UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA
MARÍA LAURA CORVALÁN
O desvendar do vento: manifestações artísticas da dança de orixás.
Salvador
2012
MARÍA LAURA CORVALÁN
O desvendar do vento: manifestações artísticas da dança de orixás.
Dissertação a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Dança. Orientadora: Profa. Dra. Gilsamara Moura Robert Pires
Salvador
2012
Sistema de Bibliotecas da UFBA
Corvalán, Maria Laura. O desvendar do vento : manifestações artísticas da dança de orixás / María Laura Corvalán. - 2013. 116 f. : il.
Orientadora : Profª. Drª. Gilsamara Moura Robert Pires. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Dança, Salvador, 2012. 1. Bispo, Tania. 2. Soares, Isa. 3. Dança - Traduções. 4. Dança dos orixás. 5. Dança moderna. I. Pires, Gilsamara Moura Robert. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Dança. III. Título.
CDD - 793.3 CDU - 793.3
MARÍA LAURA CORVALÁN
O desvendar do vento: manifestações artísticas da dança de orixás.
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Dança, Programa de Pós-Graduação em Dança, Universidade Federal da Bahia. Aprovada em 20 de Fevereiro de 2013 Banca Examinadora ______________________________________ Prof. Dra. Gilsamara Moura Robert Pires (PPGDança – Universidade Federal da Bahia) _______________________________________ Prof. Dra. Inaicyra Falcão dos Santos (Instituto de Artes/ UNICAMP) ________________________________________ Prof. Dra. Helena Katz (PPGDança – Universidade Federal da Bahia)
AGRADECIMENTOS
A Isa Soares, por abrir meus caminhos da dança e da vida.
A Tânia Bispo, por me possibilitar dançar meus mitos e transformá-los.
Às duas professoras, Isa e Tânia, pela confiança, generosidade e envolvimento neste
trabalho.
A meu avô paterno, Tata Manolo (in memorian), por me transmitir o gosto pela música
e pela dança.
A minha avó materna, Lala Dorita, pelo apoio e as rezas a distância.
A minha mãe, Beatriz Splendiani e meu pai, Victor Corvalán, por confiar nos meus
passos, mesmo incompreensíveis, desviados, incertos, ousados...
A minha madrinha, Susana Splendiani, pela força constante.
A minha querida orientadora Profa. Dra. Gilsamara Moura, pela escuta sensível e
cuidadosa, e pela cumplicidade.
À Profa. Dra. Helena Katz, por me reafirmar no caminho e valorizar meu trabalho como
artista e pesquisadora.
À Profa. Dra. Inaicyra Falcão dos Santos, pela disposição e suas preciosas devoluções.
Aos meus irmãos Manuel, Luciano, Andrea, Malena e Victoria, por estarem presentes,
me acompanhando cada um a seu modo.
Às minhas amigas e parceiras nesta caminhada: Julia Broguet, Betina Pellegrini, Juana
Lamas e Silvana Saavedra, e todas as pessoas que passaram por Iró Bàradé.
A Juan Pablo Cruciani – Cipó - amigo e professor de capoeira angola, e ao grupo
Terreiro Mandinga de Angola, Rosário. Por irmos juntos, desde sempre, na caminhada.
A Javier Infante, Laura Ro, Mariana Pereiro e a todos que fazem parte de Alábase.
A Fernando Herrera, pelo seu envolvimento e contribuição na montagem dos vídeos.
A Mãe Silvia de Iansã e o Terreiro ‘Ilê Axé Opon de Obaluaye ati Iansã’, da cidade de
Resistência, Chaco, Argentina.
A Tata Muta Imê Santos, pelas profundas conversas e os ensinamentos sobre o universo
sagrado dos candomblés.
A Edivandete Santos Pires – Obã Itanã - pelo acolhimento no universo religioso em
Salvador.
Ao grupo Nzinga de capoeira angola por ser minha família em Salvador, e me dar tantos
momentos de felicidade e aprendizado.
A Mãe ‘Francisca de Iansã’ - Chica – por me receber, com tanta abertura, em suas
festas no terreiro “Ilê Axe Oiá Jambeleji”, em Salvador.
A Escola de Dança da UFBA e ao PPGDança pelas referências nos modos de fazer, de
indagar, de escrever outra dança, de dançar outra escrita.
A CAPES, pelo apoio financeiro que me permitiu realizar a pesquisa com maior
dedicação e concentração.
Às minhas amigas de sempre, Paula Scaroni e sua irmã Anita Scaroni (in memorian),
por me ensinarem a viver olhando para a luz da vida, e a tecer relações sempre com
positividade e alegria.
A todos os amigos e pessoas que fizeram parte deste processo de pesquisa, que vai
muito além dos anos de mestrado.
A Martín Lorenzo, meu companheiro, sem o qual tudo teria sido mais difícil.
CORVALÁN, María Laura. O desvendar do vento: manifestações artísticas das danças dos orixás. (116) Dissertação (Mestrado) – Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2013.
RESUMO
Esta pesquisa se propôs abordar e refletir sobre as manifestações artísticas das danças dos orixás de duas dançarinas baianas: Tânia Bispo e Isa Soares, que moram, respectivamente, em Salvador e em Buenos Aires, iluminando os diferentes modos de traduzir que cada uma construiu, entre o universo mitológico dos orixás e o ambiente artístico e contemporâneo da dança dos seus respectivos e distintos contextos. Para este estudo, foi escolhido um mito que fala da relação de dois orixás: Omolú\Obaluaiê, a energia da terra, e Iansã, a energia do vento e do ar. A pesquisa parte da proposta de tradução cosmopolita proposta pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos, que reconhece que não há uma teoria geral, mas que todas as culturas pressupõem incompletudes. Portanto, a tradução sempre implicará em criação e transformação. Assim, este trabalho de tradução permite tirar do escuro certas experiências que não são legitimadas pela monocultura ocidental. A bibliografia que apoia a construção desta reflexão parte de Souza Santos (2002), Carvalho (2002), Dominguez (2004), Motta (2009), Elbein dos Santos (2002), entre outros. As manifestações artísticas de Tânia Bispo e Isa Soares são um modo de dar visibilidade a saberes e práticas que não existem na educação oficial. Sob a hipótese de que sempre que uma dança ocorre, num contexto diferente de onde supostamente surgiu, há então uma tradução, o trabalho apontou para a necessidade de outra tradução corporal, inspirada pelas duas artistas aqui estudadas, porém realizada pela pesquisadora desta dissertação. Palavras-chaves: Tradução cultural, manifestação artística, dança dos orixás, Tânia Bispo, Isa Soares.
CORVALÁN, María Laura. O desvendar do vento: manifestações artísticas das danças dos orixás. (116) Dissertação (Mestrado) – Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2013.
ABSTRACT
This research propose to deal with and think about the artistic manifestations of the dance of the orixás of two bahian dancers, Tania Bispo and Isa Soares, who lives, respectively in Salvador and Buenos Aires, enlightening the different ways of translation that each one built between the mythological universe of the orixás and the artistic and contemporary environment of the dance on their own different contexts. For this study, was chosen a myth that talk about the relationship between two orixas: Omolú\Obaluaiê, the earth energy, and Iansã, the wind and air energy. This investigation begins on the cosmopolitan translation proposed by the Portuguese sociologist Boaventura de Souza Santos, who recognizes that there is not a general theory, but every culture is incomplete. Therefore the translation always will imply creation and transformation. Thus, this translation work allows taking from darkness many experiences that are not legitimated in the western monoculture. The bibliography that support the construction of this reflection is based on Souza Santos (2002), Carvalho (2002), Dominguez (2004), Motta (2009), Elbein dos Santos (2002), among others. The artistic manifestations of Tânia Bispo e Isa Soares are a way of give visibility to knowledge and practices that does not exist in the official education. Under the hypothesis that every time a dance occurs, in a different context from the place that supposedly came up, then there is a translation, the inquire focus in the necessity of another body translation, inspired in the two artists here studied, however made from the researcher of this dissertation. Key words: Cultural translation, artistic manifestation, orixás´s dance, Tânia Bispo, Isa Soares.
LISTA DE SIGLAS
Teatro SENAC Pelourinho - Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
UFBA – Universidade Federal da Bahia
SESC - Serviço Social do Comércio
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Manifestação artística de Tânia Bispo.............................................................46
Figura 2. Tânia Bispo ensinando os elementos simbólicos usados nos rituais do
Candomblé a um grupo de dançarinas.............................................................................54
Figura 3. Curso com Tânia Bispo....................................................................................57
Figura 4. Manifestação artística de Tânia Bispo.............................................................60
Figura 5. Manifestação artística de Tânia Bispo.............................................................61
Figura 6. Manifestação artística de Tânia Bispo.............................................................62
Figura 7. Manifestação artística de Tânia Bispo.............................................................64
Figura 8. Manifestação artística de Tânia Bispo.............................................................65
Figura 9. Manifestação artística de Tânia Bispo............................................................ 66
Figura 10. Performance ‘Orixás de la Tierra’……………………….…………………69
Figura 11. ‘Danças do Xirê de Orixás’ no Congreso Afro Americano...........................77
Figura 12. Performance ‘Orixás de la Tierra’……………………………………….…79
Figura 13. “Danças do Xirê de Orixás”. Isa Soares e Alabasé. Parque Lezama............81
Figura 14. Alábase na Marcha do 24 de março pelos desaparecidos.............................87
Figura 15. Performance ‘Orixás de la Tierra’……………………………………….....88
Figura 16. Manifestação artística de Isa Soares..............................................................92
Figura 17. Performance ‘Orixás de la Tierra’………………………………………….94
Figura 18. Performance ‘Orixás de la Tierra’………………………………………….95
Figura 19. Manifestação artística de Isa Soares..............................................................97
Figura 20. Manifestação artística de María Laura Corvalán.........................................101
Figura 21. Manifestação artística de María Laura Corvalán.........................................105
Figura 22. Manifestação artística de María Laura Corvalán.........................................106
Figura 23. Manifestação artística de María Laura Corvalán.........................................107
Figura 24. Manifestação artística de María Laura Corvalán,........................................108
Figura 25. Manuel Corvalán tocando Hung Drum. ...................................................108
Figura 26.Manifestação artística de María Laura Corvalán..........................................109
Figura 27. Manifestação artística de María Laura Corvalán........................................110
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12
ENTRE ROSÁRIO, SALVADOR E OUTROS CONTEXTOS – UM
PEQUENO RELATO OU DIÁRIO DE BORDO.......................................................12
NOMEAR É PRECISO? ..............................................................................................15
1 MOVER O INVISÍVEL. UMA PROPOSTA COSMOPOLITA PARA
TRADUZIR AS DANÇAS MITOLÓGICAS DOS ORIXÁS ......... ...................... 22
1.1DESMITIFICAR O GLOBAL ..................................................................................22
1.2 OS RECORTES: DO ORIXÁ AO MITO, DO MITO À DANÇA .........................25
1.3 POR UMA RAZÃO COSMOPOLITA ..................................................................27
1.4 O TRABALHO DE TRADUÇÃO ..........................................................................30
1.5 O QUE TRADUZIR? ..............................................................................................31
1.6 ENTRE QUÊ TRADUZIR? ....................................................................................37
1.7 QUANDO TRADUZIR? ........................................................................................38
1.8 QUEM TRADUZ?...................................................................................................39
1.9 COMO TRADUZIR?...............................................................................................41
1.10 PARA QUE TRADUZIR?..................................................................................44
2 TÂNIA BISPO: TRANSCENDER O “MITO PESSOAL”.......... .....................46
2.1 SALVADOR, DO TABU AO EXOTISMO...........................................................47
2.2 A UNIVERSIDADE. DANÇA DE QUAL HISTÓRIA........................................49
2.3 ODUNDÊ: NOVO CICLO DE UM POVO............................................................51
2.4 OMI OLORUM, OUTRO FLUIR COM O PÚBLICO...........................................52
2.5 OS RISCOS DE TRADUZIR...................................................................................53
2.5.1 A CONSTRUÇÃO DE LUGARES COMUNS.................................................53
2.5.2 A DIFICULDADE DA LÍNGUA, A OPORTUNIDADE DO SILÊNCIO........57
2.6 O QUE O VENTO VÊ... (O SILENCIO DA PESTE)............................................59
3 ALÁBASE, O LABUTAR DE ISA SOARES.... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .69
3.1 PALPAR A DANÇA................................................................................................71
3.2 BUENOS AIRES: INVISIBILIDADES EPIDÉRMICAS......................................73
3.3 NEGOCIAÇÕES ENTRE CORPO E AMBIENTE. A ARTE DE SER
LEGITIMADO................................................................................................................76
3.4 TEMPORALIDADES E ESPERANÇAS................................................................81
3.5 DANÇAS DO “XIRÊ DE ORIXÁS”: ARGUMENTOS DA TRADUÇÃO............82
3.6 A DIFICULDADE DO OUVIR O CORPO.............................................................87
3.7 ALÁBASE EM DANÇA............................................................................................88
3.8 ENTÃO.....................................................................................................................89
3.9 O QUE DIZ O SILÊNCIO.......................................................................................91
3.10 ATRÁS, NO FUNDO DA TERRA....................................................................92
3.11 O AR....................................................................................................................95
3.12 QUANDO O DESFRUTE TRANSFORMA..........................................................97
4 TRADUZIR À BEIRA DO MITO.......................................................................101
4.1 À BEIRA DAS DANÇAS......................................................................................104
5 REFERÊNCIAS....................................................................................................113
12
INTRODUÇÃO
Entre Rosário, Salvador e outros contextos – um pequeno relato ou diário de bordo
A dança e a música me habitam desde que eu cheguei a este mundo. Criei-me
entre tangos e chacareras que o meu avô e o meu pai tocavam no piano e no bombo
legüero1, e minha avó, de longe, cantava. Eu adorava dançar, o ritmo parecia me
queimar por dentro. Porém, desde muito cedo, quando comecei a dançar na ‘academia
de danças folclóricas’, aquele imenso desejo, aquela emoção que me produzia a
chacarera2, não tinha como ser expressa naquela dança. Explico: as danças chamadas de
‘folclóricas argentinas’, como a zamba, gato, bailecito, chacarera, remedio, huella,
cuatro esquinas, entre muitas outras, são ensinadas na educação oficial com
coreografias fechadas e esvaziadas do seu conteúdo histórico, da sua paisagem
geográfica e da cultura onde cada uma estava inserida. Assim, eu tinha de me ajustar a
uma série de posturas rígidas e memorizar as coreografias sem nenhuma relação com o
ritmo e a música.
Também nesta fase da infância ingressei no mundo do balé clássico, e algo
similar sucedia: eu não me reconhecia naquele universo, naquela música, naqueles
personagens. As técnicas posturais resultavam muito forçadas, impositivas e produziam
muita dor, mas, mesmo assim, era indicado sorrir. As experiências com dança moderna
e dança contemporânea não foram as mais amáveis; mesmo que as músicas fossem mais
agradáveis para mim, tinha que copiar sequências de movimento que não tinham relação
nenhuma com o que me acontecia. Enquanto eu buscava, quase por descuido, alguma
“emoção” naquelas danças, uma pergunta me dava voltas com intensa curiosidade: o
que tinham em comum aquelas práticas que, embora tão diferentes, chamavam-se todas
de ‘dança’? Qual era a relação com aquilo que eu, desde pequena, sentia como dança?
Não sei exatamente como eu decidi que queria ‘dançar afro’, mas no ano 2000
fui a Buenos Aires e conheci Isa Soares, que ministrava aulas de danças baseadas nos
orixás. Para minha surpresa, me encontrei com algo totalmente diferente das minhas
expectativas, muito ignorantes por sinal, que pressupunham que tudo o que fosse
ancestral teria de ser simples; ali me deparei com um tipo de dança extremamente
1 Tambor tradicional de Santiago del Estero, Argentina, com grande influência africana, com o qual se tocam ritmos populares argentinos como chacarera, zamba, cueca, etc. 2 Ritmo e dança do folclore argentino, oriunda de Santiago del Estero, com grande preponderância rítmica.
13
complexa pela densidade do seu discurso e sua carga gestual. Este fato ajudou-me a
entender que quando não se conhece algo e se olha “de fora”, observa-se primeiro de
uma forma completamente homogeneizadora e pasteurizante, ou seja, todas as danças
são parecidas, com o mesmo tipo de roupa, o mesmo batuque e se simplificam numa
mesma coisa debaixo de um mesmo nome. Tenho como argumento que seja uma
ignorância provocada e reafirmada por ações colonizadoras.
Porém, o que me deteve na proposta de Isa Soares durante mais de dez anos não
foi “a dança” em si, mas o modo como a professora compartilhava os ensinamentos
daquela dança, que implicavam em aprender também um modo diferente de relacionar-
se com o corpo, com a dança e com o mundo. Algo se acalmava em mim, a dança
começava a cobrar um novo sentido.
No ano de 2003, comecei a levar Isa Soares para a cidade onde morava, Rosário,
viajando mensalmente durante quatro anos. Isto provocou o encontro de um grande
número de pessoas em Rosário, com interesses e inquietudes parecidas a respeito da
dança. Destes cruzamentos surgiu no ano 2003 o grupo Iró Bàradé, o qual eu coordeno,
em conjunto com outras colegas, entre as que preciso destacar Julia Broguet, Betina
Pellegrini, Silvana Saavedra e Juana Lamas3. Em yorubá Iró significa relato, notícia,
ruído dos corpos quando chocam e Bàradé, combinar com a natureza de alguém.
Desde então, fui experimentando diferentes cenários e modos de recriar e
traduzir esta dança. Com o grupo Iró Bàradé, realizamos diversos tipos de criações e
apresentações, partilhamos aulas com artistas de outras cidades, com comunidades
indígenas (Qom) no norte argentino, com adolescentes de um bairro suburbano de
Rosário, entre outras. Minha atenção estava sempre focada em buscar modos de traduzir
esta dança baseada em mitologias africanas em cada contexto onde me encontrava. No
entanto, cada experiência me provocava novas inquietudes em relação ao ‘outro’ e à
ideia de identidade como traço único e determinante, e em minha monografia de
Licenciatura em Comunicação Social4 (2007), abri questionamentos sobre ‘de que modo
habitar danças de mitos e deuses longínquos e ancestrais em corpos atuais e argentinos
(rosarinos)’.
3 Embora muitas outras pessoas fossem responsáveis da gestão coletiva de Iró Bàradé, nomeio aqui as colegas que coordenaram aulas e fizeram parte da produção do grupo nos últimos anos. 4 “Corpo e comunicação na dança dos orixás”, Licenciatura em Comunicação Social, Universidad Nacional de Rosario, Orientadora, Prof. Olga Corna. 2007
14
Estas inquietações foram atravessadas por minhas estadias na Bahia, desde o ano
2003, em que fui me aproximando dos ambientes onde também acontece esta dança
afro, com muita potência, e se traduz em diversos sentidos religiosos e artísticos.
Enquanto participava de diversas festas de candomblé, ia percebendo que nas escolas de
dança, as aulas de dança afro ou afro-brasileiras eram muito diferentes da proposta de
Isa Soares, elas estavam mais perto de uma colagem de passos a ser copiada e
reproduzida. Compreendia então como as condições de cada contexto configuram a
dança de um modo particular e que, para fazer criações artísticas a partir deste
vocabulário, era fundamental conhecer suas fontes, história, cultura e filosofia.
Foi na minha primeira viagem à Bahia (2003) que conheci Tânia Bispo. Eu
assisti ao show folclórico no Sesc Pelourinho do qual ela dirigia e me encontrei
emocionada, contaminada pela energia das dançarinas, muito longe do que esperava de
um ‘show tipicamente folclórico’. Na segunda viagem (2004), depois de tomar aulas
com muitos professores, acabei organizando uma oficina de dança ministrada por Tânia
Bispo, com várias pessoas que ia conhecendo na viagem. Então percebi que sua
proposta podia conversar muito bem com a proposta de Isa Soares e, cinco anos mais
tarde, em 2009, voltei com várias companheiras de ‘Iró Bàradé’ (Argentina). Neste
curso, algo se moveu em mim de tal modo que entendi que tinha que viver na Bahia por
um tempo, me deixar contaminar por mais tempo pelas lógicas de vida do povo baiano,
viver o cotidiano e as contradições sociais da cidade, as cores, os aromas, as comidas, as
crenças que entretecem seus mitos, mistérios e mandingas.
Assim, ingressei no Curso de Especialização em Estudos Contemporâneos em
Dança – Latu Senso (UFBA- 2010), onde achei um espaço para ler, refletir e discutir
sobre estas problemáticas da dança, o que me incentivou para reafirmar a construção do
pensamento contemporâneo nas danças mitológicas dos orixás dentro do espaço
acadêmico da dança.
O simples fato de viver na Bahia já me colocou na condição de estrangeira, e a
tarefa de traduzir virou um modo de estar, de me comunicar e de compreender o mundo.
Por esse caminho, consegui estabelecer laços afetivos que ampliaram e enriqueceram
minhas buscas, como foi o encontro com Edivandete Santos Pires, mais conhecida
como Oba Itanã, grande amiga que me acolhe e me orienta nas questões em torno da
religião do candomblé de Keto. Oba Itanã, faz parte do terreiro “Ilê Axê Opó Ajaôkeji”,
localizado em Barra do Pojuca, Camaçari-BA, onde tem a função hierárquica de ekede
15
(aquela que cuida do orixá quando desce) do (orixá) Oxaguiã. Especificamente, ela
recebeu o cargo de Ia Tebêssê, quem invoca os cânticos em todas as cerimônias. Vale
dizer que Oba Itanã é muito reconhecida no ambiente religioso pela sua experiência e
compromisso.
Também tive a sorte de conhecer a mãe ‘Francisca de Iansã’, mãe do terreiro
“Ilê Axê Oiá Jambeleji”, de Salvador, mais conhecida como ‘Chica’, baiana que vende
acarajé embaixo do morro de São Lázaro, onde eu moro. Os encontros cotidianos com
ela e sua gente me permitiram participar das suas cerimônias de Candomblé de uma
forma mais familiar, o que me habilitou, inclusive, a fazer registros audiovisuais das
festas, material de grande valor para a análise das danças para esta pesquisa.
Nas últimas viagens, conheci Tata Mutá Imê Santos, um líder espiritual do
‘Terreiro Mutá Lambô ye Kaiongo’, Candomblé da nação Angolão Paquetan, muito
reconhecido em Salvador. Embora fosse Oba Itanã quem me apresentou a ele, Tata
Mutá ministrava aulas de “danças de voduns, nkisses e orixás” no espaço onde eu
aprendo capoeira angola. As aulas de Mutá representaram para mim, uma ponte entre o
contexto religioso e o contexto artístico. Por sua vez, aprender as danças de outras
nações, além da yorubá, foi uma chave para minha pesquisa, no reconhecimento da
diversidade de nações dentro do universo mítico dos candomblés, fato que desmitifica a
hegemonia yorubá tão relembrada por antropólogos e demais pesquisadores. Embora
minhas duas mestras de danças, Isa Soares e Tânia Bispo, trabalhem especificamente
com a cultura yorubá, eu percebo a importância de frisar as pluralidades de nações que
são responsáveis pela construção dos candomblés, o universo mítico dos orixás. De
fato, desde sempre foi no encontro com o outro e suas possíveis misturas que se
gestaram novas formas de estar e de sobreviver no mundo.
Todas essas experiências pessoais e, seguramente, muitas outras que não tive
consciência ou que não foram registradas aqui, acabaram nutrindo esta pesquisa de
Mestrado da qual me animo a dizer, começou quando comecei a dançar, onde sem saber
já estava traduzindo outras culturas.
Nomear é preciso?
Qual é o sentido de nomear uma dança? Quais são os riscos?
16
Nomear uma dança implica posicioná-la e afirmá-la entre os membros da
comunidade onde surge e sua nomeação depende totalmente do contexto onde está
inserida. Neste caso, urge esclarecer que esta dança, constituída por elementos da
cultura afro, yorubá, gege, congo, angola, brasileira, e muitas outras (árabes,
portuguesas, indígenas, espanholas), ainda não está isenta de problemas em sua
nomeação.
Na Bahia, onde a prática religiosa é muito presente, se sublinha a diferença entre
“dança de orixás”, que é a manifestação do orixá quando desce e se incorpora numa
pessoa, e a dança-afro que se pratica nas academias de dança e contém elementos da
simbologia dos orixás. No entanto, na Argentina, tal dança convive com outras danças
de origem afro, tanto do Noroeste da África (entre as que se encontram: djole, ku-ku,
domba, dunumba, yankadi, makuru, e mendiani)5, quanto com a dança afroperuana,
afrocolombiana, afrocubana, afrouruguaya, entre outras; portanto, não pode ser
chamada simplesmente de dança-afro. No Brasil, chamá-la de dança afro-brasileira
também gera confusão com outras práticas da mesma origem como é o samba, a
capoeira, o congado, o maracatú, o maculelé, etc. Durante algum tempo, em Rosário,
onde a religião era muito pouco conhecida, a chamamos de ‘dança de orixás’, para
diferenciá-la de todos os afros e afro-brasileiras; mas, depois de conhecer o seu
significado na Bahia, começou a ser um problema ainda maior para mim. Por enquanto,
em Rosário está nomeada como “dança afro-yorubá”, mas, ao entender a multiplicidade
de nações que constituem este universo mitológico, é preciso deixar de alimentar a
hegemonia yorubá já instalada.
Segundo Godard:
“nossa maior tentação é de nos contentarmos em classificar as danças
por épocas históricas, por origens geográficas, por categorias sociais,
por escolhas musicais, pela estética do figurino, da cenografia, ou
ainda pela forma dos diferentes segmentos corporais colocados em
ação. Todos esses parâmetros descrevem muito bem o limite externo
ao campo da dança, mas pouco se aproximam das riquezas da
dinâmica interna do gesto, que a ele dão sentido” (1995, p. 12).
5 Informação oral de percussionista do grupo “Afô Paraná” de danças africanas.
17
Assim, vemos que, embora o problema apresentado nesta dissertação seja o da
tradução, ela enfrenta mais um problema que é o da nomeação. A impossibilidade de
encontrar um nome adequado que contemple as necessidades religiosas de onde essas
danças são, ou seja, do ambiente do candomblé para outro ambiente artístico e
contemporâneo da dança. Se no ambiente religioso são os orixás que dançam, quem é
exterior ao ambiente religioso, já está fazendo uma tradução desse ambiente. Que nome
dar a uma dança que existe predicada a quem a faz - o orixá – quando é feita por quem
não é orixá? Ou seja, alguém que está traduzindo uma dança que no seu ambiente é feita
por quem é. E aqui, fora desse ambiente é feita por quem não é.
Sobre o pressuposto que o nome, de algum modo, coloca a dança entre outras,
não pretendemos solucionar o problema, nem esquivar todos os riscos que implica a
nomeação, mas por enquanto vamos sugerir tratar todas as manifestações dançadas para
quem está fora do ambiente religioso como “manifestações”. Deste modo, já não
chamamos dança “de orixá” quando não é dele. Vamos nomear uma “manifestação
artística dessa dança”, indicando que se trata da dança de outra pessoa. Assim,
chamamos “manifestação artística das danças dos orixás”, não a dança da divindade
quando incorpora na cerimônia religiosa, mas a dança realizada conscientemente, seja
qual for o contexto e o sentido de comunicar.
O objetivo dessa dissertação reside em estudar os diferentes processos de
tradução de manifestações artísticas das danças dos orixás, realizados por Tânia Bispo
em Salvador e por Isa Soares em Buenos Aires, os quais serão complementados pela
minha própria criação. Estas traduções flutuarão entre o contexto do universo
mitológico dos orixás e o ambiente artístico e contemporâneo da dança onde se
desenvolve cada artista.
Esta dança se caracteriza por sua grande gestualidade, sua rítmica, sua relação
com a natureza, seu sentido mítico e pelos valores da sua cosmovisão africana,
considerando que as relações efetivas destas informações organizam-se de certo modo
que determinam suas técnicas corporais específicas. Interessa-me estudar como se dão
as diferentes possibilidades de tradução dos conceitos, cosmogonias e arquétipos
deduzidos da mitologia yorubá e como eles se traduzem em princípios de movimentos
que permitem fazer um caminho pessoal e criativo em cada corpo. Será necessário,
portanto, identificar que tipo de informações dessas danças ficou ancestralmente como
18
estável, nos diversos diálogos interculturais até identificar-se como manifestações
artísticas das danças dos orixás.
Para deduzir estas questões pretende-se analisar a construção do corpo dos
orixás Obaluaiê/Omolu6, divindade da terra e da peste, e Iansã, força do vento e a
tempestade, retratados pelas duas profissionais da dança, acima citadas: Tânia Bispo e
Isa Soares, cada uma no seu respectivo contexto (Salvador/Brasil e Buenos
Aires/Argentina). Daqui, importa-nos reconhecer diferentes graus ou tipos de tradução
corporal a partir da relação corpo-ambiente-orixá que entra em jogo no processo
criativo da dança.
Sem desmerecer a relevância de todos e de cada um dos orixás, foram
selecionados somente dois, Obaluaiê/Omolú e Iansã com a intenção de aprofundar no
tema da pesquisa. Obaluaiê/Omolú representa a terra, e Iansã, o elemento ar. Para estas
cosmovisões africanas, a terra é a matéria de nosso corpo, e o ar é o elemento que lhe
outorga vida e movimento; assim, interessa-nos explorar como essas energias atuam no
corpo e na dança. Esta escolha também é consequência da necessidade de partir das
doenças de cada corpo, das suas faltas e incômodos, e da vontade de transformá-las na
combinação com o outro, para realizar o processo criativo da tradução do mito para
dançar. Assim, foi escolhido um mito onde a palha que cobria a terra/pele de Obaluaiê é
descoberta pela dança/vento de Iansã, e em agradecimento, Obaluaiê lhe concede o
poder sobre os mortos. A relação desses dois orixás com a morte cobrou uma dimensão
muito importante durante os dois anos da pesquisa, por eu vivenciar situações ligadas à
morte de pessoas muito próximas, onde pude reconhecer o grande tabu que temos a
respeito dela.
O corpo teórico selecionado para a dissertação propiciou diálogos entre estudos
da dança e da sociologia, entre cosmovisões africanas e pensamentos contemporâneos,
entre estudos científicos e estudos artísticos. Para contextualizar a situação social onde
surgem estas traduções em dança, trazemos as propostas de Canclini (2008) e Lepecki
(2006) sobre a globalização e o pós-colonialismo, que nos permitem chegar ao
entendimento de ‘tradução cultural’ que propõe o sociólogo português Souza Santos
(2002), o qual busca uma articulação recíproca entre culturas, evitando uma
canibalização da cultura hegemônica. 6 Tanto o nome Obaluaiê quanto Omolú, referem-se a diferentes qualidades do mesmo orixá, senhor da terra e a peste. Porém nesta pesquisa, vamos a utilizar qualquer dos dois nomes indistintamente. Já que as professoras vão nomear das duas formas diferentes.
19
Para estudar o contexto da cultura yorubá no Brasil, foram muito significativos
os escritos de Elbein Santos (2007; 1975), Prandi (2001), Verger (2003), Reis (2000),
em discussão com a pesquisa de Capone (2009), na qual traz reflexões críticas sobre a
construção de legitimidade dos cultos afro-brasileiros.
No que se refere ao estudo do universo mitológico das danças dos orixás, os
trabalhos de Barbara (1995 e 2003) e Zenicola (2001) serão de grande apoio. Porém,
para o nosso foco voltado para os processos criativos desta dança, interessa destacar a
investigação “Corpo e Ancestralidade”, de Inaicyra Falcão dos Santos (2006), que
atende à experiência singular de cada intérprete por meio de memórias ancestrais, com
ações corporais carregadas de significados e valores da tradição africana brasileira,
trazendo-as para o presente e as ressignificando por meio da arte do movimento criativo.
Mesmo assim, no intuito de abordar contemporaneamente esta dança surgida da
tradição afro-brasileira, este trabalho parte do conceito de contemporâneo do filósofo
Giorgio Agambem (2009, p. 64), quem o define como a singular relação que se
estabelece entre o indivíduo e o seu tempo: "o contemporâneo é aquele que percebe o
escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que,
mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele".
Interessa-nos pensar aqui um modo de manifestar, artisticamente, a dança dos
orixás a partir da relação do corpo com a luz e as sombras dele e de seu entorno. Em
palavras de Najmanovich (2001, p. 28), “um corpo que participa de uma dinâmica
criativa de si mesmo e do mundo com que ele está em permanente intercâmbio”, é um
corpo que interage com o seu ambiente, onde se modifica e o modifica, que consegue
garantir a sua permanência no mundo contemporâneo e a sua evolução.
Neste viés, Bittencourt (2004) e Britto (2008) discorrem sobre as configurações
em dança e suas permanências, entendendo a dança como expressão do pensamento do
ambiente em que se encontra o corpo que dança. A gestualidade também merece ser
analisada nesta dança em questão, para o qual Godard (1995) sublinha o pré-movimento
como condição da expressividade do gesto humano e o diferencia do movimento.
Para estudar estas traduções foi necessário realizar pesquisa de campo tanto no
contexto mitológico do Candomblé, quanto no contexto artístico da dança das
20
professoras Tânia Bispo e Isa Soares7. A pesquisa de campo no contexto mitológico
consistiu na observação participante de cerimônias de candomblé de diversas nações ou
cultos (keto, angola, caboclo), nas quais consegui experimentar diversos modos de
participação das mesmas de acordo com o grau de familiaridade e abertura dos terreiros.
Em algumas festas, consegui participar como assistente; em outras, me foi permitido
fazer um registro audiovisual e, em outra, me convidaram a dançar no xirê (sob o
cuidado de Oba Itanã). Também foram realizadas entrevistas com Tata Muta Imê Santos
e com Oba Itanã sobre as danças desta pesquisa a fim de engrandecer o rol de
informações, embora não serão citadas nesta dissertação.
A pesquisa de campo no contexto artístico da dança contou com a observação
participante das aulas de Isa Soares, os cursos de Tânia Bispo realizados em 2004, 2009,
2010 e 2011, o registro audiovisual dos mesmos e a realização de entrevistas semi-
estruturadas às duas professoras, isto é, entrevistas com base numa guia de perguntas
bastante abertas, que vão se complementando de acordo as falas das pessoas
entrevistadas. Além disto, como já pudemos constatar, as experiências vividas com
estas duas pessoas durante alguns anos fazem parte da coleção de informações que
interagem e alimentam esta investigação.
A pesquisa, direcionada pelo trabalho de tradução, as percepções do pesquisador
e a reflexão biográfica foram de grande importância para guiar a investigação.
Procurou-se apresentar as múltiplas perspectivas dos participantes, atendendo aos
modos de relacionamento de cada corpo com o ambiente da manifestação artística da
dança dos orixás. Haverá, assim, múltiplas vozes, e uma diversidade de modos de
dançar.
Esta dissertação está organizada em quatro capítulos.
O primeiro capítulo debruça sobre a proposta de ‘tradução cosmopolita’ do
sociólogo Boaventura de Souza Santos, para pensar os processos tradutórios das
manifestações artísticas das danças dos orixás elaboradas pelas professoras Isa Soares e
Tânia Bispo. A proposta de tradução cosmopolita parte do reconhecimento da
incompletude de todas as culturas, em busca de um diálogo horizontal, recíproco e não
hegemônico. Portanto, as condições de nosso campo de tradução serão atravessadas por
7 Nesta dissertação, optei por chamar as professoras Tânia Bispo e Isa Soares pelo nome e sobrenome, para uma maior otimização da memória viva desses nomes, reafirmando o reconhecimento das artistas.
21
questionamentos sobre o que traduzir, entre quê, quem traduz, quando, como e com que
objetivos.
No segundo capítulo estudaremos como a professora Tânia Bispo retrata as
corporalidades dos orixás Omolú/Obaluaiê e Iansã, a partir de uma abordagem
sensorial baseada nas vivências do culto aos orixás e arquétipos oriundos dos mitos.
Apresentaremos as questões levantadas mais relevantes, os obstáculos e os caminhos
que a professora foi transitando dentro do seu trabalho.
No terceiro capítulo vamos refletir sobre o trabalho que a baiana Isa Soares
desenvolve em Buenos Aires. Estudaremos como ela traduz no corpo as danças dos
orixás Obaluaiê e Iansã, no contexto da sua proposta “Xirê de Orixás”. Nas cerimônias
do candomblé, chama-se xirê à ordem hierárquica na qual os orixás ingressam ao
barracão. A professora toma este xirê como base das suas recriações de danças
arquetípicas dos orixás, respeitando a organização hierárquica imposta pelas funções e
lugares simbólicos que ocupa cada orixá. Descreveremos como as danças de Obaluaiê e
Iansã são recriadas a partir de vivências, histórias e relações da professora com o seu
contexto. Atenderemos também às dificuldades que a professora se encontra neste
processo de tradução.
Por último, o capítulo “Traduzir da tradução: minha dança na vera do mito”
abrirá questionamentos para os diferentes graus ou tipos de tradução e as complexidades
que isto implica num diálogo com os autores estudados. Os modos como as danças
propostas por Isa Soares e Tânia Bispo são traduzidas e recriadas por mim, a partir das
minhas condições com a dança em Rosário e em outras cidades de Argentina. Minha
dança contaminada pelas manifestações artísticas de dança de orixás destas professoras
e pela minha história pessoal, o tango e a zamba vêm problematizar os contornos das
traduções culturais das danças. Este capítulo finaliza com as considerações finais, os
possíveis desdobramentos e propostas para novos projetos de pesquisa.
22
CAPITULO 1
MOVER O INVISÍVEL
Uma proposta cosmopolita para traduzir as danças mitológicas dos orixás
Este capítulo pretende trazer à luz o trabalho de tradução que propõe o sociólogo
português Boaventura de Souza Santos (2002) como uma opção para traduzir as danças
baseadas na mitologia africana dos orixás, em uma cultura colonizada pelos valores e
critérios ocidentais, em busca de uma articulação recíproca e não hierárquica.
O autor sugere um trabalho de tradução sustentado por dois procedimentos
sociológicos: a ‘sociologia das ausências’ e a ‘sociologia das emergências’, os quais
visam desafiar, transgressivamente, o modelo de racionalidade imperante, através da
dilatação do presente, que amplia as experiências sociais disponíveis e da contração do
futuro, que expande o domínio das experiências sociais possíveis.
Com o objetivo de analisar, posteriormente, os processos de tradução
experimentados nas propostas de duas professoras e dançarinas, Tânia Bispo e Isa
Soares, tentaremos aqui atravessar os contextos e condições específicas de nossos
campos de tradução pelos seguintes questionamentos que sugere Santos: O que
traduzir? Entre quê? Quem traduz? Quando traduzir? Traduzir com que objetivos?
Desmitificar o global
A contemporaneidade na América Latina, explica Canclini (2008), transforma os
cenários da cultura popular na medida em que as categorias dualistas convencionais
(subalterno/hegemônico, tradicional/moderno) vão perdendo sentido. Segundo este
autor, a propagação trans-local da cultura se intensifica com os deslocamentos de
migrantes, exilados e turistas, os fluxos econômicos e comunicacionais, e também com
as trocas financeiras multinacionais e os repertórios de imagens e informação
distribuídos a todo o planeta por jornais e revistas, redes televisivas e internet. Neste
mundo intertextual, mestiço, de interface e de co-presença de todas as tradições
(STOÏANOVA 1985, apud PELINSKI, 2000), as manifestações artísticas das danças
dos orixás não ficam fora do cruzamento de culturas, ou seja, encontram-se implicadas
neste cruzamento, se contaminando e se recriando, tomando novos sentidos. Além da
sua natureza religiosa, esta dança se traduz em múltiplos cenários artísticos trans-
nacionalizados.
23
Porém, Canclini (2008) sugere que para analisar como vão se transformando as
heranças culturais e ressituando num tempo de misturas interculturais, há que
diferenciar os diversos sentidos da globalização: “não são idênticas a globalização
financeira, a de bens industrializados e artesanais, as que ocorrem nas indústrias
editoriais, de cinema, musicais ou informáticas” (CANCLINI, 2008, p. 30). Os
processos de globalização não se dão de forma equitativa, mas com uma assimetria que
beneficia aos países donos das indústrias culturais, que decidem sobre a reorganização
dos mercados culturais, “reestruturando os estilos de vida e desagregando imaginários
compartilhados” (CANCLINI, 2008, p. 28).
Em consonância com esta questão, Lepecki (2006) prefere nomear esta
‘condição global’ sob a ideia de “pós-colonialidade”, que segundo o autor, supõe uma
transformação social derivada da queda dos impérios Europeus (Alemanha, França e
Grã Bretanha) nos anos 50 e 60. O pós-colonialismo, então, antecede a outros termos
como multiculturalismo, hibridação e miscigenação, “nomes simpáticos que descrevem
a entrada do corpo do ex-colonizado num sistema global de imagens, sons, peles e
gostos onde o ocidental se redime do seu passado por via de uma “celebração” da
“cultura” do até ontem colonizado” (LEPECKI, 2006). Porém, o autor sublinha que
falar de “pós-colonialidade” é um artifício semântico, já que não implica uma superação
temporal, como se já vivêssemos uma situação pós. Mas ainda continuamos submetidos
“às mesmas lógicas de subjugação e de disciplina que são o chão do projeto
colonialista: racismo, fome, guerra, movimento desenfreado, terraplanagem” (Idem).
Lepecki chama a atenção para o que o multicultural sugere, ou seja, o fim
fictício e delirante das tensões políticas e dos horrores corporais e sociais causados pelo
colonialismo, propiciando os mercados culturais globais baseados numa etno-
diversidade pacífica, humanista e unanimemente “global”. Portanto, um fenômeno
multicultural não pressupõe a ocorrência de trocas recíprocas e coerentes entre culturas.
Diante dessa armadilha capitalista, onde as multiculturas redefinem suas
estéticas comerciais como “exóticas e performáticas (ou espetaculares, dignas de serem
contempladas à distância)” (LEPECKI, 2006), este capítulo busca apresentar
questionamentos sobre de que modo é possível traduzir danças de uma cultura africana
e ancestral para uma cultura onde imperam os valores e critérios ocidentais
24
contemporâneos, sem se deixar cair numa canibalização8 que suprima tudo o que
incomode neste processo e/ou põe em risco a compreensão do mundo ocidental.
Neste viés, procurando abrir um diálogo intercultural mais horizontal, o
sociólogo Boaventura de Souza Santos (2002), propõe um trabalho de tradução
sustentado por dois procedimentos sociológicos, conforme citados no início deste
capítulo: a ‘sociologia das ausências’ e a ‘sociologia das emergências’, os quais visam
desafiar, transgressivamente, o modelo de racionalidade imperante - que ele chama de
‘indolente’ -. O autor centra-se na crítica a uma de suas formas: a ‘razão metonímica’, a
qual opera sempre sob uma teoria geral que implica a ideia de totalidade e a
homogeneidade das suas partes. Essa totalidade se explicita, concretamente, nas
relações dicotômicas que encobrem sempre uma hierarquia e uma verticalidade:
Ocidente/Oriente; civilizado/primitivo; cultura/natureza; branco/negro; conhecimento
científico/conhecimento tradicional; etc. (SOUZA SANTOS, 2002, p. 242)
A ideia de tradução aqui proposto, se afasta do uso comum e literal do termo, já
que inclui sempre algum tipo de criação e, portanto, de transformação. Uma tradução
que esta mais perto da transmutação. A teoria da tradução parte do reconhecimento da
incompletude de todas as culturas, e daí busca identificar o que é comum entre as
entidades, sem suprimir nada da autonomia ou diferença que lhe dá sustento.
Assim, na crítica a esta teoria geral da ciência moderna, o autor parte de outro
pressuposto: ‘a teoria geral da impossibilidade de uma teoria geral’ (Ibidem, p. 268),
para o qual sugere um trabalho de tradução que permita “criar inteligibilidade recíproca,
coerência e articulação num mundo enriquecido por uma multiplicidade e diversidade
de experiências disponíveis e possíveis” (Ibidem, p. 268). Este pressuposto também
sustenta nosso entendimento a respeito das manifestações artísticas das danças dos
orixás, para o qual, longe de pretender ‘reproduzir padrões’ de movimentos que
representam um dado orixá, busca-se uma dança em que cada corpo contemporâneo e
colonizado estabelece um modo de tradução daqueles princípios de movimentos que
foram configurados a partir de valores do ambiente onde surgiu tal dança.
8 O termo “canibalização” associado à cultura refere-se ao ato de deglutir a cultura do outro. Embora leve uma longa trajetória no Brasil, está muito associada à indústria do turismo, como explica Carvalho (2010, p.64) o canibal é “um consumidor de costumes alheios e, para isso, se desloca de seu contexto para o contexto do outro, ‘primitivo’, com a finalidade de usufruir de seu modo de vida e de suas expressões culturais. Segundo este autor, este processo de canibalização cultural traz como consequência a espetacularização das culturas populares.
25
Nossa hipótese é que há um processo tradutório sempre que a dança aconteça
num ambiente diferente de onde surgiu. Portanto, todas as manifestações artísticas das
danças de orixás são traduções de uma cultura para outra. A tradução não toca somente
aos estrangeiros, há tradução em Salvador e em Buenos Aires. Se a dança de orixás só
existe sendo incorporada dentro do terreiro, então, fora do terreiro, toda dança é
tradução cultural.
Os recortes: Do orixá ao mito, do mito à dança
Os orixás são divindades que eram cultuadas entre os yorubás e chegaram a
Brasil com o tráfico de escravos, onde se misturam e se organizam numa religião
chamada ‘candomblé’. O termo orixá, na lingua yorubá, é uma combinação de duas
palavras: ‘Ori’ que significa cabeça e ‘Sa’, que se traduz como guardião, ficando assim
como “Guardião da Cabeça”, “divindade elementar da Natureza” (FONSECA Jr., 1988,
p. 311). Mas também há autores que traduzem orixá como “cabaça-cabeça”
(ZENICOLA, 2001, p. 15). Para o candomblé, o orixá é um ancestral, que desce à terra
montado num dos corpos que dançam para saudar os seus descendentes. Os orixás são
personagens internos, arquétipos que cada um tem e que não são controláveis, que
sacamos à luz em determinadas situações, antes que pudéssemos pensar em como agir.
Com uma perspectiva contemporânea e artística, podemos tomar os orixás como
metáforas, por meio de suas danças, para reconhecer as energias que nos compõem, para
explorar seus arquétipos representados nos humanos e assim ampliar nossas
possibilidades de relacionar-nos com os outros e com o mundo. Utilizamos a ideia de
metáfora dos filósofos Lakoff e Johnson (2002), na qual traduzem conceitos, ideias, e
são corporais: toda experiência tem lugar dentro de um amplo conjunto de
pressuposições culturais. “Os conceitos que governam nosso pensamento não são meras
questões do intelecto... Eles estruturam o que percebemos, a maneira como nos
comportamos no mundo e o modo como nos relacionamos com outras pessoas.”
(LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 45/46)
Nesta ótica, pretendemos aqui investigar os processos tradutórios das danças dos
orixás Obaluaiê e Iansã que ocorrem entre o seu universo mitológico e a dança criada
artisticamente por um corpo colonizado, a partir daquele universo.
Interessa-nos aqui apresentar quais são as informações que vão sendo traduzidas
e como o corpo de cada um traduz isso de forma criativa. Para esta etapa, se iluminará o
26
trabalho de tradução experimentado por duas professoras e dançarinas: Tânia Bispo9 e
Isa Soares10 na construção corporal dos dois orixás selecionados: Obaluaiê/Omolú, a
energia da terra e a peste, e Iansã, a energia do vento e a tempestade.
Por conhecer os múltiplos e complexos desdobramentos de cada orixá,
focalizamos a tradução das suas danças em relação ao seguinte mito:
“Omolú nasceu com o corpo coberto de chagas e foi abandonado por sua mãe, Nanã Buruku, na beira da praia...
Certa ocasião, todos os deuses reunidos dançavam alegremente, com exceção de Omolú, que da porta observava solitariamente.
Ogum perguntou a Nanã por que Omolú não se juntava aos outros e dançava. Ela explicou que ele tinha medo de aparecer por causa das pústulas.
Ogum resolveu ajudá-lo e teceu para ele uma roupa de ráfia.
Assim, Omolú foi para o salão e dançou bravamente diante de todos, cantando uma cantiga que homenageava Ogum, “que o levara para o mato e lhe dera uma bela veste de palha-da-costa”.
No entanto, nenhum orixá se habilitou a dançar com ele, só Iansã, altiva e corajosa, acompanhou Omolú.
O turbilhão de ventos de Iansã enfeitou ainda mais a dança e acabou levantando as vestes de Omolú, que, para espanto de todos, revelou-se um homem de rara beleza.
“Grato a Iansã, Omolú concedeu a ela o poder de reinar sobre os mortos.” (REIS, 2000, p. 119)
Interessa-nos, especialmente, esse mito por falar de um corpo/terra marcado pela
doença e rejeitado por isso, que consegue transformar sua condição na combinação com
outras energias. O vento destemido de Iansã faz dançar a terra de Omolú levantando a
palha e descobrindo os mistérios dele. Como explica Reis (2000, p. 119), o capuz de
palha-da-costa (azê) guarda mistérios terríveis para simples mortais, revela a existência
de algo que deve ficar em segredo, de interditos que inspiram cuidado e medo. Esses
segredos da terra estão relacionados com a morte, por isso são terríveis para os mortais.
Segundo o autor, desvendar o azê, a temível máscara de Omolú, seria o mesmo que
desvendar os mistérios da morte, pois Omolú venceu a morte (REIS, 2000 p.119). No
9 Tânia Bispo é baiana, dançarina, coreógrafa e diretora de reconhecidos espetáculos em Salvador. Embora trabalhe como professora de dança em diversos espaços da sua cidade (Ufba, Sesc) desenvolve sua proposta sobre ‘Transmissão do Conhecimento da Cultura Afro Brasileira através da Sensibilização’, em oficinas para grupos de estrangeiros. Não é um detalhe menor ressalvar que a profissional integra uma comunidade da religião do Candomblé. 10 Isa Soares, baiana radicada em Buenos Aires. Além de ela ser minha mestra, que me apresentou estas danças, foi a primeira pessoa que levou estas danças para Buenos Aires, a qual hoje está espalhada enormemente.
27
entanto, Iansã, guerreira corajosa, tem a energia da tempestade, de um raio que corta o
céu no meio de chuva. Só ela se atreve a dançar com a terra que guarda o mistério da
morte. Iansã governa as almas dos mortos, manda-os embora e traz alegria e festa para a
vida.
Chama atenção o que esse mito diz a respeito da morte, como segredo terrível e
misterioso. Porém, há um convívio com o mundo dos ancestrais e Omolú e Iansã os
fazem presentes. Os dois orixás dançam aquilo que não se vê, nem se conhece.
Eis que vejo uma afinidade entre esse oculto a ser dançado, esse mistério a ser
descoberto numa beleza sublime e a nossa ignorância a respeito dessa cultura,
ignorância que mantém ela na invisibilidade. Nós não temos acesso a essas informações
por não ser reconhecidas pelas monoculturas da razão ocidental, como assinala Souza
Santos, portanto elas não aparecem na educação oficial e ficam silenciadas na
obscuridade.
Do mesmo modo, as informações sobre dança que propõem as professoras Tânia
Bispo e Isa Soares, também não se encontram na educação regular. Há razões e causas
colonizadoras para elas ficarem na invisibilidade. Enquanto nós continuamos na
ignorância, somos agentes de produção de invisibilidade. Este trabalho, então, pretende
ser um agente para tirar do escuro estas danças, suas histórias e experiências.
Segundo Souza Santos (2002, p. 238), a experiência social em todo o mundo é
muito mais ampla e variada do que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece
e considera importante, e esta riqueza social está a ser desperdiçada. O autor sugere um
outro modelo de racionalidade no intuito de dar reconhecimento às múltiplas
experiências invisibilizadas: a razão cosmopolita.
Por uma razão cosmopolita
Para estudar esses processos tradutórios é preciso entrar em contato com outro
modo de compreender o mundo, alternativo à razão metonímica, que seja capaz de
pensá-lo além do mundo ocidental capitalista. Souza Santos (2002, p. 242), propõe uma
‘razão cosmopolita’ que permita criar o “espaço-tempo necessário para conhecer e
valorizar a inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje...” e
assim “evitar o gigantesco desperdício da experiência...”, expandir o presente e contrair
o futuro.
28
Nesta razão cosmopolita, o autor procura fundamentar três procedimentos
sociológicos: uma ‘sociologia das ausências’, para expandir o presente; uma ‘sociologia
das emergências’ para contrair o futuro, e uma teoria ou trabalho de tradução, como
alternativa a uma teoria geral, a qual pressupõe sempre a monocultura de uma dada
totalidade e a homogeneidade das suas partes... (Ibidem, p. 261/262). Portanto, para um
melhor entendimento do trabalho de tradução, é indispensável entender esses dois
procedimentos anteriores.
A ‘sociologia das ausências’ busca a ampliação do mundo e dilatação do
presente, ao tornar visível a infinidade de experiências que acontecem no presente, mas
que não são reconhecidas pela razão capitalista ficando na inexistência. Assim, o autor
começa por revelar cinco modos em que a ‘razão metonímica’ produz a não-existência
do que não cabe na sua totalidade e no tempo linear (Idem, p. 246):
- a monocultura do saber, que toma a ciência moderna e a alta cultura como cânones
exclusivos de produção de conhecimento ou de criação artística;
- a monocultura do tempo linear, que entende a história com sentido e direção únicos: o
progresso e a modernização. Tudo o que não é declarado avançado, é residual sob a
forma de obsoleto, primitivo, tradicional, simples ou subdesenvolvido;
- a monocultura da naturalização das diferenças, onde as hierarquias por raça ou
gênero são imodificáveis porque naturais;
- a monocultura do universal que outorga validez a realidades independentes do seu
contexto específico: o global deixa fora ao local;
- a monocultura da produtividade capitalista, no qual o crescimento econômico é um
objetivo racional inquestionável, critério que se aplica tanto ao trabalho humano quanto
à natureza sob a forma de exploração.
Segundo Souza Santos, estas cinco monoculturas produzem cinco formas de
não-existência: o ignorante, o residual, o inferior, o local e o improdutivo. (Idem, p.
248). Sob esta perspectiva, evidenciam-se, como nosso objeto de estudo, as
manifestações artísticas das danças dos orixás, atravessadas por todas estas categorias: é
ignorante e inculto por se basear num saber oral e mitológico; é atrasado e primitivo,
por conter temporalidades cíclicas, espiraladas e conviver com os antepassados; é
inferior pela sua origem negra e escrava; é local porque sua configuração depende
29
diretamente do contexto e a cada novo contexto tem que se reconfigurar; é improdutivo
porque suas lógicas de produção e distribuição não se regem pela exploração do homem
e da natureza, mas sim, pelo contrário, cuida da distribuição das energias do universo
com dinâmicas que inclui o homem como parte da natureza.
A ‘sociologia das ausências’ pretende recuperar essa multiplicidade e
diversidade de práticas que Souza Santos chama de “desperdício de experiências” e
assim aumentar o campo das experiências credíveis existentes, sugerindo para cada
monocultura uma alternativa ecológica: a ecologia de saberes, a ecologia de
temporalidades, a ecologia de reconhecimentos, a ecologia de produções e a ecologia de
distribuições sociais.
A dilatação do presente ocorre pela expansão do que é considerado contemporâneo, pelo achatamento do tempo presente de modo a que, tendencialmente, todas as experiências e práticas que ocorrem simultaneamente possam ser consideradas contemporâneas, ainda que cada uma à sua maneira. (SOUZA SANTOS, 2002, p. 249)
Uma ecologia de reconhecimentos permite visualizar como o “popular” deixa de
ser sinônimo de local. Segundo Canclini, já não consiste no que o povo é ou tem num
espaço determinado, mas no que lhe resulta acessível ou mobiliza a sua afetividade
(2008, p. 86). Da mesma forma, a ‘identidade’ já não pode ser pensada em termos
estáveis de territorialidade, mas bem se define como uma ‘construção’ permanente de
relações selecionadas por identificação e pelas experiências simbólicas, onde um se
reconhece e se expressa em relação ao mundo.
No âmbito da cultura, ainda é possível gerar laços de identificação entre distintos
países de América Latina, onde certamente o Brasil, e especialmente a Bahia, é um
referente enquanto ao modo de sobreviver de vários processos de adaptação e
resistência da cultura negra. Embora toda a América Latina seja uma construção híbrida
e mestiça, configurada com raízes indígenas americanas, mediterrâneas da Europa e de
migrações africanas, em países como a Argentina se realizaram políticas de
“branqueamento social” tão poderosas que, ainda hoje, a grande maioria dos argentinos
nega a presença negra no país.
Talvez pelo fato de compartilhar processos históricos e por encontrar, na
atualidade, as mesmas condições de desvantagens na participação deste mundo
30
globalizado, resulta-nos mais acessível compreender certos conceitos da cultura africana
já traduzidos por uma outra cultura latino-americana.
Enquanto a ‘sociologia das ausências’ se ocupa de dilatar o presente, ampliando
o domínio das experiências sociais já disponíveis, a ‘sociologia das emergências’
pretende contrair o futuro expandindo o domínio das experiências sociais possíveis.
A concepção do tempo linear do discurso colonizador e a planificação da história
conseguiram estender o futuro indefinidamente. “Quanto mais amplo o futuro, mais
radiosas eram as expectativas confrontadas com as experiências do presente.” (SOUZA
SANTOS, 2002, p. 239) A ‘sociologia das emergências’ busca a expansão simbólica de
saberes e práticas de diversos campos, a fim de identificar as condições de
possibilidades e as tendências do futuro, e determinar “princípios de ações que
promovam a realização dessas condições” (Idem, p. 256). .
A ‘sociologia das emergências’ é a investigação das possibilidades e capacidades
plurais e concretas que permitam contextualizar as expectativas sociais. Este
procedimento sociológico pretende, deste modo, equilibrar a relação entre experiência e
expectativa já que, quanto mais experiências estiverem hoje disponíveis no mundo, mais
experiências são possíveis no futuro.
Assim, a fim de fazer emergir as ausências, Santos propõe realizar um trabalho
de tradução, capaz de fazer inteligível a multiplicidade de experiências disponíveis,
buscando uma relação coerente com aquelas outras que ainda são possíveis. Portanto, “o
trabalho de tradução permite criar sentidos e direções precários, mas concretos, de curto
alcance, mas radicais nos seus objetivos, incertos, mas partilhados” (Idem, p. 274).
O trabalho de tradução
Greiner, no seu texto “A natureza precária das traduções” (2010, p. 25),
vislumbra a emergência de uma pluralidade de projetos coletivos articulados de modo
não hierárquico, capazes de confeccionarem teorias cada vez mais específicas e
localizadas, a favor da eliminação do pressuposto da existência de uma teoria geral.
O trabalho de tradução cosmopolita tem lugar sobre saberes e sobre práticas -
que são saberes aplicados e materializados-, que partem desse mesmo consenso
transcultural, já enunciado anteriormente: “a teoria geral da impossibilidade de uma
teoria geral”. Assim, este procedimento tende a explicitar os limites e as possibilidades
31
da articulação entre os diferentes saberes e práticas culturais, já que, nas palavras de
Santos, “todas as culturas são incompletas e, portanto, podem ser enriquecidas pelo
diálogo e pelo confronto com outras culturas” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 264). Daí se
compreende a necessidade de buscar em outra cultura, regida por outros valores e
modos de estar no mundo, respostas para problemas e vazios da cultura própria. Em
concordância, Bhabha diz que “não há comunidade ou massa de pessoas cuja
historicidade emita “sinais corretos”. Por isso, o ato de negociação/tradução precisa ser
sempre interrogatório.” (apud GREINER, 2010, p. 30) Não se trata, então, de pensar
numa tradução literal ou absoluta, mas numa tradução que implique uma mudança, que
dê lugar para uma criação e para uma mutação.
Para esclarecer as condições e procedimentos deste trabalho de tradução, Santos
sugere formular as seguintes questões: O que traduzir? Entre quê? Quem traduz?
Quando traduzir? Como traduzir? Traduzir com que objetivos?
Assim, inspirada e instigada pela proposta de Souza Santos, seguirei com as
questões a partir deste ponto da dissertação.
O que traduzir?
A razão cosmopolita propõe construir ‘zonas de contato’, que se definem como
campos sociais onde se encontram, chocam e interagem diferentes práticas e
conhecimentos. Esta ‘zona de contato’ é sempre seletiva, cada saber ou prática decide o
que é posto em contato com quem, contudo, tais saberes e práticas excedem a zona de
contato selecionada (SOUZA SANTOS, 2002, p. 268).
Para nosso trabalho de tradução, pretende-se colocar, como ‘zona de contato
cosmopolita’, a ‘dança’ que, de acordo com Bittencourt (2001, p. 36) “revela-se como
um sistema de alta complexidade e temporalidade ao configurar-se como produtora de
linguagem, um sistema de informações que estabelece relações efetivas, transformando-
se dinamicamente ao transitar em ambientes diversos”.
Sob esta perspectiva, as manifestações artísticas da dança dos orixás se
configuram como um sistema composto por múltiplas informações: um orixá, um
elemento da natureza, um mito, um ritmo, um canto, uma certa gestualidade e o corpo
que dança – em interação com o ambiente – e também o modo de relacionar-se entre
elas, estabelece lógicas de organização específicas. Portanto, observamos que, o que
singulariza o sistema dança não é somente o conjunto de informações, mas é a lógica de
32
organização das informações, na qual a repetição reproduz-se como padrão. “O padrão
apresenta-se como organização e, portanto, como resultado de alguma regularidade. E,
sendo assim, revela-se como um sistema que possui uma linguagem própria, um sistema
de informações” (BITTENCOURT, 2001, p. 44). Assim, os padrões construídos nas
manifestações artísticas das danças de orixás, são abordados a partir de seu sistema de
informações e de sua lógica de conectividade e organização, a fim de compreendê-los e
incorporá-los como linguagem. Mas, como afirma a autora, a dança se transforma
dinamicamente ao transitar em ambientes diversos, a partir das informações que traz o
corpo que dança, o qual se correlaciona diretamente com seu contexto. “A dança e o
corpo que dança expressam o pensamento do ambiente em que se encontram, os valores
de sua época, destacando, marcando e transformando hábitos. Por isso, apresenta-se
também como sinalizadora de um tempo passado” (BITTENCOURT, 2001, p. 45).
Na tentativa de delinear a dança como zona de contato da tradução intercultural,
ou seja, cosmopolita, é preciso, antes de mais nada, abrir um diálogo a respeito do
entendimento de corpo e de dança entre certos autores fenomenológicos, pesquisadores
das danças da cultura yorubá e pensadores contemporâneos.
Em “Fenomenologia da Percepção” do filósofo Merleau-Ponty (1977; 1960),
destaca um paradoxo de dupla referência na experiência da corporalidade. Vislumbra-se
que o corpo é a mesmo tempo sensível e sentente, visível e vidente, isto é, que pode ser
um corpo objetivo – coisa entre as coisas, pertence à ordem do objeto - assim como
também um corpo fenomênico - aquele que vê e toca às coisas, pertence à ordem do
sujeito-. Sujeito e objeto não estão divididos, mas constituem potências numa relação de
coimplicação, onde cada uma “chama à outra”.
No entanto, corpo e mundo se comunicam inevitavelmente através da espessura
da carne: “o mundo está feito com o mesmo pano do corpo” (MERLEAU-PONTY,
1977, p.16-17). Essa noção do corpo como parte do tecido do mundo, descarta a
dicotomia de corpo-mente e restabelece a relação horizontal do corpo e a natureza para
podermos nos reconhecer neste corpo sensível e “que sente”, objeto e sujeito, que afeta
e se deixa afetar por outros corpos e pelo mundo.
Para a cultura yorubá, o corpo humano, “é um microcosmo e nele estão contidos
todos os elementos e forças da natureza que, distribuídos harmoniosamente pelo corpo,
explicam a sua mitologia” (ZENICOLA, 2001, p. 84). Assim como o corpo é natureza,
33
a natureza é corpo, sua “terra” são os tecidos, a carne, pele e ossos. O fogo aparece
quando as emoções se externalizam e se modulam; assim a temperatura se altera, seja
por ira, seja por vergonha ou por paixão; ou também para enfrentar alguma doença,
como no caso do corpo febril. A água flui, conecta as suas partes, transporta o alimento,
regula sua temperatura, relaxa e amolece a “terra” do corpo, tira o excesso e equilibra. O
ar, que também está no abstrato do corpo, nos pensamentos, na imaginação, na
inspiração, entra e sai dele, alimentando cada célula.
Por outro lado, Augras (1983, apud ZENICOLA, 2001) explica como certas
partes do corpo se relacionam com o mundo a volta:
Os pés apoiam-se no concreto, no barro de onde saiu e para onde voltará, na terra que os antepassados pisaram e à qual retornaram. O pé direito corresponde à herança dos antepassados masculinos, e o pé esquerdo, à herança feminina. A mão direita e esquerda atuam sobre o mundo e transformam as coisas. A cabeça, que reproduz as quatro dimensões do espaço, contém, na interseção dos pontos cardeais, o centro da individualidade, ori-inu, manifestação do duplo sagrado, que provém de substância divina, da qual os próprios deuses são tributários. (Idem, p. 84)
Rosamaria Susanna Barbara em sua tese ‘A dança das aiabás. Dança, corpo e
cotidianidade das mulheres do candomblé’ (BARBARA, 2003, p. 66), afirma que para o
candomblé o corpo é considerado o local da sabedoria. Os orifícios, os sentidos, a pele
em geral são órgãos de conhecimentos. Merleau-Ponty (1977; 1960), discute que o
mundo não pode constituir-se como mundo, nem o ‘eu’ como ‘eu’, a não ser em sua
relação. Através dessas formulações, a ‘fenomenologia da percepção’ introduz a questão
do outro e de como o sentido do mundo se constrói intersubjetivamente, diferenciando-
se radicalmente da filosofia mecanicista de Descartes que centrava essas questões no
âmbito exclusivo do indivíduo e sua razão.
Para o filósofo, o corpo é um agente e é a base da subjetividade humana. A
percepção, não é uma representação interna de um mundo exterior, mas é uma
experiência incorporada e ocorre antes no mundo que na mente. A percepção se
fundamenta no comportamento, no ver, ouvir, tocar, enquanto formas de conduta
baseadas em hábitos culturais adquiridos.
Assim, tentando aproximar a fenomenologia da percepção, proposta por
Merleau-Ponty, do pensamento yorubá sobre o corpo, trazemos uma explicação que a
34
professora e dançarina Isa Soares utilizou para propor suas recriações das danças de
orixás:
A terra do meu corpo às vezes eu posso modificar mudando suas dimensões (emagrecendo ou engordando, subindo aos saltos, ou pintando o meu cabelo), mas a energia do meu corpo, o modo como vou me movimentar é a que vai gerar quimicamente algum pólo positivo do outro e que se conecte com algum pólo positivo ou negativo do meu corpo, e isso pode gerar simpatia ou antipatia, as duas iguais no grau de importância e necessárias para estabelecer minhas relações com o mundo. (SOARES, 2005, Buenos Aires, sala de aula)
Pelo fato do corpo ter movimento, deslocando no tempo e no espaço, a
motricidade é o modo de o corpo ‘ser-no-mundo’, “estabelecendo relações portadoras
de sentido, possibilitando a comunicação e permitindo, desta forma, que criamos, em
nossos vários desdobramentos, o mundo da intersubjetividade” (BARBARA, 2003: p.
56). “A espessura do corpo, longe de rivalizar com a do mundo, é, pelo contrário, o
único meio que tenho para ir até o coração das coisas, convertendo-me em mundo e
convertendo a elas em carne” (MERLEAU-PONTY, (1964) 1970, p. 168).
Já na contemporaneidade, Najmanovich (2008) sugere que não podemos
conhecer os objetos independentes de nós, o conhecimento implica interação, relação,
transformação mútua, codependência e coevolução.
Tomando as palavras de Barbara, podemos dizer que o corpo na cosmogonia11
yorubá é o ponto de conjunção entre as energias naturais e a cultura e, por intermédio do
ritmo traduzido na dança, transforma os eventos naturais em significados culturais.
Cada gesto mostra o sentido de um símbolo, criando assim a dialética, o fluir dinâmico
do ritual. (2003, p. 54) Vemos aqui como a dança tem um papel fundamental no
processo de transmissão de costumes e valores de uma determinada nação que, já
desterrada da sua África, busca sobreviver numa nova cultura, reconfigurando-se na
religião do Candomblé.
Mauss (1872-1950), sociólogo, historiador de religiões e antropólogo francês
que colocou a sociologia dentro da ciência moderna sugerindo considerar cada
fenômeno sociocultural segundo os usos sociais, no seu livro ‘Sociologia e
11 A cosmogonia é uma narração mítica que pretende dar resposta à origem do universo e da própria humanidade. A cosmogonia ajuda a construir a percepção do universo e da origem dos deuses, a humanidade e elementos naturais.
35
Antropologia’ (1950), fala de ‘técnicas corporais’ para expressar a maneira com que os
seres humanos, de cada sociedade, usam e adaptam seus corpos numa forma tradicional.
Nomeio técnica ao ato eficaz tradicional (vem, pois como esse ato não se diferencia do ato mágico, do religioso ou do simbólico). É preciso que seja tradicional e seja eficaz. Não há técnica nem transmissão enquanto não tenha tradição. O homem se diferencia fundamentalmente dos animais por essas duas coisas, pela transmissão das suas técnicas e provavelmente pela sua transmissão oral. (MAUSS, 1950, p. 342)
As manifestações das danças dos orixás se configuram num conjunto de
movimentos e intenções corporais que estabelecem uma significação dependente da sua
cosmologia. Zenicola, falando especificamente da dança que acontece na cerimônia do
Candomblé, comenta que “trata-se de um conjunto de passos específicos e intenções
claras de movimentos para cada orixá que, embora permita variações interpretativas de
intenção e na ordem em que os passos serão apresentados, não aceita mudanças na
execução do movimento.” (ZENICOLA, 2001: 86)
Não é a nossa intenção estudar a dança que acontece no contexto religioso, mas
buscar modos de traduzi-la desde seu universo mitológico para o contexto da arte. Por
este caminho, Inaycira Falcão dos Santos (2006) traz uma proposta para a arte da dança
que se afasta da tradicional abordagem focada na cópia de formas do rito vivenciado no
terreiro e se volta para o corpo do intérprete-bailarino por meio de memórias ancestrais,
com ações corporais carregadas de significados, trazendo-as para o presente por meio da
arte do movimento criativo (SANTOS, 2006). Interessa-nos, aqui, como a autora foca
na experiência singular de cada intérprete, na qual, além da vivência física, filosófica e
criativa, o intérprete reflete sobre a mesma e se percebe corporalmente no processo
(SANTOS, 2006). Desta forma, a autora sugere que, para pensar na tradição africana
brasileira, já não se trata de reproduzir as formas sagradas advindas das comunidades
religiosas, mas como este sagrado pode inspirar o artista, discernindo formas, valores da
cultura em questão, buscando o seu conhecimento e o respeito.
Assim, vemos que a dança se modifica de acordo com as relações que se
estabelecem entre o corpo que dança, o seu ambiente e as informações de tal dança. E,
nesse modo particular de se relacionar com o ambiente, cada dança e cada corpo se
torna único.
36
Em consonância com isto, Katz e Greiner (2005), apresentam a teoria
corpomídia, na qual explicam que informações do mundo são selecionadas para se
organizar na forma de corpo, e a cada informação que chega ao corpo, reposiciona-o por
inteiro. O corpo e o ambiente relacionam-se em processos coevolutivos que tecem “uma
rede de pré-disposições perceptuais, motoras, de aprendizado e emocionais” (2004, p.
130). Parafraseando Najmanovich, o corpo participa de uma dinâmica criativa de si
mesmo e do mundo com que ele está em permanente intercâmbio.
Vale a pena apontar aqui como a teoria corpomídia atualiza o conceito de corpo
da fenomenologia da percepção. Merleau-Ponty sugere uma noção de ‘ser-no-mundo’
que implica uma relação indivisível do ser com o ‘haver’ prévio: “o mundo está aí
previamente a qualquer análise que eu possa fazer do mesmo”. (Merleau-Ponty 1993
[1945): 10) No entanto, para Katz e Greiner não há nada pré-estabelecido, “tudo o que é
vivo existe como resultado sempre parcial de uma condição coevolutiva” (SAITO,
2012, p.19). A teoria corpomídia pesquisa o “estado do corpo ser” (Idem), ou seja o
corpo sempre em “estado processual”, em constante mudança e troca com o ambiente, o
qual também se modifica e se reconfigura a cada mudança.
Katz e Greiner nos convidam, então, a repensar o conceito de corpo, já não
enquanto um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação
que chega entra em negociação com as que já estão, num processo de contaminação
(2004, p. 131). O corpo como resultado desses cruzamentos se torna mídia de si mesmo,
afastando-se da ideia de mídia como veículo de transmissão. Desta forma, a dança é
tratada como uma experiência cognitiva que opera no fluxo entre corpo e ambiente, de
modo que o corpo vive em estado do sempre-presente. Segundo as autoras, as
experiências são frutos de nossos corpos, de nossas interações com nosso ambiente
através das ações de se mover (sensório-motoras) e de nossas interações com outras
pessoas dentro da nossa cultura e fora dela.
O ato de dançar, então, “é o de estabelecer relações testadas pelo corpo em uma
situação, em termos de outra, produzindo, neste sentido novas possibilidades de
movimento e conceituação” (Ibidem, 132). Portanto, a zona de contato da tradução, vai
ser aquela manifestação artística da dança dos orixás (especificamente de Obaluaiê e de
Iansã) que, “em ressonância com seu ambiente, cria e é submetido a mitologias do
corpo em movimento” (GODARD, 1995, p. 11).
37
Entre quê traduzir?
A seleção dos saberes e práticas para realizar o trabalho de tradução resulta de
uma convergência de sensações de carência, de inconformismo, e da motivação para
superá-las de uma forma específica (SOUZA SANTOS, 2006, p. 270). Esta sensação de
carência e motivação para realizar algo é parte fundamental das condições necessárias
para que a dança surja e se desenvolva num certo contexto. A cada novo contexto, a
dança se reconfigura de acordo com as adaptações às condições particulares.
Propomo-nos, então, estudar o processo de tradução entre diferentes contextos
onde ocorrem as danças baseadas em mitos de Obaluaiê e de Iansã. Mesmo
pressupondo que existem tantos contextos quanto danças e modos de dançar, para esta
pesquisa serão abordados dois modos de traduzir: entre o contexto do universo
mitológico dos orixás e o ambiente artístico e contemporâneo da dança. Tomamos por
ambiente não somente o espaço físico, mas todo um conjunto de condições necessárias
para que a dança aconteça, onde corpo e ambiente trocam informações num fluxo
contínuo de acordos coadaptativos (FOLEY, 2003).
Assim, numa primeira instância serão analisadas as reconfigurações destas
danças na passagem da África à Bahia, onde em condições da escravidão, o culto aos
orixás era a motivação para superar as experiências do desarraigamento ou extirpação e
as vivências mais inumanas a que foram submetidos. A dança era, aqui, uma forma de
comunicar-se com os ancestrais, com sua terra do outro lado do oceano e também entre
eles, já que nem todos compartilhavam o mesmo dialeto. Como ilustra Verger:
... disso resultou, no Novo Mundo, uma multidão de cativos que não falava a mesma língua, possuindo hábitos de vida diferentes e religiões distintas. Em comum, não tinham senão a infelicidade de estarem, todos eles, reduzidos à escravidão, longe das suas terras de origem. (VERGER, 2003, p. 22)
Numa segunda instância, serão analisados dois contextos onde a dança surge
como expressão artística contemporânea, de corpos colonizados pelos valores ocidentais
e capitalistas, privados de escolherem outras formas de viverem e se relacionarem com
o mundo, além do mundo capitalista. A dança cobra um sentido singular em cada
pessoa, de acordo com as possibilidades interativas entre o corpo, o ambiente e as
características selecionadas desta dança.
38
Neste sentido, podemos afirmar que as conexões musculares dos corpos de uma
técnica de dança correspondem a uma determinada lógica de cognição e essa lógica
obedece a valores de um certo contexto. Assim, cada corpo vai criando regras para
compor a dança, isto é, seleciona uma ou mais possibilidades de composição. Britto
explica:
Toda dança resulta do modo particular de um corpo organizar, com movimentos, o seu conjunto de referências informativas (biológicas e culturais). Do mesmo modo, o contexto cultural corresponde ao ambiente do corpo, no sentido de que o conjunto de informações que caracterizam os modos de pensar e operar vigentes na sociedade em que está inserido delineia seu campo particular de possibilidades interativas. (BRITTO, 2008, 72)
Portanto, o processo de tradução da dança entre o contexto mitológico e cada
ambiente do corpo que traduz, será sempre em relação à seleção de informações que faz
sentido para ele e que faz algum tipo de conexão com sua história corporal, suas buscas
e necessidades. É por aí onde vemos a possibilidade de fazer um caminho pessoal e
criativo nas manifestações artísticas da dança dos orixás e onde a tradução se aproxima
mais a uma ‘transmutação’ (Jakobson) ou a uma ‘transcriação’ (CAMPOS, apud
GREINER, 2010, p. 15).
Quando traduzir?
Nas zonas de contato multiculturais, tem de se confluir uma constelação de
tempos, ritmos e oportunidades que a “sociologia das ausências” se encarregou de
revelar, em contraposição à lógica da monocultura do tempo linear. (SOUZA SANTOS,
2002, p. 271)
Para a cultura africana, “o tempo é uma composição dos eventos que já
aconteceram ou que estão para acontecer imediatamente” (MBITI, 1990, p. 16-17, apud.
PRANDI, 2001, p. 7). Longe de pensar o tempo independente do ser humano, como
algo a ser consumido ou vendido, para o africano, o tempo tem que ser criado, “ ele faz
tanto tempo quanto queira” (Idem, p. 4). No Brasil, em comunidades religiosas regidas
por tradições africanas, o tempo, até hoje, é pensado e descrito de um modo muito
diferente do tempo linear e causal do capitalismo. Em palavras de Prandi (2001, p. 4):
39
“o tempo será sempre definido pela conclusão das tarefas consideradas necessárias no
entender do grupo, ou seja, por meio da fórmula: ‘quando estiver pronto’”.
Na cosmovisão africana, o tempo é circular, é o tempo da natureza, onde os
eventos do presente são repetições de um passado distante que se “transmite” oralmente
pelo mito. Porém, na mitologia, os eventos também não se ajustam a um tempo
contínuo e linear. Os mitos são narrativas parciais, onde fatos que são narrados como
acontecimentos de uma mesma época, ocorreram em momentos muito distantes. “O
tempo do mito é o tempo das origens, e parece existir um tempo vazio entre o fato
contado pelo mito e o tempo do narrador.” (Idem, p. 7)
Na zona de contato cosmopolita das manifestações artísticas das danças dos
orixás, o tempo da tradução será de uma contemporaneidade que permita abranger este
pensamento de tempo. Ou seja, contemporaneizar esta prática e este saber pelo simples
fato de estar acontecendo nesta época, mas, atendendo, sobretudo às suas lógicas de
tempo. Neste caso, se a tradução é contemporânea, a dança também pode ser tratada
como contemporânea.
Quem são os meus contemporâneos? — pergunta-se Juan Gelman. Juan diz que às vezes encontra homens que têm cheiro de medo, em Buenos Aires, em Paris ou em qualquer lugar, e sente que estes homens não são seus contemporâneos. Mas existe um chinês que há milhares de anos escreveu um poema, sobre um pastor de cabras que está longe, muito longe da mulher amada e mesmo assim pode escutar, no meio da noite, no meio da neve, o rumor do pente em seus cabelos; e lendo esse poema remoto, Juan comprova que sim, que eles sim: que esse poeta, esse pastor e essa mulher são seus contemporâneos. (GALEANO, 1991, p. 123)
Quem traduz?
A tradução é um trabalho intelectual, geralmente exercido por líderes de grupos
sociais. Já Heidegger, concebia possível a tradução de uma palavra, se o tradutor
consegue trasladar-se para o “horizonte de experiência a partir do qual a palavra se
enunciou” (GREINER, 2010, p. 15). Portanto, esses tradutores cosmopolitas precisam
estar “fortemente enraizados nas práticas e saberes que representam, tendo de uns e de
outras uma compreensão profunda e crítica” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 271).
40
Para explicar esta idéia, Souza Santos remete-se à filosofia da sageza da África
tradicional. Os sages eram poetas, contadores de histórias, músicos ou médicos
tradicionais de sabedoria, que transmitiam o modo de pensar e de explicar o mundo de
uma comunidade através de uma “sabedoria didática” que se caracterizava pela sua
dimensão crítica frente ao senso comum. Só que muito dessa filosofia da sageza não
está escrita e tem se perdido (ODERA ORUKA, 1990-1998, apud SOUZA SANTOS,
2001, p. 263)
Pela mesma via, o saber popular das cosmovisões africanas - tanto yorubá, bantu
ou fon, entre outras-, transmitido pela oralidade, foi perdendo importância sob a forma
de ignorante ou inculta, ficando legitimado somente o que os cientistas e intelectuais
europeus conseguiram escrever nos seus livros. Porém, muitas informações tiverem
continuidade através da mitologia, dos cânticos, dos rituais e das danças.
Como já apresentamos, para este estudo, as tradutoras analisadas serão as
professoras Isa Soares e Tânia Bispo. Tânia Bispo desenvolve o seu trabalho em
Salvador/ BA, a partir do contato com a simbologia ritualística dos orixás e sua relação
com o elemento da natureza correspondente, energias, características, arquétipos e
leituras simbólicas dos fundamentos ligados ao orixá. O trabalho busca explorar a
criação de sequências individuais e composições coletivas em relação com o “mito
pessoal” e retratos das memórias ancestrais. Tânia Bispo conta que a pesquisa começou
com ela mesma, quando na sua formação na ‘Escola de Dança da Universidade Federal
da Bahia’ deparou-se com a dificuldade de improvisar com ‘uma linguagem própria’,
por conta de ter incorporado tantas informações da dança moderna, do balé clássico e
demais técnicas “importadas” desenvolvidas na Escola de Dança naquela época. A
dançarina relata que sentia que tinha perdido a sua língua matriz, a sua ancestralidade.
Foi a partir da percepção da carência de uma oferta de dança que contemplasse a sua
história pessoal, que decidiu “pesquisar com o núcleo Odundê, os princípios básicos da
postura de um corpo negro, a postura de um corpo que dança matriz sagrada”
(entrevista, 2011).
Por sua vez, Isa Soares, baiana radicada em Buenos Aires/Argentina, há mais de
trinta anos, desenvolve sua proposta de ‘recriações das danças de orixás’ a partir do
trabalho do ‘Xiré’, isto é, uma ordem de aparição dos orixás, na qual eles representam
‘diferentes instâncias mediadoras, dentro dos ciclos vitais’… “ Os gestos, nessa
recriação, relatam o recorrido do corpo por instâncias da vida...” (SOARES, 2006). A
41
professora conta que seu trabalho de dança partiu da necessidade de se incluir na
sociedade porteña (de Buenos Aires) onde mora, porque foi ela que decidiu se instalar
ali, sendo negra, sem família e com um filho. Ela precisava dialogar com as pessoas por
meio da dança, de dizer como era ela, como gostaria que a tratassem e como ela gostaria
que fosse o mundo. Na hora de partilhar o seu trabalho, Isa Soares sublinhava sobre o
lugar que ela tinha recriado cada movimento: “aconteceu-me isto, eu o reproduzo assim,
entrego-lhes dessa maneira, vocês façam com ele o que quiseram. Contudo, observem
sempre, desde a sua necessidade de fazer. Não da repetição porque sim.” (SOARES,
2005, entrevista)
Nos dois casos, o trabalho de tradução da dança se reconfigura a partir da
dimensão crítica de cada professora em relação com o seu ambiente e com o universo
mitológico da dança. Porém, vemos que, desta atitude crítica, surge um sentimento de
incompletude “e a motivação para encontrar noutros saberes ou noutras práticas as
respostas que não se encontram dentro dos limites de um dado saber ou de uma dada
prática”. (SOUZA SANTOS, 2002, p. 271)
Esta ideia de carência e a motivação para superá-la, segundo Souza Santos,
podem ser melhores entendidas com o questionamento do sociólogo indiano
Vishvanatran (2000, apud, SOUZA SANTOS, 2002, p. 264): “o meu problema é como
ir buscar o melhor que tem a civilização indiana e, ao mesmo tempo, manter viva a
minha imaginação moderna e democrática”. Tal problematização, de alguma maneira,
converge para os nossos modos de pensar as traduções culturais das danças: como tomar
certos valores e princípios da cosmovisão africana para transformar modos de nos
relacionarmos e criar mundos possíveis, a partir de nossa história pessoal?
Como traduzir?
Souza Santos explica que o trabalho de tradução é um trabalho argumentativo, o
qual confirma a “emoção cosmopolita de partilhar o mundo com quem não partilha o
nosso saber ou a nossa experiência” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 272). Assim, o autor
apresenta três principais dificuldades do trabalho de tradução:
1- A primeira dificuldade são as premissas de argumentação. Cada cultura ou
saber, conta com um consenso de regras, postulados e ideias, nomeadas como ‘lugar
comum’ ou ‘topoi’ , nas quais assentam as premissas de argumentação. Porém, esses
42
topoi, por serem próprios de uma cultura, não são aceitos como óbvios por outra cultura
ou saber. Portanto, para o trabalho de tradução, cada saber ou prática leva para a zona
de contato, certos topoi que deixam de ser ‘premissas da argumentação’ e tornam-se
‘argumentos’ da tradução. No processo do trabalho de tradução, vão se construindo
“ topois adequados à zona de contacto e à situação de tradução” (Idem, p. 272).
A escolha do trabalho das professoras Isa Soares e Tânia Bispo para este estudo
relaciona-se com a particular capacidade delas para construir topois ou ‘lugares
comuns’ adequados à zona de contacto da dança da mitologia afro-yorubá, que
argumentam de forma coerente o processo de tradução de cada trabalho. Os argumentos
de tradução de cada uma das professoras estão construídos a partir do ambiente de cada
corpo, e são os que possibilitam e sustentam o processo criativo de cada dança. Porém,
como afirma o sociólogo, este “é um trabalho exigente, sem seguros contra riscos e
sempre à beira de colapsar” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 272).
2- A segunda dificuldade está na língua. A dificuldade aparece especialmente
quando a ‘zona de contato cosmopolita é multicultural’ e a argumentação é conduzida
pela língua colonial, a qual muitas vezes tornam impronunciáveis aspectos centrais dos
saberes e práticas oprimidos na zona colonial. (SOUZA SANTOS, 2002, p. 272). Neste
trabalho de tradução, a linguagem é a dança. O risco está em que, para poder fazer
algum tipo de tradução desta dança de origem afro-yorubá, é indispensável partir de
outra noção de corpo, diferente daquela que marca o corpo colonizado, organizado por
lógicas e valores da cultura ocidental, questão que já foi discutida para delimitar a zona
de contato a traduzir, isto é, dança. A tradução é um trabalho paralelo ao processo de
aprendizagem de uma nova linguagem corporal, com outros conceitos de corpo, de
estética, de tempo e que implica estabelecer uma relação mais íntima e horizontal com a
natureza, a partir do entendimento de que o corpo é composto por uma multiplicidade
de energias possíveis de serem desenvolvidas.
No intuito de atender a uma tradução corporal que abrange aquilo que não se
sabe como pronunciar, Greiner sugere que o indizível da linguagem “sempre pode ser
traduzido como um querer-dizer”, e nesse silêncio, uma fala secreta torna a tradução
próxima da criação. (GREINER, 2010, p. 15)
3- A terceira dificuldade está nos silêncios. A tradução do silêncio é uma das
tarefas mais complexas, já que cada saber e prática outorgam um significado diferente
ao silêncio, assim como um ritmo específico na articulação com as palavras. (SOUZA
43
SANTOS, 2002, p. 273). Para a cultura tradicional africana, o silêncio está associado ao
segredo, ao fundamento do culto aos orixás, que só podem ter acesso pessoas que
passam por uma série de rituais iniciáticos através de longos anos. Prandi (2001)
comenta que são os velhos os depositários do segredo da tradição e da cultura viva:
“Mitos, fórmulas rituais, louvações, genealogias, provérbios, receitas medicinais,
encantamentos, classificações botânicas e zoológicas, tudo é memorizado” (PRANDI,
2001, p. 12). A única maneira de aprender é na sua convivência, mas é um aprendizado
silencioso e sem muitas perguntas, baseado na observação e repetição.
Mesmo assim, silêncio em yorubá significa “Atótó!”, e com esta palavra se
cumprimenta a Obaluaiê em sinal de respeito:
“Atótó! Omolú Olúké a jí béèrù sápadà!”
(Silêncio! O filho do Senhor é o Senhor que grita, nós
acordamos com medo e corremos de volta!) (OLIVEIRA,
1997, p. 75).
Essa questão de como traduzir o silêncio, portanto, estará presente no estudo das
danças do orixá Omolú/Obaluaiê nos próximos capítulos.
Como bem assinalava Souza Santos, essa cultura também concede um ritmo
específico ao silêncio na articulação com as palavras. No caso da linguagem corporal
desta dança mitológica, o silêncio é marcado pelos diferentes toques percussivos de
cada dança. O ritmo sugere uma energia particular que, para atingi-la é indispensável
“silenciar” certas partes do corpo para que outras possam se movimentar. Contudo, já
sabemos que este silenciamento do corpo não é uma questão meramente de visibilidade
músculo-esquelética. Segundo Godard, “a cultura, a história do dançarino, a sua
maneira de perceber uma situação, de interpretar, vai induzir uma “musicalidade
postural” que acompanha ou despista os gestos intencionais executados” (GODARD,
1995, p. 13). Porém, o autor acrescenta que esses mecanismos não são muito
compreensíveis e também não podem ser dirigidos pela intenção. Godard sugere, então,
atender ao pré-movimento, ou seja, à “atitude em relação ao peso, à gravidade, que
existe antes mesmo de se iniciar o movimento”, (idem, p. 13) que é o que vai produzir a
carga expressiva do gesto. Assim, este estado corporal que antecede ao gesto, será
44
retomado e aprofundado no capitulo quatro, na hora de analisar as traduções das danças
de Isa Soares e Tânia Bispo.
Para que traduzir?
O trabalho de tradução cosmopolita contribui para apontar resposta à primeira
pergunta deste estudo: de que modo é possível realizar um trabalho de tradução de
danças africanas e ancestrais para uma cultura colonizada pelos valores e critérios
ocidentais, buscando uma articulação recíproca e evitando uma tradução hegemônica?
A razão cosmopolita reconhece uma América Latina cheia de experiências além
do seu colonizador ocidental. Nesta dilatação do presente, diferentes culturas não
hegemônicas podem buscar respostas ao inconformismo que produz o mundo ocidental,
num diálogo transcultural com diversos tipos de tradução que habilita a uma
inteligibilidade recíproca. Retomando as palavras de Souza Santos, o trabalho de
tradução entre práticas não hegemônicas é uma condição da conversão das práticas não-
hegemônicas em práticas contra-hegemônicas. (SOUZA SANTOS, 2002, p. 265).
Para o trabalho de tradução cosmopolita, é urgente, ante disso, reconhecer nossa
condição de inexistentes e entender que essa invisibilidade é produzida pela cultura
hegemônica ocidental, a qual só legitima as monoculturas que cabem no seu raciocínio.
É a partir de reconhecermo-nos colonizados, de registrar o sentimento de incompletude
que nos incomoda e da vontade de transformá-lo, que podemos estabelecer um diálogo
de reciprocidade com uma outra cultura não hegemônica.
As manifestações artísticas das danças de orixás podem se converter em práticas
contra-hegemônicas ‘somente’ se o trabalho de tradução - trabalho intelectual, político e
emocional- consegue atender à diversidade de experiências, valores e cosmovisões que
desafie à razão ocidental capitalista. A quantidade de experiências invisibilizadas não é
tanto problema quanto as infinidades de experiências e saberes que, por estarem
respondendo às monoculturas ocidentais, reproduzem-se através de ações e discursos
colonizadores sem terem consciência disso.
A ‘sociologia das ausências’ e a ‘sociologia das emergências’ se tornam pilares
indispensáveis para realizar os trabalhos de tradução das dançarinas Tânia Bispo e Isa
Soares nos próximos capítulos. Tais sociologias apontam para a desnaturalização dos
parâmetros de legitimação com os quais somos educados no dia-a-dia, ampliando o
45
presente a partir das ecologias de saberes, de temporalidades, de reconhecimentos, de
produções e de distribuições sociais. Deste modo, as experiências das artistas aqui
pesquisadas se tornam visíveis e são legitimadas pelos valores das culturas colonizadas
implicadas na tradução. Deixa-se assim, o terreno propício para dar visibilidade a
muitas outras experiências.
46
CAPITULO 2
TÂNIA BISPO: TRANSCENDER O ‘MITO PESSOAL’
Figura 1: Manifestação artística de Tânia Bispo, Salvador, 2012. Foto: Arquivo da autora
Este capítulo propõe apresentar um estudo sobre o modo em que a dançarina e
professora Tânia Bispo consegue traduzir, artisticamente, as danças mitológicas
dos orixás Omolú e Iansã - duas deidades cultuadas na religião do candomblé. A
partir do trabalho de tradução cosmopolita, segundo Souza Santos, iluminamos
a manifestação artística desta dançarina, que logra um processo criativo, sensorial e
pessoal da dança, baseado nos arquétipos oriundos dos mitos e nas vivências do culto
aos orixás.
Evitando traduzir esta cultura a partir dos valores e critérios ocidentais, Tânia
Bispo constrói outros ‘lugares comuns’ para novas ‘premissas de argumentação’.
Segundo ela, para fazer a tradução é preciso diferenciar o espaço sagrado do artístico,
entender que todos (de qualquer origem e religião) podemos nos reconhecer na
natureza por meio de emoções e arquétipos e que a preparação corporal não precisa
47
apenas de técnica ou de cópia de passos, mas de um trabalho de sensibilização de cada
corpo, respeitando a individualidade e as diferenças. Deste modo, esta experiência
contribui em contrapor o fenômeno de colonização instalado pelo sistema capitalista.
Como foi explicitado anteriormente, a zona de contato desta tradução é a dança
inspirada no seguinte mito:
“Omolú nasceu com o corpo coberto de chagas e foi abandonado por sua mãe, Nanã Buruku, na beira da praia... Certa ocasião, todos os deuses reunidos dançavam alegremente, com exceção de Omolú, que da porta observava solitariamente. Ogum perguntou a Nanã por que Omolú não se juntava aos outros e dançava. Ela explicou que ele tinha medo de aparecer por causa das pústulas. Ogum resolveu ajudá-lo e teceu para ele uma roupa de ráfia. Assim, Omolú foi para o salão e dançou bravamente diante de todos, cantando uma cantiga que homenageava Ogum, “que o levara para o mato e lhe dera uma bela veste de palha-da-costa”. No entanto, nenhum orixá se habilitou a dançar com ele, só Iansã, altiva e corajosa, acompanhou Omolú. O turbilhão de ventos de Iansã enfeitou ainda mais a dança e acabou levantando as vestes de Omolú, que, para espanto de todos, revelou-se um homem de rara beleza. Grato a Iansã, Omolú concedeu a ela o poder de reinar sobre os mortos.” (REIS, 2000, p. 119)
Com a finalidade de pesquisar o processo de tradução de Tânia Bispo, precisamos
primeiramente, compreender os diversos contextos, as dificuldades e as condições
específicas nas quais a tradutora foi se desenvolvendo e construindo este trabalho.
2.1. Salvador: do tabu ao exotismo.
Salvador é uma cidade que se tece no deambular das suas próprias contradições.
Os três séculos de tráfico de escravos provenientes de diferentes culturas africanas lhe
deixou uma população com alta porcentagem de negros e uma cultura caracterizada pela
quantidade de práticas com traços africanos como o samba, a capoeira, as comidas, as
festas, a religião, as oferendas, entre outros que se misturaram com costumes indígenas
e europeus. Este fenômeno de miscigenação não se deu de forma pacífica nem
conciliatória e o poder eurocêntrico e colonizador se encarregou de levantar a bandeira
da democracia racial, que aparenta uma feliz convivência entre as diferentes raças e
classes sociais.
Ao longo da história foi se instalando sorrateiramente um racismo velado sob a
ideia de mestiçagem, amplamente difundida por artistas e pensadores românticos que
48
construíram a ilusão de um Brasil harmonioso e sempre sorridente. Paralelamente,
podem-se perceber diversos movimentos de resistência negra que vão das lutas nos
quilombos -1830- até a africanização do carnaval12 -1970-, os quais, estrategicamente,
procuravam manter vigente sua cultura.
Infinidades de músicas, assim, falam do brilho do mar, do céu tropical, dos
corpos morenos e curvos e das danças sensuais, alegres e coloridas. Semelhante
promessa turística atrai e alimenta o sonho europeu e enriquece o mercado da indústria
cultural. De tal modo, as práticas culturais negras que sobrevivem no cotidiano e no
pensamento do povo baiano sofrem diversos modos de espetacularização e exotização
por parte da indústria cultural, na busca de minimizá-las e negar-lhes sua vigência como
parte da identidade baiana. Segundo Carvalho:
“a “espetacularização” é a “operação típica da sociedade de massas, em que um evento... criado para atender a uma necessidade expressiva específica de um grupo é preservado e transmitido através de um circuito próprio, é transformado em espetáculo para consumo de outro grupo, desvinculado da comunidade de origem”. (Carvalho, 2010, p. 47)
Assim sendo, o samba de roda, a capoeira e as cerimônias de candomblés
viraram produtos folclóricos vendidos como lembranças aos estrangeiros. Porém, estas
práticas ainda conseguem, de certo modo, manter algum sentido de resistência e
valorização da comunidade negra.
Na década de 1970, em plena ditadura, Salvador vivia um clima de
efervescência na luta pela resistência negra. De acordo com Motta (2009, p. 46), em
1974 é fundado o Bloco Negro Ilê Ayê o qual, na busca por desenvolver a autoestima do
povo negro baiano, contribuiu na revelação de músicos e dançarinos negros.
Seguidos pelo impulso do Ilê Ayê surgiram outros importantes blocos entre os
quais não podemos deixar de citar, como o bloco afro Malê Debalê, originário de
Itapuã; e os blocos de afoxés como Os Filhos de Gandhi e o Badauê, que conduziam
aproximadamente seis mil pessoas (Ibidem, p. 47). Estas manifestações culturais deram
visibilidade e reconhecimento social e político aos afrodescendentes baianos,
preparando o terreno para um novo ciclo de afirmação da cultura negra e luta contra o
racismo.
12 Termo utilizado por Antônio Risério para nomear o fenômeno dos blocos afros e afoxés no carnaval da Bahia observado a partir dos anos de 1970 (MOTTA, 2009, p. 14).
49
Nesse contexto, Tânia Bispo inicia sua carreira como dançarina no grupo
folclórico do SESC (Serviço Social do Comércio), com o professor Raimundo Bispo
dos Santos, conhecido como Mestre King, e depois, ela se profissionaliza na Escola de
Dança da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Numa entrevista concedida para este
trabalho, Tânia Bispo comenta, porém, que quando entrou na Escola de Dança, houve
um choque ao se encontrar com uma escola que era totalmente voltada para culturas
estrangeiras, ou seja, as técnicas de dança que a escola propunha eram todas de origem
europeia e americana.
Vale esclarecer, que neste trabalho não nos focaremos na história da Escola de
Dança da UFBA, nem tampouco em suas referências e percursos no campo da dança.
Apenas vamos apontar para as informações mais relevantes que revelam as
circunstâncias nas quais Tânia Bispo foi construindo seu modo de dançar, e
especialmente, de manifestar artisticamente as danças dos orixás.
2.2. A universidade. Dança de qual história?
Conforme Motta (2009, p. 33), a ‘Escola de Dança’ da UFBA, fundada em 1956,
tem deixado importantes marcas ao longo da história da dança no Brasil, já que, além de
ser a única escola de dança de nível superior no país em suas primeiras décadas de
existência, sempre colaborou especialmente na consolidação da dança como área de
conhecimento. No início da Escola, a dança só podia ser pensada em referência a
Europa ou aos Estados Unidos: a dança clássica ou as danças modernas como o
expressionismo alemão e as técnicas americanas de Martha Graham. Essas últimas,
muito em voga naquela época, respondiam às circunstâncias daqueles que viviam no seu
lugar de origem, com características que nada tinham a ver com as da Bahia, nem do
Brasil. Em palavras de Motta: “passávamos do convívio cultural dividido entre as visões
ameríndias, luso-ibéricas e africanas para uma expressão de um pós-guerra de uma
guerra acontecida numa Europa em que os habitantes da província soteropolitana mal
tinham ouvido falar”. (Ibidem, p. 32)
No programa curricular da Escola, todas as disciplinas “práticas" trabalhavam
técnicas corporais importadas da Europa e Estados Unidos, como o balé clássico, a
dança moderna, principalmente a técnica de Martha Graham e as danças de caráter. Só
50
contava com uma disciplina chamada ‘Danças Folclóricas’ onde podia conhecer-se algo
da cultura local como o samba de roda, a capoeira e o maculelê,... (Ibidem, p. 33)
Assim, Tânia Bispo se encontrou numa disciplina chamada ‘Improvisação’, com
a dificuldade de improvisar quando lhe era cobrada uma linguagem própria. A
dançarina comenta que “não sabia mais o que fazer desse corpo, porque já tinha perdido
a língua própria”. Ela não sabia se falava a sua língua matriz, sua ancestralidade, não
sabia se falava a linguagem que era desenvolvida na Escola de Dança na época, como a
dança moderna e o balé clássico, ou a linguagem que era a dança afro. (Bispo,
entrevista, 2011)
Numa entrevista prestada a Motta, Tânia Bispo relata que ela sentia dificuldade
para executar as técnicas da dança moderna e principalmente do balé clássico. Mesmo
assim, os critérios da Escola para qualificar as técnicas curriculares eram muito rígidos:
“um corpo que não conseguisse realizar adequadamente estas técnicas, desconsiderava a
aluna como habilitada para dançar” (MOTTA, 2009, p. 55). Porém, Tânia Bispo afirma
que “seu corpo negro, de forma orgânica dançava no dia-a-dia, rebolava no subir e no
descer da ladeira, entrava no samba de roda em qualquer esquina e isso determinava o
seu padrão corporal. Acompanhava a charanga, entrava no samba de partido e tudo isso
não era somado e nem considerado na Escola”. (idem, p. 55)
A professora Conceição Castro13 estava a cargo da disciplina acima mencionada
na qual Tânia Bispo se encontrou em conflito. Quando ela ouviu o questionamento da
aluna, desafiou-lhe que então improvisasse com toda sua história pessoal: “pesquise
como é esse movimento no seu corpo. Como ele se traduz? Como você pode trazê-lo do
seu interior para expressá-lo com o seu próprio sentimento sem ferir a sua história, sem
ferir as suas identidades. Preste atenção ao que lhe move e porque” (segundo
depoimento de Tânia Bispo a MOTTA, 2009, p. 56).
Conceição Castro já vinha percebendo essas dificuldades dos alunos negros que,
embora fossem muito bons dançarinos nos seus contextos e muitos dançavam nos
blocos afros e outras manifestações culturais, entraram numa escola que lhes impunha
técnicas corporais que nada tinham a ver com sua história. Mais uma vez, os negros se
encontravam em condição de desvantagem diante dos alunos brancos que já traziam
formação em balé ou dança moderna.
13 Maria da Conceição Castro Franca Rocha. Mestre em Educação, hoje aposentada, pertencia ao quadro
docente do Departamento de Teoria e Criação Coreográfica da Escola de Dança da UFBA.
51
A professora Conceição Castro tomou essa crise de Tânia Bispo como
disparadora para conformar um núcleo que pesquisasse os princípios básicos da postura
de um corpo negro e que valorizasse o conhecimento dos alunos afrodescendentes.
2.3. Odundê: novo ciclo de um povo
O grupo Odundê, surge no ano 1981, com um projeto de pesquisa nomeado
“Estudo do movimento na Dança Afro-brasileira”, o qual propunha aproximar as
tradições e influências culturais africanas ao movimento contemporâneo (BISPO, 2004,
p.11). Motta relata a respeito, que o grupo buscava configurar uma dança que
‘encarnasse’ as formas de viver, trabalhar, sofrer e celebrar da comunidade negra em
suas diferentes relações com a sociedade baiana e com o mundo. (MOTTA, 2009, p. 52)
Percebe-se então, que o grupo tinha duas pretensões muito ousadas para a época. Por
um lado, buscava pesquisar esta dança, cheia de tradições e simbolismos
afrodescendentes, dentro de um contexto acadêmico onde até agora só contemplava as
danças importadas dos países hegemônicos. Ao mesmo tempo, se interessava em
estudá-las com uma abordagem contemporânea. Nas palavras de Motta (Ibidem): “Essa
dança deveria liberar dimensões ocultas que revelassem, não apenas no aspecto
coreográfico, mas no próprio corpo dos dançarinos, identificações com a resistência,
com seu imaginário e desejos contemporaneamente comungados”.
Como consequência das pesquisas em sala de aula, o grupo começou a compor
um espetáculo que levava o mesmo nome. Sobre este processo, Tânia Bispo lembra que
se estudava como era a postura do corpo que dança, quais eram os pontos de energia
desse corpo, ou seja, pesquisavam os blocos musculares necessários para que o corpo
transmitisse um conhecimento de modo que o espectador não precisasse dizer: “a! é
Iansã! é Oxossi! é Oxum! mas sim reconhecer uma guerreira, uma mulher sensual. Vê-
se só a tradução e deixa-se o orixá no candomblé”. (BISPO, entrevista, 2012)
Podemos dizer, seguindo Motta (2009, p. 71), que o grupo Odundê buscava
abandonar o padrão ocidental e estereotipado da dança afro da época, atendendo às
informações que estavam ocultas até para eles próprios e que emergiam no processo da
criação. O projeto de Odundê foi apresentado e aprovado no Departamento de Teoria e
Criação Coreográfica e, a partir de 1981, o designam como um dos grupos oficiais da
Escola de Dança da UFBA. (Ibidem, p. 72)
52
Odundê, em yorubá, significa: Odun – destino de um povo, ano novo – e dê –
tempo, vida nova, novidade. Ou seja: nova era, novo ciclo que se inicia (Ibidem, p. 60).
Seguramente Odundê significou um novo ciclo para a dança em Salvador e para a
Escola de Dança. É evidente que este grupo abriu um horizonte para suas integrantes.
Odundê continuou realizando vários espetáculos e apresentações até 1995, com
mudanças na direção, no elenco e no processo de criação dos espetáculos. Tânia Bispo
permaneceu dançando e participando durante todo esse percurso e afirma que ainda
continua dançando a mesma proposta.
2.4. Omi Olorum, outro fluir com o público
Tânia Bispo trabalha no Serviço Social do Comércio – SESC/ Salvador, num
projeto voltado à valorização das tradições da cultura regional, através de aulas de dança
afro, dança folclórica, criação e execução de espetáculos (BISPO, 2004, p. 11). Neste
marco, a professora dirigiu o espetáculo “Omi Olorum”, que ficou em cartaz durante
oito anos no ‘Teatro SENAC Pelourinho’, em Salvador/ BA.
É interessante ressaltar como esta obra, apresentada no lugar mais turístico de
Salvador, conseguiu se diferenciar do típico espetáculo folclórico que sempre alimenta
uma imagem do corpo afro-americano construída pela indústria do turismo. Em palavras
de Carvalho (2010, p. 51): “o processo de “espetacularização” coloca artistas populares
na condição de objeto: deverão apresentar-se, alterando as bases de seus códigos
específicos, para deleite de espectadores de classe média, em seus momentos de
consumo, de lazer ou cultura de turismo”. O autor acrescenta, a respeito deste processo,
que o público também torna-se objeto pelos mesmos agentes que contratam os artistas,
produzindo assim, uma estrutura controlada pela indústria do entretenimento ou pela
ordem política que contrata o espetáculo. (Idem, p. 51)
Porém, Tânia Bispo logrou afastar-se deste lugar quase inegociável entre o
turismo e o espetáculo, atendendo ao processo criativo e tratamento estético de sua obra.
A artista explica que “Omi Olorum” era um espetáculo que já trazia uma pesquisa por
trás. Os dançarinos do elenco desenvolveram um trabalho de exploração com o
elemento água (omi), sua simbologia ritualística e seus arquétipos. Assim, as danças dos
orixás já não eram aqueles orixás montados, como é montado no candomblé, era um
trabalho artístico diferente nesse contexto. Esta sutileza no modo de abordar a criação
53
da obra era muito perceptível pelo público. A partir de “Omi Olorum” a diretora
ganhou importante visibilidade e reconhecimento e recebeu várias propostas para dar
aulas para grupos estrangeiros.
2.5. Os riscos de traduzir
As diversas experiências de Tânia Bispo como dançarina e pesquisadora do
grupo Odundê, como diretora da obra Omi Olorum e como professora, especialmente de
grupos de estrangeiros de diversas partes do mundo, lhe promoveram trocas de diversas
culturas por meio da dança, reafirmaram certos pressupostos e lhe permitiram superar
dificuldades na tradução desta dança.
Como foi explicitado no primeiro capítulo, para Souza Santos, a tradução
pretende “partilhar o mundo com quem não partilha o nosso saber ou a nossa
experiência” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 272). Este é um trabalho argumentativo, para
o qual o autor nos apresentou três dificuldades principais: as premissas de
argumentação, que passam a serem argumentos por não serem óbvias para a outra
cultura; a diferença de língua e a tradução dos silêncios. Dando prosseguimento,
pretendemos iluminar a forma como a professora conseguiu lidar com tais dificuldades.
2.5.1. A construção de lugares comuns
As premissas de argumentação sustentam o ‘lugar comum’ ou ‘topoi’ no
consenso de uma cultura. Ao traduzir para outra cultura, a qual não tem como óbvio
esse lugar comum, estas premissas de argumentação passam a serem os argumentos da
tradução, enquanto vão se construindo os lugares comuns apropriados à situação de
tradução (Idem, p. 272).
No trabalho de Tânia Bispo, segundo as entrevistas concedidas, conseguimos
destacar três topois ou lugares comuns que a professora foi construindo na zona de
contato da tradução.
O primeiro topoi se constrói a partir do entendimento das diferenças dos dois
espaços, o sagrado e o artístico. Tânia Bispo afirma que o sagrado tem fundamentos que
não precisam ser trazidos para o espaço artístico. “A diferença de você trazer o sagrado
para sala de aula é você não oportunizar ao outro entrar em contato com o sagrado
dele”. Para a professora, o sagrado ritualístico é diferente do ritual da sala de aula, o
54
qual não deixa de ser ritual, mas vai conectar com outra parte desse corpo, a parte do
intelecto, a parte da transformação. E acrescenta:
“Perceber a diferença do corpo de uma manifestação de um orixá, para o corpo de uma manifestação de um artista é muito importante, porque o artista tem a capacidade de transcender, mas transcender com a consciência, e o orixá transcende, mas num processo dentro de um fundamento que isso aí eu não sei explicar, porque aí eu, como filha de orixá, eu sei que transcendo, mas não sei aonde é que eu vou, nem onde é que fico.” (entrevista, 2012)
Figura 2. Tânia Bispo ensinando os elementos simbólicos usados nos rituais do Candomblé a um grupo de dançarinas. Foto: Arquivo da autora
A partir da própria vivência como artista e como religiosa, a dançarina logra
separar os dois estados corporais com muita clareza. O corpo do dançarino é um corpo
consciente que tem a capacidade de transcender, de traduzir uma imagem, uma música,
um movimento, um símbolo, a partir de todo o conhecimento que traz que possa
contribuir nessa transformação. No espaço sagrado, pelo contrário, Tânia Bispo explica
não se transforma nada, porque há que seguir os fundamentos. Não se pode chegar ao
candomblé pra dizer que se vai transformar o movimento de Iansã, ou vai se
transformar um padê de Exu, ou uma comida de orixá; lá se tem que seguir a tradição.
55
Porém é importante ressaltar aqui, que mesmo que no terreiro de candomblé se
pretenda manter o que está codificado entre os pares, não cabe afirmar que é original,
está também em permanente evolução. Ao longo do tempo, é possível perceber
mudanças. Se ainda persiste até hoje é justamente pela sua natureza não imutável.
Existem transformações, mas também existe permanência. As mudanças são mais lentas
porque tende a manter a tradição.
O segundo topoi parte do pressuposto de que todos nós somos filhos da natureza
e todos temos algum tipo de relação com ela. Como foi explicado no capítulo anterior, o
corpo humano, para a cultura yorubá, “é um microcosmo e nele estão contidos todos os
elementos e forças da natureza que, distribuídos harmoniosamente pelo corpo, explicam
a sua mitologia” (ZENICOLA, 2001, p. 84). Esta relação do corpo com a natureza, por
sua vez, implica que há diversas combinações dos elementos naturais em cada corpo, ou
seja, certas energias da natureza predominam num corpo e outras ficam mais reservadas.
De acordo com essa combinação, cada pessoa se condiciona a exercer determinadas
funções na sociedade.
A respeito disso, Juana Elbein dos Santos, no seu livro “Os Nagô e a morte”
(2007 (1986), p. 203), aponta que, para o povo yorubá, o ser humano, como todos os
seres, é constituído por elementos coletivos, representações míticas, ancestrais ou
antepassados (de linhagem ou família) e por uma combinação de elementos que
constituem sua especificidade, ou seja, sua unidade individual.
Esta ideia do corpo constituído por uma variedade de elementos materiais e
abstratos, de vários tempos e planos, contribui a entender a relação que sugere Tânia
Bispo entre os elementos da natureza e os diferentes estados emocionais do corpo.
Conforme a dançarina, todos nós podemos reconhecer-nos nas energias da natureza
quando temos momentos mais calmos ou mais bravos, quando vivemos situações que
nos tornam mais guerreiros ou outras em que estamos mais doces ou mais maternais e
etc. Todos esses elementos da natureza, por conseguinte, também estão relacionados
com os arquétipos que estão em cada um e que estão no mundo. Segundo Tânia Bispo
(2011), sempre temos algum arquétipo mais imponente, que tem haver com as
qualidades mais características de cada um. E os demais estão num pano de fundo lhe
dando apoio.
Deste modo, a dançarina admite que, mesmo que para esta dissertação tenha sido
pedido para ela dançar a partir do mito de Omolú e Iansã, e ela leu e se deu um tempo
56
para pensar e sentir, na verdade, quando o atabaque soa, conecta com um ponto nela que
é o arquétipo de Omolú que está dentro dela, e conecta um ponto nela que é o arquétipo
de Iansã que está nela. Que tem momentos da vida dela que lhe dizem: Nossa! Que
brava você! (entrevista, 2012)
O terceiro topoi se baseia na preparação do corpo que, para dançar, não precisa
de técnica nem de cópia de passos, mas sim é necessário um trabalho de sensibilização
de cada corpo com seus elementos da natureza e seus arquétipos, respeitando a
individualidade e diferenças de cada um.
No espaço sagrado, segundo Tânia Bispo, o ‘povo de candomblé’ não tem outra
preparação corporal para dançar que os fazeres cotidianos como: lavar, engomar, mexer
panela de carurú, fazer vatapá, bater martelo quebrando osso de animal, varrer,
vasculhar, etc. (BISPO, entrevista, 2011) É a partir do próprio cotidiano do candomblé
que cada corpo se conecta com as gestualidades das danças sagradas.
No espaço artístico da sala de aula, Tânia Bispo, então, não quer impor uma
técnica para dançar, porque opina que se ela impõe uma técnica vai levar o outro a um
lugar que só é comum a ela, mas não é comum para o outro. E acrescenta: “Assim eu
estou impondo o que eu quero para esse corpo e eu acredito que este corpo tem que vir
com o que ele entende e responde”. (BISPO, entrevista, 2012)
A professora prefere preparar o corpo a partir de uma sensibilização com ritmos,
cantos e simbologias do universo dos orixás, para que cada um faça as conexões com
suas próprias histórias, seus mitos e seus arquétipos. Cada corpo consciente tem a
capacidade de traduzir um movimento, uma música ou uma sensação a partir de alguma
imagem que está no seu inconsciente. Tânia Bispo afirma que essa transcendência é a
grande arte, porque já não é cópia do outro corpo, mas é um autoconhecimento deste
corpo a partir de sua relação com seus elementos. E assenta que “essa imitação nunca
chega próxima do que é. Porque a gente não vai ser o que não é. O que é, é o que lhe
pertence... Então, esse corpo que tem um conhecimento, que escuta uma voz, que sente
alguma coisa, ele pode sim traduzir”. (Ibidem)
Mesmo assim, a dançarina adverte que, para dançar um bonito ijexa14, é
necessário ter um bom trabalho de ombros. Mas não necessariamente se precisa entrar
14 Ritmo para saudar e dançar os orixás das águas, especialmente para Oxum.
57
num processo técnico, o importante é que cada um descubra esse ritmo no seu corpo e
respeite a individualidade.
“É muito mais fácil a gente deixar que o outro conecte com o que é seu, do que
a gente dar emprestado.”(Ibidem, 2012)
Figura 3. Curso com Tânia Bispo Salvador, 2009 Foto: Arquivo da autora
Tânia Bispo afirma assim que cada corpo vai fazer diferente, porque cada corpo
fala diferente, e essa diferença tem que ser valorizada. “Senão seria cortar uma cabeça e
colocar outra, e colocar bonequinhos em sala de aula fazendo igual. Mas ele nunca vai
fazer igual.” (Ibidem, 2012)
Esses três topois ou lugares comuns que a professora foi construindo ao longo da
sua experiência ajudam a esclarecer também outra questão que atravessa esta pesquisa,
que é entender que a gente não dança orixá, a gente dança a história da gente. Portanto,
não é possível nomear a nossa dança como “Dança ‘de’ Orixá”, porque a dança dele é
ele quem dança na cerimônia de candomblé. Em todo caso, é a nossa criação inspirada
nas danças deles, traduzindo sua simbologia e seus arquétipos.
58
2.5.2. A dificuldade da língua, a oportunidade do silêncio.
Tânia Bispo se encontrou em várias ocasiões na tarefa de fazer um trabalho de
tradução da cultura afro-brasileira com grupos de estrangeiros; alguns que falavam
somente inglês. Como ela não fala inglês decidiu desenvolver um método através de
uma linguagem que é oriunda do candomblé: o silêncio.
Tânia Bispo, então, não fala nas aulas. Afirma que o conhecimento que você
traduz através das palavras não o é o conhecimento que precisa para este trabalho. E
acrescenta: “se eu falo nesse momento, eu estou induzindo a outro a chegar onde eu
quero. Mas eu não quero que ele chegue a onde eu quero, quero que ele chegue onde ele
quer chegar, onde ele pode chegar” (BISPO, entrevista, 2011). Nestas aulas, portanto, a
professora aspira dialogar com um conhecimento que está adormecido e que vai se
descobrindo, acionando e revelando aos poucos, a partir de uma sensibilização. Então
não interessa a língua que fala o outro.
Como vimos no capítulo anterior, a maior dificuldade neste tipo de tradução não
é a linguagem verbal, mas a linguagem corporal constituída por toda uma cosmovisão
africana. Assim, Tânia Bispo comenta que cada grupo que recebia tinha dificuldade de
entender uma linguagem que era comum para pessoas que estavam inseridas naquele
contexto. Então, de acordo com o tipo de dificuldade que se encontrava, ela ia inserindo
propostas através de um som, de um ritmo, de um canto, de um cheiro ou de um objeto,
a fim de criar independência desse corpo para ele encontrar o seu ponto de apoio, o seu
ponto de conexão com o que ela estava propondo. Esse processo era desenvolvido
lentamente, sem muita cobrança de forma, do resultado final e sim uma cobrança de um
resultado pessoal.
Esta questão lembra a sugestão de Greiner a respeito à tradução corporal que
possa abranger àquilo que não há como pronunciar. Uma fala secreta e indizível que
habilita à criação. A autora alude que esse silêncio “sempre pode ser traduzido como um
querer-dizer”. (GREINER, 2010, p. 15)
Quando a zona de contato da tradução é multicultural, como neste caso, Souza
Santos nos alerta do risco de que a argumentação seja conduzida pela língua colonial, a
qual muitas vezes tornam impronunciáveis aspectos centrais dos saberes e práticas
oprimidos na zona colonial. (SOUZA SANTOS, 2002, p. 272). Deste modo, vemos
como a professora tenta esquivar ou superar esta dificuldade ao tomar certas práticas do
59
universo religioso de candomblé para propor um modo diferente de relacionamento
entre o corpo e o ambiente, construindo uma linguagem corporal baseada em conceitos
da cultura afro-yorubá.
Por outra parte, Tânia Bispo se baseia em que todos nós temos alguma
experiência com os elementos, a questão é como você conectar com eles. Assim, ela diz
a respeito: “... eu não preciso contar como é um raio, porque todo mundo já passou pela
experiência de ter visto. Nem preciso contar como é a energia de uma água batendo no
seu corpo ou de entrar numa mata e sentir o cheiro das folhas, porque todos alguma vez
passaram por essa experiência”. Então quando cada um conecta com todos esses
elementos, conecta também com seus elementos internos e aí automaticamente se
transcende no símbolo. “A gente realmente traduz toda nossa relação e sentimento
através das imagens arquetípicas”. (BISPO, entrevista, 2011)
Neste sentido, no momento da dançarina criar sua tradução corporal do mito de
Omolú e Iansã, ela parte para fazer as seguintes perguntas: Como é que eu posso
compor a minha história, junto com a história de Omolú, de Iansã? O que é que Iansã
tem a ver comigo? O que é que Omolú tem a ver comigo? Esse homem que tem o poder
de transformar, de dar vida, tanto quanto pode tirá-la. Como todos. Que é que ele pode
transformar na minha vida? Que símbolo é esse que o meu corpo faz, e onde ele está?
O que o vento vê... (o silêncio da peste)
Inquieta. Vibrante. Brava.
Gira. Ora é deusa, ora é bicho. Gira.
Olhar de raio,
O que é o que não se pode ver?
Olhar com as costas, com o quadril, com as mãos.
Gira e é outra, sempre é outra.
Quita sua pele, solta. Solta e muda.
O corpo se cobre e descobre num constante movimento.
Gira em redemoinhos.
Olha o invisível, o inadmissível, o inapreciável.
60
Olha e incita a ser olhada.
Ri dela e do que vê.
Corpo em tempestade não tem nada que temer.
Mãos de garras, carne indigesta. Acolhe-se, encolhe-se, funde-se dentro da terra. Grito
emudecido que apenas alguém percebe. Não há rosto nem palavra. Não é para dizer,
nem para ver. A dor solitária bate na terra. Um pé nos olha: Quem se diz saudável?
Quem não tem nenhuma chaga queimando a pele? Terra dentro da terra, coberta de
terra. A peste não pede licença. Mas nós.15
Figura 4. Manifestação artística de Tânia Bispo, Salvador, 2012. Foto: Arquivo da autora
Tânia Bispo chegou à hora marcada para a Escola de Dança da UFBA com os
percussionistas: seu filho Ícaro Bispo e Fernando Trancinha16, com quem trabalha há
muitos anos. Estava vestida com um macacão de algodão branco e um tecido na cabeça
15 Neste trecho da pesquisa, houve uma necessidade da pesquisadora de fazer uma tradução poética da dança de Tânia Bispo, no intuito de registrar sensações e percepções que escapam do discurso acadêmico, mas que são constitutivas desta escrita. 16 Além de tocar sempre com ela, os dois são religiosos e também tocam os atabaques nas cerimônias de Candomblé.
61
de cores amarela, laranja e marrom. Também trazia outro tecido igual que colocou
como saia para dançar.
Antes que os tambores começaram a soar e antes que a câmera estivesse pronta,
subitamente, Tânia Bispo solta um giro e a partir daí, um meneio constante invade seus
ombros e seus quadris. Os músicos olham o primeiro movimento dela e logo começam a
tocar. Tânia Bispo começou dançando o vento, embora no mito apareça ao final.
A dançarina vai transitando por diferentes estados corporais a partir de
gestualidades e simbologias que ela traduz do orixá Iansã. Ao longo da dança é muito
notável o trabalho criativo com os arquétipos deste orixá. Tânia Bispo descreve a Iansã
como uma mulher guerreira, sensual e enérgica, que também traz uma boa gama de
acentos masculinos. “O corpo dela se transforma como se transforma também o tempo
numa tempestade. Ao mesmo tempo em que você vê um raio surgir no céu, depois fecha
e vem aquela sensação de limpeza e de calmaria. Mas em qualquer momento ela pode
estar explodindo.” (BISPO, entrevista, 2012)
Figura 5. Manifestação artística de Tânia Bispo, Salvador, 2012. Foto: Arquivo da autora
62
Assim, na dança é possível perceber como cada vez que ela solta um giro, ela se
transforma e nunca volta ao mesmo estado. São giros sobre um pé, com braços e pernas
dobradas que dão a sensação de desequilíbrio. Porém, é um modo do corpo se organizar
que lhe permite manter um controle naquele desequilíbrio.
Nessas transformações ela é uma deusa e em determinados momentos ela vira
um bicho e fica brava, mas também é uma fresca borboleta. Seu rosto se oculta por
detrás dos dedos que se movem em intermitência. A energia do corpo se traduz no
olhar, um olhar que se espalha na corporalidade, no som, no ar.
Figura 6. Manifestação artística de Tânia Bispo, Salvador, 2012. Foto: Arquivo da autora
Num momento da dança os braços se elevam rígidos, como uma faca, fazendo
gestos de cortes. Logo corta algo profundo lá embaixo, talvez seu próprio parto, e volta
a ficar em pé, com as mãos na cintura, olhando para frente ameaçadoramente. Tânia
Bispo comenta que no momento que Iansã esta brava ela não enxerga a quem ela fere, e
a quem ela arranca a cabeça, então depois de ela ter parido, ela cortou a continuidade.
63
Isso sugere à dançarina a sensação de ‘única’, de ser uma coisa só. Só ela gira entorno
dela mesma. Ela transforma por si só.
Tânia Bispo explica que este orixá tem muita energia na língua, na fala do
corpo, na expressão. Dá para perceber na dança, como ela sempre dirige o olhar para
alguém, como para o publico, ou neste caso para a câmera. Há um momento em que ela
se aproxima da câmera, séria e olhando sempre de frente. Quando chega bem perto da
câmera, a percussão acaba e Fernando Transinha, o percussionista, começa a cantar para
Iansã e entram com outro toque.
Xê umbêlê xê umbêlê éléni xáxerê
Xê umbêlê xê umbêlê éléni xáxerê17 (OLIVEIRA, 2009, p. 118)
A artista começa a fazer um gesto de abrir e descobrir algo que está à altura do
seu rosto. Logo, dá um giro e fica de costas para a câmera com as mãos na nuca com o
mesmo movimento de mover algo e começa a girar. Movimentos leves, gestos de algo
que continua no seu quadril, pode ser uma saia, recolhe o tecido do chão e o pendura do
ombro e vai andando para trás, olhando (para a câmera). Olha e ri. Brinca com o tecido,
o enrola no pescoço, o estende na frente do seu rosto, e vai espiando detrás dele.
Novamente, a percussão acaba e muda de toque; desta vez começa o opanijé,
ritmo específico de Omolú, o orixá da terra. Tânia Bispo se ajoelha, tira os brincos,
anéis e pulseiras, e coloca-os no chão. Logo, apoia a cabeça na terra, rola e volta a
apoiar a cabeça agora sobre as mãos que estão no chão. Numa entrevista, a dançarina
relata que quando vê esse orixá no terreiro, ela sente uma necessidade de reverenciar ou
de se encolher para entender o que acontece dentro do seu ventre, “ele me traduz a
minha transformação interna”.
A maior parte do tempo, a dança sucede no plano baixo deitada ou ajoelhada
com o peito e rosto no chão. Nesta dança, Tânia Bispo entra num estado corporal como
doente, por vezes tenso, outras num estado pesado. Um corpo frágil, sempre caindo. Por
vezes, aparece um impulso de querer sair desse lugar, mas de um modo ou de outro, o
17 Cantiga em Iorubá com tradução à fonética portuguesa, que se traduz: “Proteja a nossa casa, proteja a nossa casa (Oyá), Senhora para quem nós brincamos”. (OLIVEIRA, 2009, p. 118)
64
próprio corpo o impede. Os momentos que o rosto se descobre são mínimos e tão
fugazes quanto impactantes.
A dançarina confessa que dançar Omolú para ela é muito difícil porque ele é um
orixá muito forte, que traz um mistério debaixo de toda sua indumentária. Vale lembrar
que Omolú, no mito, traz o corpo coberto por uma roupa de palha. Segundo Tânia
Bispo, por mais que se descubra quem está por trás da palha, nunca vai se atingir a
profundidade que tem este orixá.
Figura 7. Manifestação artística de Tânia Bispo, Salvador, 2012. Foto: Arquivo da autora
Ainda deitada com o peito no chão, a artista clava uma mão nas costas, clava a
outra e estica uma perna na frente. O dedão dessa perna começa a avançar pelo solo ao
redor do corpo fazendo-o girar no seu eixo. Depois começa a rolar pelo chão e as mãos
nas costas parecem querer empurrar o corpo para cima, como se algo dentro das costas
estivesse lhe impacientando, mas a cabeça e os pés continuam colados no solo.
Vários mitos contam que por debaixo da palha Omolú tem seu corpo
transformado, tem a doença, tem a peste. Porém, Tânia Bispo sente que há algo muito
65
mais profundo que todo isso, porque a doença, todos os corpos têm. Ela, então, não quer
falar de doença senão de diferença: todos os corpos trazem suas diferenças.
Na dança de Tânia Bispo não há palha, mas o corpo na maioria do tempo está
fechado em contato com o chão, ocultando o rosto e o peito. Entre os poucos momentos
que o rosto se revela encontramos uma clara relação com o silêncio. Interessa-nos aqui
descrever três momentos. O primeiro deles dura apenas um segundo. A dançarina está
sentada com a cabeça no chão e a mão direita esticada na frente e os dedos que se
dobram como garras. No instante que ela levanta a cabeça e abre a boca enorme, os
braços fazem o gesto de abrir a boca maior do que o rosto. Em menos de um segundo,
fecha e volta com a cabeça para o chão.
Num outro momento, ela toma o rosto como se fosse uma mordaça. Sempre
sentada ou ajoelhada, gira e vai para o chão. A mão de mordaça vai arrancando algo do
rosto até que se mostra a boca contorneada pela mão. Logo a mão sai da boca com o
punho fechado como se tivesse arrancado algo (som, voz, palavra?). O punho fechado
bate no chão.
Figura 8. Manifestação artística de Tânia Bispo, Salvador, 2012. Foto: Arquivo da autora
66
Num terceiro momento, Tânia Bispo está deitada com o peito e a cabeça no
chão. Os braços rastejam pela frente da cabeça mostrando a palma de uma mão e o
dorso da outra. Uma mão pega o cabelo e levanta a cabeça mostrando o rosto, logo a
mão solta, e a cabeça cai com a frente no chão. Com a outra mão, faz a mesma coisa e
volta a cair, e mais uma vez repete a mesma situação.
Nesses três momentos que o rosto se revela, é possível perceber diferentes
modos em que o silêncio é traduzido. Segundo Souza Santos (2002, p. 273), uma das
principais dificuldades no trabalho de tradução é como traduzir o silêncio de uma
cultura para outra, já que cada saber e prática lhe outorgam um significado diferente. O
silêncio para a cultura africana está associado ao segredo, ao mistério. Omolú\Obaluaiê
é cumprimentado com a palavra yorubá “Atótó!”, que significa silêncio, em sinal de
respeito. E como conta Tânia Bispo, Omolú guarda um mistério embaixo da sua palha.
Esse segredo, isso que não se pode saber, também é a peste. Mas como explicava a
dançarina, a doença é a própria diferença. Então, o que se deve calar é a diferença de
cada um; que pelo fato de estar oculta se torna mais misteriosa e temida.
Figura 9. Manifestação artística de Tânia Bispo, Salvador, 2012. Foto: Arquivo da autora
No primeiro gesto a boca se abre num grito silencioso tão breve que fica a
sensação de dúvida se realmente aconteceu. No segundo momento, o rosto se mostra
67
amordaçado pela mão que logo tira algo da boca, o guarda no punho fechado e bate com
ele na terra. E no terceiro momento, a mão mostra um rosto já silenciado, como sem
vida. Podemos deduzir, então, que quando o rosto se mostra, também se revela aquilo
que está oculto. A palavra não dita, o grito silenciado, o corpo doente, a diferença.
Porém, o corpo consegue expressar seu grito através de batidas na terra com as
mãos e os pés. Assim, vemos como as mãos tomam uma perna que fica diante do corpo,
com a palma do pé em primeiro plano e um olho que se assoma por trás. Esse pé, logo
pisa com firmeza na terra e o rosto olha para o céu. Um dedo assinala também para o
céu e logo baixa e assinala a terra enquanto a cabeça também desce para o chão.
Começa uma fase de expressividade mais intensa, ou, melhor, menos silenciosa: dedos
que assinalam e mãos de garra. Punho fechado e pés golpeando na terra. Mãos batendo
em distintas partes do corpo, pisadas fortes no chão, batendo, soando.
Com o torso dobrado para embaixo, a cabeça pendurando e as mãos nas costas, a
dançarina dá dificultosos passos para frente, os pés vêm tortos e joelhos juntos. E mais
uma vez dá pisadas fortes no chão, batendo com tanta força que corpo se balança e o
quadril e a cabeça se sacodem.
Para Tânia Bispo, esta dança implica a própria transformação do corpo, tanto
externo como interno, como a transformação que sofre o milho para pipoca. É um
expulsar e um encolher, tem alguns que não abrem e outros que se abrem.
No final, ajoelhada, o corpo se abre para cima e as mãos se sacodem na frente do
peito e volta a se fechar com a cabeça para embaixo. Outra vez, se abre sacudindo as
mãos no peito e volta a se fechar. Com o corpo acolhido, vai trazendo as mãos e se
relaxa no chão. “É como se o corpo tivesse realmente encolhendo, é um retorno”.
(BISPO, entrevista, 2012)
Um aspecto significativo na manifestação artística de Tânia Bispo está no
diálogo permanente entre a dança e a percussão. Uma vez que foram esclarecidas as
diferenças entre o contexto artístico e religioso, podemos encontrar rasgos interessantes
no ritmo geral da obra que lembra as cerimônias de candomblé. Os percussionistas vão
realizando um toque, até que num momento acabam e deixam um silêncio. E logo
começa com um novo ritmo, que, às vezes lhe antecede a um canto. Isto outorga à obra
um ritmo cíclico, já que quando parece que vai a finalizar, começa um novo toque e o
68
corpo se ativa com outra energia, de acordo ao ritmo que está soando. Nesta dança
mitológica, os diferentes toques percussivos de cada dança sugerem o estado corporal
necessário para a execução da mesma. Como foi assinalado no capítulo anterior, o ritmo
sugere uma energia particular que, para atingí-la é indispensável “silenciar” certas
partes do corpo para que outras possam se movimentar.
É fácil perceber, nesta manifestação artística, como a dançarina move o corpo a
partir dos seus arquétipos, seus gestos e de seus próprios mitos pessoais. Nesse sentido,
mais do que falar da energia do vento e a terra, a dança de Tânia Bispo me sugere
chamá-la “a guerreira e a peste”. Podem-se destacar características bem diferenciadas de
cada uma; na dança da guerreira, o corpo mudava de estado constantemente, vemos que
na dança da peste, se manifesta um mesmo estado corporal, frágil e doente, que apenas
muda de intensidade. A guerreira olha sempre para alguém, desafiando, brigando ou
rindo; o doente nem sequer mostra o seu rosto, apenas manifesta seu silencio. A
guerreira explode em tempestade, a peste sacode-se pela febre. A peste não tem medo
da morte. A guerreira não tem medo de olhar para a peste.
69
CAPITULO 3
ALÁBASE, O LABUTAR DE ISA SOARES
Figura 10. Performance ‘Orixás de la Tierra’, Buenos Aires, 2011. Foto: Javier Infante
Este capítulo trata da dança de Isa Soares, da forma como a artista consegue
traduzir informações oriundas do universo mitológico dos orixás para uma dança que
possa transitar criativamente pelos acontecimentos da vida pessoal. O estudo é a partir
da dança de dois orixás na sua relação mítica: Omolú/Obaluaiê, a energia da terra, e
Iansã, a energia do vento e do ar. A terra empestada, coberta por palha é desvendada
pela dança do vento. E no descobrir, a terra já não é aquela horrorosa que todos
achavam, mas é de uma rara beleza.
Sob a proposta de tradução de Souza Santos, a qual cancela a possibilidade da
existência de uma teoria geral, trazemos à luz os modos de Isa Soares se colocar com
sua dança na cidade de Buenos Aires, que fogem das monoculturas do saber, do tempo,
da naturalização das diferenças, etc. construídas pela razão capitalista. Porém, a
dançarina não deixa de buscar algum tipo de legitimação, já não em espaços que
requisitam adaptar a dança para obedecer à demanda do discurso colonizador da mídia,
70
mas em outros grupos e espaços com necessidades e situações compartilhadas, nas quais
pode se reconhecer.
Neste sentido, tentamos distinguir certos argumentos que a professora foi
estabelecendo nos seus percursos para fazer a tradução da dança. Tais argumentos
atendem à relação do corpo com a natureza, à gestualidade e às relações com os outros.
Pela mesma via, a artista sugere dançar o xirê, um espaço tempo que permite transitar
diferentes instâncias da vida e acolhe aos diversos estados corporais. Como conceito, Isa
Soares escolhe como proposta Alábase (pronuncia-se alábasse), aquele que compartilha
uma tarefa, na qual a dança interage com outras práticas cotidianas que sejam feitas com
consciência de colaborar para uma vida melhor.
“Soy Maria Isabel (Isa) Soares. Nací en la ciudad de Maragojipe, cuna de los Maragós, aborígenes descendientes de los tupi-guaranís afincados en la zona del litoral de Bahia, Brasil. Hija de Iraildes Sousa Gomes (su nombre de soltera) y Fernando Bispo Soares. Soy la primera de 10 hermanos vivos. Llegué a la Argentina en la primavera del 1983 casada legalmente con un argentino de Bahia Blanca, residente en San Pablo en plena década del 70. El huía de la feroz dictadura militar que sufría el país en aquel entonces. Trabajaba como artesano en las calles como cualquier inmigrante. Yo huía de la soledad. En el camino dejé un trabajo, una carrera universitaria, una familia y amigos. Luego, irremediablemente me separé. Tuve un hijo. Eché raíces y me quedé en el país.”18 (SOARES, 2012, apresentação do blog pessoal)
Com essas palavras, Isa Soares se apresenta diante da sociedade portenha de
Buenos Aires, cidade cosmopolita da América do Sul que prefere se olhar no espelho
europeu. Se bem que a Argentina passou por processos muito similares que o Brasil e o
resto de América Latina a respeito à colonização e a inserção de milhares de africanos
trazidos como escravos, diversos mecanismos oficiais com objetivos sóciopolíticos
concretos se encarregaram de ‘invisibilizar’ a população negra enquanto se fomentava
uma massiva imigração europeia19. Desse modo, o mito da Argentina branca e
18 Sou Maria Isabel (Isa) Soares. Nasci na cidade de Maragojipe, berço dos Maragós, tribo originária do recôncavo baiano. Descendentes dos tupi-guaranis. Filha de Iraildes Sousa Gomes – seu nome de solteira e de Fernando Bispo Soares. Sou a primeira de 10 irmãos vivos. Cheguei a Argentina na primavera de 1983 casada legalmente com um argentino de Bahia Blanca, residente em São Paulo. Ele fugia da feroz ditadura que sofria seu país. Em plena década dos 70! Trabalhava como artesão nas ruas, como qualquer imigrante nessa época. Eu fugia da solidão. No caminho deixei um trabalho, uma carreira universitária e amigos. Logo irremediavelmente me separei. Tive um filho. Finquei raízes e fiquei no país. (Tradução de Soares) 19 “Os liberais da Argentina, no século XIX, tinham como objetivo fazer do país uma nação moderna segundo o modelo britânico ou francês, professando uma espécie de fé na superioridade das repúblicas europeias. E, para formar uma nação como as européias, precisava-se – segundo esta linha de pensamento – de gente como a européia. O território argentino, na visão dos pensadores com influência política nesse período, era escassamente povoado por
71
homogênea não encontrou resistência alguma e ainda sobrevive e se reproduz na
educação oficial, na mídia e nas relações sociais habituais.
A raça negra deixou de existir, quase misteriosamente, deste país delegando esse
‘problema’ ao Brasil. Tal como relata Dominguez, “em 1883, Sarmiento tinha
antecipado que, em 1900, se um argentino desejasse ver como era um negro, precisaria
ir ao Brasil (REID ANDREWS apud DOMINGUEZ, 2004, p. 17)”. E recentemente, em
1996, o então presidente Carlos Menem declarou num discurso nos Estados Unidos:
“Na Argentina não existem negros, esse problema o tem o Brasil” (HEGUY, apud
DOMINGUEZ, 2004, p. 22).
Porque será que esta mulher brasileira decidiu ficar nessa cidade onde ser negra,
dançarina e mãe solteira, irremediavelmente, a exporia aos mais negativos preconceitos
raciais e sexuais? De que modo a dança de Isa Soares conseguiu resistir e sobreviver às
discriminações sociais deste ambiente e encontrar um espaço de diálogo?
Palpar a dança
Hoje, Isa Soares reconhece que ter vindo para Buenos Aires foi uma falta de
paciência, uma falta de respeito com o próprio projeto pessoal que ela tinha: ‘ser
professora de inglês e português’. E explica: “priorizei a família... e voltei ao
analfabetismo... Intelectualizada, voltei a ser analfabeta, com um idioma que eu não
sabia ainda, eu tive que aprender... outra vez tudo, o ‘abc’ da vida. Com uma carreira
por atrás! sem o meu título, porque não era válido aqui” (SOARES, 2012, entrevista)
A dança aparece em Isa Soares como ‘um pedido do corpo dentro do desespero’,
e confessa que se ela fizesse outra coisa, nunca ia saber que seu corpo sabia tanta coisa.
A dançarina lembra que quando começou a pesquisar os orixás, apareciam-lhe
arquétipos que ela já sabia que tinha e que era a vida mesma dela que estava em jogo no
xirê20, mas acrescenta que não foi um processo muito feliz: “Eu fui sentindo cada um
“raças subordinadas” que condenavam o país a uma posição secundária no mundo, o que somente podia ser evitado com a imigração de europeus” (DOMINGUEZ, 2004, p.18) (...) “Como a imigração não produziu o “branqueamento” na velocidade esperada, o processo foi então acelerado por meios artificiais, recorrendo a categorias como a do ‘triguenho’ nos censos. A população negra estava desaparecendo no sentido de se tornar invisível, não no de deixar de existir” (Reid Andrews, 1989 apud, DOMINGUEZ, 2004, p 19). 20 Xirê é a ordem hierárquica na que aparecem nos orixás, num certo momento da cerimônia do candomblé, de acordo com as relações mitológicas e as funções sociais que representam.
72
deles, mas no meu processo de dor, não foi na alegria. Todo o meu trabalho foi gestado
assim.” (SOARES, 2012, entrevista)
Porém, as experiências da artista com os orixás se remitem a sua infância:
“Acompañé mucho a mi madre en sus andanzas por recobrar la salud. Por esta razón encontré desde temprana edad motivos para observar con curiosidad las danzas y las prácticas afro religiosas en mi lugar de nacimiento. Observé las danzas en sus formas asimétricas e híbridas, fundamentadas en los simbolismos de la cultura africana, así como la música, con sus diferentes sonidos y su particular polirítmia. Asistí a eventos tanto festivos como curativos con la misma entereza con la que normalmente lo hacen los chicos. Seguramente no los podía comprender del todo. Lo que sí podía advertir era el bien estar que sentía. Experimenté los éxtasis juveniles acompañados por estas imágenes. Estas vivencias echaron sus raíces y fueron fuentes idóneas capaces de reforzar mi interés por los temas que abordo actualmente. Estaba segura de que lo que pasaba por mi mente-cuerpo era importante y a mí modo lo atesoraba como tal. Observaba la dignidad, la fuerza, la destreza, la armonía y un sin fin de atributos y cualidades que intuía en aquellos cuerpos en movimiento. Ellos fueron mis referentes”21. (SOARES, 2012, blog pessoal)
Estes depoimentos da dançarina deixam perceber como o seu processo de
tradução da dança foi a partir e através das suas experiências de vida. A professora
conseguia transformar, num discurso, as coisas que lhe sucediam no dia-a-dia. A
questão era “fazer intelectual aquilo que passava por trás do gesto que sai do corpo
instintivamente”. Segundo Souza Santos, a tradução é um trabalho intelectual. O
tradutor cosmopolita precisa estar “fortemente enraizado nas práticas e saberes que
representam, tendo de uns e de outras uma compreensão profunda e crítica” (SOUZA
SANTOS, 2002, p. 271).
21 Acompanhei muito à minha mãe nas suas andanças para recuperar a saúde. Por esta razão na minha infância encontrei desde muito cedo, motivos para observar com curiosidade, as danças e as práticas afro-religiosas em meu lugar de nascimento. Observei as danças em suas formas assimétricas e híbridas, fundamentadas nos simbolismos da cultura africana. Assim como a música, com seus diferentes sons e sua particular polirritmia. Assití a rituais tanto festivos como curativos com a dignidade que normalmente caracteriza as crianças. Seguramente não podia compreendê-los totalmente. O que sim podia sentir era o bem que me fazia. Experimentei os êxtases juvenis acompanhados por estas imagens. Estas experiências se fortificaram e suas raízes foram fontes idôneas, capazes de reforçar meu interesse pelos temas que abordo atualmente. Estava segura que o que passava por meu corpo-mente era importante e a meu modo o entesourava como tal. Admirava a dignidade, a força, a destreza, a harmonia y um sem fim de atributos y qualidades que intuía naqueles corpos em movimento. Eles foram meus modelos e minhas referências. (Tradução de Soares)
73
Esta atitude crítica, segundo o autor, surge de um sentimento de incompletude “e
a motivação para encontrar noutros saberes ou noutras práticas as respostas que não se
encontram dentro dos limites de um dado saber ou de uma dada prática”. (Idem, p. 271)
Isa Soares afirma que, em Buenos Aires, aprendeu a sociabilizar com as pessoas
ensinando dança, conduzindo o seu trabalho sempre em relação com seu dia-a-dia,
tornando a dança a “matéria” mais palpável que ela tem, na qual mexe a mão para sair
na rua, para falar com o porteiro ou com a vizinha. E a professora acrescenta: “se eu não
dançasse, ia ser muito mais difícil pra mim. Então... eu entro nos lugares e eu digo... se
eu pudesse dançar aqui algumas situações, eu poderia entender melhor.” (SOARES,
2012, entrevista)
Buenos Aires: invisibilidades epidérmicas
A partir da década de 1970, Buenos Aires foi moradia de muitos imigrantes
vindos do Uruguai, Brasil, Equador, Peru, República Dominicana, Senegal, Costa de
Marfim, Jamaica e Serra Leoa, muitos dos quais encontraram na difusão da sua cultura
de origem um modo de sobreviver e interagir com a sociedade. Assim, foi se
conformando uma comunidade em torno do “afro” que acolhe tanto a africanos,
afrodescendentes de diferentes países de América Latina e afrodescendentes argentinos.
Esta comunidade foi gestando e habitando espaços culturais, bares, praças para
se encontrar, ensaiar e difundir as manifestações culturais de cada região. Dançarina e
dançarinos, músicos, candomberos22, capoeiristas, entre outros podiam, então, se
encontrar nos bares: ‘África 1’, ‘The Limit-African Pub’ e ‘Remembranza Candomblé’
(no bairro de ‘San Telmo’); nos seguintes centros culturais: o ‘Centro Cultural Ricardo
Rojas’, o ‘Danzario Americano’, a sede do ‘Movimiento Afro Cultural’ (localizada no
limite entre os bairros de ‘San Telmo’ e ‘Barracas’) e no ‘Parque Lezama’ (no bairro de
‘San Telmo’). (DOMINGUEZ, 2004, p 42)
Embora as diferenças características de cada cultura do país que provinha, havia
uma identificação que os agregava: “… cubanos, brasileiros, uruguaios, num sentido me
parece que temos uma raiz afro-latino-americana muito parecida, além das diferenças
nos diferentes estilos”. (SOARES, apud DOMINGUEZ, 2004, p. 89)
22 Percussionista que toca o tambor de ‘candombe’, ritmo afro-rioplatense.
74
As contribuições da antropóloga Maria Eugenia Dominguez, sobre os imigrantes
oriundos de países sul e centro americanos e africanos vindos para Buenos Aires, releva
as formas deles se colocarem e se organizarem neste contexto. Entretanto, a autora
expõe como, na cidade portenha, “existe um racismo velado” e afirma que “o racismo
portenho se exorciza através do preconceito de que na Argentina não existem nem
diferentes raças, nem preconceito racial”. (DOMINGUEZ, 2004, p. 136)
Segundo a pesquisa de Dominguez (2004, p. 14), no imaginário da sociedade
portenha os ‘negros’ sempre são identificados como brasileiros. Ainda mais, permanece
o estereótipo de que ‘todos os brasileiros são alegres e divertidos (características de que
nós, portenhos tristes e melancólicos, careceríamos), de que são sensuais e de que são
ótimos tanto na dança quanto na música (FRIGERIO, 2002; DOMÍNGUEZ, 2001)’.
(Idem, p. 102)
O estereótipo, para Homi Bhabha, é a maior estratégia do discurso colonial,
sendo uma “forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que sempre está
‘no seu local’, já conhecido, e algo que deve ser repetido ansiosamente...” (BHABHA,
2002, p. 91). Inclusive, esta associação do negro com a ‘brasilidade’, válida para todos
negros que moram em Buenos Aires, sejam do país que forem e mesmo se argentinos,
muitas vezes foi usada para tirar proveitos econômicos e até certo reconhecimento.
Guinea, um candombero (percussionista de candombe) uruguaio, comenta numa
entrevista concedida a Dominguez que “durante a década de 1990 tocar ‘música
brasileira’– lambada, axé, samba, etc. – foi o que garantiu sua sobrevivência e também a
de outros uruguaios” (DOMINGUEZ, 2004, p. 95). Mesmo assim, Guinea descreve as
atitudes dos portenhos quando ainda não se viam muitos negros na cidade:
“vos ibas caminando y te tocaban la rodilla, el trasero… la onda era que
el tipo o la mina te tenía que tocar la rodilla o el trasero pero vos tenías
que verlo, ahí venía la suerte. Y te agarrabas cada calentura, 'qué te
pasa!', y te juro, terminabas re mal… cuando yo vine, era terrible. Así
como era bueno era también terrible. Vos ibas a un lugar y decían '¿y
este?'”23 (GUINEA, apud, DOMINGUEZ, 2004, p. 96)
23 “você ia andando e te tocavam o joelho, a bunda… a coisa era que o rapaz ou a mulher teriam que te tocar o joelho ou a bunda, mas você tinha que olhar eles, aí trazia a sorte. E aí você ficava com uma raiva e dizia, 'qual é a sua!', e te juro, você acabava muito chateado… quando eu cheguei, era terrível. Assim como era bom, era também terrível. Você ia a um local e diziam 'e esse cara? De onde veio?' (Tradução nossa)
75
Bhabha (2004, p. 92) diz a respeito: que o exercício do poder colonial, através
do discurso, exige uma articulação de formas de diferença racial e sexual. E sustenta
que “o corpo está sempre simultaneamente (embora conflituosamente) inscrito tanto na
economia do prazer e do desejo, quanto na economia do discurso, dominação e poder”.
No entanto, o depoimento do uruguaio lembra a situação que Bhabha traz do texto:
“Pele negra, máscaras brancas” de Franz Fanon:
“Numa ocasião uma menina branca fixa a Fanon com um olhar e uma
palavra quando se vira a identificá-lo com sua mãe… “Olha, um Negro…
mãe, olha ao Negro! Assusto-me”. “O que outra coisa poderia ser para
mim”, concluí Fanon, “senão uma amputação, uma excisão, uma
hemorragia que salpicava meu corpo todo com sangue nego?”(FANON,
apud BHABHA, 2004, p. 101)
O discurso estereotípico constrói o sujeito colonizado e divide-o entre os
conhecimentos incongruentes do corpo, a raça e os ancestrais. “O esquema corporal
derrubou-se, seu local foi ocupado por um esquema epidérmico racial” (FANON, apud,
BHABHA, 2004, p. 105\106)
Do mesmo modo, muitas vezes Isa Soares, falando de situações deste tipo que
lhe aconteciam na rua, tem feito comentários como: “quando eu me olho no espelho,
não me reconheço com aquilo que se vê”, ou “eu não sou essa negra que esperam que
seja” (SOARES, 2007, conversação pessoal).
Esses comentários ficam ressoando quando nas aulas da professora ela sugere
um modo de se relacionar com o próprio corpo, atendendo a modos de nos mover e as
possibilidades de se afetar com os outros corpos: “A cor do meu corpo eu não posso
mudar, mas a energia que move meu corpo é a que vai permitir que meus pólos
positivos e negativos se juntem com os pólos positivos e negativos do outro. Se juntem
ou se repelem, é uma questão química.” (SOARES, 2006, sala de aula)
Citando Bhabha (2004, p. 107), se “a ‘pele’ no discurso racista é a visibilidade
da obscuridade”, Isa Soares encontra, nos efeitos químicos da dança, um modo de
iluminar histórias, emoções, valores que foram silenciados pela ansiedade da negritude
estereotipada.
76
Negociações entre corpo e ambiente. A arte de ser legitimado
“Há uma procura do Negro”, diz Fanon,
“é necessário, mas só se o faz-se agradável em certo modo.
Infelizmente o Negro joga abaixo o sistema e quebra os tratados”.
(FANON, apud BHABHA, p. 103)
Entre os espaços onde Isa Soares se desenvolveu como professora, vamos
ressaltar o ‘Centro Cultural Ricardo Rojas’, ligado a ‘Secretaria de Extensão da
Universidade’ de Buenos Aires, que funciona na “Avenida Corrientes”, no centro da
capital. Além da professora ministrar aulas de ‘Danzas Afro-Yorubas – recreaciones de
mitos afrobrasileños’, até 2006, a mesma coordenava a área do centro cultural nomeada
“Culturas Afro-americanas”, onde atuavam muitos professores de manifestações
“afro” 24. Depois, com a nova administração, a professora foi removida da coordenação e
a área mudou de nome como “Danzas Étnicas” (DOMINGUEZ, 2004, p. 54). A
professora comenta que justificavam ter mudado o nome (“Culturas Afro-americanas”
por “Danzas Étnicas”) dizendo que a dança afro-yorubá não é cultura, é somente dança.
Isa Soares explana a respeito: “... cultura para eles é claramente teatro, literatura, cultura
mais erudita, reconhecida…”. Porém, a artista alude que nesta dança há um
esclarecimento, uma história das coisas que se associam, há uma preparação do
figurino, se fala da comida. “Não é que eu me paro adiante e faço uns passos e nada
mais... É uma cultura, que tem um idioma próprio, uma musicalidade própria, valores
próprios. (...) Tudo passa pela gestualidade e o corpo, mas é cultura, não é somente
dança. Aqui são muitas coisas interatuando”. (SOARES apud DOMINGUEZ, 2004, p.
55).
24 Conforme Gayoso (2006), neste departamento se encontravam também: Telma Meirelles (Danza Afro contemporánea), Cidinha Fursan (Danza Afro Jazz), Evon Correia (Danzas afro populares), e mais tarde se incorporam Claudio de Oliveira (Técnica de la Danza Afro y Ritmos Populares brasileños) e Alberto Bonne, (danza afro cubana y ritmos populares cubanos). Conforme Dominguez também tinha Capoeira regional (prof. Marcos Gytaúna), Iniciación en la Capoeira angola (prof. Fabio Rizzo).
77
Figura 11. ‘Danças do Xirê de Orixás’ no “Congreso Afro Americano”, Buenos Aires, 2007. Foto: Arquivo de Alábase
Este jeito da professora se colocar diante das instituições, sem negociar com os
seus princípios, nem esperar ser reconhecida por valores não compartilhados por ela,
também se manifesta quando é convidada a se apresentar em algum evento ou espaço. A
artista afirma que “a todos os lados eu fui com a minha consciência de que eu vou
dançar, mas eu vou dançar o que estou sentindo nesse momento, em relação ao evento”
(SOARES, 2012, entrevista). E esclarece que ela tem que estar de acordo,
politicamente, com o lugar aonde seu corpo vai. Um modo de agir que sempre foi
saudável para ela.
Nesta tarefa de tradução da dança, seguindo Souza Santos, importa perguntar-
nos “entre que traduzir?”. Há uma seleção de práticas e saberes a partir de uma
convergência de sensações, de inconformismo e da motivação para superá-las de forma
específica (SOUZA SANTOS, 2006, p. 270). Este inconformismo e a vontade de
transformá-lo faz parte constitutiva das condições necessárias para que a dança ocorra
num certo contexto e permaneça.
Isa Soares parece prestar especial atenção a este ‘onde traduzir’, ou seja, em que
contexto sua dança acontece, já que a cada novo contexto a dança se reconfigura de
acordo com as adaptações às condições particulares. Esta relação entre a dança e o
contexto pode ser compreendida de maneira melhor, trazendo a sugestão de Katz e
78
Greiner de que o corpo e o ambiente interagem modificando-se um ao outro, em
processos coevolutivos. Algumas informações do mundo são selecionadas para se
organizarem transformadas em corpo. Este processo elimina a possibilidade de pensar o
corpo como recipiente e o mundo como um objeto aguardando um observador. Nesse
fluxo de trocas de informações entre corpo e ambiente se “produzem uma rede de pré-
disposições perceptuais, motoras, de aprendizado e emocionais”. (KATZ, 2005, 130)
Contexto, então, deixa de ser um lugar passivo e estático. De acordo com o
semioticista Thomas Sebeok (1991), o contexto admite influências na interrelação com
o corpo. Definido como uma espécie de contexto-sensitivo, este inclui “sistema
cognitivo (mente), mensagens que fluem paralelamente, a memória de mensagens
prévias que foram processadas ou experienciadas e, sem dúvidas, a antecipação de
futuras mensagens que ainda serão trazidas à ação, mas já existem como possibilidade”.
(apud KATZ, 2005, p. 130)
Com este entendimento de contexto sensitivo, Isa Soares foi escolhendo desde
qual lugar ela se colocaria para dançar, evitando entrar em certas negociações do
discurso colonial:
“Eu não vou fazer uma dança... ‘ajeitadinha’ dentro dos moldes sociais acomodados, para que as pessoas quando olhem não sintam que essa é coisa de macaco, né? Que são os gestos primitivos, dança primitiva, um corpo dizendo coisas de uma época onde se fazia uhuhuhuh! né? Ou seja, enfeitar a dança para que um setor social que pode ver essa dança em outro lado, igual veja algo exótico? Que lhe mova alguma coisa, mas não mobilize tanto... Que seja uma diversão, né?” (SOARES, 2012, entrevista)
Isa Soares decide, então, ficar fora do conceito de diversão do exótico da dança e
não declinar às “mais loucas fantasias (no sentido popular) do colonizador” (Bhabha,
107). Ainda afirma que, se no momento em que ela está dançando, ela sente alguma
interferência que lhe impede fazer o que ela ia fazer, com a complexidade que implica
de poder se relacionar e comunicar desde o lugar que ela necessita e não do lugar que
necessita o outro que está lhe pagando, a dançarina pode decidir não mais fazer. E
afirma: “a gente precisa ter todos esses cuidados”.
79
Figura 12. Performance ‘Orixás de la Tierra’, Buenos Aires, 2011. Foto: Javier Infante
O corpo de Isa Soares faz uma dança consciente desse ‘contexto sensitivo’, ou
seja, entra em diálogo intuitivo e alerta sobre as possíveis mensagens que lhe sugerem
satisfazer a demanda estereotipada do discurso colonial. Bhabha cita a Said para
explicar o modo como as novas informações podem ser julgadas como sendo versões de
alguma coisa conhecida. Este processo não é tanto um modo de receber uma nova
informação como “um método de controlar o que se parece uma ameaça a alguma visão
estabelecida das coisas”. E acrescenta, “a ameaça é calada, os valores conhecidos
impõem-se, e no final a mente reduz a pressão.” (SAID apud, Bhabha, p. 98) Este
método é um claro exemplo das negociações entre corpo e ambiente, no qual o corpo
acomoda a informação para não se desestruturar demasiadamente, quase como um
instinto de sobrevivência.
Isa Soares sugere então que, para resistir a estes mecanismos de controle social e
político sobre a dança e os valores que esta possa insinuar, é muito importante o artista
definir de que lugar se quer fazer e ser responsável. Porque certas decisões significam
não ter acesso a determinados lugares onde está a mídia com um capital, com um
investimento. (SOARES, 2012, entrevista)
80
Vemos então que a professora evita entrar em espaços nos quais, para ser
legitimada, tem que “enfeitar a dança” e tirar as coisas que “possam incomodar”. Ao
invés disso, encontrou outros espaços nos quais ela conseguiu se reconhecer e sua dança
legitimar-se em coerência com os valores propostos.
Um deles foi o grupo Banakabú – Música tradicional africana, dirigido por
Abdoulaye Badiane, um jovem senegalês que mora em Buenos Aires desde 2001. Isa
Soares atuava como cantora e dançarina e numa entrevista formulada por Dominguez,
pode-se notar que, para Isa Soares, era um modo de legitimação do seu trabalho:
“Eu acho que isto é fundamental. É como legitimar o que eu já faço. Eu me encontro em um lugar de resgate e de afirmação de um discurso que tenho tido durante todo esse tempo e encontro a alguém para legitimá-lo justamente. É uma forma de legitimar! Porque há muita trabalho relacionado à cultura do africano. Sempre houve. Mas nunca houve um africano fazendo coisas de africanos aqui. Sempre houve brasileiros fazendo coisas com o enfoque do africano, cubanos fazendo coisas de africanos, sendo fiéis aos simbolismos de sua ancestralidade. De gente que já veio de onde vieram com o sistema nervoso alterado. Porque sabemos o que é a escravidão, o que foi, o que gerou no psiquismo do negro africano ao sair da África. Então para mim é como legitimar algo que os afroamericanos já estamos realizando”. (SOARES, apud DOMINGUEZ, 2004, p. 91\92)
Outro espaço que Isa Soares costuma ocupar, que bem pode ser visto como um
lugar de legitimação e visibilidade do seu trabalho é o Parque Lezama, um espaço que
hoje se escolhe para realizar atividades artístico-culturais concebidas como sendo ‘dos
negros’, remetendo à sua história. Entre 1706 e 1712, nos limites do Parque se
assentaram os barracos onde viviam os negros escravizados desde que chegavam no
porto da cidade até serem trasladados a outros mercados provinciais. Dominguez
comenta que este local atualmente serve de cenário para a prática do candombe, roda de
capoeira, como também a antropóloga teve oportunidade de assistir ao “músico
senegalês Abdoulaye Badiane tocando tambores da música tradicional africana e a
dançarina brasileira Isa Soares apresentando coreografias de dança ‘afro’”
(DOMINGUEZ, 2004, p. 47).
Além das aulas em “El Rojas”, no qual já faz vários anos que a professora
deixou de trabalhar, Isa Soares vem partilhando aulas e apresentações numa sala privada
do bairro San Cristobal, nomeada ‘La Saavedra’. Na atualidade, este é o único espaço
81
aonde a artista desenvolve com continuidade a proposta: “Danças do “Xirê de Orixás” –
Afro-brasileiras”.
Figura 13. “Danças do Xirê de Orixás”. Isa Soares e Alabasé. Parque Lezama, Bs. As. Foto: Arquivo do Blog http://isasoaresdanzas.blogspot.com.br
Temporalidades e esperanças
Souza Santos afirma que a monocultura do tempo linear, avaliada pela razão
ocidental, entende a história somente com o sentido do progresso e modernização, na
qual tudo o que não é declarado avançado, se torna obsoleto sob o nome de primitivo,
tradicional ou subdesenvolvido. Diante desta questão, o autor propõe dilatar o presente
para que diferentes culturas não hegemônicas possam assim buscar respostas ao
inconformismo que produz o mundo ocidental, num diálogo transcultural com diversos
tipos de tradução que habilita a uma inteligibilidade recíproca. (SOUZA SANTOS,
2002, p. 265).
82
Conforme Souza Santos (2002, p. 271), nas zonas de contato interculturais, tem
de se confluir uma constelação de tempos, ritmos e oportunidades que se contrapõe à
lógica da monocultura do tempo linear.
Com essa perspectiva, observamos que Isa Soares contextualiza sua proposta de
dança como um estrato da cosmovisão do homem africano - proveniente, em grande
medida da Nigéria, África ocidental e Angola- e o seu aporte na América, em
consequência da escravidão que se deu entre finais do século XVIII e princípios do XX.
(SOARES, 2012) Porém, a professora remarca, numa entrevista, que não se trata de
uma dança do passado, mas é do aqui agora, do ciclo de cada dia vivido:
“Para mim a dança é a tradução de todas essas coisas que eu senti, desejei, fiz ou não fiz, durante o dia. Que se concretiza... quando danço um ritual de agradecimento a todas essas coisas que eu consegui durante este ciclo do dia que vai desde que eu me levanto até quando eu me deito. E também é um agradecimento pelas coisas que não tenho ainda porque eu sei que a partir da consciência de que falta alguma coisa, no outro dia eu vou trabalhar para consegui-la, ou para pelo menos seguir desejando, ne? Ter esperança! Em definitiva, eu danço para seguir tendo esperança.” (SOARES, 2012, entrevista)
A artista ressalta que “o mais importante é que quem dance aproveite todo o que
passa na sua vida para transformar em movimento” (Idem). Esta sugestão de Isa Soares
se evidencia no interagir entre as informações que já são corpo e nas informações do
ambiente que reconstitui a cada segundo o corpo. Neste fluxo contínuo “corpo vive no
estado do sempre-presente” (KATZ, 2005, p. 130).
Danças do “Xirê de Orixás”: argumentos da tradução
Como fizemos no capítulo de Tânia Bispo, para estudar o trabalho de tradução
de Isa Soares precisamos observar os argumentos que ela construiu para fazer traduções
de uma cultura para outra, ou seja, do contexto do universo mitológico dos orixás para o
ambiente artístico e contemporâneo da dança. De acordo com Souza Santos, cada saber
ou prática leva para a ‘zona de contato’ da tradução - neste caso a dança - certos topois
ou ‘lugares comuns’ que deixam de ser ‘premissas da argumentação’ e tornam-se
‘argumentos’ da tradução. Enquanto isso, vão se construindo “topois adequados à zona
de contacto e à situação de tradução” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 272). Ao longo da
83
sua trajetória, Isa Soares foi criando certos ‘lugares comuns’ que lhe permitissem
traduzir o universo mitológico dos orixás para a dança no ambiente artístico de Buenos
Aires. A partir das entrevistas realizadas para as pesquisas de 2007 e 2012, mais os
escritos dela, conseguimos distinguir os seguintes topois ou ‘lugares comuns’:
• Sobre a relação do corpo e a natureza
Quando Isa Soares apresenta sua proposta, afirma que as “danças transmitem no
seu conteúdo a relação do homem com a natureza... O corpo manifesta os arquétipos de
cada deidade através de movimentos que se assemelham às formas visíveis dos
elementos naturais. Estes são: a terra, o ar, a água e o fogo.” (SOARES, 2012, escrito)
Para entender esta relação do corpo e a natureza, a dançarina baseia-se em
reconhecer a natureza em nosso corpo, além dos mecanismos fisiológicos, apontando
que esses elementos ‘estão’ em nosso corpo, nos movimentos do corpo e na qualidade
desses movimentos (CORVALÁN, 2007, p. 21).
Isa Soares traduz isto da seguinte maneira:
“A terra é o corpo material, seu peso e sua estatura, a pele, os ossos e os músculos. O ar está na respiração, sendo nosso primeiro combustível, a oxigenação, entra e sai constantemente, conectando o interior do corpo com o exterior. O fogo, é o impulso que nos motoriza, nos excita e nos acelera. É a libido que nos desloca, é a paixão. Quando choramos, quando transpiramos aparece a água salgada, nosso líquido interno é salgado, como o mar. A água doce é o único elemento que não temos dentro do corpo. Devemos buscá-lo fora. É o que bebemos, o elemento que mais escasseia. Depois do ar, é o que mais necessitamos para viver.” (SOARES apud CORVALÁN, 2007, p. 21\22)
A partir desses conceitos, vamos observar o modo como o corpo se organiza para
expressar nos movimentos, as formas visíveis dos elementos da natureza. Nesta ocasião,
vamos focar somente nos elementos terra e ar, os quais se relacionam com Omolú e
Iansã, os orixás do mito abordado neste estudo.
A energia da terra está nos pés, apoiados firmemente no solo, dos dedos aos
calcanhares; enquanto que o sacro - a terminação da coluna vertebral - se encontra
também apontando para o solo. Os joelhos ficam dobrados e o peito se encontra um
tanto inclinado para frente, como se estivesse dialogando com a terra. Os movimentos
84
são pesados, como se a terra mesma tivesse um magnetismo que me empurra até ela. Só
uma vibração nas costas impulsiona para cima, deixando o resto do corpo com todo seu
peso para a terra. Tem a ver com a fertilidade e a nutrição, com a doença e a sanidade,
com a vida e a morte.
A energia do ar, pelo contrário, empurra o corpo para cima, partindo do centro
do quadril, abrindo todos os buracos do corpo. Inclusive os buracos das axilas, dos
cotovelos, da virilha, liberando o quadril e os ombros, desprendendo os calcanhares do
chão. O quadril se move em forma de pêndulo lateral, deixando entrar o ar no corpo
todo o tornando leve e fresco. Tem a ver com a liberação, com a festa e com a
provocação.
Estes princípios de movimentos, portanto, são consequência do tipo de
relacionamento do corpo com a natureza, que vai depender das subjetividades de cada
corpo, com sua história e suas possibilidades.
• Sobre a gestualidade e as relações
“A gestualidade é o resultado de usos e costumes, produto das relações humanas, da inter-relação com objetos e coisas, dos seres com a natureza e basicamente das funções sociais que nos coresponde cumprir.” (SOARES, 2004)
Para Isa, a dança afro-yorubá é de relação o tempo todo. É uma possibilidade
para se descobrir e descobrir o que é que ela necessita no encontro com as pessoas
quando dança. “Conhecer meus códigos e minhas necessidades me orienta. Um gesto
liberador destas necessidades me permite entender alguns significados...” (SOARES,
apud CORVALÁN, 2007, p. 14)
Isa Soares situa os gestos que faz com o torso, do umbigo para cima, que são as
partes do corpo que nos relacionam com o outro, e agrega: “... no torso temos os braços
que estão para conter, para abraçar... As mãos para saudar, pegar, afastar, acariciar... Em
princípio, o gesto é inconsciente, não estruturado, não intencional. Nos libera, nos situa,
pois conhecemos seu significado dentro da sociedade em que vivemos.” (SOARES,
CORVALÁN, 2007, p. 14)
85
Conforme a dançarina explica, o gesto aparece quando a mecânica do
movimento, que faz à anatomia construir uma forma, se impregna de uma intenção, um
desejo ou uma representação simbólica de alguma coisa que a gente tem no corpo e quer
expressar. O gesto é isso, você colocar um discurso.
Para ela, é fundamental explicar o lugar onde esse gesto historicamente surgiu,
dentro do fundamento e da concepção dessa disciplina. Tempo, história, personagem,
época, situação econômica, social e política. Um gesto não esta fora do contexto
sociopolítico.
Estes dois argumentos de Isa Soares concordam com a proposta de corpo
explanada anteriormente, de pensar o corpo como “corpomídia” (KATZ e GREINER,
2005) de si mesmo. Ou seja, mídia se refere ao processo evolutivo de selecionar
informações que vão constituindo o corpo. “Capturadas pelo nosso processo perceptivo,
que as reconstrói com as perdas habituais a qualquer processo de transmissão, tais
informações passam a fazer parte do corpo de uma maneira bastante singular: são
transformadas em corpo.” (KATZ, 2005, p. 130) O fluxo entre as trocas de informações
entre corpo e ambiente não estanca, portanto, o “corpo vive no estado do sempre-
presente”. Ou seja, as informações não simplesmente passam pelo corpo, mas entram
em negociação com as informações que já estão no corpo, o reconfigurando a cada nova
informação.
• Sobre o Xirê e a proposta Alábase
O trabalho de Isa Soares consiste em “recriações de danças arquetípicas dos
orixás - deuses do panteão africano- respeitando sua origem e fundamento”. Os orixás
têm qualidades e defeitos similares aos humanos e se manifestam nas danças através dos
seus simbolismos e arquétipos. Conforme escreve Isa Soares, “os gestos... relatam o
percurso do corpo por instâncias da vida. Vão contando como realizarmos algumas
tarefas”.
O Xirê que propõe a professora tenta respeitar “a ordem hierárquica imposta
pelas funções e lugares simbólicos que ocupa cada Orixá, desde Exú a Oxalá: princípio-
fim, cabeça-cauda, atividade-descanso”. Isa Soares explica que a palavra “xirê” provém
da palavra yorubana “Siré” , que significa: jogo, prática de um esporte. Através desse
formato foi que ela se atreveu a fazer recreações das danças consideradas rituais. Então,
86
confessa: “muitas vezes observo-me ainda extremamente exposta enquanto desenvolvo
este trabalho.” (SOARES, 2007, pag. 2)
“… O trabalho do xirê é um instrumento de contenção. Uma dança para harmonizar todos os elementos numa sequência, dentro de um espaço e um tempo apropriados. Um dos objetivos é o de não estar fixado somente numa forma, postura, sensação ou relação. A dança do xirê permite que todos experimentem as mesmas coisas. Possam aceder à atividade aportando o diferente e o particular como qualidades inerentes a cada um.” (SOARES, apud CORVALÁN, 2007, p. 28)
Deste modo, a professora encontra uma possibilidade de partilhar o espaço,
“acedendo potencialmente à construção de um ‘algo entre todos’”. Com a mesma
intenção, foi-se afirmando o labutar de Isa Soares ao qual hoje escolhe nomear Alábase:
“’Alábase’ es una palabra africana que quiere decir - aquel que comparte una tarea. Así denomino a todas las personas que deseen acercarse a esta ventana para mirar un poco mi "afuera". A todos mis alumnos que eligen mi trabajo, a los compañeros que luchan por la cultura desde todas las ramas del arte para generar salud. A todos, les deseo que encuentren la dicha de reconocerse dignos y fuertes en sus quehaceres. Así concibo mi trabajo. ‘Alábase’ es mi concepto.”25 (SOARES, 2012, blog pessoal)
Na proposta de Isa Soares, este partilhar a tarefa não é exclusivo da dança, mas
ela se encontra com outras práticas. Do mesmo jeito que ela consegue palpar a dança
para suas relações cotidianas, também logra articular um coletivo onde a dança é mais
uma ação para melhorar os encontros. Alábase inclui o pedreiro, o rapaz que vem
desentupir o banheiro, “ou qualquer pessoa que faz alguma coisa com consciência de
que está cooperando para que a vida de todos seja melhor”. (SOARES, 2012, escrito)
25 Alábase é uma palavra africana que quer dizer - aquele que partilha uma tarefa. Assim eu nomeio a todas as pessoas que desejem se aproximar a esta janela para olhar um pouco o meu "afora". A todos meus alunos que escolhem o meu trabalho, aos companheiros que lutam pela cultura de todos os campos da arte para gerar saúde. A todos, desejo-lhes que encontrem a beatitude de reconhecerem-se dignos e fortes nos seus quefazeres. Assim eu concebo o meu trabalho. Alábase é o meu conceito.
87
Figura 14. Alábase na Marcha do 24 de março pelos desaparecidos. Buenos Aires, 2009. Foto: Arquivo do Blog http://isasoaresdanzas.blogspot.com.br
A dificuldade do ouvir o corpo:
Além da dificuldade na construção de novas premissas de argumentação, Souza
Santos chama a atenção a respeito da língua da tradução que comumente corre o risco
de ser conduzida pela língua colonial. Como foi desenvolvida nos capítulos anteriores,
neste trabalho de tradução, a linguagem é corporal. A professora propõe um modo de
cada um se relacionar com o seu próprio corpo, que se afasta da lógica ocidental
capitalista.
Ao longo da sua trajetória como professora, Isa Soares foi percebendo certas
dificuldades na forma de interpretar as particularidades da sua proposta de dança,
chegando à seguinte conclusão:
“cada sociedade aceita e/ou adapta seus códigos gestuais pela necessidade de educar e/ou submeter aos seus integrantes uma certa ordem. As proibições, desde esse ponto de vista, poderiam sabotar o desenvolvimento de todo aquilo que não seja considerado totalmente como próprio. Por medo ao novo, ou simplesmente, por ignorar seus atributos.”(SOARES, 2007)
88
Por esta via, a dançarina opina que nossa linguagem corporal se apresenta, às
vezes, dissociada. O corpo não se vê como unidade. Atenta com esta situação, nos
fundamentos da sua proposta, Isa Soares ressalta a importância de escutar o corpo e de
ser conscientes da existência e da interação dos elementos naturais na química dos
corpos. E sugere, por conseguinte, observar, reconhecer e qualificar as diferentes
combinações resultantes dessa química na relação com o outro dentro de um espaço
partilhado.
Figura 15. Performance ‘Orixás de la Tierra’, Buenos Aires, 2011. Foto: Javier Infante
A artista assume: “eu danço desde que eu necessito... que esses movimentos vão
rebotar e vibrar em certa energia que tenha alguma pessoa que olha, e ela possa... se
identificar em algum momento com algum gesto...” (SOARES, 2012, entrevista). E
acrescenta que desse modo, procura criar um acesso, para que o outro possa colocar o
corpo em movimento, de acordo com seu desejo, de acordo com suas percepções,
recriando o que Isa Soares vai lhe dar.
Alábase em dança
89
Chegamos à casa La Saavedra, onde Isa Soares ministra aulas. Javier Infante,
amigo e companheiro das aulas de Isa Soares, veio nos ajudar com a gravação. Vamos a
uma sala atrás porque a sala onde ela sempre trabalha está ocupada.
A sala é um pouco escura pelas cores das paredes e do chão, mas Isa Soares, que
chegou com três bolsos cheios e pesados, tira um pano branco grande, pregos e um
martelo, “que por acaso, eram necessários”. Então colocarmos o pano branco na parede
do fundo com a ajuda de Javier e depois tentamos melhorar a luminosidade do espaço.
Estes tipos de gestos, prévios à dança, sobre o cuidado nos detalhes, deixam em
evidência o compromisso e a coerência no trabalho da artista, que depois se visualiza na
dança.
Além disso, depois tira dos bolsos, uma sacola com terra e quatro objetos feitos
de algum material de palha. Colocarmos montículos de terra desenhando uma roda e os
quatro objetos, também fazendo a roda, dispostos na frente da câmera. Um objeto que
tem forma de cone duplo com as pontas unidas é colocado horizontalmente. Em cima
dele, na junção das pontas, se apoia outro objeto, um feixe de galhos de palmeira
enfeitada com búzios que acaba num rabo de cavalo, ao qual chamaremos aqui ‘erukere
longo’. A cada lado do duplo cone, são acomodados dois rabos de cavalo com cabo
mais curto do que o primeiro, também enfeitado com búzios, denominados erukeres,
que para esta pesquisa serão distinguidos como ‘erukeres curtos’. Isa Soares entrega o
cd com a pista de áudio e vai se vestir para dançar.
Na seguinte escrita da dança, vamos nos deter em certos momentos ou aspectos
da mesma, em relação aos modos da professora traduzir pondo em questão valores e
conceitos instalados pela razão capitalista e o seu discurso colonizador.
Então...
A música começa com um som grave e constante, como se fosse um
“didjeridoo” (tronco oco que se sopra com uma respiração cíclica). No começo, Isa
Soares entra bordejando a roda, pisando sobre cada montículo de terra. O ritmo se
expande, sem pressa, criando o espaço-tempo necessário para ir encontrando relações
com a terra e o ar, atendendo às modificações que produzem no corpo. A dança ocorre
sempre dentro da roda.
90
A dançarina está vestida com um macacão de algodão, de tons roxos e marrons,
com cascavéis ao redor do decote. No torso, tem uma espécie de saia pendurada no
ombro, e deixando o outro ombro descoberto. A saia é feita com quatro grandes
retalhos, um de cor vermelho, outro amarelo, outro roxo e outro marrom. Também tem
costuradas umas cascavéis nas suas bordas. A cabeça está rodeada com um tecido
tricotado de palha, amarrado por uma corda em que penduram fitinhas do mesmo
material. O cabelo cai num rabo de cavalo. Nos pulsos e nos tornozelos tem pulseiras
enfeitadas com búzios.
Após dar duas voltas ao redor da roda, a dançarina ajoelha-se no centro da roda e
procura debaixo dos objetos uma bolinha de argila, pega um pouquinho de terra do
montículo de lado e junta à argila. Toma a bolinha com as duas mãos e cuspe nela várias
vezes: ‘tz tz - tz tz - tz tz - tz tz’. Amassa. Coloca a bolinha de argila, terra e saliva na
sua frente. E vai descendo com a bolinha, marcando uma linha pelo centro do rosto até o
peito. Marca-se abaixo de um olho. Relaxa o braço e suspira. Logo se passa a argila
pelo outro olho e pelo rosto todo, pelo pescoço. ‘Tz – tz – tz – tz – tz’, volta a cuspir na
bolinha várias vezes e a amassa. Passa argila numa mão, passa na outra, aperta a bolinha
com uma mão bem fechada, leva ao alto e a lança na frente. Fecha a mão vazia ainda no
alto, e a desce bem devagar para o chão.
É sabido que em nossa sociedade, o ato de cuspir, nunca é bem visto, é falta de
educação e grosseria. Nesta performance, a cuspida não é somente visual, sua
sonoridade forte e rítmica ressalta o som constante da musica mecânica. tz tz - tz tz - tz
tz - tz tz.
Para a cosmovisão yorubá, a saliva é um elemento condutor de axé - poder do
princípio de realização-. Segundo Elbein Santos (2007, p. 41) a força do axê contida e
transmitida através de uma grande variedade de elementos representativos do reino
animal e mineral agrupados em três categorias: “sangue” “vermelho”, “sangue”
“branco”, “sangue” “preto”. A saliva como o sêmen, o hálito, e as secreções, pertence
ao grupo de condutores do sangue branco, do reino animal.
Vemos aqui como o ato de cuspir sobre a bolinha de argila e terra pode
simbolizar uma prática sagrada, dar axé ou, também, a união de uma substância
provinda do corpo com elementos naturais que estão fora dele para logo passar essa
matéria misturada pela pele. Pinta assim, os rasgos do rosto com barro. Já que segundo
a dançarina, Omolú “é já de por si o corpo mesmo. Porque os ossos, as articulações, os
91
tendões, cartilagem, músculos, pele, cabelo, unha, todo o corpo já é terra... Tanto é que
quando a gente morre (solta um riso) vai fazer parte do que a gente já é”. (SOARES,
2012, entrevista)
Seja qual fora o sentido de tal gesto, Isa Soares põe em questão os valores
estéticos imperantes provindos da ciência moderna e da alta cultura, se aproximando
mais ao pensamento estético dos yorubás. Para eles, o conceito de estética “é utilitário e
dinâmico”. Conforme Elbein Santos, (2007, (1966:1) p. 49) “o belo não é concebido
unicamente como prazer estético: faz parte de todo um sistema”.
Se na “monocultura do saber” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 248) reconhece-se
somente a criação artística que entra nos cânones por ela imposta, avaliando como
ignorante ou inculto todo saber e criação que fica excluído da ciência moderna ou da
alta cultura, Isa Soares, ao trazer um outro saber com sua criação artística, inverte de
algum modo os locais da ignorância e do saber. Deixa em evidência a nossa ignorância
sobre aquele saber.
O que diz o silêncio
Na terra, o ritmo de corpo, muitas vezes, se silencia numa espécie de detenção
ativa. A dançarina passa longos períodos de tempo, deitada, ajoelhada ou agachada, em
busca de contato com o chão. Descrevemos aqui um trecho da dança:
Ajoelhada e com os braços abertos no chão, a dançarina leva o torso para a terra
apoiando o queixo no erukere mais longo, que está em cima do duplo cone. Repousa.
Quando se levanta, estica as pernas e traz o corpo mais para frente, apoiando o peito
sobre a cana e o queixo no chão. Logo se levanta e vai se deitar com o peito no chão, se
encolhe e se estica muitas vezes, rastejando num ritmo constante que se intensifica no
tempo e se detém abruptamente. Fica encolhida com o queixo no chão olhando para os
objetos, tocando os punhos dos erukeres dos laterais. Fica assim um tempo prolongado.
Depois, traz as pernas embaixo do quadril e, timidamente, se aproxima aos objetos,
mexe as mãos por debaixo do duplo cone, desce a cabeça.
Interessa chamar a atenção neste momento da dança, ao ritmo pausado, quase
preguiçoso que habilita a um estado corporal mais silencioso, indispensável para a
conexão da dançarina com o elemento terra. Deitada no chão, Isa Soares toma um
tempo de repouso. Sem esse tempo, o gesto seria outro.
92
F
Figura 16. Manifestação artística de Isa Soares. Buenos Aires, 2012. Foto: Arquivo da autora
Surge assim outra dificuldade que adverte Souza Santos (2002, p. 273), a
tradução do silêncio. Parafraseando o autor, cada saber e prática concede ao silêncio um
significado diferente, assim como um ritmo específico na articulação com as palavras.
Trazendo para a tradução corporal de Isa Soares, o tempo de repouso, onde o corpo se
move sem pressa e espera, manifesta um gesto de intimidade e diálogo com a terra. O
silencio nesta dança, faz parte da ‘musicalidade postural’ (GODARD, 1995, p. 13) que
permite que o gesto aconteça.
Por sua vez, esta tradução do silêncio, somente é possível por dispor de uma
concepção do tempo, que vai além do tempo linear, onde o presente não se reduz a um
instante fugaz entre o que já não é o que ainda não é (SOUZA SANTOS, 2002, p. 245).
O silêncio traduzido no repouso na dança contribui para ampliar o tempo presente, para
dar visibilidade a experiências que estão sendo negadas, esquecidas ou, em palavras de
Souza Santos, desperdiçadas.
Atrás, no fundo da terra
A partir desta lógica de tempo que contempla múltiplas temporalidades,
(passados, presentes, futuros, cíclicos, lineares, simultâneos), Isa Soares fala dos
93
princípios básicos para entrar em contato com a energia da terra de Omolú: “os pés, as
pernas flexionadas, o corpo dobrado para frente... que é uma volta à origem, é uma
reverência... As posturas básicas sempre vão estar inclinadas nos tótens, dobrado para
frente, olhando para baixo”. A professora acrescenta que a dança de Omolú sugere, “no
plano do corpo da gente, um desejo como ancestral de voltar a engatinhar, de colocar as
mãos no chão, que é a origem do corpo...” (SOARES, 2012, entrevista).
Os objetos contribuem na relação com os elementos, o erukere longo espanta as
doenças da terra26 e os erukeres curtos limpam o ar das más vibrações. Isa Soares afirma
que a função do orixá da terra de tomar o erukere, tem a ver com a saúde, com a
doença, com espantar as coisas da pele, com tratar de melhorar animicamente. Mesmo
assim, vamos ver nesta fase da dança outra função da terra: cavar a terra.
O erukere é tomado com as duas mãos na frente do torso. Uma mão o agarra
com o rabo de cavalo para cima e outra mão sustenta a outra ponta do objeto. O erukere
sobe e desce detrás para frente. O corpo se traslada detrás para adiante, avançando e
retrocedendo com pulinhos que repercutem no corpo todo. O joelho da perna da frente
sobe em cada pulo; quando vem para frente o corpo desce um pouco. O erukere também
acrescenta seu movimento subindo e descendo. Agora, dá uns passos em lateral,
cruzando atrás para mudar a direção. O erukere continua subindo e descendo detrás para
frente, como num gesto de cavar na terra. Nesse traslado lateral de um limite da roda
para o outro, a dançarina vai girando bem devagar, passando por toda a circunferência
da roda.
O gesto que a dançarina faz com o erukere longo, como de cavar a terra, lembra
a dança de Nanã, mãe de Omolú, quando move o ibirí , sua ferramenta e seu bastão. Ao
mesmo tempo, pode ter relação com um comentário que Isa Soares fez na conversa
depois de dançar: “hoje, acabei de enterrar muitos ciclos e muitas pessoas que passaram
por minha vida na dança. Vou precisar de um tempo agora para me acomodar”. É
notável aqui como a dança de Isa Soares é atravessada pelo momento atual dela, os
gestos característicos dos orixás da terra são traduzidos em função das relações de Isa
Soares com o seu ambiente. A dançarina sugere que há toda uma postura que se
transcende, que vai além do conceito do orixá.
26 Vale chamar a atenção que Omolú, o orixá da terra é representado por outro elemento chamado Xaxará (Sàsàrà), “o feixe de nervuras de palmeira que revela claramente sua simbologia, imagem coletiva de espíritos ancestrais” (SANTOS ELBEIN, 2007, p. 96). Mas Isa usou erukeres tanto para dançar a terra quanto o ar, diferenciando eles pela sua longitude. Segundo esta autora, os dois emblemas tem significados similares, representar os espíritos ancestrais.
94
Pela mesma via, Isa Soares se pergunta: quando a gente olha para baixo?
“Quando você olhou para baixo tem uma conexão com alguma coisa, quer pensar
intimamente, não é? É que a gente quer recuperar alguma coisa que perdeu. Então,
quando a gente está atenta a algo ou tem vergonha, a gente se esconde, olha pra baixo.”
Porém, a dançarina afirma que não adianta ficar na postura da vergonha, ou da
timidez. Mas há que colocar a timidez para fora, trabalhar alguma coisa que tenha a ver
com a timidez: “Vamos a dançar a timidez! Para que, quando apareça, seja tão graciosa
e tão glamorosa que você inclusive escolha ser tímida. Porque já é seu capital”.
(SOARES, 2012, entrevista)
Figura 17. Performance ‘Orixás de la Tierra’, Buenos Aires, 2011. Foto: Javier Infante
Por sua vez, essa associação do gesto de olhar para baixo com ter vergonha, ou
com se esconder, no mito de Omolú, se traduz na palha que oculta seu corpo. O ar
surge, então, como a possibilidade de desvendar (e transformar) aquilo que se esconde
detrás da palha. A dança de Iansã levanta a palha e aparece o corpo de Omolú. Do
mesmo jeito, o ar contribui a tirar para fora a vergonha, a timidez, a expressar aquilo
que se oculta.
95
Segundo Isa Soares, o ar é o elemento que está em todos os lados. Até a terra
respira. Mas, na postura do plexo para a terra, na qual o corpo se dobra a partir do
cóccix-sacro, a respiração se estabiliza de uma forma diferente de quando você está na
vertical. “É como quando a gente abre um buraco na terra, a terra respira e se pode
colocar uma flor ou algo mais nesse lugar, nessa amplitude do buraco. Alguma coisa
saiu aí, que estava presa. Isso é a respiração.” (Idem)
Mesmo assim, a professora esclarece que quando o elemento ar aparece dentro
do xirê, na forma de Iansã, é fácil perceber como modifica a forma de respirar e a
dinâmica do corpo.
Figura 18. Performance ‘Orixás de la Tierra’, Buenos Aires, 2011. Foto: Javier Infante
O Ar
Repetir repetir – até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo
(BARROS, 1993, p. 13)
96
A dançarina pega os dois erukeres curtos. Abre e cruza os braços energicamente
sacudindo os rabos de cavalo, com as pernas abertas, o quadril se balança de uma perna
para a outra. Vai passando por diferentes movimentos de braços, alguns mais retos,
outros mais circulares, às vezes movimenta um braço por vez, um por baixo, outro por
cima, depois os dois juntos em paralelo, logo os dois em cruzamentos. Os erukeres
parecem limpar ao redor do corpo. Vai mudando as frentes conforme a roda. A cada
lado, o gesto é diferente, cada movimento é diferente, não há como repetir.
Dá para perceber como o ar vai entrando em doses silenciosas, os movimentos
começam pequenos, movendo os centros de energia e os extremos se abrem aos poucos
e trasladando o corpo dentro da roda. Os movimentos são executados durante um tempo
prolongado, se reiterando. Mas, nessa reiteração, os movimentos se modificam
sutilmente, nunca são os mesmos. Não tem como haver repetição, cada movimento já é
outro. Segundo Katz (2005, p. 39) “um processo de repetição não se dá sem minúsculas
diferenças entre cada repetição (...) e a repetição com essas minúsculas diferenças, a
certa altura, produz uma diferença que se nota”.
Gira com um erukere estendido e a outra mão na cintura. Gira para o outro lado,
com um braço que se eleva. (...) Sacode os erukeres para abaixo e para cima,
alternadamente. Se trasladando nas laterais caminhando para trás. Gira na caminhada
para mudar de frente. Passa pelas quatro frentes várias vezes. (...) A pélvis se move
lateralmente e os pés se apóiam de um lado para outro. O torso também se acomoda ao
movimento da pélvis. A cabeça, por vezes, desce para avançar ou mudar de frente e
sobe quando está na frente. Os braços movem os erukeres em forma de círculos.
Move os erukeres de cima para abaixo com o movimento do quadril. Logo o
gesto se intensifica pulando de uma perna para outra, uma na frente e a outra atrás. Vai
variando as frentes também. Ora uma perna fica na frente, ora fica a outra. Agora os
braços também se alternam acima e abaixo, em oposição com as pernas.
Nestes diferentes momentos da dança do ar, cada gesto vai se configurando
através de pequenas mudanças no fluxo do movimento. Citando Katz (2005, p. 57), a
dança se constrói “como um contínuo, não um compósito de partes”.
97
Figura 19. Manifestação artística de Isa Soares. Buenos Aires, 2012. Foto: Arquivo da autora
No entanto, é surpreendente como a professora consegue manifestar o ar sem
precisar sair da roda para se espalhar pelo espaço. O ar se faz presente em cada
mudança da dança: “Modifica a corporalidade, modifica o enfoque, modifica as
direções, se muda de frente, se muda de plano, ou seja, o corpo se oxigena de verdade,
porque tem muita disposição no espaço” (SOARES, 2012, entrevista). Sempre dentro
do círculo, as mudanças de frentes estão direcionadas para as quatro paredes do espaço
que simbolizam os quatro pontos cardinais. A dança, então, oferece um tempo para
perceber o que acontece, não somente na frente do corpo, mas nas costas e em todos os
seus perfis.
Quando o desfrute transforma
Mais uma vez, o movimento lateral da pélvis sugere sensação de leveza nas
pernas. Agora, as mãos se apoiam alternadamente num ombro e num lado da pélvis. (...)
Outro giro, este com as duas mãos esticadas e os erukeres nas pontas. Quando freia, dá
98
uns pulinhos no lugar e volta a girar para o outro lado. Isa Soares sorri. Cada vez mais
leve, percebe-se no corpo uma sensação de alegria. Quando acaba o giro passa um
erukere ao redor da cabeça. Fazendo um pequeno rebote nos calcanhares, olha os dois
erukeres, aproxima um deles à sua boca e beija longamente, logo faz a mesma coisa
com o outro. Depois beija os dois juntos e os coloca sobre cada ombro. Caminha
meneando a pélvis para frente e para trás. Desce os erukeres e solta os ombros,
sacudindo as cascavéis.
Interessa registrar, nesta parte da dança, como é visível na gestualidade, uma
mudança emocional; aparece o sorriso, os beijos, o sacudir dos ombros. Isa Soares
afirma que
Iansã dentro do xirê é importante porque é ela quem traz a possibilidade de festejar, de que o corpo se abra, para receber o resto dos orixás até Oxalá. ... Abrem-se as pernas, se abrem as articulações da cadeira, se abrem os braços, a axila, que é importante que a gente deixe os braços... (leva os braços pra cima), trabalhe com as mãos, trabalho com... (faz um gesto de movimentar o ar com as mãos), é outra coisa que sucede no corpo, é o ar. (SOARES, 2012, entrevista)
Esclarecem-se, assim, como as emoções na dança estão diretamente relacionadas
com a organização do corpo nas posturas e nas gestualidades. Ao levar este sentido à
relação de Omolú\Obaluaiê e Iansã (os orixás do mito aqui trabalhado), Isa Soares
observa que Iansã é o único orixá que pode trabalhar com Obaluaiê de uma forma
festiva. “Segundo os mitos, é ela quem tira a Obaluaiê, é o ar que tira a terra para
dançar. Têm como uma amizade.” Entendendo esta relação a partir dos elementos da
natureza, a dançarina afirma que é o ar que faz mover a terra, é ele que estabiliza, é ele
que oxigena, que faz entrar e sair as partículas de átomos e prótons. E nesse reagir
químico do ar na terra, se produz a transformação. Quando no mito Iansã dança com
Omolú, levanta a palha e descobre o corpo que estranhamente não é horroroso como se
dizia, mas de uma rara beleza. Mostrar intempestivamente aquilo que não era para ser
visto, e que seguramente produz alguma coisa em quem está olhando é um gesto que
parece se reiterar de diversas formas no trabalho de Isa Soares. Propondo outros valores
no seu jeito de dançar. Outras estéticas que podem até incomodar ao espectador, outros
espaços de legitimação, outro modos de se colocar no mundo. A artista encontra na
dança a possibilidade de transformar as dificuldades e melhorar os encontros. E diz Isa
99
Soares: “ele (Omolú) desfruta com ela (Iansã). É ela que alegra. Se ela está ele
desfruta”.
Mesmo que a dançarina utilize música mecânica para sua performance, ela não
deixa de estabelecer um diálogo com a mesma. Como vemos nos seguintes momentos:
Quando Isa Soares, na primeira parte da dança, cuspe, vai marcando um ritmo
diferente que combina com ritmo que está soando. Também, em certos momentos, os
pés acentuam um tempo do ritmo e em outros, as cascavéis que rodeiam os ombros
vibram em cada pulo, em cada pisada, ou às vezes são sacudidas. E quando Isa Soares
deixa o erukere longo e vai buscar os erukeres curtos para dançar o vento, na música,
entra muito sutilmente um agogô, duplo cone de ferro, que marca uma clave, guia da
música.
No final, quando a música vem mantendo uma percussão constante, a dançarina
vai girando com o cone duplo estendido na frente. No momento que a percussão some,
ela acaba o giro, se detém na frente e eleva o cone com as duas mãos e coloca-o na
frente do peito. Segundo Isa Soares, o cone duplo é um relógio de arena. Representa o
tempo que é um dos territórios de Iansã.
(...) Já no chão, abre as mãos contendo os objetos e apoia a cabeça na base do
cone, encima dos irukeres. Repousa. Finaliza a música. A instalação se desarma e Isa
Soares acolhe os objetos embaixo dela e deita. Descansa.
Um tempo depois, a dançarina levanta o torso com os braços ainda apoiados no
chão e olhando para os objetos entoa um canto em yorubá. No final, o canto diz:
“Axé, Axêee, Alabase, Axê”
Como falamos anteriormente, e de acordo com Elbeim Santos (2007, p. 42), o
axê é uma força que permite as coisas existirem e devirem, o qual é transmitido através
de gestos, de palavras pronunciadas “acompanhadas de movimento corporal, com a
respiração e o hálito... que atingem os planos mais profundos da personalidade”. A
autora explica ao respeito:
“Num contexto, a palavra ultrapassa seu conteúdo semântico racional para ser instrumento condutor de àse... Se a palavra adquire tal poder de
100
ação, é porque ela está impregnada de àse, pronunciada com o hálito –veículo existencial – com a saliva, a temperatura; e a palavra soprada, vivida, acompanhada das modulações, da carga emocional, da história pessoal e do poder daquele que a profere.” (ELBEIN SANTOS, 2007, p. 46)
Tomar conhecimento destes conceitos ajuda a descartar qualquer pressuposto da
lógica ocidental capitalista que tenta avaliar a obra artística como menor ou inexistente,
a qual, como vemos, é tecida por princípios do universo mitológico dos orixás.
Axé, o principio da existência, Alábase, aquele que partilha uma tarefa. Na
própria entoação destas palavras, se manifesta a carga emocional, histórica e pessoal da
dançarina. Nomear é uma maneira de valorar e dar visibilidade a algo. Só partilhando a
tarefa, trocando com outros e nos oxigenando, é possível dar continuidade a nossa
potência.
101
CAPITULO 4
TRADUZIR À BEIRA DO MITO
Figura 20. Manifestação artística de María Laura Corvalán, Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo
Esta pesquisa propôs trazer à luz as manifestações artísticas das danças dos
orixás, realizadas por Tânia Bispo, em Salvador, e por Isa Soares, em Buenos Aires,
atendendo aos processos tradutórios que cada uma construiu entre o universo mitológico
dos orixás e o ambiente artístico e contemporâneo da dança. Para este estudo, foi
escolhido um mito que fala da relação de dois orixás: Omolú/Obaluaiê, a energia da
terra, e Iansã, a energia do vento e do ar.
A investigação foi atravessada pela proposta de tradução cosmopolita do
sociólogo português Boaventura de Souza Santos, que parte do reconhecimento de que
não há uma teoria geral, mas todas as culturas são incompletas. Portanto, a tradução
sempre implica uma criação e transformação, aberta a outras leituras e recriações. A
partir das circunstâncias que foram vivendo as dançarinas, cada uma foi construindo
‘novos lugares comuns’ que sugerem modos de se colocarem no mundo, afastadas dos
discursos colonizadores. Deste modo, as artistas conseguem traduzir em sua dança
102
valores, conceitos e cosmovisões africanas que habilitam um diálogo horizontal,
recíproco e não-hegemônico entre as diferentes culturas.
Foi possível também constatar como, tanto Tânia Bispo quanto Isa Soares logrou
defender suas propostas de uma dança que não cabe nos cânones comerciais da
espetacularidade, entrando e saindo dos espaços de dança, os quais se modificavam,
tanto quanto as artistas em questão. Enquanto isso, cada uma foi fazendo relações e
construindo ambientes onde puderam se reconhecer e sua arte pôde ser valorizada e
legitimada.
Partimos da hipótese de que sempre que a dança ocorrer num contexto diferente
de onde surgiu, segundo registros historiográficos, há tradução. Portanto, para haver
tradução, não é preciso ser estrangeiro daquela cultura; todas as manifestações artísticas
das danças de orixás são traduções de uma cultura para outra, sejam elas em Salvador,
em Buenos Aires, em Rosário ou outra cidade qualquer.
Assim, vimos como Tânia Bispo, tendo experiências religiosas e artísticas,
consegue diferenciar estes dois estados, entendendo que fora do terreiro, quando ela
dança de forma artística ou está dando aula, ela faz um trabalho de tradução. A
dançarina esclarece que somente quando há consciência é possível traduzir
criativamente uma imagem, um movimento ou um símbolo. O corpo consciente é o que
tem a capacidade de transcender a partir de todo o conhecimento que ele traz. Pelo
contrário, no espaço religioso, não há nada que transformar, mas há que seguir os
fundamentos da tradição. Isto não significa que o universo mitológico seja original e
não mude nunca, mas como a tendência é manter a tradição, as transformações são
significativamente mais lentas.
Observamos, também, como Isa Soares não precisou ser religiosa para fazer
tradução daquele universo mitológico dos orixás num contexto artístico de Buenos
Aires. E, ainda, sua proposta ganhou grande reconhecimento por ser reveladora de
informações que não circulam facilmente naquele ambiente de dança de Buenos Aires.
As duas experiências ressaltam a possibilidade de transformação através de tais
processos tradutórios. Dançar, manifestar, criar para transmutar estados corporais,
situações, relações, emoções, etc.
A importância destes tipos de tradução reside em que, somente assim, é possível
tirar do escuro, valores, mitos, danças e muitas informações que, de outra forma,
ficariam ainda na obscuridade. O trabalho das duas dançarinas, analisados aqui, é uma
103
forma de dar continuidade, de manter vivo saberes e práticas que não estão acessíveis na
educação regular.
Reflete-se aqui outra motivação que atravessou esta pesquisa: o fato destas
informações sobre dança não terem lugar na educação oficial ou formal, por não serem
legitimadas pelos valores da ‘monocultura’ da razão ocidental. Então, não há igualdade
de acesso para essas informações, como tem para outras que estão a serviço do sistema
capitalista. Pode-se afirmar, portanto, que existem razões concretas para esses saberes
ficarem no escuro e ainda tais ações trazem consequências sociais e educacionais na
formação de qualquer pessoa. Manter à margem aquilo que não vem do colonizador,
não pode ser mais do que reflexos de uma postura colonizada de aceitação social.
Apontamos, com este trabalho de tradução cultural, o desvendar daquilo que a cultura
colonizadora cobriu com a palha da razão capitalista.
Neste exercício de trazer à luz as manifestações artísticas de Tânia Bispo e Isa
Soares, nos capítulos anteriores tentamos realizar uma tradução verbal das danças das
mesmas. Porém, pelo fato de ser uma investigação em dança, onde os conhecimentos
que a pesquisadora encontrou em ambientes fora da universidade foram nutridas pelas
teorias estudadas dentro da universidade, houve também a necessidade de fazer uma
tradução corporal das mesmas, ou seja, traduzir a dança com outra dança, de um corpo
para o outro, lembrando que a tradução sempre será diferente, individual e criativa.
Dar movimento às traduções aqui expostas permite agregar informações do que
não basta em palavras, enquanto se abrem questionamentos sobre as inúmeras traduções
culturais possíveis da dança. No intuito de sugerir que ainda há tantas outras traduções a
serem dançadas, transmutadas e/ou ressignificadas que precisam sair à luz para
fortalecer estes outros paradigmas de valorações e reconhecimentos, apresentamos aqui
uma tradução corporal da pesquisadora desta dissertação, María Laura Corvalán.
Estende-se, assim, outro horizonte quando as danças destas professoras são
traduzidas em outro corpo, que já traz outras informações da sua cultura e da sua
história. Surgem, então, as seguintes indagações respeito aos diferentes graus ou nivéis
de tradução cultural. Quando se alongam as distâncias na tradução: quais são os riscos?
O que é o que tem de permanecer para que continue sendo uma tradução (artística) de
danças de orixás? Onde e como tomar cuidado para continuar se mantendo o diálogo
entre as culturas? Estas perguntas não estão resolvidas nesta pesquisa, mas são
desdobramentos que compartilhamos com outros possíveis tradutores culturais
104
dimensionando a responsabilidade de fazer um trabalho crítico e com fundamento de
parte das duas culturas a traduzir.
A necessidade de dançar estas traduções aparece também como um modo da
pesquisadora apresentar seu caminho pessoal da sua tradução. Várias informações sobre
a dançarina-pesquisadora já foram enunciadas na introdução desta dissertação, mas vale
sublinhar que a mesma não é brasileira; é argentina, nascida na cidade de Rosário e vem
estudando e se formando com Isa Soares há mais de dez anos, tanto em Buenos Aires,
quanto em Rosário, junto ao seu grupo Iró Bàradé. Por sua vez, em suas viagens à
cidade de Salvador, a pesquisadora vem tomando cursos intensivos com Tânia Bispo
desde o ano de 2004. Esta formação também se atualiza dia-a-dia em suas experiências
como professora e dançarina na sua cidade natal, na Argentina.
À beira das danças
A sala de dança do ‘Alto da Sereia’, um morro do bairro Rio Vermelho em
Salvador/BA, que acolhe muitos estrangeiros, é o cenário da dança À beira do mito.
Pelas janelas entra a luz do dia e o som constante do mar. Num canto da sala está o
percussionista Manuel Corvalán27, irmão da dançarina. No centro do espaço, a
dançarina: tronco flexionado e cabeça pendurada junto aos braços. Os dois estão
vestidos de branco.
Começa um canto, um pedido de licença -‘agô’- para a terra.
“A jí dagôlônã qui uá xauòrò
Dagô ilêilê dagôlonã qui uá xauôrô
Dagô ilêilê”28 (OLIVEIRA, 1997, p. 76)
Logo entra a percussão, lenta, pesada, mas com ritmo muito marcado. O corpo
mostra o que não pode ver: suas próprias costas. A parte posterior está na frente e tem
algo que dizer. As costas movimentam-se como se tivesse algo que lhe incomoda, que
27 Manuel Corvalán é músico percussionista e contrabaixista que acompanha María Laura Corvalán em vários trabalhos de dança em Rosário, Argentina. 28 Ao acordar pedimos licença ao senhor no caminho, aquele a quem fazemos o culto tradicional, dê licença! à nossa casa, que pede licença no caminho a quem nós fazemos o culto tradicional (OLIVEIRA, 1997, p. 76).
105
vibra, queima e pica no corpo. Como se uma doença silenciada pedindo para se
‘expressar’.
As mãos mergulham na pele tentando acalmar a coceira. Arrancam algo das
costas e o jogam no chão e a cada mão que se lança, o corpo todo vai se arremessando
na terra. A terra empestada do corpo descansa na grande terra mãe.
Mas o que é um corpo empestado senão um corpo com um poder tão enorme
quanto a arte? Antonin Artaud (2002, p. 23) compara a peste com o teatro, porque
ambos afetam importantes comunidades produzindo “um caos social, uma desordem
orgânica carregada de mistério”.
Figura 21. Manifestação artística de María Laura Corvalán, Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo
A pele é só uma membrana que traduz processos muito mais profundos e
invisíveis que lhe acontecem ao corpo. No caso da peste, há uma disfunção e putrefação
dos órgãos, que provoca uma desordem geral no corpo. Gases e fluidos tentam fugir
pelas chagas e bolhas que aparecem na pele. No caso desta dança, afloram memórias
106
reprimidas, ritmos históricos e emoções que querem ser ouvidas. O desconforto que se
manifesta na pele é só uma consequência de tudo o que já estava preso no silêncio.
Com pouca força, o corpo pesado rasteja em direção ao tecido que está no chão.
Entra por baixo e vai se cobrindo com ele. Cobre a cabeça e o torso e descola-se do
chão. Coberto com o tecido traslada-se aos poucos para trás. Por momentos, há uma
força que puxa para baixo, mas ele aproveita a puxada para mudar de direção.
O corpo empestado, não venera suas feridas nem sua fraqueza; oculto no tecido
busca avançar, se movimentar, transformar seu estado. As mãos também contribuem no
movimento passando pelo corpo com um gesto que tira as doenças dele.
Ainda com o corpo dobrado para frente e coberto com o tecido, se traslada de
lado com uma mão projetada no chão, ora mostrando o dorso, ora a palma. Gesto que
fala da vida e a morte que representa a terra, mas também fala de um agradecer e um
pedir para a terra. Depois, vai para frente em grandes passos elevando os joelhos e
braços alternadamente. Após três passos, o corpo se estica, os braços sobem sacudindo
as mãos e muda de direção.
Figura 22. Manifestação artística de María Laura Corvalán, Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo
107
No mito, a peste de Omolú não pode ser vista e é coberta por uma roupa de palha
que lhe deu seu irmão Ogum. Artaud, comparando a peste com o teatro, diz que:
“o teatro, em essência, se assemelha com a peste, não já pelo fato de ser contagioso, mas porque, como ela, seria revelação e manifestação de um conteúdo de crueldade latente. Por meio dele, percebe-se, seja num indivíduo ou num povo, as numerosas possibilidades de perversão do espírito”. (Idem, p. 25)
Na dança acontece algo parecido. O corpo deve disfarçar-se de técnicas
esvaziadas, sorrisos forçados, ocultando emoções, histórias, pensamentos sejam de um
indivíduo ou de uma comunidade que bem perverteriam as normas de controle social. E
ainda mais, quando a dança se perverte, é muito contagiosa.
Traslados, giros, mudanças no espaço, o ar vai tomando mais presença na dança
da terra. Num momento o vento que entrou parece se acalmar. Detenção. Silêncio.
Calma chicha29. Aos poucos, o quadril começa a mexer. Os braços sobem por baixo do
tecido. O quadril não deixa de mexer, com as pernas sempre flexionadas.
Figura 23. Manifestação artística de María Laura Corvalán, Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo
29 No norte argentino, onde correm fortes ventos, se chama ‘calma chicha’ ao momento que o vento da uma parada, um silêncio, que anuncia que logo vem a tempestade.
108
Por cima do tecido, aparecem os olhos, as mãos abrem o buraco do tecido, que
vai mudando de forma e mostrando diferentes partes do rosto e cobrindo outras. A boca
se assoma, fazendo muitas gesticulações como dizendo algo, mas sem som; nada se
ouve. Descobre-se a cabeça, descobre-se um ombro e um braço que logo saem por cima
do tecido. Descobre-se o outro ombro, os braços liberados. Continua a ‘fala muda’ no
silêncio. A saia na cintura. Vento que não tem medo do contagio, mas a tempestade tem
um fogo que transforma a peste em beleza.
Vários mitos relatam que quando se levanta a palha de Omolú, as pessoas não
conseguem enxergá-lo, ou ficam cegas, por ele se tornar uma imensa luminosidade. Por
isso o associam ao sol. Em palavras de Reis (2000, p. 119): “a capucha de palha-da-
costa (aze) cobre o rosto de Obaluaiê para que os seres humanos não olhem para ele de
frente (já que olhar direitamente ao sol pode prejudicar a vista)”.
Artaud, por sua vez, afirma que “o teatro acolhe, ao igual que a peste, uma sorte
de raro sol, uma luz de anormais e fortes tons, onde o dificultoso e até o impossível de
improviso se converterá em elemento normal”. (ARTAUD, 2002, p. 26) Este sol que
não se olha de frente, esse fogo que encandeia, é a doença transformada, a fortaleza de
um sofrimento já cicatrizado e imunizado. O invisível se ilumina, o horroroso se
embelece e a peste vira imunidade.
Figura 25. Manuel Corvalán tocando Hung Drum.
Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo
Figura 24. Manifestação artística de María Laura
Corvalán, Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo
109
Surgem sons mais harmônicos, mais metálicos e agudos, numa música realizada
com o ‘Hung Drum30’ . O ar move o quadril que move as pernas, que mudam o peso de
uma e outra, até ficar com o peso do corpo numa perna só. A outra perna flutua no ar, se
afastando e se aproximando da outra perna, numa conexão do torso que articula braços e
pernas com um movimento único, rodeando o eixo num sentido espiralado. Há um
estado corporal que lembra um tango, leve e sensual. Mas essa leveza por vezes se
altera de tal jeito que corta e afasta tudo o que está em seu redor. A brisa torna-se um
vendaval que traslada o corpo e modifica sua postura.
Ombros e braços se movimentam ondulados. Um gesto da mão empurra e
provoca um giro, fica de costas. A mão empurra para o alto, o rosto olha para o que
empurra. Gira de repente e muda de direção. Agora, o olhar se afasta daquilo que
empurra. Segundo Isa Soares, às vezes é possível olhar para o que estamos afastando,
soltando, deixando ir, no intuito de incentivar o outro a partir. Mas, às vezes, não é
possível olhar para o que estamos soltando, porque se aquilo que é solto vira-se para
trás, corremos o risco de que memórias e emoções ressurjam e já não seja tão fácil
soltar.
Figura 26.Manifestação artística de María Laura Corvalán, Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo
30 Instrumento redondo e metálico, de origem suíça, que se toca com os dedos.
110
Assim, o fato de olhar ou não para aquilo que se empurra muda o gesto
completamente porque muda a relação com o espaço. Queira ou não queira, o vento
sempre solta, não é uma escolha, é sua natureza. Como diz a canção ‘Confesiones del
viento’:
“(…) Iba quebrado de culpas y seguía confesando, en su lomo de distancias no cabalgaba ni un pájaro, Era un fantasma ese viento, un alma en pena penando y en ese telar de angustias, tejió sus babas el diablo (…)”31 (Fragmento da canção ‘Confesiones del Viento’, letra: YACOMUZZI, R., música: FALÚ, J.)
A energia do vento não elege jogar árvores à terra. E se lamentando das
destruições que provoca no seu andar, vai se distanciando, quebrado de culpas. Assim
vai a dança, empurrando o ar com os braços, avançando sem rumo, fugindo de seu
próprio poder.
Figura 27. Manifestação artística de María Laura Corvalán, Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo
31 Ia quebrado de culpas e seguia confessando, no seu lombo de distâncias não cavalgava nenhum pássaro. Era um fantasma esse vento, uma alma em pena penando, e nesse tear de mágoas, teceu suas babas o diabo. (Fragmento da canção ‘Confissões do Vento’. Tradução nossa)
111
Um fogo desata-se na bacia e as pernas criam um sapateado que reboleia a saia.
Aparece a energia de búfalo, mulher-bicho, mulher-brava que bate na terra qual
sapateado de ‘chacarera’32. Fogo que transforma a dor, vento que seca as chagas, ar
que refresca o temperamento do corpo. Doença vira dança, tristeza vira festa e solidão,
companhia.
Olhando para frente, um dedo assinala o peito em movimento, depois seu ombro
que também se move vibrante e solto. Logo assinala para sua boca, que está bem aberta.
Aponta para a terra, depois para o céu, e para a percussão. Aponta para a câmera, para
seus olhos, para sua boca e para seu quadril que se move. Aponta para o peito, aponta
para a música e aponta para frente (possível espectador), para outro, e para outro. Cada
coisa assinalada cobra uma presença que antes não tinha, ilumina-se, foca-se, move-se
ainda mais. Assinala a terra, o quadril, o céu, o ombro... Apontar, assinalar, expor, dar
luz para os detalhes que foram negados durante muitas danças. Os dedos mudam cada
vez mais rápido de direção e na velocidade deslocam o corpo, girando e voltando. Fica
de costas, apontando para um ombro com um dedo e com o outro para o publico.
Detém-se, a música vai se calando aos poucos.
Esta tradução corporal e cultural pode intitular-se “Dança à beira do mito”.
Dançar à beira permite alargar sua fronteira, fazer mais extenso o interstício para
conversar entre duas culturas. Dançar à beira do mito de Omolú e Iansã oferece um
espaço propício para que ocorram encontros inesperados entre o vento e a terra, entre a
arte e a ciência, entre o sagrado e o profano de cada ser. Quando um corpo se encontra
com sua peste, não adianta ocultar-se embaixo de qualquer roupa. Somente um forte
vento pode desvendar o que estava podre, desamarrar a peste para que continue seu
processo de mutação.
“Se advertirá aqui que, da ótica humana, a ação do teatro, como a da peste, é de beneficio, já que ao impulsionar aos homens a que se vejam tal e como são, elimina a máscara, faz visível a mentira, a debilidade, a baixeza, a hipocrisia, sacudindo a paralisante inércia da matéria que mascara e obstaculiza ainda as testemunhas mais claras que nos dão os sentidos e revelando às comunidades sua obscura potencia, sua força latente, as induz a adotar, diante o destino, uma ação heroica e superior, que de outra forma jamais tivessem atingido.” (ARTAUD, 2002, p. 27)
32 Lembrando: Chacarera é um ritmo e dança do folclore argentino, oriunda de Santiago del Estero, com grande preponderância rítmica.
112
Assim como Artaud fala da ação do teatro, a ação da dança também pode ser
reveladora. Segundo a proposta de Souza Santos, a ação de traduzir também pode ser.
Fazendo analogia com o mito de Omolú e Iansã, o trabalho de tradução é um vento em
tempestade. É uma dança que move até o que ficou nas sombras da palha.
A tradução corporal da pesquisadora aqui apresentada vai além das danças. É
uma estratégia de sobrevivência. É mais uma forma de tirar do escuro as informações
reveladas pelas artistas e espalhar suas propostas, anelando que muitas outras traduções
artísticas cosmopolitas sejam dançadas e iluminadas. A tradução cosmopolita se anima
a ventilar o corpo empestado de outras culturas que ameaçam a monocultura da razão
ocidental. Avizinha-se a uma contaminação de diversidade cultural, uma verdadeira
peste ‘ecológica’ e, neste caso, pode ser contagiosa.
113
REFERÊNCIAS ABNT: Associação Brasileira de Normas técnicas. NBR 14724, Rio de Janeiro 2011. AGAMBEM, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Ed. Argos, Santa Catarina, 2009 ______ . Profanaciones, Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2005 ARTAUD, Antonin. El Teatro y su doble. Ed. Retórica, Bs As. 2002. BALMACEDA, María A. Recreando la danza de origen africano en Buenos Aires: Performance, identidad y cultura. In En: Leticia Maronese (comp.) Temas de Patrimonio Cultural 16. Buenos Aires Negra. Identidad y Cultura. Buenos Aires, 2006. BARBARA, Rosamaria Susanna. A dança das aiabas. Dança, corpo e cotidianidade das mulheres do Candomblé. São Paulo, 2003. ______________________. A dança sagrado do vento e da tempestade, Dissertação de mestrado em Sociologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1995. BARROS, Manoel de. O livro das Ignorãças. 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. BHABHA, Homi. O local da cultura, Ed. UFMG, Minas Gerais, 1998. BISPO, Tânia. Omi, a dança: divisor de àgua entre o sagrado e o profano, instrumento de revelação da cultura afrobaiana, Monografia do curso de Especialização em Estudos Contemporâneos em Dança – Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2004. BITTENCOURT, Adriana. A Natureza da Permanência: processos evolutivos complexos e a Dança. Dissertação inédita, PUC/SP. São Paulo. 2004. BRITTO, Fabiana Dultra. Temporalidade em dança: parâmetros para uma história contemporânea. Ed. Fid. Belo Horizonte, 2008. CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. Contra Capa / Pallas, Rio de Janeiro, 2009. CARVALHO, José Jorge de. Las Culturas Afroamericanas en Iberoamerica: Lo Negociable y lo Innegociable. Buenos Aires, 2002 CORVALÁN, María Laura. Corpo e comunicação na dança dos orixás. Licenciatura em Comunicação Social, Universidad Nacional de Rosario, 2007. COSSARD-BINON, Gisèle Omindarewá. AWÔ, o mistério dos orixás. Pallas Editora, Rio de Janeiro, 2006.
114
DAMASIO, Antonio. O mistério da consciência, Companhia das letras, São Paulo, 2000. DOMINGUEZ, María Eugenia. O ‘Afro’ entre os imigrantes em Buenos Aires: Reflexões sobre as diferenças, dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004. ELBEIN dos SANTOS, Juana. Os Nagô e a morte. Traduzido pela Universidade Federal da Bahia. 12. ed. Petrópolis, Vozes, 2007. ELÍADE, Mircea. Lo sagrado y lo profano. Ed. Guadarrama; Madrid, 1973. FOLEY, Robert. Os Humanos antes da Humanidade. Ed. Unesp, São Paulo, 2003. FONSECA JUNIOR, Eduardo. Diccionario Yoruba (Nagô) -Portugês, Ed. Civilização Brasileira; Río de Janeiro, 1988. FRIGERIO, Alejandro. Cultura Negra en el Cono Sur: Representaciones en
Conflicto. Ed. Educa, Bs. As. 2000.
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. – Porto Alegre: L&PM, 2002. GARCIA CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade. 4 ed., São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 2008. __________. Latinoamericanos buscando lugar en este siglo. 3 ed., Buenos Aires, Ed. Paidós, 2008. GODARD, Hubert. Gesto e percepção. In: Lições de Dança 3, Ed. UniverCidade, Rio de Janeiro, 1995. GREINER, Christine. O corpo. Pistas para estudos interdisciplinares. Ed. Annablume, São Paulo, 2005. __________. O corpo em crise. Ed. Annablume, São Paulo, 2010 KATZ, Helena. Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo. Ed. Fid, Belo Horizonte, 2005. LAKOFF. George e JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. São Paulo: Editora da PUC-SP, 2002. LEPECKI, André. O corpo colonizado. In: Gesto: Revista do Centro Coreográfico do Rio, vol. 3, n. 2. Rio de Janeiro: RioArte, p. 7-11, jul. 2003. MAUS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Cosac Naify, São Paulo, 2003 (1950).
115
MANZINI, Yashara Donizeti. Da porteira para dentro: da porteira para fora,
reverber (-) ações da dança litúrgica na cena contemporânea. Dissertação
(mestrado), Unicamp, Campinas, 2006.
MERLEAU – PONTY, Maurice. Fenomenología de la percepción. Ed. Planeta.
Barcelona, 1993 (1945).
MORAIS ZACHARIAS, José Jorge de. Ori Axé: a dimensão arquetípica dos orixás. Vetor, São Paulo, 1998. MOTTA, Margarida Seixas Trotte. Odundê: as origens da resistência negra na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Salvador, 2009. MOURA, Gilsamara. Macunaíma somos nós. Mário de Andrade: da literartura para a dança. Dissertação de Mestrado. PUC/SP, 2000. NAJMANOVICH, D. O sujeito encarnado. Questões para pesquisa no/do corpo. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. NOBREGA, Nadir Oliveira. Ago alafiju, Odara! A presença de Clyde Wesley Morgan na Escola de Dança da UFBA, 1971-1978. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, Salvador, 2006. OLIVEIRA, Altair. Cantando para os orixás. Pallas, 2 edição, Rio de Janeiro, 1997. OMINARÊ, BABALORIXÁ. Candomblé de Keto (Alaketo). Ed. Pallas. Rio de Janeiro, 1985. PELINSKI, Ramón (comp.). El Tango Nômade. Buenos Aires, Ed. Corregidor, 2000 PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. Ed.Companhia das Letras, São Paulo, 2001. PRANDI, R. O candomblé e o tempo. Revista Brasileira de Ciências Sociais — RBCS, n. 47, outubro 2001. REIS, Alcides Manoel dos. Candomblé: a panela do segredo. Ed. Arx. São Paulo, 2000. ROSAMARIA SUSANNA, Barbara. A dança das aiabas. Dança, corpo e cotidianidade das mulheres do Candomblé. São Paulo, 2003.
116
SAITO, Cecília. Japonicidades: Estudos sobre sociedade e cultura japonesa no Brasil Central. Ed. CRV, Curitiva, 2012. SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 2004. SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma Sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, Outubro 2002, p. 237-238. SANTOS, Inaicyra Falcão dos. Corpo e Ancestralidade: uma Proposta Pluricultural de dança-arte-educação. 2ª. ed. São Paulo: Terceira Margem, 2006. SOARES, Maria Isabel. Relatos, testimonios, metodologia, resignificaciones, memoria e identidad en la danza del ‘Xirê de Orixás’ . Comunicação apresentada no Terceiro Congreso Internacional de Culturas Afro Americanas. Buenos Aires, 2006. SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade, a forma social negro-brasileira. Ed. Vozes, Petrópolis, 1988. STINSON, Susan e GREEN, Jill. Pesquisa pós-positivista em dança. (Tradução de Betti Grebler). IN: Cadernos do GIP-CIT, Salvador, n.13, jul.2005. VERGER, Pierre. Orixás. Ed. Corrupio, São Paulo, Brasil, 2003. VIEIRA, Jorge Alburquerque. Teoria do conhecimento e arte: formas de conhecimento – arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Expressão Gráfica e Editora. Fortaleza, 2006. ZENICOLA, D. M. Dança das iabás no xirê: Ritual e Performance. R.Janeiro, Brasil, 2001.
Site consultado:
http://www.isasoaresdanzas.blogspot.com.br/