UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
REDE DE RELAÇÕES: A TESSITURA DO COTIDIANO DE UM CU RSO DE
PEDAGOGIA
VITÓRIA
2004
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LIZETE BRANDÃO RAMOS
REDE DE RELAÇÕES: A TESSITURA DO COTIDIANO DE UM CU RSO DE
PEDAGOGIA
A minha mãe e a meu pai, pelo zelo na tessitura de nossa identidade. A meu filho, cujo amor e carinho me fazem acreditar num mundo em redes.
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VITÓRIA
2004
LIZETE BRANDÃO RAMOS
REDE DE RELAÇÕES: A TESSITURA DO COTIDIANO DE UM CU RSO DE
PEDAGOGIA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Vitória do Espírito Santo, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientadora: Profa. Dra. Martha Tristão
Co-Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferraço
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VITÓRIA
2004
AGRADECIMENTOS
A Deus – a força maior que impulsiona as descobertas, os sonhos, a coragem e a
tessitura dos saberes na concretização do projeto humano.
À minha mãe, pelas vibrações no inicio dessa caminhada e a saudade no momento
de sua conclusão.
A meu filho Pedro, pela paciência nos momentos de ausência e por inspirar a
esperança de novas conquistas.
À minha família, pelo carinho, pela força e pela cumplicidade tecida ao longo da
vida.
À minha irmã Luzimar pelo carinho nos momentos difíceis e pela troca de idéias e
estímulo.
A Matha Tristão, minha orientadora, pelas intervenções necessárias à concretização
deste trabalho.
Ao Professor Carlos Eduardo Ferraço, pela amizade tecida e partilhada na
caminhada desse curso.
Ao amigo Elmo, pela troca de idéias e conhecimentos na dinâmica desta pesquisa.
À minha cunhada Heloíza Helena, pela inspiração poética e pela disponibilidade de
tempo para revisão do texto.
5
A Aparecida Brandão, amiga e colega mestranda pelas intermináveis trocas de
idéias tramadas ao longo do curso.
Ao grupo NOVOS RUMOS, por almejar um futuro melhor para FFPP, sobretudo pela
dignidade na condução de um processo sonhado à luz da transparência, do
colegiado e da ética.
Aos alunos do 7.º período do curso de Pedagogia da FFPP pela adesão e seriedade
assumida neste estudo.
Ao prof. Hiran Pinel por ter acreditado na realização e nas possibilidades desta
pesquisa.
À amiga professora Sônia Passos pelo carinho na revisão detalhada de todo o texto.
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RESUMO Este trabalho evidencia e analisa as práticas discursivas do/no cotidiano do curso de
Pedagogia da Faculdade de Formação de Professores de Petrolina – FFPP, campus
da Universidade de Pernambuco – UPE, identificando as possíveis influências
presentes no campo das redes de significação (culturas) tecidas entre alunos/as e
professores/as, desdobradas e relacionadas às mudanças de paradigmas
vivenciadas na atualidade. Inicialmente, foi narrada a experiência da
professora/pesquisadora, delineando, assim, o foco de interesse que norteou este
trabalho. Na introdução, apresenta-se uma visão global da pesquisa. Em seguida,
procura-se contextualizá-la na dimensão espaço/tempo, apresentando um breve
histórico da cidade de Petrolina, onde está situada a FFPP, local da realização dos
trabalhos desta pesquisa. No plano teórico e histórico, discorre sobre como o
currículo e os estudos culturais foram pensados e suas contribuições para esta
pesquisa. Também, nessa mesma dimensão, define um quadro sobre cotidiano,
identidade, conhecimento em rede, paradigma e hibridismo, tecendo uma
metodologia que incorpora, os elementos determinantes das tendências teóricas
examinadas. Os enunciados merecem destaque à medida em que ilustram os
desdobramentos dos temas, possibilitando chegar-se à conclusão que evidencia a
importância do cotidiano para o currículo e o conhecimento em redes, onde se abre
o entrelugar na tessitura das identidades.
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ABSTRACT
This work up and analyses the discursive practices of the everyday life of the
pedagogy course of the Faculdade de fornação de Professores – FFPP (Teacher’ s
Collge), canpus of the Universidade de Pernembuco – UPE (Pernambuco
University), identifying the possible influences in the field of the meaning network
(cultures) weaves among thhe students and teachers, unfolded and related to the
changes of the stanndard experienced at the present time. At first, it was quoted the
teacher-researchers’ experience, outlining, thus, tde interest focus which conducted
this work. In rhe introduction, we show an overview of the research. Thenn, we look
for to contextualize it in the space/time dimension, presenting a brief history of
Petrolina City, where the FFPP is located, the place of realization of rhe work of this
research. In the theoretical and historical plan, it goes about how the curriculum and
the cultural studies were thought and thei contributions for this research. Also in this
same dimension it defines a picture about ths everyday life, identity, knowledge,
standard and hybridism,weaving a methodology that incorporates, the defined
elemrnts of the examined theoretical trends. The enunciations deserves prominence
in far as they ilustrate the developments of the themes, allowing thhem to reach a
conclision which proves the importance of the everyday life for the curriculum and for
the knowledge, where it opens the place in the weaving of identities.
8
sumário
1 MEMÓRIAS TECIDAS EM REDES: UMA TRAJETÓRIA EM
DIFERENTES ESPAÇOS
2 INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1
3 ESPAÇOS EM REDES: IMPLICAÇÕES POLÍTICAS E SOCIAIS
NA TESSITURA DA HISTÓRIA
3.1 A ECONOMIA LOCAL
3.2 AGRICULTURA
3.3 REDES ESCOLARES
3.4 CONTEXTO POLÍTICO
3.5 CULTURA
3.6 UM RIO UMA HISTÓRIA
CAPÍTULO 2
4 CURRÍCULO E ESTUDOS CULTURAIS: ABORDAGENS
TRAMADAS A PARTIR DAS REDES DE RELAÇÕES TECIDAS NA
ESTEIRA DAS TEORIAS
4.1 HISTORIZANDO O CURRÍCULO
4.2 DIMENSÕES HISTÓRICAS NO BRASIL
4.3 ESTUDOS CULTURAIS: DIMENSÕES SÓCIO-HISTÓRICAS
4.4 CURRÍCULO E ESTUDOS CULTURAIS: TESSITURAS
ATUAIS
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CAPÍTULO 3
5 IDENTIDADE, CONHECIMENTO, PARADIGMA E
HIBRIDISMO: REFERENCIAIS QUE TECEM CONCEITOS E
FAZERES EM REDES
5.1 DIFERENÇA E IDENTIDADE
5.2 DIMENSÕES ATUAIS
5.3 NOVO PARADIGMA
5.4 CONHECIMENTO EM REDE
5.5 HIBRIDISMO
CAPÍTULO 4
6 VOZES EM REDES: UM APRENDIZ
6.1 ABORDAGENS METODOLÓGICAS E PROCESSOS VIVIDOS
CAPÍTULO 5
7 TECENDO A ANÁLISE
7.1 O CONTEXTO DO COTIDIANO
7.2 O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO
7.3 O CONTEXTO DA CULTURA/PODER
7.4 O CONTEXTO DO CONHECIMENTO/CURRÍCULO
7.5 O CONTEXTO DA IDENTIDADE
7.6 O CONTEXTO PARADIGMÁTICO
7.7 O CONTEXTO DO HIBRIDISMO
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1. MEMÓRIAS TECIDAS EM REDE: UMA TRAJETÓRIA EM DIFE RENTES
CONTEXTOS
“No mundo em que viajo, estou continuamente a criar-me”. Frantz Fanon
A epígrafe de Fanon, citada por Homi Bhabha, extraído do livro significativamente
intitulado “O Local da Cultura” (1998), projeta uma imagem do que interrogamos
neste trabalho de pesquisa.
Entendendo que minha tessitura identitária como professora/pesquisadora não se
dissocia da tessitura de minha vida, de me experimentar no entrelugar das formas
complexas, híbridas e miscigenadas, é que percebo importante um mergulho em
minha memória – a memória se torna uma ferramenta para a tessitura não apenas
do passado, mas da própria história. Neste mergulho em que lembrar é rememorar
atitude crítico-reflexiva, que nos possibilita recuperar; no passado, promessas não
cumpridas no presente, ao fazer da rememoração uma arqueologia da memória,
processo, através da minha história, articulando memória e conhecimento, resgata
saberes que a memória registra.
De início, destacamos a convivência familiar como fator relevante, constituinte da
minha própria identidade. Exatamente o que me deu a coragem e otimismo mesmo
quando tudo parecia nostálgico. Não poderia deixar de registrar tão importante fato
no mergulho dessa história que me tece, a cada momento, a pessoa de minha mãe
que apenas cursou os quatro primeiros anos do ensino fundamental e que a tarefa
de juntar letra com letra foi mais do que sons, foi dando sentido ao que foi sendo
tecido socialmente. No seu difícil momento com a perda do filho primogênito,
escreve sua dor, em um livro, com o titulo: “Lembranças e Saudades””. Fui assim
compreendendo que não se cria do nada, não se aprende do nada, mas a partir de
vivências. Como não perceber que os saberes se articulam em redes, em
associações e em processos crescentes de complexidade?
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Como educadora lancei-me à leitura desse livro, em busca de respostas às minhas
práticas pedagógicas.
A convivência com minha falecida mãe, migrante de uma pequena cidade de
Pernambuco - com nome de origem indígena “Óroco” - para uma maior cidade do
interior de Pernambuco, Petrolina – “cidade dos impossíveis” - em busca de melhor
aprendizagem para seus filhos, possibilitou-me uma compreensão dos processos de
sua tessitura de identidade. Sempre a vi projetando as construções ou reformas de
nossa casa, e como Green citado por Bhabha (1998) fazia certas associações entre
certas divisões binárias como superior e inferior. Todos os espaços transformavam-
se no processo de interação simbólica, o tecido de ligação que tece a diferença
(Bhabha, 1998:22). Com meu pai, que aos 93 anos recita, mesmo com sua mente
comprometida pela idade, mas presente sua preocupação com o outro, como tem
sido toda sua vida, com as formas que se excluíam os homens e mulheres desse
nosso nordeste, recitando todos os dias o que de melhor tem sua memória:
De tanto ver triunfar as nulidades De tanto ver crescer as injustiças De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, O homem desliga das virtudes, Rir-se da honra E tem vergonha de ser honesto. Rui Barbosa
Neste período, estava convencida de que essa dominação econômica tinha uma
profunda influência hegemônica sobre as ordens de informação do mundo ocidental.
A exclusão, vista pelo viés da economia e da honra, tão forte no homem nordestino
de mãos calejadas pela luta diária era uma constante. Tudo isso permitiu que seus
filhos, em constante solidariedade, estivessem sempre à frente dos movimentos
políticos e sociais, lutando pelos seres humanos, impossibilitados de participar dos
processos sociais, daí a participação de sua família no processo político na cidade
de Petrolina.
Nessa rememoração, sou levada a pensar como Souza (2003:253): a cultura da
pobreza, que é a maneira ainda freqüente, como se vê e se explica a existência dos
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sujeitos das classes populares, está associada à falta, à carência, à negatividade.
Para também, como ela, concluir:
A carência exposta na pobreza é expandida para a compreensão da pobreza como uma falta natural e totalizante dos sujeitos que são pobres. Ignora-se que a pobreza é uma condição histórica social e política e, portanto, produto de um sistema de relações que não reduz os sujeitos da pobreza à carência, nem elimina a riqueza e complexidade de suas existências humanas (...)
Nesse espaço familiar, onde o público/privado se misturavam em um único
espaçotempo de tessitura do eu que se faz Outro, minha memória traz a lembrança
da música com a qual fui tantas vezes embalada: “que a gente consegue um sonho
realizar”, sonhos de um mundo melhor com a superação de diferentes formas de
exclusões, mesmo que fosse numa leitura de naturalizar a pobreza.
Outro momento que merece destaque é o da vida escolar, misturado, imbricado e
dedicado à instituição escolar, no cumprimento de variados papéis: estudante em
todos os níveis, como agora, por exemplo, no mestrado; professora, nas diversas
esferas públicas, no ensino fundamental, ensino médio e terceiro grau;
administradora escolar, supervisora escolar, membro da comissão de reformulação
do curso de pedagogia. Nesses diferentes espaços – da escola e da vida social –
toda trajetória profissional e acadêmica foi trilhada.
O exercício dessas funções possibilitou-me conhecer mais de perto a
problematização da exclusão e as possibilidades de inclusão através das quais o
educador procura acreditar num mundo novo, sem fronteiras, onde a diferença seja
de se estar no Outro e não apenas na diversidade, no respeito ao outro. O educador
se faz em constante busca do novo, procurando entender, no cotidiano, a
multiplicidade toda que há dentro de cada um. E essa busca, essa inquietação,
sempre fizeram parte da minha caminhada, durante todo o processo profissional e,
daí, esta pesquisa. Como diz Ferraço (2003:156)
Estamos sempre em busca de nós mesmos, de nossas histórias de vida, de nossos “lugares”, tanto como alunosalunas que fomos quanto como porfessorprofessoras que somos. Estamos sempre retornando a esses “lugares
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(Lefebvre) “entrelugares” (Bhabha), “não-lugares” (Auge), de onde, de fato, nunca saímos (2003:158).
Embora sem saber explicar as sensações e inquietudes, sentia-as no Colégio Nossa
Senhora Auxiliadora, onde cursei o magistério e dei meus primeiros passos na
profissão que abracei. Evidenciavam-se, em sala de aula e na vida, sinais de
discriminação em relação a negros, pobres e diferentes. A escola, de formação
religiosa, não permitia, em suas procissões e novenas, “anjos de cor”. As alunas
escolhidas precisavam ser brancas, belas para adornarem os altares. Tocada por
essa experiência e, sem definir como, arquitetavam-se sonhos de construir uma
pátria sem fronteiras.
Aos poucos, fui percebendo que a escola refletia a sociedade. Uma senhora humilde
habilidosa tecelã de lindas rendas de bilro, que fazia parte da minha família, na sua
simplicidade, referia-se às crianças brancas como modelos de beleza e, como ela,
muitos outros reproduziam essas crenças.
Os artesões nordestinos podem ser os precursores do conhecimento em rede, dos
Estudos Culturais ricos em sua diversidade simples? Podemos estabelecer uma
relação das rendas com a metáfora dos rizomas? Essa conexão se torna
compreensiva? De fato, por mais complexo que seja o movimento das rendeiras o
produto (a renda) é algo regular, com simetria o tempo todo. O que não é o caso das
redes, nem dos rizomas.
A formação acadêmica foi concluída dentro de um currículo centrado nos conteúdos
metodológicos, sem possibilitar outros sentidos para se perceber e compreender o
processo educacional. Essa formação do técnico em educação, hoje problematizada
por muitos como nos fala Certeau (1994:679) não podendo ater-se ao que sabe, o
perito se pronuncia em nome do lugar em que sua especialidade lhe valeu. Assim,
ele se inscreve e é inscrito numa ordem comum onde a especialização tem valor de
iniciação enquanto regra e prática hierarquizante de economia produtivista. Por se
ter submetido, com êxito, a esta prática iniciática, ele pode, sobre questões
estranhas à sua competência técnica, mas não ao poder que por ela se adquire,
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proferir autoritariamente um discurso que já não é o do saber, mas o da ordem
sócio-econômica. Não consegui me afinar com esta tendência, e a todo tempo
procurava negar essa formação, participando dos movimentos, nos quais
questionávamos as políticas educacionais do governo de Pernambuco.
Essa formação foi sustentada na voz de Luiz Gonzaga – cantor nordestino – com o
canto/desencanto:
Lá no meu sertão pros caboclo lê Têm que aprender um outro ABC O jota é ji, o ele é lê O esse é si, mas o erre Tem nome ré Até o ypsilon lá é pssilone O eme é mê, O ene é nê O efe é fê, o gê chama-se quê Na escola é engraçado ouve-se tanto “ê”
O caboclo da luta, o homem dos sonhos, a escola excluía.
Nesse modelo, a ênfase curricular está centrada nos conteúdos metodológicos, sem
possibilitar uma reflexão sobre os princípios que estruturavam a prática de sala de
aula.
Poderia a escola desprezar e menosprezar a experiência que cada aluno trazia
como riqueza e bagagem cultural? Nessas experiências, cada aluno, em suas
muitas significações, interage, abrindo possibilidades de entrelugar: deslocamentos
que realizam estranhamentos, como uma ponte que nos desloca e nos leva a
transitar por territórios culturais diferentes, realizando uma estranha tessitura de
caminhar. O entrelugar que aqui se manifesta é do hibridismo que tece teias de
significações, e impede que se estabeleçam padrões culturais fixos e estáveis.
Devemos lembrar como nos diz Bhabha (1998) que é o “inter” – o fio constante da
tradução e da negociação, o entrelugar – que carrega o fardo do significado da
cultura.
16
Nesse momento, cheia de contradições, dúvidas e indagações, fui aprofundando o
conhecimento sobre a importância de um sentido mais minucioso sobre a questão
do currículo e as diferentes culturas. Dentro dessa teoria, fui percebendo que o
multiculturalismo, até então presente em discussões e contribuições dos
pesquisadores, vem da colocação da questão da solidariedade, onde as diferenças
sociais eram vistas simplesmente através da experiência de uma tradição cultural já
autenticada. Numa tendência atual, a cultura é teorizada dentro das bem-
intencionadas polêmicas moralistas contra o preconceito e o estereótipo ou da
asserção generalizadora do racismo individual ou institucional – isso descreve o
efeito e não a estrutura do problema. Era preciso desconstruir a lógica binária
através da qual identidades de diferença são freqüentemente tecidas –
negro/branco, eu/outro. (Bhabha, 1998). Essa noção de diferença cultural, não é da
diversidade cultural. O conceito de diferença cultural concentra-se no problema da
ambivalência da autoridade cultural: a tentativa de dominar em nome de uma
supremacia cultural, que é ela mesma produzida no momento da diferenciação.
Diversidade cultural é um objeto epistemológico – a cultura como objeto do
conhecimento empírico -, enquanto a diferença cultural é o processo da enunciação
da cultura como “conhecível”, legítimo, adequado à construção de sistemas de
identificação cultural. (Bhabha, 1998)
Essas inúmeras inquietações foram se constituindo de forma mais nítida, ao longo
de minha formação profissional, principalmente a participação na Comissão de
Reformulação do Curso de Pedagogia, da Faculdade de Formação de Professores
de Petrolina - FFPP, que me proporcionaram reflexões a respeito da problemática
presente no currículo desse curso.
O momento histórico atual é caracterizado pela velocidade das mudanças e pela
ruptura dos paradigmas tradicionais que provocaram no mundo do trabalho e das
ciências, com reflexo direto no campo das instituições educacionais, um emergir de
novas formas de conhecer, um constante reaprender para se estar num mundo em
constante mutação. Pensar esse tempo-já, díspare, heterogêneo e plural é que leva
a concluir que entre as ruínas que se escondem atrás das fachadas, podem
17
pressentir-se os sinais, por enquanto vagos, da emergência de um novo paradigma
(Santos, 2001:16).
Nesse contexto, surge a idéia de um estudo sobre o tema/objeto currículo, que se
constituiu, nessa dissertação de Mestrado em Educação da Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES), como interesse em contribuir para a discussão que se trava
nos currículos acadêmicos e que se torna importante na medida em que se
desenvolvem concepções diferenciadas e, às vezes, antagônicas na compreensão
dos currículos e nas diferenças culturais.
Acentua-se, assim, de forma mais forte, a preocupação com o currículo do curso de
pedagogia da FFPP, nas discussões e estudos, nos créditos do mestrado da UFES,
onde se deu início a esta pesquisa: "Rede de relações: à tessitura do cotidiano de
um curso de Pedagogia”, teci uma reflexão sobre o currículo do curso de Pedagogia,
uma vez que também sou responsável pela formação do Pedagogo, tão em
destaque dentro da comunidade.
Já nos primeiros passos, a pesquisa deu conta de que nenhuma cultura jamais é
unitária em si mesma, nem simplesmente dualista na relação do Eu com o Outro.
(Bhabha, 1998:65). Para tanto, tem como objetivo refletir sobre a tessitura de
identidades desses alunos/as/professores/as no tocante às mudanças de
paradigmas.
Nesta viagem, fui tecendo, nos vários contextos, minha identidade e como bem nos
fala Frantz Fanon, estou continuamente a criar-me.
18
2. INTRODUÇÃO
Meu trabalho tem muito a ver com um tipo de fluidez, um movimento de vaivém, sem aspirar a nenhum modo específico ou essencial de ser.
Reneé Green O desejo de realizar uma pesquisa com alunos/as e professores/as do curso de
Pedagogia da FFPP nasceu do convívio diário com esses mesmos/as alunos/as,
além de desenvolver uma prática de formação desses profissionais. Como
formadora de pedagogos, preocupava-me a prática daí resultante. Este desejo foi se
consolidando à medida em que participava das discussões geradas no decorrer do
cumprimento dos créditos do programa de mestrado em educação na UFES -
Universidade Federal do Espírito Santo.
Toda essa problemática, envolvendo as práticas em sala de aula tem contribuído
ainda mais para reforçar a necessidade de se discutir o papel da educação e do
currículo para os/as professores/as e suas influências presentes no curso de
Pedagogia da FFPP, vivenciadas pelos/as alunos/as, despertando apreciação à
diferença cultural para que superem os preconceitos a eles relacionados.
A escolha por pesquisar esse tema/objeto é resultante de atalhos percorridos que,
em diferentes momentos, me ajudaram a delinear este problema, que, com a
contribuição da minha professora orientadora e os estudos realizados, foi a mim
permitindo analisar quais as influências no curso de Pedagogia da FFPP, das redes
de significados (culturais) tecidos entre alunos/as e professores/as no cotidiano da/s
sala/s de aula.
O argumento central é que a formação de um/a professor/a comprometido/a política
e academicamente pode ser a preocupação com a diversidade de cultura. Diante
desse questionamento, surgiu a perspectiva de voltar a minha investigação para o
entendimento das influências do universo discursivo-cultural no processo de
formação dos/as alunos/as do curso de Pedagogia da FFPP.
19
Parece inegável que o fato maior do mundo atual são as lógicas da exclusão e o
alastramento da insensibilidade que as acompanham. Baseando-se nisso é que
alguns pensadores dizem que a educação terá um papel determinante na criação da
sensibilidade social necessária para orientar a humanidade (Assmann, 1998:26).
Crê-se, assim, estar surgindo uma hipótese desafiadora: a humanidade entrou numa
fase em que nenhum poder econômico ou político é capaz de controlar e colonizar
inteiramente a explosão de espaços do conhecimento. A internet parece ser um bom
exemplo.
Uma alternativa que parece bastante produtiva é a ocupação criativa dos acessos ao
conhecimento e a geração de propostas de direcionamento dos processos coletivos
que dinamizem o tecido social.
No contexto exposto, é que este trabalho foi realizado para ampliar a discussão,
remetendo a uma das preocupações contemporâneas sobre identidade e como os
currículos vêm contribuindo para este entendimento: Rede de relações: A tessitura
de um curso de pedagogia.
Uma questão que surge imediatamente está ligada às implicações dos Estudos
Culturais para a análise do currículo e para o currículo. Uma resposta possível é que
os Estudos Culturais permitem conceber o currículo como um campo de luta em
torno da significação e da identidade. Nesse entendimento, ao lado da cultura, o
currículo pode ser concebido como uma prática discursiva que tece identidades
sociais.
Essa discussão fundamenta-se nas contribuições pós-modernas e pós-colonialistas
que estão voltadas para as formas discursivas de produções, - um currículo tece
identidades sociais. Essa tendência busca formas alternativas de discurso
curriculares, de forma a tecer vozes culturais plurais e o diálogo da diferença.
20
O foco da nossa pesquisa é descrever as diversas formas de conhecimento
corporificadas no currículo como resultado de um processo de tessitura social. Esse
enredamento procurou incorporar ao currículo as múltiplas pesquisas e teorizações
feitas no âmbito mais amplo dos estudos culturais. Nesse contexto, o conhecimento
não é uma revelação ou um reflexo da natureza ou da realidade, mas o resultado de
um processo de criação e interpretação social. Não se separa o conhecimento
supostamente mais objetivo das ciências naturais e o conhecimento supostamente
mais interpretativo das ciências sociais ou das artes. Também não há uma
separação rígida entre o conhecimento o “cientifico” e o conhecimento cotidiano das
pessoas envolvidas no currículo. Percebe-se, sim, todo conhecimento como um
objeto cultural.
Pensar em um cotidiano alternativo que valorize a pluralidade cultural e contribua
para a formação da cidadania multicultural passa a se impor. Surgem, então, outras
questões, tais como a emergência das preocupações dos Estudos Culturais no
currículo, ligadas a que sentidos eles têm apresentado às novas possibilidades da
tessitura do conhecimento e o perigo que podem representar interpretações
dogmáticas, reducionistas dos mesmos.
As preocupações suscitadas em entender o currículo em novas possibilidades levam
a diversas reflexões. É o caso de Alves que diz: nossa preocupação está na
necessidade que percebemos de que os estudos de currículo, para além da análise
das políticas oficiais, se dediquem a compreender como cotidianamente são
enredados os conhecimentos e realizados os currículos (Alves, 2002:9). Dirá
também Certeau (1994) que a preocupação é buscar nesse cotidiano, para além de
entendê-lo como lugar de reprodução e consumo, o que nele se cria no uso dos
produtos e regras que neles são postos pelo poder proprietário.Acredita-se, pois,
que para apreender a 'realidade' da vida cotidiana em qualquer “espaçotempo1” em
1 Para Nilda são necessárias novas maneiras para expressar novos modos de pensar e fazer, com o
objetivo de superar a maneira dicotomizada da modernidade tenho buscado modos de escrever que,
pelo menos, mostrem essa necessidade.
21
que ela se dá, é preciso estar atenta a tudo o que nela se passa, se acredita, se
repete, se cria e se inova, ou não (Alves, 2001:19).
Pensar o currículo nessa tendência induz-nos a uma aproximação com um dos
teóricos de escrita mais profunda e criativa. O afastamento das singularidades de
“classes” ou “gênero” como categorias conceituais e organizacionais básicas
resultou em uma consciência das posições do sujeito – de raça, gênero, geração,
local institucional, localidade geopolítica, orientação sexual – que habitam qualquer
pretensão à identidade no mundo moderno. O que é teoricamente inovador e
politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de
subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos
que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses “entrelugares”
fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou
coletiva – que dão início a novos signos de identidades e postos inovadores de
colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de sociedade. (Bhabha,
1998:20)
È na emergência dos interstícios – a sobreposição e deslocamento de domínios da
diferença – que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação, o interesse
comunitário, ou o valor cultural são negociados.
A articulação social da diferença, no contexto da minoria, é uma negociação
complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais
que emergem em momentos de transformações históricas. O “direito” de se
expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizado não depende da
persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever,
através das condições de contingência e contrariedade, que presidem sobre as
vidas dos que estão “na minoria”. O reconhecimento que a tradição outorga é uma
forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, este introduz outras
temporalidades culturais incomensuráveis na inversão social. (Bhabha, 1998:20-21).
22
O que significa penetrar no currículo a partir dos Estudos Culturais e sua
contribuições para a tessitura de identidades? E o que significa, no sentido em que
aqui assumimos, esta identidade? E a cultura?
Para Bhabha (1998) esses termos que apontam insistentemente para o além –
significam distância espacial, marcam um progresso, prometem o futuro – só
poderão incorporar a energia inquieta e revisionária deste se transformarem o
presente em um lugar expandido e excêntrico de experiência e aquisição de poder.
Por exemplo: se o interesse no pós-modernismo limitar-se a uma celebração da
fragmentação das “grandes narrativas” do racionalismo pós-iluminista, então, apesar
de toda sua efervescência intelectual, ele permanecerá em empreendimento
profundamente provinciano. O lugar da diferença cultural pode tornar-se mero
fantasma de uma terrível batalha disciplinar na qual ela própria não terá espaço ou
poder. As tendências aqui adotadas buscam constituir uma coerência interna e
contribuem, produtivamente, para a reflexão sobre o currículo e sobre o próprio
projeto político-pedagógico da instituição pesquisada.
Tomando como base os teóricos do currículo e dos estudos culturais é que
penetramos no cotidiano da escola e das salas de aulas, ouvindo e dialogando com
os diversos atores dessa tessitura, buscando interpretar os sentidos atribuídos aos
diversos valores constitutivos das diversas práticas desenvolvidas no cotidiano do
curso de Pedagogia da FFPP.
Para nortear e dinamizar a leitura do nosso trabalho desenvolvemos a seguinte
organização:
No primeiro capitulo não se poderia deixar de contemplar a história da cidade,
espaço dessa discussão, sem querer tornar um trabalho exaustivo, porém com o
intuito de demonstrar os enredamentos existentes nesse contexto e o foco da
presente pesquisa.
23
No segundo, traçamos um paralelo entre currículo e os Estudos Culturais,
procurando apontar os entendimentos que melhor dêem corpo às tendências da
atualidade e que mais se aproximam do meu estudo, ressaltando a relação existente
entre essa pesquisa e o local de referência.
No terceiro, problematizamos os diferentes conhecimentos, suas metáforas e o
significado de hibridismo, dentro da noção de redes de conhecimento. Embasado
nas idéias de Certeau e Nilda Alves, tentamos compreender o cotidiano como
espaçotempo de tessitura de identidade.
No quarto, apresentamos a tessitura da metodologia elaborada em alguns
momentos, demolida em outros, numa gestão sofrida, porém muito gostosa. Não foi
adotado um método, pois este foi sendo tecido durante o processo. A análise dos
dados buscou outros tipos de análises, rompendo com os cartéis opressores e
conservadores.
No quinto capítulo, concluímos com ênfase na riqueza do cotidiano escolar,
destacado nos enunciados responsáveis pelo entrincamento de cada tema
estudado.
24
CAPÍTULO 1
3. ESPAÇO EM REDE: IMPLICAÇÕES POLÍTICAS E SOCIAIS NA TESSITURA DA HISTÓRIA
Todo Nordeste é mágico, mas o sertão é o espanto. Frederico Pernambucano de Mello
Entendemos que falar da Faculdade de Formação de Professores de Petrolina –
FFPP - nos remete a Petrolina, geograficamente no Nordeste da magia e do espanto
do sertão, como nos fala o sociólogo Pernambucano.
É o sertão do amansador de burros brabos, do matador de onças, dos vaqueiros,
dos cantadores de violas, da Sinhá parteira, dos cangaceiros/as e de Canudos.
Pensamos em tudo isso para podermos falar de Petrolina, cidade que desde a sua
origem tem características muito fortes de estrangeiros. Nesse contexto, acolhe o
hibridismo sem ser possível nenhuma cultura nacional, mesmo que lhe seja imposta
por uma família tradicional que, de certa forma, dita valores, estabelece uma certa
tradição, uma tradição econômica, que tem como principal objetivo preservar o
poder, poder econômico e poder político dentro de sua própria família.
Três trabalhos muito significativos sobre o município contribuíram no traçar desse
percurso: o primeiro “As práticas do coronelismo: estudo sobre o domínio político
dos Coelhos em Petrolina PE”, de João Morais de Sousa, tese de doutorado na
Universidade Federal de Pernambuco; o segundo, “As frutas Amargas do Velho
Chico: irrigação e desenvolvimento no vale do São Francisco”, de Didier Bloch, com
iniciativa da Oxfam, agência de desenvolvimento com sede na Inglaterra que apóia
projetos de organizações não-governamentais e movimentos sociais no Brasil desde
1968 e, o terceiro, o livro “Opara”, do professor/sociólogo, Esmeraldo Lopes.
25
Segundo os seus registros, os primeiros habitantes de Petrolina datam de meados
do século XVIII. O local era apenas uma passagem pouco movimentada para
Juazeiro, do lado da província baiana. De ponto de encontro de viajantes –
especialmente boiadeiros que cruzavam o gado para o outro lado do rio São
Francisco - passou a ser povoado com a intensificação da demanda de viajantes das
províncias do Piauí, Ceará e Maranhão. Foi inicialmente chamada de “passagem”
em decorrência da travessia do rio São Francisco, atendendo ao transporte de
pessoas e cargas que era feito em canoas entre as margens das províncias de
Pernambuco e da Bahia. No início do século XIX, com a intensificação dos viajantes
e o crescimento do povoado de Juazeiro, passou a ser chamada “passagem de
Juazeiro”.
Antiga “passagem de Juazeiro”, logo foi ocupada pelos capuchinhos que, em 1860,
inauguram uma capela que, junto com a agricultura e a comunidade, estimulam o
nascimento do povoado.
Petrolina é um dos principais centros urbanos da micro região do Sertão do São
Francisco, no Estado de Pernambuco. Encontra-se às margens do Rio São
Francisco, no ponto de divisa entre Pernambuco e Bahia, ligando-se através de uma
ponte com a cidade bahiana de Juazeiro que bem nos diz Heidegger citada por
Bhabha (1998) A ponte reúne enquanto passagem que atravessa.
É um município essencialmente urbano, com alta taxa de crescimento e imigração.
Possui 218.336 habitantes. (IBGE ano 2000).
Petrolina possuía, em 1998, uma densidade demográfica de 46,79% habitantes por
Km2 e ocupava a quinta colocação no Estado em crescimento populacional, com
uma taxa anual de 3,2% e elevadas taxas de migração. Também possuía uma taxa
de urbanização de 77%. Segundo dados preliminares do IBGE, do censo 2000, a
população de Petrolina é de 218.336 habitantes, sendo 166.113 (76%) na zona
urbana e 52.223 (24%) na zona rural.
26
Segundo Sousa (2001), o espanhol Padre Martinez exerceu, durante as últimas
décadas do século XIX, grande influência na região no que diz respeito ao seu
espírito empreendedor e de busca de prosperidade social, econômica e religiosa.
Este mesmo religioso favoreceu os seguidores de Antonio Conselheiro pelo que foi
preso e torturado.
Apesar da imprensa apresentar quase sempre o município enquanto próspero,
econômica e politicamente, do ponto de vista social não se pode dizer a mesma
coisa.
É um município que sofreu forte influência da Igreja Católica, tendo se desenvolvido
sob a égide dos seus bispados aqui instalados. O clero foi pioneiro no que se refere
ao processo de desenvolvimento da agricultura irrigada, tendo sido o realizador da
Primeira Semana Ruralista em 1953, juntamente com a sociedade política estadual
e federal importantes membros da sociedade civil-local. A partir daí, Petrolina
passou a ser o centro nodal da agricultura irrigada no submédio do São Francisco,
sendo, inclusive, sede da Comissão de Desenvolvimento do Vale do São Francisco
– CODEVASF e da EMBRAPA (Empresa Brasileira de pesquisa Agropecuária),
órgãos federais de planejamento e pesquisa.
3.1 A ECONOMIA LOCAL:
A economia local e regional é orientada pelo comércio exportador de produtos
agrícolas e de agroindústria. O pólo Petrolina/Juazeiro, sob a égide do capital
comercial, tem se tornado um núcleo urbano de quase 400.000 habitantes, grande
pólo de extração de migrantes o que proporciona uma intensa circulação de
passageiros, de mercadorias e de reprodução do capital, daí sua designação de
“CALIFÓRNIA DO SERTÃO” ou “CALIFÓRNIA DO NORDESTE”. Apesar destas
denominações, o modelo de desenvolvimento adotado não tem proporcionado
investimentos na área social, constituindo-se, na verdade, como todo o Brasil, numa
região de grande contigente de oferta de mão-de-obra, o que reduz em grande
proporção o seu valor. De acordo com Bloch (1996:11), os fatos mostram que
27
indicadores econômicos aparentemente favoráveis podem esconder tristes
realidades sociais.
Em Petrolina, a pobreza cresce a passos largos, não existindo projetos no sentido
de minimizá-la. As políticas oficiais têm estimulado as empresas e não as
cooperativas e/ou pequenos produtores, segundo Sousa (2001) e Bloch (1996).
Em Petrolina, os trabalhadores rurais dependem do trabalho sazonal e de salário
muito baixos. Vivem alojados em barracos, à beira das estradas e vendendo
diariamente sua força de trabalho, sem qualquer perspectiva de futuro.
A partir desse contexto, pontuamos que uma das saídas para o município seja o
Desenvolvimento Sustentável. Este aponta respostas para a crise ambiental
provocada pela modernização industrial, pela globalização da economia.
Segundo Tristão (2001:80)
O desenvolvimento sustentável emerge como fruto da insatisfação humana contra um modelo falido de desenvolvimento cunhado na racionalidade instrumental e como subversão à ordem econômica dominante. Daí, só é possível pensar esse compromisso e responsabilidade com as futuras gerações a partir da incerteza do conhecimento científico e técnico e da constatação dos desequilíbrios constantes de todos sistemas.
O desenvolvimento sustentável propõe-se a mudar os valores individualistas e
competitivos que desembocam na exclusão social, por uma visão comunitária cuja
base seja a inclusão. Por outro lado, há que se pensar não na forma utópica em
desenvolvimento sustentável, mas em sociedades sustentáveis.
A sustentabilidade pressupõe a criação de espaços institucionais de participação, o
deslocamento da racionalidade econômica para o campo da ética e a tradução dos
valores em necessidades humanas. Ou seja, a política deve estar voltada para a
democracia e a participação dos cidadãos e das cidadãs assim como para a
autodeterminação dos povos, a diversidade biológica, cultural e social.
28
A sociedade sustentável pratica a gestão do meio ambiente com participação, com
pesquisa científica, vislumbrando-se as sabedorias de vida e os valores éticos.
Condição fundamental a esta sociedade é o acesso à educação.
Na realidade, a economia instalada na região está inserida no processo de
globalização, posto que a região constitui-se num “mercado livre” voltado para a
exportação, em detrimento da segurança alimentar local.
Consideramos que a alternativa para Petrolina seja aumentar as possibilidades de
formação política, assim como da ética e da moral. No sentido de formação da
cidadania em contra posição à exclusão vigente.
3.2 AGRICULTURA:
O bi-pólo juazeiro/Petrolina sofreu um verdadeiro boom populacional. Os migrantes
e os trabalhadores da terra foram deslocados da agricultura familiar para a grande
irrigação, formando exército de mão-de-obra desqualificada, barata e sazonal;
procuram trabalho nas plantações de tomate, cebola, manga, e uva. Apenas na
plantação de uva, os assalariados têm um emprego permanente – onde, no entanto,
ocorrem diversas irregularidades no uso das leis trabalhistas. O bi-pólo tem ainda
como uma de suas atividades mais rentáveis, a produção de frutas voltada para os
centros urbanos do país e a exportação.
Petrolina, atualmente, confunde-se com a agricultura irrigada. Para Bloch (1996), o
desenvolvimento da agricultura irrigada no submédio São Francisco é o tema de
grande atualidade e vem sendo objeto de estudos que abordam aspectos os mais
variados, como o crescimento populacional e econômico da área atingida pelo
impacto da irrigação; a atuação de órgãos federais, como a CODEVASF e a
EMBRAPA nas transformações que vêm ocorrendo na economia regional; a
importância que a região adquiriu como exportadora de produtos tropicais oriundos
da agroindústria, ou apenas da agricultura; as modificações e adaptações de uma
nova tecnologia agrícola e os impactos sobre o meio ambiente.
29
Em 1964, foi instalada a CODEVASF, órgão comunitário sem fins lucrativos, para
lutar por instrumentos e ações em prol da região do submédio São Francisco, tendo
como centro gravitacional o bi-pólo juazeiro/Petrolina. A idéia da criação do órgão
partiu dos Coelhos, especialmente de Paulo Coelho e do seu parente Luiz Augusto
Fernandes, das dioceses de Petrolina e Juazeiro e de outros colaboradores do meio
empresarial e político dessas cidades. Guilherme Murphy presidiu o ato de
instalação da Codevasf, tornando-se o primeiro presidente. (Sousa, 2001)
A fruticultura é, junto com a produção de cana, cebola e tomate, uma das principais
atividades produtivas do submédio São Francisco. A produção de frutas, destinada
aos grandes centros urbanos do país e à exportação, é também uma das atividades
mais rentáveis do vale. Existe, assim, uma grande variedade de frutas cultivadas
nas áreas irrigadas: limão, banana, manga, melão, melancia, maracujá, coco, caju,
goiaba, acerola, pitanga, abacaxi e até figo. O setor, como um todo, está em nítida
expansão na região: entre 1987 e 1992, a produção de frutas passou de oito mil
para 55 mil toneladas e as exportações saltaram de seiscentas toneladas para 28
mil toneladas.
A implantação da agricultura irrigada no Submédio São Francisco não parece
obedecer a um plano de desenvolvimento regional em sentido amplo, integral. A
impressão que dá, pelo modo como têm atuado os órgãos do Estado, as tradicionais
oligarquias locais e o empresariado, é que a irrigação torna-se sob o discurso da
solução definitiva para o Nordeste, e com uma boa dose de irresponsabilidade social
e ecológica – uma nova “galinha dos ovos de ouro” (Bloch, 1996: 77-78).
Para Bloch (1996), a irrigação praticada no São Francisco carrega uma boa
dosagem de “irresponsabilidade social e ecológica”.
3.3 REDES ESCOLARES: Atualmente, existem duas faculdades no município: a FACAPE, com 2.200 alunos,
uma autarquia ligada ao município, onde funcionam os cursos de Administração,
Ciências Contábeis, Turismo, Secretariado, Ciências da Computação e Economia e
30
a FFPP, com 3.500 alunos, Campos da Universidade de Pernambuco, que oferece
os seguintes cursos: História, Geografia, Matemática, Biologia, Letras e Pedagogia.
Oferece ainda cursos de especialização nessas áreas – cursos por módulos, em
período de férias. A Faculdade de Formação de Professores de Petrolina foi criada
pela Lei Municipal nº 31 de 29.10.68, na gestão do Sr. Prefeito Municipal, José de
Souza Coelho, com o objetivo de formar professores e especialistas de nível
superior, realizar ensino de qualidade e promover pesquisa e extensão.
Autorizada a funcionar pelo Conselho Estadual de Pernambuco, a FFPP realizou
seu primeiro Vestibular em fevereiro de 1969, oferecendo os Cursos de Licenciatura
Curta (3 anos) em Letras, Ciências e Estudos Sociais, em regime seriado até o ano
de 1973. No ano letivo de 1974, criou-se o sistema de crédito com os vestibulares
realizados através do CESESP até janeiro de 1982. Em julho de 1982, a FESP se
desliga do CESESP e realiza o seu primeiro vestibular, quando também foi
implantada a 2ª entrada dos cursos oferecidos. Os Cursos de Licenciatura Curta
foram reconhecidos em 1975, através do Decreto nº 75617/75, de 16 de abril de
1975, legalizando, assim, a expedição de Diplomas dos Licenciados.
Em 1978, através da Resolução nº 05, de 12.04.78 e Parecer nº 7778 do Conselho
Estadual de Educação, os cursos foram convertidos em Licenciatura Plena com 8
períodos, tendo sido realizado o seu primeiro vestibular em janeiro de 1979 nas
seguintes Licenciaturas: Letras com habilitação em Português/Inglês; Ciências com
habilitação em Matemática e Biologia, História e Geografia, todos reconhecidos pela
Portaria nº 615 de 07.08.85, publicada no Diário Oficial de 12.08.85. Em 1988, foi
implantado o Curso de Pedagogia com as habilitações: Administração e Supervisão
Escolar, reconhecido pela Portaria nº 0964 de 12.06.91, publicada no Diário Oficial
de 13.06.91. Hoje, a Faculdade oferece as habilitações Magistério das Disciplinas
Pedagógicas e Supervisão Escolar.
Foi oferecido, também, o Curso de Licenciatura Plena em Educação Física, uma
extensão da ESEF-Escola Superior de Educação Física - Recife para suprir
necessidades das Escolas Públicas de Petrolina e Juazeiro. Em 1994, foi implantada
31
a Escola de Aplicação Professora Vande de Souza Ferreira - Ensino Fundamental e
Ensino Médio, servindo de campo de estágio para as Licenciaturas oferecidas na
FFPP. Nos seus 29 anos de atividades, a FFPP foi dirigida pelos professores
Nicolau Boscardin, Manoel de Sá Ferraz, Carlos Alberto Pires, Ana Amélia
Fernandes de Araújo de Souza, Joaquim Silva e Santana, Maria do Socorro de
Araújo Matos. Atualmente, a FFPP é dirigida pelas professoras Maria do Socorro
Ribeiro Nunes (Diretora) Diris Guerra de Morais Torres (Vice-Diretora), eleitas para o
quadriênio 2000/2004.
Os/as alunos/as do Curso de Pedagogia são oriundos/as de diversas regiões. São,
em sua grande maioria, trabalhadores/as em diversos espaços, a exemplo de
domésticas e alunos-as/trabalhadores/as da educação. Temos conhecimento, ainda,
de que os/as alunos/as das diferentes cidades, realizam, diariamente, uma longa
jornada entre suas cidades de origem e o campos universitário. Temos alunos/as
que chegam em suas residências apenas às 3 h da manhã e, logo às 6 h, deverão
chegar ao trabalho.
Foi implantada recentemente a “Universidade do São Francisco”, (UNIVASF) que,
segundo o MEC (Ministério da Educação), atenderá 1.100 municípios do Semi-Árido
de Pernambuco e da Bahia. O primeiro vestibular deverá acontecer em 2004. A
UNIVASF está sendo implantada pela Universidade Federal do Espírito Santo.
No que tange ao Ensino Médio, o município dispõe da Escola Agrotécnica Federal –
oferecendo os cursos de Agropecuária, Zootecnia, Agricultura, infra-estrutura e
Agroindústria - , da Escola Técnica Federal de Pernambuco (Unidade Petrolina) –
funcionando os cursos de Agrimensura, Edificações, Eletrotécnica, Química,
Refrigeração e Saneamento.
3.4 CONTEXTO POLÍTICO
A partir de 1930, Petrolina passou a ser liderada pela oligarquia Coelho que
mantém até hoje, relações de compadrio no processo de administração da coisa
32
pública. Com o fortalecimento do poder central, o poder local passou a ser atrativo,
pois a política despontou como aliada no crescimento regional. Surge, então, a
oligarquia Coelho, atualmente no comando do PPS local. Ao assumir o controle do
poder político em Petrolina – tênue ou ausente nas resoluções de serviços
essenciais -, os Coelhos e/ou seus cabos eleitorais passaram a prestar serviços
atribuídos a esse poder, principalmente, em casos de doenças e solicitações de
pequenos préstimos. Os principais fatores motivadores da prestação desses
serviços eram as relações de compadrio/amizade e, ainda, princípios religiosos –
alguns membros do grupo afirmaram ajudar seus dependentes/subordinados em
situações críticas porque, em outras justificativas, temiam ser castigadas, já que se
encontravam ocupando posições/postos, para os quais se consideravam designados
por Deus. (Sousa, 2001)
Nessas situações, os recursos particulares dos chefes locais assumiam conotação
pública. Porém, o caráter dessas relações era particularizado e se constitui em
dívida para os que necessitavam dos serviços e, em crédito, para os chefes e/ou
cabos eleitorais controladores dos mesmos e, portanto, controladores dos
“necessitados”. Os Coelhos, além dos ganhos políticos, passaram a pleitear os
gastos dos serviços prestados aos seus dependentes (os diversos préstimos
pessoais), junto às esferas públicas: estadual e federal, o que caracterizaria o fim da
dívida/fator para com os dependentes.(Sousa, 2001:155 – 156)
Entretanto, o sentimento de gratidão e/ou de dívida era despertado pelos próprios
membros do grupo Coelho e/ou pelos seus seguidores aos que necessitavam dos
serviços. Estes, sentindo-se em dívida para com aqueles, ofertavam o principal
“bem” responsável pelo benefício recebido: o voto seja ao próprio grupo, ou aos
candidatos indicados por ele. É importante lembrar que a cobrança pela dívida em
forma de voto não fica restrito somente à pessoa que se beneficiava do serviço, mas
aos seus familiares e amigos.
Aqui, fica claro que muitas das decisões para o desenvolvimento da região partem
de decisões tomadas, não levando em conta as instituições, os canais democráticos
33
de participação, absorvendo os anseios da população local, mas o interesse de
apenas um grupo que decide por todos. Também, é patente que muitas dessas
decisões são determinadas pelas relações pessoais de amizade e se sobrepõem e
extrapolam as vias institucionais, excluindo as discussões com segmentos da
sociedade civil organizada e se distanciando da impessoalidade e dos interesses
nacionais. Aqui, prevalecem os interesses do grupo e, como posto antes, eles
nascem através dos laços de amizade, da troca de gentilezas, dos apoios
barganhados entre grupos que não representam necessariamente os interesses da
comunidade. (Sousa, 2001)
3.5 CULTURA:
Petrolina parece-nos um pouco de tudo isso, embora os estudos sobre a cultura
precisem determinar melhor esse “vigor” e essa influência. Existem cidades que se
destacam pela sua história, outras pelo seu dinamismo econômico. Existem cidades
que também se destacam pela sua posição estratégica no desenvolvimento regional,
ou pelo vigor da sua influência cultural. Com efeito, Petrolina se destaca por seu
desenvolvimento econômico, sendo, portanto, importante refletir esse contexto,
sobre as questões culturais: em Petrolina, existe uma forte predominância do poder
político entregar parte da nossa riqueza nas mãos de estrangeiros. Petrolina, como
uma cidade de contrates, nossa economia de monopólio é voltada para
agroindústria; os nossos valores não são equilibrados, porém contraditórios e
divergentes.
Não há no mercado, trabalho suficiente para todos. Os/as trabalhador/as são
obrigados/as a viverem de sub emprego e desemprego. Do ponto de vista da
cultura, afirma-se como nos fala Bhabha (1998) não existe uma cultura nacional,
são híbridos, porque tem uma característica bem especial. Nós vivemos em fronteira
com os Estados: Bahia, Piauí e Ceará, entendendo que ninguém se translade de um
lugar para outro sem ser afetado porque cada um herda ou se apropria de culturas
diversas, é que se entende, que esses imigrantes mesmos organizados em
associações na busca de preservarem suas tradições, suas culturas e, ao mesmo
34
tempo, economicamente eles buscam se integrar à cidade, do ponto de vista dos
valores, das suas tradições, de suas crenças etc., é que reafirmamos o pensamento
de Bhabha de que não existe uma cultura nacional.
Petrolina reúne todas essas qualidades num único espaço. Cidade para onde
converge, desde o início do século passado, pessoas de distintas culturas, projeta-
se na região como uma terra de oportunidades, reunindo da vitalidade da produção
agrícola ao dinamismo da indústria e do comércio, bem como o gosto pelas artes, a
literatura e a cultura popular.
Percebemos que nos três trabalhos que subsidiaram esse texto, existe uma forte
tendência em afirmar que, aqui se impõe uma cultura nacional. Para tanto,
entendemos que o próprio conceito de culturas nacionais homogêneas, a
transmissão consensual ou contígua de tradições históricas, ou comunidades
étnicas “orgânicas” – enquanto base do comparativismo cultural -, estão em
profundo processo de redefinição. O extremismo odioso do nacionalismo sérvio
prova que a própria idéia de uma identidade nacional pura, “etnicamente purificada”,
só pode ser atingida por meio da morte, literal e figurativa, dos complexos
entrelaçamentos da história e por meio das fronteiras culturalmente contingentes da
nacionalidade [natioonbood] moderna. (Bhabha, 2003:24).
Cremos que Bhabha (1998) dá conta de explicar a problemática cultural de Petrolina
Ele fala do ponto de vista dos sujeitos marcados por histórias de deslocamentos
geográficos e culturais, com todas as contradições, movimentos e sínteses culturais
na tessitura de nossas identidades. Como citado anteriormente, Petrolina parece
imprimir uma cultura nacional, mas, segundo (...) cada vez mais, as culturas
“nacionais” estão sendo produzidas a partir da perspectiva de minorias destituídas
(1998:25).
Entendemos ser uma importante orientação metodológica compreender a cultura da
sobrevivência que significa a realidade cotidiana na perspectiva de abrir-lhe
entrelugares capazes de possibilitar sua inserção na busca por hegemonia.
35
Por outro lado, mesmo estando presente na realidade do cotidiano e tendo por base
o imediato e o provisório, a cultura da sobrevivência vincula-se à história veiculada
oralmente e, assim, presente na memória.
3.6 UM RIO - UMA HISTÓRIA
O Rio São Francisco, inicialmente chamado pelos índios de rio Opara, foi para eles
local de refúgio, quando fugiam do poderio português que procurava metais
preciosos na região, implantando, aí a violência. O objetivo era escravizar os
“Índios”. Isto permaneceu até a primeira metade do século XVII, quando a região do
São Francisco passou a ser ocupada por criadores de gado que a povoavam com a
criação de gado, atividade econômica que permanece hegemônica até meados do
século XX. “Além da pecuária e da agricultura de subsistência praticada no sequeiro,
havia também a agricultura de Várzea, que se aproveita das margens férteis do São
Francisco. Essa atividade praticamente desapareceu com a construção das
barragens e com o advento da agricultura irrigada” (Bloch, 1996:10)
O Rio São Francisco, chamado carinhosamente de “Velho Chico”, é também
conhecido como “Rio da Unidade Nacional” por localizar-se, inteiramente, no interior
do país, ligando os Estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e
Alagoas.
Um dos fatores determinantes para a vida no lugar é o rio que banha a cidade. O rio
São Francisco percorre cerca de 3100 quilômetros, da sua nascente na Serra da
Canastra (MG) até sua foz, atravessando ou materializando a fronteira dos cincos
estados acima citados.
O contexto petrolinense é importante para que possamos compreender melhor os
meandros e potencialidade da cultura da sobrevivência, em que estão mergulhados
os/as nossos/as alunos/as de classes populares.
36
Compreender para abrir entrelugares, no nosso fazer educação, que possibilitem
pensar na inserção dessa realidade cotidiana e, metodologicamente, atuar na
esfera do hibridismo, na mistura destas forças antagônicas.
A importância da cidade de Petrolina vai muito além do rio São Francisco, tendo em
vista sua articulação com outros centros econômicos das regiões Sul e Sudeste e do
exterior para fortalecer a economia nordestina e, sobretudo, a do Estado de
Pernambuco.
Observar Petrolina é ver uma cidade inserida em dois contextos territoriais: um
político-institucional e outro econômico. Este último é um território virtual, que se
insere dentro de uma nova geografia e uma nova lógica de organização do espaço,
onde as fronteiras físicas cedem vez às fronteiras econômicas.
Um novo território se estende das margens do São Francisco às franjas do Araripe;
do sertão de Salgueiro ao interior do Piauí. Uma vasta área econômica que tem em
Petrolina sua capital, seu principal núcleo de produção e pólo maior de geração de
riqueza. Petrolina, o novo pólo do desenvolvimento de Pernambuco.
A cidade enfrenta problemas graves, comuns aos grandes centros, como: formação
de periferias pobres, desemprego, violência, consumismo, descaso com a educação
e saúde, falta de habitação, entre outros.
Diante dessa realidade, torna-se necessária a integração de todos os segmentos
sociais / institucionais para um trabalho coletivo que busque tecer um homem
cidadão e uma mulher cidadã, capaz de interferir na tessitura de uma sociedade
democrática, eticamente saudável, justa e solidária.
Como criaturas literárias e animais políticos, é preciso que haja preocupação com a
compreensão da ação humana e do mundo social como um momento em que
algo está fora de controle, mas não fora da possibilidade de organização. Nossa
tarefa, entretanto, continua sendo mostrar como a intervenção histórica se
37
transforma através do processo significante, como o evento histórico é representado
em um discurso de algum modo fora de controle. Isto está de acordo com a
sugestão de Hannah Arendt de que o autor da ação social pode ser o inaugurador
de seu significado singular, mas, como agente, ele ou ela não podem controlar seu
resultado. (Bhabha, 1998: 34).
38
CAPÍTULO 2
4 CURRÍCULO E ESTUDOS CULTURAIS: ABORDAGENS TRAMADAS A
PARTIR DAS REDES DE RELAÇÕES TECIDAS NA ESTEIRA DAS TEORIAS
Ao propormos um estudo sobre as possibilidades da tessitura do conhecimento na
FFPP, destacando as implicações de determinadas práticas envolvendo o currículo,
impõe um diálogo com a literatura recente sobre esse discurso. Pensar o currículo
em seus múltiplos aspectos, sua diversidade e heterogeneidade, obriga-nos a rever
quais têm sido as formas pelas quais o currículo e os Estudos Culturais têm sido
concebidos, começando a pensar a partir da teorização dos dois campos de
estudos. Entendemos que nenhum desses campos se inscreve numa linearidade,
pois são problemáticos, dado que outras localidades podem ser identificadas.
Etimologicamente, a palavra currículo provém da palavra latina scurrere, correr, e
refere-se a curso ou carro de corrida, conforme informações de Goodson (1995).
Isso significa que desde sua origem epistemológica, o currículo representa um
percurso pré-estabelecido, implicando uma posição de interesses por parte daqueles
que o elaboraram.
Ele consiste num conjunto de conteúdos previamente programados. Historicamente, a prática de elaboração de currículo está, na sua origem, vinculada a disciplina. Surgiu com o Calvinismo em fins do século XVI, existia uma relação homóloga entre currículo e disciplina para a prática calvinista, embora a primeira se referisse à prática educacional e a segunda, à social. (Goodson, 1995:32).
4.1 HISTORICIZANDO O CURRÍCULO
É conhecida a periodização que envolve o currículo. Um dos seus inícios é a
Revolução Industrial que imprimiu o sistema de sala de aula, em substituição às
classes, sob a tutela do estado. O currículo surge, sistematicamente, um século
depois, nas escolas dos Estados Unidos, reproduzindo o modelo taylorista adotado
nas fábricas. Essa doutrina extrapola para a sala de aula, desenvolvendo uma visão
39
de que os estudantes poderiam ser domesticados e manipulados como os produtos
fabris. Conseqüentemente, compreendia-se o currículo como um conjunto de
procedimentos e métodos que visavam à obtenção de resultados que pudessem ser
mensurados. Tratava-se, pois, de uma visão mecanicista do ensino e da educação
como um todo. O modelo de homem que se queria formar era o homem máquina,
concebido em série, dentro de uma racionalidade que privilegiava a produtividade, o
mercado e o capital.
Não se deve negar que alguns avanços existiram ao longo do século XX, pois
muitas propostas apareceram em algumas partes do mundo. Não se deve
desconsiderar, por exemplo, que as novas tendências da educação e da
aprendizagem concorreram para novas apreciações sobre a questão curricular, mas
é inegável, também, que o estado nunca conseguiu ou teve interesse em se
desvincular do modelo da fábrica.
Ao admitir o modelo de homem máquina, os estudiosos do currículo partem para
uma perspectiva do pressuposto de que o mundo moderno está em crise, sendo
necessário criar novas perspectivas para a tematização curricular, destacando-se
que a discussão sobre conhecimento em rede ganhou destaque nos estudos em
currículo a partir da metade da década de 1996, apesar de originar-se de estudos
que datam dos anos de 1980. (Lopes e Macedo, 2002:29 - 30). É exatamente desse
conhecimento em rede que advêm as reflexões mais proveitosas sobre o currículo.
Tais estudos referenciam-se, em sua maioria, a bibliografia francesa, especialmente
em autores como Certeau, Morin, Lefèbvre, Guatarri e Deleuze. Mais recentemente,
Boaventura Souza Santos tem sido importante referência, no qual se apóia uma
nova possibilidade de currículo. Tais autores estão, mesmo que supostamente,
contemplados nesta pesquisa.
Na medida em que as relações contemporâneas tendem à maior fluidez, horizontalidade, criatividade e coletividade, a centralidade do conhecimento tradicional que estaria na base do currículo moderno começa a ceder espaço para outros saberes relacionados à ação cotidiana. Nesse sentido, a centralidade da
40
razão, com seu espaço privilegiado de expressão – as ciências, passa a ser questionada (Lopes e Macedo, 35-36).
Quem contribuiu para a discussão foi Tura, ao afirmar-se aliada a alguns autores,
que destacou o pensamento de que a escola é um local privilegiado de troca de
idéias, de encontros, de legitimação de práticas sociais, de interação entre gerações,
de articulação entre diversos padrões culturais e modelos cognitivos. Dirá, ainda,
que a escola é o lugar onde se tecem identidades, onde se delimitam diferenças,
onde “sistema simbólico fornecem novas formas de dar sentido à experiência das
divisões e desigualdades sociais e aos meios pelos quais alguns grupos são
excluídos e estigmatizados (Tura, 2002:157)”.
Ao avaliar os confrontos que permeiam as diversas práticas, a autora dirá:
A intertextualidade que permeia o confronto de posições, sentidos e estilos de vida no ambiente pedagógico permite entendê-lo como um importante espaço de circularidade entre culturas e avaliar as complexas articulações produzidas entre os diversos discursos e redes simbólicas que convivem em seu interior e as determinações e proposições de um currículo escolar rigidamente formalizado hierarquizado e seletivo (Tura,2002:157).
A circularidade entre culturas, que explica o relacionamento circular feito de
influências recíprocas entre as culturas dominantes e dominadas e que se movia
tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima. Esta análise se opõe ao
conceito de autonomia e continuidade de qualquer cultura (Ginzburg,1987). Assim,
ao se estudar a relação entre conhecimento e poder na instituição pedagógica estão
em questão os processos de dominação da cultura escolar, que se desdobram em
seus ritos de instituição e nos inúmeros mitos que sustentam diversas formas de
controle e regulação. Reafirma-se, aqui, o impasse e a crítica a uma determinada
ordem.
Essa questão do poder é sempre recorrente entre os estudiosos vinculados às
novas abordagens. Para Tomaz Tadeu da Silva (2002:15), por exemplo, o currículo
é sempre o resultado de uma seleção de um universo mais amplo de conhecimento
e saberes, seleciona-se aquela parte que constitui, precisamente, o currículo. Este
mesmo autor chama também a atenção para o fato de que, antes de se definir o
41
currículo, tem-se em vista que tipo de pessoa se quer formar. A cada modelo de
pessoa humana corresponde um determinado currículo. O currículo está, pois,
ligado à nossa identidade, à nossa subjetividade.
O currículo tem, ainda, o poder para determinar o que pode ser tratado em sala de
aula, como também para descortinar o mundo a que os alunos têm acesso. Neste
processo, a origem de classe dos alunos encontra seu corolário no tipo de
conhecimento a que tem acesso. Uma outra questão a ser considerada é que o
currículo, como encerra uma questão de poder, uma vez que busca dizer aquilo que
deve ser conhecido, seleciona, privilegia determinados conhecimentos.
O reconhecimento da dimensão de poder inscrita no currículo vai delimitar e
circunscrever as teorias do currículo entre teorias tradicionais, críticas e pós-críticas.
As tradicionais pretendem-se teorias neutras, científicas, desinteressadas. A crítica e
a pós-crítica explicam suas imbricações com as questões do poder.
A discussão sobre o poder se prende a “o que deve ser ensinado nas escolas”
envolve diferentes abordagens da teoria curricular como uma tessitura social. Tais
abordagens que discutem a relação do currículo com o poder nos levam a uma
reflexão sobre as questões, pois nos colocam diante de uma visão de sociedade
dividida em conflitos entre grupos, categorias, classes. A discussão sobre o poder
está vinculada aos estudos desenvolvidos, por exemplo, por Foucault. Sabemos
também que todos os objetos da cultura são tecidos socialmente, o que está
apontado nos próprios estudos sobre a linguagem e o discurso. O conhecimento,
como o tecido no curso de Pedagogia da FFPP é uma tessitura que revela múltiplos
sentidos ordenados pelas instituições, professores/as e alunos/as.
Tura (2002) esclarece que no desenvolvimento do currículo escolar se incorporam
novos conhecimentos e reelaboram saberes em redes de significados que têm seus
sentidos, lógicas e técnicas sendo construídas em lugares, por vezes, diferentes
daqueles da cultura escolar. Percebe-se que esta autora amplia as possibilidades de
abordar o currículo, apresentando algo que deve ser desvelado e com um certo
42
poder transformador. Acrescentam-se, aqui, novas regras, novas organizações, o
destaque dado às muitas diferenças culturais que mantêm diálogo no ambiente
escolar.
Para a teoria pós-crítica, o currículo é uma linguagem dotada de significados,
imagens, falas, posições discursivas, um discurso em que se comunicam códigos
distintos. Para a autora, os conhecimentos escolares corporificam o mais importante
veículo propulsor da circularidade entre as culturas que convivem no ambiente
escolar o que inclui seus hibridismos e sincretismos que se interpõem na
organização curricular e na estrutura disciplinar. É no campo da cultura que se
destaca a função social da escola. As mudanças nas funções da escola, sinalizam,
então, para o fato de que ela constitui atualmente local privilegiado de encontros e
articulações entre modelos culturais contraditórios (Tura,2002:168).
No início dos anos 90, ganham força algumas novidades no campo do currículo. Na
metade da década de 1990, o pensamento curricular começa a incorporar enfoques
pós-modernos e pós-estruturalistas, que convivem com as discussões modernas.
(Lopes, Macedo 2002: 16).
É assim que Lopes e Macedo (2002) dizem não haver possibilidade de uma
educação, de um currículo e/ou de uma pedagogia que estejam do lado de uma
visão libertadora, justa, igualitária do homem e da sociedade, pois tal possibilidade
constituiria uma metanarrativa, negada pelo pós-modernismo, em função de seu
caráter opressor e da complexidade e variedade do mundo. Para Boaventura, uma
das fraquezas da teoria crítica moderna foi não ter reconhecido que a razão que
critica não pode ser a mesma que pensa, constrói e legitima aquilo que é criticável.
(Santos 2001: 29).
Para pensar o conhecimento em rede e o currículo, a tessitura de uma compreensão
teórica do currículo envolve considerar os espaços cotidianos em que esses
currículos acontecem, valorizando o fazer curricular como uma produção de sentido
(Lopes e Macedo – 2002: 37). Deve-se pensar o currículo em termos de hibridação,
43
sendo que isso contribui para analisar a complexidade dos processos de produção
culturais, políticos e sociais e muitos outros.
Passa-se, então, a um novo currículo. Essa visão pode ser representada por um
pós-currículo. Este situa-se à esquerda, nunca à direita, nem ao centro. “Por isso
está sempre comprometido com a educação pública, gratuita e de qualidade para
todos os homens, mulheres e crianças. Repudia as políticas sociais e educacionais
dos governos neoliberais do mundo que mundializam o capital e a exclusão”
(Corazza 2002:104).
Trata-se, também, de uma perspectiva de currículo na qual os estudos culturais não
configuram uma “disciplina”, mas uma área onde diferentes disciplinas interatuam,
visando ao estudo de aspectos culturais da sociedade. (Escosteguy 2001).
A mesma autora dirá:
Um campo de estudos em que diversas disciplinas se interseccionarn no estudo de aspectos culturais da sociedade contemporânea, constituindo um trabalho historicamente determinado. Os estudos culturais são um campo interdisciplinar onde certas preocupações e métodos convergem; a utilidade dessa convergência é que ela nos propicia entender fenômenos e relações que não são acessíveis através das disciplinas existentes. (Escosteguy 2001: 28)
Ainda, segundo a autora, os estudos culturais propõem um estudo interdisciplinar
que entende os processos culturais como independentes e não como fenômeno
isolado, como é a prática usual da maioria das disciplinas. Essa interdependência
caracteriza uma relação dinâmica com outras esferas, principalmente com a
estrutura ou os processos produtivos, considerando-se, aqui, os múltiplos aspectos
da vida social.
Outros autores defendem a mesma posição sobre a pertinência interdisciplinar dos
estudos, como Johnson (2000:22), para quem os processos culturais não
correspondem aos contornos do conhecimento acadêmico na forma como ele existe.
44
Nenhuma disciplina acadêmica é capaz de apreender a plena complexidade de
análise. Os estudos culturais devem ser interdisciplinares em sua tendência.
A complexidade, aliada a uma visão libertária e à valorização das culturas, era,
segundo Costa (2002:136), um entendimento tão ameaçador para a cultura de elite,
que alguns chegaram a propor introduzir nos currículos escolares um treinamento de
resistência à cultura de massa. Trata-se de uma visão muito presente no cotidiano
escolar da atualidade, inclusive na própria faculdade onde realizamos a nossa
pesquisa. Uma reação dá-se, de fato, quando propomos observar o currículo
enquanto tessitura social, linguagem, significação:
Para os estudos pós-estruturais – os objetos não existem para nós, sem que antes tenham passado pela significação. A significação é um processo social de conhecimento. Toda a teorização corrente sobre a escola, a educação, o ensino, a pedagogia, a aprendizagem, o currículo, constitui um conjunto de discursos, de saberes, que, ao explicar como essas coisas funcionam e o que são, as institui. (Costa 2002: 141 –142).
É importante observar que existe sempre uma filosofia pensando os saberes,
fazeres e suas transformações. O currículo, como artefato meramente técnico,
neutro, foi desafiado pela teoria crítica, que evidenciou as relações de poder à base
das “escolhas” curriculares e da seleção de conhecimentos escolares. Apontou para
a presença de vozes ligadas a camadas dominantes da sociedade e para o
silenciamento daquelas economicamente marginalizadas. Buscar pesquisar formas
pelas quais a escola reproduzia a desigualdade social, mas também espaços de
resistência e de busca de transformação. Canen (2002) dirá que, no campo do
currículo, desconfia de discursos que se apresentam como meramente técnicos,
buscando perceber neles vozes autorizadas e vozes silenciadas nos mesmos.
Conclui que a necessidade de se compreender o currículo como uma seleção
cultural impregnado por uma visão de mundo branco, masculino, heterossexual e
eurocêntrico passa a ser central em estudos curriculares, que buscam pensar em
currículos alternativos, multiculturais (Canen, 2002:179).
Nas observações sobre o impacto do currículo, verificamos que, geralmente, o/a
aluno/a não percebe que todos os conhecimentos vivenciados na escola são
45
possibilidades diferentes de uma mesma e única realidade no currículo organizado
em disciplinas. Disciplinar o aluno (a) é também fazer com que ele (a) perceba seu
lugar social.
Deslocar o currículo desse espaço homogêneo, de falsa diversidade, é afirmar,
como quer Gallo (2001), que podemos tentar fazer de nossos currículos novos
mapas, não mais marcados por territórios fragmentados, mas tentando ultrapassar
fronteiras, vislumbrar novos territórios de integração de saberes. Para o autor
Interdisciplinaridade é a tentativa de superação de um processo histórico de abstração do conhecimento que culmina com a total desarticulação do saber que nossos estudantes (e também nossos professores) têm o desprazer de experimentar. O saber articulado, aparentemente contraditório em meio a uma perspectiva de heterogeneidade, chama os problemas dos Estudos Culturais de problemas híbridos, ao tempo em que opera uma desarticulação de uma determinada imagem. O campo dos vários saberes é compreendido, tradicionalmente, pela metáfora da árvore. O paradigma arbóreo implica uma hierarquização do saber, como forma de mediatizar é regular o fluxo de informações pelos caminhos internos da árvore do conhecimento (Gallo, 2001:29-30)
É importante também enfatizar que o currículo que interessa a este estudo vai além
das prescrições e sobre isso alguns autores colocam-se muito bem. Por isso se diz
que o currículo real, na prática, é a conseqüência de se viver uma experiência em
um ambiente prolongado que propõem – impõem todo um sistema de
comportamento e de valores e não apenas de conteúdos de conhecimento a
assimilarem (Sacristán, 1995: 86). Diz, ainda, o autor que uma coisa é o currículo
considerado como uma intenção, um plano ou uma prescrição que explica o que
designamos que ocorresse nas escolas e outra o que existe nelas, o que realmente
ocorre no seu interior. O currículo real é o que nos interessa acrescentar às
discussões na experiência da FFPP:
O currículo tem que ser entendido como a cultura real que surge de uma série de processos, mas do que como um objeto delimitado e estático que se pode planejar e depois implantar; aquilo que é, na realidade, a cultura nas salas de aula, fica configurado em uma série de processos: as decisões prévias acerca do que se vai fazer no ensino, as tarefas acadêmicas reais que são desenvolvidas, a forma como a vida interna das salas de aula e os conteúdos de ensino se vinculam com o mundo exterior, as relações grupais, o uso e o aproveitamento de matérias, as práticas de avaliação (Sacristán,1995:86-87).
46
Na verificação disso, deve-se partir, segundo o autor, de que uma idéia de currículo
real nos levaria a analisar a linguagem dos professores (as), os exemplos que
utilizariam, suas atitudes para com as minorias ou culturas, as relações sociais entre
alunos (as), as formas de agrupá-las, as práticas de jogos e brinquedos fora da sala
de aula, os estereótipos que são transmitidos através de livros, aquilo que é exigido
na avaliação. E isso significa que um estudo sobre currículo real implica considerar a
mudança dos métodos pedagógicos e propiciar outra formação docente,
estimulando uma tendência cultural que abrange a complexidade da cultura e da
experiência humana (Sacristán, 1995:88).
Estabelecendo relações entre currículo e cultura, ou seja, sobre o currículo real, diz
o autor que todos os materiais pedagógicos utilizados por professor/as e alunos/as
são mediadores muito decisivos da cultura nas escolas, porque são os artifícios do
que e do como se apresenta essa cultura a professores/as e alunos/as. Ali se reflete
de forma constante e elaborada a cultura real que se aprende (Sacristán, 1995).
Finalizando/iniciando este percurso teórico que contribui para pensar o currículo e
suas articulações no eixo proposto por nossa investigação, pensa-se que
Um curso não está feito no momento em que se chega a um consenso ou se impõe um determinado segmento hegemônico entre as forças existentes na unidade que o está propondo. Nem mesmo quando os órgãos internos da Universidade ou do MEC o aprovam e permitem seu funcionamento. Estes são apenas momentos de um processo muito rico que começou antes e continuará a ser criado cotidianamente no embate permanente de pensamentos e ações divergentes e mesmo contraditórios. É neste processo que realmente se tece o currículo praticado de um curso (Manhães, 2001: 79).
4.2 DIMENSÕES HISTORICAS NO BRASIL
Existe a tese, muito divulgada, que as teorias e práticas curriculares teriam surgido
no Brasil por transferência dos Estados Unidos. Essa interpretação pressupõe um
determinado conceito de transferência educacional e faz-se necessário abordá-la.
Transferência educacional é aqui entendida como a passagem de modelos
47
institucionais e de práticas educativas de um país para outro. Sob este contexto, na
transferência educacional, desenvolveram-se duas correntes: a do Imperialismo
Cultural e a do Neocolonialismo.
Um dos principais educadores situados dentro da corrente do Imperialismo cultural é
Martin Cânon que escreveu o texto Education as culturas imperialismo em 1974. A
corrente do imperialismo cultural considera que não é a escola que determina os
papéis sociais das pessoas, mas, sim, sua origem de classe. Neste sentido, a escola
atua como instrumento de controle social, contribuindo, assim, para manter a ordem
vigente. A análise dos defensores do Imperialismo Cultural no que tange à relação
entre educação e sociedade é bastante simplificada. Eles vêem a escola
desempenhando, predominantemente, o papel de reprodução da estrutura social.
Pensamos que tal relação não pode se dá de forma mecânica e absoluta.
A dimensão neocolonialista objetiva superar as contradições da visão do
Imperialismo Cultural. Para estes, a educação colonial necessariamente não aliena o
campo colonizado. Ao contrário do Imperialismo Cultural, os expoentes do contexto
neocolonialista acentuam o grau de liberdade exercida pelos países do terceiro
mundo. Diferentemente, estes estudiosos levam em consideração as concepções
dos grupos e países periféricos, vendo-as como capazes de imprimir suas próprias
marcas nos programas egressos dos países centrais. No entanto, os teóricos do
neocolonialismo não chegaram a apresentar um quadro teórico que desse conta da
temática. Podemos afirmar que o Brasil, a partir de um determinado momento de
sua história recente, apresenta essas características.
Vê-se, pois, que os dois estudos acerca de transferência educacional não
consideram que as teorias, tanto nos países centrais quanto periféricos, são
mediadas pelos seus respectivos contextos culturais, políticos, sociais, históricos e
institucionais, que provocam tanto resistência quanto adaptações e rejeições em
meio ao processo. Daí, sua pequena capacidade em contribuir para a compreensão
das trilhas seguidas pelo campo do currículo, tanto nos países centrais quanto nos
periféricos.
48
feita esta introdução, é importante ver como os autores brasileiros vêem os
desdobramentos da citada transferência no Brasil. Para Lopes e Macedo (2002), as
primeiras preocupações com o currículo, no Brasil, datam dos anos vinte do século
passado. Esse campo foi marcado até 1980, também, pela transferência
instrumental de teorizações americanas. Essa transferência centrava-se na
assimilação de modelos para elaborações curriculares, em sua maioria, de viés
funcional. A teoria tradicional do currículo baseava-se, como se percebe, numa
concepção conservadora de cultura fixa, estável, herdada.
O pensamento brasileiro sobre a prática curricular iniciou-se com o entendimento de
que, tendo sido transferido dos Estados Unidos nos anos setenta, sob o domínio da
ditadura militar, o campo curricular no Brasil inicia-se de forma subserviente, sem
que se levassem em consideração as nossas peculiaridades nacionais.
Diante dos três paradigmas fundamentais adotados internacionalmente pela
literatura sobre currículo (técnico-linear, circular-consensual e o dinâmico-dialogal),
alguns teóricos identificam o técnico-linear como sendo o que mais influenciou o
campo do currículo no Brasil, na fase inicial. Admite-se que, contemporaneamente,
já existem no campo de estudo do currículo, autores brasileiros críticos associados à
pedagogia crítico-social dos conteúdos e à educação popular (Moreira, 1995: 28). O
que não se consegue é explicar como esta existência acima referida, foi possível em
meio às idéias tecnicistas americanas. É certo que se abrem, aqui, algumas
possibilidades de explicação. A questão cultural ganha importância nessa
explicação.
Caberá, pois, a este nosso trabalho, não apenas um esforço em objetivar a inserção
crítica na discussão do currículo, mas, também, verificar como os Estudos Culturais
contribuem para uma postura pós-crítica que possa apresentar contribuições para
uma nova educação no país. Trata-se de uma discussão que deverá levar em conta
a instauração de novos paradigmas.
49
Toda ênfase nas questões culturais é dada, na análise, tanto dos componentes,
quanto dos veículos desses componentes, no estudo do currículo, bem como na
maneira pela qual se desenvolvem na escola. A variável “inclusão/exclusão” é
amplamente empregada nessa mesma análise. Mas não se trata, aqui, de ver a
cultura como algo geral, genérico, abrangente, categoria universal. Trata-se, mais,
de descobrir na cultura as diferenças mínimas, mas significativas, dinâmicas,
diferenças que produzem diferenças:
É significativo o cuidado, por exemplo, de vários autores e autoras e
docentes, em ressaltar a diferença que se faz ao tratar de homem ou de
mulher, de professor ou de professora, quando a categoria gênero entra em
cena na análise dos fenômenos sociais. Daí a explicar-se o fato da utilização,
na linguagem escrita e mesmo falada, da forma masculina e feminina
(homem/mulher-professor/professora...), grafia e verbalização,
convenhamos, incômoda, mas reveladora de sentidos. Nos Estudos Culturais
voltados para o currículo não se podem mais ignorar as diferenças culturais,
de gênero, de raça, de cor, de sexo etc. (Berticelli, 1999:173).
O currículo é real, um pós-currículo que se abre na dispersão da cultura. E, nessa
perspectiva, os estudos culturais não se constituem numa nova disciplina, mas, sim,
em um campo de estudos onde diversas disciplinas se interseccionam no estudo de
aspectos culturais da sociedade contemporânea. Isto significa que os Estudos
Culturais são uma área onde diferentes disciplinas interagem. (Escosteguy,
2000:138). Sintetiza Schulman (2000:169): Os Estudos Culturais foram concebidos
desde o início, como um empreendimento interdisciplinar. Abre-se, deste modo, uma
possibilidade para enfatizar a aproximação entre Estudos Culturais e currículo.
4.3 ESTUDOS CULTURAIS: DIMENSÕES SÓCIO-HISTÓRICAS
O reconhecimento das dimensões políticas do currículo, modalizado pelo poder,
abre caminho para pensá-lo como tessitura cultural, deslocando o interesse para a
sua verificação no espaço dos estudos culturais.
50
Nas diversas teorizações e histórias que, inicialmente, discutiram a cultura, esta era
usada para referir-se ao cultivo de terra, cultivo de plantações e cultivo de animais
no século XV. Já no início do século XVI, estende-se à idéia de cultivo da terra e de
animais para a mente humana, ou seja, fala-se em mente humana cultivada,
chegando a conceber a cultura como prática social. Cultura corresponde,
atualmente, ao conjunto de práticas por meio das quais os significados são
produzidos e compartilhados em um grupo. A cultura impõe os sentidos.
As primeiras manifestações dos estudos culturais têm origem na Inglaterra, no final
dos anos 50, especialmente em torno do trabalho de Richard Hoggart, Raymond
Williams e Edward Palmer Thompson. Este entendimento é comum em muitas das
reconstituições das origens deste campo de estudo. De outro lado, tem-se tornado
também motivo gerador de debates, discussões e contendas, sobretudo, nos últimos
tempos.
Na história dos Estudos culturais, os primeiros encontros foram com a crítica
literária. Jonhnson (2000), Ana Carolina Escosteguy (2001) e Norma Schulman
(2000), em seus estudos, analisam três textos que surgiram no final dos anos 50,
identificados como a base dos Estudos Culturais. Destaque-se que tais estudos
surgiram na Inglaterra.
O campo dos Estudos Culturais surge, de forma organizada, através do Centre for
Contemporary Cultural Studies (CCCS), diante da alteração dos valores tradicionais
da classe operária da Inglaterra do pós-guerra. Inspirado na sua pesquisa, Richard
Hoggart publica The Uses of Literaty (1957) que tratará, em parte, de conteúdo
autobiográfico e, em parte, de história cultural do meio do século XX. Neste texto,
conforme Escosteguy (2001:22), o foco de atenção recai sobre materiais culturais,
antes desprezados, de cultura popular e dos meios de comunicação de massa,
através de metodologia qualitativa. Este trabalho inaugura o estudo de que no
âmbito popular não existe apenas submissão, mas, também, resistência, o que, bem
mais tarde, será recuperado pelos estudos de audiência dos meios massivos.
51
Destaquem-se as contribuições de Willians e Thompson: o segundo texto de
Raymond Willians com Culture end Socity (1958), que constrói um histórico do
conceito de cultura, culminando com a idéia de que a “cultura comum ou ordinária”
pode ser vista como um modo de vida em condição de igualdade de existência com
o mundo das Artes, Literatura e Música. Escosteguy (2001) reconhece que:
A contribuição teórica de William é fundamental para os Estudos Culturais, a partir desse texto, através de um olhar diferenciado sobre a história literária, ele mostra que a cultura é uma categoria chave que conecta a cultura a análise literária com a investigação social.
A edição brasileira data de 1969 cuja apresentação de Anísio Teixeira, que também
é um dos tradutores, afirma:
Raymond William dá-nos neste livro uma descrição, uma análise e uma interpretação da herança intelectual, imaginativa e sentimental que recebeu a geração contemporânea para compreender e rever a sua própria cultural (...). Sem exagero, o livro nos mergulha numa atmosfera como a dos diálogos de Platão. É a nossa república que se desdobra a nossos olhos, com o seu ethos e o seu pathos, com as suas esperanças e as suas desilusões e, sobretudo, com a sua experiência, tudo se enovelando para a criação de uma cultura nova, complexa e insegura, que é a cultura em que hoje nos debatem.
A terceira contribuição vem de E.P. Thompson The Kaking of The English Working-
class (1963) que reconstrói uma parte da história da sociedade inglesa de um ponto
de vista particular – a história “dos de baixo”. Os estudos de Thompson podem-se
dizer, que influenciam o desenvolvimento da história social britânica de dentro da
tradição marxista.
Nesse inicio dos Estudos Culturais, há de ressaltar ainda que, embora não seja
citado como membro do trio fundador, Stuart Hall é considerado importante, pois
incentiva o desenvolvimento da investigação de práticas de resistência de
subculturas e de análise dos meios massivos, identificando seu papel central na
direção da sociedade.
É importante observar que esses estudos surgiram de uma grande reflexão sobre a
sociedade, em um mundo em transformação. Na Inglaterra, destaque-se que isso
52
tenha acontecido no império da tradição, sendo marcantes duas características que
vão contribuir para os Estudos Culturais: o impacto da organização capitalista das
formas culturais no campo das relações sócio-culturais, em que se observa a ruptura
das culturas tradicionais de classe em conseqüência do alastramento dos meios de
comunicação de massa. A segunda característica seria o colapso do império
britânico onde a suposta integridade começa a implodir. Essas duas características
que representam uma fratura no próprio sistema, produziriam novas formas de
pensar a sociedade e a cultura.
Faz-se necessário reconhecer que existem desarcordos entre os considerados pais
e fundadores” dos Estudos Culturais: Williams, Thompson e Hoggart. Porém, para a
constituição dos Estudos Culturais é mais significativo destacar os pontos de vista
compartilhados entre eles. É importante ressaltar, então, que os três autores citados
como os fundadores deste campo de estudos, embora não tenham uma intervenção
coordenada entre si, revelam um leque comum de preocupação que abrange as
relações entre cultura, história e sociedade, ou seja, a união, o elo. É uma
abordagem que insiste em afirmar que, através da análise da cultura de uma
sociedade – as formas textuais e as práticas documentadas de uma cultura – é
possível reconstituir o comportamento padronizado e as constelações de idéias
compartilhadas pelos homens e mulheres que produzem e consomem os textos e as
práticas culturais daquela sociedade. É uma abordagem que enfatiza a “atividade
humana”, a produção ativa da cultura, ao invés de seu consumo passivo
(Escosteguy, 2001:25 – 26).
Como nos informa Johnson (2001:11) Uma segunda matriz dos Estudos Culturais foi
o desenvolvimento das tradições da História Social, no pós-guerra, com seu foco na
cultura popular ou na cultura do povo, especialmente sob suas formas políticas.
Foi,fundamentalmente, neste caso, o grupo de historiadores do Partido Comunista
em seu projeto – dos anos 40 e início dos anos 50 – de historicizar o velho
marxismo, adaptando-o, ao mesmo tempo, às situações britânicas.
Essa influência foi, de certa forma, paradoxal, pois os historiadores estavam menos preocupados com a cultura contemporânea ou mesmo com o século XX,
53
colocando suas energias, em vez disso, uma compreensão da longa transição britânica do feudalismo para o capitalismo, bem como nas lutas populares e nas tradições de dissidência associadas com essa transição (Johnson, 2000:11).
É importante observar que se dá um redimensionamento do próprio conceito de
cultura para que houvesse intenso interesse pelas questões culturais. São
preocupações que aconteceriam, obviamente, no mundo ocidental. Costa
(2002:133) esclarece que, dentre outros motivos, tais interesses são decorrentes
das transformações na ordem mundial delineadas ao longo do século XX, mais
acentuadamente no período pós Segunda Guerra. Estas mudanças decorrem não
apenas das novas conquistas nos domínios tecnológicos, mas também dos
emergentes arranjos políticos, econômicos, sociais e culturais que se configuraram
nesse período de confrontos.
Ainda segundo Costa, nos meados da década de cinqüenta do século passado, deu-
se o surgimento de fortes críticas à concepção de cultura até então dominante na
teoria cultural.
Neste período são questionadas claramente as concepções inspiradas na tradição arnoldiana – cujo foco central deste posicionamento é uma visão elitista e discriminadora da cultura, expressão clássica do pensamento não-igualitário e que dominaram por mais de cem anos as análises culturais ocidentais. Na visão arnoldiana, a cultura adjetivada como popular era sinônimo de desordem social e política, ao passo que “cultura”, grafada no singular e seus adjetivos, seria o mesmo que harmonia e beleza (Costa, 2002: 135).
É sob a inspiração de Arnold que surge, na primeira metade do século XX, na
Inglaterra, uma das mais influentes análises culturais que se conhece, cujo objetivo
era fazer frente ao declínio cultural, ao que aquele crítico chamava de “cultura de
padronização e do nivelamento por baixo”.
Levado a efeito por Frank Raymond Leavis, esse projeto teve, como sempre teria
sido sustentado, por uma minoria que mantinha vivos os padrões de massa estavam
ameaçando esses padrões, afastando as pessoas dos cânones da literatura e das
artes e transformando o mundo em massas de indivíduos incultos ou semicultos
(Costa, 2002: 136).
54
Os Estudos Culturais precisam continuar abertos a possibilidades inesperadas,
inimaginadas ou até mesmo não-solicitadas. Ninguém pode esperar controlar esses
desdobramentos. Eles constituem um campo interdisciplinar, transdisciplinar e
algumas vezes contra-disciplinar que atua na tensão entre suas tendências para
abranger tanto uma concepção ampla, antropológica, de cultura, quanto uma
concepção estreitamente humanística de cultura.
Compreendemos, pois, que nas tradições dos Estudos Culturais, pois, a cultura é
entendida tanto como forma de vida – compreendendo idéias, atitudes, linguagens,
práticas, instituições e estruturas de poder – quanto toda uma gama de práticas
culturais: formas, textos, cânones, arquitetura, mercadorias produzidas em massa, e
assim por diante.(...) Como diz Hall, citado por Silva (1995:14) cultura significa o
terreno real, sólido das práticas, representações, línguas e costumes de qualquer
sociedade histórica específica”, bem como “as formas contraditórias de ‘senso
comum’ que se enraízam na vida popular e ajudaram a moldá-la.
Os Estudos Culturais compõem, hoje, uma tendência importante da crítica cultural
que questiona o estabelecimento de hierarquias entre formas e práticas culturais,
estabelecidas a partir de oposições como cultura “alta” ou “superior” e “baixa” ou
“inferior”. Adotada essa premissa, a investigação da cultura popular que assume
uma postura crítica em relação àquela definição hierárquica de cultura, na
contemporaneidade, suscita o remapeamento global do campo cultural, das práticas
da vida cotidiana aos produtos culturais, incluindo, é claro, os processos sociais de
toda produção cultural.
Nas reflexões sobre a hierarquia das culturas, sub-jaz a crença de formas culturais
próprias das classes populares, ao contrário daquilo defendido pela alta cultura.
Novas formas de pensar insistem em que o estudo da cultura não poderia ser
confinado a uma disciplina única, mas era necessariamente inter, ou mesmo
antidisciplinar. A expansão dos Estudos Culturais, como estamos a observar novos
55
relatos, apontam para novas possibilidades, dentro de novas bases e princípios que
não mais permitem certos preconceitos e exclusões.
No espaço opaco das significações da cultura – é que vamos ver aqui essa
opacidade que é própria do conceito de cultura. Há duas grandes reorientações nas
análises culturais propostas pelos estudos culturais: um amplo espectro de
significados e práticas que move e constitui a vida social. O alargamento do conceito
de cultura, incluindo práticas e sentidos do cotidiano – sendo esse o foco de minha
pesquisa - propiciou, por sua vez, uma segunda mudança importante: todas as
expressões culturais devem ser vistas em relação ao contexto social das
instituições, das relações de poder e da história.
As questões políticas estão intrinsicamente ligadas aos estudos culturais, por isso a multiplicidade de objetos de investigação também caracteriza os estudos culturais. Resulta da convicção de que é impossível abstrair a análise da cultura das relações de poder e das estratégias de mudança social. A ausência de uma síntese completa sobre os períodos, enfrentamento político e de deslocamentos teóricos contínuos de método e objeto faz com que, de forma geral e abrangente, o terreno de sua investigação circunscreva-se aos temas vinculados às culturas populares e aos meios de comunicação de massa e, posteriormente, à temática relacionada com as identidades, sejam elas sexuais, de classe, étnica, geracionais etc. (Escosteguy, 2001:29)
Em relação aos estudos que emergem agora, não se pode deixar de perceber a
importância dos anos 70. No início desses anos, os estudos concentraram-se em
torno da emergência de várias subculturas que pareciam resistir a alguns aspectos
da estrutura dominante de poder. A partir da segunda metade dessa mesma década,
percebe-se a importância crescente dos meios de comunicação de massa, vistos
não somente como entretenimento, mas como aparelhos ideológicos do estado.
Nessa época, os estudos das culturas populares pretendiam responder a
indagações sobre a constituição de um sistema de valores e de um universo de
sentido, sobre o problema de sua autonomia. (Escosteguy, 2001:30).
Ainda nessa época, o trabalho em torno das diferenças de gênero através do
feminismo que irrompe em cena e os desenvolvimentos em torno da idéia de
“resistência”, também marcam o período. Hall (citado por Escosteguy) aponta o
56
feminismo como uma das rupturas teóricas decisivas que alterou uma prática
acumulada em Estudos Culturais, reorganizando sua agenda em termos bem
concretos. Desta forma, destaca sua influência nos seguintes aspectos: a abertura
para o entendimento do âmbito pessoal como político e suas conseqüências na
construção do objeto de estudo dos Estudos Culturais; a expansão da noção de
poder, que, embora bastante desenvolvida, tinha sido apenas trabalhada no espaço
da esfera pública; a centralidade das questões de gênero e sexualidade para a
compreensão da própria categoria “poder”; a inclusão de questões em torno do
subjetivo e do sujeito e, por último, a “reabertura” da fronteira entre teoria social e
teoria do inconsciente – psicanálise. (Escosteguy, 2001:31). Este foco introduziu
novas variáveis, deixando-se de ver os processos de tessituras da identidade
unicamente através da cultura de classe e sua transmissão geracional. Outras
possibilidades começaram a atuar.
Nessa historização dos estudos culturais, a autora diz que a partir dos anos 80, há
indícios de que a importância do CCCS (Centre for Contemporary Cultural Studies)
como pólo de difusão da proposta dos Estudos Culturais começa a arrefecer, isto é,
surge uma força de descentralização.
Durante esse processo, nota-se a expansão do projeto dos Estudos Culturais para outros territórios, para além da Grã-Bretanha, ocorrendo mutações importantes, decorrentes, principalmente, de uma observação sobre a desestabilização das identidades sociais, ocasionada, sobretudo, pela aceleração do processo de globalização. O foco central passa a ser a reflexão sobre as novas condições de constituição das identidades sociais e sua recomposição numa época em que as solidariedades tradicionais estão debilitadas. Enfim, trata-se de uma ênfase à dimensão subjetiva e à pluralidade dos modos de vida vigentes em novos tempos – ‘New Times’ (Escosteguy, 2001:35).
Já nos anos 90, as investigações distinguem-se para captar a experiência, a
capacidade de ação dos mais diversos grupos sociais, baseando-se nas relações de
identidade em visão global, nacional, local e individual, raça, etnia, novas
tecnologias, a mídia e a influência na constituição da identidade e relação de poder.
Trata-se de um período que ainda está sendo avaliado, pois os Estudos Culturais
interessam a estudiosos de todas as partes do mundo, em diferentes concepções.
Estão descentradas geograficamente e múltiplos teoricamente. A conseqüência
57
natural desse debate é a revisão dos cânones estéticos ou mesmo de identidades
regionais que se apresentam como universais ao negarem ou encobrirem
determinações de raça, gênero e classe. (Escosteguy, 2001:41)
Neste período, torna-se imperativo explicar e analisar os conflitos através de uma
única contradição: a diferença de classe. Isso impedia de pensar a pluralidade de
matrizes culturais, a diversidade cultural. A flexibilidade dessa lógica permitia o
redesenho das relações entre cultura e classe social. O redefinido é tanto o sentido
de cultura quanto o de política, permitindo (re)descobrir as culturas populares e a
constituição de identidade. Isso em grande medida se deve à incorporação de parte
do pensamento gramsciano. (Escosteguy, 2001).
Do ponto de vista britânico, Hall, citado por Escosteguy (2001:91) aponta a reflexão
de Antonio Gramsci como instigadora e fundamental na constituição dos Estudos
Culturais, se considerados os “silêncios” do marxismo sobre uma questão muito cara
aos Estudos Culturais, isto é, o âmbito do simbólico
A opção de incorporar parte da reflexão de Gramsci pelos Estudos Culturais,
incentivada, principalmente, através da liderança de Stuart Hall, deve-se, em grande
medida, ao seu ataque ao economicismo e reducionismo dentro do marxismo
clássico.
Para os britânicos, as contribuições de Gramsci consideram o silêncio do marxismo
no âmbito do simbólico. Atacam, os teóricos, assim como o próprio Foulcaut o
economicismo do marxismo clássico. Essa visão pode, também, ser criticada, assim
como todos os outros que desprezam a influência da infraestrutura. A economia não
é tudo, mas não pode ser desprezada.
As influências de Gramsci abriram também para uma reflexão sobre a cultura popular porque em linhas gerais, os Estudos Culturais estão, sobretudo, preocupados com as inter-relações entre domínios culturais supostamente separados, interrogam-se sobre as mútuas determinações entre culturas populares e outras formas discursivas e estão atentos para o terreno do cotidiano de vida popular e nas mais diversas práticas culturais. No final dos anos setenta, tais discussões concentravam-se em duas oposições, representadas pelo estruturalismo e culturalismo. O elemento que deslocou essa polaridade foi a
58
incorporação das reflexões de Antonio Gramsci sobre o tema da hegemonia. A contribuição gramsciana configurou um novo tipo de ênfase na análise da cultura popular. (Escosteguy, 2001:108).
Quanto à influência do pensamento gramsciana nos Estudos Culturais, a
incorporação do conceito de hegemonia abre espaço para se pensar questões da
cultura popular e mesmo de identidade, constituindo-se no atual debate sobre a
cultura: A teoria da hegemonia permitiu a tessitura de uma análise de dentro do
marxismo, que evita ver o popular como um bloco homogêneo de oposição,
decorrente somente de uma posição de pertencimento fixo a uma classe. Propiciou,
também, pensar na possibilidade de existência da separação relativa de diferentes
regiões de enfrentamento cultural como classe, gênero e raça, assim como
sobreposições entre essas categorias em diferentes circunstâncias históricas.
(Escosteguy, 2001:109).
Já a abordagem centrada na subjetividade, os estudos de Johnson apontam para
novas aquisições nos Estudos Culturais: Inicia as suas indagações, criticando o
contexto britânico, afirmando que os Estudos Culturais têm se destacado, por sua
preocupação com a “teoria”, mas o grau de conexão com a filosofia não tem sido
óbvio.
4.4 CURRÍCULO E ESTUDOS CULTURAIS: TESSITURAS ATUAI S
No nosso entendimento, não seria demais afirmar que a partir dos anos 60 e 70 – do
século passado – o mundo não foi mais o mesmo. Além de todas as convulsões e
transformações operadas, podem-se apontar dois movimentos que redefiniram os
estudos sobre a sociedade e, particularmente, sobre a cultura das mulheres e das
lutas contra o racismo. Tais movimentos ampliam o debate político, produzem mais
objetos de investigação e deslocam as dimensões da critica interior baseada na
noção de ideologia, para as identidades, as subjetividades, o popular e o prazer.
Tiveram também o mérito de influenciar as ciências humanas, em novos enfoques
para a literatura e a estética, ligando-as às questões sociais.
59
Johnson destaca a política nos Estudos Culturais, afirmando que, boa parte das
fortes continuidades da tradução dos Estudos Culturais está contida no termo
singular “cultura”, que continua útil não como uma categoria rigorosa, mas como
uma espécie de síntese de uma história: Este sentimento de uma conexão entre o
trabalho intelectual e o trabalho político tem sido importante para os Estudos
Culturais. Significa que a pesquisa e a escrita têm sido políticas, mas não em
qualquer sentido pragmático imediato. Este posicionamento político – intelectual é
possível porque a política que buscamos criar não está plenamente formada.
(Johnson, 2000:21)
Johnson (2000:21), Vai afirmar, então, que os Estudos Culturais também estão
preocupados com sociedades inteiras (ou formações sociais mais amplas) e como
elas se movimentam, mas eles examinam os processos sociais a partir de um outro
ponto de vista:
“Nosso” projeto é o de abstrair, descrever e reconstruir, em estudos concretos, as formas através das quais os seres humanos “vivem", tornam-se conscientes e se sustentam subjetivamente. A ênfase nas formas é reforçada por alguns insights do estruturalismo amplo. Eles têm ressaltado o caráter estruturado das formas que subjetivamente ocupamos: a linguagem, os signos, as ideologias, os discursos, os mitos. Eles têm apontado para as regularidades e para os princípios de organização – ou, se quisermos, para aquelas coisas que fazem com que haja uma “forma”. Embora com freqüência enunciados em nível demasiadamente alto de abstração (por exemplo, a linguagem em geral, em vez da linguagem em particular), eles têm fortalecido nossa sensibilidade sobre dureza, o caráter determinado e, na verdade, sobre a existência real de formas sociais que exercem suas pressões através do lado subjetivo da vida da forma, neste sentido, é suficiente. É também importante ver a natureza histórica das formas subjetivas. (Johnson, 2001: 29).
Preocupado com a linguagem e a subjetividade e com as verdades
institucionalizadas pela ciência, métodos, modelos e aparelhos, Johnson (2001:31-
32) se questiona:
que tal se as teorias existentes – os modos de pesquisas com elas associados – realmente expressassem diferentes lados do mesmo e complexo processo? Que tal se elas fossem todas verdadeiras, mas apenas até certo ponto, verdadeiras para aquelas partes do processo que elas têm mais claramente em vista? Que tal se elas fossem todas falsas ou incompletas, sujeitas a enganar, na medida em que elas são apenas parciais e não podem, portanto, apreender o processo como um todo? Seu mérito
60
imediato, entretanto, está no fato de que ajuda a explicar uma das características – chave dos Estudos Culturais: as fragmentações teóricas e disciplinares já observadas. Estas poderiam, naturalmente, ser explicadas pelas diferenças políticas também já discutidas, especialmente as divisões intelectuais e acadêmicas de trabalho e a reprodução social de formas especializadas de capital cultural.
As influências sobre os Estudos Culturais criticados pelo autor vão ao encontro de
estudiosos como Bourdieu e Foucault, para pensar, por exemplo, a questão de
poder: “Os Estudos Culturais estão necessariamente e profundamente implicados
em relações de poder. Eles são parte dos próprios circuitos que buscam descrever.
Eles podem, tal como os conhecimentos acadêmicos e profissionais, policiar a
relação entre o público e o privado ou eles podem criticá-la. Eles podem estar
envolvidos na vigilância da subjetividade dos grupos subordinados ou nas lutas para
representá-las mais adequadamente do que antes. Uma abordagem mais
sistemática da produção cultural tem sido uma preocupação relativamente recente
da sociologia, da literatura, da arte ou das formas culturais populares”. (Johnson,
2000:51 - 52)
Sobre o papel do marxismo na questão sobre cultura, o autor analisa que no
cruzamento das discussões mais estéticas e políticas, tem havido uma preocupação
generalizada com a influência das condições capitalistas de produção e do mercado
de massa das mercadorias culturais sobre a “autenticidade” da cultura, incluindo as
artes populares e faz, então, a defesa das contribuições marxistas: É aqui,
naturalmente, que os paradigmas marxistas têm ocupado um lugar bastante central,
mesmo quando se continua a argumentar contra eles. Os primeiros trabalhos
marxistas afirmaram a primazia das condições de produção, freqüentemente
reduzindo-as a alguma versão estreitamente concebida “das forças e das relações
de produção”.
Mesmo essas análises reducionistas tinham um certo valor: a cultura era compreendida como um produto social e não como simplesmente uma questão de criatividade individual. Em trabalhos marxistas posteriores, analisavam-se as formas históricas da produção e a organização da cultura – “as superestruturas”. (Johnson, 2000: 54).
61
O mesmo autor destaca o papel de Gramsci, afirmando que ele foi, talvez, o primeiro
importante teórico marxista e líder comunista a considerar as culturas das classes
populares como objeto de estudo sério e de prática política e que o seu trabalho
constitui o mais sofisticado e fértil desenvolvimento de uma abordagem marxista via
produção cultural. A julgar pelo trabalho disponível em inglês, parece que ele estava
menos interessado em como as formas culturais funcionam subjetivamente do que
em como organizá-las externamente. (Johnson, 2000:55)
Johnson vai apontar para os estudos interdisciplinares, dizendo que grande parte
daquilo que se conhece sobre a organização textual das formas culturais é agora
ensinado nas disciplinas acadêmicas, convencionalmente agrupadas como
“Humanidades” ou “Artes”. As principais disciplinas das “Humanidades”, mais
especialmente a Lingüística e os Estudos Literários têm desenvolvidos meios de
descrição formal que são indispensáveis para a análise cultural:
Na análise literária das formas de narrativa, mas também da análise de formas sintáticas, na analise das possibilidades e transformações em Lingüísticas, na análise formal de atos e trocas na fala, na análise de algumas formas elementares de teoria cultural feita pelos filósofos e nos conceitos tomados de empréstimo, pela crítica e pelos Estudos Culturais, da semiologia e de outros estruturalismos. (Johnson, 2000:66)
Os estudos sobre a linguagem, sobre os conteúdos e sobre o sentido formulados
linguisticamente, parecem, para o autor, privilegiados. O exemplo considerado mais
impressionante, no momento, é o da Lingüística, que parece uma verdadeira caixa
do tesouro para a análise cultural, mas que está soterrada sob uma mística técnica e
um profissionalismo acadêmico exagerados dos quais, felizmente, está começando
a emergir. Entretanto, o paradoxo está em que as disciplinas das Humanidades, que
estão tão claramente preocupadas em identificar as formas subjetivas de vida, são,
já, Estudos Culturais em embrião! (Johnson, 2000:66-67)
O autor está preocupado com os novos horizontes dos Estudos Culturais,
principalmente com os procedimentos analíticos, afirmando que importantes são
todas as influências modernistas e pós-modernistas, particularmente aquelas
62
associadas com o estruturalismo, com a Lingüística pós-saussureana e a semiologia
e até da Lingüística anglo-americana:
Os Estudos Culturais têm, muitas vezes, se aproximado dessas vertentes de uma forma um tanto acalorada, tendo lutas acirradas, em particular, com aqueles tipos de análises de texto inspiradas pela Psicanálise, mas as renovadas infusões modernistas continuam a ser uma fonte de desenvolvimentos. A análise formal moderna promete uma descrição realmente cuidadosa e sistemática das formas subjetivas e de suas tendências e pressões. Ela nos tem permitido identificar, por exemplo, a narratividade como uma forma básica de organização da subjetividade. Dá indicações sobre o repertório das formas narrativas contemporaneamente existente - as estórias reais características de diferentes modos de vida. (Johnson, 2000:69)
A importância dos estudos semióticos é destacada pelo autor porque o elemento
mais característico das semiologias mais recentes é a asseração de que elas
proporcionam uma teoria de produção de sujeitos, pois apresentam diversas
camadas de teorização da subjetividade, as quais são difíceis de desenredar. Esse
conjunto complicado de fusões e enredamentos combinava importantes insight com
desastres teóricos.
Diz, entretanto, que o problema consiste em saber como aprender os momentos
mais concretos e mais privados da circulação cultural. Isso coloca dois tipos de
pressão. O primeiro vai na direção de métodos que possam detalhar, recompor e
representar conjuntos complexos de elementos discursivos e não-discursivos tais
como eles aparecem na vida de grupos sociais particulares. O segundo vai na
direção de uma “análise social” ou de uma busca ativa de elementos culturais que
aparecem na esfera pública ou que aparecem apenas de forma abstrata e
transformada. (Johnson, 2000:95)
Em suas críticas, Johnson vai aconselhar que temos de manter um olhar inquieto sobre as linhagens históricas e as atuais ortodoxias daquilo que é, algumas vezes, chamado de “etnografia” – a prática de representação das culturas dos outros. A prática, tal como a palavra, já amplia a distância social e constrói relações de “conhecimento–como-poder”. ‘’Estudar” formas culturais é já diferir de uma ocupação mais implícita da cultura, que é a principal forma de “senso comum” em todos os grupos sociais. (E quero dizer todos os grupos sociais – os “intelectuais” podem ser ótimos em descrever os pressupostos “implícitos” de outras pessoas, mas são tão implícitas
63
quanto quaisquer outros quando se trata de seus próprios pressupostos (Johnson,2000 :96)
Em sua elaboração, o autor questiona quais são os diferentes modos através dos
quais as formas subjetivas são ocupadas – ludicamente ou numa profunda
seriedade, através da fantasia ou em acordo racial, porque se trata da coisa a fazer
ou da coisa a não fazer? Tendem essas formas culturais a reproduzir as formas
existentes de subordinação ou opressão? Ou são elas formas que permitem um
questionamento das relações existentes e sua superação em termos de desejo?
Para se responder a tais questões, propõe que existem três modelos principais de
pesquisas em Estudos Culturais: estudos baseados na produção, estudos baseados
no texto e estudos baseados nas culturas vividas. Entretanto, cada abordagem
também implica em uma concepção diferente da política cultural.
Neste trabalho de pesquisa, a tendência para a qual nos referendamos foi às
culturas vividas no cotidiano do curso de Pedagogia da FFPP. Não se pauta em
representações, mas nas suas contribuições, nas tessituras de identidades.
Os estudos baseados na produção implicam uma luta para controlar ou transformar
os mais poderosos meios alternativos pelos quais estratégias contra-hegemônicas
poderiam ser buscadas; apoiados no texto, ao serem focalizados nas formas dos
produtos culturais, têm, em geral, se preocupado com as possibilidades de uma
prática cultural transformativa. Eles têm se dirigido, mais freqüentemente, aos
praticantes da vanguarda, aos críticos e aos professores. Essas abordagens têm
atraído, especialmente, educadores profissionais em faculdades ou escolas, porque
os conhecimentos apropriados à prática crítica têm sido adaptados (não sem
problemas) a um conhecimento direcionado a leitores críticos.
A pesquisa das culturas vividas tem estado estreitamente associada a uma política
da “representação”, apoiando as formas vividas dos grupos sociais subordinados e
criticando as formas públicas dominantes à luz de sabedorias ocultas. Este trabalho
pode, inclusive, aspirar a contribuir para tornar hegemônicas culturas que são
comumente privatizadas, estigmatizadas ou silenciadas. (Johnson, 2000:105)
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Para o autor, aquelas pessoas preocupadas com estudos de produção precisam
examinar mais de perto, por exemplo, as condições especificamente culturais de
produção. Mas já no momento da produção, espera-se encontrar relações mais ou
menos íntimas com a cultura vivida de grupos sociais particulares, nem que seja
apenas a dos produtores. Estudos no momento da produção podem antecipar os
outros aspectos do processo mais amplo e preparar o terreno para uma análise mais
adequada. São modos de estudos textuais que se articulem com as tendências da
produção e da leitura. Como podemos verificar, os estudos propostos pelo autor são
muito ligados aos elementos dos estudos da linguagem:
Não há por que abandonar formas existentes de análise textual, mas estas têm que ser adaptadas ao estudo das práticas reais de leitura dos diferentes públicos, em vez de substituí-los. Em primeiro lugar, a leitura formal de um texto tem que ser tão aberta ou tão multi-estratificada quanto possível, identificando, certamente, posições preferidas ou quadros de referências preferenciais, mas também leituras alternativas e quadros de referências subordinados, mesmo que esses possam ser discernidos apenas como fragmentos ou como contradições nas formas dominantes. (Johnson, 2000:108)
Para concluir um diálogo sobre as diversas tendências que se ocupam dos temas, é
preciso destacar que as discussões sobre os estudos culturais encontram seu
grande interlocutor em Bhabha, cuja produção teórica se destaca pela diversidade
da reflexão, pelos textos que lhe servem de dados, pela linguagem que analisa e
através da articulação de seus próprios enunciados. Seus estudos dão um novo
estatuto para os Estudos Culturais:
Nossa existência hoje é marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronteiras do "presente", para as quais não parece haver nome próprio além do atual e controvertido deslizamento do prefixo "pós": pós--modernismo, pós-colonialismo, pós-feminismo (...). Esse vazio se faz preencher na afirmação de que encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão. (Bhabha, 1998:19)
Admitindo o afastamento das singularidades de "classe" ou "gênero" como
categorias conceituais e organizacionais básicas o autor afirma que uma consciência
das posições do sujeito - de raça, gênero, geração, local institucional, localidade
65
geopolítica, orientação sexual - que habitam qualquer pretensão à identidade no
mundo moderno. O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a
necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e
de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação
das diferenças culturais. Esses "entre - lugares" fornecem o terreno para elaboração
de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva que dão início a novos signos
de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a
própria idéia de sociedade. (Bhabha, 1998:19 - 20).
Nas questões entre colonizador e colonizados, Bhabha conclui que o acesso ao
poder político e o crescimento da causa multiculturalista vêm da colocação de
questões de solidariedade e comunidade em uma perspectiva intersticial. Diz ainda,
que as diferenças sociais não são simplesmente dadas à experiência através de
uma tradição cultural já autenticada e que elas são os signos da emergência da
comunidade concebida como projeto – “ao mesmo tempo uma visão e uma
construção - que leva alguém para "além" de si para poder retornar, com um
espírito de revisão e reconstrução, às condições políticas do presente”. (Bhabha,
1998:21-22)
Para o autor, nessas relações, as tradições nativas são traduzidas em oposição à
autoridade, abrindo outro lugar cultural e político de enfrentamento no cerne da
representação colonial. Aqui a palavra da autoridade divina é profundamente afetada
pela asserção do signo nativo e, na própria prática da dominação, a linguagem do
senhor se hibridiza - nem uma coisa nem outra. “O incalculável sujeito colonizado -
semi-aquiescente, semi-opositor, jamais confiável - produz um problema irresolvível
de diferença cultural para a própria interpelação da autoridade cultural colonial”.
(Bhabha, 1998:62).
Nesse contesto, a problemática envolvendo a identidade está contemplada na
discussão sobre a diferença. A diferença cultural não pode ser compreendida como
um jogo livre de polaridades e pluralidades no tempo homogêneo e vazio da
comunidade nacional. O abalo de significados e valores causados pelo processo de
66
interpretação cultural é o efeito da perplexidade do viver nos espaços liminares da
sociedade nacional que se tentou delinear. A diferença cultural, como uma forma de
intervenção, participa de uma lógica de subversão suplementar semelhante às
estratégias do discurso minoritário. A questão da diferença cultural nos confronta
com uma disposição de saber ou com uma distribuição de práticas que existem lado
a lado, “abseits”, designando uma forma de contradição ou antagonismo social que
tem que ser negociado em vez de ser negado.
A analítica da diferença cultural intervém para transformar o cenário de articulação,
não simplesmente para expor a lógica da discriminação política. Ela altera a posição
de enunciação e as relações de interpelação em seu interior; não somente aquilo
que é falado, mas de onde é falado; não simplesmente a lógica da articulação, mas
os topos da enunciação. O objetivo da diferença cultural é a rearticulação, a soma
do conhecimento a partir da abordagem da posição de significação da minoria, que
resiste à totalização.
O sujeito do discurso da diferença é dialógico ou transferencial à maneira da
psicanálise. Ele é constituído através do lócus do outro, o que sugere que o objeto
de identificação é ambivalente e ainda, de maneira mais significativa, que a agência
de identificação nunca é pura ou holística, mas sempre constituída em um
processo de substituição, deslocamento ou projeção.
Não basta simplesmente se tornar consciente dos sistemas semióticos que
produzem os signos da cultura e sua disseminação. Como estamos argumentando
nesse capítulo, tal processo crítico exige uma temporalidade cultural que é tanto
disjuntiva quanto capaz de articular, nos termos de Lévi-Strauss, “formas de
atividade que são, ao mesmo tempo, nossas e outras".
Uma aproximação que nos faz pensar a questão do currículo e, mais
especificamente, o currículo e a cultura é a relação entre as disciplinas. A
interdisciplinaridade é o reconhecimento do signo emergente da diferença cultural
produzida no movimento ambivalente entre a interpelação pedagógica e a
67
performativa. Ela nunca é simplesmente a adição harmoniosa de conteúdos e
contextos que aumentam a positividade de uma presença disciplinadora ou
simbólica pré-estabelecida. Assim, na tradução cultural, lugares híbridos de sentido
abrem uma clivagem na linguagem da cultura, sugerindo que a semelhança do
símbolo, ao atravessar os locais culturais, não deve obscurecer o fato de que a
repetição do signo é, em cada prática social específica, ao mesmo tempo diferente e
diferencial.
È na amplitude de sua reflexão, nas relações de poder que aparecem definições
para o conceito de cultura: Toda uma gama de teorias críticas contemporâneas
sugere que é com aqueles que sofreram o sentenciamento da história - subjugação,
dominação, diáspora, deslocamento - que aprendemos nossas lições mais
duradouras de vida e pensamento. Há mesmo uma convicção crescente de que a
experiência afetiva da marginalidade social - como ela emerge em formas culturais
não-canônicas - transforma nossas estratégias críticas. Ela nos força a encarar o
conceito de cultura exteriormente aos objetos d’art ou para além da canonização da
“idéia” de estética, a lidar com a cultura como produção irregular e incompleta de
sentido e valor, freqüentemente composta de demandas e práticas incomensuráveis,
produzidas no ato da sobrevivência social. A cultura se adianta para criar uma
textualidade simbólica, para dar ao cotidiano alienante uma aura de individualidade,
uma promessa de prazer. A transmissão de culturas de sobrevivência não ocorre no
organizado “musée imaginaire” das culturas nacionais com seus apelos pela
continuidade de um "passado" autêntico e um "presente" vivo. (Bhabha,1998:240).
Bhabha afirma que a cultura, como estratégia de sobrevivência, é tanto
transnacional como tradutória. Ela é transnacional porque os discursos pós-coloniais
contemporâneos estão enraizados em histórias específicas de descolamento
cultural, e é tradutória porque essas histórias espaciais de deslocamento - agora
acompanhadas pelas ambições territoriais das tecnologias "globais" de mídia -
tornam a questão de como a cultura significa, ou o que é significado por cultura, um
assunto bastante complexo:
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A dimensão transnacional da transformação cultural - migração, diáspora, deslocamento, relocação - torna o processo de tradução cultural uma forma complexa de significação. O discurso natural(izado), unificador, da “nação", dos "povos" ou da tradição "popular" autêntica, esses mitos incrustados da particularidade da cultura, não pode ter referências imediatas. A grande, embora desestabilizadora, vantagem dessa posição é que ela nos torna progressivamente conscientes da construção da cultura e da invenção da tradição.(Bhabha, 1998:241)
Localizados no espaço dos novos paradigmas, para esse autor os debates atuais
do pós-modernismo questionam a astúcia da modernidade - suas ironias
históricas, suas temporalidades disjuntivas, seus paradoxos do progresso, sua
aporia da representação. Isto também sugere, implicitamente, que a linguagem
dos direitos e deveres, tão central ao mito moderno de um povo, deve ser
questionada com base no estatuto legal e cultural anômalo e discriminatório
atribuído às populações migrantes, diaspóricas e refugiadas. “Inevitavelmente, elas
se encontram nas fronteiras entre culturas e nações, muitas vezes do outro lado da
lei”. (Bhabha, 1998:244)
Em seu depoimento sobre o seu processo intelectual, Bhabha diz: minha passagem
do cultural como objeto epistemológico à cultura como lugar enunciativo,
promulgador, abre a possibilidade de outros " tempos" de significado cultural. Minha
intenção ao especificar o presente enunciativo na articulação da cultura é
estabelecer um processo pelo qual outros objetificados possam ser transformados
em sujeitos de sua história e de sua experiência.(Bhabha, 1998:248).
Discutindo, ainda, os grandes conflitos desse tempo, o autor retoma e explicita
alguns fatos, ao afirmar que as críticas pós-colonial e negra propõem formas de
subjetividade contestatórias que são legitimadas no ato de rasurar as políticas da
oposição binária - as polaridades invertidas de uma contra-política (Gates). Há uma
tentativa de construir uma teoria do imaginário social que não requeria um sujeito
que expresse uma angústia da origem (West), uma auto-imagem única (Gates), uma
afiliação necessária ou eterna (Hall). (Bhabha, 1998:249).
Para o autor, de “O local da cultura”, as diferenças culturais devem ser
compreendidas no momento em que constituem identidades - de modo contingente,
69
indeterminado - no intervalo entre a repetição da vogal I/eu - que pode sempre ser
reinscrita e relocada - e a restituição do sujeito I/eu. Lidas deste modo, no intervalo
entre o I/eu-como-símbolo e o I/eu-como-símbolo e o I/eu-como-signo, as
articulações da diferença - raça, história, gênero – nunca são singulares. (Bhabha,
1998:322).
Colocando as suas reflexões sobre o espaço gerador de novos conhecimentos e um
novo discurso, nos quais a nossa pesquisa busca inspiração, Bhabha afirma
categoricamente: É uma forma de “negatividade” que torna disjuntivo o presente
enunciativo da modernidade. Ela abre um entre-tempo no momento em que falamos
da humanidade através de suas diferenciações - gênero, raça, classe - que marcam
uma marginalidade excessiva da modernidade.(Bhabha, 1998:329).
Todo esse percurso por nós realizado, que vai desde a origem dos Estudos Culturais
até o momento atual, tem um único objetivo que é a articulação com o objeto
currículo. Ao destacar tais estudos, fomos guiados pela hipótese e quase convicção
de que, como seres sociais e culturais, não poderíamos perder a oportunidade de
destacar um conhecimento que é tecido e reafirmado nas redes. Como linguagem, o
currículo pressupõe lugares e entrelugares que o articulam e que, por sua vez, neles
se reflete. Discutir o currículo fora de uma dimensão social ampla é como retornar à
tradição de uma ordem que exclui tudo que não é igual à norma. Eis o porquê de
nossa incursão, até agora, deste trabalho.
70
CAPÍTULO 3
5- IDENTIDADE, CONHECIMENTO, PARADIGMA E HIBRIDISMO :
REFERENCIAIS QUE TECEM CONCEITOS E FAZERES EM REDE
5.1 DIFERENÇA E IDENTIDADE
Pensar em como se tecem as identidades culturais, a partir das formulações no
contexto do início deste século XXI, é o eixo de minha pesquisa, aproximando a
discussão do currículo e do discurso dos/as alunos/as da FFPP.
Ao colocar-nos questões sobre como a cultura é (re) tecida no cotidiano da escola,
imediatamente observamos que o conceito de cultura está diretamente ligado ao de
identidade, bem destacado por Tristão (2001) como um conjunto de práticas, de
significados, produzidos, compreendidos e compartilhados; a cultura é formadora de
identidades. Na tendência pragmática de verificar a dinâmica de práticas de poder
no currículo, interessa, aqui, pensar que se trata de um discurso e, portanto, tecido a
partir da linguagem, determinada ideológica e politicamente.
Na dinâmica apontada pelos estudiosos da identidade, não é ela concebida
enquanto unidades prontas e acabadas, mesmo porque é algo tecida e não algo que
se encontra por aí “in natura”, mas em constante processo de tessituras: A
identidade é compreendida não mais de maneira fixa ou permanente, forma-se e
transforma-se o tempo todo, correspondendo a maneira como as representações
interpelam o sujeito nos sistemas sociais e culturais (Tristão, 2001:51).
Assim como a autora, também no âmbito deste estudo, só se consegue
compreender essas dimensões articuladas, fazendo um percurso que nos coloque
diante dessas múltiplas dimensões pensadas em vários níveis.
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De forma geral, afirma-se que este debate torna-se um problema teórico a partir da
modernidade, quando a identidade passa a ser encarada como algo sujeito a
mudanças e inovações. A tentativa operada e o relacionamento do tema da
identidade com a discussão sobre o sujeito e sua inserção no mundo, sobre os
indivíduos e suas identidades pessoais – como nos tecemos, percebemo-nos,
interpretamos e nos apresentamos para nós mesmos e para os outros; sobre o
deslocamento do indivíduo do seu lugar na vida social e de si mesmo. (Escosteguy,
2001). Não se entenda, porem, tal individuo dissociado do contexto social.
Tomando como base os conceitos e noções envolvidas com a problemática por nós
apontada, destacamos um aprofundamento que permite a nossa análise,
compreendendo que o debate sobre as identidades, conforme nos aponta a autora,
oscila basicamente entre duas grandes matrizes, denominadas de essencialismo e
construção social, sendo a primeira caracterizada por compreender a existência de
grupos ou comunidades através de uma categoria inerente e inata aos mesmos, e a
segunda posição, por atribuir a sua presença como produto social.
No debate da tessitura das identidades, é preciso fazer referência ao contexto mais
geral onde essa temática assume importância, reconhecendo a desestabilização
gerada pela modernidade nessa discussão e destacando as implicações da
problemática da pós-modernidade e seus interesses na tessitura das identidades.
Para compreender a identidade, um outro elemento muito importante é ligado ao
contexto. Uma outra preocupação que deve ser considerada para compreender a
identidade é o fenômeno complexo da globalização, debatida e polemizada pelos
pensadores contemporâneos: a identidade é uma busca permanente, está em
constante construção, trava relações com o presente e com o passado, tem história
e, por isso mesmo, não pode ser fixa, determinada num ponto para sempre, implica
movimento (Escosteguy, 2001:142).
Esse movimento, como o vemos, e também respeitando a relação com o “outro”, às
vezes, consensual e, outras vezes, polêmica. Isso pode ser notado na própria
constituição dos estados nacionais, ou mesmo no processo de globalização, no qual
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a relação estável entre identidade cultural nacional e Estado-Nação começam a
mudar. Essa cultura de massa global está centrada no ocidente.
Interessa-nos, para essa discussão, a contribuição dos pensadores das novas
metodologias, pois são eles que redimensionam e dinamizam os conceitos que
abarcam determinadas problemáticas, contribuindo para as reflexões sobre o
currículo, a escola, a cultura.
Para os estudiosos da cultura, os estudos sobre a identidade são imperativos ao
mundo contemporâneo, no qual o reconhecimento da diversidade cultural é
imperativo. Hall, citado por Escosteguy (2001) sinaliza que o grande risco surge de
formas de identidade, sendo esta um espaço onde um conjunto de novos discursos
teóricos se interseccionam e onde um novo grupo de práticas culturais emergem. É
importante destacar, entretanto, que não se pode conceituar a própria noção de
identidade com rigor e consistência.
Quando nos referimos à identidade, a questão crucial, como bem aponta Santos
(1999) é conhecer quem pergunta pela identidade, em que condições, contra quem,
com que propósitos e com que resultados. Estamos sendo convocados, desde já, a
definir o que vem a ser identidades como resultados transitórios e fugazes do
processo de identificação, ou seja, são identificações em curso. Compreende-se que
é através da representação que novas identidades são constantemente afirmadas e
reivindicadas, isto é, elas só existem, quando há quem as reivindique. Devemos,
então, pensar a identidade no contexto de um confronto que possibilite algumas
especificidades por parte de quem a reivindica.
Não existe identidade, assim como não existe significação, ou sentido, sem se
buscar o espaço da não-significação ou o espaço do não-sentido, pois não há
conhecimento sobre o uno, mas, sempre sobre um sistema de valores, isto é, da
diferença: as identificações, além de plurais, são determinadas pela obsessão da
diferença e pela hierarquia das distinções (Santos, 1999:135). Verifica-se a analogia
com os estudos da linguagem, principalmente aqueles mais ligados às praticas
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discursivas. Está presente, de alguma maneira, a idéia de valor, enquanto alguma
forma, espaço, o que, paradoxalmente, não deve ser o outro. É assim que
compreendemos as formações destacadas, como compreendemos, também, que
sem o outro não há sentido.
Ao analisarmos a história, suas transformações, seus mapas e rotas, concluiremos
que a modernidade nasce da preocupação com a identidade, nasce com ela. Se o
humanismo renascentista imprimiu a individualidade como subjetividade, é com o
advento de uma mudança fundamental que surge a subjetividade como primeiro
nome moderno da identidade. Temos, então, uma dupla tensão: subjetividade
individual / subjetividade coletiva; subjetividade contextual / subjetividade universal:
Estão na base das duas grandes tradições da teoria social e política da modernidade (...) o paradigma da modernidade é um projeto sócio-cultural muito amplo, prenhe de contradições e de potencialidades que, na sua matriz, aspira a um equilíbrio entre a regulação social e a emancipação social (Santos, 1999:137).
A análise do autor é ampla, pois ele procura pensar a identidade nas relações
políticas e históricas, atraindo o pensamento filosófico. Tal amplitude, entretanto,
não inviabiliza pensar a identidade no local, como é o caso por nós estudado. Para
Santos, existiu uma crescente promiscuidade entre o projeto de modernidade e o
desenvolvimento do capitalismo, por meio de uma teoria política liberal que
preconizava a individualidade e o abstrato, um estado liberal como sujeito
monumental. Rousseau, por sua vez, visava a uma síntese complexa e dinâmica
entre indivíduo e Estado. Tais tensões instauraram uma nova era de fanatismo, de
racismo e de centro centrismo.
Significativamente, em ambos os casos, a subjetividade do outro é negada pelo “facto” de não corresponder a nenhuma das subjetividades hegemônicas da modernidade em construção: o indivíduo e o estado (...) o discurso jurídico suporte crucial da linguagem abstrata que permite descontextualizar e conseqüentemente negar a subjetividade do outro (Santos, 1999:139)
Em sua reflexão sobre a identidade, Santos antecipa que pretende pensar o caso
português, mas abre espaço para uma reflexão sobre o caso brasileiro. Diz, então,
que no nascimento da modernidade, no próprio espaço europeu, a
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descontextualização e a polarização das identidades hegemônicas, o indivíduo e o
Estado passaram por momentos de forte contestação.
O autor explica que o romantismo trouxe uma busca radical da identidade, o
reencontro com o outro da modernidade. O conflito matricial da modernidade entre
regulação e emancipação passa a ser definido segundo as classes que o
protagonizam. Isso, na chave marxista, quer dizer que o supra-sujeito é a classe,
não o estado. A contestação romântica propõe a recontextualização da identidade
por via de três vínculos principais: o vínculo étnico, o vínculo religioso e o vínculo
com a natureza. A contestação marxista propõe, como vimos, a recontextualização
através do vínculo da classe (Santos, 1999:141).
Segundo o autor, o vinculo religioso foi marginalizado por uma política liberal.
Observa-se, também, a descaracterização do vínculo étnico pelo racismo
dominante e sua absorção no conceito de nação (inventado): denominador sócio-
cultural comum, homogêneo, para poder funcionar como base social adequada à
obrigação política geral e universal, exigida pelo Estado, autodesignado Estado-
Nação. (Santos, 1999:14- 142). A degradação do vínculo com a natureza dá-se no
início dos primórdios da modernidade com a revolução científica galilaica e
newtoniana. A concepção dos povos ameríndios como “homo naturalis” traz
consigo a descontextualização de sua subjetividade:
O papel do Estado foi crucial por ter sido indirecto ao criar e aplicar um regime jurídico de propriedade que simultaneamente legitimava pelo mesmo princípio e mantinha incomunicáveis dois processos históricos simbióticos: a exploração da natureza pelo homem e a exploração do homem pelo homem (Santos, 1999:142).
Ainda por tal ponto de vista, a modernidade deixou que as múltiplas identidades e os
respectivos contextos intersubjetivos que a habitavam fossem reduzidos à lealdade
terminal ao estado. Afirma, também, categoricamente, que as ciências sociais
estiveram, desde a sua gênese, implicadas nesse processo: a globalização das
múltiplas identidades na identidade global do Estado tornou possível pensar uma
identidade simétrica do Estado, global e idêntica como ele – a sociedade (Santos,
1999:142-143).
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Em tal reflexão, dois clássicos do pensamento sociológico são convocados, alem
do próprio Marx. A questão de Durkheim discutiu o princípio da solidariedade na
sociedade, se ela foi sempre produzida nas subunidades como igreja, família,
comunidade local, tornava possível uma forma mais avançada, complexa e
orgânica de solidariedade. Já Max Weber coloca a problemática de definir a
identidade da modernidade capitalista liberal européia, por achá-la excepcional. Tal
excepcionalidade – a passagem de particularismos contextualizados a
universalismos sem contexto, processos chamados de racionalização,
secularização, burocratização, formalização jurídica, democratização, urbanização,
globalização - foi transformada em regra, colocando todos os paradigmas sócio-
culturais na contingência de questionarem a sua identidade, a partir de uma posição
de carência e subordinação:
A separação disciplinar entre a sociologia (o estudo de “nós”, “civilizados”) e a antropologia (o estudo “deles”, “primitivos”) caucionou e, de facto, promoveu esta transformação. A paridade epistemológica entre as duas disciplinas passou a ocultar a assimetria que Lévi-Strauss eloqüentemente denunciou ao afirmar que nós pudemos transformá-los em nossos selvagens, mas eles não podem transformar-nos em seus selvagens (Santos, 1999: 143).
Pensamos que a referência a Weber dá-se em razão do mesmo ter percebido tais
relações nos próprios limites europeus. Atualmente, podemos verificar a supremacia
de um modelo norte-americano sob o qual não apenas os Estados subdesenvolvidos
ou emergentes estejam subordinados, mas a própria Europa, por questões
econômicas, tem enfrentado dificuldades de reação.
Da negação de uma subjetividade que se preenchia quer pelo Estado, quer pela
classe, observa-se uma mudança nos últimos anos, provocando revisões profundas
nos discursos e nas práticas identitária. O que se percebe é o surgimento de uma
nova concepção de identidade necessária para pensarmos a dinâmica social.
Santos observa que esta guinada deixa, no ar, algumas dúvidas: a concepção
hegemônica de modernidade se equivocou na identificação das tendências dos
processos sociais? As tendências se inverteram, totalmente em tempos recentes?
Trata-se de inversão de tendências, ou cruzamentos múltiplos de tendências
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opostas sem que seja possível identificar os vetores mais patentes? O que
presenciamos é, realmente novo, ou é apenas novo o olhar com que presenciamos?
O foco está mudando, mas a realidade também deve ter mudado.
O clima geral das revisões é que o processo histórico de descontextualização das identidades e de universalização das práticas sociais é muito menos homogêneo e inequívoco do que antes se pensou já que com ele concorreram velhos e novos processos de recontextualização e de particularização das identidades e das práticas. Eis algumas das revisões. A propósito da reemergência da etnicidade, do racismo, do sexismo e da religiosidade, fala-se do novo “primordialismo”, do regresso da solidariedade mecânica, do direito às raízes (...) a base étnica das nações modernas torna-se cada vez mais evidente e o Estado-Nação, longe de ser uma entidade estável, natural, começa a ser visto como a condensação temporária dos movimentos que verdadeiramente caracterizam a modernidade política: Estados em busca de nações e nações em busca de Estados (Santos, 1999:144).
Destaque-se, também, que aliada às questões de etnicidade, religiosidade, direito às
raízes e à evidência da base étnica das nações modernas, existe ainda uma cultura
nacional confrontada com pressões contraditórias. De um lado, a cultura global; do
outro, as culturas locais e as regionais: a recontextualização e a reparticularização
das identidades e das práticas a conduzir a uma reformulação das interrelações
entre os diferentes vínculos como o nacional classista, racial, étnico e sexual. Tal
reformulação é exigida pela verificação de fenômenos convergentes ocorrendo nos
mais díspares lugares do sistema mundial (Santos, 1999 145).
O neo-racismo europeu é novo na medida em que o seu tema dominante não é a
superioridade biológica, mas antes as insuperáveis diferenças culturais, a conduta
racial em vez da pretensão social. É assim, também, que o conceito de imigração
substitui o de raça e disssolve a consciência de classe. A crise do pensamento
estratégico emancipatório, mais que uma crise de princípios, é uma crise dos
sujeitos sociais interessados na aplicação destes e também dos modelos de
sociedade em que tais princípios se podem traduzir; é difícil pensar um modelo não-
produtivista de sociedade, quando o sistema mundial cada vez mais se polariza
entre um minúsculo centro hegemônico pós-produtivista e hiperconsumista e uma
imensa periferia pré-produtivista e subconsumista. Isso quer dizer que há algumas
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transformações nos paradigmas, mas a desfocagem do estado e da cultura nacional
ocorre sem comprometimento do capitalismo.
Quais são, pois, os desafios? A recontextualização das identidades exige, nas condições actuais, que o esforço analítico e teórico se concentre na dilucidação das especificidades dos campos de concentração e de negociação em que as identidades se formam e dissolvem e na localização dessas especificidades nos movimentos de globalização do capital e, portanto, no sistema mundial (...) Cabe, pois, perguntar, quem sustenta a nova, ou renovada, tensão entre demos e ethnos? Julgo que a cultura. Daí a autoconcepção das identidades contextuais como multiculturalidades, daí o renovado interesse pela cultura nas ciências sociais, e daí, finalmente, a crescente interdisciplinaridade entre ciências sociais e humanidades (Santos, 1999:147-148).
Para verificarmos as questões de identidade é necessário, pois, re-analisar as
culturas das nações, questionando as tessituras oficiais da cultura nacional. Santos
diz que três orientações metodológicas são fundamentais: não sendo nenhuma
cultura autocontida, os seus limites nunca coincidem com os limites do Estado; não
sendo autocontida, nenhuma cultura é indiscriminadamente aberta; a cultura de um
grupo social não é nunca uma essência, mas uma autocriação, uma negociação de
sentidos que ocorre no sistema mundial e que não é compreensível sem a análise
da trajetória histórica e da posição desse grupo no sistema mundial.
Ao referir-se ao caso português, Santos afirma que a cultura portuguesa não tem
conteúdo, apenas forma e que essa forma é a fronteira ou zona fronteiriça: as
culturas nacionais, enquanto substâncias, são uma criação do século XIX, são,
como vimos, o produto histórico de uma tensão entre universalismo e particularismo
gerido pelo estado. O papel do Estado é dúplice: por um lado, diferencia a cultura do
território nacional face ao exterior; por outro lado, promove a hegemoneidade
cultural no interior do território nacional (Santos, 1999:151). Para o autor, o Estado
português nunca desempenhou nenhum desses dois papéis.
Chamam-nos a atenção essas colocações porque são análoga a análise do
simbólico e dos estudos do conteúdo. A dificuldade de diferenciação e de
identificação cria, por um lado, um vazio substantivo, mas, por outro, consolida uma
forma cultural muito específica, a fronteiriça ou zona fronteiriça que é híbrida,
babélica, onde os contactos se pulverizam e se ordenam segundas micro-
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hierarquias pouco susceptíveis de globalização. Em tal zona, são imensas as
possibilidades de identificação e de criação cultural, todas igualmente superficiais e
igualmente subvertíveis (Santos, 1999:152-53).
A identidade surge como tema fundamental no trabalho que visualizamos pois não
podemos pensar em currículo sem destacar a cultura da comunidade onde ele se
faz real. Isso significa gerar esforços para uma nova recontextualização e
emancipação, considerando-se as novas metodologias, a nova subjetividade e as
imposições imprescindíveis acarretadas pelos estudos das identidades. Em relação
ao currículo, a questão é importante diante do conhecimento que se quer constituir e
por se atribuir a tantas práticas nem sempre bem sucedidas o distanciamento
existente entre conhecimento e subjetividade, ainda que esta seja heterogênea,
assim como o é a cultura e, conseqüentemente, a própria identidade.
Como já foi repetido, identidades não são nunca completas, finalizadas e estão em
permanente mudança, pois é sempre em parte, uma narrativa, sempre em parte um
tipo de representação. Numa análise menos abrangente que em Santos, pois muito
ligada à individualidade, Escosteguy (2001) vê a identidade articulada ao passado e
ao presente, em permanente tessitura, atravessando tanto pelos discursos públicos,
quanto pelas práticas e experiências dos sujeitos, estranhamento numa determinada
conjuntura histórica.
Um aspecto a ser também observado e apontado por Hall, citado por Escosteguy
(2001) presta acurada atenção às identidades diaspóricas, isto é, o que a
experiência de “migração” afeta a identidade, pois ninguém se translada de um lugar
a outro ou herda e se apropria de culturas diversas sem ser afetado por essa
experiência. Daí a autora concluir que a forma de Hall pensar a identidade é
diferente da análise pós-moderna. Embora admita um certo descentramento do
sujeito na atual conjuntura, nega a existência de algo tão novo e completamente
diferente e certa maneira unificada como a condição pós-moderna.
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Um caminho para discutir a identidade na nova concepção, em meio aos estudos
culturais e pós-coloniais e que apontam a insuficiência e reducionismo de algumas
abordagens são as reflexões de Homi Bhabha, que têm norteado maiores
direcionamentos, pois desenvolvem um entendimento da identidade, articulada a
uma compreensão da diferença: Ela reflete sobre a necessidade de compreender a
diferença cultural como produção de identidade minoritário que se “fendem” – que
em si acham divididas – no ato de se articular em um corpo coletivo (Bhabha,
1998:19).
Pensa-se, aqui, em uma discussão entrecortada por um presente multifacetado,
pois, segundo o autor, encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e
tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade,
passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão. (Bhabha, 1998:19).
Como em Santos, a questão da identidade e da diferença, encontra o seu espaço
nas relações de poder: A força dessas questões é corroborada pela “linguagem” de
recentes crises sociais detonadas por histórias de diferença cultural. Os recentes
atentados terroristas no Oriente Médio, nos Estados Unidos, e agora, na Espanha
ilustram tais conflitos que, por sua vez, resultaram em ondas de antiislamismo
evidenciadas no mundo inteiro. Já estamos assistindo a guerras nesses espaços. De
que modo se formam sujeitos nos “entrelugares”, nos excedentes da soma das
“partes” da diferença (geralmente expressas como raça/classe/gênero etc)?
(Bhabha, 1998:20)
5.2 DIMENSÕES ATUAIS
A diferença e a identidade merecem, entretanto, uma nova reflexão:
A significação mais ampla da condição pós-moderna reside na consciência de que os “limite” epistemológicas daquelas idéias etnocêntricas são também as fronteiras enunciativas de uma gama de outras vozes e histórias dissonantes, até dissidentes - mulheres, colonizados, grupos minoritários, os portadores de sexualidade policiadas. Isto porque a demografia do novo internacionalismo é a história da migração pós-colonial, as narrativas da diáspora cultural e política, os grandes deslocamentos sociais de comunidades camponesas e aborígenes, as poéticas do exílio, a prosa austera dos refugiados políticos e econômicos. É nesse
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sentido que a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente, do além que venho traçando: Sempre, e sempre de modo diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou apressados dos homens para lá e para cá, de modo que eles possam alcançar outras margens. A ponte reúne enquanto passagem que atravessa. (Bhabha, 1998:23 – 24)
A fronteira que demarca e intersecta é o espaço da reflexão sobre identidade, pois o
trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com "o novo" que não seja parte
do contínuum de passado e presente, ou seja, cria uma idéia do novo como ato
insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como
causa social ou precedente estético; ele renova o passado, refigurando-o como um
''entre-lugar" contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O
"passado-presente" torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver.
(Bhabha, 1998: 27).
Nesse novo pensamento, existe uma crítica sobre os diversos “ismos”: O que exige
maior discussão é se as “novas” linguagens da crítica teórica (semiótica, pós-
estruturalismo, desconstrucionista e as demais) simplesmente refletem aquelas
divisões geopolíticas e suas esferas de influência, produzindo um discurso do Outro
que reforça sua própria equação conhecimento – poder (Bhabha, 1998:45). Uma
reflexão sobre os próprios discursos, os enunciados da cultura são presentes na
obra.
As formulações teóricas do autor recolocam, em novo espaço, as discussões sobre
os discursos, a identidade, a diferença e a diversidade. Estando além da teoria
critica, vai apoiar-se não na noção de diferença cultural, mas de diversidade cultural.
A diversidade cultural é um objeto epistemológico - a cultura como objeto do
conhecimento empírico, enquanto a diferença cultural é o processo da enunciação
da cultura como "reconhecível", legítimo, adequado à tessitura de sistemas de
identificação cultural. Se a diversidade é uma categoria da ética, estética ou
etnologia comparativas, a diferença cultural é um processo de significação através
do qual afirmações da ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a
produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade.
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É importante, pois, compreendermos que a diversidade cultural é o reconhecimento
de conteúdos e costumes culturais pré-dados; mantida em um enquadramento
temporal relativista, ela dá origem a noções liberais de multiculturalismo, de
intercâmbio cultural ou da cultura da humanidade. A diversidade cultural é também a
representação de uma retórica radical da separação de culturas totalizadas que
existem intocadas pela intertextualidade de seus locais históricos, protegidas na
utopia de uma memória mítica de uma identidade coletiva única. Conforme afirma o
autor, desenvolvendo o caráter epistemológico, a diversidade cultural pode inclusive,
emergir como um sistema de articulação e intercâmbio de signos culturais em certos
relatos antropológicos do início do estruturalismo. (Bhabha, 1998:63). Tem, como
podemos observar, um caráter institucional.
A partir de então, o autor vai explicar as relações dos enunciados culturais:
Por meio do conceito de diferença cultural quero chamar a atenção para o solo comum e o território perdido dos debates críticos contemporâneos. Isso porque todos eles reconhecem que o problema da interação cultural só emerge nas fronteiras significatórias das culturas, onde significados e valores são (mal) lidos ou signos são apropriados de maneira equivocadas. A cultura só emerge como um problema, ou uma problemática, no ponto em que há uma perda de significado na contestação e articulação da vida cotidiana entre classes, gêneros, raças, nações. Todavia, a realidade do limite ou texto-limite da cultura é raramente teorizada fora das bem-intencionadas polêmicas moralistas contra o preconceito e o estereótipo ou da asserção generalizadora do racismo individual ou institucional - isso descreve o efeito e não a estrutura do problema. A necessidade de pensar o limite da cultura como um problema da enunciação da diferença cultural é rejeitada. (Bhabha, 1998:63).
Em observando e destacando a diferença que se materializa em enunciados da
cultura, o autor esclarece que os mesmos processam rupturas, pois o conceito de
diferença cultural concentra-se no problema da ambivalência da autoridade cultural:
a tentativa de dominar em nome de uma supremacia cultural que é ela mesma
produzida apenas no momento da diferenciação. E é a própria autoridade da cultura,
como conhecimento da verdade referencial,que está, em questão, no conceito e no
momento da enunciação.
A ruptura anunciada por Bhabha dá-se a partir do momento em que o processo
enunciativo introduz uma quebra no presente performativo da identificação cultural,
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uma quebra entre a exigência culturalista tradicional de um modelo, uma tradição,
uma comunidade, um sistema estável de referência e a negação necessária da
certeza na articulação de novas exigências, significados e estratégias culturais no
presente político, como prática de dominação ou resistência: A luta se dá
freqüentemente entre o tempo e a narrativa historicistas, teleológicos ou míticos, do
tradicionalismo - de direita ou de esquerda - e o tempo deslizante,
estrategicamente deslocado, da articulação de uma política histórica de negociação,
(...) Um tempo de incerteza cultural e, mais crucialmente, de indecidibilidade
significatórias ou representacional. (Bhabha, 1998:64).
A enunciação colocada pelo autor está muito ligada ao conceito de intertextualidade.
A enunciação da diferença cultural problematiza a divisão binária de passado e
presente, tradição e modernidade, no nível da representação cultural e de sua
interpelação legítima. Trata-se do problema de como, ao significar o presente, algo
vem a ser repetido, recolocado e traduzido em nome da tradição, sob a aparência
de um passado que não é necessariamente um signo fiel da memória histórica, mas
uma estratégia de representação da autoridade em termos do artifício do arcaico:
Isto exige que repensemos nossa perspectiva sobre a identidade da cultura. Nenhuma cultura é jamais unitária em si mesma, nem simplesmente dualista na relação do Eu com o Outro. Não é devido a alguma panacéia humanista que, acima das culturas individuais, todos pertencemos à cultura da humanidade; tam pouco é devido a um relativismo ético que sugerem que, em nossa capacidade cultural de falar sobre os outros e de julgá-los,nós necessariamente "nos colocamos na posição deles ", em um tipo de relativismo da distância sobre o qual Bernard Williams tanto escreveu. (Bhabha, 1998: 65)
Neste entendimento, a enunciação cultural ligada à diferença e à identidade coloca,
em destaque, a escritura e a subjetividade porque o ato de enunciação cultural - o
lugar do enunciado - é atravessado pela diferença da escrita. É essa diferença no
processo da linguagem que é crucial para a produção do sentido e que, ao mesmo
tempo, assegura que o sentido nunca é simplesmente mimético e transparente, pois
o próprio discurso, segundo os analistas, é opaco. Quanto à subjetividade, diz o
autor que a diferença lingüística que embasa qualquer performance cultural é
dramatizada no relato semiótico, comum, da disjunção entre o sujeito de uma
proposição e o sujeito da enunciação, que não é representado no enunciado, mas
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que é o reconhecimento de sua incrustação e interpelação discursiva e sua
posicionalidade cultural.
Sobre a questão da identidade, que muito interessa às nossas reflexões, Bhabha
explica: a questão da identificação nunca é afirmação de uma identidade pré-dada,
nunca uma profecia autocumpridora - é sempre a produção de uma imagem de
identidade e a transformação do sujeito ao assumir aquela imagem. É, então, como
compreendemos, uma identidade que existe no momento mesmo da enunciação e
que, para tanto, convoca outros entendimentos:
O problema da identidade atrai outros termos como hibridismo: O objeto híbrido, por outro lado, conserva a semelhança real do símbolo autorizado, mas reavalia sua presença, resistindo a ele como o significante do Entstellung – após a intervenção da diferença. O poder desta estranha metonímia da presença consiste em perturbar de tal forma a construção sistemática (e sistêmica) de saberes discriminatórios que o cultural, antes reconhecido como meio da autoridade, se torna virtualmente irreconhecível. A cultura, como espaço colonial de intervenção e agonismo, como traço do deslocamento de símbolo a signo, pode ser transformada pelo desejo imprevisível e parcial do hibridismo. (Bhabha, 1998:167)
O autor procede, então, alguns questionamentos, como, de que modo se pode
encontrar o passado como uma anterioridade que, continuamente introduz uma
outridade ou alteridade dentro do presente? De que modo então narrar o presente
como forma de contemporaneidade que não é nem pontual, nem sincrônica? Em
que tempo histórico tais configurações de diferença cultural assumem formas de
autoridade cultural e política? Buscando respostas, diz que a diferença cultural não
representa simplesmente a controvérsia entre conteúdos oposicionais ou tradições
antagônicas de valor cultural. A diferença cultural introduz no processo de
julgamento e interpretação cultural aquele choque repentino do tempo sucessivo,
não-sincrônico, da significação, ou a interrupção da questão suplementar (Bhabha,
1998:228).
A incompletude dos enunciados culturais levam Bhabha a pensar que as
designações da diferença cultural interpelam formas de identidade que, devido à sua
implicação contínua em outros sistemas simbólicos, são sempre "incompletas" ou
abertas à tradução cultural, pois reconstituir o discurso da diferença cultural exige
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não apenas uma mudança de conteúdos e símbolos culturais: uma substituição
dentro da mesma moldura temporal de representação nunca é adequada. Isto
demanda uma revisão radical da temporalidade social na qual histórias emergentes
possam ser escritas; demanda também a rearticulação do "signo" no qual se
possam inscrever identidades culturais. (Bhabha, 1998:240).
De tudo que se disse sobre a identidade e a diferença, uma das conclusões a que
podemos chegar, até o momento, é que a partir dos novos paradigmas, observa-se
a complexidade de culturas e que a posição enunciativa dos estudos culturais
contemporâneos é complexa e problemática porque, de alguma maneira, tenta
institucionalizar uma série de discursos transgressores cujas estratégias não
apenas diferem em conteúdos mas, muitas vezes, produzem sistemas incompatíveis
de significação e envolvem formas distintas de subjetividade social: Para obter um
imaginário social baseado na articulação de momentos diferenciais, até disjuntivos,
da história e da cultura, os críticos contemporâneos apelam para a temporalidade
peculiar da metáfora da linguagem.É como se a arbitrariedade do signo, a
indeterminação da escrita, a cisão do sujeito da enunciação, esses conceitos
teóricos, produzissem as descrições mais úteis da formação de sujeitos culturais
“pós-moderno” (Bhabha,1998:245 – 246).
A metáfora da "linguagem" traz, à tona, a questão da diferença, já que representa a
temporalidade do significado cultural como "multi-acentuada", "rearticulada
discursivamente". É um tempo do signo cultural que desestabiliza a ética liberal da
tolerância e a moldura pluralista do multiculturalismo. Cada vez mais, o tema da
diferença cultural emerge em momentos de crise social,e as questões de identidade
que ela traz à tona são agonísticas; a identidade é reivindicada a partir de uma
posição de marginalidade ou em uma tentativa de ganhar o centro.(Bhabha,
1998:247)
Como estamos verificando, não se pode falar de identidade, diferença, ou mesmo de
estudos culturais sem a presente intervenção da linguagem, aqui destacada até
mesmo na reapropriação da metalinguagem. Vejamos, como exemplo, que a idéia
85
do diálogo sempre inconcluso, conforme os estudos bakhtinianos, está contemplada
em Bhabha, na seguinte formulação: O enunciativo é um processo mais dialógico
que tenta rastrear deslocamentos e realinhamentos que são resultado de
antagonismo e articulações culturais, subvertendo a razão do momento hegemônico
e recolocando lugares híbridos. Podemos inferir, conforme sempre apontou o autor,
que, nesse processo, nessa interação, a identidade está ligada a um sujeito pós-
moderno, sempre em crise, transformado, dinâmico, na eterna busca de um
reencontro, da emergência de novas interlocuções, novas enunciações, de um novo
diálogo.
5.3 NOVO PARADIGMA:
Estamos vivendo um tempo onde as coisas acontecem numa rapidez que, por
vezes, nos assustam. Essas tais coisas e sustos não podem mais ser descartados
por determinismos que se impõem como a fórmula de pensar a vida, o mundo, o
humano e o social. Existe uma opção legítima por novos paradigmas sob os quais
os objetos que se apresentam não tão evidentes e não tão palpáveis sejam
transformados em reflexão pertinente. Persegue-se, assim, um todo não totalitário e
uma incompletude mais completa. As opções são necessárias. E as que se
apresentaram no contexto deste estudo, levaram-nos a fazer um percurso conforme
indicado por determinados autores que pensam sobre um passado articulado a um
futuro, numa espécie de historiografia do homem e seu mundo. Trata-se, aqui, de
incluir uma reflexão de caráter epistemológico que nos conduza e justifique a nossa
opção por tal forma de pensar e agir nessa investigação.
O século XX marcou-se por inúmeras mudanças: duas grandes guerras
aconteceram, dizimando milhares de pessoas. O processo de industrialização
alcançou escalas gigantescas. A ciência caminhou a passos longos, produzindo
tecnologias novas em todos os campos: a tecnologia informa e transforma o império
da comunicação, “conectando” o mundo todo, num só instante; o mercado foi aos
poucos rompendo as barreiras das nações-estados e hoje está globalizado.
Globalização essa sempre retornada no debate sobre tudo que diz respeito ao
social.
86
Mudanças acontecem em todos os âmbitos: sociais, científicos, econômicos,
políticos e, também, na educação. Espalha-se em todas as esferas a idéia de crise.
Veiculam-se notícias sobre a crise da instituição escolar.
O projeto da modernidade parece estar posto em xeque em nossa atualidade. A
crença no progresso, através do uso da razão e da ciência, começa a ruir diante das
guerras e da miséria. As promessas da modernidade, atreladas à racionalidade
iluminista, de emancipação e de liberdade social iluminista, de emancipação e de
liberdade social e política não conseguiram se concretizar.
As catástrofes têm marcado os novos momentos da história, ou mesmo a sua
falência como querem alguns. O mundo nunca mais seria o mesmo, dizem alguns
críticos, depois do holocausto e das bombas despejadas sobre Hiroshima e
Nagasaki, eventos dramáticos por uma violência e pela demonstração da
intolerância humana (...) Outro momento mais próximo é o atentado, em setembro
de 2001, às torres do World Trade Center, em Nova Iorque, entre tantos outros, são
evidências contundentes de um mundo conflagrado pelos embates entre culturas
(Costa, 2002: 134). Sobre este episódio, cabe-nos perguntar qual a sua importância
real como causa ou conseqüência para a história.
A visão de um mundo dividido em classes dominantes e dominadas, opressores e
oprimidos, direita e esquerda, passa a ser desafiada em função de acontecimentos
mundiais e de transformações das idéias. Pensar dialeticamente parece ser
insuficiente para explicar as conjunções agora desveladas. O social aparece com
força em novas tessituras, ao tempo em que impõe um coletivo na própria forma de
pensar. Alguns pensadores despontam como atestadores de um novo momento.
As grandes promessas da modernidade permanecem incumpridas ou o seu cumprimento redundou em efeitos perversos. No que respeita à promessa da igualdade os países capitalistas avançados com 21% da população mundial controla 78% da produção mundial de bens e serviços e consomem 75% de toda a energia produzida. Os trabalhadores do Terceiro Mundo do setor têxtil ou da eletrônica ganham 20 vezes menos que os trabalhadores da Europa e da América do Norte na realização das mesmas tarefas e com a mesma produtividade. Desde que a crise da dívida rebentou no início da década de 80, os paises devedores do
87
Terceiro Mundo têm vindo a contribuir em termos líquidos, para a riqueza dos paises desenvolvidos, pagando a este em média por ano mais de 30 bilhões de dólares do que receberam em novos empréstimos (SANTOS, 2001: 23-24).
Muitos outros problemas poderiam ser enumerados, porém acreditamos que os
apontados são suficientes para nos causar desconforto ou indignação. A
modernidade aparece como uma grande contradição aos nossos estudos.
O paradigma da modernidade é um projeto ambicioso e revolucionário, mas é
também um projeto com contradições internas. Por um lado, a envergadura das
suas propostas abre um vasto horizonte à inovação social e cultural; por outro, a
complexidade dos seus elementos constitutivos torna praticamente impossível evitar
que o cumprimento das promessas sejam sempre excessivos e muito insuficientes.
Forjada nos valores da ilustração, a modernidade caracterizou-se pela crença no
poder da razão, no controle e na manutenção da vida e do processo social através
do conhecimento sistematicamente proposto pela ciência e tecnologia.
Os preceitos cartesianos fundavam a crença na possibilidade de compreender o
mundo e o próprio homem de maneira linear, precisa e objetiva, previsível e estável
e de considerar a razão como sendo capaz de proceder à conquista de certeza
inabalável. Neste mundo, o homem foi compreendido de forma também estanque,
dividido em compartimentos incomunicáveis onde residiam solitariamente razão,
emoção, conhecimento e ação e onde as fronteiras entre corpo e alma estavam
rigidamente estabelecidas, superando - as. A promessa da dominação da natureza e
do seu uso para benefício comum da humanidade conduziu a uma exploração
excessiva e despreocupada de recursos naturais, à catástrofe ecológica, a ameaça
nuclear, a destruição da camada de ozônio, e a emergência da biotecnologia da
engenharia e de conseqüente conversão do corpo humano em mercadoria (Santos,
2001: 56).
Uma exigência ou possibilidade de observar o mundo de hoje como conseqüência
do ontem, alerta o autor, é que para entender corretamente o desenvolvimento
desequilibrado e hipercientizado do pilar da emancipação é necessário não
88
esquecer o desenvolvimento concomitante, e igualmente desequilibrado, do pilar da
regulação nos últimos dois séculos (...). Trata-se de um percurso que nos leva a
concluir que em vez de um desenvolvimento harmônico dos três princípios da
regulação – Estado, mercado e comunidade -, assistimos geralmente ao
desenvolvimento excessivo do princípio de mercado em detrimento do princípio do
Estado e do princípio da comunidade. (Santos 2001:56)
A razão, para Santos, não é pecaminosa, mas o modelo de racionalidade que
preside à ciência moderna constitui-se a partir da revolução científica do século XVI
e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências
naturais. Este mesmo modelo é transportado, no século XIX, para as ciências
sociais emergentes, obrigadas que são a explicar os eventos civilizatórios. Vivemos
o apogeu do método, tentando dar conta das relações e patologias sociais:
A partir de então pode falar-se de um modelo global (isto é, ocidental) de racionalidade científica que admite variedade interna, mas que defende ostensivamente de duas formas de conhecimento não científico (e, portanto potencialmente perturbadoras); o senso comum e as chamadas humanidades ou estudos humanísticos em que se incluíram, entre outros, os estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e teológicos (Santos, 2001:60- 61).
A instauração de um modelo - palavra que, ao nosso ver, deve ser sempre
problematizada - global é avaliado também como totalitário, na medida em que a
nova racionalidade científica nega o caráter racional a todas as formas de
conhecimento que se não partem pelos seus princípios epistemológicos e pelas
suas regras metodológicas. Dá-se o apogeu da matemática que fornece à ciência
moderna, não só o instrumento privilegiado de análise, como também a lógica da
investigação e ainda o modelo de representação da própria estrutura de matéria:
Deste lugar central da matemática na ciência moderna derivam duas conseqüências principais. Em primeiro lugar, conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se, pelo rigor das mediações. Em segundo lugar, o método científico assenta na redução da complexidade. O mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender completamente. Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se esperou (Santos 2001: 63).
89
A lei da ruptura entre o conhecimento científico e o senso comum é provocada por
uma nova lei: As leis das ciências modernas são um tipo de causa formal (tipo de
causa de Aristóteles) que privilegia o como funcionam as coisas em detrimento de
qual o agente ou qual o fim das coisas (Santos 2001:64). Não há a possibilidade de
convivência entre o formal e o prático, pois se neste a causa e a intenção convivem
sem problemas, na ciência, a determinação da causa formal obtém-se ignorando a
intenção.
Um conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto metateórico a idéia de ordem e de estabilidade do mundo, a idéia que o passado se repete no futuro. Segundo a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina cujas operações se podem determinar, exatamente por meio de leis físicas e matemáticas, um mundo estático e eterno a flutuar num espaço vazio, um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível por via da sua decomposição nos elementos que o constituem (Santos 2001: 64).
Pensa-se, aqui, o quanto é surpreendente e até paradoxal que uma forma de
conhecimento nesta concepção de mundo tenha vindo a constituir um dos pilares da
idéia de progresso e, mais, do estudo da natureza para o estudo da sociedade.
Bacon, Vico e Montesquieu figuram como os grandes precursores da ciência
positiva.
Consciência filosófica da ciência moderna, que tivera no racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações, veio a condensar-se no positivismo oitocentista. Dado que, segundo este, só há duas formas de conhecimento científico – as disciplinas formais da lógica e da matemática e as ciências empíricas segundo o modelo mecanicista das ciências naturais – as ciências sociais nasceram para ser empíricas. O modo como o modelo mecanicista foi assumido teve, no entanto, algumas variantes. Distingo duas vertentes principais: a primeira, sem dúvida dominante, consistiu em aplicar, na medida do possível, ao estudo da sociedade, todos os princípios epistemológicos e metodológicos que dominavam o estudo da natureza desde o século XVI; a segunda, durante muito tempo marginal, mas hoje cada vez mais seguida, consistiu em reivindicar para as ciências sociais um estatuto epistemológico e metodológico próprio, com base na especificidade do ser humano e na má distinção radical em relação a natureza. (Santos 2001: 65).
Para estudar os fenômenos sociais como se fossem fenômenos naturais, ou seja,
para conceber os fatos sociais como coisas, como pretendia Durkheim - já citado
neste nosso trabalho, quando falávamos sobre identidade - é necessário reduzir os
factos sociais às suas dimensões externas, observáveis e mensuráveis. Pretende-
90
se, aqui, uma crítica dessa sociologia clássica indignada com a dispersão e com a
não-cientificidade dos fenômenos circundantes da realidade positiva.
Os obstáculos são enormes, mas não são insuperáveis. Ernest Nagel, em A
Estrutura da Ciência, simboliza bem o espaço desenvolvido nesta variante para
identificar os obstáculos e apontar as vias de sua superação. Nagel, citado, por
Santos (2001), dirá:
As ciências sociais não dispõem de teorias explicativas que lhes permitam
abstrair do real para depois buscar nele, de modo metodologicamente controlado, a prova adequada; as ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenômenos sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados; as ciências sociais não podem produzir previsões viáveis porque os seres humanos modificam o seu comportamento em função do conhecimento que sobre ele se adquire; os fenômenos sociais são de natureza subjectiva e, como tal, não se deixam captar pela objectividade, do comportamento; as ciências sociais não são objectivas porque o cientista social não pode libertar-se, o acto de observação, dos valores que informam a sua prática em geral e, portanto, também a sua prática de cientista (Santos, 2001:61)
Evoluindo para um campo definitório e particular, uma nova sociologia reivindica
para si um estatuto metodológico próprio. Segundo Santos (2001), o argumento
fundamental é que a ação humana é radicalmente subjetiva; o comportamento
humano, ao contrário dos fenômenos naturais, não pode ser descrito e muito menos
explicado com base nas suas características extensões e objetiváveis, uma vez que
o mesmo ato externo pode corresponder a sentidos de ação muito diferentes.
Esta concepção de ciências sociais reconhece-se numa postura antipositivista.
Numa concepção, tal como tem vindo a ser elaborado, revela-se mais subsidiária do
modelo de racionalidade das ciências naturais do que parece. Partilha com este
modelo a distinção natureza/ser humano e, tal como ele, tem de natureza uma
análise mecanicista à qual contrapõe, com evidência esperada, a especificidade do
ser humano.
Está, pois, instaurada a tão propalada crise:
A esta distinção, primordial na revolução científica do século XVI, vão sobrepor-se nos séculos seguintes outras, tais como a distinção natureza/cultura e a distinção
91
ser humano/animal, para no século XVIII se poder celebrar o caráter único do ser humano (...) são hoje muitos e fortes os sinais de que o modelo de racionalidade científica que acabo de descrever em alguns dos seus traços principais atravessa uma profunda crise. (Santos, 2001: 67-68).
Dá-se a crise, quando aparece um novo paradigma. Thomas Kuhn, citado por
Ferreira (1998), tece um conceito de paradigma, definindo-o como uma teoria ou
sistema conceitual aceitos por uma comunidade científica e que durante algum
tempo orienta a sua atividade.
Para Kuhn não são critérios objetivos e sim critérios subjetivos relacionados com as vinculações institucionais, com a história de vida e com as visões de mundo dos cientistas, que determinam a sua escolha por um outro paradigma, entre em confronto com outras posições que defendem a utilização de critérios lógico-formais (Ferreira, 1991: 26).
Proposta de superação da concepção dualista parte do princípio fundamental de que
há uma relação dialética entre realidade e conhecimento. Não são intrinsecamente
interligados. Nesta abordagem o conhecimento científico não pode ser visto de
forma isolada de sua inserção na realidade concreta, que intervém e ao mesmo
tempo é modificado por ele (Ferreira, 1998:30).
Uma outra fonte, que busca pensar a intervenção da subjetividade no conhecimento
objetivo, é Japiassu (1996), para quem Bacon e Descartes tentaram nos libertar da
pesada carga de preconceitos prescritos pela religião e pelas tradições. A
superstição foi combatida pelo racionalismo cartesiano como único guia do espírito.
Para Descartes precisamos uma vez em nossa vida, desfazer-mos de todas as
opiniões que recebemos e reconstruir novamente, desde o fundamento, todos os
sistemas de nosso conhecimento (Japiassú 1996: 58). O autor conclui que é
lamentável que muitos perderam a confiança na ciência, no progresso e nos poderes
da razão e estão adotando posturas claramente neo-obscurantistas e promovendo o
perigoso retorno do irracional (Japiassú, 1996: 59)
Para Kuhn, existem paradigmas que dominam o conhecimento científico numa certa
época e as grandes mudanças de uma revolução científica acontecem quando um
paradigma cede seu lugar a um novo paradigma, isto é, há uma ruptura das
92
concepções do mundo de uma teoria para outra. Existem alguns, entretanto, que
não acreditam em revoluções científicas.
Um outro pensador das mudanças de paradigmas é Morin (2000: 45), que trouxe
uma importante contribuição para dar visibilidade para o que ele chama de
paradigma.
Para Kuhn (e outros autores como Feyerasend) eles afirmavam que não se pode dizer que as teorias cientificas se acumulam uma sobre as outras, sendo a nova maior, mais extensa e absorvendo a precedente. Afirmaram que há saltos antológicos de um universo para outro (Morin 2000: 45-46).
Acredita-se que vivemos, de fato, em tempo de transição paradigmática. A transição
epistemológica ocorre entre o paradigma dominante da ciência moderna e o
paradigma emergente que designo por paradigma de um conhecimento prudente
para uma vida decente. (Santos, 2001:16). A crise do paradigma dominante é o
resultado interativo de uma pluralidade de condições.
Einstein constitui o primeiro rombo no paradigma da ciência moderna. Um dos pensamentos mais profundos de Einstein é o da relatividade da simultaneidades. Einstein distingue entre a simultaneidade de acontecimentos presentes no mesmo lugar e a simultaneidade de acontecimentos distantes, em particular de acontecimentos separados por distâncias astronômicas. (Santos 2001: 68).
A teoria de Einstein veio revolucionar as nossas concepções de espaço e de tempo,
pois sem a simultaneidade universal, o tempo e o espaço absolutos de Newton
deixam de existir. Acrescente-se, como segunda condição teórica da crise de
paradigma dominante, o desenvolvimento da mecânica quântica. Se Einstein
relativizou o rigor das leis de Newton no domínio da astrofícina, a mecânica qüântica
fê-lo no domínio da microfísica. Heisenberg e Bohr demonstram que não é possível
observar ou medir um objeto sem interferir nele, sem alterar, e a tal ponto que o
objeto que sai de um processo de medição não é o mesmo que lá entrou. (Santos,
2001: 69).
93
A idéia de que não conhecemos do real senão o que nele introduzimos, ou seja, que
não conhecemos do real senão a nossa intervenção nele, está bem expressa no
princípio da incerteza de Heisemberg citado por Santos (2001): não se podem
reduzir simultaneamente os erros da medição da velocidade e da posição das
partículas: o que for feito para reduzir o erro de uma das medições aumenta o erro
da outra.
Outra crise do paradigma newtoniano é constituída pelos progressos do
conhecimento nos domínios da microfísica, da química e da biologia nos últimos
trinta anos. Na matemática, a teoria do caos se transforma na ciência da
complexidade.
A relação entre o moderno e pós-moderno é, pois uma relação contraditória. Não é de ruptura total como querem alguns, nem de linear continuidade com querem outros. É uma situação de transição em que há momento de ruptura e momento de continuidade (Santos,1999: 103).
Discutidos os paradigmas, a necessidade de aproximação do objeto e a confessa
intenção em uma reflexão que vá além da modernidade, surgem algumas questões:
Como a mudança de paradigma produz alguma mudança na formação inicial do
professor? A mudança de paradigma contribui para o silenciamento ou para a
tomada da palavra de quem tem sido historicamente impedido de falar, vítima de
discriminação, rotulação, segregação e exclusão na sociedade e na escola?
Possibilidades de respostas preliminares são investigadas:
Concluirá o autor que o paradigma da modernidade foi o paradigma da modernidade
ocidental que para se tornar hegemônica, silenciou outras epistemologias, tradições
culturais, projeto de sociedade alternativas.
É na contramão desse saber acabado e homogêneo da segurança da estaticidade
que se pretende discutir a questão curricular. Acredita-se que a heterogeneidade, a
multiplicidade de concepções, a diversidade, a dinamicidade dos sentidos e o
estabelecimento de novas redes de relações entre sujeito e objetos são aspectos
94
que redimensionam o ser e o fazer social e, conseqüentemente, novas formas de
apreciar tais relações.
5.4 CONHECIMENTO EM REDE
Pensamos com o auxílio de metáforas, de pequenos modelos concretos, muitas
vezes de origem técnica. Pensar o mundo, hoje, é também se valer de uma nova
linguagem que implica e amplia os sentidos da reflexão. Não é mais viável o império
do cartesianismo para todas as respostas, conclusões e reflexões. Existe o
impalpável a interferir nas redes dos diversos fenômenos que compõem a parte
visível do homem e da sociedade.
Os estudos sobre o conhecimento estão configurados mediante algumas metáforas
que lhes servem de explicação. Tais metáforas contribuem para pensar a questão
do currículo. Trata-se de um percurso que submete criticamente a metáfora arbórea
às redes, na perspectiva de uma estrutura de risoma: O paradigma arbóreo implica
uma hierarquização do saber, como forma de mediatizar e regular o fluxo de
informações pelos caminhos internos da árvore do conhecimento (Gallo 2001:29-
30).
Para pensar a nova dimensão que nos é imposta pelos problemas híbridos, como os
Estudos Culturais e os currículos, precisamos de outra metáfora, pois a árvore já
não dá conta:
A Metáfora do rizoma subverte a ordem da metáfora arbórea, tomando como paradigma aquele tipo de caule radiciforme de alguns vegetais; formado por uma miríade de pequenas raízes emaranhadas em questão a relação intrínseca entre as várias áreas do saber, representados cada uma delas pelas inúmeras linhas fibrosas de um rizoma, que se entrelaçam e se engalfinham formando um conjunto complexo no qual os elementos remetem necessariamente uns aos outros e mesmo para fora do próprio conjunto (Gallo, 2001: 30).
Trata-se, como se percebe, de uma visão não-sistemática, compreendendo aqui
todos os elementos que escapam a uma estrutura fechada e/ou ramificada. No
rizoma são múltiplas as linhas de fuga e, portanto, múltiplas as possibilidades de
conexões, aproximações cortes, percepções etc. Ao romper com essa hierarquia
95
estanque, o rizoma pede, porém, uma nova forma de trânsito por entre seus
inúmeros campos de saberes, podemos encontrá-la na transversalidade (Gallo,
2002: 32).
Lopes e Macedo (2002) questionam que o conhecimento e o saber constituem fonte
de libertação, esclarecimento e autonomia. A hierarquia reflete uma relação de
poder. Se se pensar, por exemplo, no discurso e na produção de sentidos, não há
uma situação de não-poder, mas sim um estado permanente de luta contra posições
e relações de poder. Se o mundo é constituído, anteriormente, ao sujeito e pela
linguagem, não há como falar em uma consciência e em um sujeito autônomo. É
preciso conviver com a instabilidade e provisoriedade dos múltiplos discursos e das
múltiplas realidades constituídos por esses discursos.
A metáfora do rizoma permitiu o questionamento das fronteiras estabelecidas pela modernidade entre o conhecimento científico e o conhecimento tecido nas esferas cotidianas da sociedade. A incorporação das idéias de redes de conhecimentos e de tessituras de conhecimentos em redes torna-se fundamental em face da multiplicidade e da complexidade de relações nas quais estamos permanentemente envolvidos e nos quais criamos conhecimentos e os tecemos com os conhecimentos de outros seres humanos (Lopes e Macedo, 2002: 35-36).
O conhecimento passa por uma discussão que abarca, hoje, todos os processos
naturais e sociais onde se geram e a partir daí são levadas em conta, formas de
aprendizagens. É pensando assim que Assmann (1998:25) dirá que tudo aquilo que
é capaz de aprender cumpre processos cognitivos. Diante de tendências
redutivistas, não se devem desconsiderar as enormes diferenças de grau e nível
nessas operações cognitivas. Um tema–chave para a escola do futuro é, sem
dúvida, a interatividade cognitiva entre aprendentes humanos e máquinas
inteligentes e aprendentes.
A novidade consiste no fato de haver surgido um traço comum, ou seja, um conjunto inegável de semelhanças fortes, entre os mais diversos sistemas cognitivos complexos. Sob este ponto de vista, desfez-se a nitidez das fronteiras diferenciadoras entre eles, que antes, pareciam evidentes. E é sobre as surpreendentes semelhanças entre os mais diversos sistemas cognitivos que avançam rapidamente certas propostas teóricas. É por isso inevitável que começamos a familiarizar-nos com esse tipo de linguagens. (Assmann 1998: 25-26).
96
O mesmo autor compreende, filosoficamente, que os processos cognitivos e os
processos vitais finalmente descobrem seu encontro, desde sempre marcado, em
pleno coração do que a vida é, enquanto processo de auto-organização, desde o
plano biofísico até os das esferas societais, a saber, a vida quer continuar sendo
vida – a vida se “gosta” e se ama – e anela ampliar-se em mais vida. Em meio ás
discussões sobre a cognição, reaparece o novo paradigma.
A discussão sobre pedagogia pós-moderna reenfatiza o caráter pluri-sensual – prefiro esse termo a “pluri-sensorial” – do conhecimento ligado ao entrejogo entre certezas e incertezas, nos processos adaptativos que a vida real nos impõe. A concepção dinâmica ao cérebro/mente é particularmente importante para essa discussão e ela aponta para uma pedagogia que aceite trabalhar com esse entrejogo de certeza e incerteza. Nosso cérebro/mente está neuronalmente predisposto para lidar com vacilações, agüentando-as e superando-as, conforme lhes é conveniente. Esta é uma das pontas mais fascinantes do tema prazerosidade (Assmann 1998: 30).
Na sociedade atual, talvez mais que nunca, o tema do conhecimento virou tema
obrigatório. Fala-se muito em sociedade do conhecimento e, agora, também em
sociedade aprendente. Tentando acompanhar os passos do autor, conclui-se que é
importante saber decodificar criticamente e encarar positivamente o desafio
pedagógico, expressando uma série de novas linguagens.
No mundo de hoje, os aspectos instrucionais da educação já não conseguem dar conta da profusão de conhecimentos disponíveis e emergentes mesmo em áreas específicas. Por isso não deveria preocupar-se tanto com a memorização dos saberes instrumentais, privilegiando a capacidade de “acessá-los”, descodificá-los, e manejá-los. O aspecto instrucional deveria estar em função de emergência do aprender (emergent learning), ou seja, da mosfogênese personalizada do conhecimento. (Assmann 1998:33).
Uma nova metáfora representativa da produção do conhecimento remonta à filosofia
cartesiana que concebia alegoricamente o conhecimento como uma grande árvore,
com as raízes na metafísica (englobando o pensamento religioso), tendo como
tronco a Física (ou seja, a Filosofia Natural), e sendo formada por múltiplos ramos,
como a Astronomia, a Medicina, etc. A matemática, não era considerada um dos
ramos do conhecimento, mas a condição de possibilidade do conhecimento, em
qualquer ramo, como a seiva que percorre e alimenta todo o organismo
representado. À língua, não era atribuído qualquer papel de relevo na árvore do
97
conhecimento. (Machado, 2000: 121-122). Por que a língua não ocupava nenhum
desses espaços? Por que a sua existência era metafísica?
Para Alves, (2001:14) são enormes as dificuldades para identificar todas as origens
de nossos tantos conhecimentos, pois eles só podem começar a ser explicados se
nos dedicarmos a perceber as intricadas redes nas quais são verdadeiramente
enredados.
O paradigma significador entendemos, é visto como um prescritor que não pode
admitir, como mecanismo de autopreservação, da pluralidade de sentidos. Ele
funciona, autoritariamente, ao mesmo tempo em que se afirma, impõe
silenciamentos.
Surgem, assim, os novos paradigmas, negando essa lógica do poder, que é a lógica
da negação e da exclusão do diferente.
O pensamento moderno está tão contaminado pela idéia de estabilidade que diante da impossibilidade que a multiplicidade e a complexidade do real apresentam de continuar a ser explicado por ele, rompe-se, entra em crise, dando passagem à criação de outras formas de pensar as relações sujeito/mundo. Os chamados novos paradigmas. (Azevedo, 2001: 62).
A perplexidade atual à qual sempre se esteve fazendo referência ao longo dessa
exposição é um momento em que o paradigma moderno ainda é o hegemônico, mas
apresenta rupturas das quais emergem novos paradigmas que ainda não possuem
perfil definido, mesmo porque, ao negar o outro, não se permite um delineamento de
alta definição.
Admitir a complexidade do real afasta do paradigma disciplinar fortemente marcado
pelo positivismo, suas hipóteses e dados estatísticos, suas certezas e verdades
imutáveis.
Mergulhando em tudo isso, parto do entendimento de que a realidade não é só múltipla como também complexa e de que, para me aproximar dela, para ter uma compreensão, menos opaca, não posso me deixar aprisionar pela unidirecionalidade, mas empreender a difícil opção pelo multidirecionamento, buscando matrizes teóricos vindos de diversos campos (Azevedo, 2001: 64).
98
È resultante dessa reflexão que surgem as novas possibilidades de pensar o
conhecimento, a educação e o currículo de um outro espaço não vazio de
racionalidade, mas de um não-espaço que dá sentido a este projeto de reflexão.
A metáfora da rede implica pensar, desde um ponto de vista epistemológico, na possibilidade de interação de diversidade, isto é, em buscar as formas de articulação entre o local e o global entre o particular e o universal, entre o uno e o diverso, ou seja, entre cada escola e a rede escolar, entre a formação realizada coletivamente pelos professores de uma mesma escola e programas mais amplos, inclusive aquela propiciada pelos cursos de formação (Manhães, 2001: 71).
A árvore possibilitou, então, uma transformação em rizomas solidários, não
modulares, mas, sim, interligados em uma dinâmica de alimentação e
realimentação. São as redes nas quais se move incessantemente o conhecimento.
A tessitura do conhecimento em rede reconhece que nenhuma análise pode espelhar a realidade, nem é produto de um sujeito radicalmente separado da natureza. O observador é participante e criador de conhecimento, sendo, cada um, responsável pela inclusão de novos nós na própria rede. O conhecimento que se faz a partir das relações que se enredam ultrapassam a busca de certezas e aceita a incerteza para também superá-la.; contra o destino fixado procurar a responsabilidade da escolha; negando a existência de uma única e privilegiada perspectiva de conhecimento (Manhães , 2001: 71)
Crê-se, aqui, ter-se satisfeito o objetivo de aproximação entre a educação, a
formação de professores e o currículo, porque não se pode mais pensar
sistematicamente como se fazia há décadas com prejuízos visíveis para o próprio
conhecimento.
Pensar, por exemplo, a formação de professores a partir da idéia de tessitura do conhecimento em rede é, em primeiro lugar, investir no saber da experiência e numa pedagogia interativa e dialógica, como um processo investigativo constante que se faz solidariamente com parceiros na própria caminhada. A formação de professores (e de outros educadores) tem sido um grande desafio, para as políticas educacionais, já que a expansão das redes de ensino trouxe consigo a necessidade de mais e melhores docentes, mas essa demanda não foi acompanhada, por opção dos grupos hegemônicos, de políticas públicas que contemplassem a educação e a valorização profissional (Manhães, 2001: 72).
Ao se pensar em um mundo em que a criatividade é necessária enquanto
intervenção de um sujeito que é, também, a sua criação, indo de encontro a um
objeto descrito da distância permitida pela objetividade do conhecimento é que o
99
paradigma emergente, ao entrelaçar prática e teoria, sempre afogado na realidade
dos contextos em que se pratica, sugere uma perspectiva próxima (Manhães, 2001).
A oposição à metáfora da árvore coloca, em questão, os saberes híbridos que
contribuem para pensar o currículo, na dimensão aqui adotada.
5.5 HIBRIDISMO:
Nestor Garcia introduziu, no início da década de 90, a idéia de “culturas híbridas”
para pensar a modernidade latino-americana. Argumentado com as visões
“etapistas” da história regional que postulavam não caber falar de pós-modernidade
quando a modernidade nem sequer chegava a ser um projeto inconcluso, Canclini
postulou que as sociedades latino-americanas haviam produzido uma modernidade
sui generis. Trata-se, segundo o autor, de uma modernidade fora do lugar –
retomando a formulação do brasileiro Roberto Schwaz – caracterizada pela
hibridação de culturas, pela proliferação de estratégias e pela pluralização de
temporalidades (Dussel, 2002: 55).
O texto de Canclini surgiu, em paralelo com outras produções de teóricos anglo-
saxões, que começaram a centrar-se no sincretismo e na hibridação das identidades
coletivas e individuais, dos objetos culturais e das práticas simbólicas e materiais.
Os trabalhos de Homi Bhabha e Stuart Hall, dentre outros, deram relevo à
ambivalência das identidades binárias que até então eram pensadas como
homogêneas e orgânicas. Hall, por exemplo, comentado por Dussel (2002), em um
artigo sobre as novas etnias, assinalou um reconhecimento crescente da diáspora
das identidades negras, já não racialmente determinadas, mas configuradas por
processos que desacomodam, recombinam e hibridizam as experiências identitárias.
Pode-se observar uma linha ascendente na difusão do conceito: hoje, ele aparece
como um termo estabelecido como ortodoxia nos Estudos Culturais e na teoria
social, a ponto de uma compilação recente (Brah & Coomes, 2000) se ocupar dos
muitos descontentamentos que sua utilização vem gerando (Dussel, 2002: 56).
100
Os descontentamentos são variados. Para Brah e Coombes, atrás dessa rápida expansão, se escondem as origens problemáticas do termo, profundamente enraizado no projeto colonial de dominação racial do século XIX, e se produz uma elaboração acrítica das diferenças que deixa de lado desigualdades fundantes. Young (1995), por outro lado, já havia discutido, há alguns anos, a cumplicidade entre os primeiros usos do conceito e os desejos coloniais, ainda que acreditasse rearticular o termo com tradições críticas emancipatórias ou desconstrutivas (Dussel, 2002: 56-57).
O autor afirma, categoricamente, que pensar o currículo em termos de hibridação
contribui para analisar a complexidade dos processos de produções culturais,
políticas e sociais que o configuram, introduzindo novas idéias em um campo cujas
perguntas foram, muitas vezes, pobres teórica e tecnicamente (por exemplo),
buscando formas curriculares puras, "à prova de professores”, ou postulando
aplicações simplistas de teorias psicológicas ou sociológicas.
Sobre a origem de sua utilização, o termo híbrido, informa Young, citado por Dussel,
(2002) começou a ser utilizado no idioma inglês no século XIX, com rotina desde o
século XVII. Fortaleceu-se com o impulso classificatório da ciência do século XIX,
preocupado em identificar as espécies em taxionomias de conhecimento. Em 1828,
segundo o dicionário Webster, o híbrido era “um mestiço ou mula;” um animal ou
uma planta produzida pela mistura de espécies. O uso do termo aplicado a seres
humanos data de meados do século XIX. Em 1813, Prichard, argumentando que os
humanos eram provenientes tolos de uma mesma espécie, falava em “raças mistas”
ou “intermediárias”. No entanto, apenas em 1860, passou-se a aceitar o uso do
termo híbrido para o “filho de pais humanos de diferentes raças ou mestiços”.
(Dussel, 2002: 58).
Nas últimas décadas, a noção de hibridação ganhou novo impulso, desta vez para
descrever os fenômenos difusos da cultura contemporânea. Para alguns, essa
disseminação ou proliferação de diferenças, essa mistura de fronteiras, é o signo
mais claro da ruptura da modernidade e da irrupção de nova lógica. Entretanto, não
queremos repetir a autoconfiança pós-moderna que defende que esta é a primeira
vez na história que os seres humanos podem desfrutar de um mundo complexo,
mais difuso e mais fragmentado: A complexidade não é patrimônio dos
101
contemporâneos. De qualquer maneira, temos que ser cuidadosos em assinalar os
elementos novos na experiência atual que marcam algumas rupturas em como se
expressa e se vive essa complexidade. (Dussel, 2002: 64-65).
A hibridação não só se refere a combinação particular de questões díspares, como
nos recorda que não há formas (identitárias, materiais, tecnologias de governo, etc.)
puras intrinsecamente coerentes, ainda que essa mescla não seja intencional.
Compreende-se, reiteramos, ainda, baseados nas reflexões de Dussel (2002) que a
complexidade não é patrimônio dos contemporâneos, mas cremos que há alguns
elementos novos na experiência atual, pelos diversos fatores elencados no início
deste capítulo.
Um retorno às nossas questões sobre a educação, leva-nos a afirmar que não existe
a uniformidade, a monofonia nos discursos sobre a educação. O possível leva-nos
ao encontro de discursos híbridos, apontados por alguns autores na emergência da
escola pública. A própria noção de currículo, visto neste contexto da linguagem,
pode ser considerada como um híbrido, se pensada como o resultado de uma
alquimia que seleciona a cultura e a traduz a um ambiente e a uma audiência
particular.
Os discursos curriculares, também, têm sido estudados como híbridos que combinam distintas tradições e movimentos disciplinares, construindo coalizões que dão lugar a consensos particulares. Kleibard (1986), por exemplo, tem assinalado que o currículo norte-americano é um híbrido de pelo menos quatro tradições: a humanista, centrada nas disciplinas tradicionais; a pedagogia centrada na criança ou paidocentrismo; o eficientismo social de Taylor e Bobbit; e o reconstrucionismo social dos anos de 1930, que postulava a importância da reforma social como eixo do currículo. Para Kliebard o currículo “ajustado às solicitações da vida”, que emerge nos anos 1950, é o resultado das lutas entre essas tradições (Dussel, 2002: 70).
É impressionante como, neste trabalho, tudo nos leva, também, a uma reflexão
sobre a linguagem, ou seja, sobre a representação de algo que não é o mesmo. A
hibridação, por exemplo, opera através da mobilização de distintos discursos dentro
de um âmbito particular, ou seja, num gênero, numa tipologia, conforme sugerem os
autores.
102
É a partir dessas concepções que estão justapostas, ao mesmo tempo em que
verticalizam a essência de nossas reflexões, que pretendemos analisar nos diversos
discursos produzidos no cotidiano da FFPP, as relações entre currículo e cultura, o
que se mostrou inviável sem o percurso teórico que nos apontasse um lugar de onde
nos fizéssemos sujeito de um dizer que não contornasse as implicações impostas
pelo próprio objeto de investigação. Pensa-se que tudo o que se disse, até aqui, é
procedente e necessário, como podemos demonstrar nas partes que se seguem.
103
CAPÍTULO 4
6. VOZES EM REDES: UM APRENDIZ
6.1 ABORDAGENS METODOLÒGICAS E PROCESSOS VIVIDOS
Neste capítulo, pretendo compreender a reflexão que fizemos nas práticas
discursivas - os discursos se tecem e são usados na ação Spink citada por Tristão
(2001:146) - do currículo do curso de Pedagogia da FFPP, onde são produzidas,
como elas se constituem na tessitura de identidades.
A pesquisa em educação deve instigar contribuições diversas para que possamos
encontrar teorias que atendam às exigências que ora se fazem presentes no homem
e na mulher do século atual. A idéia de escrever sobre o tema que se constituiu
nessa dissertação, nasceu de nossa preocupação como professora que está nas
salas de aulas, na FFPP, campus da Universidade de Pernambuco, desde de 1992.
Por todos esses anos temos lecionado a disciplina Currículo e Programas II,
obrigatória no curso de pedagogia.
A pesquisa foi desenvolvida tendo os/as acadêmicos/as do curso de pedagogia, da
Faculdade de Formação de Professores de Petrolina, um espaço que se constitui no
campo de pesquisa. A escolha do referido curso se caracterizou por ser a área de
atuação da pesquisadora.
Como em toda pesquisa, cremos que o primeiro passo é o trabalho de pesquisa
bibliográfica, que foi sendo concluído ao longo da nossa formação neste programa
de pós-graduação, acrescida das especificidades do campo em que investigamos e
atuamos. O ponto de partida surgiu a partir das leituras de Nilda Alves, Certeau,
Boaventura e Bhabha onde procuramos identificar determinadas noções de cada um
104
deles, e a partir das discussões travadas em sala de aula dos créditos das
disciplinas obrigatórias do curso. Entendemos que, como ponto de partida, devemos
tecer uma discussão em torno daquilo que dizem acerca da produção teórica, no
sentido de que suporte a nossa compreensão de que o conhecimento é gerado,
inicialmente, na prática. Neste sentido, pensar o conhecimento a partir da prática –
currículo real – leva-nos a problematizar a própria noção de teoria.
Silva (2001), em seu livro Documento de Identidade, concebe a teoria como
representação de uma realidade que cronológica e ontologicamente a precede.
Assim sendo, este autor desloca o conceito de teoria para o conceito de discurso.
Para ele, não se pode separar o objeto da trama lingüística que pretende descrevê-
lo. Este deslocamento para o discurso permite, inclusive, a opção por temas em
detrimento das fechadas categorias analíticas.
Nessa análise, é possível superar a compreensão idealista de que a realidade deriva
de um modelo ideal. No caso em estudo, de acordo com o que nos ensina Alves
(1998), a realidade escolar, ao invés de emergir, pelo menos sob a forma de
representação, estaria submersa por um determinado modelo, e assim, impassível
de reformulações e, portanto de novas teorizações. A pesquisadora Mirian Limoeiro
Cardoso (1978), em seu trabalho Ideologia do Desenvolvimento- Brasil: JK-JQ,
apesar de também compreender a teoria como representação do objeto, concebe o
processo de avanço teórico pela via da experimentação e não da prática. Segundo
esta autora, é através da experimentação que problemas novos se apresentam à
formulação teórica (Limoeiro, 1978:27).
Consideramos o avanço dessa autora sobre a compreensão do desdobramento
teórico a partir da própria teoria que, por muito tempo, foi hegemônica, mas leva
substituição da prática pela experimentação, sendo, portanto, inadequada para
nosso estudo.
A dimensão por nós adotada é, pois, a inicialmente descrita, ou seja, a teoria
derivada do objeto; tem-se a seqüência prática-teoria-prática e assim,
105
indefinidamente, em um infinito exercício de alimentação – realimentação. Isto
porque compreendemos ser o currículo inerente a uma prática. Assim, o objeto foi
estudado dentro do seu próprio espaço. Optamos por permanecer nas aproximações
aqui apresentadas, por entender, como afirma Ferraço (2001), que um
enquadramento teórico na sua totalidade é humanamente impossível, posto que não
estamos diante de uma experimentação, mas de uma prática.
Já delimitando contribuições muito ligadas ás preocupações deste estudo, nas
relações teoria/prática ligadas ao aspecto mesmo da cultura, é que se antecipa uma
concepção que pode ser bastante pertinente à reflexão:
A metáfora da linguagem abre um espaço onde o teórico é usado para ir além da teoria. Uma forma de experiência e identidade cultural é concebida em uma descrição teórica que não cria uma polaridade teoria-prática; a teoria também não se torna “anterior” à contingência da experiência social. Este “além da teoria” é ele mesmo uma forma liminar de significação que cria um espaço para a articulação contingente, indeterminada, da “experiência” social, que é particularmente importante para a concepção de identidades culturais emergentes (Bhabha, 1989:250).
A teoria não encontra simplesmente sua oposição , teoria/prática, mas um “lado de
fora” que coloca a articulação das duas – teoria e prática – em uma relação
produtiva similar à noção derridiana de suplementaridade: Roland Barthes, citado
por Bhabha, (1989;251) um meio-termo não-dialético, uma estrutura de predicação
conjunta, que não pode ser compreendida pelos predicados que distribui. Não que
esta capacidade demonstre uma falta de poder; mais propriamente, esta
incapacidade é constitutiva da própria possibilidade da lógica da identidade.
A estrutura performática do texto revela uma temporalidade do discurso que acredito
ser significativa. Ela inaugura uma estratégia narrativa para a emergência e
negociação daquelas agências do marginal, da minoria, do subalterno ou do
diásporico, que nos incitam a pensar através – e para além –da teoria (Bhabha,
1989:253).
Uma outra questão que precisamos explicitar diz respeito à noção de prática ora
trabalhada. Como compreendemos, o estudo de uma determinada prática remete à
106
concepção de cotidiano, posto que é no cotidiano que se desenrola uma prática
específica. A forma como concebemos o cotidiano está, pois implícita na nossa
decisão de tomá-la como objeto de estudo. Empiricamente, o cotidiano parece
absorver os indivíduos de forma passiva e disciplinada. No entanto, é possível
observar que no cotidiano ocorrem resistências ao poder dominante, que os
usuários buscam imprimir no dia-a-dia os seus interesses próprios, estabelecendo
assim suas próprias regras.
Este entendimento pode ser encontrado em Michel de Certeau, em sua obra A
Invenção do Cotidiano: as artes de fazer. Para este autor, o cotidiano consiste nesta
atividade de formiga, onde impossível descobrir os procedimentos, as bases, os
efeitos, as possibilidades de resistência (Certeau, 1994).
Estudando o cotidiano na sala de aula, propomo-nos a resgatar o discurso do
próprio aluno/as e do professor/as tendo-os/as como narradores/as, buscando
encontrar neste discurso as fronteiras do conhecimento. Neste sentido, estaremos
considerando que o/a aluno/a narrador/a se introduz em nossas técnicas,
reorganizando o lugar de onde se produz o discurso. O cotidiano, enquanto tema,
mas também como procedimento, tem um argumento lapidar: A preocupação é
buscar nesse cotidiano, para além de entendê-los como lugar de reprodução e
consumo, o que nele se cria no uso dos produtos e regras que neles são postos pelo
poder proprietário (Certeau, 1994).
Nesse entendimento, o nosso interesse centrou-se em analisar os currículos que
são, de fato, realizados nos cotidianos das escolas e salas de aulas, entendendo
que eles são produzidos e realizados por pessoas concretas em determinados
contextos sociais e históricos. Entendemos que não se constrói um currículo e sim
vários currículos no cotidiano.
Para tanto, como nos confere Ferraço (1995:225) pressupomos que esses currículos
reais envolvem, em sua produção, uma multiplicidade de saberes, valores, ações,
idiossincrasias, atitudes, formações, histórias de vida, que caracterizam as redes de
107
ações/relações produzidas e compartilhadas pelos sujeitos que convivem nesse
cotidiano
Nesse sentido, a pesquisa entrelaçou narrativas das práticas, em observações em
salas de aulas, na própria prática docente da pesquisadora e em seminários. Em um
primeiro momento, pretendia apenas utilizar a observação participativa, em uma
disciplina no 7º período do curso de pedagogia. Nessa mesma turma, ministro a
disciplina Currículo e Programas. A partir das observações fui dando conta de que
somos narradores de nossas próprias experiências, fui assim, mudando o itinerário
inicial para também, experiênciar-me como docente/pesquisadora. Nesse “mergulho”
no cotidiano, encontrei um espaçotempo – indicam as condições de possibilidade
dos seres, das coisas, do mundo Leff citado por Tristão (2001:117) - de ações
diversas, que me permitiram uma nova vivência, como afirma Alves (1998:2)
que sejamos capazes de mergulhar inteiramente em uma determinada realidade buscando referência de sons, sendo capazes de engolir sentindo variedades de gostos, caminhar tocando coisas e pessoas e se deixando tocar por elas, cheirando os cheiros que a realidade vai colocando a cada ponto do caminho diário.
Nesse intrincado das práticas coletivas e individuais, onde os sujeitos vivem, sofrem
e alegram-se, num mundo que se produz atravessado por complexas redes de
relações, que vão desde as econômico-sociais, até tramas amorosas. Daí tomarmos
o currículo como ser de linguagem.
Um fato que muito contribui para aceitar esse desafio, foi a aprovação dos/as alunos
/as em serem atores/as dessas redes, sem oferecer para tanto nenhum obstáculo.
Para não perder referências pelas falhas da memória, todas as observações foram
registradas com uso do gravador, para assim guardar com carinho tudo que parecia
não ser importante naquele momento. Esse também foi um grande nó. Como
entender o que era importante e o que não era importante? O mais que podia fazer,
era compreender que precisava estabelecer limite na pesquisa por questão de
organização do texto – só isso foi que ajudou a eleger determinados enunciados -
enunciados, esses, que se redimensionam em temas e que foram emergindo na
tessitura do estudo, portanto, a pesquisa foi constituindo esses agrupamentos
temáticos. Isso sinaliza para o leitor da pesquisa uma melhor visibilidade da análise.
108
Contudo, a ênfase não está nessa análise temática, mas no caráter processual dos
dados ou eventos coletados e estudados. Esse era um dos nós que fomos
desatando, porque outros nós foram sendo criados, mas o prazer em procurar
desata-los, tornava a procura um entrelaçado de incertezas, próprio dos rizomas.
Entendíamos que não havia um ponto que identificasse o inicio, não sendo possível
buscar nenhuma certeza.
Com efeito, os temas emergiram a partir de uma teia de relações tramadas no
próprio currículo do Curso de Pedagogia da FFPP, especificamente nas disciplinas:
“Avaliação da Aprendizagem”, “Currículos e programas II” e no seminário que
tematizou o dia da “Consciência Negra” e no movimento dos espaços que tecem os
currículos.
Na tentativa de querer compreender e interpretar sensações, falas, imagens, a
metodologia vai sendo tecida no processo, sempre como uma preparação, voz que
se relaciona interdiscursivamente com as pesquisas com o cotidiano. Por esse
pensar, caminha-se ao encontro de uma desconstrução que pleiteia o
estabelecimento de novos conhecimentos, de uma reestruturação semântica que vai
além das visões dicotômicas da modernidade que teve o seu grande apogeu nas
teses da dupla face significante/significado e que se perpetuam nos estudos da
linguagem.
Dentre os diversos elementos dessa investigação, destacam-se as falas
constitutivas do grande diálogo estabelecido entre os diversos atores/as do espaço
institucionalizado como educacional. Cabe, aqui, destacar a escola como o cenário
não de sujeitos empíricos, mas de vozes que o constituem. Vozes perpassadas por
uma certa hegemonia criticável que não impede que os antagonismos se
presentifiquem e que, muitas vezes, se estabeleça como a modalidade
determinante.
A pesquisa pretendida está muito ligada, enquanto análise de dados, às questões
discursivas, compreendendo o discurso como efeito de sentidos numa situação
109
intercomunicativa. E, para dar conta de tal empreendimento, devemos considerar os
esforços de teóricos como Foucault, Bakhtin e Bhabha, que se preocuparam em
definir a problemática enunciativa, este último numa análise dos estudos culturais.
Distante de nós querermos teorizar a linguagem como o fazem os lingüistas e
semiólogos. Deles apenas buscamos algumas contribuições para pensar o discurso
e a sua análise, na tentativa de otimizar a interpretação das falas de alunos/as
professores/as e palestrantes que colocaram as suas vozes a serviço deste
empreendimento. É a partir, também, desse lugar discursivo que pensamos o nosso
próprio estudo.
Um estudioso de grande importância para os estudos da linguagem, numa
abordagem que critica o subjetivismo abstrato e o formalismo idealista é Bakhtin,
muito solicitado para as pesquisas sobre o discurso, sendo o mesmo o fundador de
uma teoria que coloca o diálogo como centro de toda a discussão sobre a própria
língua. Longe de pensá-la como algo abstrato, sistemático e presa a uma estrutura,
Bakhtin vai afirmar a sua materialidade e a sua função comunicacional. Para tanto,
destacará o seu caráter discursivo e ideológico. Nessa concepção, a linguagem
existe a serviço da interação verbal, pois não dizemos palavras, mas, sim,
produzimos discursos e ideologias, como nos estudos culturais, as enunciações são
culturais.
Nessa idéia de uma linguagem que é sempre dialógica é que surgem os outros
estudos que darão corpo ás diversas análises dos discursos. E é compreendendo
esse dialogismo, o conceito renovador de polifonia que buscamos algumas noções
das teorias do discurso para analisar as diversas falas que se apresentaram à nossa
investigação. Cabe aqui destacar que o próprio Bakhtin não constituiu método, nem
categorias ou formulações definitivas. A própria análise do discurso vale-se de
diversas construções.
Falar em discurso, em qualquer das suas concepções, pressupõe-se o
acontecimento da enunciação que, na definição clássica, é o colocar em ação um
determinado enunciado, sendo este o seu produto. Isso quer dizer que não podemos
110
refletir sobre um determinado dito sem observar os elementos constitutivos de seu
dizer que são, dentre outros, os enunciadores, o espaço e tempo, as condições de
produção do discurso. Entre nós, muitos autores dos novos olhares na pesquisa
sobre educação, como Veiga-Neto, falam sobre enunciados. Queremos, aqui,
colocar o que esse conceito representa no interior dessa nossa elaboração, a partir
de uma relação interdisciplinar com os estudos da linguagem, já que entre os
próprios estudiosos da área a enunciação é definida de diversas maneiras.
Destacar o fenômeno da enunciação é traço comum entre as recentes teorias
preocupadas com a questão do sentido. Afirma-se que a frase, unidade lingüística,
descontextualizada, possui significação, mas é o enunciado que possui um contexto
que contribui para o seu sentido. Opera-se, então, um deslocamento no objeto da
própria lingüística, pois o enunciado, a palavra viva, passa a ser a unidade
discursiva, projetando-se além de um sistema de signos e regras, código único e
homogêneo e mesmo da frase. É da crítica à lingüística estrutural e,
paradoxalmente, de seu aproveitamento que surgem os estudos enunciativos, em
sua primeira versão. Dessa maneira, podemos observar a transformação de uma
frase em enunciado, em um ato de fala – eis a concepção pragmática – numa
relação derivada em um contexto, com seus interlocutores, em um tempo e espaço
da produção, ou seja, em um contexto preciso.
Para Bakhtin (1986), a enunciação é de natureza social, prevendo-a como interação
verbal e as relações entre linguagem, sociedade, história e ideologia, em que a
situação de enunciação é componente necessário na compreensão e explicação da
semântica dos atos de comunicação verbal. Por esse estudo, o enunciado é uma
síntese dialética entre as minhas palavras e as palavras dos outros. O enunciado é
uma unidade da comunicação verbal e devemos compreender que a estrutura da
linguagem reflete a relação recíproca dos locutores.
Para estabelecer um diálogo entre as concepções de enunciação, consideremos o
princípio estabelecido por Bakhtin, de que o ato de fala, o seu produto, a
enunciação, não pode ser considerado como individual no sentido estrito do texto
111
(Bakhtin, 1986:109). A enunciação é o produto de dois indivíduos organizados. A
palavra dirige-se a um interlocutor, é função da pessoa desse interlocutor, é o
território comum do locutor e do interlocutor. Abre-se, então, a incorporação do outro
como constitutivo do sujeito. Não existe um sujeito uno e homogêneo, mas um
sujeito que divide o espaço discursivo com o outro. O sujeito é histórico e ideológico,
e a enunciação é pensada no quadro discursivo, entendido enquanto interação no
espaço histórico-social. O sentido é, pois, algo que é produzido historicamente pelo
uso e o discurso são concebidos como efeito de sentido entre locutores
posicionados em diferentes contextos. Esse “histórico” tem necessariamente de
levar em conta as formações discursivas, anunciadas por Foucault. A enunciação é,
pois, o acontecimento sócio-histórico da produção do enunciado.
A escola, o diálogo em sala de aula, a prática do debate, a interlocução pedagógica,
a intervenção de um texto-base, o olhar dialógico com o mural, com a observação do
todo ocorrencial, tudo aponta, na escola, para uma troca e tessitura de grande valor
argumentativo. É importante observar, nos diversos enunciados recortados para
essa amostragem, que eles argumentam. Existe, por parte de todos os/as atores/as
e actantes (alunas/as, professores/as, palestrantes) um empenho intensivo em dizer
algo sobre o mundo, o conhecimento e disciplinas, os referenciais, as vivências e, às
vezes, quererem que suas falas sejam valorizadas mais que outras.
A forma de argumentar é também importante para o estudo dos enunciados.
Pressupõe-se, com essa afirmação, que a argumentatividade está presente em
todos os tipos de texto e que não existe o discurso neutro. A tentativa de provocar a
“adesão dos espíritos” a teses apresentadas pode ser verificada, destacando o papel
fundamental que a argumentação desempenha enquanto força motriz na articulação
discursiva.
Percebemos que muitos enunciados caracterizam-se como atos de linguagem que
procuram atingir a vontade, os sentimentos dos/as interlocutores/as, levando-os/as a
aderirem aos argumentos apresentados. Uma leitura possível desses fragmentos é
que eles argumentam dirigindo os interlocutores para uma conclusão favorável a um
112
novo estudo sobre as práticas escolares e educacionais, valendo-se de diversos
recursos no estabelecimento da direção.
Assim como antevia Bakhtin, diversas vozes articulam os enunciados, sendo estes a
unidade de tessitura do discurso e o sentido do enunciado é uma descrição de sua
enunciação e para essa descrição, ele fornece indicações. O sentido seria, então, o
valor semântico do enunciado e significação, o da frase. Existem, aqui, elementos
muito importantes para pensarmos a tessitura, determinada arquitetura que sustenta
o discurso, ou seja, é possível analisar as redes a partir da estruturação dos
enunciados.
Bhabha (1989) vai mergulhar no universo da produção discursiva para questionar a
própria cultura, traduzindo-a em enunciações culturais. Amplia, portanto, os
conceitos, para observar a identidade, a diversidade e a diferença, afirmando que a
necessidade de pensar o limite da cultura como um problema de enunciação da
diferença cultural é rejeitada. A enunciação é colocada, como processo e produto
das vozes de dominação e resistência. Diz o autor que a diferença no processo de
linguagem que é crucial para a produção do sentido e que, ao mesmo tempo,
assegura que o sentido nunca é simplesmente mimético e transparente e isso é
afirmado em todas as teorias do discurso. Tomando como base as teorias
enunciativas é que faz a distinção entre o sujeito do enunciado e o sujeito da
enunciação que não é representado no enunciado, mas que é o reconhecimento de
sua incrustação e interpelação discursiva, sua posicionalidade cultural, sua
referência a um tempo presente e a um espaço específico. (Bhabha 1989):
Trabalhar com a análise de seqüências quer dizer que a linguagem é vista como
processo e produto dinâmicos. Aquilo que pode ser considerado como enunciação
cultural em Bahbha, já de um nível de formulação elaborado dentro dos quadros da
polifonia, leva-nos a pensar que o interesse incide sobre o discurso, a língua em sua
integridade concreta e viva, como solicita os estudos com o cotidiano. É assim que
aparece o enunciado como tessitura comunicativa, não tessitura abstrata para
propósitos teóricos e práticos.
113
É sobre as manifestações dos enunciados e suas enunciações e constituições de
sujeitos empíricos (alunos/as, professores/as, palestrantes), de sujeitos do
enunciado e de sujeitos da enunciação – essas múltiplas vozes que se apresentam
como formações mais amplas ligadas aos discursos da cultura – que propomos o
nosso olhar, ou seja, é buscando penetrar no jogo discursivo que propomos a nossa
análise sobre tais vozes e sobre o próprio cotidiano, tentando uma compreensão dos
autores que nos influenciam e que nos mostraram uma certa supremacia da
linguagem e de caminhos para dar conta da pesquisa proposta.
114
CAPÍTULO 5
7.TECENDO A ANÁLISE
Estudando o cotidiano na sala de aula, propomo-nos a resgatar o discurso do/a
próprio/a aluno/a e do professor/a tendo-os/as como narradores/as, buscando
encontrar neste discurso as fronteiras do conhecimento. Neste sentido, estaremos
considerando que o aluno/a narrador/a se introduz em nossas técnicas,
reorganizando o lugar de onde se produz o discurso (Certeau, 1994:60)
Na xerox, (espaço excessivamente ocupado na FFPP) o currículo é experienciado
por todos que ali trabalham, inclusive pelo funcionário que consegue estabelecer as
diferenças entre os diversos conteúdos, pela simples manipulação dos textos,
depositados nas pastas pelos professores/as. Nessa prática, eles percebem a
tessitura do seu próprio conhecimento.
Ouvimos outras vozes: na cantina, na hora dos intervalos - instituídos pelos
próprios/as alunos/as - enquanto esperam o lanche, eles/as tecem redes nas trocas
de receitas culinárias, nas confidências sentimentais, nos comentários sobre os
conteúdos das diferentes disciplinas e na avaliação informal que fazem da prática
pedagógica dos professores/as. Uma aluna justifica sua ausência à sala de aula com
uma critica à metodologia usada pela professora, que, segundo a mesma, é sempre
muito monótona. Esse enunciado é rico de aprendizagens que acontecem a partir
das mil maneiras de jogar, das burlas, das táticas e das artimanhas (Certeau, 1994).
Tudo expressa currículo, experienciado neste cotidiano dando prolongamento às
redes ou trançando-as num movimento continuo, sem porto seguro. São práticas
inventivas produzidas a partir das artimanhas e táticas (Certeau, 1994) que os/as
alunos/as criam cotidianamente para sobreviver aos diferentes que lhes são
colocados.
Com esses sabores, fomos experimentando os lugares, fomos absorvendo seus
gostos, na cantina, na xerox, nos corredores, na sala dos professore/as e até nas
115
salas de aulas. Os cheiros sempre densos, porque o uso fica impregnado dos
nossos cheiros, de nossas marcas. Prenhe de odor e sabores onde as redes são
tecidas (Alves 2001).
O corredor é pleno de vida e de movimento. Nele se cruzam os/os alunos/as
apressados/as que estão atrasados/as para o trabalho, outros/as que não estão
dispostos a assistir às aulas, filhos/as de alunos/as que esperam o final da aula para
retornarem a casa com suas mães. Cartazes nas paredes retratam o cotidiano,
traduzindo os currículos que são praticados nos diferentes cursos e na Escola de
Aplicação da FFPP. Nesses cartazes, existem imagens centradas em diferentes
possibilidades, em que há uma mistura de saberes, mas nem sempre pode ser
encarado como negativo ou reprodutor, como nos fala Alves (2001). Daí que, nos
cartazes, podemos ler imagens centradas na valorização das ciências como o único
conhecimento e imagens que se abrem para a multiplicidade das redes.
Nesse corredor, também, se experienciam os currículos. No pavilhão de Matemática,
os/as alunos/as ouvem uma banda, em comemoração ao dia do/a estudante.
Percebemos uma irritação por parte de alunos/as e professores/as de outros cursos
que não conseguem ministrar suas aulas por conta do barulho. Na sala dos/as
professores/as, todos reclamam do barulho e atribuem toda a confusão à direção,
pois não foram avisados sobre essa atividade. Os comentários vão desde a falta de
organização das atividades, ao descaso com os trabalhos que estão sendo
realizados.
Para compreensão do agrupamento dos enunciados, utilizamos as nomenclaturas T
indicando os temas e a numeração indicando os momentos de observação
/participação, análise e movimento da prática. Por isso, de T1 a T7 se deram às
observações participativas na disciplina “Avaliação da Aprendizagem” ministrada no
sétimo período do Curso de pedagogia; T8 a T13 essas observações se deram a
partir do movimento da prática exercida por essa professora/pesquisadora na
disciplina “Currículo e Programas II” no mencionado período acima e ainda o T14
116
relativo ao seminário realizado pelo Curso de História, cujo tema centrava-se no
evento do dia da “Consciência Negra”.
As escolhas destes espaços se deram a partir da realização do planejamento no
inicio do semestre, na tentativa de um trabalho interdisciplinar. È o sétimo período do
curso um espaço de trabalho onde já ministramos, no semestre anterior, a disciplina
Currículos e Programas I, que possibilitou para a professora/pesquisadora uma
grande interação com os/as alunos/as em estudo. Outro fator que determinou a
escolha foi à inserção do próprio conteúdo programático da disciplina em análise:
Avaliação Educacional e Currículos e programas II. Já o espaço onde foi realizado o
seminário sobre a Consciência Negra, no curso de História, foi inserido no momento
da caça no/do cotidiano. Como a pesquisadora se encontrava mergulhada neste
cotidiano foi surpreendida com esse momento tão importante para seu estudo dada
a temática do próprio seminário.
Propomos, aqui, um passeio pelas redes do/no cotidiano da faculdade, em forma de
enunciados produzidos ao calor da hora. O que significa uma pesquisa com o
cotidiano? Não se trata mesmo de cristalizar imagens ou de aprisionar o tempo, mas
dispersar-se na própria instabilidade daquilo que conhecemos ou que tomamos
como representação de um universo bio-socio-cultural. Os próprios atores/as
(alunos/as, professoras/as das aulas observadas) dizem aquilo que pensam do
cotidiano, definido mediante a explicitação de como o compreendem. Captamos
fragmentos dos enunciados tecidos por alunos/as, professores/as e palestrantes nos
diferentes espaços, nas observações em sala de aula (T a T7), nas observações da
professora/pesquisadora (T8 a T13) em aulas dialogadas, ou em apresentação de
trabalhos e no seminário onde os enunciados se aproximam. Sob a inspiração de
Certeau, colocou-se a necessidade de procurar se existem entre eles categorias
comuns e se, com tais categorias, seria possível explicar o conjunto das práticas.
(Giard na introdução do livro A Invenção do Cotidiano 1994) e os diferentes
discursos que permitem um entre/lugar (Bhabha 1998).
117
Narrados os cotidianos, chegamos à tessitura da análise, cruzando falas para
descobrir os sentidos que são tecidos pelos alunos/as e professores/as. Os
conteúdos trabalhados nas aulas de observação e na própria prática pedagógica da
professora/pesquisadora não são, infelizmente, pensados com os alunos. São temas
já planejados pelos/as professores/as, no cumprimento do conteúdo programático
das disciplinas.
7.1 O CONTEXTO DO COTIDIANO
Uma análise do cotidiano escolar a partir das redes de relações e conhecimento que
são produzidos, nos revela princípios reforçados na tradição da ciência moderna ao
mesmo tempo em que a transcendemos. Os enunciados que envolvem o contexto
do cotidiano, são enredados, dado que as vozes são encontradas em diferentes
momentos.
A partir do enunciado abaixo transcrito da fala da professora (observação
participativa) quando explicava sobre avaliação, veio à tona o tema cotidiano
Avaliação da aprendizagem, estar bem mais ligada ao cotidiano da sala de aula, cotidiano da escola. (professora T-2)
Numa apresentação de trabalhos da disciplina Currículos e Programas II, a aluna
apresenta um trabalho sobre modernidade e pós-modernidade e explica.
Olhe eu estou falando aqui de forma geral, mas penso que falo também da educação que não é diferente, o que está acontecendo no cotidiano não pode ser desconsiderado (T – 8)
Processos, contextualizações, repetição temporal, tais falas referem-se a um
cotidiano , no sentido mesmo do dicionário, mas é perceptível que apontam para
uma certa complexidade das práticas desenvolvidas no âmbito escolar. As relações
estabelecidas entre outros referenciais como avaliação, poder, educação e este
cotidiano apontado e mal definido levam-nos a pensar sobre a persistência de
entrecruzamentos. Não se fala exclusivamente de algo em si, mas de um complexo
que aponta para diversas direções. O dia-a-dia para a professora, o continuum, para
118
a aluna, refletem, de alguma maneira, uma preocupação de reconstruir um
determinado presente, mediante as lentes da educação.
Caberia observar, primeiramente, que existem cotidianos. Não se sabe, nessa forma
de conceber, que é no cotidiano que se desenvolvem práticas específicas. Este
cotidiano não é constituído de indivíduos passivos, simplesmente assujeitados por
práticas disciplinares.
Quando se fala do dia-a-dia, nesse tempo/espaço observados como os mesmos,
anda não se percebe a instauração do diferente, do outro resistente a práticas
institucionalizadas, ao poder dominante. Como pensa Certeau (1994), existem os
procedimentos, as bases, os efeitos, as possibilidades de resistência. Não existem,
pois, nessa análise do cotidiano, os comportamentos transformadores. Ir ao
encontro dessa subversão parece ser um caminho que norteia, constitue as
narrativas dos/as atores/as no cotidiano escolar, produzindo os novos discursos que
articulem os múltiplos sujeitos, as possibilidades criativas, o entrecruzamento das
fronteiras do conhecimento e as abordagens de ações transformadoras. Não há, no
cotidiano, o olhar e o fazer neutros. Não parecem, essas narrativas, estarem
buscando a si mesmas, mas apenas os outros. Observar o cotidiano é atingir a auto-
representação.
A aula ocorre normalmente, como sempre aconteceu no espaço da faculdade. Não
há, de fato, em sua dinâmica, nada de novo. O que existe de importante é o diálogo
que se estabelece entre os/as diversos/as interlocutores/as institucionalmente
localizados e preocupados com a construção do conhecimento. Em meio a essa
aparente repetição do pré-estabelecido, desafios parecem convocar conhecimentos
pré-tecidos que não estão simplesmente presos ao programa do curso nem ao
assunto da aula, mas existe uma memória que trabalha incessantemente e que se
abre para refleti-lo.
7.2 O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO:
119
Independentemente de toda e qualquer temática ou abordagem, a tessitura do
saber, cujo papel concorre fundamentalmente para a função escolar, a
disciplinaridade, inter, multi e transdisciplinaridade, explícita ou implicitamente, em
um curso de pedagogia, o tema recorrente é a educação. Muitas visões buscam
definir o que significa esse processo, em aulas da disciplina Currículos e Programas,
da professora/pesquisadora.
Normalmente só se lembra que na escola pública não tem material didático etc., mas existem possibilidades de desenvolver um bom trabalho, vai depender do profissional, cada um reconhecendo os seus limites, a escola publica, pode ser uma escola melhor, graça a essas possibilidades que as pessoas estão estudando e estão pensando. A escola publica tem melhorado bastante. Eu acho, que essa é a questão. Tem escola publica aqui que desenvolve melhor trabalho do que a escola particular. (aluna T-8)
Na mesma aula, uma aluna referindo-se ao conteúdo sobre currículo, abordou:
Afinal para que serve a escola? Para transmitir conhecimentos sistematizados (saberes)? Ou, além disso, possibilita que o individuo aprenda outras tantas coisas: a conviver coletivamente, a relacionar-se com as pessoas diferentes, pelo menos diferentes do eu e dos nós, ou seja, a individualidade, a família e os grupos mais restritos de parentes, vizinhos e conhecidos? É evidente e precisam ser evidenciados pela escola os outros tantos espaços de socialização fora da escola, onde os indivíduos aprendem e vivem valores, trocam saberes, desenvolvem simbologias, conceitos e preconceitos. E que o que a escola precisa valorizar e ampliar esses conhecimentos possibilitando que as pessoas aprendam a representar o mundo de uma forma diferente daquela anterior ao processo de escolarização, uma vez que é a escola um espaço mediado pelo conhecimento sistematizado e, sobretudo pelo saber legitimado; porque a escola é esse espaço primordial de disputa de saberes e conseqüentemente de poderes. Que precisam transformar o espaço escolar possibilitando que lá se desenvolvam outras noções de valores, outras formas de valor do mundo, agora o mundo que se amplia e se faz numa relação mais pública; em que existe um grupo maior e mais diverso de pessoas num cruzamento fantástico de informações e de saberes. (aluna T-13)
Coincidentemente, percebemos que nos diversos enunciados o possível aparece
como modalizador das vozes. É a possibilidade como chave da educação, de uma
escola pública de qualidade, inclusive, de transformação de noções e valores. Dá-se
um entrecruzamento de temas ligados à educação, tentativas de formulação de
redes, algumas mais pertinentes que outras, mas todas muito relevantes para a
discussão dessas possibilidades. Se em uma das falas são verificadas pistas para
uma contradição na defesa de um certo tipo de educação e escola, em outra, dá-se
a crítica contundente à instituição, à discriminação e ao próprio currículo. Trata-se de
enunciados entrecortados por idéias de conhecimento, cultura, exclusão, poder e
120
identidade que refletem falas preocupadas com uma nova maneira de pensar a
educação. Percebem-se, ainda conflitantes, reflexões, em uma mesma fala, sobre a
ordem do discurso ou o poder sobre o saber: a escola.
Em uma aula sobre avaliação, a professora observada cita o autor do texto-base, da
disciplina Avaliação da Aprendizagem, produzindo a seguinte fala:
Ainda explicou que a avaliação da aprendizagem também conhecida como avaliação do rendimento escolar, tem como dimensão de análise do conhecimento do aluno, do professor, avaliação como um todo, todo o processo, toda situação do ensino, que observa que somente o aluno é avaliado. (Professora T – 1)
Refere-se à uma fala que reproduz o discurso pedagógico e a própria forma do
discurso acadêmico, em um trabalho citativo que produz talvez a ilusão de uma
suposta autoridade, ainda que a intenção venha a ser de nega-la. No caso
específico dessa fala, cabe destacar que o enunciado referencializa a própria
avaliação, o tema-base da aula em questão, redimensionando-o dentro de uma
visão crítica daquilo que até o momento se entende por tal noção ou finalidade.
Existe, neste estudo, uma preocupação com a questão da avaliação porque o que
fazemos, na realidade, é também uma avaliação de prática e instituições, como o
currículo. Quando se volta para a avaliação do simples rendimento, abrindo-se para
todo o processo, muitos elementos complexos devem ser considerados. A avaliação
proposta no caso específico desse enunciado inclui, também, a questão curricular.
Embora se trate de uma fala que reflete uma idéia crítica e que até se pretende
como pós-crítica, é proferida em meio a um auditório que simplesmente a repete,
sem entretanto sistematiza-la com dados da realidade concreta e implementá-la. A
voz primeira, repetição de pré-construídos através da história do conhecimento
educacional e escolar, vê-se repetida sem sentido do real, porque, ao nosso ver, a
avaliação sempre deve iniciar-se pelo currículo.
7.3 CONTEXTO DA CULTURA/PODER Verifica-se, na fala a seguir, a preocupação com tópicos fundamentais desta
pesquisa. Poderíamos até afirmar que a cultura e o poder se entrelaçam em
121
múltiplas dimensões para pensar o currículo. As vozes ouvidas são registros de uma
aula na disciplina Currículos e Programas II que debatia sobre Estudos Culturais.
Nossa formação de fato, o curso de pedagogia, me parece que a gente não aponta
pra discutir as diferenças culturais como poder, cultura é uma questão de poder. (professora T-10)
No entrelaçamento das vozes, outra aluna concluirá falando do mesmo tema:
A escola sempre se apresentou como uma instituição que destitui os traços mais nítidos de um modo de ser dos indivíduos que a ele recorrem, especialmente daqueles que residem no meio rural, no interior, na caatinga, de outras raças etc. Esse modo de ser é constituído de saberes e sentidos que a escola tradicionalmente desvaloriza em nome de outro modo mais civilizado de ser; em nome da chamada “cultura universal”. Dessa forma, a escola sempre praticou um tipo de re-socialização do homem e da mulher nordestina, sertaneja, negra – principalmente do meio rural – para lançá-la para fora, mandá-la embora. (aluna T-13)
O enunciado problematiza a instituição escola onde os currículos organizados por
disciplinas, acabam compartimentalizando, legitimando as divisões e desigualdades
sociais; atenta para a necessidade de um currículo que seja um campo de conflito
em torno do conhecimento e da identidade. O discurso abre para a questão do poder
que se exerce sobre as chamadas culturas populares ou locais e busca entender a
exclusão que expulsa dos centros aquelas que se tornam monstro. Na cultura se
destaca a função social da escola e que o currículo deponha como uma solução
cultural tornando-o híbrido. Observa-se também dentro das culturas negadas o
poder de resistência da mulher nordestina, sertaneja, negra. O enunciado ainda
abre para o poder que se exerce sobre o outro – a cultura de um grupo social não é
nunca uma essência – precisando o currículo trabalhar não o direito às raízes, mas a
necessidade desse currículo ser pensado nos diferentes vínculos, até porque a
escola hoje precisa romper com o isolamento das disciplinas para sofrer mutações.
Neste sentido, faz-se necessário um trabalho do conhecimento em redes – tecendo
uma reflexão produtiva sobre currículo.
Podemos observar o enredamento do conhecimento que vai das observações
participativas, ao seminário realizado no Curso de História, no dia da “Consciência
Negra”.
122
O poder político sustentava isso, o poder da igreja servia para poder amansar os negros rebeldes com sua catequese. O povo que foi seqüestrado dessa forma, vivenciou durante trezentos anos – que não são trezentos dias – são três séculos, e depois por uma questão econômica disseram que nós estamos livres.(membro do grupo dos Quilombolas T-14)
Existe uma reflexão do/a aluno/a, uma educação que passa a ser encarada como
processo de intervenção, de sujeitos também em constituição, experiências de vida
miscigenadas, hibridizadas, recriadas nesse processo articulado em redes,
associações e complexidade. Subjaz, também, nessa fala, uma crítica aos
educadores, para que os mesmos migrem para os cotidianos, no plural da escola.
Uma questão que se apresenta como fundamental em todo e qualquer trabalho
sobre educação, relevando os seus aspectos políticos, apontam para uma discussão
sobre o poder e, ainda no mesmo seminário, um membro do grupo dos Quilombolas
diz:
A partir do momento que a gente passou a perceber que a gente podia trabalhar
em nível do Brasil, para saber até que ponto chegava essa condição de quilombo no país, eu vi nesse instante alguém achando estranho quilombo, porque falar de quilombo é falar de hostilidade, falar de um povo que, além de ser inferior, era um povo incapaz, que tem que viver isolado do resto do mundo, porque o mundo não ficou pra esse povo. Então a partir daí, queríamos provar que é o contrário, que o que a gente teve na verdade não foi incapacidade, não foi inferioridade, mas, sim a possibilidade que nos deram de ingressarmos numa sociedade. (membro do grupo dos Quilombolas T-14)
O mesmo palestrante, membro dos Quilombolas, continua falando para os/as
alunos/as.
O trabalho que nós temos não quer dizer que a gente não reconheça a luta do indígena, não reconheça o sofrimento de todo aquele povo. O índio também é lembrado e nós estamos buscando esse trabalho junto, principalmente quando ele se organiza na defesa de suas terras, porque foram pessoas que perderam bastante, que para o índio já existe um pouco de reparação as terras de índios são terras dos índios, eles brigaram e se auto identificam. Os índios foram para o congresso e foram recebidos, os negros vão ao ministério e é coisa de assalto. Então, não estamos querendo descriminar índios, cada um trabalha na sua dimensão, buscando reparação naquilo que foi perdido. Na constituição vocês vão ver que o caso do índio é diferente. (membro do grupo dos Quilombolas T 14)
Verificamos, na fala seguinte, a preocupação com o tema poder, na fala da
professora da observação participativa.
123
Tem gente que diz que não adianta o discurso, eu penso que o discurso já é importante, sua prática já vai mudando,embora isso seja lento. O discurso político é importante. (professora T-2)
A política, entendida como forma de atividades ou de práxis humana, está
estreitamente ligada ao poder, palavra que, em seu significado mais geral, designa a
capacidade de agir, de produzir efeitos. Assim, o poder político pertence à categoria
do homem sobre o homem, sendo esse poder, dentre várias formas, apenas uma
delas. A literatura clássica sobre o conceito de poder colocou-o, inicialmente, como
“coisa” para depois percebê-lo como “relação”.
Retomamos, aqui, as indicações de Foucault, para quem o poder não é algo unitário
e global, mas formas heterogêneas, em constante transformação. É uma prática
social construída historicamente. Essa fala da professora coloca em destaque a
questão do político, abrindo espaço para a reflexão entre as relações, entre práticas
pedagógicas avaliativas e práticas de poder. Segundo a literatura sobre o assunto,
todo discurso é político, pois todos estão ligados à esfera das ideologias. E isso é
muito importante para pensar, inclusive, as redes estabelecidas nesses diversos
enunciados e mesmo no discurso científico e pedagógico. O enunciado em questão
nega, de fato, o próprio discurso pedagógico transformador, dizendo-o insuficiente
para as mudanças necessárias no universo educacional. Destaca, entretanto, a sua
necessária existência.
O poder tem provocado discussões em sala de aula, ora ligado à sua estrutura, ora
à sua função, ora a seus malefícios ou conseqüências. Trata-se de um tema sempre
intrínseco à problemática educacional. Nos enunciados, investidos também do poder
de ao menos aparecerem, foram constantes as relações de poder do político com as
práticas escolares, com a cultura e com as questões raciais, sexuais e de gênero.
Colocam-se, também, discussões sobre a relação entre nações, rural e urbano,
sempre permeados pelas diferenças econômicas. Pensar o poder proporciona
convocar a presença de Foucault.
124
Para o filósofo francês, os poderes funcionam como uma rede de dispositivos e
mecanismos a que nada ou ninguém escapa e estão dispersos em toda a estrutura
social: o poder não existe; existem práticas de poder. Homens dominam outros
homens e é assim que nasce a diferença de valores; classes dominam classes e é
assim que nasce a idéia de liberdade; homens se apoderam de coisas das quais
eles têm necessidade para viver, ele lhes impõe uma duração que elas não têm, ou
eles as assimilam pela força - e é o nascimento da lógica (Foucault, 1986:24).
Por tal ponto de vista, o poder não deve ser considerado negativo; pode ser positivo
porque o seu exercício é também um lugar de formação do saber que, por sua vez,
assegura o exercício de um poder. Ele é luta, afrontamento, relação de força,
situação estratégica e o seu objetivo é econômico e político. Da idéia de poder como
sistema de regras,o filósofo afirma: O grande jogo da história será de quem se
apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se
disfarçar para pervertê-las, utilizá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as
tinham imposto; de quem, se introduzindo no aparelho complexo, o fizer funcionar de
tal modo que os dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras
(Foucault, 1986:25).
Em relação a este poder, quanto à hegemonia reinante nos diversos espaços,
levantam-se vozes e ações. São vozes resistentes que têm pretendido ir de encontro
ao outro, instaurando um espaço polêmico aberto. Os/as atores/as atuantes na
faculdade, parecem já ter compreendido essa dinâmica do poder, embora não se
tenha materializado em ações. Percebem-se, no entanto, em silêncios ou barulhos,
ou mesmo numa resistência orquestrada em enunciados, resultados de uma
formação política incipiente que já admitem poder enquanto relação de lugares de
poder.
7.4 O CONTEXTO DO CONHECIMENTO/CURRÍCULO:
A proposta deste trabalho está ligada a uma temática maior e também,
paradoxalmente, mais específica e às suas dimensões colocadas em redes. Tudo
que se falou até aqui está ligado à questão do currículo, que aparece explicitamente,
125
nos enunciados elencados a seguir, sempre inter-relacionados a outros temas que
constituem a identidade cultural. Tal inter-relação vai, inevitavelmente, fazer
aparecer a finalidade maior da escola que é a de tecer o conhecimento. Sempre que
nos referimos à educação, referimo-nos ao conhecimento, porque a aprendizagem,
de alguma maneira, a ele está sempre ligada. Quando se fala em representações
simbólicas, quaisquer que sejam, simbolismo e linguagem, aparecem as questões
ligadas ao conhecimento.
Há, nas falas dos alunos/as, uma preocupação com a tessitura em si, mas também
com as formas representadas/desenvolvidas na educação escolar. Existe, por parte
do aluno/a uma compreensão que, muitas vezes, supera os limites propostos pelos
próprios professores/as. Assim, extrapolando tais limites, registramos enunciados
em uma observação participativa cujo tema emerge com outros conteúdos:
Não generalizar o conhecimento do aluno, pois cada um aprende de forma diferente.Ter cuidado com a avaliação por relação quantitativa que bloqueia e traumatiza o aluno. A utilização de conteúdo fora do contexto do aluno provoca desânimo e sonolência. (aluna T-1)
Identificamos as redes no enunciado, em um diálogo, na aula da
professora/pesquisadora.
Eu concordo com você, e a forma como a gente ainda é trabalhada, o próprio curso de pedagogia vem trabalhando com vocês ainda é nessa perspectiva de diversidade que dificulta. (professora T-10)
Na disciplina Avaliação da Aprendizagem, o tema analisado garante seu
enredamento nas duas vozes:
Esses métodos que são utilizados são baseados no currículo. (aluna T-2) O problema é que nossas práticas são tradicionais, bastantes tradicionais. (professora T-2)
È importante verificar que todos concordam com as amarras as chamadas “práticas
tradicionais”, muito combatidas principalmente pelo testemunho das experiências
citadas. Os novos documentos oficiais também apresentam um discurso de
126
socialização, de criatividade e embora existam tentativas esparsas, os atores
concluem que nada representa mudanças consideráveis. Na compreensão de uma
aluna, o sistema sofre coerções externas. Em aula da observação participativa, em
discussões sobre avaliação, ouvimos o seguinte relato:
A escola tem uma prática de dentro pra fora, agora é que está voltando, de fora pra dentro. Como a escola não faz a sociedade está exigindo. (aluna T-4)
As aulas que privilegiam aparentemente, o conhecimento cientifico, são traduzidas
no enunciado critico sobre uma aula da observação participativa.
Eu tenho muita preguiça de ler, e se for um texto científico, a gente começa a antipatizar o professor e a matéria, a gente pensa que é o profº que é ruim, não sabe a matéria. Só agora eu entendi o que é currículo. (aluna T-4)
O enunciado nos remete para o tema currículo, embora a recorrência apareça
generalizada em forma de uma certa monofonia:
A gente sente que falta diálogo na escola. (Aluna T-5)
Sendo os enunciados tecidos na disciplina Currículos e Programas II, o tema se faz
sempre presente em indagações que demonstram a insatisfação de atores que
abdicam de um papel meramente decorativo numa situação de debate de uma única
voz. È perceptível que, ainda que não sejam mensuradas, algumas mudanças de
posicionamento se mostram evidentes:
Voltando para a questão do currículo, eu me preocupo muito: que currículo nós estamos construindo? Em que ponto nós estamos avançando na questão do currículo e até que ponto a gente vai atingir o novo? Por que o currículo não tem nada de autonomia? Até que ponto nós vamos mudar o currículo? (aluna T-9)
Não se deve desconsiderar que os conteúdos programáticos da disciplina Currículos
e programas II vão contribuir para tecer esses enunciados, gerando provocações e
reações diversas. Assim, o tema é provocador de vozes desejosas de pensar o
currículo na prática pedagógica da professora/pesquisadora.
127
É hora de nós pensarmos que é possível construir nossos currículos e dar uma baixa nas propostas oficiais. Essa é a questão de estarmos estudando currículo. (aluna T-9)
Como já registramos, todos os espaços da escola têm sido cenografia para intenso
debate, ações e reações que, aparentemente, podem não ser significativas, mas que
sustentam uma cadeia de temas diversificados, como se esta escola, a FFPP,
tivesse atingido um certo patamar reservado às discussões pertinentes a um novo
momento histórico; por exemplo, mesmo não sendo o eixo central do seminário,
observamos uma preocupação com o contexto pelo seu caráter de tessitura:
Agora mesmo no curso nós estamos com a história da África. Por que é que na faculdade nós não temos a disciplina Historia da África? Nós estamos com o 1º ao 8º período, tem alguma matéria sobre a historia da África? Isso é uma coisa natural? Se grande parte da população é formada do negro, se grande parte de nossa riqueza foi construída pelo povo negro, por que a gente não estuda a historia da África? E aí vêm as duas palavrinhas chaves, a gente precisa entender que a África é o berço da civilização e berço da humanidade. (membro do grupo dos Quilombolas T-14)
Destacando metodologias ou considerações a um contexto que lhe é constitutivo, a
problemática do “conteúdo” aparece como fundamentalmente importante nas
discussões em sala de aula, mesmo naquelas em que o currículo não aparece como
o tema do dia, o que nos leva mais uma vez a concluir que a própria disciplina
currículo, quando não nuclear, sempre se apresenta em relação interdisciplinar com
todas as demais áreas do curso de pedagogia, como avaliação, metodologia e
tantas outras, dada à importância do seu campo conceitual e de sua resistência de
questionamento. É isso que, inicialmente, podemos perceber nos enunciados
destacados. Por tal percepção, já vemos imbricadas algumas pistas para pensar o
currículo em meio a uma diversidade do conhecimento, mas o enunciado vai muito
além. Não admitem o “modelo de fábrica” e percebem, nitidamente, que estão ainda
envoltos nos modelos que vigoraram até o século passado, mas querem ultrapassa-
lo, ainda que se afirme como podemos perceber, a dificuldade no lidar com a norma
culta do português leva o membro dos Quilombolas a não expressar o pensamento
com clareza.
128
Muitos dos enunciados aderem à discussão sobre o conhecimento em rede e
defendem os estudos curriculares desenvolvidos sobre saberes relacionados à ação
cotidiana, de articulação entre diversos padrões culturais e modelos cognitivos, por
ser a escola, segundo Tura, o lugar privilegiado onde se tecem identidades e onde
se delimitam diferenças. Essa nova maneira de conceber o espaço escolar como
encontros e legitimação de idéias, de circularidade entre culturas ganha corpo e
torna-se, atualmente, o debate mais importante dentro do curso de pedagogia.
Ainda sobre a mesma temática, na aula da disciplina Avaliação da Aprendizagem,
os/as alunos/as interferiram, dizendo:
A avaliação não deve ser aplicada com a finalidade de somar e medir os conhecimentos do aluno, é contra indicada também usar da avaliação para punir o aluno. (aluno T-2)
Outro aluno se pronuncia na mesma aula sobre avaliação, destacando a própria
plurissignificação do tema e as diversas manifestações de abordagens. Vê-se a
importância de se chegar a algum lugar, ainda que não seja o mesmo.
A avaliação como tema da educação é complexa, estudamos bastante para chegarmos a um denominador comum porque cada tema há muitos teóricos para estudar e analisar. (aluno-2)
A negação da ênfase na discussão sobre a importância que a escola atribui ao
conhecimento científico é contestada pela aluna na aula de observação da
pesquisadora.
Favorece o desenvolvimento da capacidade do paciente (aluno) de propiciar-se de conhecimento científico, sociais e tecnológicos levando-o a ter pedagocídio, baixa-estima e uma possível evasão escolar. Tendo como efeito colateral um ato não dinâmico, sem qualificação e momento de inovação (Alina T-1)
Enunciado rico na problemática estabelecida na aula da disciplina Avaliação da
Aprendizagem. Não às potencialidades, às competências, já que cada um ocupa
lugares diferentes de objetivação, parece ser uma preocupação também recorrente.
Não generalizar o conhecimento do aluno, pois cada um aprende de forma diferente. Cuidado com a avaliação por relação quantitativa que bloqueia e
129
traumatiza o aluno. A avaliação punitiva traz indicação de dor de cabeça, mau humor e evasão ao aluno. Bom é o aluno ser estimulado com desafio e não com elogio (aluno T-1).
Sendo o conhecimento trançado nas vozes que se ouvem em outra aula da
disciplina Avaliação da Aprendizagem, uma aluna continua a problemática do tema:
Eu acho que a auto-avaliação vai avaliar mais ou menos o que o aluno aprendeu durante aquele instrumento usado, leitura e etc. Só que além de avaliar o aluno ele vai se auto-avaliar o que ele aprendeu e também avaliar a parte dele, a parte cognitiva, do pensamento dela desorganizado de quando ele entrou na escola e o que ele foi adquirindo a partir dos conteúdos, o que ele foi capaz de aprender, passar do conhecimento desorganizado para esse conhecimento crítico, mais completo. (aluno T-7)
Na disciplina Currículos e programas II, outra voz trata do tema, mesmo não sendo
previsto no conteúdo programático, porém, recorrente ao contexto abordado:
Eu não vejo avaliação como um mal necessário, eu vejo a avaliação como processo, faz parte do processo, processo de trabalho, processo de vida. O mal é avaliar de maneira errada. Faz parte da vida (aluna T-8)
È importante destacar, nessas vozes que se entrecruzam, como os/as alunos/as vão
tecendo relações que estabelecem uma ética da avaliação e apontam para a
politização de tema, desvelada, segundo eles, pela ótica da complexidade. O
“pedagocídio” aparece como uma tentativa de diagnose dos males de uma avaliação
estratificada e cristalizada em valores obsoletos. A grande preocupação desses
enunciados está ligada a algo bem mais complexo que é, de fato, a complexidade da
construção do conhecimento e que permeia todas as atividades educacionais. O
tema da avaliação aparece como suporte para reflexão que destaca muitos outros
elementos como currículo e conhecimento em rede.
Na disciplina Currículos e programas II, outra voz trata do tema em análise da
prática pedagógica da professora/pesquisadora:
Neste sentido o cotidiano escolar, desafia ao próprio ambiente com normas e desvios, reconhecendo a existência da diversidade, significa que os vários conhecimentos não são formas aceitáveis para atingir um verdadeiro conhecimento (professora T-8)
130
Outra aluna se pronuncia na mesma disciplina, tentando dialogar com discursos
outros do cancioneiro popular, na tentativa de demonstrar de forma artística e de
protesto que as representações existem. Tratou-se de um trabalho de grupo
apresentado na disciplina Avaliação da aprendizagem, cujo tema foi
exclusão/inclusão.
CIDADÃO
Ta vendo aquele edifício moço? Eu também trabalhei lá Foi um tempo de aflição Era quatro condução Duas pra ir, duas pra voltar. Hoje depois dele pronto Olho pra cima e fico tonto Mas me vem um cidadão Que me diz desconfiado Tu taí admirado ou ta querendo roubar Meu domingo ta perdido Vou pra casa entristecido Dá vontade de beber E pra aliviar o meu tédio Eu nem posso olhar pro Prédio que eu ajudei a fazer. Ta vendo aquele colégio moço Eu também trabalhei lá Lá eu quase arrebento Pus a massa, pus cimento Ajudei a rebocar Vem pra mim toda contente
Pai vou me matricular Mas me diz um cidadão Criança de pés no chão
Aqui não pode estudar...
Sabe-se que não se cria e não se aprende a partir do nada; que o conhecimento é
individual e coletivo, advindo de experiências e aprendizagens pré-existentes. O
conhecimento é sempre produzido pelo pré-construído, e mais, é dinâmico,
processual, contínuo, transformação e recriação. Como afirma Souza (2003:259):
transformação e recriação que são significados, que adquirem sentido, também, no
próprio cotidiano de existências sociais e culturais vivenciados.
O trabalho em grupo alcançou uma hegemonia dentro das práticas pedagógicas por
questões bastante óbvias no respeitante à socialização do pensamento e do
131
conhecimento. Esse trabalho grupal que pode ser associado a um coletivo
necessário à reconstrução de práticas sociais e solidárias, reflete nos discursos, da
seguinte maneira:
É difícil fazer um trabalho em conjunto. (aluna T-2)
Quando eu trabalho em grupo, quando a avaliação é feita em grupo eu cresço também como cidadão, porque eu vou socializar o meu aprendizado. (aluna T-2)
A inclusão dá-se em um determinado grupo ou numa diversidade. O grupo, na
escola, é pensado enquanto meio de ação e execução, redefinindo expectativas,
desempenhos, prazeres, uma tentativa de socialização. Pensar em grupo é pensar
em interações. Um contexto que se apresenta, após tudo o que se disse até o
momento, está ligado à problemática do grupo e seus cotidianos nas atividades da
escola. Nessas atividades, a interação permite o diálogo entre redes, estabelecendo
novos conhecimentos, novas ações e recriações. Pelos enunciados, temando sobre
a questão, nem sempre os grupos cumprem a sua função dentro da escola. O
trabalho em grupo vem sendo muito questionado.
Percebe-se, nos diversos enunciados, um diálogo privilegiado – em detrimento do
poder-saber que exclui e estigmatiza – com as novas tendências que verificam que o
currículo está ligado à identidade e à subjetividade como local privilegiado de
encontros e contradições entre modelos culturais ou enunciações culturais.
São perceptíveis, também, nos enunciados, a quebra de silenciamentos impostos
pela prescrição, a tentativa de inversão do estabelecido institucionalmente, a
invasão por outras vozes, da voz supostamente una detentora do poder
determinante de sempre ocupar o espaço do saber mediante a estrutura disciplinar.
7.5 O CONTEXTO DA IDENTIDADE :
Imediatamente, como bem vincula Bhabha, dois vocábulos existem em
reciprocidade. Intrínseca às discussões sobre diferença, abre-se um espaço para
atrair as questões sobre a identidade, um dos temas fundamentais para se pensar a
132
cultura. Aqui adotamos espaços T4, T10, T12; T13; dado à relevância do tema
entende ser necessário à inserção das várias vozes que tecem a identidade.
Não é porque nós quatro vamos ser formados numa mesma turma, que vamos ter o mesmo modelo de pedagogas, cada uma vai ser uma pedagoga de acordo com sua autonomia, de acordo com aquilo que eu aprendi, de acordo com o que eu vou produzir, de acordo com o que eu pesquisei (aluna T-4)
O que significa ser bom, o que significa ser carinhoso, o que significa amar o próximo, o que significa respeitar as diferenças? Tem essa questão da homossexualidade, como é que você pode conviver com a pessoa respeitando a pessoa que ela é, sendo o que ela é mesmo você não concordando com aquilo mas é possível se conviver com uma pessoa ela sendo algo que você não concorda mas você ao mesmo tempo respeitar aquilo, a posição dela, então a escola trabalha isso também e eu tenho achado isso muito interessante, eu acho que é assim que se forma a identidade do indivíduo.O currículo está sendo trabalhado nesse sentido, então cada conteúdo que é dado na questão de ciências, geografia, português, essas coisas, quando tem uma brecha então o professor lembra os valores, lembra o projeto que está sendo trabalhado. (aluno T-10)
Construção de identidade numa perspectiva da diferença com uma análise dentro da questão do poder, se eu vou dizer que as identidades são construídas, então eu já estou dizendo que elas não são fixas (professora T-10)
Todo mundo lá, nós podemos analisar não com a presença física das raças, das etnias, mais esse todo mundo lá vai mais além, a diversidade, a cultura, o pensamento. (aluna T-12)
Vivemos um momento de imenso debate sobre a questão da identidade. Até mesmo
as políticas afirmativas deixam por conta do próprio indivíduo a indicação de sua cor,
para o ingresso na universidade pelo sistema de cotas. Pensa-se, com isso, em
contribuir para a auto-afirmação dos afrodescendentes.
Inevitavelmente, esta pesquisa nos levaria a enfrentar o problemático tema da
identidade, já que suas hipóteses estão fortemente ligadas aos estudos culturais.
Nas narrativas dos/as atores/as comparece, também de forma contundente e
impositiva, essa discussão. Ora ligada à questão racial, sexual, regional ou ora
caracterizando o próprio espaço petrolinense da faculdade, os enunciados procuram
argumentar positivamente ao encontro de uma educação ou de uma sociedade que
considere a identidade dos sujeitos ou grupos.
133
Tratar de identidade significa gerar esforços para uma nova recontextualização e
emancipação, considerando-se os novos paradigmas, a pós-modernidade, a nova
subjetividade e as imposições imprescindíveis acarretadas pelos estudos das
identidades.
É muito importante ressaltar que os enunciados falam de identidade muitas vezes
referenciando a diferença. É certo que alguns pensam, como Souza (2000:259) que
vivemos em uma sociedade multiétnica que deve garantir o direito à pluralidade e às
diferenças, para recuperar a memória plural, a origem e desenvolvimento
miscigenado e híbrido, o orgulho de uma experiência cultural miscigenada, mesmo
que etnicamente possamos não apresentar traços de hibridismo porque
culturalmente percebemos e acreditamos com base em valores culturais de vários
povos. Muitos, entretanto, discordam, em suas falas, de que somos já, desde o
nascimento, no Brasil, híbridos na nossa maneira de pensar, agir e crer.
Está muito presente nas narrativas, a forma como Santos (1999:135) entende a
questão. Não existe identidade porque as identificações são plurais e determinadas
pela obsessão da diferença e pela hierarquia dessas diferenças. Bhabha (1998) por
sua vez, afirma que cada vez mais, o tema da diferença cultural emerge em
momentos de crise social, e as questões de identidade que ele traz à tona são
agonísticos; a identidade é reivindicada a partir de uma posição de marginalidade ou
em uma tentativa de ganhar o centro: em ambos os sentidos, excêntricos.
Algumas falas contemplam esse contexto, mas a discussão sobre identidade na sala
de aula requer, sem dúvida, uma melhor elaboração. Exige-se, porém, quase como
militância, ou como necessidade primordial, a determinação da identidade sobre
todos os processos respeitantes à educação.
Enunciados muito expressivos colocam a questão de como a diferença vem sendo
apresentada e interpretada dentro da sala de aula, em uma das práticas
pedagógicas da professora/pesquisadora.
134
Pegando o gancho de Márcia, eu quero saber como é que a escola, o currículo da escola, como é que nós, enquanto professores, temos trabalhado essas diferenças? Quando ela fala que já houve uma discussão aqui sobre a questão da homossexualidade, como é que nós no currículo temos lidado com essas diferenças para que o aluno construa a sua identidade? (aluno T-10)
Sobre esse contexto há relatos muito importantes para demonstrar como as
questões das diferenças estão presentes no dia-a-dia da escola. São relatos
coletados, em diferentes espaços, mas que se cruzam em cadeamentos:
Professores devem observar se realmente o meu sobrinho tem esse jeito. Ela havia notado que ele tinha algum jeito, quer dizer, nesse momento a professora, como ela me contou, percebeu, ela já estava dispensando qualquer possibilidade da criança ter uma manifestação afeminada, quer dizer, ela rejeitava isso, a opinião dela, a posição foi de quem já rejeitava isso porque ela achou que os colegas já evitavam, e se fosse realmente uma realidade do aluno dela? Se ele realmente tivesse vivendo esse conflito de identidade sexual? Se ele tivesse tendo manifestações afeminadas? (aluno T 10)
Tem uma fala de um livro que eu tava lendo de Fábio Vieira onde ele coloca que tem que romper com esse pensamento de que diferente é deficiente ou até que a diferença não é deficiência, que nós costumamos ver a diferença como deficiência e não é deficiência, é diferença, só isso. (professora T-7)
No seminário no Curso de História o contexto também se faz presente:
Quando ele fala da questão da paz, fica difícil você pregar a paz quando, na verdade, lhe impõem a guerra e, infelizmente, a luta contra o racismo tem que ser nesse jeito ainda, em forma de guerra, porque não dá pra você trabalhar uma paz, que paz você tem quando você chega no seu trabalho e o cara vai lá, te corrige de tal forma, você ficou em paz ainda? Continuou em paz? Então como eu vou ter uma paz de igualdade quando me pregam a diferença? E não vamos ser iguais em terra nenhuma, nós vamos sempre ser diferentes, é uma questão de aceitação, é uma questão de discutir, é uma questão do ser mesmo, da compreensão e do seu eu, eu sou o que sou, você é o que você é, mas nós vamos ser sempre diferentes, não vai existir a igualdade, podemos combater a discriminação racial, agora iguais não vamos ser nunca porque não existe esse tipo de igualdade. (membro do grupo dos quilombolas T14)
São falas que imprimem a convicção de que não estamos sozinhos, mas tentando
estabelecer conexões entre sujeitos e entre objetos, procurando dar conta de
conhecimentos, de aproximações, de poderes, de práticas discursivas, de formações
culturais e de uma visão social ampla que nos permite todo um cuntinuum de
significações tecidas em enunciados que querem, à sua maneira, avaliar práticas
exclusivas e desvelá-las. Estão aqui contempladas, nessas falas, as mais diversas
questões envolvendo objetos dos estudos culturais e a sua inserção, ainda que
transversalmente, no grande diálogo em sala de aula.
135
A identidade coloca também a problemática da exclusão. São vozes demonstrando
preocupação com o tema, nas práticas pedagógicas em sala de aula:
E a terceira que ela coloca construção de uma avaliação democrática imersa numa
pedagogia da inclusão, o que está mais presente no texto dela é a questão da inclusão, que a avaliação vem funcionando num processo excludente. (professora T-8)
Muitas vezes o próprio professor em sala de aula é preconceituoso sim, a gente
acha que, eu concordo que é uma questão da cultura que muitas vezes é bonitinha você dizer: não, mas eu sou uma pessoa que eu tenho consciência de que essa manifestação é uma forma também cultural. (aluna T-10)
Na nossa escola já tem, assim as escolas em geral elas discriminam muito a
questão do índio, em todas as instituições há a discriminação dos índios, não se respeita sua cultura como já foi também comentado aqui, não tem respeito o índio é excluído da escola. (aluna T-11)
E a diferença é maior ainda quando a gente vai olhar pro lado feminino, é que a
diferença é grande, aonde é que a mulher negra trabalha? (VOZES) ariando panela não é? Aonde é que a mulher branca trabalha? Aí vem a questão, vem a questão: vamos olhar uma coisa hoje, só pegando esse...(aluno T-14)
A identidade, a diferença e a exclusão participam, via os estudos culturais ou
exclusivamente sociológicos, lado a lado, implicados, das discussões sobre a
escola. São debates polêmicos que atraem estudos da sociedade, de grupos
políticos, de concepções de educação. É o conceito de diversidade que procura
amenizar posições excludentes. São os chamados movimentos sociais que
fomentam criticamente as denúncias contra a discriminação.
A questão da exclusão, ligada ao estranho, não é própria das minorias e está muitas
vezes ligada ao bloqueio do novo que não deve entrar no mundo (Bhabha,
2003:312). Diz ainda o autor que é muito fácil ver os discursos da minoria como
sintomas da condição pós-moderna, se considerar que as posições de minorias
encenam a forma simbólica de auto-identificação, representada através da
fragmentação e oclusão da soberania do “eu”, embora, nos enunciados dos/as
alunos/as, palestrando, os/as atores/as-enunciadores/as estejam incluídos na
exclusão.
136
É pertinente destacar que os sujeitos empíricos se têm como senhores de seus
próprios enunciados, abandonando as posições do simplesmente livresco, atraindo o
próprio senso comum, o cotidiano, as experiências vividas: as discriminações são
coisas que estão impregnadas na escola, na família, na rua e na sala de aula, como
adverte o enunciado.
7.6 O CONTEXTO PARADIGMÁTICOS:
A reivindicação de novas práticas aponta para uma nova escola, sustentada sobre
nova maneira de pensar a vida, o homem e a sociedade. É assim que surgem aquilo
denominado como novos paradigmas. As discussões sobre esse algo que se
apresenta como uma outra forma de pensar, que vai além do pensamento logicista
cartesiano e positivista, está contemplado nas falas dos alunos:
São decorrentes desse tema tantos outros temas como conhecimento e poder.
Ouçamos as vozes:
Estamos vivendo mudança de paradigma. (professora T-3) A questão da ideologia que todo muito pensa, que todas as pessoas reproduzem os mesmos gestos de sair na rua como passa na televisão, e a gente pensou assim, essa capacidade de não refletir, é de uma pessoa que não consegue ter uma idéia própria, que não consegue ter uma reflexão critica da sua realidade, isso aí a gente pensou é uma coisa que não tem na pós-modernidade, pelo menos a pós-modernidade já pensa um pouco a pessoa como alguém que é capaz de pensar, e a educação mesmo que não tenha dado grandes passos, nós temos discussões que já podem ser consideradas avanços, então já podemos considerar que nós somos mais ou menos pessoas criticas, se não sobre pós-modernidade eu não sei, mais a gente já consegui fazer uma ligação desse tipo. (aluna T-9).
Tem um texto que diz, e eu discordo, que a pós-modernidade nega toda a
modernidade, eu acho que não, a pós-modernidade surgi como instrumento de analise, eu entendo que a modernidades surgir como uma razão fixa, única, que não combate à fome, a sede, então a pós-modernidade surgi como instrumento de analise, se você afirma que a pós-modernidade nega tudo da modernidade então tudo aquilo que foi feito tem que ser desconsiderado, penso que não, se não você vai volta para a modernidade. (aluna T-9).
Em uma apresentação de trabalhos de grupo na disciplina em análise, as alunas
tecem um dialogo entre os dois paradigmas. São conteúdos previstos na disciplina
Currículos e programas:
137
Busco minha identidade dentro das minhas reflexões como: desconfio do progresso, será que ele é um mal necessário? (aluna T-13)
Não sou mais um homem, sou a dúvida em pessoa, não tenho certezas em minha
mente, contido não reclamo, melhor assim que viver enganado e até disseminando mentiras para os outros, inculcando nos outros a escuridão para suas vidas.isso fizeram e fazem ainda as metanarrativas, com interesse ou não, propunham verdades generalizantes, universais e sobre qualquer assunto. (Aluna T-13)
Catástrofes e todas as espécies de crise – identidade, poder, familiar, social, sexual,
educacional, científica, econômica - têm sido associadas ou surgem como o marco
de um novo momento histórico. Aliem-se a esses fatos os embates entre culturas,
como causas de conflitos e as outras transformações no campo da cultura e do
conhecimento científico ou não. Mesmo que não possa mensurar cientificamente tais
motores, o senso comum não cessa de afirmar que o mundo está mudado ou em
mudança, como percebendo que a modernidade entrou em contradição com o seu
próprio projeto, abrindo espaço para um novo tempo, um novo sujeito e novas
relações sociais.
Nos enunciados acima, articulados pelos/as alunos/as, percebe-se que a mudança
de realidade provocou revisões no discurso, ou mesmo que se transformaram
realidade e discurso. Esses enunciados permitem examinar o problema que nos
dispusemos a estudar. O processo de tessitura de identidade não fixa em cultura
hegemônica, porém, subverte-a e desestabiliza-a, impedindo qualquer fixação.
Nesta abordagem, o mundo social não está dividido para privilegiar, rompendo com
as estruturas de oposições binárias, que sempre centram em torno de duas classes
polarizadas. Observa que o homem deixa de ser o centro de tudo (sujeito
cartesiano) a partir do entendimento do seu descentramento onde a certeza é
substituída pela dúvida. Seu recolhimento apresenta-se como forma de resistência
às contradições postas pelo poder do pensamento hegemônico, abrindo
possibilidades de entrelugares: deslocamento que transita por territórios culturais
diferentes, um movimento do ir e vir, exigindo novas significações.
138
Existem, de fato, todas as dúvidas sobre a mudança de paradigmas e, inclusive,
atropelos visíveis quanto ao seu entendimento. Mas o que deve ser algo de especial
atenção é que existe um espaço pavimentado para trocas, diálogos e ações. A
vaquinha vitória é iconizada para a interpretação do novo tempo. Por sua vez, a
questão cultural aparece, além da abordagem teórica e analítica, como “sentimento”.
O cotidiano do curso, segundo, também, nossas próprias observações, demonstra a
complexa rede de interações que abre também para o encontro com culturas
híbridas e desconhecidas. Todo o discurso desconstrói os argumentos de exclusão a
partir das verdades universais, sendo o conhecimento em redes o balizador desse
enunciado do currículo, momento em que o cotidiano rompe com a rotina e se torna
um lócus de análise e intervenção.
Na teia desses novos paradigmas que entremeiam as discussões na sala de aula no
Curso de Pedagogia e no seminário do curso de História, um dos conceitos basilares
dessa nova análise é entre-lugar:
Pra começar, eu queria fazer assim, eu queria fazer uma regressão, com fazem na Yoga. Todo mundo vai fechar os olhos, todos sentados, posição ereta, respire, vamos fazer regressão, só que não vamos voltar pra o útero da mãe, a gente vai voltar a muitos anos atrás. Fechem os olhos e a gente vai fazer uma viagem ao nosso passado. (membro do grupo dos Quilombolas T-14)
E aí a gente, negócio de voltar não existe, nós temos que construir nossa luta aqui
e aí eu fiquei assim, pôxa, quer dizer que eu sou discriminado aqui, se eu voltar pra lá, então onde é que eu fico? No meio do Oceano Atlântico? Lembrou-me essa história, acabou com essa idéia minha de querer voltar pra África imediatamente, vim construir a liberdade aqui mesmo. (membro do grupo dos Quilombolas T 14)
O lugar da subjetividade não é esse daqui que impõe a exclusão, nem é o de lá, que
não é mais o mesmo, porque os sujeitos também não o são. O espaço, como o
próprio enunciado coloca é o da liberdade “aqui mesmo”, este lugar permeado por
tantos outros onde as enunciações culturais se façam presentes. Essa última fala vai
de encontro às falas que defendem a África-aqui, ou seja, desfaz as outras falas –
ligando as teses da pós-modernidade e “entre-lugar”.
139
Os estudos com os cotidianos acontecem em meio ao que está sendo feito.
Expressam o entremeado das relações das redes cotidianas, nos diferentes
espaços, tempos vividos pelos sujeitos cotidianos. Acontecem nos processos de
tessitura e contaminação dessas redes. A não-fixidez, essa condição espacial, o não
estar em lugar nenhum, tudo isso vem contribuir, nas práticas da escola, para se
pensar sobre as diversas interrogações que afligem os/as atores/as em suas
experiências com a realidade. Implicitamente, nas falas, a cultura acaba por orientar
os enunciados.
Pensar o cotidiano é atuar no território do interstício, do entrelugar, ou seja, nesse
cotidiano. O gosto de aventura de abrir espaço para a realidade, para situações,
criações e recriações, de experimentar no entrelugar das formas híbridas,
complexas e miscigenadas do próprio cotidiano.
O entrelugar é o do hibridismo dos conhecimentos no cotidiano da existência
humana. Hibridismo que tece teias de significações e impede que se estabeleçam
padrões culturais fixos e estáveis. Deve-se considerar a complexidade do saber e as
inúmeras modalidades de se estabelecer relações com esse saber.
7.7 O CONTEXTO DO HIBRIDISMO
Alguns enunciados colocam-se em redes de significações e interpretações com o
pensamento híbrido nos espaços:
Essa questão de você dizer: ah, sou descendente negro porque minha cor, minha pele é negra, tal, mais marrom, tal, aquela questão toda, mas veja bem, minha família é misturada, caramba, eu tenho gente de todo tipo, tenho índios em minha família, tenho brancos em minha família, eu tenho primos do olho verde, então como Bob Marley dizia, o meu pai era um almirante da escola inglesa, branco, minha mãe era uma negra, por que eu vou discriminar um ou outro? Não posso, não tem nem como, então eu não posso tomar partido de um lado, discriminando um, e deixar o outro lado, eu tenho que mais pregar o que? (aluno T-14)
O cotidiano é prenhe de zonas fronteiriças, redes em que as significações
interagem, abrindo possibilidades de entrelugares: deslocamentos que realizam
140
estranhamentos, como uma ponte que nos leva a transitar por territórios culturais
diferentes, realizando uma estranha tessitura de caminhar: aqui e lá, de todos os
lados para lá e para cá, para frente e para trás num movimento de ir e vir, no
território do inter, nos invadindo e nos desnorteando, provocando, distanciando do
familiar e exigindo novas significações, como compreende Bhabha. Os enunciados
destacados estão dispersos no híbrido em sentido literal, mas conseguem avançar
para uma tendência constitutiva do entrelugar. Nem isso, nem aquilo, parecem ser o
pensamento que norteia a avaliação ou mesmo as formas de se pensar a
identidade. Nem certos, nem errados, apenas maneiras de ver aquilo que é o real,
mas que pode também ser criada.
141
8-INCONCLUSO
A importância dos estudos sobre Currículo e Estudos Culturais vai se configurando
no reconhecimento de que esses serão sempre analisados a partir dos espaços que
vão sendo tecidos, que se abrem para diferentes interpretações, pois permitem a
compreensão dos escritos no/do cotidiano, tecidos nas vozes presentes neste
espaço prenhe de surpresas e de dúvidas.
Nos diversos processos desenvolvidos em salas de aulas ligados ao conhecimento,
às vivências individuais em experiências coletivas, os enunciados que se
apresentaram e se doaram de forma voluntária e aleatoriamente, deram voz a esta
pesquisa, contribuindo para que possamos perceber que aquilo que denominamos
complexidade já se instalou dentro das salas de aulas, não de maneira
institucionalizada, mas em parte constitutiva, ao menos, nos diversos discursos
dos/as alunos/as por uma necessidade de expressarem as suas angústias e
contribuições. Trata-se de vozes que, mesmo equivocadas diante daquilo que
tomamos como raciocínio lógico ou lógico semântico, apontam para a proliferação
de sentidos, para a heterogeneidade, para a tessitura de algo que pode ser
chamado de realidade.
No tocante ao currículo, constatamos, a partir deste estudo, que o currículo da FFPP
é tecido nas práticas discursivas, não se reduzindo apenas à sala de aula, mas na
amplitude do cotidiano. Sendo assim, a vivência do currículo contribui na tessitura da
identidade, dada a partir da sua dimensão nesse cotidiano – nas falas, nos
encontros, nas vozes de sala de aula e no contexto como um todo. Neste sentido,
reiteramos que o conhecimento é tecido em rede.
O trabalho foi iniciado traçando um contexto histórico da problemática do estudo,
abrindo mão das idéias totalizadoras ou universais, como nos sugerem os autores:
Bhabha e Boaventura. O desafio que se coloca é que devemos lidar com os
enunciados que irão expressar a tessitura de identidade.
142
Nos diferentes discursos, encontramos atores que transformam o espaçotempo a si
próprio e as práticas de percepção de um cotidiano vividos na arte de inventar.
Caberia observar, principalmente, que não existe cotidiano, mas cotidianos. O
processo de tecer o conhecimento em redes questiona o modelo do conhecimento
em árvore, provocando revisões na tessitura do currículo. Nesse sentido, é no
cotidiano que se desenvolvem práticas específicas. Este cotidiano não é constituído
de indivíduos passivos, simplesmente assujeitados por práticas disciplinadas.
No tocante à cultura, percebemos que esta deve ser encarada como domínio
hermenêutico, tecida sobre múltiplas interpretações. As culturas são discursos e
evocam sentidos. São, sobretudo, significações. Uma cultura percebida, implícita e
desvelada pela dinamicidade, na multiplicidade suscita novas produções dos
sentidos.
A cultura ordinária oculta uma diversidade fundamental de situações, interesses e
contextos, sob a repetição oponente dos objetos de que se serve. A pluralização
nasce do uso ordinário, daquela reserva imensa constituída pelo número e pela
multiplicidade das diferenças. Uma das mais recentes tendências quanto aos
estudos curriculares é a de ligar o tema às questões culturais. Os Estudos Culturais,
que tiveram sua origem na Inglaterra, vêm influenciando significativamente a
questão do currículo, como se ressaltou acima. É pertinente, portanto, o que
afirmam Moreira & Silva (1994). A cultura é o terreno em que se enfrentam
diferentes e conflitantes concepções de vida social, é aquilo pelo qual se luta e não
aquilo que recebemos.
Chegamos, então, àquilo que se discute como sendo os Estudos Culturais na
atualidade, um espaço para o qual converge a tessitura de seus sentidos,
constituídos de interesses sociais e políticos diversos, em lutas travadas nos dias
atuais. Silva, (1995) ao identificar as dimensões de tais estudos e seus diversos
efeitos, defende uma discussão relacionada à sua história intelectual, sem
definições, filiações, afinidades e sem futuro.
143
Os Estudos Culturais têm sido vistos como uma espécie de processo, uma alquimia
para produzir conhecimento útil sobre o amplo domínio da cultura humana. Trata-se,
agora, de uma alquimia que se aproveita dos muitos campos principais de teoria das
últimas décadas, desde o marxismo e o feminismo até a psicanálise, o pós-
estruturalismo e o pós-modernismo. Afirma, ainda, que sua metodologia deve ser
entendida como uma bricolagem. A metodologia que escolhi pode fornecer
importantes insights e conhecimentos.(Silva, 1995:10)
Essas vozes outras trazem, à tona, a idéia de uma escola múltipla e que privilegie a
discussão sobre a cultura porque é esse o substantivo que tudo amplia e tudo
sintetiza. São vozes que reivindicam e que resistem em torno de uma compreensão
ampla da complexidade e da variedade do mundo, como afirma Boaventura.
As questões sobre a cultura e, mais especificamente, sobre a tessitura da identidade
cultural, atravessam todos os enunciados, naquilo que os estudos culturais colocam
como a cultura não da pobreza – essa não é assumida e contra a mesma as falas
demonstram resistências – mas da sobrevivência, que inverte a percepção cultural,
traz a idéia de ação, de intervenção, de criatividade, de coragem, de cooperação, de
solidariedade, de enfrentamento. Algo produzido nos entrelugares e que, por uma
questão também de sobrevivência, hibridiza-se com a emergência do imediato, com
os múltiplos contextos, com os demais discursos que lhe dão sentido. Não é
perceptível apenas e implicitamente o local da cultura nordestina, ribeirinha,
caatingueira, mas, explicitamente, o local dos enfrentamentos e das resistências
frente ao sistema senhor da cultura.
Os enunciados que vislumbram essa nova análise colocam, com muita propriedade,
a compreensão de que o currículo tem de considerar os espaços cotidianos, a
hibridação, a complexidade dos processos da produção de sentidos numa sociedade
que deve ser solidária, mas que precisa se ver enquanto diversidade, diferença e
cujas ações devem destacar práticas identitárias.
144
Nenhuma das vozes presentes, nesse trabalho, é uma voz individual, pois elas só
foram compreendidas, integrando-se ao caso complexo das outras vozes já
presentes. Isso é verdadeiro não apenas para essa pesquisa, mas também para
todo discurso e conduziu ao esboço de uma nova interpretação da cultura: a cultura
é composta de discursos que retêm a memória coletiva. Memória em tessitura,
afirmamos:
Os enunciados, em seus diálogos incessantes com os outros, livrescos ou não, na
relação orgânica entre os seus vários aspectos, funcionaram como um elo verbal de
uma determinada esfera da comunicação verbal, fronteiras determinadas muitas
vezes pela alternância dos sujeitos falantes, jamais indiferentes uns aos outros,
refletindo-se mutuamente, reflexão que determina o caráter.
Tratam-se de enunciados envolvidos pelas lembranças de outros enunciados, elos
do diálogo, quer como resposta, réplica, refutação, confirmação ou para completá-
los, basear-se neles, instaurando a heterogeneidade, o hibridismo, as diferenças ou
identidades, em torno de referencialidades e sentidos constitutivos de todo
enunciado. Aquilo que poderia ser chamado de tema (Bakhtin) e sobre os quais,
ainda que involutariamente, os enunciados aparentemente se dirigem. Trata-se, na
verdade o todo do enunciado como um ato discursivo que está direcionado ao tema,
não à palavra, frase ou ao período. A significação, elemento abstrato igual a si
mesmo, é absorvida pelo tema e dilacerada por suas contradições vivas, para
retornar, enfim, sob a forma de uma nova significação com uma estabilidade e uma
identidade igualmente provisórias.
Nesse sentido, podemos falar de enunciados ou falas, e não de temas que
aprisionariam o nosso entendimento e limitariam a integralização interpretativa. Mas,
as falas dizem por si, entre si, muito mais que qualquer hierarquização temática ou
metodológica. Como não ouvir as vozes? Após longa jornada pelos cotidianos da
faculdade de Petrolina, ecos de falas justificam o fazer da educação e o nosso fazer
pesquisa?
145
REFERÊNCIAS
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conservadora. Trad. Maria Isabel Edelweiss Bujes. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
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