,
importante movimento messiânico que chegou a organizar 25 mil famílias; o
Contestado (1912-1916), em Santa Catarina, movimento camponês de resistência à
deliberada expulsão de suas terras ocasionada pela construção da estrada de ferro que
ligava São Paulo ao Rio Grande do Sul, entre outros.
Todas estas contingencias sociais, econômicas e políticas, com suas contradições
inerentes como resultado do desenvolvimento das forças produtivas, nos levaram a
outro patamar de acumulação e de lutas sociais. Portanto, embora a Independência
(1822), a abolição da escravidão (1888) e a proclamação da República (1889) tenham se
constituído como processos importantes da nossa formação capitalista (mudanças ―pelo
alto‖ – caracterizadas como ―via prussiana‖ e/ou ―revolução passiva‖) é certamente,
depois de 1930 que se dá entre nós a generalização das relações capitalistas burguesas
de caráter urbano industrial.
Nesse sentido, a revolução de 1930 é um marco importante de nossa história
moderna porque, seguramente, é o que expressa de maneira mais emblemática o que é
uma ―via prussiana‖, uma ―revolução passiva‖, uma ―modernização conservadora‖ ou
ainda uma mudança ―pelo alto‖ especialmente num país de capitalismo dependente.
Para Octavio Ianni (2009), devido à derrota, ainda que parcial, das oligarquias
de até então pelas novas classes sociais urbanas, a revolução de 1930 exprimiu as
rupturas estruturais a partir das quais se tornou possível reelaborar as relações entre o
Estado e a sociedade. Desse modo, ―nos anos posteriores a revolução de 1930, alteram-
se as funções e a própria estrutura do Estado brasileiro‖ (IANNI, 2009, p. 27). Portanto,
o ano de 1930 marca o início da revolução burguesa no Brasil de tipo não clássica.
Como estamos defendendo, este processo entre nós fora diferente das revoluções
burguesas clássicas – da Inglaterra, dos EUA e da França. Isto porque, essas revoluções
propiciaram a emancipação política27
do conjunto da sociedade. Portanto, estas
27
O jovem Marx, lá em 1843 (em Para a questão judaica), sabia equacionar perfeitamente um problema
que ainda hoje persiste para parte significativa da esquerda brasileira em pleno século XXI. Trata-se da
equação emancipação política e a emancipação humana. Para Marx, ―a emancipação política é, sem
dúvida, um grande progresso; ela não é, decerto, a última forma de emancipação humana, em geral, mas é
62
revoluções tornaram os homens ―livres‖ – uma liberdade formal que, ao mesmo tempo
libertou a classe trabalhadora de relações de servidão, mas também os deixou livres ao
jugo do mercado. Como disse Marx, livres como pássaros e ―todos iguais‖ perante a lei.
Porém, isso é limitado porque nem todos e todas detêm as mesmas condições
econômicas, políticas e sociais.
A revolução burguesa no Brasil foi uma ―revolução pelo alto‖, isso porque,
excluiu a massa dos trabalhadores da representação política. Acerca do tema,
lembramo-nos da famosa frase do Governador mineiro Antônio Carlos, ―façamos a
revolução antes que o povo a faça‖. A frase é sintomática, pois ajuda a explicar a
Revolução de 1930 e a coloca como um movimento de parte significativa das
oligarquias industriais e agrárias, que não se beneficiavam da política do "café-com-
leite", como a do Rio Grande do Sul, com o apoio de setores sociais cansados da velha e
corrupta república, tal como os tenentes e as classes médias urbanas.
Do mesmo modo, expressa a preocupação com a possibilidade de crescimento
das agitações populares e com a rearticulação dos tenentistas, as oligarquias dissidentes,
mesmo em seus setores mais conservadores, resolveram assumir o comando da
conspiração. Impediriam, assim, que o golpe desencadeasse em transformações mais
radicais. Evidência, ainda, que a burguesia brasileira não tinha vocação nem disposição
para emancipar politicamente os/as trabalhadores/as do país. Pois, o bloco político que
gravitava em terno do Presidente Getúlio Vargas não rompeu com o latifúndio e
manteve o coronelismo.
No entanto, é a partir de 1930 que os interesses da burguesia estão representados
no poder. Isso fica claro quando observamos os nítidos mecanismos de favorecimento
ao capital industrial. O governo central toma medidas através do planejamento
econômico para favorecer o capital industrial. Faz uma serie de investimentos com os
recursos públicos e cria a CSN, a VALE, e a PETROBRAS entre outras. Essa
prioridade ao capital industrial não toca nos interesses do latifúndio. Desta maneira, o
Brasil se moderniza a partir de 1930, mas sem destruir o atraso e sim incorporando o
latifúndio.
Claramente, Getúlio Vargas à época tinha dois caminhos à sua frente: a) abrir a
democracia e ir para o conflito aberto com os trabalhadores ou b) incorporar a massa
trabalhadora. Como se sabe, a opção do governo foi fazer um conflito seletivo, uma
a última forma de emancipação política no interior da ordem mundial até aqui‖ (MARX, 2009, p. 52 –
itálicos originais).
63
repressão focalizada (basta lembrar-se da repressão aos comunistas vinculados ao PCB)
e ao mesmo tempo atender parte das reivindicações da classe trabalhadora - em 1931 foi
criado Ministério do Trabalho - MT e mais tarde, em 1943, a Consolidação das Leis
Trabalhistas – CLT, entre outros. Decerto, o Estado brasileiro a partir da década de 30
teve um papel fundamental no processo de desenvolvimento das forças produtivas, na
acumulação de capital (e de riquezas) nas mãos das classes dominantes e na
manutenção, ou melhor, na reprodução das relações sociais capitalistas. Nestes anos, as
políticas sociais também passam a ser incorporadas como processos necessários à
reprodução ampliada do capital e do trabalho. Assim, como a contradição é inerente aos
processos políticos, econômicos e sociais, não obstante as prioridades do governo à
época fossem voltadas para desenvolver o capitalismo por meio da industrialização, por
outro lado, tudo isso contribuiu para que se desenvolvesse também a classe operária.
Cabe salientar que a organização do Estado, sua intervenção e as suas relações
com a sociedade civil e/ou as classes sociais, sempre foi pautada pelas classes
hegemonicamente dominantes (não obstante, sempre houve lutas das classes
trabalhadoras), pois, as elites nunca abdicaram da direção do Estado em nosso país. A
sociedade brasileira constitui-se a partir deste eixo e não diretamente da práxis social
das massas populares e trabalhadoras. No Brasil, o Estado vem antes da constituição de
uma nação, daí a sua importância como agente privilegiado do desenvolvimento do
capitalismo maduro.
De acordo com Ianni,
a evolução do sistema político-econômico brasileiro, conforme ocorreu desde
1930, revela o desenvolvimento e a convergência de duas tendências
importantes para a compreensão do tipo de capitalismo vigente no País. Em
primeiro lugar, o Estado foi levado a desempenhar funções cada vez mais
complexas no conjunto da economia. Essa participação crescente teve caráter
direto e indireto, desde a frequente formulação e reformulação das ‗regras do
jogo‘, das forças produtivas do mercado até a criação de empresas estatais. Em
segundo lugar, a política econômica governamental tornou-se cada vez mais
complexa e ambiciosa, chegando a configurar-se como política econômica
planificada. Note-se, entretanto, que a política econômica governamental
brasileira nem sempre foi política deliberada de desenvolvimento. [...] essa
duas tendências (crescente participação estatal na economia e política
economia planificada), e a singularidade da convergência de ambas, deve ser
consideradas manifestações básicas do sistema político-econômico brasileiro
(IANNI, 2009, p. 281).
Para Fernandes, o poder estatal surge como a estrutura principal e o verdadeiro
dínamo do poder burguês. E, conclui,
o Estado nacional não é uma peça contingente ou secundária desse padrão de
dominação burguesa. Ele está no cerne de sua existência e só ele, de fato, pode
64
abrir às classes burguesas o áspero caminho de uma revolução nacional,
tolhida e prolongada pelas contradições do capitalismo dependente e do
subdesenvolvimento (FERNANDES, 2005. p. 358).
Seguindo a mesma proposição Marini irá afirmar que;
o capitalismo brasileiro orientou-se, assim, para um desenvolvimento
monstruoso, dado que chega à etapa imperialista antes de ter conseguido a
mudança global da economia nacional e em situação de dependência crescente
diante do imperialismo internacional. A consequência mais importante deste
fato é que, ao contrário do que acontece com as economias capitalistas centrais
o subimperialismo brasileiro não pode converter a espoliação, que pretende
realizar no exterior, em fator de elevação do nível de vida interno, capaz de
amortecer o ímpeto da luta de classes... (MARINI, 2000, p. 98-99).
Resumidamente, podemos dizer que: a partir dos anos 1930, desenvolve-se no
Brasil, uma tendência à ocidentalização de nossa sociedade, ou seja, a constituição de
uma relação equilibrada entre Estado e sociedade civil como aponta Coutinho (2005).
Assim, em função dos objetivos e da subserviência de nossas classes dominantes (qual
seja, manter os superlucros, a dominação, a dependência e a superexploração da força
de trabalho), o principal protagonista de nossa industrialização foi o Estado burguês –
seja por meio de criação de empresas estatais, da viabilidade de infraestrutura, de
incentivo direto (financiamento ou abdicação de impostos) ao capital industrial ou por
meio de repressão as contestações das classes subalternas.
Esse modelo de Estado burguês nos conduziu em face da América Latina ao
subimperialismo. De acordo com Marini (2014, p. 41), é possível afirmar que ―o
subimperialismo corresponde, por um lado, ao surgimento de pontos intermediários na
composição orgânica do capital em escala mundial – na medida em que aumenta a
integração dos sistemas de produção – e, por outro, à chegada de uma economia
dependente à fase do monopólio e do capital financeiro‖.
Como aludimos a pouco, todo esse processo de desenvolvimento de produção
capitalista, e do Estado, também foi o palco onde se desenvolveu a classe trabalhadora
brasileira e as lutas sociais e de classes. Destacamos apenas a título ilustrativo, as Ligas
Camponesas (1954-1964) no nordeste, que defendiam a democratização da terra e a
realização da reforma agrária, os diversos Sindicatos de Trabalhadores Rurais – STRs,
espalhados Brasil afora, que além de buscarem aglutinar os camponeses dispersos nos
municípios interioranos, lutavam contra a grilagem de terras e, para concluir, a União
dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil – ULTABs (1954-1964), criada
durante a Segunda Conferência Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas,
65
que apresentava como reivindicações principais: o respeito aos direitos civis e
trabalhistas, o direito à previdência, ao seguro social e a reforma agrária.
Sendo a história um processo que está sempre em movimento, o modelo
econômico de industrialização do Brasil que perdurou da Era Vargas até
aproximadamente 1980 e que transformou profundamente nosso país, do ponto de vista
econômico, social e demográfico chega ao fim, como mais um ciclo de acumulação
capitalista e de domínio das classes mais abastadas da sociedade. Porém, sem alterar o
fato de sermos cindidos em classes sociais antagônicas.
O Brasil, até a primeira metade da década de 1960, era um país eminentemente
agrícola, com 55,3% das pessoas morando na zona rural. Ao fim desse modelo de
industrialização (de modernização conservadora, ou de revolução passiva), passando
pelo golpe civil-militar e seu projeto de ―integração nacional‖, no início dos anos de
1980 o país já tinha mais de 121 milhões de brasileiros e de brasileiras. Destes,
compunham a população urbana 82.013.373, aproximadamente 66% e a população rural
39.137.198, cerca de 34%28
. Observa-se que a população do campo torna-se minoritária
e nos transformamos numa sociedade urbano-industrial, ou, capitalista em sentido
pleno.
Em meio século de industrialização, de Estado burguês intervencionista e
corporativista, tivemos quase 30 anos de ditaduras explícitas (1937-1945 e 1964-1984),
portanto, de supremacia das classes dominantes por meio de fortes repressões à classe
trabalhadora. De acordo com Fernandes (2005, p. 257), essa frequente ―reorganização
do Estado, a concentração e a militarização do poder político estatal, bem como a
reorientação política e econômica sob a égide do Estado, foram a mola mestra de todo o
processo de ‗recuperação‘ e de volta à ‗normalidade‘‖.
Nos anos 1990, imediatamente após a eleição de Collor, inicia-se no Brasil, um
―outro modelo‖ ideo-político - mais uma vez de cima para baixo, ou seja, como
resultado de mais uma mudança ―pelo alto‖. Contudo, embora não se trate,
absolutamente, de modelo (como os anteriores), o neoliberalismo se configura para
além do âmbito estritamente político, ou seja, a proposta neoliberal centraliza-se na
inteira despolitização das relações sociais, com o que qualquer regulação política
democrática do mercado - via Estado ou outra instituição - é rechaçada de princípio.
28
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010. In. http://www.ibge.gov.br.
Acessado em 05\06\2016.
66
No Brasil, o Estado está intrinsecamente vinculado ao processo de concentração
de renda, que é uma das maiores e mais brutais do mundo. Esta brutalidade deriva da
concentração da propriedade da terra e da propriedade imobiliária, que por sua vez
derivam da concentração do poder econômico, que se expressa na centralização do
poder político historicamente constituído à revelia da massa da população. Portanto, no
Brasil,
sempre vivemos processos de modernização excludente, que consistem
essencialmente em rearranjos entre frações das classes dirigentes, com
permanente tendência a excluir a grande massa da população tanto nas
decisões políticas quanto nos benefícios da modernização e do progresso
econômico (COUTINHO, 2000, p. 125).
Não obstante a maioria da população brasileira, por um lado, estar incluída na
criação/produção das riquezas sociais, por outro, a ampla maioria está excluída da
apropriação das riquezas produzidas socialmente, o que é componente do cotidiano da
vida nacional; entretanto, como demonstramos acima, ainda que sumariamente, sempre
ocorreram resistências e lutas das classes marginalizadas ou subalternas.
Com efeito, apesar da dura vida e das lutas incansáveis dos trabalhadores e
trabalhadoras, as classes dominantes têm demonstrado ao longo da história não serem
sensíveis às questões de distribuição de renda, não obstante seus representantes políticos
em épocas eleitorais vociferarem contra a concentração de renda e prometerem mais
distribuição desta ou redução das desigualdades se eleitos forem. Aliás, sobre esse tema,
de acordo com Fernandes (2005), no Brasil, sempre se seguiu a rotina de privilegiar os
privilegiados, sem tentativas frutíferas de intervenção programada na distribuição da
renda. Mantêm-se níveis salariais os mais baixos possíveis, com desvalorização brutal
do trabalho e as piores condições de vida possíveis.
Segundo a síntese de indicadores sociais, do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE29
, com dados de 2013, os 10% da população que possuem a maior
renda familiar per capita concentravam 41,7% da renda per capita total do país em 2013,
contra 43,6% em 2008 e 45,8% em 2009. A concentração de renda é tão intensa que,
para cada dólar que fica com os 10% mais pobres, os 10% mais ricos recebem 68 U$$.
29
In. http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/12/10-mais-ricos-concentram-40-da-renda-do-pais-diz-
ibge.html. Acessado em 05 de junho de 2016.
67
Ainda de acordo com o IBGE, no Brasil, a concentração de renda tem aumentado no
topo mais rico da população30
. Enquanto isso, a proporção entre os 10% da população
com menor rendimento passou de 1% em 2004 para 1,1% em 2008 e 1,2% em 2013. A
metade mais pobre da população brasileira (50%) ganha em soma quase o mesmo valor
(12,5% da renda nacional) que os 1% mais ricos (13.3%). A veracidade da constatação
de que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, com uma imensa
concentração de riqueza e propriedade nas mãos de poucos ainda prevalece. Pelo
exposto, evidencia-se que ―o Estado nacional brasileiro sucumbiu aos interesses de
classe que ele representa...‖ (FERNANDES, 2005, p. 306).
Acrescente-se a tudo isso o fato de que um país pode ser importante produtor de
riquezas, como é o caso do Brasil, porém, a maioria da população não desfruta dessas
riquezas. Sendo esta realidade resultante da forma como é distribuída a riqueza
socialmente produzida entre aqueles que a produzem e aqueles que a detêm. Em outras
palavras: o que determina em última instância a quantidade da riqueza que fica com o
mundo do trabalho e a quantidade que fica com o capital é a correlação de forças
existente entre as classes em luta, e como resultante desse processo, o perfil mais
democrático ou não do Estado.
30
Porém, o instituto assinala que houve pequena melhora da distribuição da renda detida pelos 10% mais
ricos, que, na mesma comparação, passou de 51,1% da renda nacional para 48,2% — ―perda‖ de quase
três pontos percentuais, ainda que permaneçam em nível bastante elevado.
68
CAPÍTULO II
Da contrarrevolução preventiva ao neoliberalismo
Discorremos no capítulo anterior, sobre o processo de desenvolvimento com
suas crises e contradições do modo de produção capitalista. Além disso, pontuamos as
funções e as particularidades do Estado no Brasil, país de capitalismo dependente.
Agora, vamos destacar o papel do golpe civil-militar e as lutas sociais e de
classes daquele período. Consequentemente, a análise se desenvolve sobre as
contingências sociais, políticas, culturais e econômicas que possibilitaram a
conformação de um bloco político-social na primeira metade dos anos 1980. Além
disso, trataremos das características principais do neoliberalismo e a mudança na
correlação de forças ao longo dos anos 1990.
2.1 Notas sobre o golpe civil-militar: o fim do modelo de industrialização e as lutas
de classes contemporâneas
Em 1º de abril de 1964, deflagra-se um golpe civil-militar no Brasil que compôs
uma estratégia internacional de contenção das lutas sociais ou, nos termos de Florestan
Fernandes (2005) de contrarrevolução burguesa, orquestrada pelos Estados Unidos da
América (EUA) em escala mundial. Como observa acertadamente Fernandes,
[...] a revolução burguesa na periferia é, por excelência, um fenômeno
essencialmente político, de criação, consolidação e preservação de estruturas
de poder predominantemente políticas, submetidas ao controle da burguesia ou
por ela controláveis em quaisquer circunstâncias. Tanto as burguesias
nacionais da periferia quanto as burguesias das nações capitalistas centrais e
hegemônicas [...] querem: manter a ordem, salvar e fortalecer o capitalismo,
impedir que a dominação burguesa e o controle burguês sobre o Estado
nacional se deteriorem. (FERNANDES, 2005, p. 343 - Itálicos originais).
É interessante observar que a contrarrevolução preventiva teve como suporte o
apoio da burguesia local, saindo vitorioso o grande capital nativo - a agricultura
capitalista em processo de integração com a economia urbana e industrial e o comércio -
e o grande capital estrangeiro.
O combate ao bloco socialista e ao comunismo de maneira geral31
, após a
Segunda Guerra Mundial, em um cenário de desenvolvimentismo e de “Guerra Fria”,
era a pauta do dia dos Estados Unidos da América que repercutia em todos os cantos do
31
Entre os socialistas havia o Bloco Soviético, formado pelo Leste Europeu e a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas – URSS. A China passou a integrar o bloco socialista a partir de 1949, mas não ao
bloco soviético. Havia ainda um grupo de países da Ásia e da Europa caracterizados por uma forma de
organização política como sendo ―Democracia Popular‖.
69
planeta. A queda do muro de Berlim e o fim da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas - URSS representaram o fim de uma era, o fim do “Breve Século XX‖, como
expressaria o historiador marxista Eric Hobsbawn (1995) em seu consagrado livro ―A
Era dos extremos”. O fim da bipolaridade seria o corolário, para os EUA, de sua
hegemonia plena no contexto de um capitalismo mundializado.
Podemos dizer que a denominada ―Guerra Fria‖ nunca se materializou como
fato nos países centrais, pois os EUA e a URSS nunca se enfrentaram militarmente com
seus exércitos; decerto, o que ocorreu foi o que conhecemos como corrida
armamentista ao ponto de impossibilitar uma guerra ―quente‖ entre eles. Havia
indicativos de que, se usado, o arsenal bélico destas potências poderia destruir o planeta.
Entretanto, na periferia do sistema capitalista os conflitos eram abertos, principalmente
na África, na Ásia e América Latina. Nestes continentes, a guerra não era “tão fria”
assim, tratava-se de lutas sangrentas e batalhas épicas contra a colonização, no que ficou
conhecido como movimentos de libertação nacional. Neste período, deixaram de ser
colônias ou semicolônias, por exemplo, a Coréia do Norte em 1948, a China em 1949, o
Vietnã em 1954, Cuba em 1959 e a Argélia em 1962.
Esta onda de independência fez com que na América Latina se ampliasse o
clima de hostilidade e de intolerância por parte das elites ao socialismo, ao comunismo
e aos sujeitos sociais coletivos32
que almejavam reformas estruturais ou, para usar o
termo da época, reformas de base. Esta hostilidade disseminada era feita com o apoio
manipulado da opinião pública: através do uso dos meios de comunicação social
pregava-se aos quatro ventos que ―havia em andamento uma ‗guerra revolucionária‘,
[portanto], era preciso responder a ela mobilizando a ‗opinião pública‘ e as forças ‗vivas
da nação‘. Sem o respaldo da ‗opinião pública‘, a conspiração militar não vicejaria com
êxito‖ (NETTO, 2014, p. 63).
As classes dominantes do país direcionaram através da grande imprensa da
época uma ampla campanha de difamação do comunismo, do socialismo, ganhando
assim a ―opinião pública‖. Como resultado desta campanha, desencadeou-se após o
fatídico primeiro de abril de 1964, uma onda de mobilizações de apoio ao golpe, tendo à
frente, inclusive, o alto clero da Igreja Católica.
32
José Paulo Netto (2014, p. 46) usa este termo, sujeitos sociais coletivos, ao se referir aos estudantes
universitários vinculados a UNE, que a partir de 1956 voltou a protagonizar importante papel
progressista. No decorrer da obra, pode-se inferir um significado mais amplo ao termo. Entende-se por
sujeitos sociais coletivos o movimento social urbano ou rural, os sindicatos, as Ligas camponesas, a
ULTAB, a CONTAG, todo movimento estudantil etc.
70
Embora o que salta aos olhos é a imagem da ditadura como um regime de
exceção sob o comando dos militares, ela representou muito mais do que isso. O golpe
não foi um fenômeno estritamente militar, mas, uma estratégia da burguesia e do grande
capital nativo associado ao estrangeiro; nesta perspectiva apontamos o seu caráter civil-
militar33
.
O golpe foi respaldado publicamente pelas classes sociais mais abastadas da
sociedade, bem como pelos setores medianos; por isso o regime foi uma resposta
momentânea aos interesses das grandes burguesias, sob a direção dos governos
militares. Durante os vinte anos de ditadura correspondente ao período de 1964 a 1984,
os ―presidentes‖ do país foram militares. Para ilustrar a argumentação é pertinente
demonstrar que o primeiro ―presidente/ditador‖ foi o General Castelo Branco, que ficou
três anos no poder (1964-1967); o General Costa e Silva (1967-1969) após dois anos no
poder fora acometido por um Acidente Vascular Cerebral – AVC e não concluiu o
mandato, sendo substituído por uma Junta Militar de agosto a outubro de 1969; o
General Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) comandou a repressão por cinco anos,
que foram considerados os anos mais duros do regime após o Ato Institucional Número
05 – AI-5 de dezembro de 1968. O General Ernesto Geisel (1974-1979) foi o penúltimo
deles, e por fim, o General João Batista de Oliveira Figueiredo (1979-1985), que
permaneceu seis anos no poder.
Apesar disso, como mencionamos, estes ditadores atendiam a demandas civis -
em especial das classes economicamente dominantes. Dessa maneira, reitera Netto
(2014, p. 74), ―a ditadura instaurada a partir de 1º de abril, foi o regime político que
melhor atendia os interesses do grande capital‖ e de seus apologistas.
Sinteticamente, portanto, podemos afirmar que a ditadura civil-militar foi
produto e o resultado de uma política preventiva e contrarrevolucionária orquestrada
pelos EUA, com o apoio das burguesias locais e do grande capital. Tinha como objetivo
impedir as ascensões progressistas que despontavam no Brasil e simultaneamente
assegurar a manutenção das altas taxas de lucro dos capitalistas.
33
Participaram da conspiração do golpe, os governadores Carlos Lacerda do Rio de Janeiro, Adhemar de
Barros de São Paulo, José de Magalhães Pinto de Minas Gerais e Ney Aminthas de Barros Braga do
Paraná. Este último, um ano após a deflagração do golpe tornou-se ministro da agricultura e
posteriormente outros postos do regime, assim como Magalhães Pinto. Os três primeiramente citados
após o AI-2 de outubro de 1965 recolocam suas forças visando desestabilizar o regime. No plano
internacional, a casa branca em Washington foi o primeiro departamento internacional a reconhecer o
novo governo.
71
Os conflitos sociais pré-1964, principalmente no ano de 1963, cresciam
vertiginosamente expressando um novo grau da luta de classes. Nas cidades, as forças
de esquerda, representadas pelo movimento sindical filiado ao Comando Geral dos
Trabalhadores - CGT34
recorriam ao direito constitucional de greve, os estudantes
vinculados à União Nacional dos Estudantes - UNE e o Movimento Cultural dos
Artistas (Movimento de Cultura Popular, Centro de Cultura Popular etc.) desenvolviam
grandes mobilizações estudantis de rua e mesmo membros do Partido Trabalhista
Brasileiro - PTB faziam coro na defesa da solução dos problemas estruturais do povo
brasileiro.
No campo, registra-se principalmente, mas não unicamente, a atuação da União
dos Lavradores e Trabalhadores Agrícola do Brasil - ULTAB criada em 1954, em São
Paulo, pelos comunistas, com a finalidade de organizar os trabalhadores rurais. Esta
organização culminou mais tarde na constituição em 1963, da Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG, que organizava o movimento sindical
rural e parte das Ligas Camponesas.
As Ligas Camponesas politicamente influenciadas pela Revolução Cubana,
através de dois dos seus principais dirigentes (Francisco Julião e Clodomir Santos de
Morais) levantavam a bandeira da ―reforma agrária na lei ou na marra‖. As Ligas
arrastavam multidões de trabalhadores e trabalhadoras para suas fileiras de lutas e para
momentos de reflexão política, de trocas de experiências e/ou organizativo,
(congressos35
) bem como para as paralisações e greves como as que ocorreriam, em
especial no interior de Pernambuco.
34
Fundada em 1962, esta foi a primeira central dos trabalhadores operários no Brasil. Pode-se dizer,
grosso modo, que foi uma espécie de CUT dos anos 1960.
35
Em Belo Horizonte - MG, de 17 a 19 de Novembro de 1961, ocorreu o primeiro congresso de
trabalhadores do campo de caráter nacional, unificado, com mais de 1400 delegados. O congresso foi
convocado pelas ULTAB, entretanto, contou com a participação do Movimento dos Agricultores Sem
Terra -MASTER/RS, organizado pelo então Governador Leonel Brizola e parte significativa do PTB
gaucho, e o protagonismo das Ligas Camponesas. O congresso não acabou bem, pois ―o choque político e
ideológico entre as ULTAB e as Ligas foi inevitável. Pois o PCB defendia uma tática no acúmulo de
forças através de um trabalho de apoio a reivindicações e a interesses econômicos dos trabalhadores
agrícolas. As Ligas, ao contrário, atuavam no sentido de despertar a consciência política entre os
camponeses, para que no momento histórico pudessem decidir sobre seu destino‖ (MORAIS, In.
STEDILE, 2006, p. 49). O segundo grande encontro unificado de camponeses, somente ocorrerá entre os
dias 20 a 22 de agosto de 2013 em Brasília. Sob o signo de Encontro Unificado dos Trabalhadores e
Trabalhadoras e Povos do Campo, das Águas e das Florestas, além do MST, participaram a CONAQ,
FNQ, MPA, MAB, CPT, CIMI, MMC, Via Campesina, Fetraf, Contag e movimentos de pescadores
artesanais, entre outros.
72
O Movimento de Agricultores Sem Terra - MASTER foi criado pelo então
governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, com o objetivo de impedir que os
camponeses se filiassem nas Ligas ou na ULTAB. Contudo, o movimento fazia
ocupações visando o assentamento de famílias sem terra, bem como à projeção política
nacional do principal líder trabalhista.
Como expressão da efervescência das lutas e das greves, ―foram 105 greves em
1961, 128 em 1962 e 149 em 1963, em algumas categorias com caráter nacional‖
(NETTO, 2014, p. 46). Percebe-se que o campo estava em luta, particularmente nos
anos de 1961-196336
, pois é significativa a participação dos trabalhadores rurais em
favor de mudanças na estrutura fundiária e na ampliação de seus direitos, melhores
condições de vida e demandas na esfera política, como o voto para os analfabetos e o
reconhecimento dos sindicatos rurais.
Para os setores da esquerda e do próprio governo Jango, a solução à vista para a
grave crise econômica que assolava o país eram as reformas de base. As reformas de
base consistiam, em seus aspectos principais, em quatro reformas: 1) Reforma Agrária/
tinha como objetivo atender as reivindicações do movimento camponês, frear o êxodo
rural e baratear os alimentos para as massas urbanas, para isso era preciso quebrar o
monopólio oligárquico da terra e a alta concentração da propriedade da terra daí
resultante; 2) Reforma Tributária e fiscal/ buscava assegurar a racionalização das
principais fontes do fundo público; 3) Reforma Bancária/ visava construir um sistema
de crédito capaz de subsidiar o financiamento do processo de prosseguimento de
industrialização pesada; e a 4) Reforma Urbana/ almejava regular socialmente o uso do
solo citadino. Este conjunto de reformas, para serem promovidas, ―exigia um governo
com larga base político-social e com uma grande legitimidade para promover um
conjunto de reformas que, mesmo sem comprometer os fundamentos do regime
capitalista, conduzisse o capitalismo brasileiro a um novo estágio‖ (NETTO, 2014, p.
42).
Destarte, o golpe interrompeu um ciclo de crescimento das organizações sociais,
sindicais e populares, do campo e da cidade, e das grandes mobilizações em prol das
reformas de base, defendidas e anunciadas pelo governo João Goulart - o Jango. Nos
anos do governo Jango, a política brasileira não se limitava ao parlamento; de acordo
com Moraes (2011, p. 33), ―as propostas nacionalistas, desenvolvimentistas, anti-
36
Para um levantamento mais completo da ascensão dos camponeses e suas lutas neste lustro, confira
Stedile, 2006, p. 58.
73
imperialistas e pelas reformas de base encontravam, nos segmentos populares, uma
audiência crescente‖. Do mesmo modo, neste período, continua Moraes, ―a política
deixava de ser privilégio das elites para penetrar no universo do trabalhador (urbano e
rural), do estudante, do padre, do intelectual, do militar e do homem comum‖ (idem,
2011, p. 14).
Sob este diagnóstico, o período que antecede o golpe (1961-1964), embora não
fosse um período pré-revolucionário que colocasse em xeque a ordem capitalista –
como, por exemplo, o fim do capitalismo pela alternativa do socialismo, o fim da
propriedade privada dos meios de produção, o fim da exploração do trabalho assalariado
etc. -, como defendiam alguns setores da esquerda37
, era um período em que, com o
apoio do governo Jango, se colocava em xeque ―a modalidade específica que, em
termos econômico-sociais e políticos, o desenvolvimento que o capitalismo tomara no
Brasil‖ (NETTO, 2014, p. 77). Neste lustro histórico, de acordo com Fernandes,
nunca chegou a existir uma situação pré-revolucionária tipicamente fundada na
rebelião antiburguesa das classes assalariadas e destituídas. No entanto, a
situação existente era potencialmente pré-revolucionária, devido ao grau de
desagregação, de desarticulação e de desorientação da própria dominação
burguesa, exposta ininterruptamente, da segunda década do século à
―revolução institucional‖ de 1964... (FERNANDES, 2005, p. 375 - Itálicos
originais).
Frente aos processos de luta e de resistência possíveis à época, o regime
ditatorial civil-militar de 1964 a 1979 suprimiu progressivamente alguns direitos
políticos e outros civis; entretanto, ao mesmo tempo e paradoxalmente, fez concessões
de alguns direitos sociais, o que contribuiu, em parte, para a longevidade do regime.
Pertence ao campo dos direitos sociais, por exemplo, o direito à educação, à
saúde pública, à Reforma Agrária, à carteira de trabalho, à limitação da jornada de
trabalho, entre outros. Ao campo dos direitos políticos correspondem, por exemplo, o
direito a votar e ser votado, de liberdade de imprensa, de organização sindical e
partidária. Estes diretos remontam a décadas de lutas de classes e são conquistas dos
trabalhadores e trabalhadoras. No campo dos direitos civis, correspondem, por exemplo,
37
Para citar alguns, o PC do B fundado em fevereiro de 1962, por João Amazonas entre outros,
―defendiam a constituição de uma ampla frente democrática e anti-imperialista sob a direção do
proletariado‖ (MORAES, 2011, p.61) . A POLOP, fundada em fevereiro de 1961 como resultado da fusão
de pequenos grupos de intelectuais e estudantes que não concordavam com a tese da aliança com a
burguesia defendida pelo PCB, ―defendia uma frente de esquerda revolucionaria, integrada por
trabalhadores da cidade e do campo das classes exploradas. Seu objetivo final era eliminar a dominação
da burguesia e latifundiária no Brasil, e chegar ao socialismo‖. E, por fim a Ação Popular (AP), fundada
em junho de 1962 em BH, por militantes oriundos do meio católico, principalmente os jovens que
também não concordavam com a linha do PCB (MORAES, 2011, p. 72, 74 e 76).
74
o direito de ir e vir, de acumular, de ser julgado, de escolher parceiro/a. Estes direitos
interessavam a burguesia revolucionária do século XVIII, que na busca de sua
legitimação fez promessas maiores que aquelas que poderia universalizar ou cumprir.
Ademais, se por um lado os direitos civis são absolutamente necessários ao
desenvolvimento e a consolidação do capitalismo, por outro, expressam conquistas
universais da humanidade que não podem ser postos como dádiva daquela nascente
burguesia.
É importante destacarmos que estes direitos nunca em nossa história
caminharam a par e passo. Veja-se a lógica adotada pelos regimes burgueses ao longo
do século XX: guardadas as devidas proporções e as diferenças históricas, nos períodos
de ditadura em nosso país, por exemplo, na Era Vargas (1930-1945) e na ditadura civil-
militar (1964-1984) alguns direitos civis e políticos formam limitados, cerceados; no
entanto, frente à resistência e às lutas das classes trabalhadoras ampliaram-se os direitos
sociais para determinadas setores da sociedade, ou seja, os direitos conquistados
resultantes das lutas dos trabalhadores não se estenderam para os trabalhadores em sua
totalidade.
Desta maneira, se, durante o período da ditadura Vargas (1937-1945),
ampliaram-se alguns direitos sociais para os trabalhadores urbanos, como a carteira de
trabalho, a limitação de 44 horas da jornada de trabalho, o direito a férias remuneradas,
o salário mínimo etc. os camponeses ficaram de fora destas ―benesses‖. Estas
importantes conquistas não se propagaram aos camponeses devido ao pacto político
feito pelo governo Vargas com a oligarquia rural na iminência do golpe de estado do
Estado Novo (1937-1945). Já no período da ditadura civil-militar, como estratégia de
legitimação do regime, alguns direitos sociais foram estendidos ao campo. No Brasil,
paradoxalmente, nos períodos de maior liberdade política e civil (1946-1964) e (1989
aos dias atuais), ignoram-se ou reduzem-se os direitos sociais. Assim, constata-se que
há um paradoxo no Brasil no que tange aos direitos: quando se comprimem os direitos
políticos e civis, ampliam-se, parcialmente e seletivamente os direitos sociais.
Logo que decretou o Estado Novo, Vargas outorgou uma nova Constituição, que
ficou conhecida como ―Polaca‖ (isso para associar pejorativamente a Constituição de
1937 com a da Polônia fascista), que ampliava os poderes do presidente e punha na
ilegalidade todos os partidos que faziam oposição ao seu governo. Quanto aos
sindicatos, desde finais de 1930, com a criação do Ministério do Trabalho - MT e a
75
instituição da carteira de trabalho em 1932, já haviam sido atrelados ao aparelho oficial
do Estado.
No período de 1964 a 1979, o que se constatou foram o desenvolvimento e a
consolidação de um regime que impediu qualquer forma mais avançada de organização
e de luta, mesmo por pautas estritamente econômicas, se é que é possível desvinculá-la
da pauta política. Desta maneira, desdobraram-se 15 anos de brutal repressão aos
trabalhadores, do campo e da cidade, e aos estudantes.
Portanto, o significado mais profundo do golpe foi como apontado por
Fernandes (2005), a liquidação da possibilidade de reverter a dependência e a
vinculação da economia brasileira aos interesses imperialistas e de democratizar
substantivamente a sociedade brasileira. Portanto, neste sentido, o golpe foi,
inequivocamente, reacionário.
Esta repressão começou a reduzir-se a partir da mudança na correlação de forças
entre o regime ditatorial e a oposição democrática, que tem seu início a partir do
abandono do eufemismo da ―lenta, gradativa e segura distensão” e da incorporação da
abertura democrática incorporada pelo último general, o ditador João Batista de Oliveira
Figueiredo em 1979. Netto afirma que,
a mudança na correlação de forças entre o regime e a oposição democrática vai
ocorrer no primeiro terço da década de 1980 – em proveito da oposição
democrática [...] e foi justamente o protagonismo do movimento dos
trabalhadores que operou a alteração da correlação de forças políticas na
sociedade brasileira (NETTO, 2014, p. 212).
A ação repressiva do governo ditatorial, operante desde os dias iniciais de abril
de 1964, prosseguiu até o fim do governo do general Geisel. O Movimento Democrático
Brasileiro - MDB se opunha publicamente às brutalidades do regime, assim como a
Frente Ampla (1967/68) liderada por Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek, João
Goulart (Jango) com o apoio do Partido Comunista Brasileiro – PCB - que novamente
se encontrava na clandestinidade neste período. Nos bastidores da política, há relatos
que Brizola criticou Jango por apoiar a Frente Ampla; entretanto, o regime de exceção
cassou todos os integrantes que compunham a frente. O PCB, coerente com sua política
de alianças com todas as forças democráticas em combate contra o regime, apoiava os
dois espaços de resistência à ditadura e tinha como estratégia a luta de massas.
Igualmente, apresentavam-se como resistências ao regime, e como vanguardas,
tendo como estratégia a luta armada e os focos de guerrilha urbana: a Vanguarda
Popular Revolucionária – VPR (1966-1971) comandada por Carlos Lamarca e outros; a
76
Aliança Libertadora Nacional – ALN (1967-1971) dirigida por Carlos Marighela e o
Partido Comunista Brasileiro Revolucionário - PCBR (1968-1970) composto por
lideranças como Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho e Mário Alves. A União
Nacional dos Estudantes - UNE e os estudantes de maneira geral, protagonizaram
grandes mobilizações contra o regime e impulsionaram manifestações massivas de
operários e trabalhadores urbanos.
No espaço político formal, parte do Congresso - antes de 13 de dezembro de
1968, data da imposição do AI-5 - também demonstrara sua insatisfação para com o
regime antidemocrático, ditatorial e terrorista, derrotando o general Costa e Silva. O
caso mais emblemático, para citarmos apenas um exemplo, foi a recusa de cassação pela
Câmara, no dia 12 de dezembro de 1968, do então deputado do MDB Márcio Moreira
Alves. O deputado estava sendo perseguido pelo regime (sem provas) por ter proferido
no Congresso, no dia 2 de dezembro de 1968, um discurso denunciando, como tantos
outros, a censura e a repressão exercida pela ditadura civil-militar. O caso ganhou
importância para as lutas democráticas em nosso país.
Verificamos que este período é marcado por grande efervescência popular e de
oposição nas ruas, como os protestos estudantis de 1967-68, a organização das
oposições sindicais que imediatamente se seguiram e a forte organização dos nascentes
trabalhadores do ABCD38
paulista - Santo André, São Bernardo, São Caetano e
Diadema - onde se localizavam as maiores montadoras da indústria automobilista
brasileira. Somavam-se a estas lutas e resistências contra o regime ditatorial parte da
Igreja católica que optara pelos pobres através da Teologia da Libertação.
Todas estas mobilizações e lutas sintetizavam nas cidades a oposição ao regime,
à resistência ao arbítrio e a violência da ditadura civil militar. Como reação, o general
Costa e Silva, decreta o AI-5 e, a partir daí, desencadeia-se plenamente o regime
militarista com seu terrorismo de Estado no Brasil.
Seguindo a mesma trilha deixada por Fernandes (2005), Netto (2014) afirma que
a autocracia burguesa não foi um processo homogêneo e que o pacto que promoveu o
golpe não era unívoco. A ditadura se modificou ao longo de vinte anos, ―e a sua
dinâmica não obedeceu apenas à vontade das forças sociais que a instauraram e
38
O ABC paulista é também conhecido como ABCD; é parte da região metropolitana de São Paulo,
conhecida tradicionalmente como grande região industrial. Essa região foi o primeiro centro da indústria
automobilística brasileira, portanto, onde se concentrou a maior parte dos operários fabris dos anos 1960 e
1970. A sigla é uma referencia as quatro cidades, Santo André (A) São Bernardo (B) São Caetano (C) e
Diadema (D).
77
mantiveram – a resistência democrática influiu nos processos que se seguiram ao
primeiro de abril‖ (NETTO, 2014, p. 84). Para captar o movimento e as nuances da
ditadura, o autor citado propõe uma interpretação do regime a partir de três momentos
distintos (1964-1968; 1969-1974 e 1975-1979) que se relacionam e não são estanques
entre si.
Desse modo, vejamos: o primeiro momento, 1964-1968, é quando a ditadura
civil-militar se instala em efetivo através do pacto das elites que tomou o Estado. No
segundo momento, 1969-1974, a estratégia foi modelar o Estado ao seu favor, ancorado
no AI-5 decretado no final de 1968 e dando início ao novo período, o mais violento e
sanguinário da ditadura, onde a resistência foi jogada para defensiva e isso possibilitou
a modelação do Estado e o ―milagre econômico‖. E o terceiro momento, 1975-1979,
caracterizou-se pela crise e esgotamento do modelo econômico - denominado ―milagre
econômico‖- ou crise da autocracia burguesa.
Portanto, podemos assinalar que a crise da ditadura civil-militar teve seu inicio
durante o governo do ditador general Ernesto Geisel de 1974-1979, porém não há
unidade entre todos os estudiosos deste lustro histórico sob o ano e o momento de
inflexão do regime. Entretanto, há consenso que até 1977 o regime manteve-se, embora
com resistência, sem maiores problemas.
Os anos de 1979 a 1984 expressaram um sentimento de recusa ao regime a
ponto de a repressão revelar-se inócua. O AI-5, que durou por longos 10 anos, de
dezembro de 1968 a dezembro de 1978, agora estava extinto, expressando que a partir
daí ―o sistema repressivo perdeu seu poder de fogo, mas, continuou atuando até a
entrada dos anos 80, inclusive com o objetivo de travar e reverter o processo de crise da
ditadura‖ (NETTO, 2014, p. 137).
Na América Latina, após o fim da ditadura Argentina (1983), que talvez fora, ao
lado da chilena (1973-1990), a mais sanguinária da região, e do fim da ditadura
uruguaia em 1985, a onda conservadora dos anos 1970 estava posta em franco refluxo.
A insatisfação a esta forma de governo generalizou-se por todo o nosso continente.
Assim, todas as ditaduras foram combatidas, contestadas e abolidas ao longo dos anos
1980.
Em 1978 os trabalhadores rurais conquistaram o controle de sua confederação, a
CONTAG39
e elegeram como presidente José Francisco da Silva. A CONTAG,
39
Fundada em 1963, desde o golpe até 1978, os presidentes eram indicados ou aprovados pelo regime.
78
(...) estimulou a organização de federações e sindicatos, mas, deu ênfase
particular a todas as formas de organização coletiva do campo [e] essa nova
tendência refletia a intensificação dos conflitos de terras, envolvendo
camponeses que lutavam pelo direito a terra, posseiros empenhados em
preservá-la e trabalhadores agrícolas das correntes migratórias -, os chamados
boias-frias (ALVES, 1984, p. 245).
Do ponto de vista do Estado de Segurança Nacional40
, o ano de 1979 definiu os
limites da política de abertura, quando ao mesmo tempo em que se negociava a questão
da anistia política ―com os partidos e instituições civis dos setores de elite ficava claro
que a liberalização não se aplicava à classe trabalhadora - a repressão sofisticava-se,
selecionando as classes a atingir” (ALVES, 1984, p. 256).
O regime não poderia tolerar qualquer questionamento ao modelo de
desenvolvimento e a ideia de inversão de prioridades; assim, o ditador Geisel, seguindo
os princípios do Estado de Segurança Nacional, reprimiu as greves e paralisações no
interior das fábricas; deste modo, greves ―foram empurradas para as ruas em 1979, e, os
trabalhadores tiveram de organizar piquetes e enfrentar a polícia nas ruas das grandes
cidades‖ (ALVES, 1984, p. 253).
Neste ano (1979), a greve dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo
desencadeou uma das maiores ondas de greves da história do país, chegando a mais de
três milhões de trabalhadores envolvidos espalhados por 15 estados e com praticamente
todas as categorias. Reivindicavam melhores salários e melhores condições de trabalho,
a que se somava a pressão política sobre o governo e o congresso para aprovarem novas
leis mais favoráveis ao conjunto dos trabalhadores.
Em 1977, com o despertar do ―novo movimento sindical‖, mas principalmente a
partir da greve dos metalúrgicos da região do ABCD em 1978, o movimento sindical já
vinha acumulando força suficiente e consciência política para exercer efetivo impacto
sobre o Estado começando a pressionar por transformações estruturais. De acordo com
Alves (1984) há dois acontecimentos de importância simbólica para o ressurgimento do
movimento sindical em 1977: o primeiro foi a admissão do governo que as estatísticas
oficiais sobre inflação relativas ao período de 1973-1974 foram manipuladas, isso
confirmava a perda de 34,1% do salário real dos trabalhadores; o segundo
acontecimento foi a ―campanha dos 34,1%‖ desencadeada pelo sindicato dos
40
A ideologia de segurança nacional foi um instrumento utilizado pelas classes dominantes, para
justificar e legitimar a perpetuação por meios não democráticos de um modelo altamente explorador de
desenvolvimento dependente. A tese de Alves consiste na afirmação de que ―a natureza do Estado de
Segurança Nacional só pode ser avaliada em relação ao processo dinâmico de sua interação com as
formas e estruturas dos movimentos de oposição gerados na sociedade civil‖ (ALVES, 1984, p. 27).
79
metalúrgicos dos São Bernardo do Campo visando forçar o governo a recompensar a
perda. Isso mobilizou a opinião publica e favoreceu a aliança entre diferentes grupos de
trabalhadores (ALVES, 1984, p. 246).
Isso expressava que o movimento se levantava com força, neste novo cenário
político, oxigenando a sociedade brasileira. Na assertiva da Alves, este sindicalismo
deve ser considerado como parte da oposição democrática como um todo e,
fundamentalmente, do processo de fortalecimento da sociedade civil e da
redemocratização do país.
As lutas protagonizadas pelos operários a partir de 1978, em especial o
proletariado do conjunto ABCD paulista, segundo Netto,
reinseriram de fato a massa trabalhadora na cena política brasileira. Em 13 de
março de 1979, a greve dos metalúrgicos de São Bernardo, estendeu-se a todo
o ABCD envolvendo mais de 240 mil trabalhadores. Em 1° de maio do mesmo
ano, na comemoração do dia do trabalhador mais de 150 mil trabalhadores se
mobilizaram no estádio de Vila Euclides [...] Durante todo o ano de 1979,
foram registradas 429 greves com mais de dois milhões de trabalhadores e
trabalhadoras cruzando os braços (NETTO, 2014, p. 225/6).
Assim, ―o período que se seguiu às grandes greves (1978, 1979 e 1980),
caracterizar-se-ia basicamente pela participação na criação de partidos políticos e na
busca de formas alternativas (Comissão de Fábrica) de organização dentro da fábrica‖
(ALVES, 1984, p. 265).
No âmbito da chamada ―abertura política‖, em finais de 1979, duas leis
importantes foram introduzidas com o intuito de aliviar a pressão social exercida pela
sociedade em efervescência. A primeira foi a Lei da Anistia (lei n° 6.683, de 28 de
agosto de 1979), embora contraditória e com muitas limitações, pois a lei foi fruto de
intensas negociações entre o Estado e a oposição, além de diversos debates, passeatas e
comícios. Entretanto, em que pese a absolvição sem julgamento de todos os
torturadores, a lei mencionada representou uma conquista significativa para as forças da
oposição democráticas ―na medida em que permitiu o retorno ao país de todos os
exilados e a recuperação dos direitos políticos de todos os líderes deles privados [...] as
lideranças que estavam afastadas do processo político puderam, assim, retomar sua
participação‖ (ALVES, 1984, p. 269).
Permanecendo no campo político, a segunda lei importante foi a lei da Reforma
Partidária (lei n. 6.767, de 20 de dezembro de 1979) que possibilitou a criação de novos
partidos políticos. Para Netto, com a lei n. 6.767, de 20 de dezembro de 1979,
―suprimia-se efetivamente o bipartidarismo imposto desde o final de 1965 [a lei
80
extinguiu o MDB e a ARENA] e se instaurava efetivamente a possibilidade de construir
um sistema multipartidário‖ (2014, p. 221).
O General Golbery do Couto e Silva admitiu, segundo Alves (1984, p. 269),
―que para o Estado ditatorial era necessário tentar dividir e fragmentar a oposição e
controlar mais cuidadosamente a organização dos partidos políticos‖. Assim, nos anos
de 1980-81, já nos rumos da chamada ―abertura‖, se abriu o leque partidário que
possibilitou o surgimento e a organização de vários partidos políticos. Obtiveram
registros o Partido Democrático Social - PDS, o Partido do Movimento Democrático
Brasileiro - PMDB, o Partido Progressista- PP, o Partido Democrático Trabalhista -
PDT, o Partido Trabalhista Brasileiro - PTB e o Partido dos Trabalhadores - PT. Da
antiga Aliança Renovadora Nacional - ARENA surgiu o PDS; todos os demais partidos,
exceto o PT, grosso modo, tiveram suas origens no Movimento Democrático Brasileiro
- MDB.
Pelo que foi exposto até o momento, podemos afirmar que o ano de 1979 foi um
ano decisivo para a oposição como um todo no Brasil. Isso porque,
primeiro, a classe trabalhadora descobriu o seu poder no processo de apoio aos
grevistas. Segundo, porque estabeleceu uma rede funcional de alianças entre
organizações de base, os movimentos sociais ligados à igreja [incluído as
CEBs] e os sindicatos. Terceiro, a acrescentar, foi o papel da oposição de elite,
defendendo os grevistas e pressionando o governo a devolver os sindicatos aos
dirigentes eleitos. Por fim, a guinada da igreja católica, que deu apoio decisivo
aos metalúrgicos do ABCD em greve, chegando a permitir que a sede da
catedral servisse como sede sindical temporária [...] a convergência dessas
organizações significava a descoberta de uma nova força [...] Fora eficaz a
aliança de organizações de base seculares com as vinculadas à igreja, sobre
tudo a católica (ALVES, 1984, p. 258).
Seguindo esta linha argumentativa, acrescenta Netto (2014, p. 212) ser
―indiscutível que a conjuntura mundial, política e econômica da transição dos anos
1970-1980 contribuíram de fato, e com vigor, para os desaires econômicos do governo
do general Figueiredo‖.
Para ilustrar o que foi a crise política do sistema capitalista mundial41
, e que
repercutiu fortemente em nosso país, destacamos as mudanças estruturais que
floresciam no Chile de 1970-1973, através da Unidade Popular representada por
Salvador Allende; a grande derrota imposta aos EUA pelo povo do Vietnã em 1975; o
fim da ditadura de direita na Grécia com aprovação de uma Constituição parlamentarista
41
Em 1949 a revolução Chinesa impressionou o mundo pela extraordinária mobilização dos camponeses.
Em 1952 foi à vez de a Bolívia fazer a sua revolução. Cuba em 1959 desafia seu vizinho, o gigante e todo
poderoso EUA com sua revolução liderada por Fidel e Che Guevara. Nos anos 1960, o maio Francês de
1968 marca uma grande crise política do capitalismo.
81
afirmando que os poderes emanam do povo; o fim do franquismo na Espanha que
perdurou por longos 39 anos (1936- 1975) pondo fim a uma das mais longas ditaduras e
abrindo espaço para dois anos depois a ampliação dos direitos civis e, por fim, a
revolução dos Cravos em Portugal em 1974, e a sequência da descolonização em vários
países africanos como Angola e Moçambique. Todas estas conquistas populares
despertavam esperanças na esquerda europeia que manifestava enfraquecimento desde a
passagem dos anos 1970 aos 1980 diante ofensiva do capital.
Na America Central, a Nicarágua, com sua Revolução Sandinista impulsionada
pelos estudantes, operários e camponeses em 1979, transformara-se numa referência
mundial pelo próprio modelo de socialismo que defendia - democrático e popular.
No Oriente, a revolução iraniana de 1979, fruto de uma aliança entre grupos liberais,
grupos de esquerda e religiosos com o objetivo de depor o xá e seu regime ditatorial
tranformou o país de uma monarquia autocrática pró-Ocidente para uma república
islâmica teocrática. Num segundo momento, após a revolução islâmica, ou seja, após da
dramática desintegração do regime do xá e com isso a falência da estratégia norte
americana na região, deu-se a chegada dos iatolás ao poder.
Portanto, neste período, a luta de classes estava aberta no plano internacional, e
o triunfo de alguns povos colocava a possibilidade de mudanças concretas no interior,
ou, como aprouver, na periferia do sistema hegemônico.
No Brasil, no que diz respeito aos aspectos da economia, base estrutural em
qualquer sociedade - não único, mas fator determinante - o cenário não era nenhum
pouco confortável ao regime, e muito menos para a classe trabalhadora em geral. O
―bolo havia crescido‖ na primeira metade dos anos 1970, como almejava o ministro da
ditadura Delfin Neto; no entanto, não foi dividido com a massa dos trabalhadores.
Como observa Netto (2014), a dívida externa brasileira saltava de US$49,9
bilhões de dólares em 1979 para US$91 bilhões em 1984; a inflação iniciou uma corrida
olímpica, passando de 91,2% em 1981 para 217,9% em 1985 e o PIB, que crescera
6,76% em 1979, caiu para 4,31% em 1984. Assim, entre 1979-1985, a concentração de
renda cresceu assustadoramente de 0,592 em 1980, para 0,660 em 1985 como
demonstra o índice de Gini. A concentração de terras no mesmo ano, em decorrência do
projeto da ditadura para o campo, que tinha como meta ―modernizar e\ou industrializar‖
o campo, chegou a 0,875, colocando o Brasil em segundo lugar do mundo em
concentração da propriedade da terra. Os efeitos para classe trabalhadora além da queda
da renda per capita em 25% dos salários reais, 54 milhões de brasileiros foram jogados
82
em condições de pobreza estrema e 23 milhões colocados abaixo da linha de pobreza
impedidos de fazer três refeições por dia, ou seja, essa massa populacional se
alimentava aquém de suas necessidades básicas. Em uma população de
aproximadamente 130 milhões de brasileiros, este fato nos demonstra o óbvio, o
desastre do modelo econômico e social da ditadura, que já era sentido pela classe
trabalhadora em geral.
Os movimentos de base42
(associações de moradores de bairro, associação de
moradores de favela, associação de amigos do bairro etc.) desempenharam papel
decisivo na organização dos pobres e multiplicaram-se rapidamente neste contexto de
crise do regime. Esta oposição à ditadura civil-militar e a seus governos era, em geral,
como aponta Alves (1984, p. 228), ―altamente democrática, tendo como principais
reivindicações aos governantes o congelamento de preços dos alimentos ou contra a
carestia dos alimentos, acesso legal a terras urbanas, melhorias de instalação sanitária e
de esgoto, coleta de lixo, pavimentação, creches, educação, habitação‖. Embora seja
pertinente o destaque e a importância dada pela a autora a essas embrionárias
organizações, certamente há exageros. Pois, muitas dessas associações eram biônicas e
serviam basicamente para distribuir os tickets de leite do Governo Sarney.
As Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, organizações de base ligadas à
Igreja Católica, segundo Alves (1984, p. 231) ―tinham uma dupla função, por um lado,
oferecer serviços religiosos e o estudo do evangelho, por outro, organizar o trabalho de
liberação e ações comunitárias‖; e conclui nossa autora afirmando que as atividades de
base, seculares ou ligadas à igreja, ―foram fundamentais na recusa de legitimação do
Estado de Segurança Nacional na estruturação da resistência às políticas sociais
injustas‖ (1984, p. 236.).
As fissuras no bloco hegemônico que correspondia às Forças Armadas, ao
grande capital nacional e estrangeiro e ao latifúndio possibilitaram o enfraquecimento
do regime. Somado a isto, o amplo leque de organizações e mobilizações espalhadas
pelo país levaram em conjunto ao fim da ditadura civil-militar e ao seu projeto de
manutenção do poder. Desta maneira, no período de 1979 a 1985, considerando ―a
emersão das principais contradições econômico-sociais que corroíam as bases do regime
42
De acordo com Alves, a base em ―termos socioeconômicos, são os que se situam na base e produzem
as riquezas da sociedade, mas não participam da organização do seu próprio trabalho nem da distribuição
de seus frutos. Em termos políticos, não tem voz nas decisões do Estado que diretamente afetam suas
vidas. A cultura em que vivem destina-se a defender os privilégios daqueles que os privam de seus
direitos‖ (Alves, 1984, p. 230).
83
ditatorial – estavam dadas as condições para rupturas e dilaceramentos nos suportes
sociais e políticos da ditadura e para as lutas de classes ganharem uma nova dinâmica‖
(NETTO, 2014, p. 216).
Nestes tempos de crise e de caminhada a passos largos rumo ao ocaso da
ditadura civil-militar, a burguesia percebeu que não era possível manter seu domínio
somente por meio da repressão aberta; sua nova representação de classe deu-se a partir
de um leque político amplo que ficou conhecido como ‗Centrão‘43
. Sabe-se que o
famoso ‗Centrão‘, passados estes trinta anos, continua operando atualmente, embora,
como não poderia deixar de ser, com outros representantes no congresso.
Não obstante a forte repressão, como já observamos, abateu-se sobre a economia
brasileira uma profunda recessão, que afetou a capacidade organizativa do movimento
sindical; entretanto, de acordo com Alves (1984, p. 266), ―este foi o período que os
sindicatos mais avançaram em direção as suas metas e nas principais questões
organizacionais‖. Diríamos também que foi o momento da constituição da ―nova‖ classe
trabalhadora.
2.2 Os férteis anos 1980 e a conformação do bloco político-social
No Brasil, a década de 1980 começou próspera do ponto de vista político e
organizativo para o conjunto da classe trabalhadora, em sentido inverso da realidade
vivida pelos socialistas e comunistas do velho continente, e foi longa. Pode-se dizer que
essa década começou dois anos antes, em maio de 1978, quando uma onda de greves
nacionais e massivas inaugura uma nova era em nosso país. Esta onda de greves44
43
O ―Centrão‖ foi um bloco parlamentar suprapartidário, formalizado em outubro de 1987, com o
objetivo de apoiar as teses mais conservadoras e defender o mandato de 05 anos para o então presidente
José Sarney. O Centrão contou com 152 parlamentares, sendo 80 do PFL, 43 do PMDB, 19 do PDS, 06
do PTB, 03 do PDC e 01 do PL.
44
Rosa Luxemburgo, em 1905 na Rússia, redige um texto intitulado ―Greve de massas, partido e
sindicatos”. Nesse texto, ela mostra que na greve de massas o momento subjetivo, a consciência de
classe, se articula com o momento objetivo da história; portanto, com as tendências do desenvolvimento
capitalista. A greve de massas seria a perfeita tradução da dialética entre organização e espontaneidade,
entre política e economia, ficando o elemento criativo do lado da espontaneidade das massas. A greve de
massas, tal como era apresentada pela revolução russa de 1905, é um fenômeno tão móvel que reflete em
si todas as fases da luta política e econômica, todos os estágios e todos os momentos da revolução. Em
resumo: a greve de massas não é um meio engenhoso inventado para reforçar o efeito da luta proletária,
mas é o próprio movimento da massa proletária, a forma de manifestação da luta proletária na
revolução. Para Rosa, a greve de massas é antes um termo que designa globalmente todo um período da
luta de classes que se estende por vários anos, às vezes por décadas. Partindo daí, podemos deduzir que
dois dias de greve, embora nacional e massivo como destacamos, porém, fora de um contexto pré-
revolucionário não se pode chamar de greve geral ou greve de massas. Desse modo, as greves de 1978\79
e as que ocorreram ao longo dos anos 1980 tratavam-se, desta perspectiva, para usar uma expressão da
84
começou no ABC paulista, quando os trabalhadores da Scania insatisfeitos com os
salários recebidos entraram na fábrica e cruzaram os braços diante das máquinas. De
fato, como observa Iasi,
o que se viveu no final da década de 1970 e início dos anos 1980 foi uma
incrível confluência das lutas sociais das mais diversas que encontraram na
emergência de uma luta sindical, no coração mesmo da produção do valor, sua
expressão de unificação e de fusão de classe, primeiro contra as condições de
vida e trabalho, depois contra a ditadura que ruía (IASI, 2006, p. 374).
Como se observa, em decorrência da crise do regime, mesmo em caráter
molecular e relativamente espontâneo, as classes trabalhadoras principiavam sua
reorganização e diversas formas de lutas, algumas inclusive de caráter nacional.
Retomavam-se as lutas no campo, no setor público, no setor industrial, no meio
estudantil, entre os professores, enfim, na massa de trabalhadores descontentes com o
estado de coisas em que viviam.
No entanto, de acordo com Secco (2015, p. 38), ―em 1978, do total das greves,
75,9% ocorreram no setor industrial‖. Este fato demonstra que do total de trabalhadores
e trabalhadoras mobilizados/as e em luta, uma pequena parte representava a ampla
diversidade dos diferentes setores da sociedade. Portanto, embora reconheçamos e
concordemos com a importância das greves nacionais, os dados evidenciam que não
vivíamos em fins dos anos 1970, assim como não vivemos ao longo dos anos 1980,
como apontavam alguns dos mais otimistas com as lutas sindicais, uma greve geral ou
de massas em nosso país. Todavia, como assinalamos, as maiores greves ocorreram ao
longo no ano de 1980. O acúmulo das lutas sociais neste período permitiria, inclusive,
que a disputa eleitoral de 1989 se desse entre um filho da oligarquia tradicional (Collor)
e um operário (Lula) ligado às lutas sindicais e populares.
Todas as condicionantes apresentadas até aqui, sejam elas econômicas, políticas,
culturais e sociais, contribuíram, definitivamente, para o surgimento de ―novos‖ atores
político-sociais e, com estes ―novos sujeitos‖, deu-se o salto de qualidade nas lutas de
classes da sociedade brasileira. O que se viu e viveu no final da década de 1970 e
primeira metade dos anos 1980, foi uma incrível confluência das lutas, políticas, sociais
e populares com as lutas sindicais. Portanto, foi um período de lutas acirradas no
próprio espaço da sociedade civil e de constituição de variadas organizações (partidos
políticos, sindicatos, movimentos populares e organizações sociais) que cresceram
própria Rosa, da “simples” greve de protesto. LUXEMBURGO, Rosa. Greve de massas, partido e
sindicatos. São Paulo: Kaiós livraria e editora, 1979. p 44-50.
85
muito nesta década, ao ponto de, se não ameaçar, incomodar os postos avançados
ocupados pelas classes dominantes.
Concomitantemente a essas mudanças socioeconômicas, a partir de 1980,
instala-se a crise e o ocaso da ditadura civil-militar e ulteriormente abre-se espaço na
sociedade brasileira para o debate de ideias e de projeto para a nação. Desta maneira, a
retomada das lutas, fruto da resistência à ditadura civil-militar, permitiu surgir diversas
organizações sindicais e partidárias e os camponeses se somaram organizadamente
nesse processo, que caracterizou a retomada da esquerda brasileira, buscando consolidar
um projeto político e desenvolvendo lutas conjuntas com o objetivo de superar o projeto
da classe dominante brasileira.
Contudo, conhecida como a ―década perdida‖ sob o ponto de vista do
crescimento econômico capitalista, os anos 1980 foram riquíssimos para o conjunto dos
trabalhadores no Brasil do ponto de vista das lutas sociais e da autorrepresentação da
classe. Assim, no ano de 1980, é criado o Partido dos Trabalhadores - PT. Militantes e
dirigentes do ―novo sindicalismo‖, dos diferentes movimentos de bairros e rurais,
organizados principalmente a partir das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja
Católica – CEBs, intelectuais e ex-dirigentes de organizações clandestinas que resistiam
à ditadura, constituíram a base para a formação do PT e outras organizações deste
período. Os primeiros estudos e memórias sobre o PT sacramentaram a visão, de acordo
com Secco (2015, p. 26), ―de um partido constituído por três fontes: a igreja
progressista, os remanescentes dos grupos da luta armada e o novo sindicalismo‖.
Após três anos da fundação do PT, em 1983 nasce a Central Única dos
Trabalhadores – CUT, inspirada num ―novo sindicalismo‖ classista, autônomo e
independente do Estado. Podemos dizer também que algumas das parcelas mais
avançadas do movimento sindical rural contribuíram para a construção da CUT; no
entanto, o que marcou a história sindical do país e que por isso simboliza a ideia de um
―novo sindicalismo‖, foram as lutas realizadas pelos sindicatos dos metalúrgicos de São
Bernardo (com Lula à frente) além de petroleiros, bancários, professores etc. - decerto,
de acordo com Tumolo (2002, p. 113), ―pode-se concluir que o ―novo sindicalismo‖, as
oposições sindicais e o sindicalismo rural foram às três principais organizações sindicais
que formaram a CUT‖.
E, em 1984, com apoio fundamental da Comissão Pastoral da Terra - CPT é
fundado o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, motivados pelas
experiências e acúmulos de lutas deixados pelas organizações do campo anteriores.
86
Deste modo, na primeira metade dos anos 1980, já estavam fundadas as três
grandes organizações que comporiam o que denominamos ancorado em Gramsci, de
novo bloco político-social das próximas três décadas (1980-2000). Voltaremos a esta
reflexão posteriormente. Vejamos agora mais de perto as condições objetivas que
possibilitaram a formação destas organizações.
2.2.1 A gênese e a constituição do PT
Recorrendo à história, recordaremos que, em finais de 1979, a nova Lei
Orgânica dos Partidos extinguiu o bipartidarismo, que ficou conhecido no campo
popular como o partido do “sim” (MDB) e o do “sim, senhor” (ARENA). A lei
aprovada,
ao mesmo tempo em que procurava fragmentar e dividir a expressão política
dos setores mais conservadores da ampla aliança oposicionista [...] esforçava-
se por excluir totalmente45
as vozes mais radicais do novo movimento popular.
[Por isso] líderes sindicais e membros das organizações e comunidades de base
já se empenhavam na criação de um partido dos trabalhadores (ALVES, 1984,
p. 270).
A gênese do Partido dos Trabalhadores - PT se insere no contexto de crise
política e econômica da ditadura civil-militar, na tentativa dos patrões e da elite
dominante de manter o regime por meio de sua unificação e repressão policial e na
reação popular representada por um amplo processo de manifestações da sociedade
brasileira e de mobilizações massivas dos movimentos sociais e sindicais. Neste sentido,
observa acertadamente Alves (1980, p. 276) ―que o PT nasceu das greves de 1978, 1979
e 1980, em estreita aliança com os movimentos de base rurais e urbanos e com a ação
social dos católicos progressistas‖. Na mesma linha, acrescenta Iasi,
a criação do PT em 1980 só pode ser explicada como um momento de
emergência das lutas sociais que encontrou na retomada da luta sindical e
operária um ponto de fusão de classe cuja expressão política foi à formação de
um partido que buscava representar estes setores que naquele momento se
levantavam em lutas que eram ao mesmo tempo específicas e que confluíam
para uma questão maior na medida em que se contrapunham à ditadura,
mudando, assim, o caráter da abertura restrita (IASI, 2006, p. 375).
Estas condições objetivas criaram a necessidade prática de se construir um
partido político alternativo. Por isso, em sua gênese, o PT tem um caráter anticapitalista,
classista e de massas. Sua referência era a classe trabalhadora como centro de um
45
No artigo 5° da Lei Orgânica dos Partidos, lia-se que: ―não se poderá utilizar designação ou
denominação partidária, nem se fará arregimentação de filiados ou adeptos, com base em credos
religiosos ou sentimentos de raça ou classe‖ (ALVES, 1984, p. 270).
87
projeto de transformação da sociedade. Todavia, observa acertadamente o historiador
Lincoln Secco, ―o principal elemento da formação do PT (o novo sindicalismo) nem
sempre existiu dependendo da cidade onde o PT surgiu‖ (2015, p. 50).
Assim, o PT surge no início dos anos 1980 como um partido diferente dos
demais e nitidamente de classe, pois em sua base incorporava uma série de movimentos
―sociais, membros de associações de moradores, comunidades de base, ativistas
camponeses e sindicais, além do apoio de intelectuais e de parte do movimento
estudantil‖ (ALVES, 1984, p. 276).
Apesar dos mais otimistas com o partido em sua fase inicial proferirem algumas
afirmações ufanistas, Secco (2015) adverte que o aspecto do pioneirismo do PT, como
afirmam seus primeiros documentos, no que diz respeito à sua formação como primeiro
partido de massas organizado de baixo para cima e diferente de toda a esquerda anterior,
é preciso ser relativizado. Afinal de contas, ha muitas ―continuidades numa história de
rupturas‖ (SECCO, 2015, p. 31). E mais, há que se reconhecer ―que o PCB cumpriu os
requisitos que o sociólogo francês Maurice Duverger atribuiu ao partido de massa [...] o
PCB se não foi, esteve muito perto de ser um verdadeiro partido de massas num de seus
curtos períodos de legalidade (1945-1947), tendo mais de 50 mil militantes‖... (SECCO,
2015, p. 32).
Mas, voltando ao PT, de acordo com as evidências em tela, este não obteve o
amparo financeiro legal como o herdado pelo PMDB, ou o respaldo de grupos sociais
economicamente poderosos de que gozavam o PP (de Paulo Maluf) e o PTB (de Ivete
Vargas e Nelson Marchezan) da época, por exemplo, por isso, representava a
possibilidade de uma manifestação autêntica dos trabalhadores, ou seja, negava o
―populismo‖ de até então, assim como, a ordem social burguesa existente.
O PT criticava duramente a ditadura militar e as relações sociais de produção
estabelecidas, portanto, almejava melhorias sociais, se quisermos transformações
sociais. Falava de socialismo, mas mantinha distância da socialdemocracia Europeia e
dos partidos comunistas já em crise no inicio dos anos 80. De acordo com Iasi (2006, p.
360), ―o PT representava a possibilidade de uma manifestação autêntica das classes
trabalhadoras, isto é, uma organização [partidária] levada à frente pelos próprios
trabalhadores, sem a tutela das elites‖.
Com estas características principais, o PT participa de sua primeira eleição em
1982. Considerando o caráter plebiscitário destas eleições, e observando a sua
resultante, se beneficiaram do processo os dois maiores partidos da época, o PMDB e o
88
PDS. De fato, para os partidos menores como o PT e o PDT, por exemplo, não restaram
alternativas que não fossem a de lutar com as próprias forças que dispunham. Assim,
lançaram candidatos em todos os níveis de disputa. A marca do PT nas eleições era ―um
partido sem patrões‖ e seu lema, ―trabalhador vota em trabalhador‖. Ora, bem
analisadas as coisas, há que se relativizar a pretensa assertiva do partido com o lema.
Pois trabalhador deve votar em quem defende seus interesses, ou seja, os interesses dos
trabalhadores. Há muitos trabalhadores que defendem, embora muitas vezes não o
saibam, os interesses de seus inimigos de classe. E mais, apesar do slogan, ―o PT foi
desde o início um partido multiclassista e estava além de uma base de apenas
trabalhadores manuais‖ (SECCO, 2015, p. 61).
Contudo, como reitera Alves,
o PT fez campanha de caráter nacional, concentrando-se em questões como
salário, saúde, educação, habitação e direitos de organização para a população
trabalhadora. O aspecto mais significativo da campanha do PT terá sido talvez
a capacidade de abrir o processo político à participação de setores
marginalizados da população que nunca antes haviam atuado em partidos e
organizações políticas (ALVES, 1984, p. 283).
Ninguém menos que Tancredo Neves reconheceu na época e fez um comentário
que classificava as eleições de novembro de 1982 como um grande avanço para os
partidos de oposição, pois ―juntos eles controlariam cerca de 80% do PIB, distribuído
por 60% do território, ocupados por 58% da população‖ (ALVES, 1984, p. 287).
2.2.2 A Central Única dos Trabalhadores – CUT
No início dos anos 1980, solidifica-se no meio sindical brasileiro, com políticas
diferentes, duas tendências principais: os sindicalistas autênticos e os da unidade
sindical - ou reformistas46
. Para os autênticos, o ―novo sindicalismo‖ deveria ter a
perspectiva classista, ou seja, deveria afirmar a existência do antagonismo de classe
entre patrões e empregados e ser autônomo em relação ao Estado e seu sindicalismo
oficial que vigorava até então.
Para os sindicalistas da unidade sindical – ou reformistas, bastavam pequenas
modificações na estrutura sindical e o encaminhamento das reivindicações dos
trabalhadores nos marcos da legislação e da política vigente da época. Desta maneira,
buscavam todos os meios de evitar as greves, o enfrentamento com os patrões e o
46
Para uma abordagem mais detalhada sobre o tema sugerimos os textos de Ricardo Antunes; O que é
sindicalismo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985, e também o texto: O novo sindicalismo. São Paulo:
Scrita editorial, 1991.
89
governo. Propunham uma aliança da classe operária com a classe patronal, para se
chegar a um pacto social. Na visão desse bloco reformista, greves prolongadas
―poderiam prejudicar a ‗abertura‘ que os militares estavam dando. ―Nada de aventuras‖
era sua palavra de ordem. Este bloco era composto pelo PCB, MR-8 e PC do B‖
(GIANNOTTI, 2007, p. 237 - grifos no original).
Embora existissem diferentes visões entre os autênticos sobre o papel do ―novo
sindicalismo‖ - principalmente entre os metalúrgicos de São Bernardo e os da Oposição
Sindical Metalúrgica de São Paulo - estas duas tendências, juntamente com o
sindicalismo rural, seriam a base para a fundação da CUT.
Assim, entre os dias 21 e 23 de agosto de 1981, acontecia a primeira
Conferência da Classe Trabalhadora - CONCLAT no Brasil, que se reunia para debater
e elaborar um programa de ação comum do ―novo movimento sindical‖ e, sobretudo,
eleger uma comissão executiva para a organização de uma segunda conferência
nacional, como preâmbulo à criação de uma organização sindical central - a ideia era a
formação de uma Central Única dos Trabalhadores, pois o país estava maduro, enfim,
para ter uma central sindical.
Esta central deveria ser independente do Estado - em especial Ministério do
Trabalho - e dos governos. Na preparação deste congresso, ocorreu uma série de
encontros preparatórios em nível local e regional. No fundo, o CONCLAT expressou o
resultado do forte trabalho de base que havia naquele período, bem como a franca
oposição ao Estado e ao governo repressor. Podemos concluir que neste período foram
lançados os primeiros embriões de constituição da CUT que oficialmente será fundada
em 28 de agosto de 1983, ao final de uma conferência da qual estavam presentes - sem a
participação e o respaldo da unidade sindical - mais de cinco mil trabalhadores.
O presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo, Jair Meneghelli,
foi eleito o primeiro presidente da nova central (1893-1894), ―que nascia sob a forte
influência do PT. No entanto, a CUT também abrigava filiados do PDT, PSB, PMDB e
membros de setores dissidentes do PCB, além de muitos outros militantes sem filiação
partidária‖ (GIANNOTTI, 2007, p. 245).
Se as greves de 1978 e 1979 representaram um momento decisivo para o
sindicalismo brasileiro, fazendo com que o mundo nos visse através das centenas de
milhares de mãos levantadas, em assembleias, votando pela continuidade das greves, as
greves dos anos 1980 representaram um avanço extraordinário para as classes
trabalhadoras em relação ao decênio anterior - isso porque foram menos espontâneas e
90
preparadas cuidadosamente, tiveram ―maior participação dos sindicalizados nas
decisões sobre o movimento. Além disso, visavam menos estritamente, de modo geral,
as questões meramente econômicas, assumindo nítida importância política‖ (ALVES,
1984, p. 262). Neste sentido, nos lembra Secco (2015, p. 39) ―que para Florestan
Fernandes, a greve de 1978 efetuou uma ruptura, que punha o grande capital, a
contrarrevolução e seu governo ditatorial de um lado, os operários e o movimento
sindical de outro‖.
No período correspondente a 1981-1983, as manifestações populares sacudiram
o país, embora as greves de operários tenham sofrido ligeira queda em comparação com
os anos de 1979 e 1980; contudo, o operariado consolidou a consciência da sua força
como classe, o que é muito significativo. Como observa Netto (2014), o refluxo do
movimento operário nos anos de 1980 a 1982 é perfeitamente explicável numa
conjuntura recessiva, pois,
todavia, o exame das lutas sociais, ao longo da historia, em todas as latitudes,
revela que seus avanços não são lineares, como se configurassem sempre uma
série ascendente e evolutiva; e é muito frequente que conjunturas fortemente
recessivas limitem severamente as condições de luta e de organização dos
trabalhadores (de que o movimento grevista é apenas uma expressão). Na
avaliação dessas lutas, os avanços não se medem necessária e exclusivamente
pelos ganhos imediatos que propiciam aos trabalhadores diretamente
envolvidos; são indicadores absolutamente importantes o saldo organizativo, o
aporte que trazem ao desenvolvimento da consciência da classe, a
contribuição que oferecem ao conjunto do movimento dos trabalhadores e o
impacto positivo com que rebatem no campo das forças democráticas
(NETTO, 2014, p. 231 - Itálicos no original).
Assim, notou-se que os trabalhadores preocupavam-se cada vez mais com a
―organização política e o fortalecimento dos partidos de oposição. Compreenderam que
a questão da liberdade sindical estava ligada à da participação política nas decisões do
governo” (ALVES, 1984, p. 265). Talvez o exemplo mais claro desta nova fase do
sindicalismo seja a participação massiva no comício de janeiro de 1984, em São Paulo,
contra a ditadura, que previa eleição indireta do próximo presidente, por um colégio
eleitoral.
2.2.3 A gênese do MST
A crise política do regime ditatorial e a crise econômica internacional, abordadas
anteriormente, trouxeram implicações para a economia brasileira devido à sua
dependência e subordinação. O desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro,
91
com suas crises inelimináveis, ocasionou várias mudanças na agricultura, o que atingiu
fortemente a luta pela terra.
Desse modo, no final dos anos de 1970, as modificações estruturais da sociedade
brasileira, como a industrialização, a urbanização, o aumento das migrações para os
grandes centros urbanos, a expansão das relações de assalariamento e a constante
exclusão da participação política das classes subalternas, alteraram as formas de
inserção sócio-política do operariado urbano e dos camponeses. Nesse contexto, como
apontamos, emergiu o ―novo sindicalismo‖ e uma diversidade de movimentos sociais,
entre eles o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST.
O processo de gestação do MST corresponde aos anos de 1979-1984. Este
período também é conhecido como sendo o da gênese e do desenvolvimento do MST,
que foi fundado oficialmente em janeiro de 1984, no 1° Encontro Nacional dos
Trabalhadores Sem Terra, em Cascavel no estado do Paraná. Foi um período rico para o
debate, pois em todo o país eram crescentes as mobilizações e ainda ressoava entre nós
os ecos da Revolução Sandinista na Nicarágua, entre outros.
Desenvolvia-se uma consciência coletiva no movimento e um consenso entre
suas lideranças e a militância segundo os quais as mudanças na sociedade, dentre elas a
mudança na estrutura da propriedade da terra, seriam resultados da correlação de forças.
Portanto, afirmava-se que a própria reforma agrária só iria acontecer como resultado
deste acúmulo de forças, ou seja, seria fruto das lutas concretas dos trabalhadores. Dessa
maneira, foi preponderante a tese no MST de que o movimento camponês deveria dar
continuidade às lutas sociais dos índios, dos negros, dos imigrantes, dos camponeses e
trabalhadores urbanos.
Por certo, a história do MST é uma espécie de continuidade de todas as lutas de
classes, em especial das Ligas Camponesas, aniquiladas em 1964 pelos militares. As
Ligas se constituíram como um movimento independente, nascido no interior das lutas
que se travavam pela terra e pela defesa da Reforma Agrária. Estes elementos,
indiscutivelmente, aparecem fortemente na constituição do MST.
No que tange à gênese do MST, esta foi determinada por vários fatores,
principalmente o fator socioeconômico, o ideológico e o político. De acordo com
Stedile, ―o principal deles foi o aspecto socioeconômico das transformações que a
agricultura brasileira sofreu na década de 1970, processo esse de desenvolvimento que
92
José Graziano da Silva47
denominou de ‗modernização dolorosa‘‖ (STEDILE, 1999, p.
15). Portanto, ao longo destes anos, deu-se o mais rápido e mais intenso processo da
―modernização‖ da lavoura brasileira.
Para Stedile (1999, p. 15), ―a mecanização da lavoura e a introdução de uma
agricultura com características mais capitalistas expulsaram do campo, de maneira
muito rápida, grandes contingentes populacionais‖. Grande parte desses trabalhadores,
incentivados pelos militares, migraram para as regiões de fronteira agrícola48
,
especialmente Rondônia, Mato Grosso e Pará. Outro contingente dessa população
migrou para as cidades, motivados pelo acelerado processo de industrialização. Deste
modo, afirma o dirigente do MST que,
com a crise da industrialização, por conseguinte do modelo econômico, os
camponeses expulsos pela modernização da agricultura tiveram fechadas essas
duas saídas -, o êxodo para as cidades e a fronteira agrícola. Isso os obrigou a
tomar duas decisões; tentar resistir no campo e buscar outras formas de luta
pela terra nas próprias regiões onde viviam. É essa a base social que gerou o
MST (STEDILE, 1999, p. 17).
O aspecto ideológico da gênese do MST é ―o trabalho pastoral das Igrejas
Católica e Luterana, muito importante na formação do movimento‖ (STEDILE 1999, p.
19). A CPT cumpriu um papel fundamental neste aspecto e mais, ―contribuiu para a
construção de um único movimento, de caráter nacional‖ (idem, 1999, p. 21).
Já sinalizamos que vivíamos sob uma conjuntura de crise econômica, de grandes
transformações na sociedade e na agricultura em específico, nos primeiros anos da
década de 1980. Neste contexto se apresenta o terceiro aspecto importante da gênese do
MST - a situação política do país. De acordo com Stedile,
não podemos desvincular o surgimento do MST da situação política do país
naquela época. Ou seja, o MST não surgiu só da vontade do camponês. Ele
somente pode se constituir como um movimento social importante porque
coincidiu com um processo mais amplo de luta pela democratização do país. A
luta pela reforma agrária somou-se ao ressurgimento das greves operarias de
finais dos anos 1970 e á luta pela democratização da sociedade (STEDILE,
1999, p. 22).
Desta maneira, entre os anos de 1979 e 1984, período de gestação do MST, a
população urbana que se aliou e apoiou as lutas rurais o fez como forma de combater o
47
Autor do livro ―A modernização dolorosa‖. Rio de janeiro. Zahar, 1982. O estudo do professor analisa
o processo de desenvolvimento capitalista na agricultura brasileira nos anos 1970 que modernizou o
campo, mas manteve a concentração da propriedade privada da terra e a exclusão social.
48
Fronteira Agrícola: entendida como uma relação social de produção para atender a demanda de
alimentos e matérias-primas do modelo agrícola, ela também representa uma orientação dos fluxos
migratórios das populações rurais, bem como a ―válvula de escape‖ das tensões sociais do campo.
(SILVA, 1982, p. 118).
93
regime econômico e político. Assim, a mobilização da sociedade brasileira deu aos sem
terra força e moral suficiente para transformar as lutas localizadas pela terra nas bases
de um movimento social de alcance nacional e internacional.
2.2.4 Bloco histórico ou bloco político-social
Julgamos ser imprescindível apontar que o conceito de bloco histórico em
Gramsci não é sinônimo de bloco político, bloco social ou de alianças sociais.
Igualmente, é importante frisar que frequentemente ocorre uma confusão entre estas
categorias históricas e analíticas. Com o objetivo de evitar a queda na mesma armadilha
conceitual e trabalharmos com os termos mais precisos, fez-se oportuno delimitarmos
conceitualmente as categorias que estamos trabalhando.
De acordo com Castelo (2013), sobre o conceito bloco histórico há poucas
aspirações ao longo dos Cadernos gramscianos. Além disso, desta o autor que,
o conceito foi interpretado de duas formas distintas. Uma das mais usuais é a
que o julga como uma formulação acerca de aliança política entre classes
sociais operadas por meio da hegemonia e do consenso [...] esta formulação
vem sendo contestada. Pois, a respeito das alianças políticas e culturais,
Gramsci vale-se de conceitos como bloco social, bloco intelectual-moral e
bloco ideológico (CASTELO, 2013, p. 58).
Por certo, como dissemos, confunde-se frequentemente o conceito gramsciano
de bloco histórico, que é um conceito histórico e analítico, com o de alianças sociais, ou
de bloco social ou bloco político. Gramsci formulara com grande clareza, em sua ação
como dirigente do Partido Comunista, o problema das alianças da classe operária,
particularmente nos anos imediatamente anteriores à prisão. Nas teses do Congresso de
Lyon (janeiro de 1926), afirma-se a necessidade de pôr em primeiro plano, entre os
aliados do proletariado industrial e agrícola, os camponeses do Sul e das Ilhas. No
escrito sobre a Questão meridional (novembro de 1926), Gramsci indica ―o consenso
das amplas massas camponesas‖ como a condição para mobilizar contra o capitalismo,
unificando, assim, a maioria da população trabalhadora. Os intelectuais, na concreta
situação italiana, têm um papel decisivo na formação das alianças. No referido texto49
, o
autor dos Cadernos ainda cita sem aprofundar o conceito de bloco dos camponeses,
bloco agrário, bloco democrático de esquerda e bloco intelectual.
49
Gramsci, 2004. A questão meridional. In. Escritos políticos v.2. p. 405-435.
94
O conceito de bloco histórico compõe-se de estrutura (conjunto das relações
materiais) e superestrutura (conjunto das relações ideológico-culturais) da sociedade.
Ou seja, bloco histórico é o conjunto das relações entre estrutura e superestrutura, entre
teoria e prática, entre forças materiais e ideologia, em suma, é a articulação interna de
uma situação histórica precisa. Por conseguinte, o conceito gramsciano de bloco
histórico é dialético na medida em que a interação de seus elementos cria uma unidade
maior, ou seja, de acordo com o próprio Gramsci, bloco histórico é ―[...] a unidade entre
a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura), unidade dos contrários e dos
distintos‖ (GRAMSCI, 2002, p. 26). Do mesmo modo, continua Gramsci, ―a sociedade
se apresenta como uma totalidade e como uma totalidade deve ser abordada em todos os
seus níveis‖ (GRAMSCI, 2002, p. 27). Consequentemente, compreendemos que o autor
rejeita toda visão determinista e mecanicista desta relação.
Em outra passagem dos Cadernos, lê-se que ―a estrutura e a superestrutura
formam um bloco histórico, isto é, o conjunto complexo e contraditório das
superestruturas é o reflexo do conjunto das relações sociais de produção‖ (GRAMSCI,
2004b. v1. p. 250. Caderno 8, nota 182). Nesta perspectiva, observa acertadamente
Gruppi (1980, p. 80), ―que o conceito de bloco histórico é mais amplo que o conceito de
bloco político. O bloco histórico, de fato, pode compreender vários e diferentes blocos
políticos‖.
Em Trabalho e desenvolvimentismo, Giovane Alves (2014) também nos chama
atenção para não se confundir o conceito bloco histórico, com o de bloco de poder e o
de frente política. Para o autor, ―bloco de poder não se confunde com frente política
tendo em vista que a frente política é a articulação de classes, frações e categorias
sociais de classes, que apoiam, por exemplo, um governo e sua estratégia política‖
(ALVES, 2014, p. 168). Cabe destacar que Alves (2014) fala que o bloco de poder
neoliberal é o bloco das classes dominantes com suas camadas e frações, que mantém o
poder do capital nas condições do capitalismo global. Além disso, destaca-se que o
governo é frente política que dá o tônus da governabilidade e a hegemonia da política na
sociedade burguesa.
Portanto, o conteúdo do conceito bloco político-social que trazemos nesta
pesquisa ancora-se no desenvolvido originalmente, embora sem muito aprofundamento,
pelo pensador comunista Antonio Gramsci, segundo a interpretação, principalmente, de
Luciano Gruppi (1978), de Castelo (2013) e Alves (2014).
95
2.2.5 A dialética do bloco político-social
Pelo que expusemos até aqui, agora podemos analisar em seu conjunto as
rupturas e continuidades do bloco político-social. Assim, ao olharmos para os últimos
anos da ditadura civil-militar (1979-1984), entendemos que o fortalecimento da
sociedade civil em relação ao Estado expressava uma tendência à ocidentalização50
da
sociedade, através do surgimento de uma vasta pluralidade de organizações, urbanas e
rurais, em destaque especial para o PT, a CUT e o MST. Esta pluralidade de
organizações, embora expressasse num primeiro momento perspectivas concretas de
mudanças substanciais em relação às estruturas de poder da sociedade brasileira, ainda
que por meio do voto, todavia, num segundo momento, ao longo dos anos 1990, não
logrou êxitos fundamentais diante da ofensiva neoliberal.
A emergência de movimentos sociais e populares de finais dos anos 1970 e
primeira metade dos anos 1980, em especial o surgimento do MST e do campo que este
veio a compor (o bloco político-social juntamente com PT e CUT) está diretamente
relacionada como já afirmamos, com as mudanças sociais e políticas que ocorriam na
sociedade brasileira e com a dinâmica das lutas de classes - conflito entre o capital e
trabalho, também no plano internacional.
Por conseguinte, o Partido dos Trabalhadores - PT, a Central Única dos
Trabalhadores - CUT e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra - MST fincam suas
origens na efervescência social dos férteis anos de 1980 num contexto de
redemocratização do país de crise e de ocaso do regime instalado em 1964. E cada um
destes sujeitos sociais coletivos, embora tenha suas especificidades de lutas e objetivos,
de natureza, de metodologia e de constituição diferenciada, todos convergiam nas lutas
pelo fim do regime civil-militar e por melhores condições de vida e mais democracia
para o conjunto da classe trabalhadora no país.
Portanto, o PT, a CUT e o MST foram e são indiscutivelmente três poderosas
organizações sociais e populares, de dimensões sem precedentes na história do Brasil,
ligadas originalmente entre si por um mesmo imaginário de transformação social.
Foram quadros do PT que criaram em 1983 a CUT com o objetivo de hegemonizar o
movimento sindical, e foi no âmbito da Secretaria Agrária do PT que se manteve aceso
50
Gramsci esboça grande distinção entre ocidente (países capitalistas desenvolvidos) e oriente (Rússia).
Neste caso, ocidentalização significa busca de equilíbrio entre Estado e Sociedade civil. ―No oriente, o
Estado era tudo, a sociedade civil era primordial e gelatinosa. No ocidente, entre Estado e sociedade civil
havia uma justa relação [um equilíbrio...] por isso, nestas sociedades não basta conquistar o Estado, é
preciso conquistar as trincheiras e as casamatas da sociedade civil‖ (Gramsci, apud Gruppi, 1978, p.141).
96
o debate da Reforma Agrária, sob a liderança de José Gomes da Silva, um de seus
principais teóricos. Há que se considerar que a partir desse movimento das classes
trabalhadoras e suas organizações, a Reforma Agrária tornou-se uma das propostas
prioritárias do PT até a eleição de 2002.
O PT nos anos 1980 era, indiscutivelmente, o principal representante e o
instrumento político de maior expressão dos interesses da classe trabalhadora, tendo os
interesses dessa classe como referência central para um projeto de transformação da
sociedade. E função disso, à época, o então Partido dos Trabalhadores foi o centro
aglutinador do bloco político-social durante o processo de reconstrução do sistema
político de representação (1985-1989), ou seja, a partir do pluripartidarismo. Portanto, é
neste lustro histórico que os ―Novos Movimentos Sociais - NMS‖ e sindicais
redefiniram seu eixo de atuação autonomamente em relação ao Estado, constituindo de
fato, sob a hegemonia do PT, o novo bloco político-social. Registre-se que muitos
dirigentes fundadores do MST são também filiados do PT, ou seja, a grande força que
aglutina a CUT e MST em suas origens é o PT e talvez desempenhe este papel até hoje.
Sobre a origem dos chamados ―NMS‖, de acordo com Duriguetto e Montãno
(2011), estes surgem no contexto da retomada das lutas de massas pelo conjunto dos
trabalhadores, na segunda metade do século XX, após a Segunda Guerra Mundial ou no
período da ―guerra fria‖. Um marco histórico destes movimentos é o Maio Francês de
1968, ou seja, a greve geral e a paralisação de pressão política sobre o governo marcam
a entrada em cena do movimento estudantil em aliança com os trabalhadores urbanos.
Este episódio ganhou visibilidade mundial, desencadeou outras lutas de outros
segmentos das classes e abriu o caminho para o surgimento de movimentos de caráter
político-culturais progressista, com bandeiras específicas. Entre os movimentos que
marcaram a eclosão dos ―NMS‖ destacam-se: o movimento mundial contra a guerra dos
EUA no Vietnã, o movimento pelos direitos civis também nos EUA, os movimentos
ecológicos, os movimentos anti-nucleares, o movimento feminista com a defesa da
legalização do aborto e o movimento das minorias/homossexuais.
Assim, resumidamente, os ―NMS‖ expande-se a partir das décadas de 60 e 70 do
século XX, e embora se expressem como lutas setorizadas e específicas, apresentam
novas bandeiras, como por exemplo, a dos negros, dos jovens, das mulheres, da questão
ambiental e da questão urbana. Assim, estes movimentos podem cumprir o papel de
novas ferramentas mais adequadas para a realidade da luta de classe sem negar o papel
do partido e sindicato. Desta maneira, os ―NMS‖ representam um processo de luta para
97
construir hegemonia ideológica e política na sociedade civil. Estes ―NMS‖, na assertiva
de Duriguetto e Montaño (2011) têm por vezes o objetivo ou a função de ser um
complemento das lutas de classes dos movimentos clássicos, e outras vezes são vistos
como alternativos aos movimentos de classes tradicionais e aos partidos políticos de
esquerda. Noutras palavras: esses ―novos‖ movimentos são caracterizados a partir das
lutas imediatas contra a exploração e lutas de libertação nacional, entendidos como
complementares aos movimentos clássicos e em alguns momentos vistos como
alternativos – especialmente pela corrente pós-moderna - aos movimentos tradicionais
classistas e partidos de esquerda.
Contudo, o problema que se apresenta a todos nós, é que, na medida em que os
partidos que representam a classe trabalhadora, ao se tornarem governos e recuarem
diante das reformas políticas e econômicas necessária para a classe trabalhadora, isso
acarreta uma perda política para o conjunto da classe como um todo. Como bem adverte
Tumolo (2002, p. 20) ―a margem de manobra para a realização de reformas que
interessam aos trabalhadores, no interior do sistema capitalista, é cada vez menor, o que
coloca na ordem do dia a necessidade de se voltar a discutir a revolução social e, por
conseguinte a relação desta com a luta pelas reformas‖.
Assim sendo, chegamos ao momento onde podemos apontar que no Brasil, no
final dos anos 1970 e na primeira metade dos anos 1980, constituíram-se formas de
organização e lutas de caráter autônomo e de resistência ao modelo político vigente à
época. Talvez o exemplo mais clássico seja o da CUT, que nasce inspirada num
sindicalismo classista, autônomo e independente do Estado. Como observam
acertadamente Rossi e Gerab (2009, p. 94), ―a CUT em 1983, ano da sua fundação fez
uma opção claramente classista e socialista. Os seus primeiros dez anos foram de
intensas mobilizações de suas bases sociais, nos quais contribuiu para a politização das
relações entre os mais diversos setores sociais‖.
A CUT se constituiu como referência para a organização e as lutas da classe
trabalhadora, fomentou mobilizações nacionais e greves massivas ao longo da década de
1980 e inúmeros sindicalistas que a fundaram participaram antes da criação do PT e,
juntamente com a CPT, da fundação do MST em 1984. Dessa maneira, a década de
1980 foi marcada por uma expressiva vitalidade do movimento sindical urbano e rural.
A greve nacional de inúmeras categorias em março de 1989 contou com a participação
de aproximadamente 20 milhões de trabalhadores mobilizados por dois dias
98
consecutivos, foi a maior greve da história brasileira e a última grande demonstração de
forças do novo sindicalismo que surgia vinculado a CUT, após o regime civil-militar.
Deste ponto de vista, ou seja, do ponto de vista dos movimentos sociais urbanos
e rurais que se colocaram à frente das lutas democráticas do país, contra o modelo
econômico vigente à época e por melhor distribuição da renda e mais direitos civis,
políticos e sociais, as lutas de classes nos fins daqueles anos expressaram um tempo de
disputa de projetos societários. A expressão máxima dessa disputa de projetos deu-se no
segundo turno das eleições presidenciais de 1989, como vimos, entre Collor e Lula.
Portanto, se por um lado percebe-se que em 1989 as classes mais abastadas da
sociedade estavam divididas: a expressão mais forte dessa divisão talvez seja o número
de candidatos que concorreram às eleições51
; do outro lado, nas cidades, entre as classes
sociais menos favorecidas, ocorria o crescimento do movimento de massas em geral,
principalmente do movimento sindical liderado pela CUT. No campo, o MST
consolida-se como um movimento social, de caráter popular, sindical e político - tendo
como principais objetivos a luta por melhores condições de vida dos trabalhadores e
trabalhadoras que estão ligados diretamente à luta pela terra e para além dela. O MST
luta para que sejam garantidos os direitos fundamentais à vida, pautando a necessidade
da realização da reforma agrária. A sua estratégia visa à emancipação humana da
sociedade brasileira, compreendendo esta estratégia no âmbito das lutas políticas com os
diversos setores da classe trabalhadora.
Esta movimentação e organização popular colocaram a perspectiva de eleger o
Lula como presidente do Brasil, devido à sua origem e à sua ativa participação no
movimento sindical e na fundação do PT. De fato, o ano de 1989, assim como toda a
década de 1980, foi de grande efervescência política e havia no seio da classe
trabalhadora mais organizada, representada pela CUT, o MST e o PT, uma vontade
política muito grande de eleger o Lula presidente e ajudar a mudar o Brasil.
51
Disputaram as eleições de 1989 no primeiro turno: 1º - Fernando Collor de Mello/ Itamar Franco -
coligação PRN / PSC / PTR e o PST. 2º - Luiz Inácio Lula da Silva/ José Paulo Bisol - coligação PT /
PSB / PCdoB. 3º - Leonel Brizola/ Fernando Lyra - PDT. 4º - Mário Covas/ Almir Gabriel – PSDB. 5º -
Paulo Salim Maluf/ Bonifácio de Andrada - PDS. 6º - Guilherme Afif Domingos/ Aluízio Pimenta - PL /
PDC. 7º - Ulysses Guimarães/ Waldir Pires - PMDB. 8º - Roberto Freire/ Sérgio Arouca - PCB. 9º -
Aureliano Chaves/ Cláudio Lembo - PFL. 10º - Ronaldo Caiado – coligação PSD / PDN. 11º - Affonso
Camargo Neto - PTB. 12º - Enéas Carneiro - PRONA. 13º - José Alcides de Oliveira ("Marronzinho") –
PSP. 14º - Paulo Gontijo ("PG") - PP. 15º - Zamir Teixeira - PCN. 16º - Lívia Maria - PN. 17º - Eudes
Mattar - PLP. 18º - Fernando Gabeira - PV. 19º - Celso Brant - PMN. 20º - Antônio Pedreira - PPB. 21º -
Manuel Horta - PDC do B. 22º - Armando Correia - PMB.
99
Naquele ano, o MST declarou apoio à campanha presidencial de Lula, por
considerá-lo o candidato mais identificado com as posições favoráveis a respeito das
questões agrárias. Entretanto, o movimento tinha consciência de que, mesmo com a
possível vitória eleitoral, teria de prosseguir a luta, porque o Congresso Nacional
continuaria tendo a maioria de conservadores e os meios de comunicação de massa
permaneceriam monopolizados pelas forças conservadoras.
Desta maneira, em fins dos anos 1980, observa Behring, que,
para além da crise econômica que se arrastava, configurou-se uma crise
política, delineada pelo avanço do movimento sindical e popular, colocando-se
como alternativa de poder, combinando-se explosivamente à fragmentação da
burguesia brasileira, num período grávido de possibilidades de
aprofundamento da democracia política e econômica, mas também repleto de
tendências regressivas e conservadoras ainda fortes e arraigadas na sociedade
brasileira, mesmo depois de tão intenso acúmulo de forças pelos trabalhadores
e movimentos populares (BEHRING, 2008, p. 144).
Com o término das eleições e a vitória de Collor, constatou-se que ―a vitória
dele não foi só eleitoral, mas sim uma derrota política de toda classe trabalhadora‖
(STEDILE, 1999, p. 55). O MST, desde a sua gênese e nacionalização, juntamente com
outros sujeitos sociais coletivos soma-se ao bloco político-social, composto
principalmente pela CUT e pelo PT. Com esta composição e diante da correlação de
forças existente, buscou-se estrategicamente consolidar um projeto político da classe
trabalhadora. A pauta unitária, ou os objetivos comuns, bem como a retomada das lutas
conjuntas destas diferentes organizações (CUT, PT e MST), constituiu-se no que
estamos caracterizando como sendo a formação de um novo bloco político-social.
Este afluxo social, popular e sindical, se por um lado culminou na consolidação
do novo “bloco político-social”, por outro, foi derrotado nas eleições diretas para
presidente da República no ano de 1989, primeira eleição após vinte e cinco anos de
nomeação de presidentes e eleições indiretas realizadas pelo colégio eleitoral. Portanto,
as lutas sociais de fins dos anos 1980 expressaram-se como disputa de projetos e mais
uma vez, de classes em nosso país. Parafraseando Gramsci, obcerva Fontes (2010) que,
a luta de classes atravessa, todo o conjunto da vida social e, difusa pelos
aparelhos privados de hegemonia no âmbito da Sociedade Civil, encontra no
Estado um ponto de aparente resolução, ainda que gerador de novas tensões.
Não há, pois, oposição entre sociedade civil e Estado, em Gramsci [...] ao
contrário, sociedade civil é duplo espaço de lutas de classes, intra e entre
classes, através de organizações nas quais, se formulam e moldam as vontades
e a partir das quais as formas de dominação irradiam como praticas e como
convencimento (FONTES, 2010, p. 136).
100
Cabe destacar ainda, que o bloco político-social não era (e não é) homogêneo
entre si e as organizações tinham (e têm) funções distintas no processo de organização e
mobilização da sociedade brasileira; além disso, também se percebe diferenças internas,
ou seja, em cada organização, a contradição dentro do PT, da CUT e mesmo do MST.
Entretanto, exceto entre os anos de 1997-2001, ou seja, após a grande marcha dos 100
mil a Brasília puxada pelo MST e o início das eleições que levariam Lula a presidência,
o bloco marchou praticamente seguro desde o princípio da segunda metade dos anos
1980 até a grande conquista em 2002. E talvez continue com o lulismo! Mas este é tema
para o último capítulo deste trabalho.
Em resumo: nas disputas de classes e em sua relação fortaleceram-se, neste
contexto histórico, as organizações da sociedade civil que almejavam transformações
sociais de caráter progressista. Subsequentemente, ao longo dos anos 1990, sob a égide
do neoliberalismo, deu-se a ofensiva contra o mundo do trabalho e as suas organizações;
neste ínterim, as organizações sociais com caráter classista não gozavam da mesma
correlação de forças dos anos anteriores. O que se configurava era uma pluralidade de
organizações sociais e de lutas muito distintas das décadas anteriores.
Contudo, os dias de hoje não são os mesmos de outrora e se a história é capaz de
nos explicar muitas coisas, ela não é capaz de determinar nada. Assim, passados os
duros anos sob o neoliberalismo puro, a história reservaria um lugar comum ao bloco
político-social constituído naqueles idos anos de 1980.
2.3 Neoliberalismo e mudanças na correlação de forças
A seguir, daremos destaque a alguns elementos que julgamos como principais
das funções e do papel do Estado sob o neoliberalismo; elementos estes que
permaneceram no suposto ―novo desenvolvimentismo‖, daí a importância de os
pontuarmos aqui. Alertamos, contudo, que os elementos que trazemos sobre o
neoliberalismo são evidências bastante conhecidas. Porém, precisamos pontuar tais
elementos, pois, nos serão uteis para o momento que abordaremos o chamado ―novo
desenvolvimentismo‖.
Sobre o neoliberalismo no Brasil, pode-se dizer, a rigor, que não foi um projeto
ou um modelo de desenvolvimento como fora propalado aquele da industrialização e da
substituição de importações. Não obstante o discurso oficial do governo à época
buscava como propalavam honestamente seus ideólogos e apologistas (no máximo),
101
solucionar a crise do Estado52
. Neste sentido os formuladores e gestores da ―reforma‖
do aparelho do Estado apontavam que ―reformar o Estado significa transferir para o
setor privado as atividades que podem ser controladas pelo mercado‖ (BRESSER-
PEREIRA, 1995, p. 4). Assim, o discurso oficial da crise fiscal repetia-se como um
mantra no sentido de que era preciso cortar gastos: na perspectiva dos liberais, era
inadiável fazer ―ajustes fiscais duradouros‖.
A classe trabalhadora brasileira sabe onde o governo cortou gastos neste
período, pois, foi a que mais uma vez pagou a conta. Perry Anderson, buscando
caracterizar o neoliberalismo, aponta que ―este é um movimento ideológico [...] como o
capitalismo jamais havia produzido no passado. Trata-se de um corpo de doutrina
coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a transformar todo mundo à
sua imagem...‖ (ANDERSON, 1995, p. 22). Complementar a esta caracterização, e na
mesma perspectiva, para Behring (2008, p. 129) ―o neoliberalismo em nível mundial
configura-se como uma reação burguesa conservadora e monetarista, de natureza
claramente regressiva, dentro da qual se situa a contrarreforma do Estado‖.
As propostas econômicas da ideologia neoliberal foram expressas com clareza
no conhecido Consenso de Washington, que propôs às nações de capitalismo
dependente abertura da economia, privatização, controle da inflação e controle do
déficit público, entre outras medidas. Estas regras se expressaram de forma bastante
contundente entre nós, por exemplo, através das privatizações das estradas, dos serviços
de comunicação, da educação e da saúde principalmente, da redução de direitos sociais,
do superávit primário, da dependência de saldo positivo na balança comercial e das altas
taxas de juros. Assim, o Estado, em seu novo papel, sob a égide neoliberal teve a função
de privatizar os setores rentáveis, salvar os monopólios falidos, pagar altos juros para os
rentistas, levar a cabo a abertura comercial, buscar o consenso entre as classes sociais -
mas sem abrir mão de sua função coercitiva.
Sobre este aspecto, aliás, os governos neoliberais dos países de capitalismo
dependente, especialmente, fizeram exatamente o que antecipou o poeta revolucionário
Bertolt Brecht, em seu poema Privatizado. Diz ele: ―Privatizaram sua vida, seu
trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em
52
In. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Plano diretor da reforma do aparelho do Estado. Brasília:
Ministério da Administração e da Reforma do Estado, 1995. Para uma crítica, ver BEHRING, Elaine.
Brasil em contrarreforma: destruição do Estado e perdas de direitos. 2° Ed. São Paulo, Cortez, 2008.
102
frente, seu pão e seu salário. E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a
sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence‖.
No plano organizativo, a condição de êxito deste projeto é que, por um lado,
sejam preponderantes os partidos aparentemente não ideológicos, de base social
heterogênea, constituídos como cartéis de diferentes lobbies; e que, por outro, seja
implementado e se torne dominante um sindicalismo pretensamente apolítico, voltado
apenas para obtenção de resultados imediatos para as corporações que os representam.
Já do ponto de vista político, a ideologia neoliberal visava acabar com as
conquistas das classes trabalhadoras, ou seja, visava ampliar o Estado máximo para o
capital e instituir o Estado mínimo para os trabalhadores. Neste sentido, o
neoliberalismo como ―modelo de desenvolvimento‖ nos marcos do capitalismo
monopolista (imperialista) supõe o regime de acumulação flexível adotado pelo capital
durante sua crise na década de 70, que se expandiu e se consolidou na década de 80 e 90
do século XX. Assim, o neoliberalismo foi e é uma estratégia, uma ideologia frente à
crise estrutural do capital; ele é o processo de reestruturação do capital, sob o comando
do capital financeiro internacional53
. Nesta perspectiva, este ―modelo‖, por um lado é
resultado da crise sistêmica do capital, é produto do modo capitalista de produção; por
outro, é uma resposta à própria crise devastadora do sistema - que é essencialmente a
queda da taxa de lucro e de superprodução ou subconsumo.
Este regime ideológico e de resposta à crise estrutural do capital, emergiu em
escala mundial, porém, com características e consequências diferenciadas em cada país.
No caso brasileiro, sustenta-se em três pilares básicos fundamentais: primeiro como
analisou detalhadamente Antunes (2009), na ofensiva contra o mundo do trabalho e
suas formas organizativas e de luta, que se expressa no combate às organizações dos
trabalhadores através da repressão do judiciário, da criminalização e da precarização do
emprego e desregulamentação do mundo do trabalho; segundo, na reestruturação
produtiva expressa na flexibilização da produção adequada ao consumo e a redução do
trabalho com as garantias sociais, ou seja, a redução da proteção estatal aos
trabalhadores e a terceirização; e terceiro, na contrarreforma no Estado, caracterizada
acertadamente por Behring (2008) como sendo conservadora e regressiva - por
53
Um marco na financeirização do capitalismo em escala mundial é o fim do acordo de Bretton Wood em
1971, iniciado em 1944 que estabelecia o dólar como padrão universal, como moeda internacional. 45
países assinaram o acordo trocando o padrão ouro pelo dólar.
103
determinação do Consenso de Washington, adequadas às prescrições das agências
multilaterais, como o FMI, o BM e o BIRD.
No Brasil, assim como em praticamente todo o continente Latino Americano, o
neoliberalismo ficou bastante desgastado em face do aprofundamento das desigualdades
sociais dos fins dos anos 1990. É preciso reconhecer, contudo, que num período
relativamente curto, o Plano Real colocou a inflação sob o controle, ―no entanto, a
ênfase exclusiva na moeda sobrevalorizada e a política de juros altos para assegurar a
presença do capital estrangeiro volátil em busca de ativos baratos [...], gerou uma queda
de investimentos‖ (BEHRING, 2008, p. 160). Além disso, em fins dos anos 1990,
como demonstra Behring (2008) os efeitos da macroeconomia do Plano Real sobre o
mundo do trabalho já se faziam sentir profundamente. Pois, o Brasil vivia a pior crise
social dos últimos cem anos: um e cada cinco trabalhadores e um em cada três jovens da
Grande São Paulo estavam desempregados. A longa citação abaixo se justifica no fato
que demonstra cabalmente os efeitos do neoliberalismo sobre a classe trabalhadora:
da implantação do Plano Real até agosto de 1998, foram extintos 764,1 mil postos de
trabalho formal, em que pese o crescimento da economia. Ou seja, adotou-se uma
política econômica de crescimento- ainda que pífio – sem emprego. Diante disso,
Pochmann previa um final da década de 1990 marcado por maior agravamento das
condições sociais, com maiores índices de violência urbana, desagregação familiar,
instabilidade e precariedade de renda. Tudo indica que as causas do desemprego
estrutural do Brasil ultrapassaram a justificativa da capacitação profissional para nova
indústria competitiva, o grande argumento governamental. De outro lado, as políticas
de geração de emprego em passado pela flexibilização e desregulamentação dos
contratos, a partir de iniciativas como a instituição do contrato parcial do trabalho. Um
trabalho sem direitos e que, ainda assim, teve impacto lateral nos índices de
desemprego. Pelas contas oficiais do IBGE que se pautam por critérios mais restritos,
que não consideram desemprego oculto pelo desalento (pessoas que desistiram de
procurar emprego) ou pelo trabalho precário, este cresceu de 5% para 8% nas principais
regiões metropolitanas, em 1999 (Voto em Separado da Oposição – Comissão sobre a
Pobreza, 2000). Na verdade, ele circundava e até ultrapassava a marca dos 20% da PEA
em algumas delas aqui pelos cálculos do DEESE e da Fundação Seeade, já em 1997
(Benjamin, et. alii, 1998: p. 186), recorde-se que os bolsões de pobreza relacionam-se a
concentração da terra no campo, historicamente; mas esta situação da PEA nas cidades
no Brasil que se urbanizou progressivamente – hoje cerca de 79% população vivem na
cidades e 21 % no campo (Benjamin et. alii., 1998) – denota o empobrecimento nas
cidade, cuja a expressão mais evidente é a população que vive nas ruas e a violência.,
outro dado importante sobre a PEA é que 70% dela ganham entre zero (15,1%) e três
(12,1%) salários mínimos. A PEA foi estimada, no PNAD de 1996, em cerca de 74
milhões de pessoas, das quais 47 milhões não possuem ensino fundamental completo e
12% são crianças e adolescentes (Inesc, 2000). Já p Censo de 200 revela um acréscimo
de 2,1 milhões de pessoas à PEA, sendo 15% desocupados. Dos ocupados – 64,7
milhões de pessoas – 51,9% recebem de 0 a 2 salários mínimos (O Globo – Suplemento
Especial Retratos do Brasil/Censo 2000, p. 8). (BEHRING, 2008, p. 164 – itálicos
originais).
Portanto, sob o neoliberalismo, o mundo do trabalho sofreu os piores revesses
históricos no Brasil. Pois, sob esta ideologia, durante os 1990 e mesmo nos primeiros
104
três anos deste novo século, a economia brasileira ficou praticamente estagnada. Apesar
disso, anualmente a política fiscal transferiria por meio do superávit primário54
, entre
4% e 6% do Produto Interno Bruto - PIB55
, portanto riquezas e renda do conjunto da
sociedade para o capital financeiro rentista como o caracterizam Carcanholo e Nakatani
(2015). Ainda de acordo com ou autores, é o Estado que financia este capital e não o
contrário como propalam os apologistas deste modo de produção.
Cabe observar, entretanto, que mesmo que a meta de arrecadação seja inferir a
estabelecida de superávit primário pelo governo, o pagamento de juros da dívida pública
continua. Não obstante, esta continua aumentando desde sua origem, constituindo-se
assim, naquilo que Salvador e Teixeira (2014) caracterizam como o sendo verdadeiro
"rombo" das contas públicas brasileiras, pois o pagamento de juros e amortização da
dívida pública compromete aproximadamente 30% do orçamento público brasileiro.
Dizem (o autor e a autora) que a despesa com o pagamento da dívida é a maior do
orçamento público. Em 2015 chegou a 35%, e no geral, nos últimos 12 anos foi de 32%
em media do orçamento público.
É necessário partir destas constatações para estabelecer que além de garantir as
condições de hegemonia política da oligarquia financeira internacional, o
neoliberalismo visava, e ainda mantém este objetivo, garantir e ampliar os fundamentos
da acumulação capitalista. Com efeito, aponta Netto,
se o alvo derradeiro da ofensiva neoliberal é qualquer proposta de superação
socialista da ordem do capital, o centro de seu ataque consistiu no Estado de
bem-estar. No plano teórico o keynesianismo é a besta fera, no plano social e
político institucional, o que coloca-se em questão são os direitos sociais e as
funções reguladoras macroscópicas do Estado, e, no plano ídeo-cultural, a
ofensiva neoliberal contrapõe-se abertamente a cultura democrática e
igualitária da época contemporânea (NETTO, 2007, p. 78).
No período neoliberal, os seus ideólogos recolocaram a falsa necessidade de um
Estado mínimo, relegando a teoria keynesiana de um Estado intervencionista que
deveria agir sempre que necessário tomando medidas como o aumento dos gastos
públicos estatais, da tributação e a redução da taxa de juros, entre outros, para salvar o
capitalismo. Segundo Netto,
é especialmente no arco ídeo-teórico polarizado por Hayek e Friedman que a
ofensiva neoliberal se apoia. Eles expressam a essência do neoliberalismo
54
O superávit primário é a diferença entre as receitas e as despesas que serve para o pagamento do
serviço da dívida pública (juros e amortizações).
55
http://www.auditoriacidada.org.br/blog/2009/09/25/superavit-primario-e-divida-interna. Acessado
19/10/2016.
105
através de uma argumentação teórica que restaura o mercado como instancia
mediadora societal elementar e insuperável de uma proposição política que
repõe o Estado mínimo como única alternativa e forma para a democracia
(NETTO, 2007, p. 76).
Na mesma linha de Netto, para Antunes (2009, p. 60), ―o processo de
reestruturação produtiva do capital é à base do projeto ideo-político neoliberal, a
estrutura sob a qual se erige o ideário e a programática neoliberal‖. Consequentemente,
o neoliberalismo foi e é uma estratégia, uma ideologia frente à crise estrutural do
capital; ele é o processo de reestruturação do capital, sob o comando do capital
financeiro internacional. A partir da crise de 1973, o regime fordista/keynesiano já não
respondia às demandas do capitalismo. A crise clássica de superprodução se expressou
através da crise do petróleo -, o petróleo triplicou de preço, devido ao grau elevado
concentração do capital. Foi a primeira manifestação da crise capitalista após a longa
onda expansiva (1945-1973); desde então, vivemos sob uma onda longa recessiva.
O neoliberalismo é resultado da crise sistêmica do capital, ou seja, é produto
dela e do seu modo capitalista de produção, além de ser uma resposta à própria crise
devastadora do sistema - que é essencialmente a queda da taxa de lucro e de
superprodução ou subconsumo.
Assim, após esta grande crise de 1973, o capitalismo vive uma crise estrutural,
com alguns momentos de retomada tímida do crescimento; entretanto, o que predomina
é a longa onda recessiva do capital. De acordo com Anderson,
a chegada da grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973,
quando todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e profunda
recessão, combinando, pela primeira vez, baixas taxas de crescimento com
altas taxas de inflação, mudou tudo. A partir daí as ideias neoliberais passaram
a ganhar terreno (ANDERSON, 1995, p. 10).
Dessa maneira, nas últimas décadas vivenciamos os reflexos deste quadro de
crise estrutural do capital.
As políticas neoliberais foram testadas primeiramente no Chile, após a
derrubada do governo eleito democraticamente de Salvador Allende pelo golpe de
Estado de Pinochet, em 11 de setembro de 1973. Em seguida se expande para
praticamente toda a Europa. Em 1979 inicia-se na Inglaterra de Margareth Thatcher e
chega aos Estados Unidos de Ronald Reagan em 1980; no Brasil, embora houvesse
embriões desde a segunda metade dos anos 1980, como sugere Behring (2008), o
modelo neoliberal tem início com a eleição de Fernando Collor (1990 a 1992) passando
106
pelo governo de Itamar Franco (1993 e 1994) e se consolida plenamente nos dois
mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002).
Destarte, sob o neoliberalismo, a partir dos anos 1990, em nosso país também se
constituiu a estratégia hegemônica de reestruturação geral do capital em face da sua
crise estrutural, do avanço tecnocientífico e das lutas de classes que se desenvolviam na
época. Perry Anderson (1995) aponta que o neoliberalismo visava, por um lado
combater o welfare state e por outro o comunismo, tendo como medidas: 1) contrair a
emissão monetária, 2) elevar as taxas de juros, 3) reduzir impostos sobre o capital, 4)
dar fim ao controle sobre o fluxo de capitais, 5) elevar os níveis de desempenho, 6)
combater as greves, 7) ampliar as privatização, 8) estimular a competição militar e 9)
atacar os direitos sociais.
Como observamos anteriormente, o neoliberalismo teve inicialmente sua mais
intensiva e cabal realização no âmbito da América Latina, no Chile, para posteriormente
se expandir para a maioria dos países do continente com estratégias políticas,
econômicas, ideológicas e sociais muito bem definidas e exitosas na perspectiva de seus
formuladores. Na Inglaterra, o modelo foi um pacote de medidas mais sistemático e
ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado.
Portanto, trata-se mesmo de uma estratégia global do capital em face de sua crise
estrutural.
Para os franceses Pierre Dardot e Christian Laval (2016), em obra intitulada A
nova razão do mundo56
, o neoliberalismo não é simplesmente um prolongamento ou
uma extensão do liberalismo clássico. Sob o neoliberalismo surge um novo sujeito, ou
se quisermos uma nova forma de vida. Na verdade, para os autores, o neoliberalismo
representa um novo momento histórico do modo de produção capitalista. Pois, o
neoliberalismo é uma racionalidade que penetra em todas as dimensões da vida; no jeito
de amar, de desejar, de falar, etc. consequentemente, a tese central do livro é que o
neoliberalismo não é uma ideologia nem é uma economia política, mas sim uma
racionalidade que estrutura toda a sociedade. Portanto, estrutura como os governantes
atuam e como os governados devem agir.
Obviamente, a ofensiva do neoliberalismo, tanto prática, como teórica e política,
no plano internacional desde meados de 1970, e internamente, a partir de fins dos anos
56
Para a edição brasileira, há um prefácio feito especialmente. O escrito original data de 2008, portanto
em plena crise do capital; em 2009 foi lançado na Inglaterra. No Brasil foi lançado em 2016 a partir da
tradução inglesa, ou seja, sem a primeira parte do original que trata do liberalismo clássico. Portanto, a
versão brasileira, contém somente a parte do neoliberalismo
107
1980, fez com que se alterasse entre nós a correlação de forças em prol das grandes
empresas multinacionais e do monopólio nacional. Em face desta nova conjuntura, se
durante os anos 1980 vivíamos um período de assenso político-social das classes
trabalhadoras, em tempos de neoliberalismo o quadro muda radicalmente.
No período de hegemonia absoluta do neoliberalismo (1990), não havia espaço
para o aprofundamento dos direitos sociais. O lema dos apologistas desta ideologia, ao
contrário do que diziam, era sim eliminar direitos sociais, além de desconstruir e negar
as reformas já conquistadas pela classe trabalhadora durante a época de revolução
passiva ou de modernização conservadora. Do ponto de vista político, o projeto
neoliberal visava acabar com as conquistas das classes trabalhadoras, ou seja, visava
ampliar o Estado máximo para o capital e mínimo para os trabalhadores.
Decerto, se durante os anos 1980 vivíamos um período de assenso político-
social da classe trabalhadora, em tempos de neoliberalismo o quadro muda
radicalmente. Como observa acertadamente Tumolo,
o ano de 1989 é uma espécie de ―divisor de águas‖ na atividade grevista
atingindo seu pico com a cifra astronômica de quase 108 milhões de
trabalhadores/hora parados. Até 1989 havia uma linha ascendente; a partir daí
nota-se um acentuado movimento descendente de tal maneira que em 1994,
apenas cinco anos depois, somente 10,5 milhões de trabalhadores/hora
cruzaram os braços, ou seja, cerca de 10% em relação a 1989 (TUMOLO,
2002, p. 129).
Se a Fernando Collor de Mello coube a função de preparar o terreno para o
neoliberalismo, após seu impeachment, no entanto, a Itamar Franco colocou-se o
desafio de recompor uma articulação política, a mais ampla possível, para dar
sustentação e condições de governabilidade ao mandato tampão. Daí, uma composição
ministerial que incluía o PSDB e alguns setores do PT. Desse modo, o interregno Itamar
Franco será palco de avanços limitados, no que se refere à legislação complementar à
Constituição de 1988, ―mas será o momento de articulação da coalizão conservadora de
poder constituída em torno de Fernando Henrique Cardoso, então à frente do Ministério
da Fazenda, onde foi formulado o plano de estabilização protagonizado pela nova
moeda: o real‖ (BEHRING, 2008, p. 154). Consequentemente, coube a FHC a
implementação das diretrizes neoliberais. Durante seus dois mandatos promoveu-se
uma verdadeira contrarreforma do Estado e em decorrência dela a redução dos direitos
sociais. Tudo o que tínhamos conquistado até 1988 sofreu ataques nesta gestão. Como
obcerva Katz (2016), o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, Presidente do Brasil de
1995-2002 foi o principal expoente e impulsionador das grandes contrarreformas
108
vividas no País ao longo dos anos 1990. Para Katz, Cardoso ―pôs em ação o maior
processo de desnacionalização econômica do Brasil [...] e a submissão do país perante o
capitalismo globalizado‖ (KATZ, 2016, p. 110).
Do ponto de vista político, após o impeachment de Collor em setembro de 1992,
as classes dominantes brasileiras precisavam de um partido que as unificasse e fosse
convincente com o seu projeto. Nesse sentido, observa acertadamente Fontes (2010, p.
262), ―que o Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB, criado em 1989, aportaria
elementos de credibilidade eleitoral para a consolidação da estratégia patronal, ao tempo
em que confundia seus adversários‖.
Paralelamente a essa estratégia das classes dominantes, ou em função dela, duas
das principais forças na época componente do bloco político-social (PT e CUT) iniciam
um processo de abandono de uma perspectiva de enfrentamento da formação social
estabelecida. A propósito desta nova recolocação de parte significativa das forças
sociais, o 7° Encontro Nacional do PT, realizado em 1990, marca, de acordo com Iasi,
―o início da inflexão moderada do partido, com três fatores principais incidindo
fortemente nos rumos do Partido: a derrota eleitoral para Collor, o fim da URSS e o
recuo do movimento popular sindical e de base‖ (IASI, 2006, p. 453). Este recuo do
movimento de classe foi oriundo do desgaste nas formas de luta, do envelhecimento das
lideranças agora absorvidas pelo partido para os cargos de vereador, de prefeitos e de
deputados etc. Ou seja, não se formou novas lideranças, bem como não se construiu
uma nova tática de enfrentamento ao novo modelo ideológico que se desenvolvia. Pelo
contrário, priorizou-se a tática eleitoral acima de tudo.
Além destes fatores que influenciaram na inflexão do PT, da ―negação ao
consentimento”, acrescente-se, como observa Iasi (2006), a ofensiva e a reestruturação
do capital em nível internacional, a burocratização e as derrotas das experiências do
leste europeu, a falta de quadros e de criatividade nas formas de luta, os dirigentes que
perderam as mudanças como horizonte, muitas lideranças e dirigentes do partido que
mudaram de classe - eram trabalhadores nos anos de 1980, nos anos 1990 já não o eram
mais. O novo convívio social, ou seja, as lideranças que não mudaram a realidade, mas
foram mudadas por ela - o PT não mudou o Brasil, então as condições históricas e
sociais mudaram o PT; a disputa eleitoral como única alternativa de se chegar ao
socialismo, ao ponto da luta eleitoral deixar de ser um meio e passar a ser um fim; a
burocratização interna, com os novos eleitos dirigindo o partido e não os coletivos de
109
direção; abandonou-se o princípio da crítica e autocrítica como instrumento que permite
resolver as contradições internas etc.
Mas esta ofensiva neoliberal, portanto do capital, e as estratégias de repressão
formuladas pelas elites brasileiras e levadas a termo pelo governo FHC sobre o bloco
político-social, ou se preferirmos bloco de oposição ao seu governo, iriam muito além
do combate ao PT. De acordo com Fontes (2010, p. 263), ―toda e qualquer formulação
antissistêmica ou tentativa de organização dos trabalhadores enquanto classe social
deveria ser desmembrada e abordada de maneira segmentada‖. Por isso, após reprimir
duramente os petroleiros e o MST (principalmente entre os anos 1995-1997), o governo
FHC passou a atuar na perspectiva de gerenciar os conflitos sociais, ou seja, operar o
desmonte dos movimentos sociais por dentro – como, por exemplo, a situação
emblemática da Central Única dos Trabalhadores, que se igualou sob muitos aspectos à
Força Sindical, criada em 1991.
Como observam acertadamente Rossi e Gerab (2009), a Força Sindical tem
como ideologia o chamado ―sindicalismo de resultados‖, cujo conteúdo pode ser
sintetizado numa frase muito usada por seus dirigentes: ―o que interessa é dinheiro no
bolso dos trabalhadores‖ (ROSSI e GERAB, 2009, p. 102). Portanto, para os autores
―trata-se de uma atualização do peleguismo aos tempos do neoliberalismo‖ (ROSSI e
GERAB, 2009, p. 102).
Ao longo dos anos 1990, na assertiva de Fontes,
a CUT permaneceu capitaneada pelo mesmo grupo que hegemonizava o PT
[―Articulação‖], e, o PT transitou de um formato no qual a organização da base
popular, era seu fulcro primordial, o que o diferenciava dos demais, para um
partido similar a todos os outros [...] ao longo dos anos 1990 deslocava-se de
uma atuação contra-hegemônica [...] para ocupar espaço de polo moralizante
do pendulo político (o fiel da balança) aderindo integralmente a espiral
rebaixadora. A desqualificação da política não é, pois, um resultado acidental
ou uma ausência de cultura política, mas uma cultura política efetiva posta em
prática (FONTES, 2010, p. 256 - Itálicos originais).
Na perspectiva de Fontes (2010), a criação da Força Sindical (FS) em 1991,
demonstrava a nova tática patronal, voltada para desmontar por dentro a organização
dos trabalhadores [...] tendo como alvo fundamental em seus primórdios o combate à
Central Única dos Trabalhadores. A estratégia, segundo a autora, foi vitoriosa, pois ―ao
longo da década de 1990, o setor dominante da central aderiria crescentemente às
práticas induzidas e/ou impostas pelo capital‖ (FONTES, 2010, p. 261).
110
Ainda em relação à CUT, há, de acordo com Tumolo (2002), três fases na
trajetória do sindicalismo cutista, analisada do período de fundação da central, em 1983,
até 1998. Observa o autor que,
primeiramente, aquela que vai de 1978/83, até aproximadamente 1988, que se
caracteriza por uma ação sindical combativa e de confronto. A segunda, cujo
período aproximado é de 1988 a 1991, pode ser classificada como a fase de
transição; e por último a terceira fase 1991 a 1998, pode ser caracterizada por
um sindicalismo propositivo [dentro da ordem] e negociador. Trata-se,
portanto, de uma mudança política substancial, de um sindicalismo combativo
e de confronto, de cunho classista e com uma perspectiva socialista, para uma
ação sindical pautada pelo trinômio proposição/negociação/participação
dentro da ordem capitalista que, gradativamente, perde o caráter classista em
troca do horizonte da cidadania (TUMOLO, 2002, p. 129 - Itálicos originais).
Neste processo, verifica-se que, no interior da CUT, a postura democrática foi
sendo substituída pela postura autoritária e sectária do grupo dirigente vinculado à
mesma tendência hegemônica do PT, a ―Articulação‖. Daí em diante, o que se viu por
parte da CUT foi uma postura de conciliação de classes e submissão à ordem vigente.
Entretanto, esta não foi uma situação tranquila, como adverte Tumolo (2002, p. 23),
pois ―a luta interna entre as diversas correntes foi produzindo uma determinada
estratégia de ação política que foi se construindo como majoritária e, posteriormente,
como hegemônica‖.
Para não cairmos na armadilha de fazer uma análise moralista dos motivos que
levaram a CUT a perder sua capacidade de combate e de crítica às estruturas de poder
da sociedade brasileira, é necessário apontarmos os elementos socioeconômicos que
possibilitaram esta mudança na maior central sindical brasileira. Pois, a vigência do
projeto neoliberal, com seus enormes significados na reestruturação política, econômica,
social e jurídica, e o processo de reestruturação produtiva do capital, acarretaram
enormes consequências no interior da classe trabalhadora brasileira. De acordo com
Antunes (2009) como resposta à crise estrutural do capital, deu-se a passagem do
taylorismo/fordismo para o toyotismo (concorrência intercapitalista e a busca de
controle do movimento operário, essa flexibilização visou buscar a adesão dos
trabalhadores). As características do toyotismo são: a) produção vinculada a demanda;
b) produção variada e heterogenia e; c) trabalho em equipe. Isso tudo trouxe
consequências ao mundo do trabalho, como: a) redução do proletariado fabril; b)
trabalho precarizado – terceirizado; c) aumento do trabalho feminino; d) aumento do
trabalho infantil; e) aumento dos assalariados médios e de serviços; f) exclusão dos
jovens e dos com maior idade do processo de trabalho; e g) a superexploração da força
111
de trabalho. Isto tudo, fez com que ocorressem mudanças estruturais no mundo do
trabalho, que teve como ―consequência uma classe trabalhadora dividida entre os
qualificados e os nãos qualificados, entre os do mercado formal e os do mercado
informal...‖ (ANTUNES, 2009, p. 25).
Em outra passagem de Os sentidos do trabalho..., Antunes (2009) descreve a
situação geral da classe trabalhadora, sob o neoliberalismo em fins dos anos 1990. A
classe trabalhadora, diz ele,
era mais explorada, mais fragmentada, mais heterogênea, mais
complexificados, também nos que se refere a sua atividade produtiva: é um
operário ou uma operaria trabalhando em media com quatro, com cinco, ou
mais maquinas. São desprovidos de direitos, o seu trabalho é desprovido de
sentido, em conformidade com o caráter destrutivo do capital, pelo qual
relações metabólicas sob controle do capital não só degradam a natureza,
levando o mundo à beira da catástrofe ambiental, como também precarizam a
força humana que trabalha, desempregando ou subempregando-a, além de
intensificar os níveis de exploração (ANTUNES, 2009, p. 202/203 – itálicos
originais).
Cabe ainda destacar o baixo crescimento da economia e o medo do desemprego.
Naquele período, conforme dados do DIEESE (2012, p. 10) a crescente vulnerabilidade
dos postos de trabalho criados tem relação direta com o baixo crescimento do Produto
Interno Bruto - PIB, com taxa média de 1,3% na década. No ano 2000, a renda per
capita havia crescido menos de 10% na comparação com 1990. O lento crescimento da
economia significou queda da renda do trabalho, estagnação do mercado consumidor e
taxas crescentes de desemprego durante a maior parte da década de 1990. Os três
primeiros anos do século XXI se assemelharam à década anterior no que se refere ao
crescimento econômico. A economia brasileira cresceu pouco em 2001 (1,3%), em 2002
(2,7%) e em 2003 (1,1%) e, nesse triênio, o mercado de trabalho não gerou empregos
em número suficiente para responder às necessidades da força de trabalho. Em 2003, a
taxa média de desemprego, medida, então, pela Pesquisa de Emprego e Desemprego –
PED, em cinco regiões metropolitanas e no Distrito Federal, atingiu 20,8% (DIEESE,
2012, p. 11).
Para entender a mudança na trajetória política da CUT, além destas profundas
transformações econômicas que ocorreram no final do século XX, expressas
principalmente a partir da subordinação da economia brasileira ao modelo neoliberal,
outros elementos devem ser agregados, particularmente os de ordem política, que entre
os quais se podem mencionar, além de outros, de acordo com Tumolo,
a derrota dos países socialistas liderados pela ex-URSS, tendo como símbolo a
queda do muro de Berlim, o fracasso da experiência revolucionária sandinista
112
que serviu, durante algum tempo, como modelo ou referência para diversos
movimentos sociais do ―campo da esquerda‖, inclusive no Brasil e
principalmente as duas derrotas eleitorais de Luis Inácio Lula da Silva,
notadamente aquela de 1989 [...] para além deste ―pano de fundo‖, é preciso
acrescentar um conjunto de elementos internos que dizem respeito á própria
trajetória da CUT, dentre os quais se destacam: o processo de burocratização,
que resultou num sacrifício da democracia interna etc. (TUMOLO, 2002, p.
131).
Sabe-se que a esquerda europeia nos anos 1990 foi sistematicamente derrotada;
quando obteve vitórias em sua versão moderada (socialdemocrata), fez governos
praticamente iguais aos da direita. Marca forte deste período também é a crise
internacional da esquerda que, ao sofrer a derrota do pós-guerra fria, ocasionou
retrocesso nas principais experiências socialistas com respaldo negativo sobre os
socialistas e comunistas do mundo inteiro.
Consequentemente, esta saga afetou diretamente a esquerda brasileira do ponto
de vista ideológico, levando-a a desorganização e deixando o enfrentamento com o
capital como estratégia apenas dos trabalhadores e seus movimentos sociais. Por
exemplo, o principal partido da esquerda, o PT, apostara na luta institucional como
estratégia de transformação da sociedade. Desta maneira, para nosso infortúnio, a queda
do muro que dividia as duas Alemanhas e o fim do bloco soviético em 1989 trouxe-nos
várias consequências, principalmente a crise política e ideológica. Portanto, a crise
mundial das sociedades e dos projetos socialistas criou entre nós brasileiros um
ambiente ideológico favorável ao avanço do projeto neoliberal. Por conseguinte, os
impactos do neoliberalismo no principal partido brasileiro situado no espectro da
esquerda e no movimento sindical combativo foram devastadores.
As mudanças de concepção e de estratégia sindical da CUT, mudança que se
teve seu início na mesma época em que foi criada a Força Sindical, provam que sob este
aspecto a ofensiva neoliberal logrou imensurável êxito. Entretanto, à época, como
observa acertadamente Boito Jr.,
[...] é preciso frisar, desde já, que a CUT não se converteu em uma central
sindical neoliberal. Pelo contrário, a ação sindical de resistência ao
neoliberalismo só tem sido [foi] implementada pelos sindicatos cutistas.
Contudo, essa resistência tem sido [foi] ineficaz. Isto porque a concepção e a
estratégia da corrente dirigente da CUT, a Articulação Sindical, faz concessões
à ideologia e à política neoliberal, facilitando a implementação e o avanço
desta política e contribuindo para difusão daquela ideologia junto aos
trabalhadores brasileiros (BOITO Jr. 1996, p. 85 – itálicos originais).
Percebe-se, portanto, que por um lado, os anos 1990 sob os aspectos de lutas, de
organização e até mesmo de unidade do conjunto das organizações contra um inimigo
113
comum (o neoliberalismo) foram riquíssimos para as organizações sociais coletivas que
vinham buscando afirmações desde a década anterior. Por outro, em decorrência da
forte repressão sistemática e deliberada do governo FHC sobre os/as trabalhadores/as
organizados/as, as organizações também sofriam desgastes e algumas até sucumbiram
(o PT e a CUT, neste sentido são exemplos emblemáticos) em face da ofensiva
neoliberal.
Assim como para àqueles, sobre o MST também recaiu forte perseguição
política. Contudo, em conjunturas adversas é possível crescer socialmente,
organicamente, e até mesmo obter conquistas. Afinal, diferentemente que o PT e a
CUT, o MST se consolida e amplia a sua base social significativamente, com conquistas
de novos assentamentos e apoio político social massivo, inclusive no meio urbano,
como comprova a marcha à Brasília em 1997. Trata-se, portanto, em nosso tempo, de
evitar que a nostálgica expectativa de um ―novo desenvolvimentismo” capitalista cada
vez mais predatório, não se torne a única alternativa a ser seguida, sem crítica alguma,
pelo conjunto dos trabalhadores. Além disso, essa constatação demonstra que a tese
―modernamente‖ defendida a qualquer custo pelos apologistas do ―nevo
desenvolvimentismo” capitalista, de que as mudanças que ocorreram na sociedade
brasileira nestes primeiros anos do século XXI tornaram mais favorável a organização, a
luta e as conquistas dos trabalhadores, não pode ser afirmada linearmente. Ou seja, há
que se considerar a perspectiva historicamente, pois, sob o neoliberalismo o MST
cresceu enquanto aqueles vergavam. Mas não adiantemos hipóteses e nem conclusões.
Mas, nos anos 1990, a sociedade brasileira não somente assistiu mudanças nas
diretrizes políticas das organizações dos trabalhadores e trabalhadoras. Em praticamente
todos os ramos de atividade o País transformou-se profundamente. Aliás, estas
transformações que ocorreram no âmbito da superestrutura, foi resultado de profundas
mudanças estruturais; portanto, na base da sociedade. Registre-se que mutações
ocorreram no parque produtivo, passando pela redução das empresas estatais, pela
retração do setor industrial, pela expansão dos serviços privados, enfim, em última
instancia deu-se a reconfiguração do Brasil na nova divisão internacional do trabalho.
Mais uma vez, coube ao País, o papel de mero exportador de matérias primas e de
commodities agrícolas. Isso tudo, decerto, afetou profundamente a morfologia da classe
trabalhadora, as suas organizações (seja ela o partido político, o sindicato ou o
movimento social, como apontamos) e os seus ideários e seus valores políticos.
114
Não obstante a ofensiva neoliberal ter proporcionado altas taxas de lucros aos
capitalistas em função da superexploração da classe trabalhadora, as taxas de
desemprego e a precarização do trabalho continuaram se ampliando, aumentando os
níveis de degradação e barbárie social daí decorrentes. E, apesar da já difícil situação da
classe trabalhadora no Brasil, assiste-se desde então, diariamente uma ofensiva das
classes hegemonicamente dominantes para flexibilizar as leis trabalhistas com a falácia
de que isso preservaria e, até geraria mais empregos.
Assim, com a vigência do projeto neoliberal em praticamente toda a década de
1990, com seus enormes significados na restruturação jurídico-política e ideológica, e o
processo de reestruturação produtiva do capital, acabaram acarretando enormes
consequências no interior da classe trabalhadora brasileira. As mudanças que ocorreram
na estrutura societária brasileira em decorrência da ofensiva neoliberal, por um lado
mudaram o mundo do trabalho, alterando tanto a sua morfologia como suas formas
organizativas e representativas, por outro, a forma do sistema sociometabólico do
capital constituir sua hegemonia na sociedade. Neste sentido, pode-se destacar a
ausência de regulamentação da força de trabalho, a flexibilização do trabalho e a
consequente precarização dos trabalhadores, particularmente no que concerne aos seus
direitos sociais. Percebe-se ainda que o Estado capturado pelo grande capital, sem abrir
mão da coerção lança mão do consenso, incorporando em seu aparato burocrático, além
de partidos políticos de centro esquerda, dirigentes sindicais e sociais, buscando
consolidar sua hegemonia.
Neste ínterim, nos países do capitalismo central, o que se vê é a erosão do
trabalho relativamente contratado e regulamentado. Trabalho esse que foi herdeiro do
sistema taylorista e fordista, modelo dominante no século XX – resultado de uma
secular luta operária por direitos sociais – sendo substituído pelas diversas formas de
―empreendedorismo‖, ―cooperativismo‖, ―trabalho voluntário‖ e ―trabalho atípico‖
entre outros. Formas essas que oscilam entre a superexploração da força de trabalho e a
própria auto-exploração da força de trabalho, sempre caminhando em direção a uma
precarização estrutural da força de trabalho em escala global (MÉSZÁROS, 2009).
Acrescente-se, ainda, a xenofobia e o drama da migração, a destruição do meio
ambiente, o ataque aos direitos sociais e o embrutecimento de homens e mulheres que
vivem do trabalho.
No entanto, muitas lutas ocorreram sob o neoliberalismo. Tanto de caráter mais
sindical como de característica especificamente política. De maneira geral, as lutas
115
sociais e de classes foram contrárias ao projeto neoliberal e ao governo como um todo
de Fernando Henrique Cardoso, mas também exigiam melhores condições de trabalho,
aumento salarial e manutenção dos direitos conquistados e consagrados na Constituição
Federal de 1988. Constituíram-se, em verdade, em fortes manifestações públicas de
desgaste do neoliberalismo. A maior expressão deste período, uma vez que a greve dos
petroleiros foi derrotada em 1995, apesar do seu enorme significado social, ideológico,
simbólico e político à época, foi a marcha dos 100 mil a Brasília organizada pelo MST,
um ano após o massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará. Não obstante os objetivos
que eram similares das organizações, se os petroleiros foram derrotados, a marcha dos
100 mil teve um desfecho favorável para o MST.
Por fim, pela concisa exposição que desenvolvemos até aqui, pode-se dizer que
o neoliberalismo foi perverso para o conjunto dos trabalhadores no Brasil, seja nos
aspectos econômicos, políticos e/ou organizativos. Em consequência disso, o povo
brasileiro nas eleições de 2002, votou massivamente contrário aos candidatos que
representassem qualquer continuidade daquele projeto. Desse modo, nenhum presidente
da república no Brasil sentou-se na cadeira presidencial com tanta legitimidade como o
Presidente Lula em janeiro de 2003. Brasília, na sua posse, foi uma apoteose. No
entanto, o projeto (ou modelo) que se seguiu não foi o das classes trabalhadoras. Mas,
este tema é assunto para o próximo capítulo.
116
CAPÍTULO III
Ideologia e suposto “novo desenvolvimentismo” no Brasil
Se considerarmos que já expusemos os elementos principais, ainda que
sumariamente, das características da formação social brasileira (e também sobre a crise,
o papel do Estado, as lutas de classes e as particularidades do neoliberalismo), neste
capítulo, nos deteremos naquilo que se convencionou chamar durantes os governos
petistas de ―novo desenvolvimentismo‖ ou se preferirmos de ―neodesenvolvimentismo‖.
Muitas questões se colocam diante de nós, quando se propõe uma interpretação
crítica do que realmente aconteceu no Brasil durante a última década e meia. Por
exemplo, ocorreu sob o lulismo um ―novo desenvolvimentismo‖? E, o que se entende
por ―novo desenvolvimentismo‖? Para esta reflexão, ao nosso entender, é importante,
além de expor o sentido em que usamos o termo ideologia, conceituarmos criticamente
o que é a ideologia do desenvolvimento no Brasil numa perspectiva histórica.
Além disso, trataremos das diversas posições dos autores desenvolvimentistas,
pois, embora haja convergência entre os apologistas desta formulação (desta ideologia),
observam-se pontos divergentes.
3. 1 Notas sobre ideologia
O termo ideologia, deriva do grego, sendo composto pelo prefixo ide (o), que
significa ideia e pelo sufixo logia, que quer dizer estudos. Consequentemente, pode-se
ler que ideologia é o estudo das ideias. Mas é muito mais que isso. Vejamos. Logo após
a revolução francesa (burguesa) de 1789, numa clara oposição às formulações da Igreja,
se afirmava que as ideias eram formas de enganar as pessoas. Por isso, era preciso uma
ciência ou um determinado conhecimento científico sobre elas. Ou seja, quando Antonie
Destrutt de Tracy57
criou o termo ideologia, queria exatamente isso, desenvolver uma
lógica de estudo das ideias ou, ciência das ideias.
Comumente, lembra-nos Iasi (2007), existe uma confusão entre o senso comum
de um termo e seu status de categoria ou conceito integrante de uma concepção teórica
57
O conceito ―ideologia‖ foi criado pelo filósofo francês Antoine Louis Claude Destutt de Tracy (1754-
1836), que o empregou pela primeira vez em seu livro "Elementos de Ideologia" (escrito em 1801, mas
publicado em 1815), para designar o ―estudo científico das ideias‖ ou uma ―teoria geral das ideias‖.
117
unitária e coerente, como é o caso do pensamento de Marx. E sendo o conceito
ideologia permeável a vários significados, definitivamente, é um termo ambíguo e
contraditório. Por isso, este conceito ao longo dos mais de 200 anos de existência foi
adquirindo diferentes significados. Inclusive parte significativa de marxistas seguiram
este curso. Portanto, não há uma resposta definitiva e acabada sobre ideologia. Pelo
contrário, há uma ambiguidade no termo desde sua origem. Aliás, diferentemente da
maioria dos conceitos e categorias de uso recorrente nas chamadas ciências sociais (na
história, na filosofia, no serviço social entre outros), como por exemplo, política,
Estado, democracia etc., que são termos que vem desde os clássicos gregos e, portanto,
são muito antigos, ideologia - como dissemos - tem pouco mais de duzentos anos. Por
certo, é um termo relativamente novo.
É importante sublinhar aqui, entretanto, que as mais variadas intepretações dão-
se fundamentalmente nos meios acadêmicos, entre a intelectualidade, sejam eles
orgânico ou não. Naturalmente, à época de Marx, por exemplo, não havia esse
problema, pois, os intelectuais que se associavam ao movimento político dos operários
eram a ínfima minoria. Este quadro somente se altera na virada do século XIX. Desse
modo, é somente a partir da fundação e da ascensão do Partido Social Democrata
Alemão em 1890 e da instituição da II Internacional Comunista em 1889, que os
intelectuais ganham expressão no movimento político dos trabalhadores.
Pela natureza do termo, como veremos, mesmo em Marx também existe uma
dupla compreensão, ou melhor, uma ressignificação e ampliação do conteúdo da
categoria. E isso, inevitavelmente, levou as diferentes correntes marxistas a se
digladiarem na busca do ―verdadeiro‖ significado de ideologia. Claro que isso teve
implicações políticas e, da mais elevada monta, principalmente em face da ascensão e
da crise do movimento comunista no mundo inteiro ao longo do século XX. Desta
maneira, situamos a ideologia como um dos conceitos mais caros aos marxistas e
especialmente ao movimento dos trabalhadores ao longo do último século. Pois, em
nome de uma ―ideologia‖ dos trabalhadores em oposição à da burguesia, muitos
equívocos se cometeram. Mas este, por ora, não é o nosso assunto principal. Queremos
apenas demonstrar em que sentido, ou melhor, com qual conteúdo e significado usamos
ao longo deste trabalho o conceito de ideologia. Porém, antes de tudo, achamos
fundamental destacarmos, ainda que laconicamente, algumas das interpretações
marxistas mais relevantes sobre o termo.
118
Como estamos apontando em tela, sobre o termo ideologia existe uma confusão
entre o sentido comumente usado, como conjunto de ideias e o conceito propriamente
determinado. De acordo com Iasi (2007, p. 79), ―o nosso senso comum deve muito a sua
mãe, a revolução burguesa. [...] Ao que devemos ter atenção é à pretensão de serem
ideias gerais ou universais de toda a sociedade‖. Sabe-se que Napoleão Bonaparte
durante seu reinado, lá nos primeiros anos do século XIX também usou o termo
ideologia. Decerto, para o senso comum, geralmente, ideologia é tido como algo ideal,
que contém um conjunto de ideias, pensamentos, doutrinas ou visões de mundo de um
indivíduo ou de determinado grupo orientado para suas ações sociais e políticas.
Pois bem. Como não se pode dar por satisfeito com o senso comum, impõe-se,
portanto, a necessidade de aprofundarmos esta matéria. E sobre este assunto,
especialmente Marx, mas também Engels nos deixou sua importante contribuição que,
embora insuficiente, é indispensável para uma apropriação mais ampla e profunda do
termo. Por conseguinte, para entender como a ideologia econômica, política, jurídica e
filosófica das classes economicamente dominante atua ideologicamente sobre a
sociedade brasileira como formadora do imaginário social, partimos da concepção de
ideologia em Marx está associada à divisão da sociedade em classes e das relações de
dominação e de subordinação que se estabelecem a partir desta divisão.
Substancialmente, foram Marx e Engels que resignificaram o conceito de
ideologia de Destrutt de Tracy (e mesmo o de Napoleão) e deram um sentido, num
primeiro momento, claramente crítico e negativo em A ideologia alemã58
. No
manuscrito, composto por dois grossos volumes em oitavo, como diria o próprio
Marx59
, o conceito de ideologia ganhou uma dimensão associada à luta entre as classes
e a possibilidade de mudança social. Vejamos como os filósofos da classe trabalhadora
colocam o termo na obra que foi deixada à crítica roedora dos ratos:
as ideias da classe dominante são em cada época, as ideias dominantes, isto é,
a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo,
58
Escrito por Marx e Engels entre novembro de 1845 e agosto de 1846. Cabe salientar, que a obra
somente foi publicada pelo Instituto de Marxismo-leninismo de Moscou em 1932, portanto, somente 82
anos após ser escrita e ainda parcialmente, pois, a primeira edição completa somente veio à luz em 1962.
A tradução do inglês para o alemão surgiu apenas em 1968/1969. No Brasil a primeira edição completa
ocorreu somente em 2007 pela Boitempo. Edição que estamos nos baseando aqui.
59
Diz Marx no famoso prefácio de janeiro de 1859. Resolvemos trabalhar em comum para salientar o
contraste da nossa maneira de ver com a ideologia da filosofia Alemã, visando, de fato, acertar as contas
com a nossa antiga consciência filosófica [...]. Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos,
tanto mais a gosto quanto já havíamos alcançado o nosso fim principal, que era nos esclarecer (MARX,
2008, p. 49).
119
sua força espiritual dominante. A classe que tem a sua disposição os meios de
produção material dispõe também dos meios da produção espiritual. As ideias
dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais
dominantes, são relações materiais dominantes apreendidas como ideias;
portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe
dominante, são as ideias de sua dominação. Os indivíduos que compõem a
classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso,
pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito
de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda a sua extensão,
portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores,
como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição das ideias
de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da
época (MARX e ENGELS, 2007, p. 47).
Como se pode ver, a noção de ideologia para Marx e Engels está profundamente
vinculada à divisão da sociedade em classes e a forma particular que a classe dominante
elabora e difunde sua visão de mundo, buscando torná-la universal. Num prólogo
escrito por Marx intitulado ―III. São Max‖, depois de pronto um capítulo para a
impressão, diz-nos o amigo de Engels:
até o momento, os homens sempre fizeram representações falsas de si mesmos,
daquilo que eles são ou devem ser. Eles organizaram suas relações de acordo
com suas representações de Deus, do homem normal e assim por diante. Os
produtos de sua cabeça tornam-se independentes. Eles, os criadores, curvaram-
se diante de suas criaturas. Libertemo-los de suas quimeras, das ideias, dos
dogmas, dos seres imaginários, sob o jugo dos quais eles definham.
Revoltemo-nos contra esse império dos pensamentos. Ensinemos-lhes a trocar
essas imaginações por pensamentos que correspondam à essência do homem,
diz Um, a se comportar criticamente para com elas, diz o Outro, a arrancá-las
da cabeça, diz um Terceiro, e... a realidade existente haverá de desmoronar.
Essas fantasias inocentes e infantis... (MARX e ENGELS, 2007, p. 523).
Percebe-se, portanto, que além dos autores colocarem a ideologia como algo
inseparável de uma relação de dominação, apresenta-se outra dimensão do conceito que
está na afirmação de que ―essa dominação, expressa nas ideias, apresenta-se como
justificação dessas relações de dominação, inversão, naturalização, velamento,
falsidade‖ (IASI, 2007, p. 79). Por conseguinte, vemos que o conceito em Marx e
Engels aparece com uma conotação valorativa negativa.
Desta maneira, compartilhamos das interpretações de Iasi (2007) quando afirma
que o conceito de ideologia em Marx e Engels é inseparável dos seguintes elementos:
a) ideologia pressupõe uma relação de dominação, uma relação na qual a
classe dominante expressa sua dominação em um conjunto de ideias; b)
ideologia pressupõe inversão, velamento da realidade, naturalização das
relações de dominação e, daí, sua justificação; c) ideologia pressupõe,
finalmente, a apresentação de ideias e concepção de mundo particulares como
sendo universais (IASI, 2007, p. 81).
120
Tal formulação, de acordo com Iasi (2007), suscita que se ergam
questionamentos sobre uma suposta ―ideologia proletária‖. Se existe, deveríamos nos
perguntar sobre qual quadro de dominação de classe, sobre quem recai essa dominação,
sobre a base de quais relações sociais se estrutura tal domínio? O que a ―ideologia
proletária‖ busca velar e inverter, justificar e naturalizar nas relações de seu suposto
domínio e com qual intenção?
Mas prosseguimos com as formulações acerca do polêmico conceito, porém,
agora, sob a responsabilidade exclusiva de Marx. Nosso autor retoma as reflexões
contidas na Ideologia alemã, somente treze anos depois, no prefácio de 1859. Neste,
após se apresentar ao seu público leitor e expor parte dos resultados das suas pesquisas,
diz Marx,
quando se consideram tais transformações, convém distinguir sempre a
transformação material das condições econômicas de produção- que podem ser
verificadas fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais – e as formas
jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo as formas
ideológicas sob quais os homens adquirem consciência desse conflito e o
levam até o fim. Do mesmo modo que não se julga o indivíduo pela ideia que
de si mesmo faz, tampouco se pode julgar uma tal época de transformações
pela consciência que ela tem de si mesma. É preciso, ao contrário, explicar
essa consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe
entre as forças produtivas sociais e as relações de produção (MARX, 2008, p.
48).
Lê-se, portanto, que ele lista como sendo componente da superestrutura a
política, a religião, o direito, a moral, a filosofia, a arte etc., e diz que esse conjunto de
representações de imagens, de conceitos é o que constitui as formas ideológicas. Afirma
na sequência que é também por estas representações que os seres humanos tomam
conhecimento das contradições sociais e politicas e assim às podem resolvê-las. Aqui,
claramente, Marx amplia o conteúdo do conceito de ideologia e trabalhará com este até
o fim de sua vida.
Cabe destacar, contudo, que nas formulações de Lenin e Gramsci o conceito
ideologia aparece com conotações diversas das de Marx e Engels. No texto de 1902,
Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento, de Lenin, por exemplo, lê-se:
todos aqueles que falam da ―supervalorização da ideologia‖, de exagero do
papel do elemento consciente etc., imaginam que o movimento puramente
operário pode por si só elaborar, e que elaborará uma ideologia independente,
desde que os operários ―tomem as rédeas de seus destinos das mãos dos
dirigentes‖. No entanto, isso é um erro crasso [...]. Já que não se pode se quer
falar de uma ideologia independente, elaborada pelas próprias massas
operárias no curso de seu movimento, o problema põe-se unicamente assim:
ideologia burguesa ou ideologia socialista. Não há meio termo (por que a
humanidade não elaborou nenhuma ―terceira‖ ideologia; ademais, em geral, na
sociedade cortada pelas contradições de classe, não se pode nunca existir uma
121
ideologia à margem das classes ou acima das classes). Por isso, tudo o que seja
rebaixar a ideologia socialista, tudo o que seja afastar-se dela, significa
fortalecer a ideologia burguesa (LENIN, 2010, p. 98/99/100 - itálicos
originais).
Naturalmente que o dirigente da revolução russa está em franca oposição ao
conceito de ideologia que marcou profundamente a II Internacional Comunista. Este
conteúdo é extremamente redutor. Pois, diz que existe uma ideologia proletária e uma
ideologia burguesa - apenas. Note-se que não existe na sociedade somente duas classes.
A proletária e a burguesa são as principais classes, mas existem muitas outras como
Marx demonstrou em O dezoito Brumário. Além disso, não se pode intuir, valorar, que
a ideologia proletária é boa e a burguesa é ruim. Essa leitura pode levar ao
maniqueísmo.
Já em Gramsci, não obstante ocorrer o mesmo, suas formulações no final se
aproximam mais às dos (como ele mesmo diria) ―fundadores da filosofia da práxis‖.
Vejamos como o comunista sardo apresenta o termo:
um elemento de erro na consideração sobre o valor das ideologias, ao que me
parece, deve-se ao fato (fato que, ademais, não é casual) de que se de o nome
de ideologia tanto à superestrutura necessária a uma determinada estrutura,
como às elucubrações arbitrárias de determinados indivíduos. O sentido
pejorativo da palavra tornou-se exclusivo, o que modificou e desnaturou a
análise teórica do conceito de ideologia. O processo desse erro pode ser
facilmente reconstruído: 1) identifica-se a ideologia como sendo distinta da
estrutura e afirma-se que não são as ideologias que modificam a estrutura, mas
sim vice-versa; 2) Afirma-se que uma determinada solução política é
―ideologia‖, isto é, insuficiente para modificar as estruturas enquanto crê poder
modificá-la se afirma que é inútil, estúpida etc.; 3) Passa-se a afirmar que toda
ideologia é ―pura‖ aparência, inútil etc., [...]. É necessário, por conseguinte,
distinguir entre ideologias historicamente orgânicas, isto é, que são necessárias
a uma determinada estrutura, e ideologia arbitrárias, ―racionalísticas,‖
―voluntaristas‖. Enquanto são historicamente necessárias, as ideologias têm
uma validade que é validade ―psicológica‖: elas ―organizam‖ as massas
humanas, formam o terreno no qual os homens se movimentam, adquirem
consciência de sua posição, lutam etc. Enquanto são ―arbitrárias‖, não criam
mais do que ―movimentos individuais‖, polêmicas etc. (nem mesmo estas são
completamente inúteis, já que funcionam como o erro que se contrapõem à
verdade e a afirma) (GRAMSCI, v.1, 2004, p. 37).
Ou seja, apesar de supor uma ideologia proletária e uma burguesa, a concepção
Gramsciana,
é graduada em níveis diversos de existência das ideologias. Supõe as
―ideologias historicamente orgânicas‖, vinculadas diretamente às exigências de
estrutura de dominação e poder historicamente determinadas, com força e
coerência de um sistema; e ideologias ―arbitrárias‖ ou ‖não orgânicas‖, que se
formam por associação caótica de elementos de cultura, tradição, costumes,
experiência cotidiana, e que serão a base do chamado senso comum e do bom
senso (IASI, 2007, p. 82).
122
O autor citado indaga ainda qual seria o motivo destes revolucionários (Lenin,
Gramsci, Trostki e Rosa entre outros) utilizarem a expressão ―ideologia proletária‖ e
mesmo manter uma conceituação diferente daquela de Marx? Por outro lado, se
pergunta também, porque chama-las de ―ideologia‖? A resposta para ele é simples. Por
um lado, como já apontamos acima, estes teóricos da classe trabalhadora não
conheceram os manuscritos de Marx e Engels. Por um lado, ―com certeza os problemas
da Segunda Internacional e a polarização destes revolucionários com as ideias de
reformismo pode ter precipitado a necessidade de uma distinção clara das ideias
próprias dos trabalhadores‖ (IASI, 2007, p. 83).
Portanto, para Iasi (2007), os revolucionários marxistas da primeira metade do
século XX popularizaram um conceito de ideologia útil à luta que se travava como
conjunto de ideias, mas que possui uma contradição, que não é pequena, com o conceito
de Marx e Engels. Embora o autor reconheça que existe, infelizmente, uma ―ideologia
proletária‖, ela não existe como esperavam alguns;
como conjunto de ideias dos trabalhadores contra as ideias burguesas, mas
com toda a dramática negatividade do conceito original de Marx,
verdadeiramente como ideologia. Como tal, a ideologia proletária inscreveu-
se nos marcos de relações que necessitavam ser velados pelas brumas
enganosas da justificação, naturalização e inversão do que é histórico e
socialmente determinado. A forma histórica mais clara de ideologia proletária
é o estalinismo, mas não se restringe a ele (IASI, 2007, p. 84 – itálicos meus).
Por isso, segundo Iasi (2007, p. 82), ―não encontramos, pelo menos em Marx, a
referência a essas ideias como ideologia; ao contrário, existe uma clara conotação
‗antideológica‘ que pode ser apresentada pelo termo ‗consciência‘‖. E acrescenta
seguindo à acepção marxiana e não a dos marxistas ―parece-nos extremamente
inapropriado falar em ‗ideologia proletária‘‖ (IASI, 2007, p. 83).
Contudo, István Mészáros apresenta em O poder da ideologia (2004), aquilo que
podemos considerar como sendo a sistematização mais abrangente sobre o termo60
.
Ademais, no meio da confusão criada, ele manteve viva a ação do movimento marxista.
Em função disso, o marxiano-lukacsiano contrapõe-se, radicalmente, à tese sartriana
que separa e coloca em contraposição filosofia e ideologia. Pois, de acordo com o
60
Há, contudo, outros belos ensaios de renomados estudiosos sobre o assunto. Cfr. CHAUÍ Marilena o
que é ideologia? São Paulo: Brasiliense, 2001. ENGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. São
Paulo: Ed. Unesp, 1997. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na
era dos meios de comunicação de massas. Petrópolis: Vozes, 2000. Entre outros. Porém, Mészáros com
O poder da ideologia, é sem dúvida, como dirá José Paulo Netto, um marco inarredável da teoria social
contemporânea – e da sua crítica.
123
pensador húngaro, toda filosofia é ao mesmo tempo uma ideologia. Entretanto, ele
reconhece que Sartre, corretamente,
vincula intimamente as grandes filosofias do passado e do presente ao cenário
social particular – que abrange toda uma época histórica – que define
positivamente e limita negativamente seu horizonte conceitual as ideologia
pretensamente ―não ideológicas‖ que, com tanto sucesso, exercem sua função
apologética sob o disfarce da metodologia neutra que são duplamente
mistificadora [...], portanto, mais do que no passado, a tarefa da
desmistificação ideológica é inseparável da investigação do inter-
relacionamento dialético complexo entre os métodos e os valores, do qual
nenhuma teoria ou filosofia social consegue escapar (MÉSZÁROS, 2004, p.
303).
Portanto, para o autor, as ideologias são sempre ideologias de classes e, em
função disso é que existem as ideologias das classes dominantes e ideologias das classes
dominadas. Por isso, para Mészáros, a ideologia é o imperativo para se tornar consciente
os conceitos de classes com o propósito de resolvê-los a partir da luta de classes.
Consequentemente, o poder da ideologia não pode ser superestimado, pois, diz
ele,
a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal
orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente
ancorada e sustentada. Como tal, não pode ser superada nas sociedades de
classes. Sua persistência se deve ao fato de ela ser constituída objetivamente
(e constantemente reconstituída) como consciência prática inevitável das
sociedades de classe, relacionada com a articulação de um conjunto de
valores e estratégias rivais que tentam controlar os metabolismos sociais em
todos os seus principais aspectos (MÉSZÁROS, 2004, p. 55 – itálicos
originais).
Diríamos então, que para Marx e Engels - a luz destes apontamentos de
Mészáros - ideologia é falsa consciência, mas não é uma mentira. No entanto, claro que
a partir de ideologias podem-se criar diversas mentiras. Por exemplo, quando se diz que
a saída para a crise estrutural do capital nos dias de hoje é o mercado, é a privatização, é
a redução dos direitos sociais etc., isso é uma grande mentira originária de uma
ideologia. A saber, a liberal, que defende um estado mínimo para os trabalhadores e
máximo para o capital. Além disso, é mentira porque, desde 1929, com a grande crise,
se diz que é o mercado quem deve resolver os problemas estruturais da sociedade.
Entretanto, para além das crises que continuam ocorrendo, mantém-se a
exploração da força de trabalho. Outro exemplo é o dos meios de comunicação. Em sua
ampla maioria, os jornais, as TVs e as rádios, diariamente, repetem embasados em
certas ideologias, mentiras que tem efeito prático negativo sobre a classe trabalhadora e
positivo para as classes dominantes.
124
É neste sentido que, em O poder da Ideologia, Mészáros (2004) discute o
neoliberalismo, o momento atual da luta socialista, o Fórum Social Mundial e a
necessidade da reconstrução de uma solidariedade internacional da classe trabalhadora.
Mas, além disso, expõem a importância de uma ideologia da emancipação para
superar o capitalismo. Embora seja longa a citação, julgamo-la fundamental para
entendermos suas principais formulações sobre ideologia. Para o autor, os termos
colocam-se assim:
a questão da ―falsa consciência‖ – frequentemente apresentada de modo
parcial, para favorecer aqueles que a cultivam – é um momento subordinado
dessa consciência prática determinada pela época. Como tal, está sujeita a
uma multiplicidade de condições delimitadoras que deve ser avaliada
concretamente em seu próprio cenário. As ideologias são determinadas pela
época em dois sentidos: Primeiro, enquanto a orientação conflituosa das
várias formas de consciência social prática permanecer a característica mais
proeminente dessas formas de consciência na medida em que as sociedades
forem divididas em classes. Em outras palavras, a consciência de tais
sociedades não pode deixar de ser ideológicas – isto é, idêntica à ideologia –
em virtude do caráter insuperavelmente antagônico de suas estruturas sociais.
[...]. Segundo, na medida em que o caráter específico do conflito seja
fundamental, que deixa sua marca indelével nas ideologias conflitantes em
diferentes períodos históricos, surge do caráter historicamente mutável - e
não em curto prazo - das práticas produtivas e distributivas da sociedade e da
necessidade correspondente de se questionar radicalmente a continuidade da
imposição das relações socioeconômicas e político-culturais que,
anteriormente viáveis, tornam-se cada vez menos eficazes no curso do
desenvolvimento histórico. Desse modo, os limites de tal questionamento são
determinados pela época, colocando em primeiro plano novas formas de
desafio ideológico em intima ligação com o surgimento de meios mais
avançados de satisfação das exigências fundamentais do metabolismo social.
Sem se reconhecer a determinação das ideologias pela época como a
consciência social prática das sociedades de classes, a estrutura interna
permanece completamente ininteligível. Devemos diferenciar, entretanto, três
posições ideológicas fundamentalmente distintas, com sérias consequências
para os tipos de conhecimento compatíveis com cada uma delas. A primeira
apoia a ordem estabelecida com uma atitude acrítica, adotando e exaltando a
forma vigente do sistema dominante – por mais que seja problemático e
repleto de contradições – como o horizonte absoluto da própria vida social. A
segunda, exemplificada por pensadores radicais como Rousseau, revela
acertadamente as irracionalidades da forma especifica de uma anatômica
sociedade de classes que ela rejeita a partir de um novo ponto de vista. Mas a
sua crítica é viciada pelas contradições de sua própria posição social –
igualmente determinada pela classe, ainda que seja historicamente mais
evoluída. E a terceira, contrapondo-se às duas anteriores, questiona a
viabilidade histórica da própria sociedade de classe, propondo, como objetivo
de sua intervenção prática consciente, a superação de todas as formas de
antagonismos de classe. Naturalmente, na história do pensamento, desde os
tempos mais remotos até o presente, mesmo as formas mais positivas de
tomada de consciência do conflito social fundamental não deixaram de ser
afetadas pelas limitações estruturais do confronto de classes. Apenas o
terceiro tipo de ideologia pode tentar superar as restrições associadas com a
produção do conhecimento prático dentro do horizonte da consciência social
dividida, sob as condições da sociedade devida em classes (MÉSZÁROS,
2004, p. 67/68 – itálicos originais).
125
Pois bem. Como indicamos no início desta digressão sobre o conceito ideologia,
agora cabe colocarmos em que sentido se usará o termo. Usaremos o termo ideologia
em sentido amplo. Portanto, aquele formulado por Marx no prefácio de 1859 e que foi
seguido pelos marxistas. Ou seja, ideologia é a totalidade das formas de consciência
social: o que abrange o sistema de ideias que legitima o poder econômico da classe
dominante (ideologia burguesa) e o que expressa os interesses revolucionários da classe
dominada (ideologia proletária ou socialista).
Quando usamos o termo por extensão, por exemplo, ideológico: leia-se que é
relativo a ideologia. E, ao usarmos ideólogo, trata-se daquele que aperfeiçoa uma
ideologia ou que advoga em defesa uma ideologia, seja ela verdadeira ou falsa. Isso
porque, numa sociedade dividida em classes, á algo peculiar a ela. A saber: além de ser
possível a incorporação de ideologias que por vezes não pertence a uma determina
classe, cada classe desenvolve uma ideologia própria, no interior desta classe, que
justifica sua ação no processo de lutas de classes. Isso não elimina que a ideologia pode
ser verdadeira ou falsa, como já abordamos.
Contudo, como observa corretamente Iasi (2007), na concepção marxiana, o
proletariado lutaria por uma sociedade sem classes, baseada na livre associação dos
produtores, que teria por base a superação da atual subordinação dos indivíduos à
divisão social do trabalho, assim como o desenvolvimento das forças produtivas e dos
indivíduos, em todos os sentidos, para que possa ser gerada uma situação capaz de gerar
o lema ―de cada um segundo sua capacidade e cada um segundo sua necessidade‖. O
desenvolvimento dos indivíduos, em todos os sentidos, supõe que um novo ser social se
expresse numa nova consciência social, novas ideias e uma nova ordem de valores.
Como veremos nos apontamentos sobre o ―novo desenvolvimentismo‖ é a partir desta
ideologia que colhemos os subsídios para desvelar as formas de mistificação da
realidade imposta por ela.
Por fim, nosso papel é demonstrar para as classes subalternas que aquilo que
aparece como real é a visão de mundo de uma classe economicamente dominante. Hoje,
assistimos com perplexidade, a crise do capital e a dominação de classes de uma parte
significativa das classes hegemônicas do capital.
3. 2 Desenvolvimentismo e consolidação do capitalismo dependente
Antes de discorrermos sobre as ideias principais dos ideólogos
desenvolvimentistas contemporâneos e, naturalmente, pontuarmos alguns elementos
126
críticos, primeiramente, faz-se necessário sistematizar alguns elementos sobre o
conceito de desenvolvimento e suas fases ao longo da nossa história, especialmente,
após 1930. Portanto, julgamos importante que para uma detalhada apreensão deste
conceito (desta ideologia), é imprescindível analisar os períodos distintos em que a
ideologia do desenvolvimento ganhava corações e mentes, pelo menos entre as camadas
mais abastadas da sociedade e do respectivo bloco de alianças no poder a elas
correspondente.
Do ponto de vista teórico, o termo desenvolvimentismo é comumente usado para
nomear tanto um fenômeno da esfera do pensamento como um conjunto de políticas
econômicas concatenadas entre si. No campo da história, trata-se de uma política
econômica efetivamente praticada por governos em determinado tempo e lugar. Por
certo, o conceito de desenvolvimentismo desde cedo apareceu também como
pensamento ou ideologia para sugerir ou justificar determinado projeto de mudança nas
diretrizes econômicas. Desse modo, o desenvolvimentismo aparece na literatura tanto
para referir-se a um fenômeno da esfera do pensamento (ideologia ou teorias) como
para nomear práticas históricas de política econômica, estas geralmente associadas a um
determinado ―Estado desenvolvimentista‖.
Portanto, a conceituação definitiva do termo não é uma tarefa fácil, visto que se
trata de um conceito de largo uso entre os economistas, os historiadores, os cientistas
políticos, os governos e a grande mídia que o incorpora e o reproduz sempre numa
perspectiva ideológica. Contudo, tal como vemos, a precisa definição do termo está
associada a processos ideológicos e históricos. Ou seja, não se pode falar em
desenvolvimento sem falar em exploração do trabalho, em apropriação privada das
riquezas produzidas socialmente, em estado capitalista e de classes sociais.
Ao longo da história, o termo desenvolvimentista remonta a meados do século
XIX. No entanto, o conceito ganha notoriedade somente a partir da grande crise de
1929. No Brasil, desde a chegada de Getúlio Vargas (1930) à Presidência e do Estado
Novo (1937) por ele decretado, intensificam-se os debates acerca da problemática do
desenvolvimento. Entretanto, o pensamento econômico teórico só se consolidou nas
décadas de 1950 e 1960. Para tanto, foi fundamental a criação da Comissão Econômica
para a América Latina - CEPAL61
e sua capacidade para catalisar e difundir trabalhos
61
A CEPAL (fundada em 1948) era uma instituição ligada a Organização das Nações Unidas - ONU. Não
era anticapitalista, mas também não era algo estritamente vinculado a hegemonia dos EUA, como o eram,
por exemplo, a Organização do Estados Americanos – OEA, entre outras, fundada no mesmo ano. A
127
clássicos de análise e interpretação socioeconômica do continente. Destacamos neste
grupo o argentino Raul Prebisch e o expoente brasileiro Celso Furtado62
.
Em artigo intitulado ―Desenvolvimentismo: a construção do conceito”, Fonseca
(2014), diz que entende por desenvolvimentismo,
a política econômica formulada e/ou executada, de forma deliberada, por
governos (nacionais ou subnacionais) para, através do crescimento da
produção e da produtividade, sob a liderança do setor industrial, transformar a
sociedade com vistas a alcançar fins desejáveis, destacadamente a superação
de seus problemas econômicos e sociais, dentro dos marcos institucionais do
sistema capitalista (FONSECA, 2014, p. 60 - Itálicos meus).
Bresser-Pereira, na mesma linha, em um de seus momentos raros de
sinceridade63
, aponta que ―por desenvolvimentismo entendemos uma ideologia que
coloque como principal objetivo o desenvolvimento econômico [capitalista]‖ (2003, p.
206). Estas definições, se por um lado ajudam a entender a realidade, pois expressam os
aspectos fenomênicos, por outro, as velam, pois, escondem o que está por detrás da
ideologia do desenvolvimento. Afinal, desde o início do capitalismo até os dias de hoje,
quando se fala em desenvolvimento, fala-se em exploração capitalista da força de
trabalho.
Pelo exposto, vimos que alguns termos teóricos persistem, como parece ser o
caso do desenvolvimentismo, mesmo quando certas condições históricas nas quais
CEPAL foi uma verdadeira escola do pensamento econômico e social. Formulou, programou e
implementou as políticas desenvolvimentistas para a America Latina e o Brasil. Os cepalinos almejavam
o desenvolvimento do capitalismo em contra posição aos interesses dos EUA – se é que isso era possível!
Não queriam romper com o imperialismo visando o socialismo, queriam desenvolver o capitalismo, mas
precisavam romper com o imperialismo e realizar alguma reformas estruturais como por exemplo, a
Reforma Agrária. Hoje a CEPAL não é a mesma de outrora. Sobre a mudança do perfil cf. Oliveira
(2010) e principalmente Gonçalves (2012).
62 Celso Furtado (1920-2004) economista e grande pensador do Brasil. Ele pensou o nordeste em especial
e a ideia de uma reforma agrária. Na sua concepção o Brasil era dual; moderno e atrasado/tradicional. O
nordeste era o atraso, São Paulo o moderno. Este jeito de pensar a sociedade não era exclusividade da
CEPAL e, portanto, de Furtado, pois todo o pensamento sociológico se desenvolvia nesta perspectiva. Ou
seja, para essa linha teórica o Brasil não se desenvolvia porque a pose da terra era concentrada e não
havia financiamento para os camponeses - daí a necessidade da SUDENE. A conclusão era: há regiões
pobres porque o capitalismo não se desenvolveu o suficiente ainda.
Autores citados na bibliografia como Florestan Fernandes (1975), Ruy Mauro Marini (1973) e
Francisco de Oliveira (2003) entre outros, mais tarde criticariam isso dizendo que um não existe sem o
outro. Ou seja, o nordeste estava a serviço de São Paulo e vive-versa. Portanto, as desigualdades regionais
não são fruto da falta de desenvolvimento, mas sim do desenvolvimento capitalista.
63
Behring (2008) aponta outro momento de profunda honestidade do ideólogo: para Bresser-Pereira, ―o
Estado deve ser democrático, já que as classes dominantes não necessitam do uso da força para se
apropriar de uma parte considerável do excedente social, e a democracia deve existir como meio de
acesso ao poder político, bem como a divisão desse mesmo poder pelas classes dirigentes‖ (BEHRING,
2008, p. 174).
128
apareceram tenham se alterado -, o que não é o caso da condição do capitalismo
dependente brasileiro. Decerto, para compreender o conteúdo, a implantação e as
ambiguidades da ideologia desenvolvimentista, é preciso voltar às origens. Mas, afinal,
quais foram as diferentes fases do desenvolvimentismo no Brasil?
De acordo com Potyara Pereira (2012), há quatro fases da ideologia
desenvolvimentista no Brasil: a primeira, o desenvolvimento clássico da Era Vargas
(1930-1954). De acordo com a autora, o principal objetivo deste período clássico do
desenvolvimento no Brasil era o de se desenvolver pela via da industrialização. Porém,
essa ideia não tinha grandes preocupações com a diminuição da desigualdade social que
era e são gritantes em nossa sociedade. Juscelino Kubistchek seguiu a perspectiva
industrializante de Vargas, assim como, libera a entrada massiva do capital
internacional em nossa sociedade. Neste curto período, a política social era marginal e a
educação era voltada para formar os trabalhadores para as empresas nativas e
estrangeiras.
Na segunda fase do desenvolvimento, agora sob a ditadura civil-militar (1964-
1985), o objetivo principal era o de ―romper com o populismo de até então‖ e priorizar
o nacionalismo econômico e o gerenciamento logístico e técnico-burocrático do
progresso. O lema era ―ordem e progresso‖. A política social era utilizada como
compensação ao cerceamento dos direitos civis e políticos, o que, aliás, é uma regra em
nosso país64
. O esgotamento do projeto desenvolvimentista sob a ditadura civil-militar,
imposto pelo esgotamento do modelo de acumulação capitalista fordista/keynesiano
(internamente expressa na crise da dívida externa no início da década de 1980 e pela
inflação ao longo de toda década e início dos anos 1990), não tornou o País órfão de um
―novo modelo‖ econômico e social. Pelo contrário, posto que desde o início dos anos
1990, com a eleição de Collor (1989-1992) o modelo neoliberal foi sendo implementado
no Brasil.
Já na terceira fase, do desenvolvimento sob o neoliberalismo (1989-2002), o
objetivo deste desenvolvimento era reduzir o Estado – mínimo para o social e máximo
para o capital e o mercado. Neste período há uma responsabilização dos pobres por sua
condição de pobreza. Daí, a ética da autoproteção social.
64
Sobre o descompasso dos direitos civis, econômicos e políticos no Brasil, cf. COUTINHO, Carlos
Nelson. Notas Sobre Cidadania e Modernidade. In. Contra a Corrente: Ensaios sobre democracia e
socialismo. São Paulo: Cortez, 2000.
129
E, por fim, em sua quarta fase, a do desenvolvimento sob os governos petistas
(2003-2016), o objetivo principal do desenvolvimento era promover, segundo a diretriz
lulista, a partir da intervenção do Estado, o desenvolvimento econômico com inclusão
social.
A breve sistematização histórica assinala que o auge do desenvolvimentismo
que ocorreu nos longínquos anos 1950, 1960 e 1970. Neste sentido, o Brasil realizou
seu processo de industrialização pesada a partir do Plano de Metas, procurando imitar o
padrão de industrialização da II Revolução Industrial, o que foi possível entre os anos
1950-60 em função do processo de internacionalização do capital produtivo, via a
expansão das empresas transnacionais dos EUA e da Europa (SICSU; MICHEL;
PAULA, 2005). Nestes anos, portanto, o processo de constituição das grandes empresas
e do parque industrial brasileiro se consolida. Assim como, a entrada em massa do
capital financeiro através das multinacionais. Isso tudo sob a equivocada ideia de
superar o ―subdesenvolvimento‖ a partir das reformas democráticas burguesas.
Sob a ditadura civil-militar aprofundou-se a internacionalização da economia
brasileira e num curto período de crescimento, o país pode experimentar o que ficou
conhecido como o ―milagre brasileiro‖ dos primeiros anos de 1970. Como sabemos,
milagres não existem e menos ainda em economia. Apesar de não termos o Plano
Marshall - como o que existiu durante a reconstrução da Europa pós Segunda Guerra -
que possibilitasse um desenvolvimento acelerado com algumas concessões à classe
trabalhadora, aproveitando-se de conjunturas favoráveis, o Brasil (leia-se os capitalistas)
pôde crescer a uma taxa média de 7% ao ano até a primeira metade daqueles anos.
Dessa maneira, até aproximadamente 1974, o país cresceu mais de 10% ao ano sem, no
entanto, diminuir a vulnerabilidade a choques externos, como se viu na crise do petróleo
de 1973 (IBGE, 2003). A estratégia de ―Ordem e Progresso‖, ou seja, de crescimento
com endividamento externo e com repressão interna seletiva, seguida por quase duas
décadas, baseava-se, por um lado, no potencial de exportações e nas reservas
acumuladas. Por outro lado, caracterizou-se pela crescente participação do Estado na
economia e pela ampliação das atribuições do executivo em detrimento dos demais
poderes e canais de representação política.
Com a crise estrutural do capital da segunda metade dos anos 1970, o projeto
nacional-desenvolvimentista deparou-se com impasses estruturais que comprometeram
a continuidade do desenvolvimento capitalista no país. Conhecida como a ―década
perdida‖ sob o ponto de vista do crescimento econômico capitalista, os anos 1980 foram
130
riquíssimos para o conjunto dos trabalhadores no Brasil do ponto de vista das lutas
sociais e da constituição de organizações representativas da classe. São nesses anos que
irá surgir o PT, a CUT e o MST.
Sob o neoliberalismo dos anos 1990, nenhum país da América Latina logrou
simultaneamente crescimento econômico com equidade social (Sicsú, Michel e Paula -
2005). De acordo com Katz (2009), a América Latina suportou sob o neoliberalismo um
abismo de desigualdades sociais, superior ao de qualquer outra zona do planeta. A
diferença que separa os 10% mais ricos dos 10% mais pobres alcança 157 vezes na
Bolívia, 57 vezes no Brasil, 76 vezes no Paraguai, 67 vezes na Colômbia, 46 vezes no
Equador e 39 vezes no Chile. O caso brasileiro é mais significativo pela dimensão e
pelo poderio econômico do país. Ali, diz Katz (2009, p. 8), ―os 10% mais ricos possuem
quase 75% da riqueza total, enquanto os 90% mais pobres ficam somente com 25%‖.
Neste último decênio do século XX vivemos a segunda e consecutiva ―década
perdida‖, porém, desta vez a tragédia neoliberal fez-se presente para muito além do
ponto de vista econômico. Ou seja, a ideologia neoliberal manifestou-se do ponto de
vista social, político, ideológico e cultural. Conclui-se, portanto, que a ideologia do
―desenvolvimento‖ ganha novamente forças sob o lulismo por estar também baseado no
fato do país ter aumentado suas taxas de crescimento (se comparados ao pífio
desempenho ao longo dos anos 1990), no mesmo passo em que foram ocorrendo
pequenas melhoras em alguns indicadores sociais, principalmente os relacionados à
pobreza extrema.
Para Castelo (2012) é nessa conjuntura que emerge o neodesenvolvimentismo,
caracterizado como uma estratégia de desenvolvimento alternativo aos modelos em
vigência na América do Sul, cujo principal objetivo era delinear um projeto nacional de
crescimento econômico combinado com uma melhora substancial nos padrões
distributivos do país. Nessa direção, sustenta Alves (2014, p.131) que, ―o projeto
político alternativo à ortodoxia neoliberal era o neodesenvolvimentismo, afirmação
periférica do reformismo socialdemocrata, que atribuía à parceria do Estado com o
mercado, o papel de indutor da economia capitalista no Brasil‖. Ademais, para Alves, o
neodesenvolvimentismo da década de 2000 foi vitorioso, pois soube conjugar e
aproveitar, por um lado, a valorização das commodities e, por outro, a virtu do lulismo,
que soube dar uma nova direção política à dinâmica de acumulação do capital no país
por meio do aumento significativo dos gastos públicos. Para esse autor, ferrenho
131
defensor do governo Lula, isso constituiu um novo padrão de desenvolvimento
capitalista no Brasil.
De acordo com Sampaio Jr. (2012) o ―neodesenvolvimentismo‖ surge como
uma aspiração intelectual e ideológica do governo Lula e de seus apologistas. Calçado
na retomada do crescimento econômico, na valorização do poder de compra do salário,
na crescente distribuição da renda pessoal, no endividamento das famílias e no ―mito‖
da relativa imunidade do país à crise mundial, ―Lula colocou essa aspiração no centro
de sua gestão. Mas ela não ultrapassou as fronteiras da ‗província‘ e, mesmo no seu
interior, circunscreveu-se a pequenos círculos acadêmicos‖ (SAMPAIO JR., 2012, p.
678). Portanto, os defensores do desenvolvimentismo, ―apostam em uma estratégia de
desenvolvimento que compatibilize altas taxas de crescimento econômico com a
equidade social [...] embora reconheçam a existência de similaridades entre as políticas
econômicas neoliberais e neodesenvolvimentistas‖ (CASTELO, 2012, p. 625).
Naturalmente que todo esse processo de avanços e recuos da ideologia
desenvolvimentista, se insere num quadro de fortes e intensas lutas sociais de classes.
Do mesmo modo, em sociedade de capitalismo dependente com uma história de crises
intermináveis, como a brasileira, não será difícil perceber em sua totalidade, que a
ideologia do desenvolvimento está fracassada. Portanto, o desenvolvimentismo não foi
e não é um caminho para a emancipação humana, mas apenas a forma em que a
valorização do valor se desenvolveu historicamente na periferia do sistema. Que dela
um dia se tenha tirado a poesia das revoluções nos países de capitalismo dependente,
apenas reforça que a ideologia dominante de uma época é a ideologia da classe
economicamente dominante. Ademais, o que um dia foi produzido pelo
desenvolvimento desigual e combinado, como sabemos, não ultrapassou os limites
ornamentais da ideologia burguesa.
Como observa corretamente Sampaio Jr. (2012), iniciado no Brasil em 1964 e
encerrado no Chile em 1973, o ciclo latino-americano de golpes militares que instauram
ditaduras do grande capital determina o desfecho do processo de revolução burguesa no
continente como uma contrarrevolução permanente. O regime do capital consolida-se na
América Latina como um capitalismo dependente. Apoiados pelo império norte-
americano, os setores pragmáticos interromperam violentamente o processo de reformas
estruturais cristalizando, definitivamente, a dupla articulação dependência externa e
segregação social — como alicerce fundamental da acumulação de capital na região. E
conclui, ―a contrarrevolução jogou por terra os sonhos desenvolvimentistas. O regime
132
burguês sedimentou-se como uma sociedade mercantil particularmente antissocial,
antinacional e antidemocrática‖ (SAMPAIO Jr. 2012, p. 676).
Por fim, é mister apontar que ao longo da história do desenvolvimentismo na
América Latina e no Brasil, não somente as classes dominantes com seus genuínos
representantes políticos levantaram a bandeira desenvolvimentista. Pois,
peremptoriamente, alguns governos que podem ser situados no campo progressistas
adotaram verdadeira esquizofrenia ao proferir um discurso político de esquerda e, ao
mesmo tempo, abraçar uma política econômica regida pelo capital financeiro
internacional - dependente da exportação de commodities - e sem criar bases de
sustentabilidade para um verdadeiro desenvolvimento social.
A seguir, trataremos mais detalhadamente o que foi a ideologia do ―novo‖
desenvolvimentismo destes primeiros anos do século XXI no Brasil.
3. 3 A insustentável apologia (teórica e prática) do “novo desenvolvimentismo”
Neste item, teremos de assumir o risco de oferecer em poucas linhas um quadro
que é na pena dos autores desenvolvimentistas - e com os quais propomo-nos a dialogar
-, algo exposto extensamente, de maneira complexa, meticulosa e detalhada.
No Brasil, maior economia política da América Latina, o debate em torno do
desenvolvimentismo foi intenso. Principalmente nas camadas mais intelectualizadas
situadas no espectro político de centro-esquerda, mas, também nos setores mais
organizados e representativos do conjunto dos trabalhadores. Desde 2003, os
indicadores econômicos do Brasil começaram a melhorar, pelo menos aparentemente,
provocando certo desconcerto entre aqueles que previam um eclipse rápido das políticas
econômicas adotadas por Lula e sua equipe. O crescimento das reservas internacionais,
a redução da pobreza extrema, o aumento do crédito e, em decorrência deste o consumo,
a política externa e, por fim, certa melhora da posição externa do Brasil, surpreenderam
muitos analistas e torcedores contrários ao novo governo. Este resultado, assim como na
Argentina, obedeceu a uma combinação de condições externas favoráveis - baixa taxa
de juros, afluência de capital etc., - e políticas internas de sustentação de demanda.
Porém, de acordo com Katz (2016, p. 204), ―uma vez concluído o ciclo
ascendente, em ambos os países afloram as mesmas contradições de modelos que
estimulam a demanda sem remover os obstáculos estruturais ao desenvolvimento‖. Mas
não nos adiantemos na avaliação crítica.
133
Data do segundo mandato do governo Lula (2007-2010) o otimismo sobre os
rumos do desenvolvimento capitalista no Brasil, fruto principalmente do desgaste do
neoliberalismo. Entretanto, já desde 2004, o termo desenvolvimento estava baseado no
fato do país ter aumentado suas taxas de crescimento no mesmo passo em que houve a
melhora (superficial) de alguns indicadores sociais, principalmente os relacionados à
pobreza extrema. Pretendia-se com o novo governo, para além da liderança regional do
país, transformar o Brasil em ―potência emergente‖, ainda que nos marcos da
globalização neoliberal.
Se se preferir, para efeito didático, unicamente, pode-se dividir o falacioso
período neodesenvolvimentista no Brasil em três ciclos. O primeiro ciclo de 2003 a
2006; o segundo de 2007 a 2010; e o terceiro, sob o governo Dilma, de 2011 a 2014
(ALVES, 2014); os dois primeiros ciclos ocorreram sob os mandatos de Lula. No
entanto, foi a partir do segundo governo Lula que se tornou claro e mais evidente a
perspectiva de ―novo‖ desenvolvimento capitalista no país.
Naturalmente que a ideologia neodesenvolvimentista foi um processo e como
nos outros casos complexo e contraditório. O precursor da ideologia ―novo-
desenvolvimentista65
‖ sob o lulismo, por mais paradoxal que possa parecer, foi Luiz
Carlos Bresser-Pereira66
em artigo publicado na Folha de São Paulo em 19 de setembro
65
O retorno a um ―novo desenvolvimentismo‖, ou se os governos atuais da América Latina podem ser
assim denominados, vem sendo objeto de discussão entre professores, dirigentes sociais, pesquisadores da
área de economia, história, filosofia, ciência política, Serviço Social etc., fato que corrobora a necessidade
da precisão conceitual, como bem ilustra o debate brasileiro. Veja-se que são muitos os autores
desenvolvimentistas: Bresser-Pereira, 2004, 2006, 2010; Sicsú et alii, 2005; Paula, 2005; Paulani, in
Sicsú et alii, 2005; Paulani e Pato, in Paula, 2005; Paulani in Arestis, P. e Saad-Filho, 2007; Belluzzo,
2009; Novy, 2009a, 2009b; Fonseca e Cunha, 2010; Morais e Saad-Filho (2011); Erber, 2011; Herrlein
Jr., 2011; Carneiro, 2012; Bastos, 2012; Gonçalves, 2012; Bielschowsky, 2012; Araújo e Gala, 2012;
Oreiro, 2012; Mollo e Fonseca, 2013; Paulani, 2013; Armando Boito Jr., 2012; Sader (2010).
66
O termo ―novo-desenvolvimentismo‖, denominando um conjunto de políticas econômicas alternativas
às políticas neoliberais (especialmente pós-Consenso de Washington), foi introduzido por Bresser-
Pereira, que o utilizou no capítulo 20 de seu livro Desenvolvimento e crise no Brasil, em sua quinta
edição revisada (Bresser-Pereira, 2003). Segundo esse autor, a denominação lhe foi sugerida por Yoshiaki
Nakano em 2003 (Bresser-Pereira, 2006, p. 9), tendo por base argumentos desenvolvidos em Bresser-
Pereira (2001). A denominação passou a ser mais difundida a partir de 2005, quando da publicação do
livro Novo-Desenvolvimentismo, uma coletânea de artigos organizada por Sicsú, Paula e Michel (2005).
Luiz Carlos Bresser-Pereira, além de ser o mais otimista foi quem produziu a maior parte dos trabalhos
sobre o novo desenvolvimentismo. Sob o lulismo, produziu uma serie de artigos defendendo que
vivíamos um novo período de desenvolvimento. Dentre eles destacam-se: Proposta de Desenvolvimento
para o Brasil (2004 e 2005) e Estratégia Nacional e Desenvolvimento (2006). O novo
desenvolvimentismo e a ortodoxia convencional (Bresser-Pereira, 2006); O Brasil e o novo
desenvolvimentismo (Bresser-Pereira, 2010); Do antigo ao novo desenvolvimentismo na América
Latina (Bresser-Pereira, 2010); Macroeconomia estruturalista do desenvolvimento (Bresser-Pereira,
2010).
Para não esquecer, é importante lembramos e assim deixar registrado que Bresser Pereira foi
Ministro da Fazenda por um ano (1987) no governo de Sarney. Foi Ministro da Reforma e da
134
de 2004. Mas, como se sabe, o ―novo desenvolvimentismo‖ tem raízes mais profundas e
são diversas. Decerto, a gama de economistas, principalmente, que defendem esta
perspectiva é bastante ampla e vai para além das fronteiras nacionais, conforme
apontam criticamente os argentinos Katz (2016) e Boron (2010) e os brasileiros
Gonçalves (2012), Sampaio Jr. (2012), Castelo (2013) entre outros.
Todos os autores desenvolvimentistas subsequentes ao ex-ministro de Fernando
Henrique Cardoso partem do diagnóstico que o Brasil até o ano de 2004 estava vivendo
uma longa e profunda crise: que a economia brasileira encontrava-se estagnada há vinte
e quatro anos, portanto, desde 1980 até 2004 e que esta grande crise, relacionava-se
diretamente com a crise da dívida e com a crise fiscal expressa em altas taxas de
inflação. Diante disso, os defensores do ―novo desenvolvimentismo‖ sustentam que o
consenso neoliberal e seus preceitos privatizantes não conseguiram resolver questões
centrais dos países periféricos.
No extenso trabalho organizado por Sicsú, Paula e Michel (2005), por um lado,
ou autores apontam que o ―novo desenvolvimentismo‖ significou um ponto de chegada
(uma espécie da síntese das principais ideias e avanços desenvolvimentistas dos
primeiros anos do governo Lula), por outro lado, também foi um ponto de partida para
selar aquilo que se pretendia ser o modelo econômico sob o lulismo. Os ideólogos
desenvolvimentistas buscam explorar em linhas gerais algo que possa compor uma
estratégia nacional de desenvolvimento alternativo ao projeto neoliberal e que
compatibilize crescimento sustentado com equidade social. Tal estratégia, os autores
denominam de ―novo-desenvolvimentismo‖.
Logo na introdução, dizem os organizadores que, se destacam no âmbito do
capitalismo central as formulações dos economistas norte-americanos neokeynesianos
Paul Davidson e Joseph Stiglitz. Na América Latina ressalta a visão cepalina neo-
estruturalista que, tomando como ponto de partida que a industrialização latino-
americana não fora suficiente para resolver os problemas de desigualdades sociais na
região, defende a adoção de uma estratégia de transformação produtiva com equidade
social que permita compatibilizar um crescimento econômico sustentável com uma
Administração do Estado de 1995-98 na era neoliberal de FHC. Era filiado ao PSDB até 2011 quando
saiu e se aproximou da Presidente Dilma. O ideólogo foi o principal responsável e grande líder da
Reforma da Gestão Pública de 1995/98, sob o governo de FHC no auge do neoliberalismo no país. À
época de FHC, seu texto base da reforma foi ―A Reforma do Estado para a Cidadania‖. Para uma critica
cf. BEHRING, Elaine (2008) citada na bibliografia.
Para o fundamentador teórico das contrarreformas neoliberais, a reforma da previdência do
governo Lula, lá em 2003, foi boa, pois, ―reformas orientadas para o mercado continuam aconselháveis‖
(BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 137).
135
melhor distribuição de renda. Identificamos ainda, que o ―projeto novo-
desenvolvimentista‖ (dos organizadores e da maioria dos signatários dos textos) não
objetiva pavimentar a estrada que poderia levar o Brasil a uma economia centralizada,
com um Estado forte e um mercado fraco. Também não objetiva construir o caminho
para a direção oposta, em que unicamente o mercado comanda a economia, com um
Estado fraco. Desse modo, os autores avaliam que o melhor caminho a seguir seria ―um
Estado forte que estimula o florescimento de um mercado forte‖.
Os adeptos do desenvolvimentismo consideram que algumas políticas e ações
são fundamentais para repor na agenda dos países da região os mecanismos de
distribuição dos recursos, de modo a enfrentar a questão da desigualdade. Em linhas
gerais, defendem o investimento em políticas sociais e educacionais como fatores
estratégicos no sentido da inclusão social, da melhoria na distribuição de renda e da
redução das desigualdades causadas pela globalização do mercado (Sicsú, Paula e
Michel, 2005).
A política econômica, na perspectiva novo-desenvolvimentista apresentada pelos
autores, relaciona-se à adoção de um conjunto de medidas que visa aumentar o nível de
demanda agregada para criar um ambiente estável que estimule os empresários a
realizar novos investimentos. Assim, o objetivo da política econômica deve ser amplo,
ou seja, deve estar voltada para a estabilidade macroeconômica. Além disso, postulam
que um projeto nacional novo-desenvolvimentista visa colocar os mercados nacionais
na condição de serem ligados aos mercados internacionais.
Em face desse diagnóstico, segundo o prógono do modelo lulista de
desenvolvimento, ―não haverá verdadeiro desenvolvimento para o Brasil enquanto duas
mudanças macroeconômicas fundamentais não ocorrerem: mudanças na política de
câmbio e na política da taxa de juros‖ (BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 137). O ex-
ministro de FHC destaca ainda, que é preciso pensar em um novo-desenvolvimentismo
que tenha, como uma de suas características, o pensamento em ―um grande projeto de
desenvolvimento nacional‖. Mas não fica somente nisso o ideólogo e sugere que,
o novo desenvolvimento deve ocorrer não apenas de alto para baixo, as
empresas do setor moderno absorvendo os novos contingentes de mão de obra
que chegam todos os anos no mercado de trabalho, mas também no próprio
nível dos pobres e excluídos. [...] As políticas universais de educação e saúde,
e as políticas quase universais de renda mínima têm, naturalmente, um papel
essencial. Elas são um mecanismo fundamental de habilitação dos pobres para
a sobrevivência em um mercado capitalista duro e implacável (BRESSER-
PEREIRA, 2004, p. 139).
136
Segundo Bresser-Pereira, (2004, p. 138) ―o desenvolvimento só é possível
quando o mercado e o Estado são fortes‖. Porém, defendem os autores do
―desenvolvimentismo‖ que o ―novo-desenvolvimentismo‖ sob o lulismo é uma
―oposição ao puro monetarismo liberal‖ e ―diferente, em vários aspectos, do velho
desenvolvimentismo‖ dos anos 1950.
Dando continuidade as formulações de 2004, Bresser-Pereira (2006), aponta que
o novo desenvolvimentismo é um ―terceiro discurso‖, entre o discurso populista e o da
ortodoxia convencional. Mas, analisemos mais de perto as ideias centrais de Bresser-
Pereira que ganharam bastante espaço sob o lulismo. De acordo com o ex-ministro de
FHC, o novo desenvolvimentismo,
é um conjunto de propostas de reformas institucionais e de políticas
econômicas, por meio das quais as nações de desenvolvimento médio buscam,
no início do século XXI, alcançar os países desenvolvidos. Como o antigo
desenvolvimentismo, não é uma teoria econômica: baseia-se principalmente na
macroeconomia keynesiana e na teoria econômica do desenvolvimento, mas é
uma estratégia nacional de desenvolvimento. É a maneira pela qual países
como o Brasil podem competir com êxito com os países ricos e, gradualmente,
alcançá-los... (BRESSER-PEREIRA, 2006, p. 12 - Itálicos meus).
Para o ideólogo, quando se fala em um ―Estado novo-desenvolvimentista, trata-
se de opô-lo a duas outras formas de Estado: por um lado, o Estado liberal e, por outro,
o antigo Estado desenvolvimentista ou nacional-desenvolvimentista‖ (BRESSER-
PEREIRA, 2012, p. 813). Ainda de acordo com Bresser-Pereira,
no plano das políticas públicas, os aspectos que definem o Estado novo-
desenvolvimentista são o papel estratégico do Estado, a prioridade dada ao
desenvolvimento econômico, uma taxa de câmbio competitiva, a
responsabilidade fiscal e o aumento da carga tributária para financiar os gastos
sociais. No plano político, o Estado novo-desenvolvimentista supõe a
formação de um pacto político ou coalizão de classes associando empresários,
a burocracia pública e a classe trabalhadora, coalizão esta que tem como
adversários os capitalistas rentistas, inclusive os proprietários de empresas e
concessões públicas monopolistas, os exportadores de commodities e os
interesses estrangeiros. O aumento dos gastos sociais é crucial para este
Estado, porque, no quadro da democracia, os eleitores exigem do Estado o
aumento de gastos em educação, saúde, assistência social e seguridade social
(BRESSER-PEREIRA 2012, p. 814 - Itálicos meus).
Portanto, a ―nova‖ ideologia desenvolvimentista ―leva em consideração políticas
desenvolvimentistas bem-sucedidas em países asiáticos – enriquecidos, em suma, por
uma macroeconomia estruturalista do desenvolvimento‖ (BRESSER-PEREIRA, 2012,
p. 814). Entretanto, além de suscitar fortes controvérsias tal caracterização do
neodesenvolvimentismo como um projeto econômico diferenciado do
desenvolvimentismo clássico e do neoliberalismo, de acordo com Katz,
137
é falho qualquer raciocínio que elogia o Sudeste Asiático por sua expansão,
culpando a América Latina por seu retrocesso [...] Se todos pudessem se
desenvolver seguindo a mesma norma de aproximação ao bem-estar,
desapareceriam as diferenças de competitividade na qual o sistema se assenta.
Nunca se apresenta um cenário virtuoso ao alcance de todos (KATZ, 2016, p.
168).
Não obstante, para os neodesenvolvimentistas, o mercado mundial é visto como
amplo espaço de liberdade para se conseguir as metas ambicionadas pelos integrantes;
ele já não representa o obstáculo para o desenvolvimento como a velha CEPAL
enfatizava. Neste sentido, ―é contra esse tipo de fantasia [diria ideologia] que reagia à
velha CEPAL dos anos 1950/60. Ela criticava essa ilusão de convergências, destacando
as polaridades entre o centro e a periferia geradas pelo próprio processo de acumulação
mundial‖ (KATZ, 2016, p. 172).
Na mesma linha crítica, segundo Boron (2010) Bresser-Pereira parece
desconhecer por completo, que o único país do mundo a sair do subdesenvolvimento e
chegar ao desenvolvimento foi a Coréia do Sul. Decerto, ―ninguém mais poderá repetir
a façanha porque as condições econômicas, sociais, políticas, militares e internacionais
que possibilitaram tal façanha desapareceram por completo devido ao avanço da
globalização‖ (BORON, 2010, p. 13). Portanto, essa é mais uma visão pessimista da
possibilidade de desenvolvimento na periferia do sistema.
Embora Bresser-Pereira tenha sido o precursor, como já demonstramos,
contudo, as ideias centrais e que ganharam maior notoriedade sobre o modelo ―Estado
novo-desenvolvimentista‖, segundo a terminologia de Bresser-Pereira, ou apenas ―novo
desenvolvimentista‖ como prefere Oliva (2010) ou, ainda, o ―social-
desenvolvimentismo‖ de Pochmann (2010) foram elaboradas a partir do ―consenso de
São Paulo67
‖. Esse modelo credita o baixo crescimento da economia brasileira dos fins
dos anos 1980 e toda a década de 1990, à regressão produtiva, ou seja, a um aumento
da participação dos setores menos dinâmicos e com menor intensidade tecnológica no
valor adicionado gerado na economia brasileira. Além disso, o processo neoliberal se
expressou de acordo com Pochmann (2010), na desindustrialização e na reprimarização
da pauta de exportações.
A tese de Aloízio Mercadante Oliva, defendida em 17/12/2010 na Unicamp, é a
de que, a evolução recente (2003-2013) da economia brasileira representa uma inflexão
histórica nas tendências estruturais de desigualdade no Brasil. Para o autor e ex-
ministro de Lula e Dilma, o governo Lula realizou um avanço sem precedentes no
67
Economistas, principalmente da UNICAMP em São Paulo.
138
equacionamento do que historicamente sempre foi o ―calcanhar de Aquiles‖ da
economia brasileira: a restrição externa. Segundo Oliva (2010, p. 9) ―pela primeira vez
avançamos na construção de uma verdadeira estabilidade econômica. Mas o aspecto
mais marcante do governo Lula foi a centralidade que ganharam as políticas de renda e
de inclusão social‖. Pois, ainda de acordo com Oliva, lá nos anos 1990, a ―focalização‖
nos ―mais pobres dentre os pobres‖, como estratégia fundamental de promoção da
justiça social, contrapôs-se, fortemente, aos avanços sociais de 1988. Assim, ―a política
social permaneceu tensionada entre a manutenção – ou retrocesso – daquelas conquistas
e a focalização como eixo básico da política social‖ (2010, p. 22). Poderíamos perguntar
ao senador; e o que exatamente foi a política social68
do governo lula?
Pois bem, além de defender que ―Lula vem moldando a história recente do país e
o seu futuro‖ (OLIVA, 2010, p. 11) o objetivo essencial da tese, segundo o próprio
autor é:
demonstrar que a soma de todos esses elementos iniciou um novo processo de
desenvolvimento que se distingue não apenas do que se convencionou chamar
de modelo neoliberal, mas também do antigo nacional-desenvolvimentismo.
Começou-se a gerar, de fato, no Brasil, o que denominamos aqui de ―Novo
Desenvolvimentismo‖, centrado, em sua primeira etapa, na distribuição de
renda, inclusão social e combate à pobreza (OLIVA, 2010, p. 9).
O ponto fulcral da tese de Oliva (2010, p.7) ―é o de que o Brasil, ao longo do
governo Lula, começou a construir um Novo Desenvolvimentismo69
, um novo padrão
de desenvolvimento substancialmente distinto tanto do neoliberalismo quanto do antigo
68
Para uma crítica cf. entre outros, os artigos de Potyara Pereira-Pereira, em Serviço Social & Sociedade.
(Neo)desenvolvimentismo & Política Social. São Paulo: N.112. Cortez (outubro a dezembro) 2012; E,
de Ivanete Boschetti, Políticas de desenvolvimento econômico e implicações para as políticas sociais.
In. SER Social. Brasília, v.15. (julho a dezembro) 2013; o artigo problematiza o lugar das políticas sociais
no chamado ―neodesenvolvimentismo‖ brasileiro e sustenta a tese de que o crescimento brasileiro está
longe de assegurar um novo padrão de desenvolvimento econômico e social.
69
Segundo Aloízio Mercadante Oliva, além dele, há outros autores que discutem o novo
desenvolvimentismo no Brasil. Entre os autores que têm feito contribuições relevantes ao debate teórico
sobre o novo desenvolvimentismo se destacam, entre outros: Luiz Carlos Bresser-Pereira (cf. ―O novo
desenvolvimentismo‖, artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, em 19.09.2004; ―Globalização e
Competição‖, Editora Elsevier, Rio de Janeiro, 2009; ―Macroeconomia estruturalista e o novo
desenvolvimentismo‖, artigo em parceria com Paulo Gala, publicado na Revista da CEPAL, nº 100,
Santiago, Chile, janeiro de 2010; ―O Brasil e o novo desenvolvimentismo‖, artigo escrito em agosto de
2010, a ser publicado na revista Nueva Sociedad); João Sicsú, Luiz Fernando de Paula e Renaut Michel,
org. (cf. ―Novo desenvolvimentismo – Um projeto nacional de crescimento com equidade‖, Editora
Manole-Barueri, Rio de Janeiro, 2005, e, dos mesmos autores, ―Porque um novo desenvolvimentismo?‖
artigo publicado inicialmente no Jornal dos Economistas nº 186, de janeiro de 2005, do qual uma versão
ampliada e modificada foi publicada na Revista Economia Política, volume 27, nº 4, outubro/dezembro de
2007); e, desde uma posição crítica, Rodrigo Castelo Branco (cf. ―O novo desenvolvimentismo e a
decadência ideológica do estruturalismo latino-americano‖, artigo publicado na revista Oikos, volume 8,
nº 1, Rio de Janeiro, 2009). Em Oliva (2010) nota de rodapé n° 8, p. 11.
139
nacional-desenvolvimentismo predominante no passado‖. Também nestes temas, as
formulações do ex-ministro do governo Dilma, são as mesmas dos já supracitados
Bresser-Pereira, Sicsú, Paula e Michel (2005).
Para Oliva,
a constituição do Novo Desenvolvimentismo no Brasil está ocorrendo dentro
dos limites políticos dados pelo Estado Democrático de Direito e suas
instituições. Mais do que isso: o Novo Desenvolvimentismo brasileiro tem
contribuído de modo importante para o aperfeiçoamento da democracia
brasileira. Com efeito, a eliminação progressiva da pobreza, principalmente da
pobreza extrema, a redução das desigualdades e a incorporação de milhões de
cidadãos ao mercado de trabalho e ao mercado de consumo significam,
também, construção de cidadania, maior representatividade do sistema político
e fortalecimento do Estado, não apenas em sua função de assegurar direitos e
prover serviços, mas também em seu papel primordial de constituir, a partir
dos interesses de toda a sociedade, um projeto de país que conduz o processo
de desenvolvimento em todas as suas formas. Em outras palavras, o esforço de
―desprivatização‖ e o consequente fortalecimento do Estado, bem como o
aperfeiçoamento do sistema democrático, caminham pari passu com a
ascensão econômica, social e política dos novos cidadãos (2010, p. 29/30).
Continua afirmando Oliva (2010), que à sólida estabilidade econômica e o social
como eixo estruturante do desenvolvimento, agregam-se outras características
marcantes. Entre elas, destaca o autor, a consolidação da democracia e de suas
instituições republicanas; a nova e dinâmica inserção internacional e o grande aumento
do protagonismo mundial do Brasil; a crescente incorporação da sustentabilidade
ambiental como vetor de desenvolvimento e os esforços dirigidos à construção de uma
sociedade do conhecimento que produza massa crítica de inovações, incorpore valor ao
processo produtivo e gere educação de qualidade para todos.
Em suma, diz Oliva (2010) que o Novo Desenvolvimentismo no Brasil é, assim,
―uma construção histórica coletiva que está sendo paulatinamente moldada por novas
forças políticas, inéditos cenários internos e externos e demandas sociais seculares; um
complexo processo em andamento que tem, ainda, a distinta marca pessoal da liderança
do presidente Lula‖ (OLIVA, 2010, p. 11). Para Oliva, nos períodos de
desenvolvimento clássico ou sob o neoliberalismo, ―a democracia não conseguiu ser
fortalecida‖ (2010, p. 28). Já sob o Lulismo, de acordo com o autor, ―a progressiva
superação da fragilidade estrutural de nossa democracia, é um expressivo e importante
avanço do Novo Desenvolvimentismo no Brasil‖ (OLIVA, 2010, p. 30). Portanto, para
o ex-ministro, a democracia havia sido fortalecida sob o lulismo! Ledo engano. Em
ditado popular, ‗nada como um dia após o outro‘! Definitivamente, a história é a melhor
140
professora. Vide o golpe político-jurídico e midiático (em prol das classes hegemônicas)
sofrido pela presidente indicada por Lula. Mas este é assunto para o último capítulo.
Por fim, das ideias centrais do Senador Aloízio Mercadante, destacam-se o
apego e o retorno frequente a Celso Furtado. Para Oliva70
(2010, p. 29) ―Furtado
assinalava que o subdesenvolvimento era um problema fundamentalmente político e
que não haveria desenvolvimento sem democracia‖.
Cabe destacar que a teoria do subdesenvolvimento não é uma teoria
evolucionista como nos alertou Oliveira (2003). O subdesenvolvimento, assim, não se
inscrevia numa cadeia de evolução que começa no mundo primitivo até alcançar, por
meio de estágios sucessivos, o pleno desenvolvimento. Pois, ―o termo
subdesenvolvimento não é neutro; ele revela pelo sufixo sub, que a formação periférica
assim constituída tinha lugar numa divisão internacional do trabalho capitalista,
portanto hierarquizada, sem o qual o próprio conceito não faria sentido‖ (OLIVEIRA,
2003, p. 128).
Marcio Pochmann é outro autor apologista do ―novo desenvolvimentismo‖
brasileiro. O professor da Unicamp foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada – IPEA entre 2007-2012, quando passou a se inserir mais sistematicamente
nesse debate. Desde então essa instituição vem produzindo diversos textos, estudos e
livros71
sobre os diversos problemas envolvidos com a temática do desenvolvimento no
país.
Sob a liderança do professor Pochmann, o desafio político para os
desenvolvimentistas era transformar o seu modelo de desenvolvimento em Política de
Estado. Para tanto, de acordo com o próprio Pochmann (2010,), será necessária uma
nova coalizão de classes em torno de um projeto de desenvolvimento nacional e
independente.
A tese central de Pochmann é a de que a partir do governo Lula,
o Brasil passou a demonstrar importantes sinais de transição do neoliberalismo
para o modelo social-desenvolvimentista. A identificação básica de que o
Estado faz parte das soluções dos problemas existentes não implicou
reproduzir os traços do velho modelo nacional-desenvolvimentista vigente
entre as décadas de 1930 e 1970. Pelo contrário, assistiu-se à reafirmação da
soberania nacional, com profunda reorientação na inserção internacional, seja
pela passagem da condição brasileira de país devedor para a de credor de
organismos multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional, seja pela
70
Sobre Furtado cf. nota de rodapé n° 62.
71
Neste caso, registre-se os 10 livros (15 volumes) produzidos até o momento no âmbito do projeto
―Eixos Estratégicos do Desenvolvimento Brasileiro‖.
141
formação de significativas reservas externas, seja pelo redirecionamento do
comércio externo e da cooperação técnica para o âmbito das relações Sul-Sul.
Dessa forma, as crises externas deixaram de expor a sociedade brasileira às
mesmas fragilidades e dificuldades impostas durante a vigência do modelo
neoliberal [...]. Com isso, houve a possibilidade de ampliação do gasto social
de 19% para 22% do PIB, com a inclusão de mais de um terço da população
brasileira em programas de garantia mensal de renda – e justamente a parcela
da população que se localiza entre os 20% mais pobres (POCHMANN, 2010,
p. 41).
Continua afirmando o autor que, ―as políticas do governo Lula têm provocado
transformações recentes na estrutura social brasileira, com sinais inequívocos de
ascensão social‖ (POCHMANN, 2010, p. 55).
Dois anos mais tarde o ex-diretor do IPEA publicou por esse órgão, em 25 de
setembro de 2012, um documento intitulado A Década Inclusiva (2001-2011):
desigualdade, pobreza e políticas de renda. Neste compendio o autor condensa e
sintetiza essa perspectiva e defende que, no período assinalado, o Brasil viveu mudanças
estruturais que vêm assegurando um novo modelo de desenvolvimento social72
,
sustentado nos seguintes elementos: crescimento econômico estável (taxa acumulada de
40,7% na década); queda na desigualdade social (queda do Índice de Gini de 0,067 p.p.
na década); redução da pobreza (queda de 57% na década) e crescimento da renda dos
mais pobres (renda per capita dos 10% mais ricos cresceu 16% enquanto a dos mais
pobres cresceu 91,2% no período). Tais indicadores seriam provocados pela geração de
emprego e renda; aumento do gasto social; ampliação da participação dos rendimentos
no produto interno bruto; valorização do salário mínimo e estabelecimento de políticas
sociais universais.
A diferença fundamental, segundo os autores (Sicsú, Paula e Michel, 2005),
entre o velho e o ―novo desenvolvimentismo‖ é que, o primeiro focava suas políticas
defensivas na balança comercial procurando tornar a economia menos dependente da
exportação de produtos primários, uma vez que a economia brasileira transitava de uma
economia agroexportadora para uma economia industrial; já o segundo, neste particular,
está basicamente preocupado a estabelecer critérios de controle da conta de capitais para
que o país possa ter trajetórias de crescimentos não abortados e que possa construir
políticas autônomas, rumo ao pleno emprego e a equidade social.
72
Esses dados são contestados cabalmente por Boschetti (2013) e outros. No próximo item retomaremos
os elementos críticos apresentados pela autora.
142
No entanto, como observou acertadamente Katz (2016, p. 167), ―essa idílica
interpretação desconhece que esses padrões [de desenvolvimento] se assentam na
exploração do trabalho73
‖. Assim, o capitalismo ―novo desenvolvimentista‖ no Brasil
reproduziu ao longo de aproximadamente uma década e meia, por seu caráter
dependente, a superexploração da força de trabalho que, ao lado da apropriação privada
das riquezas produzidas, é o traço ontogenético da miséria brasileira. Por isso, ―apesar
de o país ter criado aproximadamente 19 milhões de empregos formais na década de
2000, a maioria absoluta dos novos empregos nos últimos dez anos tem salários de até
um e meio salário mínimo‖ (ALVES, 2014, p. 135). Registre-se que somente em termos
muito genérico pode-se dizer que ―o país criou empregos‖. Pois, na verdade, em uma
sociedade rígida pelas leis do mercado (do capital), como é a brasileira, todo o sistema
econômico existe para gerar lucros aos capitalistas. Portanto, não é para garantir o bem
estar dos trabalhadores.
Ademais, como sugere próprio autor, o projeto neodesenvolvimentista no Brasil
não visa resgatar as promessas civilizatórias do período histórico de ascensão histórica
do capital, tal como anseiam, por exemplo, os ideólogos neokeynesianos de esquerda.
Ou seja, o neodesenvolvimentismo não é a restauração da socialdemocracia clássica
comprometido com um projeto civilizatório. Para o autor,
o novo projeto de desenvolvimento capitalista no Brasil busca apenas construir
um novo patamar de acumulação de capital que permita, ao mesmo tempo,
redistribuir renda, ampliar o mercado de consumo e instaurar suportes sociais
mínimos de existência para a classe trabalhadora pobre, aumentando o gasto
social do Estado nos limites do orçamento público comprometido com o
pagamento da dívida pública (ALVES, 2014, p. 136).
Nesta discussão, para Sicsú, Michel e Paula (2005), nenhum país se desenvolveu
ou se mantém desenvolvido sem um projeto claro que expresse o sentimento de nação.
Ou seja, o nacionalismo para eles é uma vertente necessária de um projeto de
desenvolvimento que atenda os interesses do capital e do trabalho. Pois, segundo
pensam, não há capitalismo forte sem um empresariado nacional forte ou, em outras
palavras, sem a consolidação de um ―núcleo endógeno‖ do desenvolvimento.
Visto mais de perto, contata-se que pelo menos em alguns aspectos eles são
honestos: dizem que querem capitalismo forte e que querem fortalecer as empresas.
Resulta daí toda a prioridade do governo Lula em tentar criar as ―campeãs nacionais‖.
Trata-se de empresas beneficiadas pelos recursos públicos por meio Estado,
73
Para Marini (2000), em plena sintonia com Marx (1867), trata-se da exploração da força de trabalho e
não do trabalho. Ao qual nos somamos.
143
principalmente, através dos recursos repassados do BNDS para o Programa de
Aceleração do Crescimento – PAC, que se dizia que iriam elevar e manter o nível de
crescimento do Brasil, beneficiar os mais pobres e no caso das empreiteiras, que iriam
preparar o terreno para receber a Copa do Mundo em 2014 e as olimpíadas em 2016.
Estamos nos reportando às empresas Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa, Queiroz
Galvão e Andrade Gutierrez (todas indiciadas e condenadas com seus executivos presos
pela operação Lava-Jato). Entre as frigoríficas destacam-se a JBS, dona da Friboi e da
Seara, e a BRF Foods - proprietária das marcas Sadia e Perdigão -, acusada pela
operação Carne Fraca de aliciarem fiscais agropecuários e assim conseguir produzir e
vender carne moída com papelão, além de por no mercado carne podre e mercadorias
vencidas.
Contudo, numa perspectiva racional e lógica, chega a ser difícil de entender
certos delírios teóricos e daí certas prioridades políticas. Pois, já é amplamente aceito,
tanto para autores situados no espectro da esquerda quanto aos liberais, que o capital
nos dias atuais, fundamentalmente a partir da globalização, não tem pátria, não tem
fronteiras e, portanto, não se pode dizer que são nacionais stricto sensu. Então, como
podem defender um fortalecimento das empresas nacionais, sendo que o capital é
internacionalizado? Como se fortalecer internamente reproduzindo todas as premissas
do capitalismo central? Enfim, eles se iludem, pois, não há mais espaço para novos
países no seleto grupo no âmbito do capitalismo central.
Percebe-se, portanto, que o objetivo dos autores com suas formulações
ideológicas e políticas era fornecer as bases teóricas para ampliação do capitalismo no
Brasil. Além disso, embora não o saibam, reproduzem o velho mantra das velhas classes
dominantes, pois, expõem minuciosamente a tese segundo a qual ―é impossível atingir o
objetivo da redução da desigualdade social sem crescimento a taxas elevadas e
continuadas‖. Mais direto impossível!
Os autores desenvolvimentistas ignoram que o capitalismo é o caminho mais
seguro para perpetuar o subdesenvolvimento, como sustenta Boron (2010). O autor
caracteriza o subdesenvolvimento como sendo sinônimo de dependência externa, de
vulnerabilidade diante da economia global, de adaptação à divisão internacional do
trabalho e de desequilíbrio na estrutura econômico-social. Desse modo, ―há uma
diferença radical entre crescimento e desenvolvimento econômico‖ (BORON, 2010,
p.12).
144
Como pá de cal, ainda, os autores desenvolvimentistas se colocam na defesa do
óbvio para qualquer político mediano no Brasil, que é a “defesa da redução da
desigualdade”. Sobre este tema, aliás, cabe destacar que no Brasil desconhecemos
qualquer registro de algum político se quer que fosse contra a redução da desigualdade.
Além disso, faz tempo que a própria ONU e mesmo os organismos internacionais mais
ligados ao capital financeiro como o BIRD e o FMI, estipulam metas e prazos para se
reduzir as desigualdades não apenas no Brasil, mais em toda a América Latina. Não
obstante, em termos de distribuição de renda continuamos como há séculos!
Assim sendo, numa primeira aproximação a ―nova‖ ideologia
desenvolvimentista, poderíamos dizer que na análise específica sobre o ―novo
desenvolvimentismo‖ no Brasil, bem como no diagnóstico se de fato o país se
desenvolveu e ocupou um lugar melhor ao sol, mesmo nos marcos do capitalismo
hegemônico - nestes primeiros anos do século XXI -, ainda estamos longe de responder
as questões primárias. Quais sejam: nos últimos anos ocorreu algum desenvolvimento
no Brasil? Se sim, para quem o país se desenvolveu? E, em que direção foi o dito novo
desenvolvimento?
Antes de apresentá-la em seus resultados, é preciso localizar o
desenvolvimentismo para qualificar a resposta. Partimos da premissa de que o tema do
desenvolvimento tem raízes estruturais e históricas que transcendem as fronteiras
nacionais. Portanto, para compreendê-lo, é preciso situá-lo no contexto e no processo de
consolidação do modo de produção capitalista que, pressionado por crises inerentes,
transitou, de 1930 (quando se inicia o modelo de industrialização) aos dias atuais. Estas
dinâmicas consolidaram, não sem resistência, por um lado, uma sociedade civil
burguesa e um Estado a ela correspondente, ou seja, um Estado de classe e
burocratizado: por outro, uma forma específica de capitalismo – o capitalismo
dependente.
Para Caio Prado Júnior, em afirmação bastante provocativa na sua obra clássica
―A revolução brasileira‖ de 1966, ―nunca se enriqueceu tanto no Brasil como nestes ‗50
anos de desenvolvimento em 5‘ do governo de Kubitschek, como também se
empobreceu tanto e tão rapidamente‖ (2000, p. 49). Desse modo, contestava-se grande
parte do pensamento vigente à época que propalava mudanças radicais na sociedade
com o intenso processo de industrialização e urbanização do período. Em função disso,
essencialmente, com as adaptações necessárias determinadas pelas contingências do
nosso tempo, somos o mesmo do passado; senão quantitativamente, pelo menos na
145
qualidade, embora em formas mais complexas. Isto é, na base, somos uma economia
fundada na produção de matérias-primas e gêneros alimentícios determinados nos
mercados internacionais.
Não se trata de negar ou de subestimar as mudanças que ocorrem na base do
modo de produção capitalista; mas, demonstrar que mesmo com toda complexidade do
sistema capitalista, certas premissas permanecem inalteradas. O que Caio Prado Jr. nos
demonstra, portanto, com suas teses sobre o Brasil é a importância de entender como
mesmo em meio a infinitas e complexas mudanças econômicas, sociais, políticas e
culturais, ainda perpassa à sociedade brasileira uma lógica voltada aos interesses do
capitalismo hegemônico no mundo. Cabe destacar que, numa sociedade de capitalismo
dependente como bem definiu Marini (2000) essa característica da economia nacional
coloca o país em unidade com o sistema capitalista mundial.
Em função disso, para Francisco de Oliveira em sua brilhante Crítica à razão
dualista de 1973, ―a história e o processo da economia brasileira podem ser entendidos,
de modo geral, como a expansão de uma economia capitalista, mas esta expansão não
repete nem reproduz ipsis litteris o modelo clássico dos países desenvolvidos, nem a
estrutura que é o seu resultado‖ (OLIVEIRA, 2003, p. 61). É numa tal linha de
pensamento que identificamos como as complexificações do capitalismo brasileiro
andam pari passu com as relações sociais consideradas atrasadas e de maior intensidade
de exploração do trabalho assalariado dos trabalhadores. Destarte, não há no Brasil um
conflito entre o que seriam setores dinâmicos e setores atrasados da economia. Ao
contrário, ambos se encontram ligados e se retroalimentam em diferentes formas, em
consonância com seu tempo histórico e o nível de desenvolvimento das forças
produtivas.
Pelo exposto, podemos dizer em resumo que: primeiramente, especialmente
Marcio Pochamann quando esteve à frente do IPEA e Aloízio Mercadante com sua tese
de doutorado e, além disso, as políticas que buscou implementar quando esteve a frente
de ministérios importantes (ministro-chefe da casa civil, da educação por duas vezes e
ministro da ciência, tecnologia e informação) durante o governo Dilma, colocaram-se
como um dos polos centrais da ideologia novo desenvolvimentista; e, segundo, que para
este bloco político ideológico novo desenvolvimentista ―o Brasil viveria uma etapa do
desenvolvimento capitalista inédita por conjugar crescimento econômico e justiça social
o que inauguraria um original padrão de acumulação no país, o social-
desenvolvimentismo‖ (CASTELO, 2012, p. 615).
146
Desta maneira, observa-se que ao final do Século XX o Brasil não conseguiu
atingir, simultaneamente, a estabilidade macroeconômica e retomar o desenvolvimento.
Apesar disso, em grande parte, é sobre essa agenda que as discussões sobre o ―novo
desenvolvimentismo‖ foram sendo realizadas na primeira década do Século XXI.
O próprio André Singer que foi um entusiasta do lulismo e da ideologia a ele
correspondente, diz que ―a explicação para o fracasso do desenvolvimentismo, está no
deslocamento da burguesia industrial, que a partir de 2012 começa gradualmente a sair
da coalizão produtivista e passa para a rentista‖ (SINGER, 2016, p. 44 – itálicos meus).
Como podemos ver, embora Singer reconheça o fracasso do modelo, ele
esperava que a burguesia industrial permanecesse sempre ao lado do governo ―dos
trabalhadores‖. Já em As contradições do lulismo: a que ponto chegamos? André Singer
(2016) defende a tese segundo a qual, embora o lulismo tenha colapsado (e o
impeachment de Dilma em 31 de agosto de 2016, foi o pá de cal no lulopetismo),
contudo, não falhou. Pois, segundo o autor, Lula diminuiu o desemprego, aumentou o
salário mínimo e em seu governo 50 milhões de pessoas foram atendidas pelo Estado.
Assim, para Singer,
o lulismo foi beneficiado pelo boom das commodities, o reformismo fraco dos
governos petistas, apesar de não romper de maneira radical com o padrão
estabelecido desde a Nova República, retomou a partir de 2003, de maneira
diluída, aspirações derrotadas em 1964. Consegui reduzir desigualdades,
sobretudo por meio da política de aumento do salário mínimo e de expansão
do emprego, mas também mediante a programas específicos, dos quais se
poderia destacar o Bolsa Família, o apoio à pequena agricultura, o subsídio à
moradia popular e a facilitação do acesso à universidade às camadas de baixa
renda (SINGER e LOUREIRO (Org.), 2016, p. 12 – itálicos originais).
Mas, continua argumentando o autor que ―sob a condução de Dilma, o lulismo
apostou numa coalizão de forças entre industriais e trabalhadores, que fracassou‖
(SINGER, 2016, p. 23). O autor demonstra aqui ter esquecido que a coalizão de forças
por ora criticada, galopeou firme e segura desde os primeiros anos da ideologia lulista e
do seu suposto ―novo desenvolvimentismo‖. Além disso, o autor ignora que em alianças
de classes opostas e de partidos com origens diferentes, naturalmente há defecções,
como as que ocorreram em 2015 garantindo as bases para impeachment, afinal, boa
parte dos partidos de situação tornaram-se da noite para o dia os de oposição ao
governo.
Vejamos mais de perto o que disse o principal ideólogo do ―novo
desenvolvimentismo‖ acerca daquilo que seria a coalizão de forças que sustentaria o
modelo ideológico sob o lulismo. Diz Bresser-Pereira,
147
o novo desenvolvimentismo hoje, depende de uma grande e informal aliança
entre empresários do setor real, técnicos públicos e privados, e trabalhadores
– ou seja, dos detentores do capital e da capacidade empresarial, do
conhecimento técnico e organizacional, e da força de trabalho: os três
elementos essenciais do desenvolvimento. Uma nação só se constrói quando
existe acordo desse tipo (BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 143 – itálicos meus).
Portanto, o autor citado, não somente fornecera as bases teóricas da ideologia
econômica lulista, como também deu às pistas daquilo que deveria ser a aliança política
capaz de conduzir o modelo.
Feito o resgate, ainda que sumariamente das teses centrais em torno do
―neodesenvolvimentismo‖, a seguir, agora com elementos suficientes, nos deteremos
nas formulações críticas de algumas políticas tidas como positivas sob ―novo
desenvolvimentismo‖.
3. 4 Notas críticas sobre o suposto “novo desenvolvimentismo”
A velha e boa tradição marxista nos ensina que não se muda uma formação
social, seja ela qual for, quando não se parte de uma crítica radical das estruturas
econômicas, política, social e cultural. Radical significa, desde os clássicos gregos onde
se originou o termo e também no sentido aqui empregado, ir à raiz dos problemas, ou
seja, analisar determinados fatos, para além das suas aparências fenomênicas e,
imediatamente postas.
Já que ―revoluções não se fazem com leis‖ como diria Marx (2011, p. 863) e
menos ainda com projetos e modelos situados nos limítrofes do modo de produção
capitalista: observa-se, naturalmente, que refletir sobre a atual fase do capitalismo no
Brasil, caracterizada por alguns, como vimos, de ―novo desenvolvimentismo‖, implica,
necessariamente, considerar uma ampla gama de trabalhos críticos à nova etapa do
desenvolvimento do capitalismo brasileiro.
É importante que se diga desde já, que as formulações críticas sobre o modelo
adotado pelo lulismo ficaram a margem do debate (sobretudo no aspecto ideo-político)
em decorrência, por um lado, da hegemonia lulopetista – do lula e do PT - sobre o bloco
político-social e, por outro, da capitulação de parte significativa da intelectualidade -,
seja ela acadêmica ou orgânica. Evidentemente que a este fato, devemos procurar os
fundamentos na base econômica da sociedade e não na superestrutura, para evitar
julgamentos moralistas. Com este cuidado, após tratarmos do que foi o ―novo
desenvolvimentismo‖ e ter exposto as teses centrais dos ideólogos desenvolvimentistas,
148
a seguir, prosseguimos ancorado nas formulações críticas de vários intelectuais
orgânicos que ficaram a margem do bloco hegemônico no poder74
dos últimos anos.
Ocorreram mudanças no país, porém, estas não nos permitem dizer que
adentramos no pós-neoliberalismo como defendem os autores desenvolvimentistas e
menos ainda num ambiente de reformas. Afinal, ao longo de sua reprodução social, a
ideologia desenvolvimentista incansavelmente repôs as premissas neoliberais. Pois, os
elementos centrais do modo de produção capitalista continuam os mesmos na economia,
na política, na cultura e nas políticas sociais.
Afinal, já é amplamente aceito, até mesmo entre os mais ferrenhos defensores
dos governos petistas, que em linhas grais, a política econômica não diferenciou muito
em relação a do seu antecessor. Além disso, a não serem os ideólogos conservadores e
os reacionários, situados, portanto, no espectro da extrema direita brasileira, ninguém
mais sustenta que sob o lulismo enfrentou-se ou buscou-se a superação do modo de
produção capitalista. Ou seja: sob o ―novo desenvolvimentismo‖ o máximo que
ocorreu, mesmo para os mais otimistas com o governo, foi à busca de humanização do
capitalismo e/ou como diz Singer (2016) um reformismo fraco. Contudo, para Arcary
(2015) deu-se um reformismo quase sem reformas, para Marcelo Braz (2013) foi uma
espécie de neoliberalismo soft e para Gonçalves (2012, p. 665), o ―novo
desenvolvimentismo é mais um versão do liberalismo enraizado‖. Aliás, para este
autor, as políticas macroeconômicas no governo Lula correspondem ao avesso do
nacional desenvolvimentismo que se institui nos países da América Latina entre a
década de 1930-1980, sustentado por um projeto de desenvolvimento assentado no
trinômio industrialização substitutiva de importações, intervencionismo estatal e
nacionalismo (GONÇALVES, 2012, p. 651).
Em seu conjunto, certamente, o Brasil - apesar da grande propaganda ideológica
do bloco hegemônico no poder - após mais de uma década e meia transcorrida do século
XXI não deixou de ser desigual nem alterou, substancialmente, suas taxas de
desigualdade e a concentração de riqueza e renda continuam também inalterados, como
há séculos em nossa sociedade. Isso não significa dizer que não ocorreram mudanças.
Nos tempos de ―novo desenvolvimentismo‖, houve um redirecionamento do papel do
74
Entendemos como bloco hegemônico no poder a aliança de classes articulada pelo lulismo entre os
grandes empresários industriais, os grandes empreiteiros, os rentistas, os latifundiários etc., com o apoio
da grande mídia empresarial, do judiciário conservador e da classe política corrupta e oportunista,
representada pelos famosos partidos de aluguel (PP, PRB, PPS, PSC, PL, PSD entre outro).
149
Estado na relação com a classe empresarial, seja do ponto de vista dos altos
investimentos em infraestrutura (PAC), seja na intervenção direta do governo como
financiador de fusões e aquisições de empresas com vistas a garantir seu controle
acionário por empresários brasileiros, bem como a própria participação (em alguns
casos, com poder de veto) de membros do governo nos conselhos de direção destas
companhias. Para tal, o governo contou com dois instrumentos fundamentais: os fundos
de pensão das estatais, dirigidos por sindicalistas petistas – como já havia demonstrado
Chico de Oliveira – e o todo poderoso BNDES, cuja receita no ano passado chegou a
137 bilhões de reais. São exemplos disso, casos notórios como o da aquisição da Oi, a
maior empresa brasileira de telecomunicações, na qual o governo injetou 25 bilhões de
reais da Previ em favor de Sérgio Andrade (Andrade Gutierrez) e Carlos Jereissati
(Grupo La Fonte) e contra Daniel Dantas, que era patrocinado pelo Citibank e pela
Telecom Itália. Ou ainda, da criação da gigante multinacional BR Foods, graças a
aquisição da falida Sadia – que foi à bancarrota em consequência de péssimas jogadas
no mercado de derivativos – pela Perdigão, também financiada pela Previ, evitando que
a empresa catarinense fosse parar nas mãos de alguma grande multinacional estrangeira.
É claro que ocorreram pequenas mudanças no país, como mencionamos,
sobretudo no tema de combate da fome extrema, não obstante, nem mesmo esta chaga
foi extinta da nossa sociedade. Para o senso comum que é influenciado pelos meios de
comunicação de massas e para os membros defensores do desenvolvimentismo e do
lulismo, a fome teria terminado no Brasil. Isso não é verdade. Segundo dados do
IBGE75
, ainda existem 7,2 milhões de pessoas na extrema pobreza, sendo que 52
milhões de brasileiros se encontram em algum nível de insegurança alimentar.
Ademais, na essência constatam-se pioras em muitas áreas sociais. No que
confere as políticas sociais, estas ―compõem as estratégias de ‗desenvolvimento‘,
constituindo-se, portanto, em elementos indissociáveis das políticas macroeconômicas‖
(BOSCHETTI, 2013, p. 357). Desse modo, continua a autora, as políticas sociais
compõem, social e economicamente, as macropolíticas de desenvolvimento econômico.
Para compreender seus fundamentos, diretrizes e abrangência, é fundamental, portanto,
compreender sua relação com a política econômica (BOSCHETTI, 2013).
75
Dados do Jornal Valor Econômico, ―7,2 milhões de pessoas passam fome no Brasil, mostra o IBGE‖,
18/12/2014, http://www.valor.com.br/brasil/3829144/72-milhoes-de-pessoas-passam-fome-no-brasil-
mostra-ibge.
150
Dessa maneira, a autora toma por base os argumentos que sustentam a tese do
―desenvolvimento social‖, e afirma que não se pode deixar de questionar, ou pelo
menos problematizar, algumas de suas afirmações, que possuem relação direta com o
tipo de política social em curso no Brasil (BOSCHETTI, 2013).
Um dos primeiros argumentos dos desenvolvimentistas sustenta que o Brasil
vivencia uma tendência de crescimento estável. Contudo, uma análise detalhada dos
dados sobre a evolução do PIB e PIB per capita, nos mostra que, não só o crescimento é
instável, como está em rota decrescente. Ou seja, para Boschetti (2013, p. 361) ―o que
se verifica não é um crescimento regular, estável e capaz de sustentar um novo padrão
de acumulação e desenvolvimento‖. Conforme revelam os dados abaixo elaborados pela
autora:
Não se trata, portanto, para Boschetti (2013) de comparar o crescimento do PIB
brasileiro ao PIB dos países europeus, ou mesmo dos países do Brics, para argumentar
que as condições do Brasil podem ser melhores que outros países, mas sim, de constatar
que o crescimento brasileiro está longe de assegurar um novo padrão de
desenvolvimento econômico e social.
151
Para assegurar esse pífio crescimento e gerar superávit primário nas contas
públicas, o governo vem lançando mão, sucessivamente, de corte nos gastos públicos.
Nas áreas sociais, destacam-se, por exemplo, a questão da saúde e da educação. De
acordo com Boschetti (2013) o governo anunciou corte de R$ 50 bilhões em 2011 e R$
55 bilhões em 2012 (sendo R$ 5,47 bilhões da saúde e R$ 1,93 bilhão da educação).
Esses dados, como observa acertadamente a autora, retratam as prioridades
federais no investimento público. Enquanto 47,19% do orçamento é destinado ao
pagamento de juros e amortizações da dívida pública, as cinco políticas sociais que mais
recebem recurso (saúde, educação, previdência, assistência social e trabalho) ficam,
juntas, com apenas 29,9% do orçamento. Também nos mostra o distanciamento de
investimentos entre a política de previdência (aposentadorias e pensões) e as demais
políticas sociais, além de demonstrar que o investimento em assistência social
(incluindo o SUAS e o Programa Bolsa Família) assume prioridade maior que o
investimento em políticas de trabalho, segurança pública e outras.
No primeiro caso, por exemplo, além das filas quilométricas nas portas dos
hospitais e dos postos de saúde, constata-se que mesmo no auge do lulismo os leitos na
rede pública de saúde minguaram ano a ano. Pesquisas indicam que os hospitais
privados estão reservando aos clientes dos planos de saúde os leitos que antes eram
destinados aos doentes do Sistema Único de Saúde. De acordo com levantamento feito
pela Folha de São Paulo, entre 2000 e 2009, apesar do crescimento da população, a
quantidade de leitos do SUS -em hospitais públicos e em hospitais privados
conveniados ao governo- caiu 26%, segundo o Ministério da Saúde. A participação dos
hospitais privados nas internações feitas pelo SUS recuou de 68,8% para 55,5% entre
1995 e 2007, revelam dados do ministério. "A situação dos leitos do SUS hoje é crítica
e dramática" (FSP, 23/10/2009).
Sobre a educação, embora o número de analfabetos tenha diminuído no Brasil
nos últimos quinze anos, isso ocorreu de forma lenta e o analfabetismo funcional ainda
é um fantasma que atinge até mesmo estudantes que frequentam o ensino superior,
desfazendo o mito de que ele estaria intrinsecamente relacionado à baixa escolaridade.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Pnad, realizada em 2014 e
divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, em fins de 2015.
A taxa de analfabetismo entre brasileiros com 15 anos ou mais em 2014 foi estimada em
8,3% (13,2 milhões de pessoas). No ano de 2013, esse indicador havia sido de 8,5%
(13,3 milhões). O número de analfabetos é maior do que a população inteira da cidade
152
de São Paulo, cerca de 12 milhões de pessoas, segundo estimativa do IBGE (2015). Isso
demonstra que a ―propalada pátria educadora‖ não passou de ficou longe de se realizar.
Além disso, salta aos olhos os altos níveis de homicídios, tanto no campo como
na cidade (com uma diferença, nas cidades são assassinados pobres, jovens e negros -,
no campo são lideranças políticas), a carceragem em massa, a violência de trânsito e a
concentração de riqueza entre os mais ricos entre tantos outros exemplos negativos que
persistem. Porém, antes de se aproximar destas expressões da questão social, teremos de
analisar a base de tudo – a economia.
Sobre o feminicído, na última década com números disponíveis (2002-2012),
segundo dados do Instituto Avante Brasil (IVB, 201476
) o crescimento foi de 22.5%
no número absoluto de feminicídios, vez que em 2002 constatou-se 3.860 mortes e,
em 2012, 4.719. Portanto, para esta última década, a média de crescimento anual de
feminicídios é de 1,93%. Em 2012 foram 393 mortes por mês, 13 por dia, mais de 1
morte a cada duas horas.
Vejamos alguns exemplos concretos situados no chamado campo da economia
que são demonstrativos de que nossa situação não se alterou sob o novo
desenvolvimentismo. Antes de tudo, registre-se, a contra gosto do que propalavam os
defensores do desenvolvimentismo, que no período de 2003-2010, ―as taxas médias e
medianas de crescimento real do PIB total da América Latina são 4,7% e 4,4%,
respectivamente. No Brasil [sob ―novo desenvolvimentismo‖ o lulismo], a taxa média
anual de crescimento do PIB foi de 3,7% e a do PIB per capita de 2,7%‖
(GONÇALVES, 2012, p.13). Portanto, ficamos abaixo da média da latino-americana de
crescimento.
Segundo Salvador (2016b) uma das principais vigas da sustentação
macroeconômica sob a ideologia desenvolvimentista, tem sido a política fiscal, que no
lado das receitas governamentais promoveu uma forte isenção dos impostos dos mais
ricos e aumentou a regressividade do sistema tributário; e, no lado das despesas,
viabilizou a realização de sucessivos superávits primários, como sinalizador de
economia de recursos orçamentários para pagamento de juros da dívida pública. De
acordo com o autor, no primeiro mandatado da presidenta Dilma Rousseff somou-se a
política fiscal as desonerações tributárias, como forma de socorrer o capital frente à
crise em curso do sistema capitalista. Essas escolhas de políticas econômicas tiveram
76
https://www.jusbrasil.com.br/topicos/26806064/feminicidio. Consultado em julho de 2017.
153
efeitos deletérios sobre as políticas sociais. A viabilidade da política fiscal só foi
possível por meio de instrumentos de desvinculações de recursos orçamentários,
notadamente a Desvinculação de Recursos da União (DRU) sobre as fontes tributárias
exclusivas de financiamento da seguridade social. As desonerações tributárias foram
realizadas, basicamente, sobre as contribuições sociais.
Outro ponto a ser destacado é o caso do pagamento de juros da dívida externa e
interna, amortização e refinanciamento da dívida pública que colocam, anualmente, em
média, aproximadamente 30% do orçamento da União nas mãos de apenas 22 mil
famílias que detêm os títulos da dívida pública. Em 2012, segundo Fattorelli e Ávila
(2013), o valor destinado à dívida pública correspondeu a 47,19% de todo o orçamento
federal, o que equivalia a R$ 1.014.737.844.451,00, ou seja, mais de R$ 1 trilhão de
reais. Embora existam divergências nos números, os dados revelam que o serviço da
dívida compromete uma parcela importante dos orçamentos da seguridade social e
fiscal, seja na forma de juros e encargos da dívida como no pagamento de amortização
da dívida para o setor financeiro da economia. Mesmo no auge do lulismo e do
desenvolvimentismo, de acordo com Salvador e Teixeira,
no período de 2008 a 2012, excetuando o ano de 2011, os gastos com
pagamento de juros e amortização da dívida permaneceram acima de ¼ do
valor total do orçamento chegando, em 2012, a apropriar-se de 32,12% do
montante total de recursos do orçamento público, isto é, foram destinados
481,18 bilhões para o serviço da dívida, excetuando o refinanciamento [....
Nota-se que no período de 2008 a 2012, as despesas com amortização da
dívida cresceram quase cinco vezes acima dos gastos com pessoal e encargos
sociais. As despesas de pessoal e encargos sociais estão estacionadas em
relação ao Produto Interno Bruto (PIB), em 2008, equivaliam a 4,38%, e,
2012, 4,29% do PIB. (SALVADOR e TEIXEIRA, 2014, p. 4).
Seguindo com os exemplos da economia, destacam-se as distorções do sistema
tributário brasileiro que torna o país um dos mais desiguais e iníquos do mundo. De
acordo com Salvador (2012), os tributos, quando comparados à renda dos contribuintes,
podem ser regressivos, progressivos e proporcionais. Um tributo é regressivo à medida
que tem uma relação inversa com o nível de renda do contribuinte. A regressão ocorre
porque prejudica sistematicamente os contribuintes de menor poder aquisitivo. O
inverso ocorre quando o tributo é progressivo, pois aumenta a participação do
contribuinte à medida que cresce sua renda; isso significa mais progressividade e justiça
fiscal, pois arcam com maior ônus da tributação os cidadãos em condições mais
favoráveis de suportá-la, ou seja, aqueles que têm maior renda. Como se sabe pelos
amplos e profundos estudos já realizados, especialmente os citados de Salvador (2010 e
154
2012) a principal anomalia brasileira é a excessiva taxação sobre o consumo, que
penaliza, sobretudo, as classes sociais de baixa renda e menor poder aquisitivo. Os
impostos e as contribuições embutidos nos preços dos produtos e serviços, no Brasil,
correspondem em média a 35% da arrecadação nacional (Receita Federal 2015).
Portanto, aumentar os impostos no país é um anátema oportuno para quem deseja fugir
do debate sobre a taxação das grandes fortunas. Em 2015, de acordo com os dados da
Receita Federal, os 435 mil indivíduos no topo da remuneração representam apenas 1,6
de todos os contribuintes que declararam imposto de renda. Os dados demonstram a
escandalosa desigualdade no campo tributário. Os rendimentos dos 10% mais ricos
equivalem a 2,4 vezes os dos 50% mais pobres. Nota-se ainda, a baixa tributação das
camadas mais abastadas da sociedade. Os 0,1% mais ricos são taxados em apenas 9,1%
de sua renda bruta. Se ampliar um pouco mais, entre o 1% e os 10% mais ricos, a
cobrança chega em torno de 12% de imposto. E a essa elite abasta, contudo,
corresponde apenas 15% da massa de rendimentos que é isenta de tributos. A razão
desta brutal injustiça e desigualdade, como se sabe, é a elevada parcela de rendimentos
isentos, como os lucros e dividendos, e as alíquotas reduzidas que incidem sobre o
capital, como juros e aplicações financeiras, além, claro, de taxações sobre a renda e
fortuna. Portanto, quando se fala em reformas tributárias, não basta simplificar os
impostos ou até se cogitar a aumentar, implica, principalmente, cobrar dos mais ricos.
Sob o ―novo desenvolvimentismo‖, no entanto, jamais se cogitou com alguma seriedade
a possibilidade de corrigir essas anomalias (aqueles que detêm maior riqueza paga
menos impostos do que aqueles que possuem menor riqueza) e iniquidades. Optou-se
como se sabe, a administrar a crise do capital, administrar a barbárie e fortalecer o
capitalismo como sistema hegemônico.
Os dados da Receita Federal como analisam corretamente Salvador (2016) são
fartos para revelar uma casta de privilegiados no país, com elevados rendimentos e
riquezas que não são tributados inadequadamente e, muitas vezes, sequer sofrem
qualquer incidência de imposto de renda - IR. Constata-se, de acordo o estudo que,
há uma elevada concentração de renda, a partir dos rendimentos nas
declarações do IR. Os contribuintes com rendas acima de 40 SM representam
apenas 2,74% dos declarantes de IR, mas se apropriaram de 30,37% do
montante dos rendimentos informados à Receita Federal em 2013. É
escandalosa a concentração de riqueza no Brasil. Os dados da Receita Federal
revelam a gravidade da questão a ser enfrentada, pois do montante de R$ 5,8
trilhões de patrimônio informados ao Fisco (não se considera aqui a
sonegação), em 2013, 41,56% eram de propriedade de apenas 726.725
pessoas, com rendimentos acima de 40 salários mínimos. Isto é, 0,36% da
155
população brasileira detém um patrimônio equivalente a 45,54% do PIB do
Brasil e com baixíssima tributação (SALVADOR, 2016, p. 43)
Ainda segundo o estudo publicado pelo INESC (2016) os dados tributários não
mostram nenhuma alteração clara no perfil da distribuição de renda no Brasil nos
últimos quinze anos. A esse respeito, os índices de coeficientes de Gini não deixam
dúvidas: 0,696 em 2006, 0,698 em 2009 e 0,688 em 2012 – níveis altíssimos de
concentração com poucas variações. De acordo com os dados do Relatório de
Desenvolvimento Humano 2016, em relação a 2014, o Brasil estagnou no Índice de
Desenvolvimento Humano - IDH77
, no valor de 0,754, e no ranking mantém a posição
79 entre 188 países. Na América do Sul, o Brasil é o 5º país com maior IDH. Chile,
Argentina, Uruguai e Venezuela aparecem na frente. No caso da Argentina, Chile e
Uruguai, todos os indicadores são maiores que os brasileiros. Em relação à Venezuela, o
Brasil apresenta melhores números para esperança de vida ao nascer e anos esperados
de estudo, mas Renda Nacional Bruta (RNB) per capita e, a média de anos de estudo,
menores.
Além disso, a queda da desigualdade de renda reflete, em grande parte,
mudanças na redistribuição de rendimentos dentro da classe trabalhadora. A queda
incipiente da desigualdade de renda dentro da classe trabalhadora pode não ter sido
acompanhada sequer de mudanças marginais na distribuição funcional da renda –
trabalho versus capital (GONÇALVES, 2012, p. 28). Ao contrário do que dizia a
propaganda oficial, não houve alteração significativa no perfil da distribuição de renda
no Brasil na última década e meia. Além disso, tudo indica que o ciclo do ―novo
desenvolvimentismo‖ sem reformas foi curto, superficial e incapaz de produzir ganhos
significativos e permanentes. A renda continua concentrada no topo da escala, onde está
um pequeno grupo de abastados.
Certamente, uma das razões pela qual Marx se interessou pelas categorias da
economia política, era o fato destas representarem formas reais de existência, às quais
os indivíduos eram submetidos coativamente. Mas, além disso, a sua crítica não se
voltava para denunciar os problemas meramente econômicos, derivado de uma injusta
distribuição das riquezas produzidas socialmente, mas a uma crítica ao próprio modo de
existir que estas categorias impunham como reles imperativo da sobrevivência.
77
O Índice de Desenvolvimento Humano é um indicador que vai de zero a um. Quanto mais próximo de
um, maior o desenvolvimento humano. O índice mede o progresso de uma nação a partir de três
dimensões: renda, saúde e educação.
156
Consequentemente, a pretensão de apresentar e expor qualquer flutuação da política e
da ideologia, de acordo com Gramsci, ―como uma expressão imediata da infraestrutura
deve ser combatida, teoricamente, como um infantilismo primitivo, ou deve ser
combatida, praticamente, com o testemunho de Marx, escritor de obras políticas e
históricas concretas‖ (GRAMSCI, 2004, v.1. p. 238).
Se considerarmos todo o processo de reprodução (de desenvolvimento) social do
capitalismo entre nós, perceberemos, portanto, que há um paradoxo que põe em xeque
as teses desenvolvimentistas desde suas origens e mesmo sob o suposto ―novo
desenvolvimentismo‖ do século XXI. De acordo com Potyara-Pereira (2012, p. 746), ―o
governo Lula melhorou sim as condições sociais de muitos brasileiros, mas, ao mesmo
tempo, melhorou muito mais a remuneração do capital financeiro, industrial e do
agronegócio que operam no país‖. Em face dessa contradição, portanto, não há a menor
possibilidade de realização de um ―novo desenvolvimentismo‖ no Brasil. No fundo,
trata-se de tentar camuflar o continuísmo neoliberal em franco processo.
Na mesma linha crítica, de acordo com Gonçalves (2012b, p. 638) ―a
experiência de desenvolvimento econômico brasileiro durante o governo Lula expressa
um projeto que se pode denominar ‗desenvolvimento às avessas‘; ou seja, é ausência de
transformações estruturais que caracterizam os projetos desenvolvimentistas‖. No
fundo, em termos econômicos é uma volta ao período colonial e nos aspectos
ideológicos ao neoliberalismo, mas, em outras contingencias sociais e políticas. O
Brasil voltou à sua antiga condição clássica de produtor e exportador de bens primários
– vide o caso da prioridade dada ao agronegócio e as exportações de commodities. Em
função disso, sentencia taxativamente Gonçalves (2012b, p. 663) que ―o novo
desenvolvimentismo [de Lula], assim como o Consenso de Washington, a Nova Cepal e
o Pós-consenso de Washington, são versões do liberalismo enraizado‖.
Por conseguinte, o processo de continuação do capitalismo teve na pacificação
da luta de classes e no Estado, as referências de dominação, sejam elas vindas pelo
incentivo à produção ou pela conciliação para o aumento do salário. Além disso, nos
oito anos do governo Lula e nos mais de cinco de governo Dilma, o sistema bancário
brasileiro teve o ápice de ganhos, o agronegócio se converteu no modelo do
desenvolvimento agrícola brasileiro entre outras medidas nada satisfatórias para os
trabalhadores.
Noutras palavras: a orientação macro econômica foi a mesma de FHC, as
exigências do FMI e do BM foram cumpridas (como a lei de responsabilidade fiscal, o
157
pagamento da dívida externa e interna) a reforma previdenciária que FHC não
conseguiu fazer o PT a fez em 2003, as privatizações (agora chamadas de concessões)
continuaram nas estradas, nos portos, nos aeroportos e também a criminalização dos
movimentos sociais.
Cabe destacar também, que em agosto de 2010, faltando cinco meses para o
fim do seu mandato, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, reuniu-se com
empresários do Brasil e de El Salvador na sede da Federação das Indústrias do Estado
de São Paulo – FIESP e da Confederação Nacional das Indústrias - CNI, na capital
paulista. O país estava prestes a registrar um crescimento econômico de 7,5% e o
menor índice de desemprego em oito anos (6,7%). Na ocasião, em meio a euforia de
todos, Lula gabou-se dizendo que “todos ganharam muito dinheiro no meu governo”,
em função disso, vieram os aplausos da plateia. Lula ainda fez elogios a Antônio
Delfim Neto - ex-ministro da Fazenda do regime civil-militar - que o assistia na
plateia. “Antes, para mim, tudo era culpa do Delfim Neto, mas hoje, o reconheço e
admiro. É uma das pessoas mais extraordinárias que este país já teve. Em momentos
em que até o PT criticava nossa política econômica, Delfim escrevia artigos
extraordinários elogiando a mim e a nossa política, quando ele podia me esculhambar
e dizer que peão tinha que voltar a comer marmita no bandejão.” Disse ainda o então
Presidente, “eu duvido, que em algum momento da história do Brasil, houve um
presidente que consultou tanto os empresários como eu consultei, e que construiu
tantos instrumentos de participação dos empresários como eu construí com vocês”. Por
fim, arrancou risos da plateia quando disse: “já vim mais para a FIESP do que fui
para a CUT, porque, certamente, santo de casa não faz milagre78
‖, afirmou.
Delfin Netto que nos bons momentos do lulismo, oportunisticamente, esteve ao
lado de Lula - não sem o consentimento e agrado deste -, em artigo publicado na Folha
de São Paulo, referindo-se ao impeachment da ex-presidente Dilma, disse que
―podemos curtir mais um ano de luto: continuar a carpir pela perda de uma política
honesta, generosa, doentiamente voluntarista e inconformada com a aritmética e seguir
atribuindo-a a um ‗golpe‘! Ou podemos recuperar o senso de realidade e trabalhar para
que a correção de rumo se faça com justiça e razoabilidade‖ (FSP, 11 de Janeiro de
78
(UOL e Folha de São Paulo, 09 de agosto de 2010). In. http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2010/08/09/vim-mais-a-fiesp-do-que-fui-a-cut-diz-lula-a-empresarios-em-sp.htm. Acesso em
15/10/2016.
158
2017). Ainda, no mesmo texto, diz que o Brasil faliu por inépcia do poder executivo
(Dilma) e que a miopia ideológica atual impede de reconhecer esta realidade.
Definitivamente a história é a melhor professora. A mesma FIESP que aplaudia
Lula em agosto de 2010, menos de cinco anos depois, foi uma das primeiras entidade
civil da classe dominante, a anunciar o apoio formal ao pedido de impeachment da
presidente Dilma Rousseff que tramitava na Câmara dos Deputados. “Essa posição
oficial foi tomada devido ao momento em que nós chegamos. Se a situação continuar
como está, o custo será muito alto para a Nação brasileira”, disse o empresário Paulo
Skaf (PMDB), presidente da entidade, em entrevista coletiva. “O governo devia vir a
público pedir desculpas à população por estourar as contas. O Brasil está crescendo
menos 3,5% quando o mundo está crescendo 3% positivamente e os países emergentes
de 4% a 5%”, disse. O presidente da FIESP também citou a redução dos empregos
formais este ano como motivo para apoiar o impedimento de Dilma. ―A crise política é
causada pela total falta de confiança e de credibilidade do governo. O País está à
deriva. Não observamos atitudes por parte da presidente no sentido de solucionar a
crise e reduzir gastos.” Para justificar a decisão, a federação divulgou uma pesquisa
com 1.113 empresas paulistas entre os dias 09 a 15 de novembro. Segundo o
levantamento, o impedimento é defendido por 91% dos empresários. Apenas 5,9% se
disseram contra e, 3,1% não responderam aos questionamentos. A pesquisa também
aferiu que 85,4% das empresas apoiam a medida, enquanto 4,9% a rechaçam e 9,7%
não se posicionaram. Em outro item, 91,9% dos empresários defenderam que a FIESP
se posicionasse a respeito do processo de impedimento (O Estado de São Paulo,
15/12/2015).
Consequentemente somos forçados a recordar que o ―pato da FIESP‖ se
transformou em um dos maiores símbolos das manifestações a favor do impeachment
de Dilma. Contudo, não foi somente no aspecto econômico que o ―novo
desenvolvimentismo‖ falhou, sob o ponto de vista da classe trabalhadora. Note-se,
como observa corretamente Boschetti (2012), que o Brasil sediou o maior programa de
transferência de rendas da América Latina, o qual atendeu 26,4% das famílias
brasileiras, com um gasto de 0,47% do PIB, enquanto a dívida pública é de R$ 1,514
trilhão, o equivalente a 35,7% do PIB; já os juros da dívida pública consumiram em
2011, 5,72% do PIB. No orçamento geral da União de 2011, foram utilizados 45% dos
recursos do orçamento somente para pagamento dos juros da dívida.
159
Por outro lado, foram destinados apenas 4,07% para a Saúde, 2,99% para a
educação, 2,85% para a assistência social, conforme estudos da auditoria cidadã da
dívida. Destaquem-se os gastos da Assistência Social: aqui está o Programa Bolsa
Família79
que como podemos ver é barato (13 bilhões ao ano) e atinge 13 milhões de
famílias urbanas e rurais, portanto, dá voto (25 milhões) e mantém os políticos atuais.
Com base em outros indicadores, Fattorelli e Ávila (2014) têm feito, a partir da
―Auditoria Cidadã da Dívida‖, a comparação entre a destinação orçamentária, referente
à dívida pública, e a da Seguridade Social. A Auditoria Cidadã da Dívida mostra que,
apesar da diminuição da destinação orçamentária para o pagamento da dívida externa,
por ter sido acanhada, a mesma continua como protagonista no conjunto da destinação
geral do Orçamento da União. Os juros e amortizações da dívida aparecem, em 2014,
com 45,11% enquanto a Previdência contempla 21,76%, a Saúde 3,98% e a Assistência
Social 3,08%. Se novamente juntarmos nesse cálculo o conjunto das políticas sociais
que estão fora do Sistema de Seguridade Social, a Educação exibe parcos 3,73%, o
Transporte 0,56%, a Cultura 0,04% e a Habitação 0,00%. Isso desmonta o ―mito‖,
apontado por Behring (2012), da incolumidade brasileira aos efeitos da crise, sendo esta
uma estratégia dos organismos financeiros para que os países adotem suas imposições e
medidas.
Com dados um pouco diferentes, porém expressando a mesma desigualdade no
que se refere aos gastos públicos, Boschetti (2013) diz que o Projeto de Lei
Orçamentária Anual - PLOA do governo federal para 2012 agrava ainda mais a
tendência de 2011, e destina 47,19% do orçamento para pagamento dos juros e
amortização da dívida pública, conforme dados elaborados pela autora:
79 O Programa Bolsa Família - PBF é um programa de transferência direta de renda com
condicionalidades, que beneficia famílias em situação de pobreza (com renda mensal por pessoa de R$ 70
a R$ 140) e extrema pobreza (com renda mensal por pessoa de até R$ 70), de acordo com a Lei 10.836,
de 09 de janeiro de 2004 e o Decreto nº 5.209, de 17 de setembro de 2004. Disponível em:
http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/o_programa_bolsa_familia/o-que-e. Acesso em março de 2011.
160
De acordo com Boschetti (2013), esses dados retratam as prioridades federais no
investimento público. Enquanto 47,19% do orçamento são destinados ao pagamento de
juros e amortizações da dívida pública, as cinco políticas sociais que mais recebem
recurso (previdência, saúde, educação, assistência social e trabalho) ficam, juntas, com
apenas 29,9% do orçamento. É importante destacar, como aponta Salvador (2016) no
montante de juros e amortizações da dívida está incluído a rolagem de títulos da dívida
pública. Portanto, não se pode mecanicamente acreditar que num eventual não
pagamento sobrariam limpo para as políticas sociais, os 47,19%.
Antes de encerrarmos este capítulo, cabe ainda registrar algumas cenas da vida
cotidiana brasileira e, assim, pontuar alguns elementos críticos das expressões da
―questão social‖, ou, do social sob o ―novo desenvolvimentismo‖, como anunciado
linhas atrás.
Primeiro sobre a violência de trânsito: em editorial intitulado Falha na Direção
(FSP, 07 de julho de 2017), o jornal destaca que a violência e a mortalidade no trânsito
161
brasileiro são notórias, mas nem por isso é menos chocante observar em perspectiva as
estatísticas dessa triste realidade. Registraram-se no país em 2015, segundo estimativa
da Organização Mundial da Saúde, quase 47 mil mortes em acidentes de trânsito - 23,4
a cada 100 mil habitantes. Isso equivale, numa comparação recorrente que ilustra o
descalabro da cifra, à queda diária de um avião com 130 passageiros.
Naturalmente que toda essa violência é fruto das premissas e dos valores do
modo de produção capitalista e não, portanto, somente de responsabilidade de um
governo. Porém, não restam dúvidas que a política econômica adotada sob o ―novo
desenvolvimentismo‖ que privilegiou às grandes montadores e o transporte individual
em detrimento do coletivo, detém significativa responsabilidade sobre esta tragédia.
Segundo, o que diz respeito á violência em geral: de acordo com o Sistema de
Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, em 2014 houve 59.627
homicídios no Brasil – o que equivale a uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes
de 29,1. Este é o maior número de homicídios já registrado e consolida uma mudança
no nível desse indicador, que se distancia do patamar de 48 mil a 50 mil homicídios,
ocorridos entre 2004 e 2007, e dos 50 a 53 mil mortes, registradas entre 2008 a 2011
(IPEA, 2016, p. 6). Trata-se de uma situação gravíssima, ainda mais quando notamos
que mais de 10% dos homicídios do mundo acontecem em solo nacional.
Os dados revelam ainda que no Brasil, a morte violenta de jovens cresce em
marcha acelerada desde os anos 1980. Em 2014, 61 jovens entre 15 a 29 anos sofreram
homicídio para cada 100 mil jovens. Quando considerada apenas a população jovem
masculina, esse indicador chega a alcançar 270,3 mortes para cada 100 mil jovens. Os
indicadores também demonstram que a maior parcela das vítimas era composta por
indivíduos de baixa escolaridade, com no máximo sete anos de estudo. Além disso, no
que se refere à letalidade de afrodescendentes, houve aumento de 18,2% na taxa de
homicídio de negros entre 2004 e 2014.
Terceiro, no que diz respeito ao feminicídio: segundo dados do IPEA, houve
crescimento de 11,6% da taxa de homicídios entre 2004 e 2014, o que demonstra a
dificuldade da política pública para mitigar o problema. O crescimento desse indicador
levou alguns analistas a apontarem que a Lei Maria da Penha (LMP) e as políticas de
prevenção à violência doméstica institucionalizada desde 2006 não surtiram o efeito
esperado. Trata-se de uma crítica ingênua, em primeiro lugar, porque os homicídios de
mulheres decorrem não apenas de crimes relacionados à questão de gênero (para os
quais a LMP era orientada), mas também de crimes associados à violência geral na
162
sociedade que acomete homens e mulheres - e que não se confundem com feminicídios
(IPEA, 2016, p. 39).
Quarto, sobre a política de encarceramento em massa dos pobres: nos últimos 15
anos a detenção de homens aumentou 220% e de mulheres 567%, de acordo com os
dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciária - INFOPEN80
de 2014.
Já de acordo com o relatório anual da organização Human Rights Watch81
Brasil, o
sistema prisional brasileiro é precário. A chave para resolver o problema seria combater
a superlotação. A entidade classifica os presídios no Brasil como sendo um absoluto
desastre. É o prior dentre uma lista de análises de 90 países. Um dos fatores deste
desastre seria o aumento indiscriminado das prisões, 85% no período de 10 anos, de
2004 a 2014. Isso fez com o que a população carcerária neste período ultrapassasse a
cifra estratosférica de mais 622.200 presos. Ou seja, 67% a mais do que a capacidade
dos presídios brasileiros. Do total de presos, 42% são provisórios. Nesse ritmo, o Brasil
não vai conseguir construir presídios o suficiente para abrigar todos os presos: É
evidente que precisa mudar a política geral. Cabe destacar que neste período, sob o
―novo desenvolvimentismo‖, a média anual de crescimento do PIB, como apontado, foi
de 2,7% (GONÇALVES, 2012). Cabe aqui a seguinte questão: mesmo num período em
que a economia cresceu, ainda que pifiamente, aumentou-se nestas proporções o
número de presos, o que seria se não tivéssemos crescimento econômico? Isso explicita
que o problema é na política econômica e no modelo em geral de sociedade que esta o
problema e não nos indivíduos que rumam a este caminho. Sem falar na situação dos
presídios existes; é como se voltássemos à Idade Média, ou coisa pior; são celas
escuras, sem ventilação, absolutamente insalubres etc. como recuperar alguém nestas
condições?
Por isso, apesar de os programas sociais representarem um alívio para os
trabalhadores mais pobres da sociedade brasileira, suas condições de trabalho e de vida
continuam, em decorrência das opções dos governos petistas, muito ruins. Basta
sairmos às ruas e perguntar se é essa a situação que os trabalhadores almejam; podem
até reconhecer que melhorou, mas está longe de ser um mínimo ideal. Assim, a
ideologia neodesenvolvimentista atendeu a poderosos interesses do grande capital, seja
ele nativo ou estrangeiro e parte significativa das demandas dos mais pobres, em
80
http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal. Acesso em Fevereiro de 2017.
81
https://www.hrw.org/pt/americas/brasil. acessado em fevereiro de 2017.
163
situação de miserabilidade. Em função disso, por um lado, isso explica o porquê de
grande parte da classe dominante ―lutar‖ para que os pilares desse ―modelo‖ sejam
mantidos; por outro, o apoio dado ao lulismo (e ao seu modelo) e a sua candidata
escolhida por ele, uma ilustre desconhecida da classe trabalhadora, fosse eleita em 2010,
tem como objetivo claro manter a ideologia do novo desenvolvimentismo.
Isso tudo exalta, dentre outras coisas, a característica essencial da sociedade
brasileira: a de capitalismo dependente. A categoria capitalismo dependente, em textos
datados do mesmo ano, foi muito bem desenvolvida por Florestan Fernandes e Rui
Mauro Marini (1973). Pois, para ou autores, o capitalismo dependente combina elevada
concentração de riqueza e capital com desigualdade social, econômica e política, além
de definir claramente o caráter de nossa especificidade histórica. Em essência trata-se de
uma categoria que nos permite explicar o caráter ideológico da teoria da modernização
(do crescimento econômico etc.) e os limites da teoria da dependência com as
abordagens centro-periferia e o confronto entre nações, ao situar no núcleo explicativo a
relação de classes e no conflito de classes o sistema capitalista. Capitalismo dependente
expressa que não se trata de dualidade e, também, não é um confronto entre nações, mas
uma aliança e associação subordinadas da fração brasileira da burguesia com as
burguesias dos centros hegemônicos do sistema capitalista, na consecução de seus
interesses.
Uma breve digressão histórica pelas formulações de alguns clássicos
contemporâneos do pensamento crítico brasileiro, principalmente Francisco de Oliveira,
Carlos Nelson Coutinho e Elaine Behring, entre outros, permite-nos evidenciar
elementos estruturantes daquilo que nos reconduziu, mais uma vez, a um projeto de
capitalismo dependente e um transformismo sem igual.
Francisco de Oliveira na sua Crítica a razão dualista (2003), caracterizou nossa
sociedade com sendo desigualitária e sem remissão. Para o autor, essa desigualdade se
expressa na brutal concentração de capital e de riqueza pelos latifundiários, pelos
banqueiros e grandes industriais. Expressam-se, também, pelo nível de pobreza de nossa
população, pelo baixo nível de escolaridade (ou pelo alto índice de analfabetismo, seja
ele funcional ou sistêmico), pela pífia escolaridade básica, pela negação ao acesso a
terra, a moradia digna, a saúde de qualidade, ao transporte público.
Isso tudo, naturalmente, põe em xeque-mate os discursos apologistas em torno
do ―novo desenvolvimentismo‖: aliás, esse descompasso entre os discursos
164
governamentais e a realidade econômica e social, constitui-se mais uma das marcas
deletérias da nossa sociedade, historicamente.
Retomando os dados do Relatório do Pnud, sistematizado por Boschetti (2013),
os dados indicam nitidamente a reiterada opção e direção econômica da política
governamental nos últimos anos, de hegemonia ―novo desenvolvimentista‖, com ênfase
na extração de recursos do orçamento da seguridade social para geração de superávit
primário e pagamento dos juros da dívida. Tal tendência segue imutável e implica na
estagnação do sistema público de saúde, que abrange somente 61% dos(as)
brasileiros(as) e se debate para continuar público e universal contra as investidas
privatizantes permanentes e insistentes. Implica na estabilização do acesso à previdência
social pública (o Regime Geral de Previdência Social - RGPS pagou em 2011
aproximadamente 24 milhões de aposentadorias e pensões, enquanto o regime dos
servidores públicos garantiu 4,7 milhões; o seguro desemprego foi pago a 6,5 milhões
de desempregados) que deixa fora do sistema metade da classe trabalhadora ativa e
convive com a assustadora expansão dos planos privados que fortalecem o mercado.
Implica, também, na expansão da assistência social pública (em 2011 12,4 milhões de
famílias/51 milhões de pessoas viviam com o Bolsa Família; 1,6 milhão de pessoas com
deficiência e 1,5 milhão de pessoas idosas com mais de 65 anos dependiam do
Benefício de Prestação Continuada). Isso significa que um em cada cinco brasileiros ou
brasileiras sobrevive com os parcos recursos prestados pela assistência social
(BOSCHETTI, 2013).
Para a autora, são tendências presentes não apenas no Brasil, mas na maioria dos
países da América Latina. Que perspectiva é essa que considera ser um novo padrão de
desenvolvimentos social a condição nacional em que aproximadamente 25% dos
cidadãos e cidadãs sobrevivam com rendimentos assistenciais que não ultrapassam R$
200,00 (ou menos de U$ 100) mensais? O horizonte de desenvolvimento social é a
pobre assistencialização? Não se pode considerar como novo modelo social de
desenvolvimento um país que festeja e se contenta com a pífia redução da pobreza e da
miséria, que privatiza serviços públicos essenciais, como educação, saúde, luz, água,
telefone, transporte, que usurpa recursos públicos para pagar dívidas ilegítimas e
odiosas, que garante o consumo e a reprodução do capital e obtém o consentimento pela
assistencialização, que possui um dos piores e mais lotados sistemas carcerários do
mundo, e que convive cotidianamente com a violência e toda forma de preconceito,
165
conclui Boschetti (2013, p. 363/364). O Brasil segue na rota de políticas que favorecem
muito mais o capital que o trabalho.
Por fim, contraste entre o Brasil do século XXI e o da década de 1990 parece ser
inegável, uma vez que a sociedade conviveu naquele período com um dos piores
desempenhos socioeconômicos de todo o século XX. Pois, após uma década de
neoliberalismo, fomos compelidos a conviver com a terceirização, a flexibilização, a
precarização, o desemprego a taxa de 20% em 2003, com a ocupação e não o emprego,
com jovens nos cruzamentos vendendo qualquer coisa, lavando vidros dos carros,
entregando anúncios de novos apartamentos etc.. Isso tudo, de acordo com Oliveira
(2003, p. 142) ―exibe o cenário de uma sociedade derrotada‖. Portanto, ―qualquer coisa‖
que se fizesse haveria sim de melhorar as condições de vida da população brasileira.
Contudo, isso não é; ou pelo menos não deveria ser o suficiente para se afirmar que
vivemos uma nova fase de desenvolvimento na sociedade e, menos ainda pode-se dizer
que emergiu uma nova sociedade em vários aspectos, sob o Lulismo.
166
CAPÍTULO IV
Hegemonia e crise do lulismo
Nesse último capítulo, expõe-se, alicerçado na concepção materialista e dialética
da história, uma quadra da formação social contemporânea brasileira a partir de uma
situação econômica e política dada. A saber, mais uma crise do sistema sócio
metabólico do capital que se precipitou em 2008 em escala mundial, mas que, seus
efeitos econômicos e políticos no Brasil, somente vieram à tona a partir de 2013.
Naturalmente, será preciso ter em mente que os fatos políticos derivam de
efeitos advindos de causas em última instância econômicas: às quais expusemos ao
longo dos capítulos precedentes desta dissertação. Ou seja, trataremos neste capítulo
daquilo que ficou amplamente conhecido como o fenômeno lulismo.
Também, ver-se-á, alguns apontamentos sobre conceitos e categorias, em
especial o tema da hegemonia, que já mencionamos ao longo do trabalho, mas que
merecem, no nosso entendimento, um aprofundamento mais detalhado.
4. 1 Sobre a categoria hegemonia
Antes de tratarmos dos fenômenos hegemônicos dos últimos quinze anos
(aproximadamente) no Brasil, ou seja, do lulismo e do suposto ―novo
desenvolvimentismo‖, faz-se necessário, primeiramente, discorrermos, ainda que
sumariamente, sobre o conceito de hegemonia. Priorizaremos especialmente, aquele
desenvolvido por Antônio Gramsci nos Cadernos do Cárcere, além das interpretações
de alguns gramscianos bastante conhecidos entre os intelectuais orgânicos da classe
trabalhadora. Sabe-se que o revolucionário sardo referiu-se ao Brasil apenas três vezes82
ao longo dos seus 29 cadernos.
No entanto, a historiografia brasileira mais recente tem corroborado várias das
hipóteses apresentadas pelo comunista italiano. Em função disso, também lançamos
mão do que já fora exaustivamente sistematizado sobre o assunto. Como o leque de
gramscianos é bastante amplo e variado, neste trabalho, objetivando uma melhor
compreensão do conceito leniniano/gramsciano de hegemonia, nos aportaremos,
82
BIANCHI, Alvaro. O Brasil do gramscianos. In. Crítica Marxista n. 43, p. 117-132, 2016. Para Carlos
Nelson Coutinho (2011) foi apenas uma vez e ainda numa referencia conjuntamente a outros países latino
americanos.
167
principalmente, nas interpretações de Coutinho (2011) acerca dos profundos estudos de
Valentino Gerratana83
.
O problema central que perpassam as formulações de Gramsci é a tentativa de
responder por que a revolução proletária não aconteceu no Ocidente (onde o capitalismo
estava mais desenvolvido) e quais as condições que favoreceram a eclosão de uma
revolução comunista na Rússia (no Oriente, portanto, menos desenvolvido). Ou seja, a
grande questão gramsciana era, porque não se desenvolveu um processo revolucionário
na Europa?
Gramsci foi para a Rússia em 1922, como representante do PCI. Toma
conhecimento com profundidade do pensamento do revolucionário e dirigente russo.
Ele apreende com Lenin duas máximas; é preciso análise concreta de situações
concretas e que, uma coisa é tomar o poder outra a construção do socialismo. Com isso
Gramsci se colocou o desafio de entender a realidade da Itália e quais poderiam ser os
possíveis aliados para fazer a revolução. Para Lenin, na Rússia, foi mais fácil tomar o
poder que construir o socialismo. Para a Itália, Gramsci imaginava o oposto.
Olhando para a revolução russa, ele começa a identificar dentro das fábricas
italianas, grupos que reivindicavam mudanças, em decorrência desta observação
acreditava que o que ocorreu na Rússia também poderia acontecer na Itália e assim
mudar as estruturas sociais. O revolucionário, portanto, não acreditava que a relação
entre; a aristocracia operária, os latifundiários e os industriais pudessem fazer alguma
mudança estrutural no país. Logo, ele acreditava nos conselhos de fábrica, assim como
Lenin.
Além disso, Gramsci aponta as diferenças estruturais nas formações sociais do
Oriente e do Ocidente e a necessidade de adotar estratégias políticas distintas das que
foram adotadas na Rússia, já que o capitalismo avançado nos países ocidentais
possibilitou também o fortalecimento das superestruturas (COUTINHO, 2011). Desse
modo, o comunista sardo partiu da análise da Rússia e das reflexões de Lenin para
elaborar a sua noção de hegemonia, sendo considerado o marxista que mais insistiu
nessa questão e que, portanto, deu a maior contribuição ao marxismo neste tema.
83
Italiano conhecido e admirado mundialmente como o responsável pela edição crítica dos Cadernos do
Cárcere (composta de 4 volumes; os três primeiros com 2.400 páginas, continham todos os 29 cadernos, e
1 com mil páginas de tradução), a qual, desde a data de sua publicação (1975), tornou-se não só uma
referencia obrigatória para os estudiosos de Gramsci em todo o mundo, mas também a base para as
muitas edições dos Cadernos publicadas em um número cada vez maior de línguas e países
(COUTINHO, 2011, p. 95/139).
168
Gramsci não negava as ideias de Marx e Lenin84
, ele as incorpora e quando
necessário agrega novos elementos a teoria marxiana. Do mesmo modo, ele seguiu as
táticas leninistas e as ampliou em alguns casos, aprofundando em outros. De acordo
com Coutinho,
a concordância entre os dois revolucionários, em relação ao conceito de
hegemonia, decorre do fato de que ambos concebem a hegemonia como
superação do corporativismo, ou seja, como elevação da consciência de classe
do particular ao universal. Além disso, nem Lenin nem Gramsci opõem a
presença da hegemonia ao fato de que todo o Estado tem uma dimensão
coercitiva (ou ditatorial). Mas essa concordância essencial não anula o fato de
que Gramsci tem uma leitura muito particular de Lenin e de sua herança. [E
retomando as indicações precisas de Gerratana, diz Coutinho]: enquanto Lenin
se concentra apenas na hegemonia do proletariado, Gramsci elabora
uma teoria geral da hegemonia [...] que envolve tanto a hegemonia proletária
quanto a hegemonia burguesa, e, em geral, toda relação de hegemonia
(COUTINHO, 2011, p. 144/145 – itálicos originais).
Na mesma linha, para Luciano Gruppi (1978), o conceito de hegemonia85
é o
que mais aproxima o dirigente do Partido Comunista Italiano com o grande dirigente da
revolução russa. Pois, segundo Gruppi, Gramsci reconhece que o grande mérito de
Lenin é precisamente o de ter compreendido, contra as degenerescências e
simplificações economicistas e deterministas da II Internacional, o extraordinário e
decisivo valor da luta cultural e ideológica para a afirmação das classes subalternas e de
um novo sistema econômico-social. Aliás, assim como Lenin, Gramsci também
entendia que era preciso construir um partido que não servisse apenas como correia de
transmissão, e de dirigentes, como eram os partidos da II Internacional Comunista. Por
isso, Gramsci repensou a visão de partido político e rompeu com o Partido Socialista
Italiano - PSI para criar o Partido Comunista Italiano - PCI. Por essa similitude de
pensamentos, reitera Gruppi (1978) que a ideia da hegemonia em Lenin não deve ser
entendida como afirmação de uma dominação ou ditadura de um partido, mas como
afirmação de uma capacidade superior de interpretação da história e de solução dos
problemas que ela coloca.
Mas, vejamos em um dos trechos dos Cadernos o que diz Gramsci sobre
hegemonia:
84
Gerratana foi um dos gramscianos que mais escreveu sobre a relação entre Hegemonia e revolução:
pelo menos três importantes ensaios. Como uma espécie de conservação/renovação e como ocorre com
frequência na literatura gramsciana, também Gerratana parte da ligação entre os conceitos de hegemonia
em Lenin e Gramsci (COUTINHO, 2011, 144). 85
O termo hegemonia deriva do grego eghestai, que significa ‗conduzir‘, ‗ser guia‘, ‗ser líder‘, ‗estar a
frente‘, ‗comandar‘...
169
a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como ―domínio‖
e como ―direção intelectual e moral‖. Um grupo social domina os grupos
adversários, que visa a ―liquidar‖ ou a submeter inclusive com a força armada,
e dirige os grupos afins e aliados. Um grupo social pode e, aliás, deve ser
dirigente já antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das
condições principais para a própria conquista do poder); depois, quando exerce
o poder e mesmo se o mantem fortemente nas mãos, torna-se dominante mas
deve continuar a ser também ―dirigente‖ (GRAMSCI, 2002, v.5, p. 62/63).
Isso significa que a ―hegemonia não é em Gramsci apenas um conceito
estratégico (a luta pela hegemonia se torna certamente um momento essencial da nova
teoria gramsciana da revolução socialista), mas também um conceito analítico, que lhe
permite analisar diferentes formas de supremacia de classe, do Risorgimento ao
fascismo, do governo soviético ao americano‖ (COUTINHO, 2011, 144).
Portanto, para Gramsci,
as formas históricas de hegemonia não são sempre as mesmas e variam de
acordo com a natureza das forças sociais que exercem a hegemonia.
Hegemonia do proletariado e hegemonia burguesa não pode ter as mesmas
forma e utilizar os mesmo instrumentos. Partindo da noção de que hegemonia
em Gramsci implica o consenso (ou seja, direção e não dominação) Gerratana
desenvolve ulteriormente essa noção ao afirmar que a principal distinção entre
as duas formas de hegemonia é que, enquanto a burguesa se baseia num
consenso passivo (ou manipulado) a do proletariado tem necessidade de um
consenso ativo (COUTINHO, 2011, p. 145).
Nesta perspectiva, corroborando com a ideia de conquistar/ampliar alianças e
dar direção, para Gramsci ―existe hegemonia quando um grupo social obtém o consenso
de outros grupos para suas propostas e, portanto, quando a ação teleológica do primeiro
grupo incide com êxito naquela do segundo‖ (COUTINHO, 2011, p. 162).
As formulações de Gramsci interpretadas e desenvolvidas por Coutinho, sobre a
ampliação do Estado visto como ditadura mais hegemonia, dominação mais direção,
coerção mais consenso, indicam um novo conceito de revolução, ―baseado não mais
apenas na ‗guerra de movimento‘ (como foi o caso da revolução bolchevique), mas
também e, sobretudo, na ‗guerra de posição‘, na qual a luta pela hegemonia – ‗por uma
reforma intelectual e moral‘ - ocupa um papel decisivo‖ (COUTINHO, 2011, p. 143).
Desta maneira, para o marxista brasileiro, é precisamente a noção de hegemonia que
permitiu Gramsci articular e desenvolver para sua realidade social uma nova teoria
marxista de revolução.
Desse modo, a hegemonia do proletariado seria a capacidade de direção rumo à
transformação da nova sociedade, a construção de uma nova sociabilidade, nova cultura,
nova organização política e orientação ideológica. A hegemonia seria, portanto,
segundo Gruppi (1978, p. 5), ―a capacidade de direção, de conquistar alianças,
170
capacidade de fornecer uma base social ao estado do proletariado. Nesse sentido, pode-
se dizer que a hegemonia do proletariado realiza-se na sociedade civil, enquanto a
ditadura do proletariado é a forma estatal assumida pela hegemonia‖.
Ainda, de acordo Gruppi,
uma classe é hegemônica, dirigente e dominante até o momento em que –
através de sua ação política, ideológica, cultural – consegue manter articulado
um grupo de forças heterogêneas e impedir que o contraste existente entre tais
forças exploda, provocando assim uma crise na ideologia dominante, que leve
à recusa de tal ideologia, fato que irá coincidir com a crise política das forças
no poder (GRUPPI, 1978, p. 67).
Cabe destacar, ainda, que as formas históricas de hegemonia não são sempre as
mesmas e variam de acordo com a natureza das forças sociais que exercem a
hegemonia. Hegemonia do proletariado e hegemonia burguesa não podem ter as
mesmas formas e utilizar os mesmos instrumentos (COUTINHO, 2011). Pois, a
hegemonia (direção e consenso) do proletariado implica o consenso ativo, a da
burguesia é passiva, pode ser manipulada. No entanto, a hegemonia de uma classe ou
bloco de classes nem sempre se traduz em classe ou bloco dominante, isso depende da
correlação de forças e do estágio das lutas de classes; desse modo, conclui-se, ―que o
partido é o instituto-chave, embora não o único, da nova forma de hegemonia‖
(COUTINHO, 2011, p. 146 - itálicos originais).
Entretanto, como adverte Edmundo Dias, ―é impossível pensar, pelo menos
gramscianamente, a hegemonia como domínio ideológico ou como maioria eventual‖
(DIAS, 2006, p. 33). Assim, ao admitirmos que um partido da classe trabalhadora,
ainda que seja fortemente vinculada a esta classe, como o porta voz e o organizador
desta, ―essa formulação (o partido) não está colocando a hipótese dos regimes de partido
único‖ (DIAS, 1996, p. 10). Portanto, quando Gramsci e Lenin escrevem sobre
hegemonia estão se referindo à ditadura do proletariado e não do partido. Não obstante,
frequentemente ocorrem leituras distorcidas do conceito de hegemonia, com finalidades
de polêmica política e pequenas disputas no interior da classe trabalhadora. O conceito
de hegemonia foi frequentemente combatido como se pretendesse expressar a ideia de
uma ditadura de partido. Mas essa visão não corresponde de nenhum modo à tese
gramsciana: ao contrário, nega e contradiz esta tese.
Podemos assim dizer que a questão que se coloca ao tratarmos do termo
hegemonia é precisamente esta: é possível transformar os trabalhadores e trabalhadoras
em sujeitos revolucionários? Como é identificado nos Cadernos e no sentido aqui posto,
171
percebe-se que Gramsci parte da experiência da Primavera dos Povos86
de 1848/50 e da
Comuna de Paris de 187187
. De acordo com Gramsci (2005), não basta tomar o poder
político (o Estado), tem que mantê-lo, para isso é necessário e fundamental ter força
política. Para isso era preciso além da coerção o consenso. Consequentemente, seriam
fundamentais táticas não só de convencimento, mas de esclarecimento, era preciso ter o
apoio social e político. Portanto, para Gramsci (2016) não adianta subir ao poder e não
ter apoio dos governados. Neste sentido, como observa Coutinho (2011), Gramsci
insere uma discussão que pode ser chamada de batalha das ideias.
Do mesmo modo, no nosso entender, a contemporânea disputa de hegemonia é
sinônimo, ou melhor, expressão das lutas de classes, apesar de as forças hegemônicas
sobre a classe trabalhadora, especialmente dentro do bloco político-social tê-las negado
constantemente. Ou seja, a disputa pela hegemonia é uma forma de luta que visa à
destruição do Estado burguês e a construção de um novo Estado. Logo, não se trata
―apenas‖ de disputar o Estado burguês, mas de substituí-lo por outro -, um Estado dos
trabalhadores.
Seguindo a acepção gramsciana de hegemonia, se as classes dirigentes perdem a
hegemonia cultural, ideológica ou moral, deixam de ser dirigentes e passam a exercer
uma dominação destinada à decadência e ao colapso. Como observa Coutinho (2011),
há uma diferença entre classe dominante e classe dirigente. A primeira detém o poder
econômico a última o consenso.
O que Gramsci chama de ―sociedade regulada‖, é de acordo com Coutinho
(2011) um excelente pseudônimo para comunismo. E revelando sua instigante visão de
86 Na primeira metade do século XIX, em face do advento do capitalismo industrial, se apresenta uma
pauperização estrema da sociedade. Não como resultado da escassez, mas da concentração das riquezas
produzidas. Então, começou a haver manifestações contra a miséria do povo; um dos primeiro foi Lud,
ficou conhecido como o movimento do ludismo. Depois veio o cartismo e 1832 etc.. Este processo veio
crescente até 1848. Os trabalhadores cansados de reclamar e reivindicar foram para as ruas num processo
revolucionário e receberam uma repressão violenta por parte da burguesia. Foi a vez que os trabalhadores
se organizaram e foram massivamente as ruas autonomamente. Porém, foram derrotados, mas aprenderam
com á historia e a burguesia também. Os últimos encerram em 1848 seu ciclo progressista que vinha
desde o século XII. Já a classe trabalhadora, deixa de ser uma classe em si e constitui-se em classe para si,
naquilo que ficou conhecido como a primavera dos povos. Nas jornadas de junho de 1848, a burguesia e a
pequena-burguesia estavam unidas com a Guarda Nacional e com as Forças Armadas contra o
proletariado. Para um aprofundamento sobre a primavera dos povos. Para uma análise completa, cfr.
MARX, Karl. 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
87
Após 23 anos da Primavera dos Povos, explode a Comuna de Paris, que foi, segundo Marx (2012),
essencialmente um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a
apropriadora. Ao longo dos 72 dias (18 de março a 30 de maio de 1871), a Comuna foi uma democracia
indissociavelmente política e social e configurou pela primeira vez na história, as bases de uma
verdadeira política de igualdade social. Para uma análise aprofundada, cfr. MARX, Karl. As lutas de
classes na França de 1848 a 1850. São Paulo: Boitempo, 2012.
172
comunismo como sociedade aberta, o editor brasileiro dos Cadernos retoma uma
formulação chave de Gerratana. A saber: ―dado que a realidade social esta em
permanente transformação, a hegemonia do proletariado não poderá jamais ser
conquistada de uma vez para sempre‖ (COUTINHO, 2011, p. 146).
4.2 O fenômeno lulismo
O velho Hegel dizia que a coruja, símbolo grego da sabedoria, é uma ave que só
levantava voo ao anoitecer, portanto, quando os acontecimentos do dia já haviam
ocorrido. Dessa maneira, a passagem do ―ser em si‖ ao ―ser para si‖, dos meros
fenômenos para a consciência crítica e posteriormente à revolucionária, demanda tempo
histórico. Por isso, passada a hegemonia do lulismo e do petismo sobre parte
significativa da esquerda brasileira (em sentido amplo), é hora de voltar à nossa história
recente a fim de não repetir os mesmo erros a médio e longo prazos.
Dessa maneira, prosseguindo com nosso método por aproximações sucessivas
do nosso objeto de estudo, agora, nos deteremos com mais afinco nas chamadas
questões políticas e ideológicas da formação social contemporânea brasileira. Porém,
antes de entrar in medias res, primeiramente, caberia se perguntar, afinal, o que é o
lulismo?
Grosso modo, pode-se dizer que o lulismo é (ou foi) um fenômeno político
decorrente do modo de governar, de fazer política e de liderar adotado por Lula quando
era Presidente da República Federativa do Brasil e contava com boa popularidade e,
portanto, legitimidade política e social. Mas não é somente isso. Vejamos mais de perto
a questão.
O fundador lulismo como um conceito (como chave que possibilita caracterizar
e compreender a política hegemônica das duas primeiras décadas do século XXI) o foi o
porta-voz e ex-secretário de imprensa do governo Lula (2003-2007), André Singer88
.
Decerto, o termo ficou amplamente conhecido principalmente após a publicação do seu
livro Os sentidos do lulismo (2012). Para o professor da USP, ―o realinhamento eleitoral
nas eleições presidenciais de 2006 foi o evento que fez nascer o fenômeno político do
lulismo” (SINGER, 2012, p. 15). E tal realinhamento seria sólido e não de
circunstância. Isso porque, de um lado, a política social do primeiro mandato de Lula
88
SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo:
Companhia das letras, 2012. Para uma crítica a esta formulação, entre outros, cfr. BOITO Jr. Armando. O
lulismo é um tipo de bonapartismo? Uma crítica às teses de André Singer. In. Crítica Marxista: n.37,
p. 171-181, 2013.
173
teria atraído maciçamente o eleitorado de baixa renda que ainda resistia à candidatura
do petista e, de outro lado, a denominada ―crise do mensalão‖ teria afugentado parte da
classe média que votava no PT. Desta maneira, na análise de Singer, o lulismo seria
uma espécie de bonapartismo, pois, ―retirou o subproletariado da influência da
burguesia, elevou-o à condição de principal força no poder governamental e realizou
aquele que seria o programa político dessa fração da classe trabalhadora – um
reformismo fraco, isto é, de ritmo lento, e sem ruptura com a ordem‖ (SINGER, 2012,
p. 44). Portanto, segundo Singer, os governos Lula e Dilma, sustentados pelo
subproletariado, buscam equilibrar as classes fundamentais – proletariado e capitalistas
–, pois o seu sucesso depende de que nenhuma delas tenha força para impor os seus
próprios desígnios: o reformismo forte, que ambiciona o aumento rápido da igualdade
ou o neoliberalismo, que tende a aumentar a desigualdade, impondo perdas aos
trabalhadores.
Em As contradições do lulismo: a que ponto chegamos? Singer (2016) retoma
suas formulações de 2012, e reconhece que o lulismo teve dificuldade de enfrentar a
crise econômica, de lidar com a Lava Jato e com o PMDB, que era um partido de centro
e foi para direita. Ele admite que a crise do sistema capitalista, a postura política do
PMDB, a classe dominante brasileira e a queda da presidenta Dilma o surpreenderam.
Pois, segundo o ex-porta-voz de Lula, a crise foi uma surpresa e as elites brasileiras não
entenderam a importância do lulismo. E mais, para Singer, estas classes erram ao
abandonar o Lula, principalmente depois do governo ter atendido suas reivindicações e
ter cumprido um papel civilizatório na sociedade! Para Singer, três fatores explicam o
porquê dos industriais migraram para a oposição ao lulismo e ao seu modelo
desenvolvimentista. A saber: ―a perda de controle sobre a política econômica com o
pleno emprego, o incremento do número de greves e ascensão dos rendimentos do
mundo do trabalho‖ (SINGER, 2016, p. 46). Ou seja, segundo o autor, além dos
trabalhadores com suas lutas e conquistas, a crise econômica mundial atrapalhou a
continuidade do lulismo! Pois, enquanto as condições econômicas internacionais eram
favoráveis, o lulismo foi bem sucedido.
Em face destas argumentações de Singer, então poderíamos nos perguntar. Qual
foi, afinal, o mérito do lulismo? A resposta, sob o ponto de vista dos trabalhadores
organizados, deveria ser nenhum. Pois, é inadmissível que depois de 13 anos de
governo e de hegemonia petista sobre os trabalhadores, estes sejam responsabilizados
pelo fracasso do lulismo. Do mesmo modo, o argumento da crise é uma falácia, se
174
considerarmos que por um lado é fácil navegar em águas calmas, e por outro, (e Singer
esquece-se disso) não existe capitalismo sem crise. Aliás, como dissemos, a crise é
componente do capitalismo e é parte constitutiva deste modo de produção. Portanto, não
é a crise que leva a solução do capitalismo, pois, as crises sempre levam a mais
capitalismos.
Em opinião divergente à de Singer, Armando Boito jr (2013) defende que na
análise daquele, tudo se passa como se o subproletariado estivesse no poder. Pois, seria
equivocado afirmar, por diversas razoes, que os governos Lula e Dilma ―funcionam
como árbitros no conflito entre as classes fundamentais de modo a poderem neutralizá-
las e, ao fazê-lo, logram colocar em prática ‗o programa do subproletariado‘‖ (2013, p.
173). Certamente, sob o lulismo, a desigualdade de tratamento entre as classes sociais
fundamentais do capitalismo fora brutal. Além do mais, ―o subproletariado não está no
poder, isto é, não é o destinatário privilegiado das medidas de política econômica e
social, dos governos petistas como quer Singer‖ (BOITO Jr., 2013, p. 76).
Para Valério Arcary, em Um reformismo quase sem reformas: uma crítica
marxista do governo Lula em defesa da revolução brasileira defende a tese que ―o
lulismo, com seu caudilhismo eleitoralista, devorou o PT, e absorveu os partidos e
movimentos satélites do PT, em maior ou menor medida‖ (2014, p. 112). E, neste
processo de evolução histórica do lulismo, ―para se credenciar como partido eleitoral
resignado aos estreitos limites do regime democrático-liberal no Brasil, o PT precisou
deixar de ser petista‖ (ARCARY, 2014, p. 71).
No trabalho publicado com o título, Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo,
socialismo, Katz (2016) faz uma profunda analogia entre o lulismo no Brasil e o
kichernismo na Argentina. Constata o autor que embora sejam duas variantes das
mesmas administrações situada no espectro da centro-esquerda, se desenvolveram em
contextos muitos diferentes. Portanto, de acordo com Katz (2016, p. 203), ―enquanto o
governo do Brasil acentuou, durante a sua gestão, a desmobilização social, o legado da
rebelião de 2001 obrigou os seus vizinhos do Cone Sul a governar com um olhar
voltado à reação dos oprimidos‖. Desse modo, para Katz (2016), o lulismo com seu
―novo desenvolvimentismo‖ apostou pela enésima vez no comportamento produtivo da
burguesia brasileira, esquecendo as manobras que esta classe tem realizado para a fuga
de capitais, a inflação e o desinvestimento (ou estagnação da economia). Em tom
perplexo, questiona-se como é incrível que os governos da América Latina, em geral,
com pouquíssimas e honrosas exceções, depositam nesse setor expectativas que sempre
175
terminam em acachapantes decepções. A última grande desonra de quem acredita nas
classes economicamente dominantes, foi o impedimento de Dilma concluir seu governo,
que apesar de ter atendido praticamente todas as reivindicações daquele setor, por ele
fora deposta.
Para Giovane Alves (2014), em sua coletânea de artigos, titulada Trabalho e
desenvolvimentismo, ver-se-á, que para o autor, o neodesenvolvimentismo nos governos
Lula e Dilma tinha como estratégia política, o lulismo, e que este implementou um
―reformismo fraco”, evitando, desta maneira, o enfrentamento direto não apenas com o
grande capital financeiro internacional que hegemoniza o bloco de poder do capital no
Brasil, mas também evitando o enfrentamento com a grande burguesia interna que
compunha a frente política do neodesenvolvimentismo. Para o autor, o mote do lulismo
era ―Lula, Paz e Amor‖ e o lema do governo era ―Um Brasil para Todos‖. Na verdade, a
grande argúcia política do lulismo foi construir uma estratégia política que deslocasse
politicamente frações do bloco de poder do capital – a burguesia interna – para seu
projeto de governo com apoio de frações da classe trabalhadora organizada e o
subproletariado pobre.
Assim, conclui o autor que,
o lulismo manteve os pilares da macroeconomia neoliberal visando, deste
modo, acalmar os mercados financeiros e sinalizar, de modo claro, que o novo
governo neodesenvolvimentista não tinha veleidades anticapitalistas, mas pelo
contrário, mantinha-se alinhado com o bloco histórico neoliberal hegemônico
no mercado mundial (ALVES, 2014, p. 131).
Para o sociólogo marxista Francisco de Oliveira (2010), em Hegemonia às
avessas, o lulismo aparece como uma forma de dominação e é diferente de todas que a
história brasileira já demonstrou e a denomina de hegemonia às avessas. Portanto, para
o crítico, trata-se de um fenômeno novo, que exige novas reflexões. Pois, esta
hegemonia às avessas se expressa por meio de vitórias políticas, intelectuais e morais
―dos de baixo‖, mas que fortalecem, contraditoriamente, as relações sociais de
exploração favoravelmente aos ―de cima‖. É o curioso fenômeno em que parte ―dos de
baixo‖ dirige o Estado por intermédio do programa ―dos de cima‖.
Vejamos mais de perto como o lulismo é caracterizado por Oliveira,
não é nada parecido com qualquer das práticas de dominação exercidas ao
longo da existência do Brasil. Suponho também que não se parece com o que o
Ocidente conheceu como política e dominação. Não é patrimonialismo, pois o
que os administradores dos fundos de pensão estatais gerem é capital-dinheiro.
Não é patriarcalismo brasileiro de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freire,
porque não é um patriarca que exerce o mando nem a economia é ―doméstica‖
(no sentido de domus romano), embora na cultura brasileira o chefe político
176
possa se confundir, às vezes, com o ―pai‖ – Getúlio Vargas foi apelidado de
pai dos pobres. [...] Não é populismo, como sugere a crítica da direita, e
mesmo alguns setores da esquerda, porque o populismo foi uma forma
autoritária de dominação na transição da economia agrária para a urbano-
industrial. [...] Nada disso está presente na nova forma de dominação
(OLIVEIRA, 2010, p. 26).
Portanto, Oliveira (2010) argumenta que há um lugar central para o
consentimento passivo no lulismo. Não se trata de os trabalhadores consentirem que os
representantes do capital governem o país, mas o avesso é o capital que consente que os
supostos representantes do trabalho governem o país em seu nome. Por isso, o
consentimento se transforma em seu avesso. Diz ele, ―não são os dominados em que
consentem em sua própria exploração; são os dominantes [...] que consentem em ser
politicamente conduzidos pelos dominados, com a condição de que a ‗direção moral‘
não questione a forma de exploração capitalista‖ (OLIVEIRA, 2010, p. 27).
Num profícuo diálogo com Oliveira, Carlos Nelson Coutinho (2010) que tem
um artigo no livro organizado pelo sociólogo, busca demonstrar o entendimento do
lulismo como sendo a predominância da hegemonia da pequena política em razão,
principalmente, do abandono das sonhadas reformas. Além disso, destaca que,
a chegada do PT ao governo federal em 2003, longe de contribuir para minar a
hegemonia neoliberal, como muitos esperavam, reforçou-a de modo muito
significativo. A adoção pelo governo petista de uma política macroeconômica
abertamente neoliberal – e a cooptação para esta politica de importantes
movimentos sociais ou, pelo menos, a neutralização da maioria deles desarmou
as resistências ao modelo e assim abriu caminho para uma maior e mais
estável consolidação de hegemonia neoliberal entre nós (COUTINHO, 2010,
p. 42).
Percebe-se que o leque de intelectuais orgânicos críticos ao fenômeno lulismo é
bastante grande. Até mesmo, Singer (2016) é sincero em pelo menos um aspecto: para o
autor, o lulismo é despolitizador, isso porque ele é uma política de conciliação de
classes e não de conflito. Desse modo, quando não se constrói o conflito ele não
acontecesse! Mas além de Singer, já é mais ou menos aceito entre as mais variadas
forças sociais organizadas que compõem o espectro da esquerda brasileira, que os
últimos governos no Brasil, especialmente os que decorreram sob o lulismo, foram
extremamente desmobilizadores para a sociedade brasileira. A prova dessa
despolitização foi o momento derradeiro do lulismo quando da consumação do
impeachment da ex-presidente Dilma. Lembremos que a massa dos trabalhadores e
trabalhadoras do país, seja ela organizada sob o bloco político-social ou não, vacilou em
ir às ruas para defender o governo.
177
Pois bem, posto estas considerações preliminares, cabe agora retomarmos
cronologicamente, o que consideramos terem sidos os três momentos cruciais do fim do
lulismo. É importante destacar que os acontecimentos listados a seguir, têm uma
história e uma explicação sociológica que não são objetos de dissertação neste
momento. Contudo, como fenômenos centrais que possibilitam compreender melhor as
contradições e o fim do lulismo, por ora, cabe apontar que tais momentos estão
intimamente ligados e foi desencadeando o outro como numa espécie de efeito dominó.
O primeiro foi Junho de 2013. Certamente, junho foi uma explosão que se nutriu
do lulismo e do ―novo desenvolvimentismo‖, portanto, de políticas anteriores aos
eventos em si. Desta maneira, não se explicam unicamente pelo fato em si.
Como já foi realizado exaustivamente o balanço daqueles eventos e este não é
nosso objetivo aqui, iremos direto ao ponto. Já é amplamente aceito entre os teóricos
marxistas, que desde então, a luta de classes retornou do exílio que parecia ter se metido
durante a hegemonia do lulismo. As lutas de classes voltaram ao vivo e a cores, e
trouxeram consigo a possibilidade de retomada das mobilizações de massas em torno de
um projeto autônomo da classe trabalhadora. As jornadas de junho de 2013 de acordo
com Mattos89
(2016) se fizeram acompanhar de uma elevação do patamar de lutas
sociais. O ano de 2013 foi o ponto mais alto da curva de greves das últimas décadas,
com 2.050 greves registradas no país, mais que o dobro das contabilizadas no ano
anterior. Neste sentido, o próprio Singer reconhece que ―a coexistência equilibrada dos
contrários começou a explodir com as manifestações de junho de 2013, que trouxeram
subitamente à consciência como o Brasil, apesar de ter melhorado, continuava péssimo‖
(SINGER, 2016, p. 19).
Lembre-se que até junho de 2013, qualquer crítica social que se proferisse sobre
governo e seu modelo (sobre o lulismo e o ―novo desenvolvimentismo‖), eram
imediatamente rechaçados de princípio por qualquer apologista de plantão. Talvez
também em função disso, junho trouxe para a arena política do Brasil a possibilidade de
retomar a crítica social e as lutas sociais massivas, ou se preferirmos, expressa as
contradições sociais de classes, indiscutivelmente. Nas palavras de Carlos Vainer90
89
In. Blog junho. MATTOS, Marcelo Badaró. O ponto a que chegamos: sobre a luta de classes na
conjuntura do golpe de 2016. Setembro de 2016.
90
In. Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo. 1° Ed.
Boitempo: Carta Maior, 2013, p. 12. Este livro é uma coletânea de artigos que busca compreender a partir
de diversos pontos de vistas o significado das mobilizações de junho. Foi publicado no calor das
manifestações daquele ano histórico no Brasil.
178
(parafraseando Mao Tse-Tung), ―uma fagulha pode incendiar uma pradaria‖ e, no nosso
caso, a fagulha foi a mobilização contra o aumento da tarifa nos transportes públicos
convocada pelo Movimento Passe Livre – MPL.
Como os protestos foram majoritariamente compostos por jovens, convocados
por meio de redes sociais, sem a presença de partidos, sindicatos e organizações de
massa tradicionais, o rumorejo das ruas não fora uníssono. Tratou-se de um concerto
dissonante, múltiplo, com elementos progressistas e de liberdade, mas também de
conservadorismo e de brutalidade, aliás, tudo isso compunha e foi expressão da própria
sociedade brasileira. Não obstante, Junho perturbou a ordem de um país que parecia
viver uma espécie de vertigem benfazeja de prosperidade e paz, e fez emergir não uma,
mas uma infinidade de agendas mal resolvidas, contradições e paradoxos. Mas,
sobretudo – e isso é o mais importante - de acordo com Raquel Rolink (2013, p. 8) ―fez
renascer entre nós a utopia‖. Por outro lado, segundo Carlos Vainer (2013, p. 12), ―o
apartidarismo ganhou sua versão fascista, antipartidária, quando militantes de partidos
quiseram aderir ás manifestações e foram espancados pelos próprios manifestantes‖.
Dessa maneira, parafraseando Marx (2012), diríamos que em junho o véu que
cobria o lulismo foi rasgado. Pois, a fraternidade de classe durou exatamente o mesmo
tempo em que os interesses da burguesia estiveram imanados com os interesses da
classe trabalhadora. Por conseguinte, em síntese, pode-se dizer que junho explicita,
precipita a crise de hegemonia do PT, ou, se preferirmos, indica a crise do lulismo e do
suposto ―novo desenvolvimentismo‖ que se fez água em todos os aspectos em face das
massivas mobilizações.
Por conseguinte, o segundo indicativo da crise terminal do lulismo fora a eleição
presidencial do ano seguinte (2014). Em meio a esta nova conjuntura, posta pela crise
capitalista e pelas mobilizações de massas em junho de 2013, a segunda eleição de
Dilma, em outubro 2014, foi um verdadeiro estelionato eleitoral. Registre-se que nestas
eleições, se por um lado, o lulopetismo nunca prometeu tanto pelo Brasil, por outro, não
se pode esquecer-se dos ataques dos marqueteiros e dos ideólogos do PT às esquerdas e
mesmo às candidaturas de centro, que propunham uma alternativa a hegemonia petista e
a peessedebista. Por exemplo, o ataque às formulações críticas veio antes das eleições91
,
e o golpe às candidaturas de centro foi proferido durante o pleito quando ameaçados por
Marina Silva - os marqueteiros do PT, hoje presos da Lava jato -, a atacaram dizendo
91
Ver artigo de Emir Sader, editorial do BSF, entre outros.
179
que com ela presidente não haveria mais emprego nem comida no prato do povo
brasileiro. E por aí vai!
Definido o segundo turno entre o PT e o PSDB e em face da possível derrota
para seu oponente Aécio Neves, a então Presidenta Dilma se sentiu ameaçada e por isso
fez o mesmo que fizera na eleição para o seu primeiro mandato, em outubro de 2010 e,
o que Lula havia feito no segundo turno das eleições em 2006, ou seja, fez uma nova
reaproximação com as antigas bases sociais. Noutras palavras, correu em busca de
socorro em direção aos aliados históricos que compõem o bloco político-social; em
decorrência desta tática, recebeu por várias vezes os movimentos sociais no palácio do
planalto e prometeu atender minimamente as reivindicações daqueles que sempre nas
horas difíceis lhe estenderam a mão. Para as organizações sindicais e sociais que
compõem o bloco político-social parecia (ou acreditava-se) que se reeleita, desta vez
Lula/Dilma havia aprendido e que agora sim faria um governo mais identificado com os
interesses da classe trabalhadora.
É importante pontuar que desde suas origens e o PT e a CUT sempre foram base
de Lula e Dilma. E assim permaneceram durante todo o período hegemônico do lulismo
e do suposto ―novo desenvolvimentismo‖. Ora com algumas críticas mais abertas e por
vezes calando-se assustadoramente diante das controvérsias medidas de governo. Já o
MST, como apontamos, esboçou uma tentativa de ruptura. Porém, no final do lulismo
convergiu peremptoriamente com os aliados históricos do bloco político-social.
Pois bem, Dilma (nos dias atuais impeachtmada) ganhou as eleições em 2014
por uma pequena margem de votos, embora com o apoio consistente do bloco político-
social formado pela CUT, o PT, pelo MST e a UNE. Entretanto, ―reeleita pela reduzida
margem de 3,3% pontos percentuais, a presidente fez exatamente o contrário [do que
havia prometido], dando um cavalo de pau que deixou a esquerda perplexa‖ (SINGER,
2016, p. 43). Em decorrência desta opção política, mas não só, já em abril de 2015, a
reeleita contava apenas com 8% do apoio da população.
Desta maneira, para surpresa de alguns, quando a Presidenta Dilma se elegeu
novamente não cumpriu os acordos combinados coletivamente e imediatamente chamou
Katia Abreu para o Ministério da Agricultura e Joaquim Levy para o Ministério da
Fazenda. Para citar apenas estes dois ministérios, poupando assim, o leitor das más
recordações! Esta tática de prometer e não cumprir nenhum décimo do prometido, bem
como de recorrer às bases sociais históricas mais sólidas, como dissemos, já havia sido
usada por Lula. Recorda-nos Oliveira (2010), que durante o segundo turno das eleições
180
de 2006, ―Lula queixou-se amargamente, de não ser o preferido dos ricos, cobrando-
lhes o fato de que nunca os banqueiros ganharam tanto dinheiro como em seu governo,
para logo depois dizer que os pobres haviam ganhado a eleição‖ (OLIVEIRA, 2010, p.
24). Embora ninguém que seja razoável, nem à direita, nem à esquerda esperasse
grandes mudanças no segundo mandato de Lula, aparentemente o espaço da esquerda
havia se ampliado. Porém, após a reeleição, já nos primeiros dias de seu segundo
mandato, a ilusão quanto ao peso da esquerda se desfez com as primeiras declarações do
presidente reeleito, que reendossou a política econômica, manteve no cargo algumas
figuras emblemáticas (caso de Henrique Meireles), defendeu a era Palocci e, aventou
para compor novos ministérios, ilustres como Jorge Gerdau e Blairo Maggi etc. Ainda
de acordo com Oliveira (2010, p. 22), ―Lula distanciou-se ostensivamente do PT;
somente recorreu ao partido, e a setores da esquerda fora dele, no segundo turno de
2006, quando viu a reeleição ameaçada‖.
Desse modo, todo um povo, de norte a sul do Brasil, que por meio do voto
acreditava ter obtido a força motriz necessária para avançar com maiores celeridades
rumo as tão sonhadas reformas estruturais ou de base, que os beneficiassem, de repente
se vê arremessado de volta a uma época que acreditava estar extinta. Assim, para que
não paire nenhuma dúvida quanto ao retrocesso político sofrido em 2006, 2010 e 2014,
lembre-se que após estes pleitos ressurgem os velhos elementos, as velhas prioridades
do governo anterior, os velhos nomes e os velhos verdugos que pareciam ter se
decomposto há muito tempo, como por exemplo, Eliseu Padilha que foi ministro de
FHC e estava na Secretaria da Aviação Civil do Governo Dilma, mas pulou para o lado
de Temer em dezembro de 2015, entre outros.
Por fim, o terceiro momento indicativo do fim do lulismo, o impeachment de
Dilma em 31 de agosto de 2016. Neste ato se encerra a conciliação de classes – a
política de alianças ou a composição de classes - tão defendida pelos lulistas. Por certo,
como disse Erico Veríssimo no seu clássico Incidente em Antares, ―quem semeia ventos
colhe tempestade‖. De maneira que o dia 31 de agosto de 2016 atingiu os defensores do
lulismo como um raio vindo do céu sem nuvens. A democracia tida como sólida pelos
mais ferrenhos, como por exemplo, Oliva (2010), o ―respeito ao voto‖, as tais
―conquistas sociais‖, a ―nova classe média‖, os ―novos pobres‖, a ampla base de apoio
no congresso, à alta popularidade do lulismo entre tantas outras quimeras desapareceu
como se fosse uma formula mágica diante do impeachment pronunciado pelo Congresso
181
e pelo judiciário brasileiro. Como disse Mefistófeles em Goethe, no gabinete de estudos
de Fausto, parte I, ―tudo o que existe merece perecer‖.
Sob o lulismo, até certa medida as classes dominantes admitiram que os pobres
ganhassem alguma coisa, por um lado, em função da conjuntura econômica favorável,
pois, era aconselhável deixar que as classes subalternas pegassem as migalhas que
caiam da mesa (a classe trabalhadora não suportava mais o peso do neoliberalismo
atroz), por outro lado, as classes dirigentes defensoras do neoliberalismo estavam
desmoralizadas, precisava-se buscar de um fôlego, o lulismo proporcionou isso.
Portanto, ao contrário do que defende Singer (2016), Dilma não caiu ―pela sua política à
esquerda implementada desde o início do seu governo, principalmente em 2011/12‖ ou
por ter decidido ―entrar em combate com frações de classes poderosas e resistentes‖
menos ainda por ―não ter avisado os trabalhadores ou a sociedade das boas intenções da
sua política, assim, não teve quem a defendesse92
‖. Caiu porque o nome do jogo é
política. Lembremos que em 2015/16, a Presidenta Dilma estava se comprometendo
com todas as reformas neoliberais para manter-se no poder. Portanto, ela não foi apeada
do governo porque estava com uma agenda de esquerda, de reformas estruturais (como
a agrária e tantas outras) e menos ainda com uma perspectiva socialista. Observa-se,
contudo, que em certo ponto a Dilma e o lulismo não interessavam mais as classes
dominantes. Não eram capazes de fazer as reformas no ritmo e na profundidade que
interessa ao capital naquele momento. Por isso, todas as forças políticas e ideológicas
do capital que outrora apoiavam o lulismo, pularam fora do barco. Por certo, quem
rompeu o pacto de classes, foram às classes historicamente dominantes no Brasil. E é
preciso que diga, a contragosto dos próceres petistas. Lembramos que a FIESP, a
FEBRABAN, etc., somente declararam apoio ao impeachment em novembro e
dezembro de 2015, quando o processo já estava instalado politicamente.
Além disso, a sociedade brasileira é dividida em classes sociais e, em sociedades
com estas características, por mais que se queira, é impossível à conciliação de classes
por um período mais longo. As classes dominantes no Brasil sabem e sempre souberam
quem é o seu inimigo principal. Os apologistas do lulismo - tidos como representantes
dos trabalhadores - quando assumiram parte importante do Estado (a Presidência da
92
Cfr. SINGER, André. As contradições do lulismo: a que ponto chegamos? p. 33-53.
182
República) infelizmente esqueceram-se desta lição básica. A saber: as classes
dominantes mais cedo ou mais tarde reivindicam pra si a parte do leão93
.
Ou seja, com a expressão aludimos a uma fábula em que o leão, a raposa, o
chacal e o lobo fazem um acordo para caçar juntos e dividir entre si o que conseguirem
abater. Na primeira experiência que fizeram, mataram um veado grande e o leão
mandou dividir a presa em quatro partes iguais, depois se colocou diante dos pedaços e
informou aos seus três parceiros que ficaria com o primeiro pedaço por ser o rei dos
animais, com o segundo por ser o responsável pela partilha, com o terceiro por ser a
parte que lhe cabe de direito na sociedade e também com o quarto pedaço por não
acreditar que alguém ali estivesse disposto a disputa-lo com ele. Daí se origina a
expressão ―parte do leão‖, que também pode ser entendida como ―a melhor e a maior
parte do bolo‖.
Por conseguinte e contraditoriamente, a crise da hegemonia petista (do lulismo)
desde 2013 e o seu colapso com o golpe midiático, empresarial e parlamentar de Estado
de 31 de agosto de 2016, por um lado, marcam uma nova ofensiva neoliberal sobre o
Brasil: por outro lado, abrem espaços para uma crítica social radical, para as lutas de
classes voltarem à cena política do país, e, além disso, no âmbito das bases populares
das próprias esquerdas se abre também um campo de disputa.
Assim, observado em uma perspectiva mais ampla, não se trata de nenhum
exagero ou mesmo de equívoco afirmar que sob o lulismo esperava-se ao menos que as
condições se tornassem mais favoráveis às lutas e a organização social. Entretanto,
presenciou-se algo diverso e até paradoxal. Pois, não é pouca coisa que durante os anos
de hegemonia lulista, parcela significativa da classe trabalhadora organizada
permaneceu apática, seja sob o movimento sindical cutista, sob o maior movimento
social camponês ou sob o maior partido de massas do país. Basta olhar o número de
greves do período para se perceber que a luta arrefeceu sob o lulismo. Segundo um
balanço histórico das greves no Brasil, organizado pelo Dieese (2013) numa série que
começa como fim do regime civil-militar (1984) a vai até 2013, mostra que, após um
declínio das paralisações no fim da década de 1990 e início dos anos 2000, o número de
greves voltou a aumentar a partir de 2008. De acordo com o levantamento, entre 1984 e
2013, o país teve mais de 22,5 mil greves, segundo os critérios de classificação das
93
Marx recorre a esta fabula no O dezoito brumário. A partilha do leão. Fabula de Esopo (620 AC). Em
Jean de La Fontaine (1621-1695), o leão quase sempre representa a força bruta e o poder.
183
paralisações adotados pelo Dieese. A maior proporção dos casos se refere a paralisações
de empregados do setor privado (61%) e público (30%). O restante envolve greves de
funcionários das estatais. Pelos dados, é possível verificar mudanças no total de greves,
segundo os governos. As maiores médias de greves, entre 1984 e 2013, foram durante
as gestões de Dilma Rousseff e Fernando Collor de Melo - os únicos presidentes que
sofreram impeachment na história política recente. Já segundo o relatório do Dieese
(2015), entre 2002, ainda no governo FHC, e 2007, já no segundo mandato de Lula, as
greves oscilaram em torno do patamar de 315 greves anuais. Apontam os dados do
Dieese que a média anual do governo Dilma foi de 1.160 greves, enquanto a de Collor
foi de 1.123 greves. O primeiro governo Lula, por sua vez, foi o que apresentou a menor
média de greves desde a redemocratização. A média do governo do petista foi de 315
greves por ano.
Essa nova postura dos movimentos sob a batuta do governismo petista para
Mattos (2016), variaram da crítica moderada à defesa incondicional, reforçada muitas
vezes pela ocupação de cargos no aparelho de Estado. Não à toa, o número de greves
por ano chegou ao seu patamar mais baixo (desde que pesquisas mais sistemáticas
começaram a ser feitas a partir de 1978) nos mandatos de Lula.
O não atendimento das pautas estratégicas do MST e mesmo da CUT, e a
necessidade imperiosa do lulismo em consolidar seu apoio ao capital financeiro
internacional, fez com que aumentasse o distanciamento do governo petista em relação
à classe trabalhadora. Prova disso foram as baixas mobilizações sociais em face do
eminente processo de impeachment, no primeiro semestre de 2016. Sem provocar
nenhuma mudança estrutural nas estruturas de classes da sociedade brasileira, ou
mesmo sem realizar qualquer reforma historicamente reivindicada pelas suas bases
sociais (pelo bloco político-social) mais próximas, o lulismo foi, contraditoriamente,
uma forma de continuidade do que é essencial do neoliberalismo. Além de o lulismo ser
uma espécie de social-liberalismo, de acordo com Leher (2010) o PT foi a
governabilidade para o capital.
É evidente que logo nos primeiros anos deste milênio, a classe dominante
brasileira vivia aquilo que Gramsci (2016) denominou de ―crise de autoridade‖. Diz
Gramsci, ―se a classe dominante perde o consenso, ou seja, não é mais ‗dirigente‘, mas
unicamente ‗dominante‘, detentora da pura força coercitiva, isto significa exatamente
que as grandes massas se destacaram das ideologias tradicionais e não acreditam mais
no que antes acreditavam‖ (GRAMSCI, 2016, v. 3, p. 187).
184
Por isso, em face do enorme desgaste acumulado ao longo de pouco mais de
uma década, era necessário para as classes dominantes burguesas buscar uma alternativa
que preservasse, no essencial, as políticas neoliberais ocorridas durante aquele período.
Evidenciou-se desta maneira, que as classes dominantes haviam aprendido que, ―na luta
deve-se sempre prever a derrota, por isso, a preparação dos próprios sucessores é um
elemento tão importante quanto tudo o que se faz para vencer‖ (GRAMSCI, 2016, v. 3,
p. 322). Assim, vitória eleitoral do PT de Lula no início do século XXI, apesar de
canalizar um enorme descontentamento social e político, já trazia em seu programa,
expresso na ―Carta aos brasileiros”, a ideia de preservação do essencial do projeto
neoliberal. A saber: não se propunha rever as privatizações; a flexibilização do trabalho
e a precarização seriam preservadas; a política de cambio flutuante seria mantida; a
meta de superávit primário manter-se-ia estável e o capital financeiro intocável
permaneceria.
Com a sua postura reformista ou de reformismo sem reformas, de convivência
harmoniosa com a herança de seu antecessor, o lulismo fora a expressão da
subjetividade e do projeto político gestado pelo ―moderno‖ capital nativo e o
internacional em face da crise incontornável de legitimidade do neoliberalismo. Era
preciso encontrar, nas fileiras da então oposição, novos motoristas do velho ônibus
desgovernado do neoliberalismo, que mantivesse sua pragmática e fosse, dessa maneira,
capaz de preservar os interesses do capital, mesmo com a derrota eleitoral do PSDB e
das suas bases de sustentação. E que se mantivesse também, os elementos políticos e
ideológicos de conservadorismo e/ou que pelo menos não os impedissem de se
desenvolver e reproduzir.
Em suma, o PT que emergiu vitorioso do processo eleitoral de 2002, despojado
de vínculos reformistas (no bom sentido) e de sua formulação social crítica, converteu-
se numa espécie de ―bengala‖ do lulismo. ―Moderno‖, defensor vigoroso da ―economia
de mercado‖, da flexibilização do trabalho, da desregulamentação das leis trabalhistas,
da economia globalizada, enfim, de tudo o que foi fundamentalmente estruturado
durante os anos 1990 sob o governo de FHC. Numa palavra: apesar de almejar ser uma
espécie de novo ―pai dos pobres‖, o lulismo com seu ―desenvolvimentismo‖, legou a
classe trabalhadora brasileira um cenário bastante diverso do que fora o de Getúlio e
também o da socialdemocracia Europeia. Pois, o lulismo apresentou-se no espectro
político como sendo de centro: ou seja, nem de direita, nem de esquerda. Embora
muitos dos militantes e dirigentes petistas aceitem o valor socialista básico da justiça
185
social, o PT e o lulismo, rejeitaram a política de classe por aproximadamente 15 anos,
buscando uma base de apoio que perpassasse as classes da sociedade. Por isso,
colocavam-se acima das classes.
O trágico, além disso, é que os próceres do lulismo demonstraram total
ignorância da fábula de Esopo e da lição gramsciana citada acima, ou seja, mesmo
diante das massivas mobilizações de junho de 2013 (como há décadas não se via no
país), e, diante da polarização eleitoral do ano seguinte, em nenhum momento se previu
que o lulismo poderia ser derrotado e menos ainda se preparou ou se cogitou uma
possível sucessão mais à esquerda. O resultado disso tudo, é que nos dias atuais impera
uma hegemonia absoluta das forças conservadoras do país e uma ofensiva sobre as
conquistas dos trabalhadores e trabalhadoras como nunca visto antes na história do
Brasil moderno.
Portanto, se por um lado o lulismo limitou-se a promover a estabilidade
macroeconômica, a preparação de infraestrutura para as atividades do capital e a
atividade empresarial com fortes recursos públicos, por outro, bem ao estilo de ―um país
de todos‖, buscou desenvolver algumas políticas positivas pontuais e localizadas.
Porém, essencialmente, os pequenos avanços aceitos pela claque e os aliados em torno
do lulismo, estavam conformes ao espírito de Tancredi, personagem d‘O leopardo,
notável romance do italiano Giuseppe Lampedusa (1896-1975): ―é preciso mudar algo
para que tudo permaneça como está‖.
Pelas breves notas desenvolvidas até aqui em torno do fenômeno lulismo, pode-
se dizer que esta prática política hegemônica por dez anos (2003-2013) em nosso país,
por um lado, de alguma forma beneficiava parte significativa das classes subalternas
que há séculos haviam ficado a margem do consumo no Brasil; por outro, no entanto,
indiscutivelmente, além de favorecer a acumulação rentista e especulativa dos
banqueiros, como nunca antes na história deste país, possibilitou de uma maneira ou de
outra o ressurgimento das forças conservadoras e reacionárias em nossa sociedade e
dividiu as esquerdas sociais. Obviamente, não se pode responsabilizar unicamente o
lulismo por este retorno abominável das forças antidemocráticas. Porém, do mesmo
modo, não se pode isentá-lo como querem seus séquitos mais ferrenhos.
4. 3 Pequena política e transformismo
Nos últimos 30 anos, aproximadamente, desde a redemocratização (1985) até as
grandes mobilizações de junho de 2013, apresentaram-se à sociedade brasileira três
186
modelos ideo-político e econômicos distintos: o neoliberalismo e o ―novo
desenvolvimentismo‖ -, e uns ensaios socialistas. Como já observamos, em sua essência
e a rigor, as duas primeiras ideologias visavam o mesmo – a reprodução do modo
capitalista de produção. Portanto, tratava-se de alternativas capitalistas, ou de formas
similares para garantir a realização do capital.
Já a perspectiva socialista, embora muito bem fundamentada por uma gama
significativa dos intelectuais orgânicos da classe trabalhadora, não logrou avanços
significativos a ponto de interromper a ofensiva hegemônica do capital. Contudo, após a
crise e o fim da ditadura civil-militar, o Brasil se viu diante dessas três possibilidades.
Como já observamos, o Brasil possui algumas marcas históricas quase que
―intransponíveis‖, em sua formação social: revoluções ―pelo alto‖, processos de
modernização conservadora autoritária e excludente; ―fugas para frente‖, interrompidas
regularmente por regressões políticas e sociais e pactos conservadores liberais. Sob a
ditadura civil-militar que perdurou de 1964 a 1985, a modernização conservadora foi a
marca principal do desenvolvimentismo. Sob o neoliberalismo, essas características
foram reeditadas por FHC e seu pacto de poder, a partir de um apoderamento do
legislativo pelo executivo, com os objetivos explícitos de arrancar as raízes do
―varguismo‖. Lembre-se que o próprio Fernando Henrique Cardoso anunciou que em
seu governo acabaria a era Vargas!
Em função disso, sob o neoliberalismo, não se pode falar de via prussiana, de
revolução passiva e nem de modernização conservadora para se explicar o que ocorreu
nos anos 1990 no Brasil e mesmo nesse novo século de hegemonia
―neodesenvolvimentista‖ e de lulismo. Trata-se na verdade, como bem observou
Behring (2008), Oliveira (2010) e Coutinho (2010) de um período de contrarreformas.
Naturalmente que a perspectiva socialista não navega por aquelas águas.
Contudo, certamente essa possibilidade histórica esteve presente na arena política
brasileira. Porém, não logrou acumular forças para um processo de transformação mais
radical do país. Entretanto, é preciso valorizar que centenas de intelectuais e militantes
mesmo em tempos difíceis ousaram segurar a bandeira socialista e das reformas
estruturais tão defendidas pelas outrora organizações sociais coletivas que hoje
compõem o bloco político-social94
.
94
Já discutimos isso no item 2.2.5 A dialética do bloco político-social (p. 100) e no item 2.3,
Neoliberalismo e mudanças na correlação de forças.
187
Como observamos no terceiro capítulo deste trabalho, o ideólogo Bresser-
Pereira (2005), não somente forneceu as bases teóricas do ―novo desenvolvimentismo‖,
como também apontou que forças sociais deveriam compor o bloco de poder
hegemônico sob a hegemonia do lulismo. Como se não fosse suficiente, acrescente que
―na América Latina, a Nova Esquerda Desenvolvimentista é uma esquerda reformista
cujo objetivo não é o socialismo, mas um Estado do bem-estar social‖ (BRESSER-
PEREIRA, 2010, p. 812).
Em primeiro lugar, caberia perguntar de qual ―nova esquerda‖ o autor está
falando? Se for a que assumiu os governos em face da crise da ideologia neoliberal, que
ele mesmo defendia, por um lado, não é possível fazer uma análise como se esta fosse
homogênea; por outro, cabe lembrar que existiu e existe esquerda fora dos meios
governamentais que tem como objetivo, sim, o socialismo. Em segundo lugar, o que
seria este Estado do bem-estar social? Pois, os sucessos dos governos na América
Latina no século XXI, com exceção da Bolívia, da Venezuela e do Equador que ainda
resistem, foram todos temporais e epidérmicos. Portanto, não vivemos tal estado, em
canto algum da querida América.
Pensando no caso brasileiro há, contudo, outra afirmação ainda mais
emblemática e à qual nos deteremos com mais atenção: trata-se de uma pérola de
Marcio Pochmann. Segundo o ex-presidente do IPEA, ―foi a grande política [de Lula!]
que salvou o Brasil da pequenez do destino imposto pelo neoliberalismo, assim como
impediu o retorno das políticas do desenvolvimentismo tradicional‖ (2010, p. 55). Esta
afirmação otimista, para dizer o mínimo, se justifica somente se consideramos que sob o
lulismo (os dois governos de Lula 2003-2006 e 2007-2010 e os três primeiros anos da
sua sucessora Dilma 2011-2013) os apologistas do suposto ―novo desenvolvimentismo‖
gozaram de legitimidade e alta popularidade. Pois, é fácil seguir o curso do rio; desta
maneira, por conveniência ou oportunismo, não faltavam defensores do lulismo e seu
modelo desenvolvimentista.
Como apontamos o ―novo desenvolvimentismo‖ foi uma ideologia econômica e
política, hegemonizada e levada a cabo pelo lulismo, que se propunha atender todas as
classes da sociedade, sem distinção. Fundamentou-se, por um lado, basicamente no
crescimento econômico, ainda que sob este aspecto estritamente, o dito crescimento
brasileiro apresentou desempenho medíocre como demonstrou cabalmente Gonçalves
(2010), não obstante o boom das commodities internacionais. E mais: já é amplamente
aceito entre aqueles e aquelas que se propõem a analisar aquele contexto,
188
independentemente de sua opção política, que o Brasil foi especialmente beneficiado
pela conjuntura internacional. E, talvez, um dos exemplos mais emblemático desse
diagnóstico, seja a fala do próprio ex-presidente Lula, quando disse repetidas vezes em
face da última grande crise sistêmica em 2008, que por aqui os efeitos seriam o de uma
marolinha. Por outro lado, o lulismo legitimou-se no desenvolvimento de algumas
políticas sociais voltadas ao atendimento dos mais pobres entre os mais pobres, como
por exemplo, o programa Bolsa Família, que chega à aproximadamente 50 milhões de
brasileiros/as.
Essa ideologia foi vitoriosa, por dez anos, até que a crise estrutural do capital se
fez sentir no Brasil e que as massas fossem às ruas. De modo que, as mobilizações de
junho de 2013 expressaram e comprovaram que não estava tudo bem no Brasil.
Finalmente a crise havia chegado ao país. Porém, desta vez não como uma
―marolinha‖, mas, como um ―tsunami‖! Além disso, esta nova conjuntura demonstrou
que a classe trabalhadora já sentia os efeitos das iniciativas burguesas para manter a taxa
de lucro dos capitalistas e o quão efêmero e superficial eram as políticas voltadas para
os mais pobres sob o lulismo. Registre-se que as agendas do bloco de poder que
proferiu o golpe parlamentar, midiático e empresarial contra o lulismo estão sendo
institucionalizadas- através das contrarreformas - desde os primeiros dias de governo. Já
as políticas lulistas não foram institucionalizadas – em treze anos de governo. Desde
então, o pacto de classe proposto pelos governos do PT, se quisermos, pelo lulismo
entrou em crise. Além do mais e concomitante a isso, deu-se a retomada das
mobilizações massivas em nossa sociedade.
Mas o governo Lula foi entre tantos outros aspectos, um governo contraditório.
Como apontamos, foi um governo de composição de classes. Na linguagem do senso
comum, ―acendia uma vela a Deus e outra ao Diabo‖. Mas, afinal, qual o legado dos
governos do PT?
Primeiramente, é que com a vitória de Lula e os programas sociais (Bolsa
Família, Pro-une, Políticas de Cotas, Minha Casa Minha Vida, FIES etc.,)
implementados nos dois governos petista com êxito (2003-2010), pode-se dizer que
chegamos enquanto classe social a uma vitória simbólica dos trabalhadores. Para os
apologistas do ―novo desenvolvimentismo‖, enfim, a classe trabalhadora havia chegado
ao governo e com ―eficiência95
‖. Esqueceu-se de ponderar que para o pensamento
95
Para um aprofundamento do debate e crítica sobre os termos eficácia e eficiência, como critérios de
análise das políticas sociais cf. BOSCHETTI, Ivanete. Avaliação de políticas, programas e Projetos
189
neoliberal, eficiência (fazer da melhor forma) e eficácia (atingir os objetivos propostos)
são centrais para o bom funcionamento das empresas capitalistas. No âmbito do Estado,
estes não podem ser os únicos critérios para avaliar se este é eficiente ou não. Pois, de
acordo com Boschetti (2009, p. 580), a ―avaliação de políticas sociais deve se situar na
compreensão do significado do papel do Estado e das classes sociais na construção dos
direitos e da democracia‖.
Além disso, entre 2004-2008, foram os primeiros cinco anos, desde 1985, em
que o desemprego diminuiu e o salário mínimo aumentou recuperando uma parte das
perdas dos anos 1990. Nestas condições, generalizou-se uma sensação de alívio, depois
de vinte anos, aproximadamente, de pioras sucessivas das condições de vida dos
trabalhadores.
Entretanto, o governo Lula deu continuidade à política macroeconômica
implementada pelo governo FHC após a crise de 1999: adoção de metas de inflação,
câmbio flutuante, ajuste fiscal e contínuo aumento do superávit primário, entre outros.
A política econômica adotada pelo novo governo baseou-se, fundamentalmente, numa
continuidade ―aperfeiçoada‖ do paradigma neoliberal.
Aperfeiçoada porque segue a cartilha do grande capital de maneira absoluta ao
combinar a ortodoxia político-econômica dos governos anteriores com a particularidade
da política social: o governo Lula acrescentou à aplicação do neoliberalismo o
tratamento diferenciado às questões sociais. Ao fortalecer programas do tipo bolsa-
família, que não são construídos como direitos dos trabalhadores, mas como
―benefício‖, ele legítima a política econômica e os problemas sociais são tratados como
esmola. Com isso, o governo Lula96
anestesiou de maneira impressionante a classe
operária e os camponeses brasileiros.
Contudo, a história já havia indicado e nos fornecido algumas lições a esse
respeito, quando na Idade Média a Igreja Católica formava sua hierarquia com as
melhores cabeças do povo, pondo de lado posição, nascimento e fortuna, o que era um
sociais. In: CFESS/ABEPSS. Serviço Social: Direitos Sociais e Competências Profissionais. Brasília:
CFESS, ABEPSS (p. 575‐593), 2009. A autora desenvolve uma crítica sobre avaliação de eficácia e
eficiência.
96
Sem querer fazer uma análise moral do governo Lula, pois isso está longe de ser o objetivo, nem são
nosso objeto de análise os oito anos do governo Lula. Entretanto, cabe aqui um comentário. Talvez fosse
arriscado demais afirmar que Lula é um dos homens mais ―valiosos‖ da classe trabalhadora, mas ele é,
sem dúvida nenhuma, fruto de muitos anos da vida de luta de milhares de homens e mulheres desse país,
e principal dirigente e formulador do PT. Esse fato traz um peso muito grande para a esquerda brasileira e
contribui, na nossa opinião, para o quadro de confusão, de despolitização e descenso do movimento de
massa.
190
dos principais meios de fortalecer o domínio do clero e de subjugar os leigos. Marx é
enfático a esse respeito: ―quanto mais uma classe dominante é capaz de acolher em seus
quadros os homens mais valiosos das classes dominadas, tanto mais sólido e perigoso é
seu domínio‖ (MARX, 1975, p. 689).
Observa também Luciano Gruppi (1978) que Marx ―explica a história
remontando-se à estrutura capitalista subjacente aos vários eventos, mas também à
análise das forças políticas, à análise das personalidades individuais e da função que
estas desempenham‖ (GRUPPI, 1978, p. 129 - Itálicos meus).
Pode parecer contraditória, e de fato o é; no entanto, é compreensível a posição
política do bloco político-social frente à eleição do primeiro presidente operário, pois o
realinhamento do bloco em torno do novo governo era uma análise concreta de uma
situação concreta visando acumular forças. O problema é que, de acordo com Iasi,
aquilo que chega ao governo em 2002 não é mais o mesmo partido fundado há mais de
20 anos. Mesmos ardorosos defensores da atual forma, e que não vão concordar com a
tese da morte, preferindo identificar nos sinais de apodrecimento tons saudáveis de
maturidade, são obrigados a confessar que o PT mudou muito (2006, p. 359).
Ocorre que, para piorar este quadro, o realinhamento do bloco político- social
deu-se de forma acrítica, como uma espécie de ―cheque assinado em branco‖. Embora
não seja objeto de análise as condições que levaram à vitória de Lula, cabe no mínimo
um destaque para ilustrarmos do que estamos falando – a ―Carta ao povo brasileiro‖,
divulgada por Lula meses antes do pleito eleitoral. De acordo com Iasi, ―a experiência
petista chega ao governo concedendo vantagens à burguesia antes mesmo de ser eleita,
como pode ser vista na famosa ―Carta aos brasileiros‖, ironicamente batizada de ―Carta
aos banqueiros‖ por línguas maledicentes‖ (IASI, 2006, p. 548). Não obstante, a
expectativa era grande do ponto de vista do MST, representando o campo brasileiro, e
da CUT, representante dos sindicalizados e urbanos.
Em segundo lugar, pela nossa histórica herança cultural, escravagista e de
menosprezo às classes subalternas; o fato de um operário com um dedo a menos, que
fala errado, oriundo das classes menos favorecidas, portanto pobre, ter assumido o posto
mais alto da democracia burguesa, é insuportável para as elites brasileiras. Desse modo,
pode-se dizer que o lulismo ajudou a quebrar (ainda que temporariamente) a ideia
cunhada pelas classes dominantes de que pobre é incompetente.
No entanto, por outro lado, precisaremos de uma década para limpar o limbo
deixado pela esquerda hegemônica das duas primeiras décadas do século XXI. Pois, na
191
história do nosso país a esquerda jamais havia sido acusada de ladra, de corrupta etc.,
agora, provavelmente, precisaremos de alguns anos para demonstrar que não somos
iguais aos políticos tradicionais. Desta maneira, assim como foi o lulismo como
governo, teremos uma herança contraditória do PT. Em curto prazo, o que fica de
imediato é uma bandeira vermelha imaculada pela leniência, pela complacência etc.
etc., dos núcleos dirigentes do lulopetismo. Já a médio e longo prazo, os efeitos
politicamente e organizativamente regressivos da hegemonia do lulopetismo ao
absorver ―transformisticamente‖ o conjunto do bloco político-social que desenvolvia
uma crítica social ao sistema sociometabólico do capital em nosso país, desde os idos
anos 80 e por toda da década de 90, pode ser, ainda, mais devastador. Pois, uma derrota
política faz parte do jogo, e decerto, depende sempre de conjunturas favoráveis e de
correlações de forças. Porém, uma derrota moral, dificilmente pode ser revertida pelas
mesmas formas organizativas que a sofreram. Para o conjunto dos trabalhadores/as
brasileiros/as, a derrota aparece através dos ataques ostensivos aos direitos conquistados
e na onda conservadora97
vigente no país.
Cabe destacar, que a primeira vitória eleitoral de Lula e seu partido não
resultaram de amplas e massivas mobilizações do conjunto dos trabalhadores e
trabalhadoras; ao contrário, por mais paradoxal que possa parecer, pois em suas origens
o PT priorizava a organização de base e as grandes mobilizações como meios de se
alcançar uma sociedade diferente, a vitória eleitoral de 2002 deu-se num contexto de
refluxo das lutas de massas e de defensiva do mundo do trabalho. Entretanto, não há
menor justificativa para que Lula no governo cumprisse todos, absolutamente todos os
contratos com o capital, e não cumprir nenhum dos compromissos assumidos com os
trabalhadores organizados no bloco político-social que o sustentou historicamente. Por
exemplo, na contrarreforma da previdência (2003), ampliou a idade de aposentadorias;
os movimentos sociais do campo tiveram seu projeto de Reforma Agrária abortados em
dezembro do mesmo ano, entre outros, para citar apenas estes dois casos.
Valendo-se mais uma vez de categorias gramscianas, objetivando fundamentar
teoricamente que país foi aquele sob o Lulismo, retornamos ao conceito de revolução
passiva. Começamos por identificar, os traços principais de uma revolução passiva: de
acordo com Coutinho (2010), para Gramsci,
97
DEMIER, Felipe e HOEVELER, Regiane. (Org.) A onda conservadora. Rio de Janeiro: ed. Mauad,
2016. Além de expor detalhadamente as origens da ofensiva da direita no país, como aponta Netto na
orelha do livro, este é uma prova que a esquerda haverá de resistir.
192
uma revolução passiva implica sempre a presença de dois momentos: o da
―restauração‖ (trata-se sempre de uma reação conservadora à possibilidade de
uma transformação efetiva e radical proveniente de baixo) e o da ―renovação‖
(no qual algumas das demandas populares são satisfeitas ―pelo alto‖, através
de concessões das camadas dominantes). [...] A revolução passiva, portanto,
não é sinônimo de contrarrevolução nem mesmo de reformas; na verdade,
numa revolução passiva, estamos diante de um transformismo ―pelo alto‖ [...]
de complexa dialética de restauração e revolução, de conservação e
modernização (COUTINHO, 2010, p. 33/34).
Este conceito, ao lado de via prussiana e modernização conservadora, é o que
melhor nos ajuda a compreender o processo de transformação pelo qual passou nossa
sociedade, pois, esta estratégia (restauração e renovação) foi recorrente na história do
Brasil até a ―Nova República‖ em 1985. Decerto, desde a Constituição Federal de 1988,
não se pode dizer que vivemos processos com estas características. Ao contrário, desde
a constituição cidadã, vivemos períodos de contrarreformas. Por isso, ―não é possível
caracterizar o processo em curso [o neoliberalismo dos anos 1990 e primeira metade dos
anos 2000] como modernização conservadora, mas como uma contrarreforma, que
mantém a condução conservadora e moderniza apenas pela ponta – a exemplo da
telefonia‖ (BEHRING, 2008, p. 198).
Sob os governos do PT, Coutinho defende a tese de que o que vivemos, é uma
tentativa de supressão radical daquilo que Marx chamou de ―vitória da economia
política do trabalho‖ e, por conseguinte, de restauração plena da economia política do
capital; por isso, parece mais adequado, para uma descrição dos traços essenciais da
época contemporânea, utilizar não o conceito de revolução passiva, mas sim o de
contrarreforma (COUTINHO, 2010, p. 37).
É importante frisar, como apontamos a pouco, que este processo vem desde os
anos 1990, quando da hegemonia do neoliberalismo. Desta maneira, para Coutinho
(2010) a ofensiva neoliberal, ao longo dos anos 1990, consolidou entre nós a hegemonia
da pequena política e o ―americanalhamento” da política (falsa oposição entre
republicanos e democratas nos EUA), o que envolve a redução da política à ―pequena
política‖ praticada indiscriminadamente por todos os partidos e num ambiente
generalizado de corrupção. Em termos brasileiros, o ―americanalhamento‖ da política
se expressa nas diferenças insignificantes entre PT e PSDB e no nível de corrupção
impregnado historicamente no Estado brasileiro.
Sobre os conceitos de ―grande política‖ e ―pequena política‖, observou Gramsci
que: grande política (alta política) – pequena política (política do dia a dia, política
parlamentar, de corredor, de intrigas). A grande política compreende as questões ligadas
193
à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de
determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política corresponde
as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já
estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de
uma mesma classe políticas. Portanto, é grande política tentar excluir a grande política
do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política... (GRAMSCI, 2016,
p. 21-22).
Buscando uma interpretação e uma atualização das formulações gramsciana, de
acordo com Coutinho (2010), Gramsci não trata os conceitos de ―grande‖ e ―pequena
política‖ como meros conceitos, mas como instrumento essencial à análise das
situações, das relações de força. Em função disso, e acrescente-se que para as classes
subalternas, o predomínio da pequena política é sempre sinal de derrota, esse
predomínio pode ser - e quase sempre o é efetivamente - a condição da supremacia das
classes dominantes.
Noutras palavras, o que a classe dominante quer, além de manter seus lucros e
privilégios, é manter toda luta de classes dentro dos limites da pequena política,
evitando com isso a contradição maior, ou seja, o choque entre a manutenção desta
ordem estabelecida contra a necessidade de superá-la e construir novas formas
societárias.
Cabe lembrar que para Gramsci (2004) existe hegemonia quando um grupo
social obtém o consenso de outros grupos para suas propostas e, portanto, quando a
ação teleológica do primeiro grupo incide com êxito naquela do segundo.
Consequentemente a essa formulação Gramsciana, hegemonia é consenso, e não
coerção. Pois, existe hegemonia quando indivíduos e grupos sociais aderem
conscientemente a certos valores. Mas, de acordo com Coutinho,
como observa Gramsci, existe consenso ativo e consenso passivo. A
hegemonia da pequena política baseia-se precisamente no consenso passivo.
Esse tipo de consenso não se expressa pela auto-organização, pela participação
ativa das massas por meio de partidos e outros organismos da sociedade civil,
mas simplesmente pela aceitação resignada do existente como algo ―natural‖.
Também contribuem para difundir essa hegemonia da pequena política todos
os que dizem que vivemos o fim das ideologias, que a diferença entre a
esquerda e a direita desapareceu (COUTINHO, 2010, p. 31).
Acreditamos que reside nesta formulação uma diferença significativa da era
neoliberal de FHC do período de Lula. No primeiro, a hegemonia não era passiva, ao
contrário, houve muitas lutas contra o governo e a ideologia neoliberal. Embora
194
tenha ocorrido visíveis indicadores do recuo das lutas coletivas da classe trabalhadora
brasileira, a partir dos anos 1990, as lutas eram ganhavam notoriedade por serem contra
o modelo neoliberal, especialmente as protagonizadas pelo MST. Mattos (2014) recorda
que em 1989, no auge do ciclo de lutas sociais que marcou o fim da ditadura civil-
militar instalada em 1964, ocorreram cerca de 4.000 greves no Brasil. Nos anos
seguintes este número foi caindo, até atingir 1.228 greves em 1996, 525 em 2000 e 299,
em 2005, num dos pontos mais baixos da curva (o menor número foi de 298 em 2002).
Embora tenha ocorrido uma queda muito significativa das greves no período 1995-
2002, isso não significa ausência de lutas relevantes, como pode ser visto pelos dados
do Dieese pelo número de trabalhadores envolvidos e pelas horas de trabalho perdidas
em virtude das paralisações. As lutas dos movimentos sociais do campo foram muito
intensas no período, particularmente as protagonizadas pelo MST.
Para explicar tal declínio das mobilizações organizadas dos trabalhadores,
podemos elencar diversos fatores: o desemprego e a precarização das relações de
trabalho decorrentes do processo de reestruturação produtiva que se acelera a partir da
década de 1990; o progressivo apassivamento da maioria da direção sindical mais
combativa (reunida em torno da Central Única dos Trabalhadores, a CUT), que ao longo
dos anos 1990 adere progressivamente a uma lógica conciliatória e amolda-se à ordem
do capital e à estrutura sindical oficial; e, já nos anos 2000, a incorporação de dirigentes
sindicais aos governos capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores, acompanhada da
transformação da CUT em braço sindical dos governos petistas e de sua definitiva
incorporação à estrutura sindical oficial. Explicar detalhadamente cada um desses
fatores demandaria mais espaço e tempo do que dispomos aqui98
.
Já sob o lulismo, o consenso foi passivo como o comprova o número de greves
posto em tela. No campo ocorreu o mesmo descenso com o número de ocupações de
terras improdutivas. Em relação ao MST, entre os anos de 1997 e 2004, ele ampliou
consideravelmente seu leque de apoio e de base social. Nesse período, como podemos
observar no gráfico abaixo, ingressaram no movimento algo em torno de 650 mil novas
famílias através dos mais de 4.400 acampamentos espalhados Brasil afora.
98
MATTOS, Marcelo Badaró. Greves no Brasil: o despertar de um novo ciclo de lutas? IN. Esquerda
online, 2014.
195
Observamos que nos anos de 2001 e 2002 o número de ocupações caiu
drasticamente. Podemos interpretar estes números de duas maneiras. Uma primeira
hipótese bastante plausível é que tal redução tenha se dado devido à forte repressão do
governo FHC, que havia declarado o MST seu inimigo número um. Uma outra hipótese
considera que, neste período, o PT e o núcleo duro da campanha do então candidato
Lula - visualizando a possibilidade concreta da vitória – avaliaram como ruim manter
um elevado número de ocupações e de lutas diante dos olhos da sociedade, podendo
fazer o partido perder votos e inviabilizar a vitória. Nesta segunda hipótese, se
comprovada, revela-se a forte influência do PT sobre o bloco político-social.
Nos anos seguintes à vitória eleitoral, mais claramente, nos dois primeiros anos
do governo Lula, o movimento voltou a massificar o número de acampamentos. Somou-
se a esta considerável base social todo um leque de apoio urbano, seja ele organizado ou
não. Isso proporcionou um salto quantativo no MST, fruto do trabalho qualitavo
(formação política, relação com a sociedade e trabalho de base) feito ao longo dos anos
precedentes. Quer dizer, anos de 2003 e 2004, como podemos confirmar no gráfico
acima, o MST mobilizou mais de 200 mil novas famílias em mais de 1.200 novos
acampamentos, em todos os estados onde estava organizado, o que em números
absolutos ultrapassou mais de um milhão de pessoas mobilizadas em torno das
bandeiras de lutas levantadas pelo movimento. Portanto, o MST mobilizou massas
urbanas, contribuíu com a organizaçao do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto -
MTST, mais tarde do Movimento dos Trabalhadores Desempregados - MTD etc.;
contudo, no último período esta estratégia de atuação do MST foi se arrefecendo e
perdendo a sua magnitude. As manifestações espontâneas das massas urbanas em junho
196
de 2013 são reveladoras neste sentido. O MST, surpreendentemente, apareceu alheio e
foi ignorado, ou seja, sem qualquer influência sobre aquelas massas mobilizadas.
Em relação ao PT, este se mostrou viável eleitoralmente; vimos isso com a
eleição de Lula em 2002, depois sua reeleição em 2006 - mesmo após sofrer uma
ofensiva em decorrência do ―mensalão‖, em 2010, Lula fez seu sucessor elegendo
Dilma Rousseff presidente. Embora com muitos descontentamentos internos em torno
da escolha da candidata de Lula à presidenta e, por último, atravessando grandes
manifestações de ruas em junho de 2013, Lula e o PT conseguiram efetivar a reeleição
de Dilma em 2014 - ainda que por diferença pequena de votos. Desse modo, podemos
concluir que o partido se transformou em uma máquina eleitoral distante das
organizações sociais das massas e o seu programa, que outrora representava os
trabalhadores, regrediu para um (neo) desenvolvimentismo.
Em relação ao MST, este continuará cumprindo um papel histórico e poderá
cumpri-lo por um longo período ainda. Tem um legado inquestionavel. Poderá, com
certeza, se somar às futuras lutas das massas urbanas. No entanto, é pouco provável que
estará contribuindo enfaticamente na condução dos processos. Isso porque a força que
impulsionou o MST se esgotou, assim como as forças que impulsionaram o PT e a CUT
ao longo das duas últimas décadas dos século XX. Mas o MST tem e continuará tendo
seu lugar na história pelo que fez.
O paradoxo é evidente, pois o MST foi, em nossa avaliação, a organização
social que mais acumulou forças significativas ao longo dos anos 1980 e 1990. Deveria,
pelo acúmulo histórico que tem, pelo capital político que aporta, contribuir de forma
mais abrangente e sistemática no processo de superação da forma social excludente e
opressora que impera em nossos dias.
Mas retornemos as formulaçoes Gramsci (2016): como se sabe, o grande
dirigente do PCI chamou a atenção para uma importante consequência da revolução
passiva: a prática do transformismo como uma das formas ou modalidade de
desenvolvimento histórico, um processo que, através da cooptação de lideranças
políticas e culturais das classes subalternas, busca-se excluí-las de todo efetivo
protagonismo nos processo de transformação social. Assim, é característica do
transformismo a constituição de uma classe dirigente cada vez mais ampla por meio da
absorção gradual e contínua dos elementos ativos surgidos dos grupos aliados e mesmo
dos adversários que pareciam inimigos irreconciliáveis. Em função disso, para Coutinho
197
(2010, p. 39), ―o transformismo como fenômeno político não é exclusivo dos processos
de revolução passiva, mas podem também estar ligados a processos de contrarreforma‖.
Esse transformismo deu-se num primeiro momento nos países centrais do
capitalismo e mais tarde, nos países de capitalismo dependente, como o Brasil, de FHC
e de Lula. Desse modo, segundo Coutinho, ―é também o transformismo que explica a
conversão, no Brasil de Lula, de importantes lideranças sindicais em gestores de fundos
previdenciários públicos, ou seja, uma nova fração das classes dominantes99
‖ (In.
OLIVEIRA, 2010, p. 39).
Tanto nos países centrais como nos de capitalismo dependente, identificamos
três objetivos do transformismo; o primeiro visa destruir as forças políticas das classes
subalternas através de cooptação das lideranças (no nosso caso, podemos citar vários
―companheiros‖ que entraram nas estruturas do Estado e foram absorvidos
completamente100
); o segundo, opera na desarticulação das lutas centrais por outras
bandeiras e forma de organização social menos questionadoras da ordem (podemos citar
o exemplo da pulverização de organizações sociais101
e ao mesmo tempo a falta de
unidade em torno de um objetivo maior - não se fala em socialismo como projeto
alternativo a formação societária atual, quem ousa levantar a bandeira é acusado até pela
esquerda! etc.); e terceiro, semeia o desentendimento generalizado no espectro da
esquerda (até 2003 quando Lula assume a presidência, havia entre nós, três centrais102
sindicais; porém durante seu governo chegamos a incrível marca de oito centrais103
).
99 Como já assinalamos, Oliveira (2010) chama de uma nova classe.
100
Talvez um dos casos mais emblemáticos seja o do ex. dirigente da CUT, Luiz Marinho; ele foi
ministro do Trabalho e Emprego (2005/6) e ministro da Previdência Social (2007/8) no governo Lula. E,
foi durante o primeiro governo Lula que a reforma trabalhista entrou na pauta do dia, contrariando a
expectativa de milhões de trabalhadores.
101
Cabe ainda destacar o tanto de siglas partidárias que surgiram nos últimos anos – já passam de 30.
Assim, temos uma grande quantidade de partidos clientelísticos cujo objetivo consiste, no fundamental,
em obter cargos e benesses do Estado. Mesmo um grande partido como o PMDB tem funcionado como
base fisiológica de diferentes governos desde a Nova República.
102
Desde a redemocratização do país, em 1985, até 2002, conhecíamos a Central Única dos
Trabalhadores – CUT (fundada em 1983 -, vinculada ao PT), a Central Geral dos Trabalhadores do Brasil
– CGTB (fundada em 1986), e a Força Sindical – FS (fundada em 1991-, com apoio do PSDB, hoje
vinculada ao Solidariedade).
103
A partir da eleição de Lula surgiu à Nova Central Sindical de Trabalhadores – NCST (junho de 2005),
a INTERSINDICAL (fundada em maio de 2006 - está mais ligada ao PCB), à Central dos/as
Trabalhadores/as do Brasil - CTB (fundada em 2007 - está ligada ao PCdoB, buscando assim, ser uma
alternativa a FS e a CUT), à União Geral dos Trabalhadores – (fundada em julho de 2007 -, está mais
ligada ao PDT) e à Conlutas (fundada em junho de 2010 -, vinculada ao PSTU). No momento que
198
Para Oliveira (2010), FHC desestruturou o Estado para implementar o modelo
neoliberal, enquanto Lula desestruturou a sociedade, fragmentando o acúmulo de mais
de 30 anos das forças de esquerda. O lulopetismo esqueceu-se que as instituições desse
mundo são formas para governar e manter esse mundo. No entanto, talvez se o PT não
tivesse aderido ao ―neodesenvolvimentismo”, não poderia ter experimentado o gostinho
do poder. Porém, o problema não é de ideologia (embora pensamos e agimos em certa
medida conscientemente), é de prática social – pois, são nossas práticas sociais que
reproduzem este mundo. Mas, se por um lado, não podemos concordar com os liberais
genuínos, apostando no quanto pior melhor, por outro, não podemos referendar
continuamente projetos de poder personalistas e que não se referendam nas
organizações dos trabalhadores organizados.
Sem personalizarmos os processos sociais, contudo, faz-se necessário um
exemplo emblemático que expressa esta estratégia de conciliação de classe ―pelo alto‖ e
explicita a reiteração destes traços característicos da Brasil. Trata-se da figura de José
Sarney. Este personagem foi presidente da ARENA, partido que era base de sustentação
política do regime civil-militar instaurado em 1964 e que perdurou por 20 anos, até
1984; foi o primeiro presidente durante o processo de abertura democrática e decisivo
de nossa história (nestes anos tivemos a Constituinte, a Constituição de 1988 e as
primeiras eleições diretas depois do golpe) de 1985 a 1988; nos anos 1990, após o
Impeachment de Collor, apoiou o governo interino de Itamar Franco (1993/94) e foi
base importante de sustentação do governo Fernando Henrique Cardoso durante seus
oito anos de mandato. Lembremos que Sarney, agora no PMDB, foi presidente do
Senado de fevereiro de 1995 a 1997 quando entregou o cargo a Antônio Carlos
Magalhaes (PFL104
); já nos governos do PT, foi presidente do Senado Federal por duas
vezes, de fevereiro de 2003 a fevereiro de 2005 e entre os anos 2009-2010, sendo assim,
base forte de apoio de sustentação dos dois mandatos de Lula. Apoiou Dilma nos
primeiros anos de governo e, finalmente, participou ativamente da construção do golpe
político parlamentar-midiático-empresarial dado no lulopetismo e na Presidenta.
Esperava-se o que de uma figura com este perfil?
escrevemos estas linhas ocorrerem mudanças nesta última forças que ainda não nos permitem uma análise
mais detalhada. 104
Uma curiosidade histórica e reveladora: desde o inicio da Nova República (1985) até os dias atuais,
com exceção de Antônio Carlos Magalhaes do antigo PFL, atual DEM e de Tião Viana do PT (que
assumiu a presidência por um curto período, de setembro a dezembro de 2007 após e renuncia de Renan
Calheiros, que é atual presidente, visando fugir da cassação e da elegibilidade), todos os demais
presidentes do Senado foram homens do PMDB!
199
O impeachment da Dilma talvez seja a prova cabal de que a conciliação de
classes não existe numa sociedade dividida em classes antagônicas. Qualquer tentativa
de conciliação em tais formações sociais fracassa. Mesmo Singer reconhece que ―sob a
condução de Dilma, o lulismo apostou numa coalizão de forças entre industriais e
trabalhadores, que fracassou‖ (SINGER, 2016, p. 23). Portanto, o transformismo trata
de estratégias políticas que mascaram, negam ou esmaecem o conflito e o antagonismo
de classes e estabelece alianças de classes na manutenção das estruturas dominantes.
Finalmente, cadê destacar aquilo que é obvio para a ampla maioria da classe
trabalhara brasileira: ou seja, que vivemos temos difíceis no Brasil. Tempos obscuros e
de grandes incertezas. Por isso, é importante elencamos um exemplo emblemático deste
processo, ou seja, daquilo que ficou conhecido como sendo a onda conservadora.
Vejamos de maneira telegráfica a situação em que nos encontramos após treze
anos de hegemonia lulista. A política nacional é hegemoniza por uma quadrilha de
engravatados da pior espécie. Esse grupo de sequazes perpassa todos os poderes
instituídos oficialmente: ou seja, é constituinte do Estado Democrático e de Direito. Por
exemplo, no momento em que escrevemos este trabalho, no executivo temos como
presidente Michel Temer; ao seu lado, como ministros, Jedel Vieira Lima, Romero
Juca, Moreira Franco, Eliseu Padilha e por aí vai. No Senado, Renan Calheiros, Romero
Jucá, Eunicio Oliveira etc. Na Câmara, Rodrigo Maia, Carlos Marun. E, no Supremo
Tribunal Federal - STF, além do já conhecidíssimo Gilmar Mendes, juntam-se agora
com o mais novo indicado de Temer, Alexandre de Moraes. Destes citados, excetos o
último ministro do STF e o Presidente da Câmara dos Deputados, todos os demais já
figuraram ao lado de Lula ou de Dilma.
Por fim, registre-se que no momento em que a Operação Lava Jato atingiu os
donos dos principais partidos do país (PMDB, PSDB etc.) a Folha de São Paulo publica
uma entrevista de Romero Jucá (que foi Ministro da Previdência de Lula). O que diz o
prócer do poder no Brasil: que “paira uma nuvem negra sobre todos os políticos”.
Além disso, diz o Senador, que se se “parte para uma generalização e quer exterminar
a política” em 2018 podemos chegar “vulnerável a qualquer tipo de loucura”. E,
concluí o eminente político que ―não se pode quebrar o modelo‖: pois, ―eu acho que a
gente deve ter cuidado com o país, porque a estabilidade é fundamental‖ (FSP, 21 de
março de 2017, A4).
Poucos dias antes dessas pérolas serem proferidas por quem por muito tempo
esteve sorrindo e transitando sob o lulismo, o mesmo jornal, tinha entrevistado o
200
Senador Aécio Neves, que era (antes de ser pego pedindo dois milhões de reais ao dono
da JBS) uma espécie de porta-voz do pensamento da ampla maioria dos políticos
brasileiros diante da Operação Lava Jato, dizendo que ―não se pode deixar o país nas
mãos de um salvador da pátria”, e que portanto era ―preciso salvar a política‖, pois do
pondo de vista do senador, ―não podemos deixar que tudo se misture‖(FSP, 8 de março
de 2017).
Por fim, é importante se perguntar. O lulismo não teve nenhuma
responsabilidade com a conformação deste Congresso. Ora, óbvio que teve. Ou o
lulismo quer somente os bônus de seu governo e os ônus responsabilizar terceiros? É
preciso não esquecer que a grande maioria dos homens do governo Temer, foram base
de apoio, seja na Câmara, no Senado ou com Ministérios durante a hegemonia lulista.
Basta lembrar o próprio presidente Temer, que era vice de Dilma e de Lula.
4. 4 Estado, governos, partidos e corrupção
Já refletimos do ponto de vista histórico e teórico sobre Estado ao longo do
primeiro capítulo. Por isso, limitemo-nos agora a dizer que Estado e governo são coisas
diferentes em qualquer sociedade dividia em classes sociais. Porém, frequentemente,
propositalmente ou não, confundem-se como se estes fossem uma coisa só.
O Estado brasileiro é composto pelos poderes executivo (em nível municipal as
prefeituras, em nível estadual os governadores e nacionalmente o/a Presidente da
República), legislativo (vereadores, deputados estaduais, federais e senadores) e
judiciário (todo o sistema de leis, as forças armadas do exército - da Marinha e da
Aeronáutica). Intimamente ligado a estas instituições, temos ainda; os ministérios em
nível nacional, as secretarias estaduais nas federações e as secretarias municipais que
variam de acordo com as políticas e prioridades dos governos. Todas estas instituições
são regulamentadas pela Constituição Federal (que é a lei máxima da nação), como
sendo três esferas administrativas; a federal, a estadual e a municipal.
Os representantes políticos no âmbito destas esferas, presidente,
governadores/as, prefeitos/as, vereadores/as, deputados/as estaduais, deputados/as
federais e senadores/as, num Estado democrático de direito, são eleitos pelo voto
popular direto da maioria da população. Todos os governos representam partidos
políticos, ideologias, classes sociais e elegem-se por meio de alianças políticas e
correlações de forças. Pode-se dizer que o caráter de um governo, seja municipal,
estadual ou nacional, mede-se pelos interesses de classe que este ou aquele representa
201
que por vezes são abertos, e por vezes ocultos, o que dificulta uma compreensão mais
sistemática do caráter de classes envolvido.
A história brasileira no que se refere aos partidos políticos e as eleições, nuca foi
homogênea e menos ainda estável. Os sistemas partidários foram mudando, mas,
conservando-se sob alguns aspectos. Convém chamar a atenção, que desde 1945 se
realizam no Brasil eleições com prazos regulares, no entanto, praticamente nenhuma
delas foi disputada sob as regras idênticas à precedente. E, desde a segunda metade dos
anos 1980, o país vive uma constância no que se refere ao voto livre para o Executivo e
o Legislativo em todos os âmbitos de disputa. No que diz respeito às mudanças nas
regras do jogo, ou seja, nas eleições, os motivos para isso foram os mais diversos
possíveis, desde novas leis, como as que presenciamos nos dias atuais, a inserção de
novas tecnologias, objetivando digitalizar e informatizar o processo eleitoral até as
votações indiretas, como as vividas sob as intervenções militares.
Pelas características de capitalismo dependente, o sistema partidário brasileiro,
também carece de genuinidade; entre as principais características dos partidos políticos
no Brasil, seja ele situado no espectro da esquerda ou da direita, em linhas gerais,
destacam-se a fragilidade organizativa e ideológica. Igualmente salta aos olhos o seu
caráter efêmero e maleável. Podemos então observar, por um lado, suas fracas raízes na
grande massa da população como ficou comprovado nas eleições de 2014 quando não
foi possível mais o financiamento empresarial aos partidos, isso os obrigou a recorrer às
contribuições de pessoas físicas: o resultado foi desastroso, os recursos arrecadados
foram pífios, irrisórios. E, por outro lado, ficou evidente a grande dependência de
recursos financeiros, seja ele público ou privado, sobretudo de grandes empresas.
Além disso, cabe destacar o grande número de partidos que existe no Brasil,
como em nenhum outro lugar do mundo e a autonomia com que desfrutam os políticos
em face dos seus partidos; estes são meros trampolins para os políticos alçarem voo. Em
outras palavras: no Brasil, os políticos são maiores que suas organizações partidárias. O
exemplo mais emblemático desta constatação é o caso do Lula e sua relação com o PT.
No documentário Entreatos105
(João Moreira Salles, 2004), há uma cena
reveladora a este respeito. Lula está contando anedotas de seu cotidiano operário, bem
105
SALLES, João Moreira. 2004. O documentário Entreatos mostra o ex-presidente Lula nos bastidores
da eleição presidencial de 2002, a trinta dias do segundo turno (27de outubro) que o consagrou como
primeiro Presidente de origem operária da história do Brasil. Além disso, o filme explicita as conversas
com companheiros do partido (José Dirceu, Antônio Palocci, André Singer e Gilberto Carvalho, entre
outros) e suas opiniões sobre o país e como ele esperava ser a vida como Presidente.
202
como do inferno da vida na fábrica, a dureza do trabalho e das humilhações que tinham
de aguentar dos patrões, quando Gilberto Carvalho (seu braço direito) retruca, dizendo
que sente saudades daquele tempo. Lula faz cara de desprezo e diz que não sente
nenhuma saudade da fábrica, só dos amigos, e, provocando seu assessor, diz que se
Gilberto quisesse, arrumava um emprego para ele, de soldador. Gilberto, então,
responde: “Melhor isso do que ter de ir em reunião do Diretório Nacional do PT!”. Ao
que Lula, de forma reveladora, responde: “É por isso que eu não vou em reunião do
Diretório!”. Ora, se a principal liderança e articulador político não reconhece a
importância da suposta principal instância de deliberação do partido, o Diretório
Nacional, que já é em sua essência ele próprio, uma reunião de cúpula, imagine então
por onde passam as principais decisões do partido nos últimos anos?
Cabe destacar, ante de mais nada, que organizar partidos é uma importante
conquista situada no campo dos direitos políticos. No Brasil, esta conquista se apresenta
desde os tempos do Império, quando as rebeliões provinciais da Regência (1831-1840)
contribuíram para as elites se organizarem em dois grandes partidos: O Conservador e o
Liberal, que dominaram a vida política até o final do Império em 1889. O aparecimento
de um partido progressista e a fundação, em 1870, do partido Republicano completou o
quadro partidário Imperial.
Na Primeira República (1889-1930), o Estado Federativo foi inaugurado com a
primeira Constituição do país, em 1891. Dentre alguns dos seus princípios e normas,
constavam na jovem Constituição o sufrágio universal e a abolição do voto censitário -
quem não tinha terra ou renda podia exercer, ainda que limitadamente seus direitos
políticos. Ainda assim, ficaram de fora os analfabetos, as mulheres, os praças de pré, os
religiosos em comunidade claustral e os mendigos: ou seja, mais de 80% da população.
Boa parte categorias somente na constituição de 1988 conquistaram o direito ao voto.
Sob a ditadura civil-militar, os governos militares além combaterem
severamente os movimentos sociais e as organizações de esquerda postas na
clandestinidade, interviram nos sindicatos, caçando mandatos, direitos políticos e civis,
prendendo, torturando e assassinando lideranças sociais. Do mesmo modo, aboliram os
partidos existentes, transformaram em indiretas as eleições para Presidência da
República e instituíram o bipartidarismo. Nesse período, portanto, os partidos políticos
foram extintos e deram lugar a duas agremiações: a Aliança Renovadora Nacional -
ARENA, que era a expressão oficial da ditadura; e o Movimento Democrático
203
Brasileiro – MDB, como oposição consentida. Conta-se que diziam à época, que um
partido era o do ―sim‖ e o outro do ―sim senhor‖!
Contemporaneamente, além do sufrágio (obrigatório) a todos os brasileiros e
brasileiras acima de 16 anos, de acordo com os dados do Tribunal Superior Eleitoral -
TSE106
, temos 35 partidos registrados oficialmente, dos quais 29 contam com próceres
eleitos seja para os cargos do executivo e/ou no legislativo em todas as esferas da
federação. Portanto, sob o lulismo, houve um aumento significativo no número de
partido políticos. Muitos deles, inquestionavelmente, tornaram-se, como se
convencionou chama-los, partidos de ―aluguel‖ ou ―fisiológicos‖.
As alianças entre os partidos tornaram-se mais esdruxulas do que nunca,
expressando, assim, o fim da ideologia política e programática. A título de ilustração,
podemos citar as alianças das últimas eleições presidenciais em 2014. Estavam juntos
nada menos que nove partidos na chapa de Dilma Rousseff: PT, PMDB, PDT, PC do B,
PP, PR, PSD, PROS e PRB. Exceto o PCdoB todos os demais partidos apoiaram o
impeachment de Dilma em 2016.
No entanto, nas eleições municipais de 2016, de acordo com a Folha de São
Paulo (23 de agosto de 2016) em quase dois mil, dos 5570 municípios brasileiros, o
clima de hostilidade da política nacional e a extensa campanha do PT para denunciar
aquilo que foi classificado como ‗golpe‘ parece não ter surtido efeito. Em ao menos
1971 municípios, PT, PMDB, PSDB e DEM formaram coligações para lançar
candidatos a prefeito nas próximas eleições. O fiel aliado do PT e da presidenta Dilma
no cenário nacional, o PCdoB, também protagonizam algumas alianças (mais de
setecentos em todo o país) no mínimo inusitadas, ao lado do DEM, do PMDB e do
PSDB.
Sobre a participação de familiares na política, a título ilustrativo, basta olharmos
apenas os partidos - PT, PMDB, PSDB, PP e PSD - com as cinco maiores bancadas na
Câmara e no Senado Federal. Da mesma forma, se se priorizar os casos de parentescos
de primeiro grau, ou seja, filho/a, irmão/a, pai e mãe, incontestavelmente ver-se-á que
há algo de errado ou no mínimo questionável.
Nestes partidos, predomina a tradição e a continuidade das famílias no controle
partidário. Isto decorre, certamente, da herança cultural dos 388 anos de escravidão
oficial em nosso país. Há época da escravidão, a valoração da pessoa se dava pelo
106
http://www.tse.jus.br/eleitor/estatisticas-de-eleitorado/filiados
204
nome, ou melhor, pelo sobrenome e a cor da pele das pessoas para além do que elas
dispunham de bens materiais. Em função disso, o domínio de famílias sobre a política
perpassa todos os partidos políticos. Para os lideres partidários, a hegemonia do partido
lhe garante a posse do Estado, e daí tudo o mais que conhecemos.
Já apontamos que os partidos têm baixa sustentação de base social. Para
ilustrarmos, citamos o caso de três campos de força e suas respectivas filiações: a
esquerda social-liberal (formada por PT e PCdoB), as esquerdas socialistas (PSTU,
PSOL e PCB) e o campo conservador de direita (PMDB, DEM e PSDB).
De acordo com os dados do TSE107
, a esquerda social-liberal possui no total
1.978.506; sendo do PT 1.586.521 e do PCdoB 391.985 filiados. A esquerda socialista
possui ao todo 154.408 filiados; destes o PSOL tem 122.571, o PSTU 17.408 e o PCB
14.836 de filiados. Portanto, em números absolutos as esquerdas socialistas possuem
cerca de 8% e os liberais-sociais 92%. Os conservadores de direita contam com
incríveis 4.944.123 filiados; o DEM, entre os partidos citados, situados no espectro da
direita detêm o menor numero de filiados, 1.096.256, seguido pelo PSDB com
1.446.311 e o PBDM com 2.402.556. Em números absolutos, entre os 35 partidos
oficialmente registrados no TSE há 16.623.411 filiados. Já o número de eleitores é de
144.088.912 milhões. Portanto, temos nos partidos citados, aproximadamente 11% do
eleitorado filiado, ou seja, uma ínfima participação.
Cabe ainda destacar, de acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro
de Opinião e Estatística – IBOPE durantes os protestos de junho de 2013, que 89%
(oitenta e nove por cento) dos manifestantes não se sentiam representados por qualquer
partido político, e 86% (oitenta e seis por cento) por nenhum político brasileiro (apesar
de termos 35 partidos e um número bastante largo de políticos se considerarmos todas
asa esferas do Estado), evidenciando, dessa maneira, o divorcio entre a sociedade, os
políticos e os partidos.
Sobre o perfil dos governantes eleitos, um dos casos mais emblemáticos da
sociedade brasileira, para citar apenas um dos três poderes, é o da Câmara dos
deputados eleita na última eleição (2014) para o quadriênio 2015-2018. Em seu
conjunto, os parlamentares representam o oposto, ou melhor, a antítese do país em
vários aspectos. Esta incompatibilidade representativa diz respeito, primeiramente, à
107
http://www.tse.jus.br/eleitor/estatisticas-de-eleitorado/filiados
205
questão racial; de acordo com o IBGE108
, 50,7% da população brasileira se declara
negra ou parda (na Câmara, apenas 20% são assim autodeclarados– e nenhum declarou
se Indígena). Além disso, quatro estados apresentam somente parlamentares brancos
(Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Santa Cataria e Tocantins109
); o segundo
exemplo, diz respeito ao nível de escolaridade – na sociedade, apenas 4% dos alunos
que ingressam nos estudos conseguem fazer curso superior (na Câmara, 08 em cada 10
deputados declaram ter curso superior); o terceiro exemplo reflete a desigualdade de
gênero - na contra mão da sociedade brasileira composta por 51% de mulheres, na
Câmara, dos 513 parlamentares apenas 51 são mulheres; o quarto exemplo trata das
classes sociais fundamentais – dos 513 deputados/as, 248 (quase a metade) declararam
ter patrimônio acima de 01 milhão de reais (grosso modo, 85% da população brasileira
são pobres, 5% ricos e 10% da classe média). Contudo, fica fora desta análise, por
motivos de não ser este o espaço, vários aspectos subjetivos dos dados apontados, como
por exemplo, a qualidade da educação entre nós, se os/as senhores/as parlamentares
declaram tudo o que possuem realmente etc. etc. Mas, avaliamos não ser possível neste
espaço.
Pelo exposto, ainda que de forma sintética, percebe-se a maneira de fazer
política não mudou em nada sob o lulismo, ao contrário: reafirmaram-se velhas práticas
como o mandonismo, o clientelismo e a dinastia de famílias no comando dos partidos
ou dos mandatos em todos os níveis. Na verdade, todas as práticas foram
potencializadas, porém, agora, com a participação de dirigentes dos então partidos do
espectro da esquerda, como o PT e o PCdoB, por exemplo.
Antes de encerrarmos esta discussão, cabem ainda alguns breves comentários
sobre o problema da corrupção (muito em voga e bastante recorrente ente nós) no
Estado, em todos os níveis de governos e (com raras e louváveis exceções) generalizada
entre os políticos brasileiros.
A corrupção no Brasil é endêmica e estrutural. Instalou-se em nossa sociedade
desde a invasão portuguesa em abril de 1500, como pode ser confirmado na carta do
escrivão da expedição de Pedro Álvares Cabral, Pero Vaz de Caminha, ao rei de
Portugal que se vê ali um pedido de resoluções de questões privadas por vias públicas.
Caminha que tinha um genro julgado e condenado, preso, portanto, solicitou a Vossa
108
Segundo o senso de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. 109
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/politica/brancos-serao-quase-80-da-camara-dos-
deputados-3603.html>, assim como os demais dados que segue abaixo.
206
Alteza de Portugal: ―peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São
Tomé a Jorge de Osório, meu genro – que d‘ela receberei em muita mercê‖! (FSP, 9 de
janeiro de 2017).
Decerto que desde a época do Império, passando pela República Velha, a Era
Vargas, a Ditadura Civil-militar, o neoliberalismo e o chamado ―novo
desenvolvimentismo‖, a semente que foi plantada por Caminha deu muitos frutos. Mas
atenção, isso não significa que toda a culpa pela corrupção no Brasil seja do escrevinha
de Cabral.
Para ir um pouco além da aparência dos fenômenos, deve-se recorrer, ainda que
telegraficamente, à história. Assim, toma-se como ponto de partida o final do século
XIX, pois, este período é um marco importante para se estudar a origem da corrupção
no mundo e no Brasil. Ao partir desse período, não estamos defendendo que foi
naqueles anos que ela surgiu, pois, a corrupção é uma ―velha senhora‖ que vêm de
longe, como observamos há pouco. Sabe-se que nunca existiu capitalismo sem
corrupção; porém, é na fase imperialista do capitalismo, ou se preferirmos, é sob o
domínio dos grandes monopólios (a partir de 1890) que ela se instaura como parte
constitutiva do sistema. Portanto, a corrupção torna-se endógena do sistema
sociometabólico do capital na fase monopolista do capitalismo.
Pondo-se contrário a ideia de que a corrupção é inevitável ou que ela
supostamente faz parte da ―natureza humana‖, pois em todas as sociedades existiu
corrupção, como defendem os apologistas do sistema, para além de defender que
capitalismo e corrupção sempre caminharam de mãos dadas, Valério Arcary, resgata
uma importante formulação marxiana de que ―não existe fatalismo na condição humana
que nos condene à corrupção‖ (2015, p. 74). Mas, a corrupção é uma prática natural,
infelizmente, das classes dominantes se manterem na hegemonia do seu Estado burguês.
Ela existiu e existe em todas as formas de governos. Portanto, não é um ―privilégio‖ dos
brasileiros, dos latinos e dos asiáticos entre outros. A corrupção é uma maneira das
elites (dos mais altos dirigentes da burocracia estatal) do Estado assaltarem a mais-valia
social por meio indiscutivelmente ―mais fácil‖.
No Brasil, a corrupção não está nem nunca esteve somente no governo federal,
no âmbito do executivo, ou no Congresso e Câmara Federal; é público e notório nos
Governos Estaduais e Assembleias Legislativas, nas Prefeituras e nas Câmaras de
Vereadores; nas empresas públicas e na iniciativa privada etc. etc. A novidade que se
apresenta atualmente em nosso país é o fato de que o povo não reconhece mais o
207
Congresso, a Câmara, o Executivo entre outros, como seus legítimos representantes, em
face de tantos e públicos escândalos de corrupção.
Como dissemos (e isso não é novidade nem ponto de divergências entre os
sociólogos e os cientistas políticos, entre outros medianos) a corrupção é sistêmica,
portanto, em última instância não basta prender os corruptos. Isso não significa que
todos os corruptos não merecem e não devam ser julgado, condenados e presos. Mas, da
forma como os negócios são feitos no Brasil e no mundo capitalista, podemos trocar
todos os corruptos (criminosos) por pretensos mocinhos que logo estes se tornarão
bandidos e corruptos. Os que não aceitarem entrar no esquema serão automaticamente
ejetados do processo. É preciso, portanto, mudar o sistema – ou seja, o modo de
produção capitalista. Noutras palavras: no campo econômico e político, é preciso acabar
com o monopólio das empresas sob o Estado; no campo da cultura, da ética e dos
valores morais, é preciso fenecer a ideia, em primeiro lugar, de que os seres humanos
valem pelo que tem, e não pelo que são – valores esses individualistas e egoístas
gerados pela subideologia da propriedade privada dos meios de produção, que estão
extremamente concentrados desde a fase dos monopólios; em segundo lugar, de que o
enriquecimento fácil é um grande negócio.
Para o pensamento liberal conservador, o caminho para acabar com a corrupção
é bem mais ―fácil‖: basta, dizem, que o ―Estado seja enxuto‖, diminuindo ao máximo o
número de estatais e, no caso das empresas nacionais, seria necessário tirar o monopólio
delas, atraindo ao País, concorrentes estrangeiras -, objetivando estimular a competição.
De uma coisa os liberais não podem ser criticados neste aspecto, a falta de honestidade.
Assim, portanto, creem os liberais, especialmente Flávio Rocha (presidente da
Riachuelo, na Folha de São Paulo em 9 de janeiro de 2017), ―que os negócios
envolvendo dinheiro público serão reduzidos naturalmente‖. Com isso o Estado
estimularia e meritocracia, que segundo o empresário, ―é a essência do sucesso no
ambiente concorrencial‖. Essa visão nos coloca a missão de sermos uma espécie de
sombra reta de uma árvore torta. Impossível!
O empresário capitalista é confuso. Diz que a estrutura estatal deve servir à
população, e não a quem dela se apropriou. Até aí concordamos. Mas Rocha prossegue,
afirmando que ―o livre mercado é o antídoto natural contra a corrupção e este deve ser o
inspirador e o agente principal desse processo (Flávio Rocha, FSP em 9 de janeiro de
2017). O empresário não percebe, naturalmente, que o Estado é fruto desta sociedade e
desse modo de produção; do mesmo modo o mercado é expressão das relações sociais.
208
Sobre a meritocracia, trata como se essa fosse posta para indivíduos que
concorrem em condições de igualdade. De acordo com os dados do relatório da ONG
Oxfam110
, divulgado pela Folha de São Paulo em 17 de janeiro de 2017, apenas seis
homens mais ricos do Brasil concentram a mesma riqueza que toda a metade mais pobre
da população do país (mais de 100 milhões de brasileiros). A desigualdade é
praticamente a mesma no cenário global. No mundo, apenas oito bilionários acumulam
a mesma quantidade de dinheiro que a metade mais pobre da população do planeta, ou
seja, 3,6 bilhões de pessoas juntas, segundo a ONG.
Apesar destes dados, desde sempre se houve falar em metas para reduzir a
pobreza e a desigualdade social. As Organizações das nações Unidas – ONU, por
exemplo, em seu relatório de início do novo milênio, tinha como objetivo acabar com a
pobreza em 2015. Os dados comprovam que não acabou, pelo contrário ela se acentua e
se agrava a cada ano. Pois, não capitalismo sem pauperização. A sociedade não
funciona com base no sentido que as pessoas ou instituições põem nas coisas. Não é
assim! O mundo em que vivemos não é a projeção da nossa consciência. Portanto, não
basta boa vontade para mudar as desigualdades profundas que existem em na formação
social contemporânea.
No relatório citado, a Oxfam adverte que as 85 pessoas mais ricas em todo o
globo compartilham uma riqueza combinada de £ 1 trilhão (cerca de R$ 3,8 trilhões),
enquanto 3,5 bilhões de pessoas mais pobres dividem a mesma quantiaoutro £ 1 trilhão.
As pessoas mais ricas do mundo certamente não são conhecidas por andarem de ônibus,
mas estes 85 indivíduos, que juntos controlam tanta riqueza quanto a metade mais pobre
da população mundial, poderiam caber em um único biarticulado. Winnie Byanyima,
diretor-executivo da Oxfam International, disse ser ―impressionante que, no século 21,
metade da população do mundo – que é 3,5 bilhões de pessoas – não possuem mais do
que uma pequena elite cujo número poderia caber confortavelmente em um ônibus de
dois andares‖. Esta concentração maciça de recursos econômicos nas mãos de poucas
110 A ONG britânica de assistência social e combate à pobreza usa como base levantamentos sobre
bilionários da revista "Forbes" e dados sobre a riqueza no mundo de um relatório do banco
Credit Suisse. De acordo com a "Forbes", as seis pessoas mais ricas do Brasil são: Jorge Paulo
Lemann, sócio da Ambev (dona das marcas Skol, Brahma e Antarctica) e dono de marcas como
Budweiser, Burger King e Heinz; Joseph Safra, dono do banco Safra; Marcel Herrmann Telles, sócio
da Ambev e dono de marcas como Budweiser, Burger King e Heinz; Carlos Alberto Sicupira, sócio da
Ambev e dono de marcas como Budweiser, Burger King e Heinz; Eduardo Saverin, cofundador do
Facebook e João Roberto Marinho, herdeiro do grupo Globo. A fortuna somada desses seis empresários
era de US$ 79,8 bilhões (cerca de R$ 258 bilhões) em 2016, de acordo com a "Forbes" (FSP, 16 de
janeiro de 2017). Entre os mais ricos do mundo estão o cofundador da Microsoft Bill Gates, o dono da
rede de moda Zara, Amancio Ortega, e o cofundador e presidente do Facebook, Mark Zuckerberg.
209
pessoas representa uma ameaça significativa para os sistemas políticos e econômicos
inclusivos. ―Ao invés de avançar juntas, as pessoas estão cada vez mais separadas por
poder econômico e político, inevitavelmente aumentando as tensões sociais e o risco de
colapso da sociedade‖, diz o relatório (FSP, 17 de janeiro de 2017).
Ainda de acordo com o relatório, os 1% mais ricos do mundo concentram quase
metade de todo o dinheiro no globo. Eles possuem juntos US$ 110 trilhões (cerca de R$
257 trilhões), o equivalente a 65 vezes mais do que a riqueza total da metade mais pobre
do mundo junto. Os dados compilados do relatório demonstram que os mais ricos
aumentaram suas fortunas em praticamente todos os países pesquisados (inclusive o
Brasil) entre 1980 e 2012.
Em face desta avassaladora e inquietante realidade, perguntamos aos liberais de
plantão, que igualdade de disputa se tem nessas condições? Ou ainda, há de fato
concorrência entre as empresas? Basta citar o exemplo do petróleo no mundo que é
dominado por 5 grandes empresas ou o mercado de automóveis.
Portanto, como se percebe, para o pensamento hegemônico conservador, basta
privatizar, fazer concessões por 30 anos como as que foram feitas nos governos Lula e
Dilma, e as que seguem no governo Temer, tornando, assim o Estado mínimo para o
social e máximo, ou quase exclusivo para o capital.
A história tem nos ensinado que quando se coloca a questão moral no centro do
debate político (e não a questão de classe, de Estado e de modelo de sociedade, por
exemplos), o resultado é sempre uma vitória da direita, ou seja, das forças
conservadoras. Dois exemplos são emblemáticos para ilustrarmos o que estamos
falando.
O primeiro, o de Getúlio; este foi derrubado duas vezes pelas elites: a primeira
vez em 1945 quando foi deposto pelo alto comando do exercito e obrigado a declarar
que concordava com a deposição do seu governo; a segunda em 1954, desta vez ele
preferiu o suicídio. Noutras palavras: Getúlio era odiado pelas elites e foi diuturnamente
acusado de corrupto e populista por que defendia algumas bandeiras dos trabalhadores,
por reconhecer alguns direitos sociais, sobretudo dos sindicalizados, em função disso,
levado ao extremo foi obrigado ao suicídio. Ainda que tenha implementado o regime
ditatorial arbitrário e despótico do Estado Novo (1937-45), contudo, o povo o adorava.
O segundo exemplo, o de João Goulart em 1964; por defender reivindicações
dos trabalhadores organizados (dentre eles os camponeses) ao anunciar reformas de
210
base foi deposto pelas classes dominantes (acusado também de corrupção e de conluio
com os comunistas) e amargurou no exílio.
Entretanto, ao apontarmos, ainda que sumariamente esta perspectiva complexa,
endógena e histórica da corrupção, isso não significa, de modo algum, querer minimizar
a culpa de alguém ou insinuar que está chaga é insolúvel. No geral, os revolucionários e
socialistas, sabem que devemos combater a corrupção, pois, lugar de corrupto é na
cadeia. Contudo, se por um lado precisamos combater a origem, ou seja, o modo de
produção que possibilita e instituí esta prática; por outro, é fundamental que se puna
exemplarmente os adeptos desses métodos escusos.
Dessa maneira, por tudo o que dissemos, não é a moralidade que deve dar o
parâmetro do debate político. Esta deve ser um princípio e, portanto, não se deve abrir
mão. Assim, se nos importamos com o problema devemos ir à raiz deles para encontrar
a verdadeira solução. Ou seja, não basta combater os efeitos de um sistema corrupto, é
preciso ir às causas da corrupção.
Posto as premissas teóricas, filosóficas e históricas do problema, é importante,
neste momento, fazermos uma breve distinção dos governos Lula e Dilma, do governo
de Getúlio e João Goulart (o Jango). Retomando alguns elementos que apontamos a
cima - sobre Getúlio e Jango - o primeiro foi levado ao suicídio e o segundo ao exílio
porque defendiam (embora com a diferença de 10 anos um governo do outro e, cada um
a sua maneira e com seu leque de alianças) reformas de base, projetos sociais, políticas
estruturais etc., que também atendiam os interesses da classe trabalhadora, sobretudo as
organizadas e com representações políticas; como era o caso dos sindicalizados no meio
urbano à época de Getúlio, e os camponeses (por exemplo, as Ligas Camponesas) no
período de Jango. Já não podemos dizer o mesmo dos governos petistas. Estes, se por
um lado não fizeram nenhuma reforma que atendesse o mundo do trabalho (reforma
agrária, reforma urbana etc.), por outro, fizeram absolutamente tudo o que beneficiou o
capital. Lula disse muitas vezes que graças a ele, ―nunca na história desse país os
banqueiros111
ganharam tanto dinheiro‖. Sobre o desempenho dos cinco maiores bancos
do país, dados anuais do DIEESE demonstram que em 2014 e 2015, anos de crise
econômica e declínio do Produto Interno Bruto - PIB, apesar da restrição de crédito,
fechamento de agências e postos de trabalho, ―o lucro líquido dos cinco maiores bancos
111
Quando mencionados os cinco maiores bancos do país, trata-se de Itaú/Unibanco, Bradesco,
Santander, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil que correspondem, juntos, a 83% dos ativos totais
e 86% de todo o dinheiro detido por instituições financeiras no Brasil, denotando assim a grande
concentração no setor bancário brasileiro (Brasil de Fato, 20 de Julho de 2016).
211
segue subindo e batendo recordes históricos, só em 2015 foram R$ 69,9 bilhões‖ (Brasil
De Fato: 20 julho de 2016).
Dilma não foi afastada da presidência (nem Lula desmoralizado) porque
defendia reformas estruturais e os interesses das classes trabalhadoras. Embora tenham
feito (em especial Lula) programas importantes para os trabalhadores, não se pode
compara-los com as perspectivas daqueles. Porém, a principal diferença, a nosso ver,
reside no fato de que, se por um lado Lula era adorado pelos trabalhadores, por outro, o
era também pelas elites burguesas. Getúlio e Jango não eram adorados pelo conjunto
das elites dominantes. Contudo, certamente, havia frações destas classes que se sentiam
contempladas, porém, diferentemente que Lula, aqueles Governos jamais contaram com
o apoio do chamado capitalista coletivo (MANDEL, 1982).
Por fim, evidentemente que o Estado, bem como os seus governos têm um papel
importante (e, em um país Presidencialista como o nosso, determinante) na condução
das políticas públicas, pois, são os responsáveis pela gestão do orçamento público que é
composto pelos recursos recolhidos junto aos trabalhadores e trabalhadoras de forma
compulsória através de impostos e contribuições. Além disso, sobretudo o Presidente de
País, detém o poder de editar medidas provisórias e de enviar projetos para a Câmara e
o Senado. Assim, ainda que com diferenças internas, o bloco político-social de
sustentação do lulismo falhou ao isentar das grandes responsabilidades (ou de no
mínimo fazer as criticas mais contundentes) o governo federal. Quando o fez, já era
tarde. O mito já havia se consolidado no imaginário da população interiorana do pai e
nas principais lideranças das organizações sociais coletivas que compõe o bloco. E isso,
em nada beneficiou o conjunto dos trabalhadores organizados. Bertold Brecht já havia
dito: ―infeliz de um povo que precisa de mito‖. O velho morreu, mas está insepulto!
212
CONCLUSÕES
Considerando que em história nenhuma palavra é inocente, escrever sobre um
período muito recente da formação social, política e econômica brasileira – abordando
temas complexos e contraditórios como, por exemplo, o desenvolvimentismo, o lulismo
e as maiores organizações sociais presentes na vida política brasileira -, não é tarefa
fácil. Principalmente, quando estas compõem um campo social, ou seja, um bloco
político-social que representa a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras
organizados/as. Contudo, mais difícil ainda quando se é parte desta história e quando se
atua como militante social inserido no MST - portanto, comprometido de alguma forma
com a temática.
Ao longo deste trabalho se analisou questões que ultrapassaram o domínio
político estrito senso, que dizem respeito à vida das organizações e de categorias
importantes para compreender o momento político por qual passa o País e em especial
a classe trabalhadora. Entendemos que o passado não existe em si, sem as reflexões do
presente e que a história é política, ou seja, propõe soluções e problemas para assuntos
da atualidade. Por isso, detivemos-nos mais na análise dos processos históricos do que
nos acontecimentos.
Por conseguinte, não foi, definitivamente, tarefa fácil desligar-se do meu tempo
e do meu meio. Dessa maneira, a isenção tão almejada por alguns intelectuais
acadêmicos e\ou pós-modernos no campo das ciências sociais não toma corpo neste
trabalho.
Buscamos demonstrar que os ―modelos‖ de "desenvolvimento" e/ou as
ideologias que vigoraram nos últimos trinta anos não resolveram os problemas
estruturais da sociedade brasileira. Citamos: a fome, a falta de moradia digna, a
violência, a falta de educação pública e de qualidade, a concentração de terras, o
reduzido acesso à saúde de qualidade e entre outros o desemprego estrutural. Enfim, as
condições mínimas e dignas de vida de qualquer ser humano não foram resolvidas –
apesar de o capitalismo ter sido absolutamente hegemônico nos últimos anos: portanto,
já não podem responsabilizar os trabalhadores, o socialismo e menos ainda os
comunistas pelo fracasso do sistema.
Dissemos que no Brasil, a burguesia sempre convergiu para o Estado usando-o
como um aparelho de unificação dos interesses da classe dominante, sem que ela tivesse
a necessidade de jogar todas as suas energias para fortalecer, autonomamente, as suas
entidades e partidos políticos. Portanto, as mudanças que ocorreram no mundo do
213
trabalho, no Estado e na sociedade como um todo, direta ou indiretamente afetaram as
formas organizativas e de luta da classe trabalhadora. Em nosso país, este quadro
agrava-se na perda da autonomia e no abandono do projeto socialista e emancipatório
das maiores organizações representativas dos trabalhadores organizados que compõem
o bloco político-social. Entretanto, se por um lado há um refluxo das lutas sociais
protagonizadas por esse tipo de organização social, por outro, os trabalhadores e
trabalhadoras não deixaram de lutar por melhores condições de vida. Ressalta-se aqui às
manifestações espontâneas das massas urbanas em junho de 2013, que tiveram pouca
influência desses setores tradicionalmente organizados da sociedade.
Dessa maneira, parafraseando Marx (2012), diríamos que em junho o véu que
cobria o lulismo foi rasgado. Pois, a fraternidade de classe durou exatamente o mesmo
tempo em que os interesses da burguesia esteve imanado com os interesses da classe
trabalhadora. Por conseguinte, em síntese, pode-se dizer que junho explicita, precipita a
crise de hegemonia do PT, ou, se preferirmos, indica a crise do lulismo e do suposto
―novo desenvolvimentismo‖ que se fez água em todos os aspectos em face das massivas
mobilizações. Em face das muitas certezas que se tinha, recorro ao velho Marx que já
havia nos alertado para o fato de que ―tudo o que era sólido e estável se desmancha no
ar‖ (2010, p. 43). Cunhada há mais de 160 anos no Manifesto do Partido Comunista,
esta foi uma brilhante metáfora para definir ideologias, formas de governos e modos de
produção, que nasceram se desenvolveram e ruíram, como num ciclo de vida e morte,
processual e histórico.
O pacto social de sustentação dos governos petistas, bem como a política
econômica adotada baseou-se, fundamentalmente, numa continuidade ―aperfeiçoada‖
do paradigma neoliberal. Aperfeiçoamento dado, à priori, pelo cumprimento das
exigências e normativas postas pelo grande capital de maneira absoluta, ao combinar a
ortodoxia político-econômica dos governos anteriores com uma particularidade política
- especialmente durante os dois governos de Lula, acrescentou-se à aplicação do
neoliberalismo um tratamento diferenciado às expressões da ―questão social‖.
Além disso, se analisou a trajetória do PT, da CUT e do MST numa perspectiva
crítica, visando compreender do ponto de vista dialético as contradições inerentes aos
processos de rupturas e de acomodações diante das formas sociais hegemônicas. Em
função disso, essa pesquisa trouxe-nos vários elementos de reflexão sobre a atuação do
bloco político-social dentro de seu contexto histórico e sobre as definições políticas,
bem como as políticas de alianças como um processo em devir que está acontecendo.
214
Assim, considerando os conflitos e as expectativas que advêm da contraditória
realidade, obtivemos uma visão geral das lutas de classes no Brasil e da trajetória do
bloco político-social que se constituiu nos anos 1980 e está presente até os dias atuais.
Aprendemos nestes estudos teóricos, assim como, em nossa prática, que não existe
conhecimento fora da sociedade e que nós não existimos sem mediação e
conhecimento.
Vivemos num mundo em que as desigualdades de classes são cada vez mais
acentuadas, sendo, portanto, um desafio para nós, militantes sociais, pensarmos as
ações políticas de nossas organizações sempre dentro do contexto histórico. Pois,
segundo Hirano (2002, p. 127): ―todas as formações sociais são históricas e
transitórias, o mesmo ocorrendo com as categorias que as explicam, e estas não se
ordenam em segmentos estáticos e dinâmicos‖.
Como se trata de um trabalho preliminar de pós-graduação tem-se a pretensão
de seguirmos aprofundando os elementos que aqui desenvolvemos sumariamente. Ou
seja, almejamos continuar buscando em nossa realidade prático-social respostas para
estas e outras questões. Acreditamos que, após ter passado mais de uma década em
meia do novo século, é chegado o momento de realizarmos uma análise crítica do
nosso passado mais recente. Coloca-se como desafio de estudo para o futuro, a análise
do comportamento das classes sociais e do bloco político-social no século XXI, nos
dois governos Lula e em especial nos governos Dilma.
Há, entretanto, esferas e lacunas abertas na presente pesquisa que não pudemos
sanar com a realização deste trabalho (pois, dois anos de mestrado é um tempo
relativamente curto) que carecerão de novos estudos. Podemos destacar, entre elas, a
participação do sujeito social na condução e direção das organizações sociais aqui
elencadas, bem como as formas de cooptação de lideranças operadas pelo Estado. Além
disso, carece de aprofundamento a condição das políticas sociais sob o suposto ―novo
desenvolvimentos‖ e o lulismo: e a posição política do bloco político-social em face das
contrarreformas operadas ao longo deste novo século.
Deste modo, a fim de darmos uma pausa antes de reiniciarmos uma nova
caminhada de pesquisas, debates e reflexões que porventura aqui apenas começamos a
levantar, reconheçamos como diria o poeta, que o ―caminho é longo e em parte
desconhecido, conhecemos as nossas limitações‖.
215
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis:
Vozes, 1984.
ALVES, Giovane. Trabalho e desenvolvimentismo. Bauru- SP: Canal Editora, 2014.
Parte II, p. 127-180: Choque de capitalismo e neodesenvolvimentismo no Brasil.
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a
negação do trabalho. São Paulo: 2° ed., Boitempo, 2009.
ANDERSON, Perry. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso
tempo; São Paulo: Contraponto; Editora UNESP, 1996.
ARCARY, Valerio. Um reformismo quase sem reformas: uma crítica marxista do
governo Lula em defesa da revolução brasileira. São Paulo: Sundermann, 2015.
ARRIGHI, Giovanni: O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso
tempo; São Paulo: Contraponto; Editora UNESP, 1996.
BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contrarreforma: desestruturação do Estado e
perdas de direitos. São Paulo: 3° ed., Cortez, 2008.
______. (Orgs.) Rotação do capital e crise: fundamentos para compreender o fundo
público e a política social. In. Financeirização, fundo público e política social. São
Paulo: Cortez, 2012.
BOSCHETTI, Ivanete e BEHRING, Elaine Rossetti. Política Social: Fundamentos e
Historia. 9° ed. Cortez. São Paulo, 2011.
BOSCHETTI, Ivanete. Assistência Social e Trabalho no Capitalismo. São Paulo:
Cortez, 2016.
______. Políticas de desenvolvimento econômico e implicações para as políticas
sociais. SER social, Brasília, v.15, n. 33, p. 261-384, jul. / dez. 2013.
BOITO, Jr. Armando. Hegemonia neoliberal e sindicalismo no Brasil. In. Crítica
Marxista. v 1, n° 3. São Paulo: Brasiliense, 1996.
BOITO JR, Armando. As bases políticas do neodesenvolvimentismo. Fórum
Econômico da FGV-SP, 2012b. Disponível em:
<http://eesp.fgv.br/sites/eesp.fgv.br/files/file/Painel%203%20-
%20Novo%20Desenv%20BR%20-%20Boito%20-
%20Bases%20Pol%20Neodesenv%20-0PAPER.pdf>. Acesso em: 31/08/2013.
______. Governos Lula: a nova burguesia nacional no poder. In: BOITO JR., A.;
GALVÃO, A. Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000. São Paulo: Editora
Alameda, 2012a.
______. O lulismo é um tipo de bonapartismo? Uma crítica às teses de André
Singer. In. Crítica Marxista: n.37, p. 171-181, 2013.
216
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Desenvolvimento e crise no Brasil. 5. ed. São
Paulo: Editora 34, 2003.
______. O novo desenvolvimentismo e a ortodoxia convencional. São Paulo, 2006.
Disponível em: <www.bresserpereira.org.br/>. Acesso em 02/11/16.
______. Plano diretor da reforma do aparelho do Estado. Brasília: Ministério da
Administração e da Reforma do Estado, 1995.
BUEY, Francisco Fernándes. Marx (sem ismos). Rio de janeiro: Editora UFRJ, 2009.
BRASIL. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A década inclusiva (2001-
2011): Desigualdade, pobreza e políticas de renda, de 25/09/2012. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/comunicado/120925_comunicad
odoipea155_v5.pdf>. Acesso em: 22/12/2017.
BRASIL. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo
Agropecuário 2006. Disponível em:
<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/51/agro_2006.pdf>.
BRASIL. Relatório do desenvolvimento humano. Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD). 2013.
CARDOSO, Miriam Limoeiro. Ideologia do desenvolvimento, Brasil: JK-JQ. Rio de
janeiro: Paz e Terra, 1978.
CASTELO, Rodrigo. O social liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na
era neoliberal. São Paulo: Expressão popular, 2013.
______. O novo desenvolvimentismo e a decadência ideológica do pensamento
econômico brasileiro. In. Serviço Social & Sociedade. (Neo)desenvolvimentismo &
Política Social. São Paulo: N.112. Cortez (outubro a dezembro) 2012.
COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e Sociedade No Brasil: Ensaios Sobre Ideias e
Formas. Rio de Janeiro: 3° ed., Editora DP&A, 2005.
_______. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo:
Cortez, 2ª Ed. 2000.
______. Marxismo e política: A dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo:
3° Ed. Cortez, 2008.
_______. De Rousseau a Gramsci. São Paulo: Boitempo, 2011.
DATALUTA. Banco de dados da luta pela terra. Brasil: 2014.
DARDOT Pierre e LAVAL Christian. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo,
2016.
DIAS, Edmundo Fernandes (Et al.). O outro Gramsci. São Paulo: Xamã, 1996.
217
DIEESE. A Situação do trabalho no Brasil na primeira década dos anos 2000.
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. São Paulo:
DIEESE, 2012.
DIEESE. Balanço das greves em 2013. In Estudos & Pesquisas, no. 79, dezembro de
2015.
FATTORELLI, M. L.; ÁVILA, R. Os números da dívida. Blog Auditoria Cidadã da
Dívida. Disponível em: <http://www.auditoriacidada.org.br/wp-
content/uploads/2012/04/Numerosdivida.pdf>. Acesso em: 31/08/2013.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica. São Paulo: Globo, 5ª ed., 2005.
______. Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina. Rio de
janeiro: Zahar editora,1973.
FERNÁNDES BUEY, Francisco. Marx (sem ismos). Rio de janeiro: Editora UFRJ,
2009.
FILGUEIRAS, Luiz e GONÇALVES, Reinaldo. A economia política do Governo
Lula. São Paulo: Contraponto, 2007.
GONÇALVES, Reinaldo. Redução da desigualdade da renda no governo Lula:
análise comparativa. In. SALVAROR, Evilasio. (et., al). Financeirização, fundo
público e política social. São Paulo: Cortez, 2012.
GONÇALVES, Reinaldo. Novo desenvolvimentismo e liberalismo enraizado.
In.Serviço Social & Sociedade. (Neo) desenvolvimentismo & Política Social. São
Paulo: N.112. Cortez (outubro a dezembro) 2012b.
FONSECA, Pedro. 2014. Desenvolvimentismo: a construção do Conceito. In.
Presente e Futuro do Desenvolvimento Brasileiro. Brasília: IPEA, 2014.
GIANNOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2007.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 1. Introdução ao estudo da filosofia
de Beneditto Croce. 3° Edição; Carlos Nelson Coutinho. Rio de janeiro: Civilização
Brasileira, 2004.
______. Cadernos do cárcere. V. 3. Maquiavel, nota sobre o Estado e a política. 7°
Edição; Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
______. Cadernos do cárcere. V. 5. O risorgimento. Notas sobre a história da
Itália. Edição; Carlos Nelson Coutinho (et. al.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002.
GRUPPI, Luciano. Conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de janeiro: Graal, 1978.
218
HEGEL, G. W. F. Introdução à história da filosofia. São Paulo: Hemus, 1983.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: breve século XX; 1914-1991. São Paulo: 2°
Ed. Companhia das letras, 2007.
IANNI, Octavio. Estado e planejamento econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2009.
IASI, Mauro Luis. As metamorfoses da consciência de classe: O PT entre a negação e
o consentimento. Expressão Popular. São Paulo, 2006.
______. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo: Expressão Popular,
2007.
IBGE, Censo Demográfico. Edição on line, 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010.
KATZ, Claudio. Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo. São Paulo:
Expressão Popular/Perseu Abramo, 2016.
______. O olho da história. Salvador (BA): 2009.
LEHER, Roberto (et.al.). Os rumos das lutas sociais no período 2000-2010. Buenos
Aires: CLACSO, Año XI, N° 28, noviembre. 2010.
LENIN, Vladimir Ilitch. El Programa Agrário de la socialdemocracia em la primera
revolución rusa de 1905-1907. Moscú: Editorial Progresso, 1978.
______. O Estado e a revolução. São Paulo: 1° Ed., Expressão Popular, 2007.
______. O imperialismo, fase superior do capitalismo. Brasília: Nova Palavra, 2007b.
______.Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento. São Paulo: Expressão
Popular, 2010.
LESSA, Sergio. Lukács, ontologia e método: em busca de um (a) pesquisador (a)
interessado (a). Rio de janeiro: Revista praia Vermelha, n. 02, PPGSS/UFRJ, 1999.
LUKÁCS, Gyórgy. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2014.
LUXEMBURGO, Rosa. Greve de massas, partido e sindicatos. São Paulo: Kaiós
livraria e editora, 1979.
MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
______. A crise do capital: os fatos e a sua interpretação marxista. Campinas, SP:
Ed. Universidade Estadual de Campinas, 1990.
MARINI, Rui Mauro. A dialética da dependência: Uma antologia da obra de Ruy
Mauro Marini. Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000.
219
_____. Subdesenvolvimento e Revolução. Florianópolis: Insular, 2014.
MARX, Karl Heinrich. O Capital (Crítica da Economia Política). Livro I. Vol. 1. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
______. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus
representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes
profetas. São Paulo: Boitempo, 2007.
______. Para a questão judaica. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
______. Contribuição a crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular,
2008.
______. Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução. São
Paulo: Expressão Popular, 2010.
______. Organização e introdução de Osvaldo Coggiola. Manifesto do partido
comunista. São Paulo: Boitempo, 2010b.
______. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da
economia política. São Paulo: Boitempo, 2011.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
______. A crise estrutural do capital. São Paulo. Boitempo, 2009.
MORAES, Denis de. A esquerda e o golpe de 64. São Paulo: Expressão Popular, 3°
ed., 2011.
MOORE JUNIOR, Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia:
senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes,
1975.
NETTO, José Paulo. Crise do Socialismo e Ofensiva Neoliberal. São Paulo: 4° ed.,
Cortez, 2007.
______. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. 8° Ed. Cortez Editora, São Paulo,
2011.
______. Introdução ao método da teoria social. São Paulo: Expressão Popular, 2011b.
NETTO, José Paulo. Pequena história da ditadura brasileira (1964-1984). São Paulo:
Cortez, 2014.
NETTO, José Paulo e BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução crítica. 3°
Ed. São Paulo: Cortez, 2007.
OLIVA, Aloisio Mercadante. As bases do novo desenvolvimentismo no Brasil:
análise do governo Lula (2003-2010). Campinas: SP: [s.n.], 2010.
220
OLIVEIRA, Francisco de. BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele (orgs.). Hegemonia às
avessas: economia e política na era de servidão financeira. São Paulo: Boitempo,
2010.
PRADO Jr. Caio. A revolução brasileira. In. Clássicos sobre a revolução brasileira.
São Paulo: Expressão Popular, 2000.
POCHMANN, Marcio. Desenvolvimento, trabalho e renda no Brasil: avanços
recentes no emprego e na distribuição dos rendimentos. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, Coleção ―Brasil em Debate‖ v.2. 2010.
POTYARA-PEREIRA, Amazoneida. Utopias desenvolvimentistas e política social no
Brasil. In. Serviço Social & Sociedade. (Neo) desenvolvimentismo & Política Social.
São Paulo: N.112. Cortez (outubro a dezembro) 2012.
ROSSI, Waldemar. GERAB, William Jorge. Para entender os sindicatos no Brasil:
uma visão classista. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
SAMPAIO JR., Plínio de Arruda. Desenvolvimento e neodesenvolvimentismo:
tragédia e farsa. In. Serviço Social & Sociedade. (Neo) desenvolvimentismo &
Política Social. São Paulo: N.112. Cortez (outubro a dezembro) 2012.
SALVAROR, Evilasio. (et., al. Orgs.). Financeirização, fundo público e política
social. São Paulo: Cortez, 2012.
______.Perfil da Desigualdade e da Injustiça Tributária: com Base nos Declarantes
do Imposto de Renda no Brasil 2007-2013. Brasília: INESC, 2016.
______.A desvinculação dos recursos orçamentários em tempos de ajuste fiscal:
instrumento de apropriação do fundo público pelo Capital Portador de Juros.
Brasília: ABEPSS, 2016b.
SALVADOR, Evilasio; TEIXEIRA, Sandra. Orçamento e políticas sociais:
metodologia de análise na perspectiva crítica. In. Revista de Políticas Públicas
(UFMA). São Luis. v. 18, p. 15-32, 2014.
SECCO, Lincoln. História do PT. Cotia, SP. Ateliê Editorial, 4ª Ed., 2015.
Serviço Social & Sociedade. (Neo)desenvolvimentismo & Política Social. São Paulo:
N.112. Cortez (outubro a dezembro) 2012.
SICSÚ, João. PAULA, Luiz Fernando de. MICHEL, Renaut. (Org.). Novo-
desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social. Rio
de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2005.
SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São
Paulo: Companhia das letras, 2012.
SINGER, André e LOUREIRO, Isabel. (Org.). As contradições do lulismo: a que
ponto chegamos? São Paulo: Boitempo, 2016.
221
SILVA, José Graziano da. A modernização dolorosa. Rio de janeiro: Zahar, 1982.
STEDILE, João Pedro. A questão agrária no Brasil: História e natureza das Ligas
Camponesas – 1954-1964. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
______. MANÇANO, Bernardo Fernandes. Brava Gente. São Paulo: Perseu Abramo,
1999.
ZIBECHI, Raúl. Brasil potência: entre a integração regional e um novo
imperialismo. Rio de Janeiro: Consequência, 2012.
Sítios:
http://www.ibge.gov.br
http://www.mst.org.br
http://www.brasildefato.com.br
http://www.cptnacional.org.br
http://www.folha.uol.com.br
http://www.fct.unesp.br/nera
http://www.ipeia,gov.br