UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE DIREITO
O DIREITO DISCIPLINAR DA FUNO PBLICA
Volume II
Ana Fernanda Neves
Dissertao de Doutoramento Cincias Jurdico-Polticas
Docente / Orientador: Professor Doutor Paulo Otero
Lisboa
2007
O DIREITO DISCIPLINAR
DA FUNO PBLICA
Volume II
ABREVIATURAS AAFDL Associao Acadmica da Faculdade de Direito de Lisboa Ac. Acrdo AD Acrdos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo AJDA Actualit juridique - Droit administratif ATC Auto del Tribunal Constitucional BFDUC Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra BFDUL Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa BMJ Boletim do Ministrio da Justia Bul. Crim. Bulletin criminel de la Cour de Cassation BOE Boletn Oficial del Estado BVerfGE Entscheidungen des Bundesverfassungserichts Cass. crim. Chambre criminelle de la cour de cassation CC Cdigo Civil CE Conseil dtat CEDH Conveno Europeia para a proteco dos Direitos do Homem e Liberdades Fundadamentais CJA Cadernos de Justia Administrativa CPA Cdigo de Procedimento Administrativo CPC Cdigo de Processo Civil CPP Cdigo de Processo Penal CPTA Cdigo de Processo nos Tribunais Administrativos CRP Constituio da Repblica Portuguesa DAC Dirio da Assembleia Constituinte DAR Dirio da Assembleia da Repblica DJAP Dicionrio Jurdico da Administrao Pblica d.p.r. Decreto del Presidente della Repubblica DR Dirio da Repblica ED Estatuto Disciplinar Gazz. Uff Gazzetta Ufficiale della Republlica Italiana IGAI Inspeco-Geral da Administrao Interna INA Instituto Nacional de Administrao INCM Imprensa Nacional Casa da Moeda LAL Lei das Autarquias Locais LAU Lei da Autonomia Universitria PGR Procuradoria-Geral da Repblica PL Proposta de Lei RC Reviso Constitucional RD/PSP Regulamento Disciplinar da Polcia de Seguran Pblica RLJ Revista de Legislao e de Jurisprudncia RMP Revista do Ministrio Pblico RUDH Revue Universelle des Droits de LHomme STA Supremo Tribunal Administrativo RTDP Rivista trimestrale di diritto pubblico STJ Supremo Tribunal de Justia STC Sentencia del Tribunal Constitucional espaol STS Sentencia del Tribunal Supremo TAR Tribunal amministrativo regionale TC Tribunal Constitucional TCA Tribunal Central Administrativo TCE Tratado da Comunidade Europeia TJCE Tribunal de Justia das Comunidades Europeias
NDICE GERAL
Volume I
Introduo
1 Nota prvia
2 Delimitao do objecto
3 Metodologia e objectivos
4 Plano de trabalho
Captulo I O conceito de Direito disciplinar da funo pblica
Seco I Delimitao negativa
Seco II O Direito disciplinar da funo pblica
Volume II
Captulo II O exerccio do poder disciplinar
Seco I O poder disciplinar
Seco II Os limites do poder disciplinar
Seco III O procedimento disciplinar
Seco IV As sanes disciplinares
Seco V As garantias de controlo
Captulo III A natureza da actividade disciplinar do empregador
pblico e o princpio da separao de poderes
Seco I O princpio da separao de poderes
Seco II A natureza jurdica da actividade disciplinar
Captulo II Os limites ao exerccio do poder disciplinar 5 ________________________________________________________________________________________
Captulo II O exerccio do poder disciplinar
Seco I O poder disciplinar
Seco II Os limites do poder disciplinar
Seco III O procedimento disciplinar
Seco IV As sanes disciplinares
Seco V As garantias de controlo
6 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________
Seco I O poder disciplinar
1. Caracterizao e dimenses do poder disciplinar
2. As funes do poder disciplinar
3. O fundamento do poder disciplinar
3.1. A compreenso do poder disciplinar por referncia
especificidade da relao jurdica de emprego pblico
3.1.1. O interesse pblico e a inexistncia de paridade jurdica das
partes
3.1.2. A natureza da relao jurdica de emprego pblico como
uma relao especial de sujeio
3.1.3. A leitura obrigacional
3.2. A compreenso institucional do poder disciplinar
3.2.1. A compreenso hierrquica do poder disciplinar
3.2.2. A leitura funcionalista e corporativa
3.2.3. A leitura funcional-organizativa
3.3. A posio adoptada
4. O exerccio informal do poder disciplinar
4.1. A actuao informal na funo pblica
4.2.
O exerccio informal legal e o exerccio informal ilegal do
poder disciplinar
4.3. Limites jurdicos ao exerccio informal do poder disciplinar
Concluses
Captulo II Os limites ao exerccio do poder disciplinar 7 ________________________________________________________________________________________
Seco I O poder disciplinar
1. Caracterizao e dimenses do poder disciplinar
O poder no intrinsecamente expresso de correspectividade numa relao jurdica, ao
invs da figura do direito subjectivo1. Consubstancia a possibilidade de interferir na ou
definir autoritariamente a conduta alheia2, de produzir uma alterao na esfera jurdica de
outrem, independentemente da respectiva vontade e de uma correspondente contrapartida3.
O poder tambm pode ser exercido para o estabelecimento de relaes jurdicas paritrias4.
Quando no possa ser livremente exercido, mas limitado por consideraes de ordem
funcional, diz-se, na teoria geral do direito civil, que se trata de um poder-dever.
O elemento singular do poder reside, de forma mais abrangente, nos interesses aos quais
est funcionalizado. O poder no , para o seu titular, uma posio de vantagem, ao servio
dos seus interesses prprios ou pessoais. Diversamente, em regra, no acto de direito
privado cada qual procura realizar os seus interesses prprios; o seu fim , portanto, o
interesse individual. Num acto de direito pblico no assim. Quando a administrao
contrata com um particularrealiz[a] um acto cujo fim de utilidade pblica, de interesse
geral5. O poder, em maior ou menor medida, vinculado quanto ao respectivo exerccio.
O poder capacitrio e funcional, predeterminado por uma funo, ordenado prossecuo
1. Ao direito subjectivo propriamente dito () contrape-se-lhe o dever jurdico da contraparte um
dever de facere ou de no facere. Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3. edio actualizada, 1. reimpresso, Coimbra Editora, Limitada, 1986, pp. 170 e 173.
2. Fausto de Quadros, Os Conselhos de Disciplina na Administrao Consultiva Portuguesa, cit., pp. 195 e 196.
3. Dos direitos subjectivos distinguem-se os poderes jurdicos, por estes, por um lado, no implicarem uma contraparte vinculada a um dever jurdico, segundo Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 170.
4. Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 170. 5. Lies de Direito Administrativo, segundo as preleces do Exmo. Sr. Dr. Magalhes Colao, ao 3.
ano jurdico de 1923-24, aproveitando tambm estas lies ao curso do 2. ano jurdico (Reforma de 1922), de A. Queiroz Martins, Simes Correia e Ferreira Jnior, Papelaria Escolar Editora, 1924, Lisboa, p. 112.
possvel estabelecer uma distino entre o poder-dever - o poder sempre funcional, postula que o se e o como do respectivo exerccio sejam ditados pelos fins que o justificam e o poder vinculado (ou relativamente vinculado) quanto ao se e aos termos do respectivo exerccio, sendo este mais facilmente gerador de responsabilidade. No sentido paralelo, distinguindo entre a funo enquanto poder e a funo enquanto dever e, bem assim, o termo intermdio de controlo, cfr. S.H. Bailey, C.A. Cross e J.F. Garner, Administrative Law, Cases and Materials, London, Sweet & Maxwell, 1977, pp. 555 e 556.
8 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________
de outros interesses. A deverosidade funcional do poder constitui um seu limite jurdico
intrnseco. Esta inteira heteronomia de fins e interesses alheia ao direito subjectivo e,
mesmo, em termos de grau ou extenso, ao poder-dever (privado). O poder administrativo
organiza subjectivamente a prossecuo activa dos interesses pblicos6 e , frequentemente,
assistido pelo privilgio de execuo prvia7. Os rgos administrativos que corporizem o
empregador pblico devem agir de acordo com as vinculaes jurdicos inerentes.
O poder disciplinar do empregador pblico no , assim, um direito subjectivo, seja em
sentido estrito, seja enquanto direito potestativo. No atribui nenhuma situao jurdica
de vantagem em favor dos interesses prprios do titular do poder, no exercvel pelos
seus critrios de convenincia pessoal e de gesto8. As faculdades e posio de vantagem
que o poder disciplinar laboral confere ao empregador pblico (atravs dos rgos
administrativos que o exercem) so funcionalizados aos interesses pblicos a seu cargo,
sujeito a vinculaes jurdicas mesmo quando se reconhece um relevante espao de
apreciao e deciso9. Por outro lado, no poder disciplinar, particular ateno dada s
garantias dos particulares, de modo a que seja exercido, nos limites de tal deverosidade,
em condies de justia e de segurana para os agentes10.
6. Santi Romano apud Giuliano Vassalli, Potest punitiva, Enciclopedia del Diritto, XXXIV, p. 809,
e Juan Miguel de la Cuetara, Las Potestades Administrativas, Editorial Tecnos, S.A., Madrid, 1986, p. 47. 7. Na definio de Fausto de Quadros, o poder administrativo o poder que visa um fim de interesse
pblico e sancionado pelo privilgio de execuo prvia Os Conselhos de Disciplina na Administrao Consultiva Portuguesa, cit., p. 196.
8. As diferenas relativamente ao poder disciplinar laboral privado so significativas, como decorre da exposio de Maria do Rosrio Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte II Situaes Laborais Individuais, Julho, 2006, pp. 617 e 618, e Do Fundamento do Poder Disciplinar Laboral, cit., p. 295: no que se refere s manifestaes disciplinares heterodeterminadas (como a componente disciplinar do poder paternal sobre o menor), elas so permitidas pelo interesse do seu destinatrio e no do sujeito que as exerce, sendo, em consequncia, o poder respectivo um poder funcional e de contedo altrusta pelo contrrio, o poder disciplinar laboral , como vimos, um poder de contedo egosta, que prossegue os interesses prprios do seu titular.
9. Sugestiva (embora, talvez, excessiva, a seguinte afirmao do acrdo do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Janeiro de 1997 (processo n. 29 150, com sumrio in www.dgsi.pt/jsta) o seguinte: O exerccio da aco disciplinar pelos seus titulares corresponde ao exerccio de um poder-dever funcional no mbito da discricionariedade administrativa, na prossecuo do interesse pblico, que, ainda que os factos denunciados possam ter dignidade punitiva disciplinar, pode exigir que se no faa perseguio por eles.
10. Fausto de Quadros, Os Conselhos de Disciplina na Administrao Consultiva Portuguesa, cit., pp. 111 e 112.
Captulo II Os limites ao exerccio do poder disciplinar 9 ________________________________________________________________________________________
No Direito da funo pblica italiana, o legislador, no quadro da reforma iniciada em 1992,
perante a opo entre a sobrevivncia da pr-vigente disciplina publicstica e a
privatizao do poder disciplinar, decidiu-se pela transformao de tal poder de
publicstico em privatstico11, sendo prevalecente na doutrina e na jurisprudncia, a tese
da natureza privatstica-negocial das determinaes gestionrias do empregador pblico em
matria disciplinar12, designadamente, que a sano disciplinar aplicada mediante o
exerccio de um direito potestativo de incidir na esfera jurdica do trabalho, direito
decorrente para a administrao da relao de emprego (como determinado pelo contrato ou
pela lei13. Dir-se-, ento, que o poder disciplinar do empregador pblico no
necessariamente um poder administrativo. Do ponto de vista subjectivo, as decises do
empregador pblico podem ser sempre ditas de administrativas, o que relevante do ponto
de vista da vinculao aos princpios jurdicos fundamentais14. Do ponto de vista funcional,
o poder no deixa, igualmente, de ser administrativo. O que acontece que luz da opo
legislativa referida:
a) redefiniram-se os espaos de autonomia e de preceptividade do empregador pblico;
b) no quadro de uma relao jurdica de emprego contratualizada e regida,
fundamentalmente, por normas jus-laborais, comuns ao sector privado, e por
disposies de convenes colectivas; que conformam o contedo da relao sobre
bases de maior ou menor correspectividade;
11. Giustina Noviello e Vito Tenore, La Responsabilit e il Procedimento Disciplinare nel Pubblico
Impiego Privatizzato, cit., p. 14. 12. Giustina Noviello e Vito Tenore, La Responsabilit e il Procedimento Disciplinare nel Pubblico
Impiego Privatizzato, cit., pp. 16, 17 e 480. 13. Giustina Noviello e Vito Tenore, La Responsabilit e il Procedimento Disciplinare nel Pubblico
Impiego Privatizzato, cit., p. 19. 14. O Conselho de Estado italiano, num parecer de 10 de Junho de 1999, qualificou, ao arrepio da
doutrina e da jurisprudncia anterior e sua contempornea qualificou os actos do empregador pblico na gesto da relao de emprego pblico como actos subjectivamente administrativos, o que foi muito criticado, designadamente, por diluir a distino entre acto administrativo e negcio jurdico. Cfr. Giustina Noviello e Vito Tenore, La Responsabilit e il Procedimento Disciplinare nel Pubblico Impiego Privatizzato, cit., pp. 20 e 592 a 600.
10 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________
c) e como que se fraccionaram os interesses pblicos em presena, divisando, nos de
cada ente pblico, aqueles que so interesses empenhados, densificados, da sua
aco enquanto empregador.
No emprego pblico, no poder disciplinar o que est em causa a efectivao da
responsabilidade jurdica profissional do trabalhador. O poder disciplinar punitivo sendo a
sua expresso mais visvel, no o esgota. Seno vejamos:
1) O poder disciplinar preventivo e prescritivo, no sentido em que compreende a
concretizao de pautas de comportamento e/ou a imposio de modos de proceder
funcionais e organizacionais ordenados disciplina. Ilustrativo, mutatis mutandis, a
previso do artigo L.141-5-1 do Cdigo da Educao francs, que dispe que a
instaurao de procedimento disciplinar contra os alunos dos estabelecimentos pblicos
franceses que usem smbolos e indumentria manifestamente ostensiva de uma pertena
religiosa deve ser precedida de um dilogo com o aluno, explicando-lhe desvalor da
sua conduta e os objectivos prosseguidos (un vritable rappel la loi)15.
No mesmo sentido, afirma o TCA Sul, no acrdo de 20 de Abril de 2006, que no
lquido (bem pelo contrrio) que o superior hierrquico, perante o incumprimento dos
deveres funcionais por parte de um subordinado seu, entendendo que tal actuao no
atingiu a gravidade para merecer o despoletar de um processo disciplinar mas
convencido, no entanto, que merece uma reaco para ser alterada, no possa dar um
comando, ainda que abstracto para levar o funcionrio ao cumprimento dos seus
deveres.16
Expressivo, tambm, o conceito de disciplina progressiva do Bexar County Civil
Service Commisson Rules and Regulations (7.6.10, de 16 de Maro de 2007): para
garantir o cumprimento correcto e responsvel dos deveres e das normas, pelos
respectivos trabalhadores, cada servio ou departamento deve desenvolver programas
15. Oliver Dord, Lacit lcole: lobscure clart de la circulaire Fillon du 18 mai 2004, AJDA, n. 28/2004, 26 de Julho, pp. 1525 e 1526.
O dilogo deve versar sobre a conciliao pretendida entre a liberdade de opinio, a laicidade e sobre as diferentes hipteses que se oferecem ao aluno. A instaurao vlida de procedimento disciplinar depende do bom desenvolvimento deste dilogo. Trata-se de assegurar que o procedimento disciplinar no utilizado seno para sancionar uma recusa deliberada do aluno se conformar com a lei (p. 1526).
Captulo II Os limites ao exerccio do poder disciplinar 11 ________________________________________________________________________________________
e expectativas de desempenho claras e razoveis, investigar as circunstncias de uma
aparente violao das regras ou de um desempenho insatisfatrio antes de desencadear
aco disciplinar formal, procurar o aconselhamento verbal, formular uma repreenso e
garantir que uma vez feita a opo pela aco disciplinar, esta rpida e
consistentemente conduzida17.
A Recomendao n. 166, da OIT, de 1966 ( 7 e 8), prescreve que o trabalhador s
deve ser despedido se o empregador o tiver avisado por escrito e/ou instrudo da
incorreco do seu comportamento ou do desempenho insatisfatrio dos seus deveres,
de modo a permitir que o altere18.
Como se v esta dimenso no se confunde ou esgota no poder de direco. Mais do
que direccionar a actuao prestativa e relacional do trabalhador, trata-se de dispor,
genrica ou concretamente, no sentido da existncia de disciplina19. Neste quadro, o
poder de direco pode funcionar como um instrumento do papel preventivo e
prescritivo do poder disciplinar20.
2) Pode tambm ser premial (dimenso que sobretudo destacada e regulada em relao
disciplina dos militares, agentes militarizados e agentes dos servios e foras de
16. Processo n. 02713/99, pp. 27 e 28, in htt://www.dgsi.pt/jtca. 17. Website. 18. In http:/www.ilo.org/ilolex/cgi-lex/convdf.plR166. 19. Relativamente ao poder disciplinar laboral, Maria do Rosrio Ramalho defende que tem, no s uma
componente sancionatria como uma componente prescritiva, que se manifesta ao longo do desenvolvimento normal do contrato. Destaca que no se confunde com o poder de direco porque as regras de comportamento ou de disciplina que permite ao empregador emitir no seio da sua organizao extravasam o mbito da prestao do trabalho. Direito do Trabalho, Parte II. Situaes Laborais Individuais, Julho, 2006, pp. 613 e 615. No sentido amplo do poder disciplinar, ver, tambm, Lies de Direito Administrativo, segundo as preleces do Exmo. Sr. Dr. Magalhes Colao, ao 3. ano jurdico de 1923-24, aproveitando tambm estas lies ao curso do 2. ano jurdico (Reforma de 1922), de A. Queiroz Martins, Simes Correia e Ferreira Jnior, Papelaria Escolar Editora, 1924, Lisboa, p. 180.
No mesmo sentido, LegCo Panel on Public Service. Disciplinary Mechanism in the Civil Service, na funo pblica do Hong Kong, in http://cbs.gov.hk/hkgcsb/doclib/e.pdf. Em 2000, foi implementada um novo regime do exerccio do poder disciplinar na funo pblica, entre cujas premissas est a de considerar que os procedimentais disciplinares formais so insuficientes para a existncia de uma justa disciplina. Com efeito, os [p]roblemas comuns revelados pelos casos disciplinares incluem deficiente superviso, a falta de ateno s m prticas e s queixas ou reclamaes, falta de instrues organizativas e de trabalho claras e, bem assim, de uma ntida diviso de responsabilidades.
20. Autores h, no entanto, que vem o poder disciplinar apenas como um poder punitivo, reconduzido a dimenso prescritiva ao poder de direco.
12 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________
segurana). Este pode traduzir-se na atribuio de recompensas e de honras21 e no
reconhecimento do mrito profissional22. Promove a adequao do trabalhador s
finalidades da relao jurdica de emprego pblico. Podem constituir um instrumento de
preveno da infraco. Nas palavras de Beccaria: Um outro meio de prevenir os
delitos o de recompensar a virtude23.
3) O poder disciplinar tem uma das suas feies principais, seno a principal, no exerccio
da aco disciplinar. Consiste no poder de promover ou determinar a investigao
disciplinar, o apuramento do desvalor, face da disciplina, de certas condutas e dos
seus autores. A instaurao de procedimento disciplinar a expresso primacial da
aco disciplinar24. Pressupe que esteja indiciada a prtica, pelo trabalhador, de
infraco disciplinar. A investigao disciplinar prvia (ao procedimento disciplinar)
faz-se tambm atravs de processo de averiguaes, de inqurito e mesmo de
sindicncia, referenciados legalmente como processos disciplinares especiais25.
21. O n. 3 do artigo 60., do Regulamento Disciplinar da Guarda Nacional Republicana, aprovado pela
Lei n. 145/99, de 1 de Setembro, expressivo (: A competncia disciplinar envolve a competncia para instaurar processo disciplinar, bem como a competncia para recompensar e punir, nos termos previstos nos quadros anexos A e B ao presente Regulamento, do qual fazem parte integrante - itlico nosso). So-no, igualmente, vrios artigos do Regulamento Disciplinar da Polcia de Segurana Pblica, aprovado pela Lei n. 7/90, de 20 de Fevereiro, e alterado pelo Decreto-Lei n. 255/95, de 30 de Setembro, designadamente, o n. 1 do artigo 18. (: A competncia disciplinar para julgamento de infraces, imposio de penas ou concesso de recompensas pertence s entidades hierarquicamente competentes, - itlico nosso), as normas do artigo 19., do n. 1 do 20. (Os factos a que possa corresponder recompensa sero sempre registados e, nos casos em que isso se justifique, constituiro objecto de averiguao sumria) e dos artigos 21. a 24., relativos aplicao das recompensas (elogio, louvor e promoo por distino). No mesmo sentido, cfr. artigos 13. a 21. do regulamento de disciplina militar, aprovado pelo Decreto-Lei n. 142/77, de 9 de Abril. Como recompensas prev o louvor, a licena por mrito e a dispensa de servio:
22. Os artigos 24. e 30. do Decreto-Lei n. 184/89, de 2 de Junho, prevem a atribuio de menes de mrito excepcional, de incentivos materializveis nos mecanismos de progresso ou promoo na carreira e em outras medidas reconhecimento individual de natureza no pecuniria. Ver, tambm, PL 316/2007, de 12 de Junho de 2007, 2. travesso, p. 3, e ltimo pargrafo de p. 5.
23. Um outro meio de prevenir os delitos o de recompensar a virtude. Sobre esta matria verifico um silncio universal nas leis de todas as naes dos nossos dias. (Dos Delitos e das Penas, cit., p. 160)
24. No Estatuto Disciplinar dos Funcionrios e Agentes da Administrao Central, Regional e Local (aprovado pelo Decreto-Lei n. 24/84, de 16 de Janeiro), a competncia para instaurao de procedimento disciplinar est prevista no artigo 39. (Competncia para instaurao do processo) do Captulo V, com a epgrafe Processo disciplinar e a competncia para aplicar sanes disciplinares no Captulo III (artigos 16. a 21., respectivamente, a Competncia disciplinar sobre os funcionrios e agentes da administrao central e regional - artigo 17. -, a competncia disciplinar sobre o pessoal das autarquias locais - artigos 18. e 19 e sobre o pessoal da administrao geral perifrica artigos 20. e 21.).
25. Cfr. artigo 35., ns 1 a 3, e Captulo VI, do Estatuto Disciplinar de 1984 e Leal Henriques,
Captulo II Os limites ao exerccio do poder disciplinar 13 ________________________________________________________________________________________
4) A dimenso punitiva do poder disciplinar traduz-se na aplicao de sanes
disciplinares. Estas so sanes aflitivas, que atingem o trabalhador na sua situao
profissional, no sendo ressarcitrias nem dirigidas ou centradas no respectivo
patrimnio. As sanes so aplicadas pelo prprio empregador, sem exigncia legal de
intermediao judicial26.
2. As funes do poder disciplinar
O regime disciplinar clssico, desenhado segundo o modelo weberiano de Administrao
Pblica (de uma organizao racional, hierrquica, normativamente subsuntiva, tcnica,
niveladora, imparcial e objectiva27)28, questionado na sua eficcia, no, ou no tanto, do
ponto de vista da proteco jurdica do trabalhador, mas da idoneidade para corresponder s
exigncias de bom governo daquela29.
Procedimento Disciplinar, cit., pp. 119 e 120.
Significativamente, ver, tambm, Acrdo do STJ, de 27 de Outubro de 2004, processo n. 03S3784, JSTJ000, N. do Documento SJ200410270037844, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/: o exerccio do poder disciplinar no se inicia com a nota de culpa, mas sim com o comeo das diligncias destinadas averiguao da infraco; assim, nos casos em que se mostre objectivamente indispensvel a elaborao de inqurito para o apuramento dos factos passveis de sano disciplinar, bem como para imputao das responsabilidades, a instaurao de processo prvio de inqurito determina o incio da aco disciplinar (p. 11).
26. De forma semelhante, relativamente ao poder disciplinar laboral privado, ver Maria do Rosrio Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte II Situaes Laborais Individuais, Julho, 2006, pp. 614 a 619.
27. Max Weber, Economa y Sociedad, IV, Tipos de Dominacin, Fondo de Cultura, Mxico, traduo do alemo de Jos Ferrater Mora, 1944, pp. 87 a 134. O modelo weberiano para a "administrao moderna" (p. 86) apresentado por demarcao face ao modelo patrimonializado (pp. 87 a 134, maxime, p. 87). No curso do seu desenvolvimento, a organizao burocrtica no teve s que dominar os obstculos essencialmente negativos que se opem nivelao por ela exigida, mas com ela cruzaram-se e entrecruzam-se formas da estrutura administrativa que se baseiam em princpios heterogneos (). A burocracia tem um carcter racional: a norma, a finalidade, o meio e a impessoalidade objectiva dominam a sua conduta (p. 130).
28. Alis, a burocracia aspira sempre ao desenvolvimento de uma espcie de direito ao cargo pela criao de um procedimento disciplinar regulado, pela eliminao da disposio arbitrria dos superiores relativamente aos funcionrios (p. 128). O carcter profissional puramente objectivo do cargo facilita a incorporao nas condies objectivas, dadas de uma vez para sempre, do mecanismo fundado na disciplina (p. 98). Cfr. Max Weber, Economa y Sociedad, IV, Tipos de Dominacin, citado.
29. Segundo o discurso de Georges Dellis e Spyros A. Pappas (Le droit disciplinaire et son application dans les administrations publiques des Etats Membres, in The Meetings of The Directors General for Public Administration. Recalling the past and considering the future, European Institute of Public Administration, DGAP, Portugal, 2000, p. 131), pretendida Administrao neutral, objectiva e racional, resiste uma administrao permevel politizao do seu pessoal dirigente. E revela-se uma Administrao corporativizada, pela presso ou influncia de grupos de interesses e uma Administrao que toma decises com importantes efeitos econmicos e distribui avultados recursos financeiros. A permeabilidade mais acentuada nas instncias de administrao descentralizada. Se, por um lado, a administrao no se
14 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________
A Administrao do Estado social e regulador , por um lado, uma administrao que toma
decises com importantes repercusses econmicas, com relevante dimenso tcnica,
sujeita a presses de grupos de interesses e que gere a distribuio de avultados recursos
financeiros (designadamente, sob a forma de apoios e subsdios), e que o faz, por fora da
descentralizao das competncias administrativas, de forma diversa e autnoma. Por outro
lado, uma organizao qual se exige hoje tambm eficincia e eficcia30. Acresce que a
democratizao da funo pblica introduziu uma maior exigncia e controlo no que
respeita ao exerccio de actividades privadas, seja proibindo o exerccio de certas
profisses, seja impondo o dever de comunicar qualquer oferta de emprego ou de pedir
autorizao para aceitar certo emprego durante certo perodo aps cessar o exerccio de
funes31.
As exigncias da Administrao prpria do Estado Social e Democrtico de Direito
postulam um modelo de funo pblica eficaz e um regime disciplinar adequado32. A este
pede-se que modele a disciplina segundo os padres da boa conduta dos funcionrios33.
Pede-se tambm ao regime jurdico disciplinar que acolha os valores da produtividade e da
eficincia na prestao de trabalho34. Igualmente que aperfeioe a relao entre os deveres
despolitiza, h, por outro lado, uma crescente tecnocracia das decises, por fora da preparao tcnica que pressupem e das alternativas de sentido decisrio que oferecem. Esta abertura dada por uma Administrao no meramente passiva, mas conformativa e constitutiva, de que expressivo o aumento do nmero dos funcionrios-assessores-gestores face ao dos funcionrios-executores.
30. Cfr. artigo 267., n.s 1 e 2, da CRP. 31. Por exemplo, proibio do exerccio de funes durante certo perodo de tempo para empresa
privada que o funcionrio anteriormente inspeccionou ou aditou. A entrada abrupta das massas no espao pblico e a afirmao do trabalho como tertium genus entre
pblico e privado, aceleraram a degradao da esfera pblica, segundo Antnio de Arajo, Jrgen Habermas, Mudana estrutural da esfera pblica, Sub Judice, Justia e Sociedade, Abril / Setembro / 1996, p. 125.
32. Beln Marina Jalvo, El Regimn Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, editorial Lex Nova, Valladolid, pp. 55 e 56, nota 56.
33. Segundo a lgica de que no basta que sejam dignos das suas funes, mas que ajam de maneira que o evidencie.
34. Na falta de previso normativa de tal dever e, por exemplo, de sanes pecunirias que levem os trabalhadores a produzir mais, tendem a ser utilizados meios para-disciplinares relativamente aos trabalhadores preguiosos e incapazes (Georges Dellis e Spyros A. Pappas, Le droit disciplinaire et son application dans les administrations publiques des Etats Membres, in The Meetings of the Directors General for Public Administration. Recalling the past and considering the future, European Institute of Public Administration, DGAP, Portugal, 2000, pp. 128 a 135).
Captulo II Os limites ao exerccio do poder disciplinar 15 ________________________________________________________________________________________
funcionais do trabalhador e a sua conduta enquanto cidado segundo as regras de que a
condenao penal por factos exteriores s funes que exerce no , em princpio, relevante
do ponto de vista disciplinar; e o exerccio de direitos polticos no , em princpio,
prejudicvel pelos deveres de imparcialidade e neutralidade35.
O empregador pblico, atravs dos seus rgos, tem que gerir uma organizao de pessoas
e bens e, neste quadro, de gerir todas e cada uma das relaes de trabalho. O poder
disciplinar do emprego pblico geralmente caracterizado como destinado a assegurar a
boa organizao e funcionamento dos servios da Administrao Pblica: Os funcionrios
que comprometem o bom funcionamento dos servios, aqueles que por qualquer modo
deixam de observar as suas obrigaes ou os seus deveres, incorrem em responsabilidade
disciplinar e ficam, por isso, sujeitos s sanes adequadas36. Nesta linha, diz Antnio
Taipa de Carvalho que o poder disciplinar tem por objectivo imediato os interesses
especficos da boa organizao e do eficaz funcionamento dos servios da Administrao.
E acrescenta que a satisfao deste objectivo imediato condio para o progresso e
justia sociais, atravs da satisfao das necessidades dos cidados, individualmente ou
organizados e em associao. Invoca, para o fundamentar o artigo 269., n. 1, da
35. Georges Dellis e Spyros A. Pappas, Le droit disciplinaire et son application dans les administrations
publiques des Etats Membres, cit., pp. 128 a 135. 36. Lopes Navarro, Funcionrios Pblicos, cit., p. 217. Para o autor, a represso disciplinar tem em
vista o aperfeioamento e a boa execuo dos servios pblicos (p. 218). Cfr. Acrdo do TCA Sul de 20 de Abril de 2006 (p. 27), que identifica a coeso e a disciplina como imprescindveis para a eficincia de um organismo (processo n. 02713/99, in http://www.dgsi.pt), Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da Repblica, n. 123/87, in BMJ n. 380, Novembro, 1988, p. 108, Mireille Delmas-Marty E Catherine Teitgen-Colly, Punir Sans Juger? De la rpression Administrative au Droit Administratif Pnal, ed. Economica, 1992, pp. 32 e 33 (A doutrina s aceita a represso administrativa quando existe uma ligao preexistente e individualizada com a Administrao, represso que se exerce a fim de assegurar a boa ordem do servio pblico, ou seja, uma ordem jurdica particular a ordem interna da administrao -, a qual no diferente da que se exerce no interior de qualquer instituio, ainda que privada.), Jos Vicente Gomes de Almeida, Recomendao sobre a legalidade de no instaurar procedimento em vez de suspender o procedimento instaurado. Processo n. 112/99, Parecer n. 2/2002, in Controlo Externo da Actividade Policial e dos Servios Tutelados pelo MAI, Vol. II, Anos 1998-2002, Inspeco Geral da Administrao Interna, p. 308 (o fundamento do exerccio do poder disciplinar reside exactamente no seu carcter instrumental ao servio de uma adequada e correcta integrao dos funcionrios no esprito das atribuies da Administraes da Administraes Pblicas) e Pedro Jorge da Silva Cordeiro, Responsabilidade mdica disciplinar no Servio Nacional de Sade (Algumas especificidades instrutrias), Direito da Medicina, n. 6 - I, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Centro de Direito Biomdico, Coimbra Editora, 2002, p. 203 (:a responsabilidade disciplinar a que, enquanto consequncia de violao de deveres funcionais, visa a restaurao do normal funcionamento dos servios, sujeitando os funcionrios e agentes a certas penas).
16 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________
Constituio, que estabelece o princpio da dedicao exclusiva, dos trabalhadores da
Administrao Pblica e demais agentes do Estado e outras entidades pblicas, ao interesse
pblico, tal como definido, nos termos da lei, pelos seus rgos. Precedentemente, assinala
que para garantir o bom e eficaz funcionamento dos servios pblicos o Direito
disciplinar promove e estabelece os deveres de obedincia e lealdade dos funcionrios e
agentes da Administrao Pblica aos respectivos superiores hierrquicos, bem como todos
os deveres inerentes dignidade, justia e eficcia da funo que exercem37.
O entendimento explicitado encadeia as finalidades, que apresenta, do poder disciplinar:
primeiro, dirige-se a garantir que o trabalhador exera a sua actividade segundo os
parmetros da obedincia, lealdade e demais valores jurdicos condensados em cada um dos
seus deveres funcionais, associando o seu cumprimento hierrquica; em segundo lugar,
por virtude deste exerccio, garante o bom e eficaz funcionamento dos servios pblicos;
e, em terceiro lugar, na respectiva decorrncia, assegura um bom servio aos cidados.
A esta viso orgnico-funcional, que, com variaes, frequente, acresce a perspectiva do
poder disciplinar como o poder de aplicar sanes correctivas ou expulsivas aos agentes
que, pelo seu procedimento, embaracem ou de qualquer modo prejudiquem o perfeito
funcionamento do servio38.
No concordamos com a viso que fica exposta, pelo seguinte:
a) Desde logo quanto a este ltimo aspecto, cremos, como referido, que o poder disciplinar
no encerra apenas uma vertente punitiva.
b) Entendemos, por outro lado, que centrar a funo do poder disciplinar no regular e bom
funcionamento do servio constitui um enunciado genrico, aplicvel a realidades
jurdico-administrativas vrias e, por isso, com escassa compreenso individualizadora.
A relevncia disciplinar dos comportamentos do trabalhador aferida pela violao
37. Amrico A. Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Questes Fundamentais, Porto, 2003,
Publicaes Universidade Catlica, pp. 181 e 182. 38. Manuel Monteiro Guedes Valente, Da Publicao da Matria de Facto nas Condenaes nos
Processos Disciplinares, Instituto de Cincias Policiais e Segurana Interna, 2000, pp. 6 e 12 (refere-se ao direito disciplinar como um direito punitivo).
Captulo II Os limites ao exerccio do poder disciplinar 17 ________________________________________________________________________________________
culposa de deveres funcionais39, nos limites dos termos em que o trabalhador se obrigou
na relao jurdica de emprego pblico.
c) O poder disciplinar um instrumento jurdico de garantia da relao jurdica de
emprego pblico. Cauciona o cumprimento pelo trabalhador dos deveres e obrigaes
(de todos e no apenas dos relativos estrita prestao de trabalho) assumidos com a
vinculao nos termos dessa relao jurdica. Assegura, pois, os interesses do
empregador pblico na relao jurdica de emprego, os seus interesses enquanto
empregador, que so interesses pblicos instrumentais realizao dos interesses e
atribuies postos a seu cargo. Apesar de no ser um poder privado, tambm
relativamente ao poder disciplinar do empregador pblico, semelhana do afirmado
em relao ao poder disciplinar do empregador privado, proceda a observao de que
constitui um mecanismo de auto-tutela.
O Direito disciplinar regula o exerccio desse poder e os interesses do trabalhador, no
exerccio juridicamente regulado do mesmo. O poder disciplinar uma das sujeies ou
limitaes decorrentes da sua vinculao a uma relao jurdica de emprego.
3. O fundamento do poder disciplinar
O poder disciplinar confere ao empregador pblico uma posio de domnio na relao
jurdica, que tem a sua expresso mais significativa no poder de punir o trabalhador. As
justificaes apontadas para esta forma de autotutela so fundamentalmente de dois tipos.
Para uns, a explicao centra-se na especificidade da relao jurdica de emprego pblico.
Para outros, na dimenso institucional e funcional do sujeito pblico empregador.
3.1. A compreenso do poder disciplinar por referncia especificidade da relao
jurdica de emprego pblico
3.1.1. O interesse pblico e a inexistncia de paridade jurdica das partes
Notando, como ponto de partida da procura do fundamento para o poder disciplinar do
empregador privado, que este poder pe em causa o princpio da paridade das partes nos
negcios privados e o princpio da justia pblica, Maria do Rosrio Ramalho observa que
39. Cfr. artigo 3. do Estatuto Disciplinar de 1984.
18 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________
a nica situao com um vincado paralelismo com a do empregador laboral, do ponto de
vista dos poderes que lhe assistem e, designadamente, do poder disciplinar laboral, a
situao de poder que assiste ao Estado e s pessoas colectivas pblicas na qualidade de
empregadores. E acrescenta que a posio de poder dos empregadores pblicos encontra
uma justificao bvia no interesse pblico, para alm de estar, partida, comprometida a
aplicao do princpio da igualdade nestes vnculos, pela potestas natural do Estado40. A
este enunciado, pode contrapor-se o entendimento prevalecente, no Direito italiano da
funo pblica, no quadro da laboralizao e privatizao das respectivas relaes de
trabalho, do poder disciplinar como um direito potestativo idntico ao de um empregador
privado41. Importa, com efeito, atender aos termos em que as partes se vinculam, no mbito
de uma dada opo legislativa sobre o sistema jurdico de emprego.
3.1.2. A natureza da relao jurdica de emprego pblico como uma relao especial
de sujeio
De acordo com este entendimento, as sanes disciplinares so sanes especficas das
relaes de poder ou de sujeio especial42; o poder disciplinar um poder de supremacia
especial da Administrao sobre o funcionrio ou expressivo da particular subordinao
deste43; por contraposio ao estado de sujeio geral44, um poder natural e domstico
40. Direito do Trabalho, cit., pp. 648 e 659 a 662. 41. Giustina Noviello e Vito Tenore, La Responsabilit e il Procedimento Disciplinare nel Pubblico
Impiego Privatizzato, cit., pp. 14 a 20 e 480. 42. Parecer n. 7/78, da Comisso Constitucional, in Pareceres da Comisso Constitucional, 4. Volume
INCM, 1979, pp. 337 e 338, Guido Zanobini, Corso di Diritto Amministrativo, Volume Primo, Principi Generali, Ottava Edizione, Dott. A. Giuffr Editore, 1958, pp. 358 e 359, e Volume Terzo, (LOrganizzazione Amministrativa), Sesta Edizione, Milano, Dott. A. Giuffr Editore, 1958, pp. 303 e 304. Ver, sobre o assunto, tambm Beln Marina Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., p. 70.
43. Pietro Virga, Il Pubblico Impiego, Milano - Dott. A. Giuffr Editore, 1991, Terza Edizione Interamente Rifatta, p. 207. No mesmo sentido Ramn Parada: la potestad disciplinaria se justifica en la especial relacin de poder en que se encuentra sometido de forma voluntaria el funcionario... - Derecho Administrativo, II Organizacin y empleo pblico, Sexta edicin, Marcial Pons, Ediciones Jurdicas, S.A., Madrid, 1992, p. 463. Mas, logo acrescenta que ao lado desta explicao formal, o poder disciplinar sempre esteve vinculado e foi justificado em termos substanciais, em funo do princpio da hierarquia.
Ver, tambm, Marcello Caetano, referindo-se doutrina italiana quanto ao fundamento do poder disciplinar, in Do Poder Disciplinar, Coimbra, Imprensa Universitria, p. 35, Beln Marina Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, p. 79, e Guido Zanobini, Corso di Diritto Amministrativo, Volume Terzo, cit., p. 302. Por contraponto responsabilidade administrativa, observa este ltimo autor que a responsabilidade disciplinar, enquanto prpria das relaes de supremacia especial, corresponde
Captulo II Os limites ao exerccio do poder disciplinar 19 ________________________________________________________________________________________
[de organizao administrativa], diferente do poder sancionatrio geral, cuja eficcia e
necessria flexibilidade invocado justificar modelaes na aplicao dos princpios da
legalidade, tipicidade e do non bis in idem45.
A figura das relaes especiais de poder uma construo de origem germnica, justificada
por apelo s exigncias de funcionamento da administrao pblica, sob a reserva e a
direco do rei, cuja esfera de aco apenas externamente as normas legais limitavam. Os
funcionrios ao estabelecerem voluntariamente uma relao de servio com a administrao
entravam na sua esfera interna, ficando, sem restries legislativas, inteiramente
submetidos s respectivas exigncias funcionais, projectando-se estas inclusive na sua vida
privada. Mais tarde, a figura foi reenquadrada de harmonia com principologia de um Estado
de Direito, afirmando, de forma decisiva, a Sentena de 14 de Maro de 1972, do Tribunal
Constitucional Federal alemo, a vigncia do princpio da legalidade e dos direitos
fundamentais nas relaes de sujeio especial46. Uma compreenso limitativa da
aplicao dos direitos fundamentais na funo pblica, esteada na instituio de relao
especial de subordinao, continuou a ser defendida por alguns47. Alberto Tavares da
Costa, no voto de vencido ao Acrdo do Tribunal Constitucional n. 363/91, sintetiza: H
uma certa concordncia nos autores no sentido de que, inclusivamente no domnio das
relaes especiais de poder, as restries no podem ir to longe que legitimem o sacrifcio responsabilidade contratual de direito privado; as outras formas de responsabilidade administrativa, enquanto baseadas no geral dever de obedincia s leis, correspondem responsabilidade extracontratual.
44. Marcello Caetano, Do Poder Disciplinar, cit., p. 35, e ponto 9 do Acrdo do Tribunal Constitucional n. 263/94, de 23 de Maro de 1994, Processo n. 566/92, www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19940263.html?impressao=1.
Sobre a distino entre relao geral de poder e relao especial de poder, ver tambm Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Coimbra, 1996, pp. 59 e 60.
45. Beln Mariana Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., p. 71 e pp. 76, 78, nota 48, 79, 80.
46. Beln Marina Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., pp. 71 a 73. 47. Considerando 80 da opinio dissidente ao acrdo BverfG, 2 BvR 1436/02 of 09/23/2003,
paragraphs No. (1-138), http://www.bverfg.de/entscheidungen/rs20030924_2bvr143502en.html. Os trs juzes que votaram vencido advogam tal compreenso, de que expressivo o seguinte trecho (considerando 77): Aqueles que se tornam funcionrios pblicos colocam-se a si prprios por acto livre de vontade do lado do estado. Um funcionrio pblico no pode portanto confiar no efeito dos direitos fundamentais para garantir a liberdade da mesma maneira que o pode quem no faz parte da organizao estadual. No exerccio dos seus deveres funcionais, consequentemente, os funcionrios esto protegidos pela promessa de liberdade contra o estado garantida pelos direitos fundamentais na medida em que no resultem restries da reserva aos
20 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________
de um princpio fundamental para a salvaguarda de um certo valor constitucional. As leis
reguladoras de estatutos especiais s podem conter restries a direitos fundamentais em
smile de renncia, se existir disposio constitucional autorizatria, como no caso do
artigo 270. da Constituio da Repblica48.
A construo a de que certas categorias de pessoas se relacionam juridicamente em
termos especiais com os poderes pblicos. Para a identificao do quid novum de uma tal
relao so apresentados, fundamentalmente, trs critrios49: a intensidade da submisso de
um dos sujeitos (acentuada situao de dependncia50; particulares estados de funcionrios pblicos do exerccio de poderes soberanos.
48. Processo n. 351/91, publicado na Revista de Legislao e Jurisprudncia, Ano 124., n. 3807, de 1 de Outubro de 1991, p. 195. No Acrdo n. 88-090-P, o TC, considerando que o direito de petio (ou queixa) individual no se encontra entre os direitos susceptveis de restries previstas no artigo 270. da Constituio, afirmou, no obstante, que [q]uando um cidado recorre abusivamente ao direito de petio, sabendo que os factos apontados na queixa so falsos e com intuito doloso de prejudicar o denunciado ou participado, no est a exercer esse direito, por ter excedido os seus limites imanentes ( processo n. 0149/84, TSC1988041988090P, in http://www.dgsi.pt/atco1). No acrdo do STA de 21 de Abril de 1994, processo n. 32 041, afirma-se que a compresso de direitos fundamentais dos militares deve ir s at onde o imponham a disciplina e a coeso das Foras Armadas (BMJ, n. 436, p. 417).
49. Outros critrios so ainda aduzidos, como o carcter pessoal da relao, a impossibilidade de prefixar a extenso e o contedo das prestaes, a necessidade de eficincia e produtividade administrativa, o facto de que o indivduo tem de obedecer a ordens, algumas das quais no derivam directamente da lei e o facto de voluntariamente consentir nessa submisso (Beln Mariana Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., p. 74, nota 29). No so, no entanto, critrios que digam da sujeio, mas antes do seu fundamento ou das suas derivaes.
Marcelo Madureira Prates (Sano Administrativa Geral: Anatomia e Autonomia) para efeito da distino entre sanes administrativas gerais ou comuns e sanes administrativas especiais, que faz assentar, respectivamente, numa relao administrativa geral e numa relao administrativa especial, caracteriza esta ltima como aquela que se constitui, em regra, por um especfico acto bilateral, entre um particular e uma entidade administrativa, que pode ter natureza pblica ou privada, desde que detenha prerrogativas de autoridade (p. 213), mantendo-se aquele sob o seu controle constante e cujos interesses pblicos especficos do empregador afecta, em geral, os ilcitos que o trabalhador pratica (p. 214).
50. H uma situao de submisso distinta e mais intensa do que a do comum dos cidados (Castilho Blanco, Funcin Pblica, cit., p. 102). Uma relao estabelecida com uma instituio administrativa seria especial quando face sujeio normal e geral de qualquer cidado, tem uma fora maior (Michavila Nez apud Beln Marina Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., p. 73, nota 28). Contedo genrico desta supremacia um estado de especial sujeio pessoal do indivduo diante da Administrao, sujeio mais acentuada em relao sujeio normal face Administrao considerada simplesmente como titular de um poder de imprio. O particular coloca-se, acessoriamente, na esfera jurdica e material da Administrao, no quadro de uma dada relao jurdica, como, por exemplo, a de utente do servio pblico de ensino (pp. 281 e 282). Uma especial supremacia da Administrao existir sempre que o tipo de relao implique um directo contacto pessoal, tendo um certo carcter de permanncia e continuidade, entre o indivduo e a esfera da Administrao, de tal forma que surge a necessidade de disciplinar o seu comportamento pessoal a fim de assegurar a melhor actuao da prpria relao, sendo inidneos e insuficientes tanto a normal supremacia geral da Administrao como tambm, em particular, o comum poder de polcia que precisamente sobre tal supremacia se funda (pp. 285 e 286) (Renato Alessi, Principi di
Captulo II Os limites ao exerccio do poder disciplinar 21 ________________________________________________________________________________________
subordinao e submisso a uma vigilncia especial51), o estabelecimento de um
contacto mais directo e imediato com a instituio pblica (Garrido Falla) e a insero
do particular na organizao administrativa52.
No s a especialidade comporta diversas variaes - da a elasticidade e o alargamento,
que se foi verificando, do elenco das situaes de sujeio especial53 -, como o conceito,
pouco coeso, no marca a passagem da generalidade para a especialidade54. Assinalam-se
ainda as seguintes reservas:
a) Nas relaes gerais de sujeio, tambm pode interceder um contacto directo e
imediato com a Administrao ou de grande proximidade, como acontece, por
exemplo, com os cidados estrangeiros55.
Diritto Amministrativo, I, I Soggetti Attivi e LEsplicitazione della Funzione Amministrativa, Quarta Edizione Rielaborata e Aggiornata, Milano, Dott. A. Giuffr Editore, 1978. Cfr. tambm p. 290).
51. Parecer n. 7/78, in Pareceres da Comisso Constitucional, Vol. IV, pp. 337 e segs. 52. Beln Mariana Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., pp. 73 a 76 e 86,
nota 81, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 1988, pp. 302 e 303 (o autor caracteriza os estatutos ou relaes especiais de poder como situaes mais ou menos duradouras em que as pessoas aparecem inseridas no mbito de instituies pblicas, nos quais haver que preservar o equilbrio entre o respeito pela liberdade das pessoas e a prossecuo dos fins institucionais, embora o grau de compresso dos direitos acompanhe a variedade das situaes.) e Tomo IV, 3. edio, pp. 334 a 336, e considerandos 82 e 83 da opinio dissidente ao BverfG, 2 BvR 1436/02 of 09/23/2003, paragraphs No. (1-138), http://www.bverfg.de/entscheidungen/rs20030924_2bvr143502en.html (: Os direitos fundamentais preservam a distncia entre os cidados e a autoridade estadual (). Esta funo essencial dos direitos fundamentais no pode, no entanto, ser desenvolvida sem restrio quando se pretende remover a distncia pela incorporao no estado e portanto a constituio no postula essa distncia. Numa relao de proximidade que institucionalmente querida pela Constituio, portanto, a funo essencial de um direito fundamental no pode ser afirmada sem ser tomada em considerao a relao de proximidade e a deciso constitucional em favor de uma funo pblica democraticamente dirigida itlicos nossos).
53. So frequentes as referncias situao dos funcionrios, presos, militares, utentes dos servios pblicos como as escolas, hospitais, frequentadores de bibliotecas e museus pblicos, membros de colgios profissionais, ou titulares de profisses dotadas de um estatuto pblico ou, pelo menos, vigiadas pelo poder pblico, para utilizar a expresso de Manzini (Acrdo n. 282/86 do TC), detectives, clientes de bancos pblicos, concessionrios. Beln Mariana Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., p. 79, nota 54, Acrdo n. 282/86 processo n. 4/85, DR., I Srie, n. 260, de 11 de Novembro de 1986, p. 3388, e Franck Moderne, La sanction administrative (lments danalyse comparative), Revue Franaise de Droit Administratif, n. 3, mai-juin, 2002, 18.e anne, pp. 485 e 486.
54. Beln Mariana Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., pp. 76 e 77. 55. Beln Mariana Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., p. 78. Beln Mariana Jalvo d ainda o exemplo do provedor de justia, embora nem em todos os ordenamentos
jurdicos possa ser considerado um rgo da Administrao Pblica, como se cr ser o caso portugus.
22 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________
b) A acentuada situao de dependncia pouco consentnea com a laboralizao das
relaes de emprego pblico e/ou contratualizao dos respectivos vnculos e regimes
jurdicos56.
c) A insero do particular na organizao tanto abrange a situao tradicionalmente
caracterstica do funcionrio pblico, parte numa relao jurdica de emprego, de
durao indeterminada, titulada por um acto administrativo (nomeao) e disciplinada
por um especfico regime jurdico de direito administrativo, como o trabalhador parte
numa relao de trabalho titulada e disciplinada, fundamentalmente, pelo Direito
laboral privado.
d) Embora haja funes cujo exerccio deva ser assegurado por categorias particulares de
trabalhadores, que se obrigam, segundo o regime jurdico das respectivas relaes de
trabalho, em termos mais exigentes para com o empregador pblico57 - por exemplo,
ficam estritamente proibidos de as acumularem com empregos ou cargos pblicos,
sujeitam-se a apertadas regras de incompatibilidade e a uma especfica durao e
horrio de trabalho58 -, a generalidade dos que trabalham na Administrao Pblica,
integrando-se nela, e devendo exercer as suas funes com subordinao exclusiva ao
interesse pblico, no respeito dos princpios da imparcialidade, igualdade,
56. No sentido de que as denominadas relaes de sujeio especial, entre as quais situa as relaes
entre a Administrao e os funcionrios, constituem um domnio propcio ao exerccio do poder normativo mediante acordo entre as partes, traduzido na regulao de mtuo acordo auto-regulao do contedo da relao de emprego que os une, ver ngeles de Palma del Teso, Los Acuerdos Procedimentales en el Derecho Administrativo, Tirant lo Blanch, Valencia, 2000, pp. 301 e 302. O critrio adoptado pelo autor, no entanto, para a qualificao parece ser a maior ou menor extenso do crculo das pessoas abrangidas. Expressivamente, escreve que o acordo de natureza normativa pode ter lugar nos mbitos referidos a um grupo limitado e bem definido de interessados. No assim continua quando a regulao recaia sobre um grupo amplo e indeterminado de sujeitos.
57. O que geralmente, no entanto, compensado pela atribuio de especficos direitos e regalias. 58. o caso, por exemplo, dos militares e agentes militarizados, dos agentes dos servios e foras de
segurana, do pessoal diplomtico, dos inspectores da Inspeco-Geral de Finanas. Cfr., por exemplo, artigos 46. a 63. do Estatuto da PSP, aprovado pelo Decreto-Lei n. 511/99, de 24 de Novembro, e a Lei n. 7/90, de 20 de Fevereiro, que aprovou o Regulamento Disciplinar da PSP, maxime, artigos 7. a 17.; artigos 6., 47. e 48., 56. e 58. do Decreto-Lei n. 40-A/98, de 27 de Fevereiro.
Cfr. Acrdo proferido no caso Engel et outros contra a Holanda, de 8 de Junho de 1976, p. 30 e p. 38 (A obrigao, para os cidados em geral, de obedecer lei difere manifestamente na nossa opinio da situao especial dos militares, sujeitos a se conformar ao cdigo de disciplina que constitui uma componente vital e intrnseca da fora a que pertence in voto de vencidos dos juzes M. ODonoghue e Mme Pedersen - http://cmiskp.echr.coe.int/).
Captulo II Os limites ao exerccio do poder disciplinar 23 ________________________________________________________________________________________
proporcionalidade e boa f, tm a comum qualidade e direitos dos trabalhadores
subordinados do sector privado59. O afastamento do figura da relao jurdica especial
de poder no contende com o reconhecimento da singularidade da relao jurdica de
emprego pblico, dada a deverosidade que implica para com o empregador pblico e a
de um certo modo de exerccio de funes em face dos cidados60.
e) A construo frgil pela inconstncia e elasticidade da delimitao subjectiva que
pretende - os poderes envolvidos podem vir a ser exercidos sobre qualquer sujeito de
direito que vier a encontrar-se numa situao subsumvel na previso das normas que
[os] conferem61 -, pelo carcter no necessariamente estvel das relaes como tal
caracterizadas e pela no singularidade dos poderes exercidos62 ou pela supresso das
prerrogativas que o pretendido poder repressivo fundado sobre as relaes especiais
conferia s autoridades administrativas63. Em certo sentido, nota mesmo Marcelo
Rebelo de Sousa, que as relaes especiais de poder tambm existem entre os
particulares, quando na relao jurdica se exprime a disparidade de peso ou influncia
social ou econmica dos particulares64.
59. Cfr. artigo 266., n. 2, da CRP, artigos 5. e 6. da Lei n. 99/2003, de 27 de Agosto, que aprova o
Cdigo do Trabalho, e a Lei n. 23/2004, de 22 de Junho. Ver, tambm, Beln Mariana Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., pp. 75 a 79.
A prpria distino entre relao fundamental e relao de servio versus relao orgnica (em que relativamente a todas as relaes de trabalho, h uma relao de imediao orgnica) j no faz sentido. Salvo quanto a alguns trabalhadores, hoje indiscutvel, normativa e dogmaticamente, que a generalidade dos trabalhadores da Administrao Pblica no tem seno esta qualidade.
60. Cfr. artigos 266., n. 2, e 269. da CRP, GianFranco Bronzetti, Casi Tipici di Responsabilit nella Pubblica Amministrazione, Cedam, 1997, p. 67, e Marcello Caetano, Do Poder Disciplinar, cit., p. 36 (Tal delimita o exerccio do poder disciplinar, mas no o seu fundamento).
61. Cfr. Srvulo Correia, As relaes jurdicas de prestao de cuidados pelas unidades de sade do servio nacional de sade, in Direito da Sade e Biotica, AAFDL, 1996, p. 49, e Franck Moderne, La sanction administrative, Revue Franaise de Droit Administratif, mai-juin, 2002, n. 3, pp. 485 e 486.
62. Srvulo Correia, As relaes jurdicas de prestao de cuidados pelas unidades de sade do servio nacional de sade, cit., pp. 48 a 50.
63. Franck Moderne, La sanction administrative, Revue Franaise de Droit Administratif, mai-juin, 2002, n. 3, p. 486, e Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, cit., p. 95 (As relaes especiais de poder que tanto sucesso tiveram no direito alemo so, hoje, um instituto que pertence ao passado (Maurer).).
64. Marcelo Rebelo de Sousa, O papel do provedor de justia na feitura das leis, Provedor de Justia - 20. Aniversrio 1975-1995, Sesso comemorativa na Assembleia da Repblica, 30 de Novembro de 1995, Lisboa 1996, p. 91.
24 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________
f) ainda de observar que, sem prejuzo do reconhecimento, expresso ou implcito, de um
maior nmero de restries ao exerccio de certos direitos fundamentais por parte de
categorias particulares de trabalhadores da Administrao Pblica, o tratamento jurdico
das mesmas os respectivos parmetros jurdicos - no foge ao das restries ao
exerccio de direitos por parte da generalidade dos trabalhadores e de qualquer cidado
(: A necessidade de um fundamento constitucional valorativo para a restrio, a
concretizao legal dos termos da restrio e a limitao desta e das decises aplicativas
pelo princpio da proporcionalidade constitui o respectivo quadro de referncia, dado,
para estas e outras situaes pelo artigo 18. da CRP)65.
3.1.3. A leitura obrigacional
O entendimento contratualista do poder disciplinar do empregador pblico o de que uma
contrapartida adquirida pelo mesmo com base no contrato celebrado com o trabalhador. O
indivduo que estabelece uma relao de trabalho ou de servio com a Administrao, por
livre deciso da sua vontade, fica obrigado por determinados deveres e obrigaes. O
empregador pblico, no exerccio da sua auctoritas, para assegurar a execuo do
contrato tem a possibilidade de exercer a aco disciplinar. Dispe do poder de, no s
definir unilateralmente as obrigaes a cumprir mas, tambm, do poder de impor por si esse
cumprimento (por via do poder disciplinar), poder a que o indivduo voluntariamente se
sujeita, ao estabelecer a referida relao66.
Nesta compreenso, importa reter a leitura de Paul Laband, para quem a relao de
servio do funcionrio tem, como a contratao privada de um servio uma base livre e
65. Apesar de se referir s relaes jurdicas especiais, Vieira de Andrade escreve: Na perspectiva que
nos interessa a da proteco dos direitos fundamentais -, tendem a aplicar-se nestes casos os princpios e regras gerais da limitao e, concretamente, o quadro da restrio de direitos. (cfr. pp. 305 a 308 de Direitos Fundamentais na Constituio Portuguesa de 1976, Almedina, 2. edio, 2001). Na formulao do Tribunal Constitucional espanhol, a extenso dos direitos fundamentais a todos os cidados, como direitos inerentes prpria personalidade, exige que as limitaes ao seu exerccio baseadas na relao de sujeio especial em que se encontram certas categorias de pessoas s sejam admissveis na medida em que sejam estritamente indispensveis para o cumprimento da misso ou funo derivada daquela situao especial (STC n. 74/2004, de 22 de Abril de 2004).
66. Alberto Xavier, Estatuto dos Funcionrios (Justificao Jurdico-Poltica da Questo e Projecto de Lei, Lisboa, Portugal-Brasil Limitada, Sociedade Editora, p. 21.
Captulo II Os limites ao exerccio do poder disciplinar 25 ________________________________________________________________________________________
voluntria67 - supe um contrato que a estabelece, quer dizer um consentimento especial
em cada caso68 - e, por outro lado, tem, no seu contedo uma relao de poder69, isto ,
funda uma relao de poder do Estado, um dever particular de servio, de obedincia, de
fidelidade de um funcionrio [com a contrapartida do] dever do Estado de o proteger e
de lhe outorgar uma remunerao fixada para os seus servios70. Se o mesmo no cumpre
o seu dever de servio no viola um contrato, comete um delito disciplinar71, o
cumprimento dos deveres mais do que se conformar com os termos do contrato,
cumprir o dever de fidelidade e obedincia aceite72. Na leitura de Laband, de forma mais
concreta, destacam-se os seguintes aspectos:
a) A qualificao das consequncias disciplinares da violao dos deveres que
incumbem aos funcionrios como de direito pblico, pelo carcter pblico da
situao do funcionrio, no estando subordinadas a nenhuma outra condio
seno a da prpria violao dos deveres impostos73;
b) A rejeio de que a penalidade disciplinar seja prxima do poder pblico de
punir ou seja um direito penal especial, entendimento que, refere o autor,
67. Le Droit Public de lEmpire Allemand, Bibliothque Internationale de Droit Public, Paris, V. Giand
& Brire, 1901, p. 106. 68. Le Droit Public de lEmpire Allemand, cit., p. 107. O contrato - contrape queles que apoiam a respectiva impossibilidade entre o Estado e o particular no
facto de no serem sujeitos de direitos iguais pressupe um consentimento sobre os benefcios e a aceitao de obrigaes recprocas, um acto bilateral. O contrato ajusta ainda o autor no um conceito de Direito privado, um conceito de Direito geral (idem, p. 132). Mesmo quando envolve o exerccio de poderes soberanos, no h contratualizao destes, segundo o autor, porque o respectivo cometimento supe o dever de servio, decorrente do contrato celebrado, no funda o contrato ou o dever de servio (idem, p. 132).
69. Le Droit Public de lEmpire Allemand, cit., pp. 104 a 106. 70. Le Droit Public de lEmpire Allemand, cit., pp. 107, 119 e 120. Nas palavras de G. Pacinotti no se trata de uma postestas pblica que encontra o seu ttulo de eficcia
erga omnes no imperium estatal, mas de uma postesta publica [que] surge em virtude do negcio jurdico do emprego pblico apud Beln Marina Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., pp. 68 e 69.
71. Le Droit Public de lEmpire Allemand, cit., p. 107. 72. Le Droit Public de lEmpire Allemand, cit., pp. 107 e 108. 73. Le Droit Public de lEmpire Allemand, cit., p. 160.
26 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________
importa grandes dificuldades quando se procura apurar a respectiva relao
mtua74;
c) A responsabilidade disciplinar no se funda sobre o poder do Estado de infligir
penas pblicas, mas sobre a prpria relao de servio, sobre a subordinao do
funcionrio em face do Estado como do empregado em face do patro75;
d) As penas disciplinares so meios de que o Estado dispe tendo em vista manter a
boa ordem no servio e de assegurar o cumprimento dos deveres prescritos76, nesta
medida tendo o mesmo sentido do poder disciplinar noutras sedes, como, por
exemplo, o do capito de um navio em face da respectiva equipa77;
e) O recurso aos tribunais ou a meios de hetero-tutela seriam desprovidos de utilidade,
surgindo a punio disciplinar no espao e no lugar da aco de execuo do
contrato78;
f) No existem, assim, faltas contra a disciplina passveis de uma classificao
completa e categorias nitidamente distintas, do mesmo modo que no possvel
classificar as violaes aos contratos privados e muito menos existem legalmente...
formas fechadas79;
g) Cada omisso culpvel de um dever prescrito de molde a provocar, da parte do
Estado soberano, uma reaco atravs da sua autoridade disciplinar80;
h) Neste quadro, o exerccio do poder disciplinar , para o Estado, um direito, no
uma obrigao jurdica, do mesmo modo que, para um credor, toda a aco um
direito e no um dever81.
Guido Landi criticando o entendimento exposto, observa que, podendo ser contratual o
quadro do poder disciplinar, no ter, porm, este, uma fonte obrigacional. No se exerce o
74. Le Droit Public de lEmpire Allemand, cit., p. 182. 75. Le Droit Public de lEmpire Allemand, cit., p. 184. 76. Le Droit Public de lEmpire Allemand, cit., p. 184. 77. Le Droit Public de lEmpire Allemand, cit., p. 185. 78. Le Droit Public de lEmpire Allemand, cit., p. 186. 79. Le Droit Public de lEmpire Allemand, cit., p. 187. 80. Le Droit Public de lEmpire Allemand, cit., p. 187. 81. Le Droit Public de lEmpire Allemand, cit., p. 187.
Captulo II Os limites ao exerccio do poder disciplinar 27 ________________________________________________________________________________________
poder disciplinar para garantia da obteno da prestao contratada, como, por exemplo,
num contrato de compra e venda. O poder disciplinar pressupe uma relao jurdica de
continuidade, seja qual for o facto ou ttulo constitutivo, de que assessria ou
instrumental, e uma relao intersubjectiva, uma relao directa entre dois sujeitos82.
A relao de emprego pblico nem sempre titulada por contrato e no afasta um diferente
programa contratual face da relao de emprego privada e uma diferente limitao do
empregador.
3.2. A compreenso institucional do poder disciplinar
O entendimento institucional do poder disciplinar v-o como um instrumento de defesa de
organizaes, de determinadas organizaes ou instituies83 ou uma decorrncia da
necessidade da respectiva conservao ou da defesa dos respectivos interesses, seja quando
o radica numa perspectiva hierrquica, solidarista ou funcional-organizativa ou legal-
funcionalista84. A concepo, portanto, dilui nos interesses da instituio os das relaes de
trabalho, pelo que no se trata de garantir a integridade do ordenamento jurdico laboral,
concretamente, a garanta do prprio complexo obrigacional que consubstancia a relao
jurdica laboral, mas de garantir a instituio.
3.2.1. A compreenso hierrquica do poder disciplinar
A funo pblica de influncia francesa desenhada segundo uma estrutura hierrquica, de
posicionamentos funcionais gradativos, escalonados em relaes de estrita obedincia e
lealdade para com o superior hierrquico, semelhana da organizao dos exrcitos85.
82. Guido Landi, Disciplina, Enciclopedia del Diritto, XIII, pp. 20 a 23. 83. A natureza institucional do processo disciplinar foi invocada por Nogueira de Brito, aquando do
processo de reviso constitucional de 1989, como motivo que tornava terica e praticamente incompatvel a incluso do processo disciplinar no contexto das garantias do processo criminal (DAR, I Srie, n. 68, de 22 de Abril de 1989, pp. 3291 e 3292).
84. Quanto a esta ltima, ver considerando 78 da opinio dissidente ao Acrdo BverfG, 2 BvR 1436/02 of 09/23/2003, paragraphs No. (1-138), http://www.bverfg.de/entscheidungen/rs20030924_2bvr143502en.html): Os deveres disciplinares dos trabalhadores pblicos asseguram na respectiva esfera interna uma administrao uniforme conforme lei e Constituio.
85. Beln Marina Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., p. 52, nota 138, Eduardo Sebastio Vaz de Oliveira, A Funo Pblica Portuguesa. Estatuto Novo ou Nova Poltica?, Cadernos de Cincia e Tcnica Fiscal, Centro de Estudos da Direco-Geral das Contribuies e Impostos,
28 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________
Neste quadro, diz-se que o poder disciplinar somente se estabelece entre pessoas
participantes da mesma estrutura institucional, organizada em diferentes nveis de
autoridade86.
Mas se, para uns, o poder disciplinar funda-se na hierarquia87, para outros inerente
hierarquia, revelando-a88, ou potenciando-a89 e para outros ainda o poder disciplinar uma
competncia de controlo subjectivo do superior face aos subalternos, funcionando como
uma garantia da prpria relao hierrquica, um corolrio lgico do poder de direco90. A
Ministrio das Finanas, Lisboa, 1996, Separata da revista n. 122, 1969, p. 27, e Lies de Direito Administrativo, segundo as preleces do Exmo. Sr. Dr. Magalhes Colao, cit., p. 166 (a organizao normal dos servios pblicos supe estabelecida, em cada categoria ou espcie, uma srie graduada de agentes, resultando daqui que dentro de cada espcie de servios, se estabelece uma organizao hierrquica, e, entre os diversos agentes, uma subordinao efectiva).
86. Marcelo Madureira Prates, Sano Administrativa Geral: Anatomia e Autonomia, cit., p. 217, e Max Weber, Economa y Sociedad, IV, Tipos de Dominacin, cit., p. 117 (: A disciplina burocrtica caracterizada como a submisso dos funcionrios obedincia rigorosa dentro do seu laboral habitual e fundamento de toda a organizao.).
87. Fausto Quadros, destacando que no existe hierarquia sem disciplina (Os Conselhos de Disciplina, cit., p. 60), funda o poder disciplinar no poder de direco (pp. 59 e 60). Ludgero Neves defende que a responsabilidade disciplinar s se aplica nas relaes internas da hierarquia administrativa (Direito Administrativo, Lies ao Curso de 1916-1917, coligidas por Arthur de Campos Figueira, 1916, p. 184). A. L. Guimares Pedrosa defende que a responsabilidade disciplinar assenta no princpio das hierarquias administrativas e tem a sua razo de ser na necessidade de manter e fortalecer o princpio da hierarquia e a disciplina (Curso de Cincia da Administrao e Direito Administrativo, Preleces feitas na Universidade de Coimbra, I Introduo e Parte I (Parte Geral), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1908, pp. 293 e 294).
Ver, tambm, Lies de Direito Administrativo, segundo as preleces do Exmo. Sr. Dr. Magalhes Colao, cit., pp. 189 e 178 (: Poder hierrquico o conjunto dos poderes que o funcionrio superior tem sobre o inferior), e Magalhes Collao, A desobedincia dos funcionrios administrativos e a sua responsabilidade criminal, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Ano II, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1916-1917, p. 70 (: Se a hierarquia supe a necessria graduao dos agentes, supe tambm, com o poder disciplinar, a obedincia dos agentes aos seus superiores).
88. Ver Georges Dellis e Spyros A. Pappas, Le droit disciplinaire et son application dans les administrations publiques des Etats Membres, in The Meeting of the Directors General for Public Administration, cit., p. 123, e Beln Marina Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., pp. 51 e 52 (: o poder hierrquico compreende um conjunto de poderes que permitem ao superior hierrquico emanar normas relativas organizao dos servios, ditar ordens, fiscalizar o cumprimento de ambas e ... exercer o poder disciplinar sobre os subordinados).
89. Numa outra perspectiva, a vigilncia hierrquica apontada como um instrumento do poder disciplinar (Michel Foucault, Surveiller et punir, idem, Michel Foucault, Surveiller et punir, Naissance de la prison, Gallimard, 1975, p. 205): permite formar uma rede sem lacunas, possibilitada pela consequncia de multiplicar os escales, e de os repartir pela superfcie a controlar e permite, ao invs de constituir um peso sobre a actividade a disciplinar, integrar-se no dispositivo disciplinar como uma funo que aumenta os efeitos possveis (idem, pp. 201 a 208). O poder disciplinar, graas a ela, torna-se um sistema integrado, ligado do interior economia e aos fins do dispositivo onde se integra (Michel Foucault, idem p. 208).
90. Paulo Otero, Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativo, Coimbra Editora, 1992, p. 139.
Captulo II Os limites ao exerccio do poder disciplinar 29 ________________________________________________________________________________________
eficcia do poder de direco - essencial na hierarquia administrativa - est dependente do
poder de superviso e do poder disciplinar91.
A hierarquia administrativa o modelo clssico das relaes de supra e infra-ordenao no
interior de uma pessoa colectiva, contrapondo-se s relaes de equi-ordenao92. Na
hierarquia, distingue-se a hierarquia externa e a hierarquia interna e a hierarquia em sentido
estrito e em sentido lato. A hierarquia externa uma hierarquia entre rgos e a interna a
que intercede entre rgos e entre um rgo e um agente (trabalhador) ou entre agentes
(trabalhadores). A primeira refere-se ao poder determinativo de um rgo administrativo
sobre o exerccio de competncias por parte de outro rgo administrativo, adstrito ao dever
de obedincia, ao poder de disposio sobre os actos praticados pelo rgo sub-ordenado e
de substituio, em certos casos, nesse exerccio93. Da a referncia ao facto de que o
poder hierrquico no se aplica a simples operaes de que no deriva nenhum efeito de
direito, no se exercendo, por isso, sobre os actos dos funcionrios cuja actividade se limita
a essas operaes, a actos de natureza tcnica e de que no intervm nos actos chamados
de gesto, actos contratuais, por no serem a consequncia da vontade unilateral dos
agentes mas a resultante de duas vontades, uma das quais a de um particular94.
A hierarquia interna reporta-se ao poder de um rgo ou agente determinar a actividade ou
actuao de um outro rgo ou agente, agindo segundo critrios de distribuio de tarefas
fixados pelo rgo posicionado no vrtice da organizao e com valor fundamentalmente
interno95.
91. Paulo Otero, Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, cit., pp. 150, 151 e 153, 50 a 52
e 138 a 140. Para alm do poder de direco, todos os restantes poderes integrantes do estatuto do superior apenas assumem relevncia hierrquica se atribudos conjuntamente com o poder de direco.
92. Vicenzo Cerulli Irelli, Corso di Diritto Amministrativo, Ristampa aggiornata al 31 dicembre 2001, G. Giappichelli Editore Torino, pp. 101 e 102.
93. Paulo Otero, Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativo, cit., p. 396, Vincenzo Cerulli Irelli, Corso di Diritto Amministrativo, Ristampa aggiornata al 31 dicembre 2001, G. Giappichelli Editore Torino, p. 103 (: observa o autor que, na hierarquia em sentido estrito, tal como vem caracterizada, no existe uma verdadeira e prpria separao de competncia, mas esta vem a confundir-se com atribuio), Ludgero Neves, Direito Administrativo, Lies ao Curso de 1916-1917, coligidas por Arthur de Campos Figueira, cit., p. 170, e Emdio Beiro Pires da Cruz, Competncia disciplinar (Anlise de alguns dos seus problemas), p. 8 (: a hierarquia decompe-se numa escala de competncias dentro do servio).
94. Alberto Xavier, Estatuto dos Funcionrios, cit., p. 83. 95. Vincenzo Cerulli Irelli, Corso di Diritto Amministrativo, cit., p. 103.
30 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________
No h, em geral, hoje, hierarquia entre agentes, salvo entre militares, agentes militarizados
e entre agentes dos servios e foras de segurana96, em que existe uma ordem rigorosa de
patentes e postos e um comando em cadeia, implicando um especial dever de
obedincia97. Para alm desta constatao, contra a compreenso hierrquica do poder
disciplinar na relao jurdica de emprego pblico depem tambm os seguintes aspectos:
a) A relao de emprego pblico no se organiza a partir da estrutura hierarquizada da
organizao administrativa, no pressupe diferentes nveis de autoridade; inexistindo
96. H, pois, a distinguir a hierarquia do servio, da que resulta da graduao ou dos postos dos agentes - Marcello Caetano, Do poder disciplinar, p. 9. No caso da instituio militar, destacam-se: i) o conjunto formado pela ordenao hierrquica rigorosa de patentes e postos; ii) o enquadramento da actividade de cada um dos seus membros por um peculiar princpio de comando em cadeia, implicando um especial dever de obedincia; iv) a utilizao de (certas) armas no exerccio das funes, incluindo no modo de exerccio dessas funes; v) o princpio do aquartelamento; vi) a obrigatoriedade de uso de farda ou uniforme, no que tudo contribuiu para a sujeio dos mesmos a particulares regras disciplinares e, bem assim, o cumprimento da misso que lhes constitucionalmente confiada (Acrdo n. 103/87 - Processo n. 74/83, in DR., II Srie, n. 103, de 6.05.1987, pp. 1876 e 1879), sem obnubilar os direitos dos sujeitos que estabelecem com o Estado uma relao de servio militar. Expressivo, o n. 3. do Regulamento para execuo da Lei de 14 de Julho de 1856, relativa abolio no Exrcito do continente e Ilhas adjacentes, dos castigos de varadas e de pancadas com espada de prancha (aprovado por Decreto de 30 de Setembro de 1856, in Colleco Official da Legislao Portuguesa, redigida por Jos Mximo de Castro Neto Leite e Vasconcelos, do Conselho de sua Majestade e Juiz da Relao de Lisboa, Anno de 1856, Imprensa Nacional, Lisboa, 1857, p. 406: A subordinao constitui a essncia do servio militar. A obedincia dos inferiores para com os superiores forma a base da subordinao.
De igual modo, expressivo, o artigo 2. do Regulamento disciplinar do exrcito, de 15 de Dezembro de 1875, cit., segundo o qual [o]s deveres de disciplina e de servio sero impreterivelmente cumpridos, qualquer que seja a graduao do militar. Os chefes responsveis tm o rigoroso dever de empregar todos os meios para que as ordens de servio sejam executadas, ainda que para tanto hajam de empregar expedientes extraordinrios, no expressamente designados neste regulamento, nem considerados castigos, mas que sejam indispensveis para fazer cumprir as ordens e respeitar o dever de passiva obedincia, que constitui a fora da disciplina militar.
Considere-se, igualmente, o prembulo do Decreto-Lei n. 142/77, de 9 de Abril, que, situando o novo regulamento de disciplina militar no quadro constitucional e aludindo necessidade de salvaguardar as imprescindveis e intemporais exigncias de unidade, fora moral e eficincia das foras armadas, explica que se considerou conveniente atender a uma certa prtica, radicada em velha tradio nacional, em que avultam, humanizados, os princpios da hierarquia e da autoridade como pressupostos indissociveis do esprito dinmico e consistente de misso (itlico nosso).
97. Cfr. Acrdo n. 103/87 - Processo n. 74/83, do Tribunal Constitucional, in DR., n. 103, I Srie, de 6.05.1987.
No existe, salvo relativamente a conjuntos especficos de trabalhadores, a hierarquia pressuposta, por exemplo, por Magalhes Collao, A desobedincia dos funcionrios administrativos e a sua responsabilidade, cit., p. 69, onde se l: A organizao normal dos servios pblicos supe estabelecida, em cada categoria ou espcie, uma srie graduada de agentes, cujos poderes diversos a lei criou e determina, cumprindo a cada um ou a cada grupo de agentes a prtica de diversos actos especficos, visto como qualquer acto de administrao , por via de regra, resultante de um certo nmero de operaes prvias, operaes
Captulo II Os limites ao exerccio do poder disciplinar 31 ________________________________________________________________________________________
estes e, mesmo quando existam, no h, por fora da relao jurdica de emprego,
qualquer posicionamento do trabalhador num de entre vrios nveis hierrquicos.
O empregador conforma a actuao (maxime, a sua prestao) do trabalhador no quadro
dos deveres e obrigaes por este contrados, entre os quais os se inserem os que
reflectem uma dada insero institucional e os interesses pblicos do empregador98 99.
b) A incluso entre os poderes do superior do poder disciplinar no o circunscreve s
relaes hierrquicas100, nem essa incluso faz da hierarquia necessariamente o seu
fundamento, desde logo porque os rgos investidos do poder disciplinar podem ser
outros que no os superiores hierrquicos, como, por exemplo, um conselho de
disciplina, um inspector-geral.
c) Um estrito modelo vertical, hierrquico, de estruturao das organizaes hoje tido
por insatisfatrio101. Uma maior ateno dada a outras formas de relacionamento
materiais e decises que devem supor-se descriminadas pelos agentes de ordem diversa. () h portanto uma organizao administrativa, mas h, dentro desta, diferentes hierarquias.).
98. Beln Marina Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., p. 53, incluindo nota 147.
99. Para alm do dever de obedincia para com aqueles que tm o poder de direco, este no abarca extensivamente todo o contedo da disciplina. Esta delimitada pela relao jurdica estabelecida e pelas obrigaes que derivam desse ajustamento (nalguns casos, contratual) e pelos deveres legais que convoca.
100. Paulo Otero, Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, Coimbra Editora, 1992, pp. 50 a 52, 138 a 140, 214 e 215, 233 e 234 e 390 (Nem em todas as relaes de trabalho intercede o elemento hierrquico; a hierarquia encontra-se excluda do direito privado, dado este basear-se numa relao jurdica de igualdade entre as partes. Consequentemente, se no direito privado existem relaes de supremacia / subordinao, elas decorrem de uma circunstncia sociolgica e no do ordenamento jurdico - p. 234) e Guido Landi, Disciplina, Enciclopedia del Diritto, XIII, Giuffr Editore, p. 19.
101. Segundo refere Joan Prats I Catal, Los fundamentos institucionales del sistema de mrito: la obligada distincin entre funcin pblica y empleo pblico, Documentacin Administrativa, n.s 241-242, Janeiro-Agosto, 1995, pp. 11 a 59 (uma estrutura baseada em redes ou relaes verticais, hierrquicas, incentivadoras do clientelismo ou de submisso em vez de cooperao e da colaborao, no fomentar a confiana e conduzir produo de equilbrio sub-ptimo no cooperativo). Ver, igualmente, Developpements rcents de la gestion des ressources humaines dans les pays membres de lOCDE, Runion du Groupe de travail sur la Gestion des ressources humaines, Paris, 25-26 juin 2001, PUMA/HRM(2001)5, p. 15 (: as distines hierrquicas e funcionais entre os diferentes tipos de emprego encontram-se hoje e tendem a ser atenuadas), M. Manzoor Alam, Public Personnel Policy in Europe - A Comparative Analysis of Seven Eur