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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO
CHARLENE SALES BICALHO
ALÉM DA SUPERFÍCIE: IMPACTOS DO DESENVOLVIMENTO NA
PESCA ARTESANAL DE REGÊNCIA AUGUSTA - ES
VITÓRIA 2012
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CHARLENE SALES BICALHO
ALÉM DA SUPERFÍCIE: IMPACTOS DO DESENVOLVIMENTO NA
PESCA ARTESANAL DE REGÊNCIA AUGUSTA - ES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Administração (Mestrado/2010) da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES (PPGAdm), como requisito total para obtenção do Grau de Mestre em Administração. Núcleo de Estudos em Tecnologias de Gestão e Subjetividades.
VITÓRIA 2012
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Banca examinadora
_________________________________________ Prof. Orientador
Dr. Ricardo Roberto Behr Universidade Federal do Espírito Santo
_________________________________________ Profa. Co-orientadora
Dra. Aline Trigueiro Vicente Universidade Federal do Espírito Santo
_________________________________________ Profa. Dra. Winifred Knox
Universidade Federal do Espírito Santo
_________________________________________
Prof. Dr. Eloísio Moulin de Souza Universidade Federal do Espírito Santo
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Aos pescadores de Regência Augusta. Às retinas hipnotizadas, mareadas por lembranças das marés de outrora.
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AGRADECIMENTOS
A minha mãe, Inez, pelo estímulo em prol da retomada aos estudos, ao meu pai,
Toninho, pelas conversas a respeito dos novos caminhos, enfim, ao amor
incondicional de ambos durante minha existência. Ao meu irmão, Charles, pelo
incentivo ―E a pesquisa do Mestrado?‖. A minha ―irmã‖ Mariana pelas sessões de
terapia quase semanais via Skype.
À sua generosidade, carinho e atenção a mim dedicados em qualquer dia, hora e
lugar. Talvez você já saiba disso, mas foi o melhor que pude fazer Mestre João
Gualberto. Ao orientador Ricardo, por me aceitar como orientanda sem restrições em
um momento onde a transição seria decisiva para continuidade desse trabalho. A
co-orientadora, Aline, pelas inúmeras releituras assíduas do trabalho sempre em
reconstrução e, sobretudo por me traduzir nas entrelinhas das reinvenções de quem
eu era.
Aos amigos que foram por mim adotados como família, obrigado por me aceitarem
como filha, irmã, amiga – Pai Adelson, Mãe Iorrana, Rodreiau e Rafa. Ao Mestre
Militão que devido à ―cegueira‖ do Sr. César me apresentou parte do mundo que
desbravou. Aos amigos que me receberam como irmã em suas vidas Thi, Romin,
Zampera, Matheuzim e Dedé.
Aos que me acolheram em Regência sem sequer me conhecerem Perut, Profeta, D.
Ilda, Verônica, Leydilú, Xismar. Em especial a família da Mãe Iná, pelas lembranças
da casa da minha avó nos almoços de domingo, única casa onde até hoje consigo
dormir quando não encontro lugar dentro de mim. Aos meus vizinhos Solange e
Budega por me salvarem nos momentos de dificuldade, pelos escambos realizados
na cerca, por me ensinarem com paciência coisas simples da vida. Às crianças Davi,
Maria Clara, Mateus, Nícolas, Marlon, Taissa, Natalissa e Pescador por me
ultrapassarem com a pureza necessária ao meu convívio diário. Às portas abertas
das casas dos amigos que me receberam durante minhas idas a Vitória.
Aos que sempre estavam à disposição para me fornecerem informações que não
encontramos nos livros, mas nas palavras de quem pensa com os pés e faz com as
mãos – Carlos Sangália, Bibiu e Aline. Em especial ao Pescador companheiro de
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conversas travadas embaixo de miragens, encima das paisagens, sobre duas rodas;
obrigada por me demonstrar através das atitudes à paciência que o mundo espera
de nós.
Aos pescadores que permitiram minha entrada em suas casas, em terra, no rio ou
no mar. Obrigada por me apresentarem quem eu sou no mar, pela experiência una
de sentir o sabor do mar em terra. Obrigada pela contemplação dos infinitos tons em
alto mar, pelos ensinamentos que atravessaram a imensidão das águas em cada
olhar. Aos pescadores, heróis da Barra Sul do rio Doce, em especial: Sô Paulo, Flor,
Cuíca, Dudú, Luís Preto, Audir, Eduardo, Pascoal, Hermínio, Abel, Humberto,
Monstro, Mário, Bebeto, Pedro Cabeludo, Paizinho, Aldo, Zé, Grimaldo, Monserrá,
Darci, Índio, Zezelo e Bachá.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela concessão
da bolsa de estudos que me possibilitou realizar tal pesquisa.
À Cris e ao Zé Carlos, pelos inesquecíveis momentos de solidão, somente possíveis
devido minha estadia na Casinha de Boneca. Local onde alcancei encontros de paz
na solidão.
Obrigada a todos.
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RESUMO
Este estudo mostra como os pescadores artesanais de Regência Augusta, distrito de
Linhares – ES, ressignificam seus trabalhos pesqueiros e práticas sociais perante
Projetos de Grande Escala (PGE´s) implantados tanto o rio Doce quanto no espaço
marítimo. Pretende-se investigar a partir do olhar dos pescadores como ocorre o
processo de transformação na prática pesqueira frente aos impactos ocasionados
por esses investimentos. A pesquisa participante foi realizada na comunidade, por
meio de metodologia qualitativa, no intuito de compreender a dinâmica dos
pescadores artesanais de Regência Augusta, suas crenças, valores, atitudes e
hábitos. A análise baseia-se em duas direções. Por um lado, relatos dos moradores
e relatórios ambientais oficiais. Por outro, a descrição de duas reuniões do Plano de
Compensação da Atividade Pesqueira da Pesquisa Sísmica Marítima 4D (PCAP), a
partir da visão dos pescadores. A observação e análise nos levam aos seguintes
resultados: a alteração das áreas de pesca antes realizada predominantemente no
rio para o mar; inserção de novas modalidades pesqueiras; surgimento de novas
ocupações e formas de trabalho; restrição da área de pesca devido pesquisas
sísmicas realizadas na região por uma empresa do setor petrolífero; conflitos entre
pescadores.
Palavras-chave: Regência Augusta. Pesca artesanal. Pesquisa sísmica marítima.
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ABSTRACT
This study shows how the fishermen of Regency Augusta, district of Linhares-ES,
ressignificam fishing and social practices in its work towards large-scale Projects
(PGE ´ s) deployed both the rio Doce and maritime space. Want to be investigated
from the look of the fishermen as the process of transformation in practice against
fishing impacts caused by these investments. The survey was carried out in the
community, participating through qualitative methodology, in order to understand the
dynamics of artisanal fishermen, their beliefs, Regencia Augusta, values, attitudes
and habits. The analysis is based on two directions. On the one hand, the villagers
reports and official environmental reports. On the other hand, the description of two
meetings of the compensation plan of the Fishing Activity of 4 d Seismic Survey
(PCAP), from the view of fishermen. The observation and analysis lead us to the
following results: the modification of fishing areas held predominantly in rio to before
the sea; insertion of new fishing methods; emergence of new occupations and forms
of employment; restriction of fishing area because of seismic surveys carried out in
the region for an oil company; conflicts among fishermen.
Keywords: Regencia Augusta. Small-scale fishing. Seismic survey.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Vila de Regência Augusta e foz do rio Doce _______________________ 25
Figura 2: Embarcação rebocando os arranjos de canhões de ar _______________ 77
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LISTA DE FOTOGRAFIAS
Fotografia 1: Caboclo Luis Preto _______________________________________ 28
Fotografia 2: Casas antigas da Vila _____________________________________ 36
Fotografia 3: Rio Doce _______________________________________________ 37
Fotografia 4: Pescaria de rede de espera no rio Doce _______________________ 48
Fotografia 5: Ilhas no meio do rio Doce devido ao assoreamento ______________ 49
Fotografia 6: Farol novo ______________________________________________ 53
Fotografia 7: Ponta da Aninga _________________________________________ 53
Fotografia 8: Pesca de espinhel no mar, Abel e Monstro _____________________ 55
Fotografia 9: Hermínio retirando rede de pesca ____________________________ 57
Fotografia 10: Flor (à esquerda) e Audir durante pescaria ____________________ 58
Fotografia 11: Hermínio molhando as manjubas ___________________________ 59
Fotografia 12: Hermínio (à direita), Audir (à esquerda) ______________________ 59
Fotografia 13: Monstro, durante pescaria de espinhel no mar _________________ 60
Fotografia 14: Mar na Boca da Barra ____________________________________ 61
Fotografia 15: Bandeira e espinhel no mar _______________________________ 62
Fotografia 16: Abel iscando o espinhel com manjuba _______________________ 64
Fotografia 17: Monstro lançando o espinhel ao mar ________________________ 64
Fotografia 18: Cuíca direcionando o espinhel _____________________________ 65
Fotografia 19: Cuíca e balsa ao fundo durante pescaria de espinhel ____________ 65
Fotografia 20: Monstro e Abel desembolando o espinhel ____________________ 66
Fotografia 21: Peixe ainda submerso capturado ___________________________ 67
Fotografia 22: Peixes capturados durante pescaria de espinhel _______________ 67
Fotografia 23: Monstro e Abel recolhendo o espinhel _______________________ 69
Fotografia 24: Abel e Monstro retirando a barrigada do baiacu ________________ 69
Fotografia 25: Unidade Operacional de Lagoa Parda _______________________ 73
Fotografia 26: Terminal Aquaviário de Regência ___________________________ 73
Fotografia 27: Cavalo de extração ______________________________________ 74
Fotografia 28: Lanche servido aos pescadores durante a reunião ______________ 86
Fotografia 29: Reunião no Centro Ecológico do Projeto Tamar ________________ 87
Fotografia 30: Reunião no Centro Ecológico do Projeto Tamar ________________ 91
Fotografia 31: Bloco Valete de Ouro ___________________________________ 104
Fotografia 32: Banda de congo São Benedito de Regência __________________ 104
Fotografia 33: Banda de congo São Benedito de Regência __________________ 105
Fotografia 34: Festa de derrubada do Mastro ____________________________ 105
Fotografia 35: Forró na Choupana da Praia ______________________________ 106
Fotografia 36: Surfista na praia _______________________________________ 106
Fotografia 38: Pescadores na sul do rio Doce ____________________________ 108
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LISTA DE MAPAS
Mapa 1: Mapa da divisão regional do Espírito Santo ________________________ 32
Mapa 2: Mapa hidrográfico do Espírito Santo _____________________________ 39
Mapa 3: Localização das áreas ________________________________________ 72
Mapa 4: Mapa das áreas de influência ___________________________________ 75
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Modalidades de pesca estuarina. ______________________________ 35
Quadro 2: Espécies predominantes nas pescarias _________________________ 54
Quadro 3: Efeitos das ondas sísmicas ___________________________________ 78
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LISTA DE SIGLAS
ASPER – Associação de Pescadores de Regência ELPN/IBAMA – Escritório de Licenciamento das Atividades de Petróleo Nuclear / Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis FINDES – Federação de Indústrias do Espírito Santo IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis PCAP – Plano de Compensação da Atividade Pesqueira da Pesquisa Sísmica Marítima 4D PGEs – Projetos de Grande-escala PSF – Programa Saúde da Família SEAP – Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca SIE – Selo de Inspeção Sanitária Estadual
RIMA – Relatório de Impacto Ambiental
UN – Unidades de Negócios UO-ES – Unidade Operacional de Exploração e Produção do Espírito Santo
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SUMÁRIO
CAPÍTULO I – PORTEIRA SUL DO RIO DOCE ___________________________ 24
1.1 LÓCUS DE INVESTIGAÇÃO ___________________________________ 24
1.2 MARCO TEÓRICO – DISCUTINDO ALGUMAS CATEGORIAS ________ 40
CAPÍTULO II – REFLEXOS ACIMA DA LINHA D’ÁGUA ____________________ 47
2.1 REFLEXOS NA ÁGUA ________________________________________ 47
2.2 DIÁRIO DE CAMPO – REDE DE ESPERA NO RIO DOCE ___________ 56
2.3 DIÁRIO DE CAMPO – PESCARIA DE ESPINHEL __________________ 59
CAPÍTULO III – REFLEXOS SUBMERSOS ______________________________ 70
3.1 AS PESQUISAS SÍSMICAS MARÍTIMAS _________________________ 70
3.2 ―PARABÉNS, FOI UM PROCESSO DEMOCRÁTICO!‖ ______________ 82
CONSIDERAÇÕES FINAIS ___________________________________________ 93
REFERÊNCIAS ____________________________________________________ 97
APÊNDICES _____________________________________________________ 100
APÊNDICE A – VIAGEM __________________________________________ 100
APÊNDICE B – SEJAM BEM-VINDOS _______________________________ 103
APÊNDICE C – ―CABOCLO‖ BERNARDO _____________________________ 108
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INTRODUÇÃO E NOTAS METODOLÓGICAS
O presente estudo parte da premissa de que mudanças sociais ocasionadas por
Projetos de Grande-escala (PGEs)1 trazem transformações aos modos de vida
cotidianos e, por conseguinte às formas de trabalho, como nos indica o campo da
pesca artesanal do distrito de Regência Augusta/ES. Nesse sentido, temos a
intenção de compreender a partir do olhar dos pescadores como vem ocorrendo
esses modos de ressignificação no trabalho, ou seja, suas alterações ao longo do
tempo.
A pesca artesanal em Regência/ES vem passando por um processo de
transformação, sobretudo devido aos impactos gerados pelos PGEs instalados na
localidade e por seus desdobramentos. Nesse trabalho destacaremos a maior
empresa do setor petrolífero do Brasil como geradora de impactos ocasionados por
pesquisas sísmicas marítimas, que por sua vez visam à descoberta de novas
reservas de petróleo e de gás natural.
Num primeiro momento, percebe-se que a atividade pesqueira artesanal vem
sofrendo com a perda do uso do espaço marítimo. Entretanto o tema se revela
abrangente devido à riqueza de relações entre os atores locais2 e os outsiders3 no
campo de desenvolvimento, além de outros fatores que também refletem nas
atividades pesqueiras. Para Ribeiro (2008) o campo de desenvolvimento é
constituído por populações locais; empresários privados, funcionários e políticos em
todos os níveis de governo; pessoal de corporações nacionais, internacionais e
transnacionais; e pessoal de organizações internacionais de desenvolvimento.
Sendo assim, tal reflexão se faz de suma importância para futuras interpretações de
como os pescadores lidam com os atores do campo do desenvolvimento.
A escolha de Regência Augusta como lócus desse estudo deve-se a sua localização
na foz do rio Doce, maior corpo de água doce do Estado do Espírito Santo, alvo de
1 Termo utilizado por Ribeiro (2008) para designar projetos alicerçados por instituições como
organizações governamentais e multilaterais, escolas de engenharia, bancos e corporações industriais. 2 População local.
3 Instituições de desenvolvimento.
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interesse das grandes empresas implantadas na região. Outro fator decisivo são as
compensações ambientais realizadas na comunidade pesqueira devido aos estudos
sísmicos marítimos que vêm ocorrendo nessa área. A avaliação sísmica é um
método utilizado visando à descoberta de depósitos de petróleo e gás, por meio da
emissão de ondas sonoras que se propagam no fundo mar.
Tais pesquisas têm promovido alterações na prática pesqueira, principalmente por
restringir a área de pesca dos pescadores de Regência Augusta, dentre outras
comunidades pesqueiras. Embora essas comunidades sejam recompensadas
financeiramente, nos diz Portuguez (2009) ―que o modelo de desenvolvimento
Brasileiro, onde multinacionais se instalam com a promessa de melhorar as
condições econômicas da comunidade gera uma crescente despolitização da
população tendo em vista que seu papel se reduz a aceitar passivamente o apoio
incondicional que lhes é ofertado‖ (tradução livre).
O presente estudo concentra-se, portanto, em entender os mecanismos de
adaptação social e mudanças no trabalho pesqueiro por meio de observação
participante, permitindo, dessa forma, compreender como o cotidiano dos
pescadores transforma-se frente a tais impactos gerados. O trabalho em questão
visa responder a seguinte problemática: ―Como os pescadores artesanais de
Regência Augusta ressignificam seus trabalhos pesqueiros e práticas sociais,
sobretudo diante reflexos gerados por Projetos de Grande Escala (PGE´s)?‖. Sendo
assim, o objetivo converge com a abordagem qualitativa que segundo Minayo (1994,
p. 23) visa compreender a realidade humana levando em consideração a
subjetividade existente entre as relações sociais que, por sua vez, são compostas
por crenças, valores, atitudes e hábitos.
Nesta investigação, utilizamos como fontes e procedimentos para obtenção de
dados: a) o levantamento bibliográfico sobre o contexto sócio-histórico do Espírito
Santo e de Regência Augusta; b) a pesquisa documental, na qual foram analisados
os Projetos de grande-escala implantados e a serem implantados na região; c) os
registros fotográficos realizados durante toda a pesquisa; d) as entrevistas não
estruturadas realizadas durante acompanhamento nas pescarias e também fora
delas; e) a observação participante com registro em diário de campo. Abaixo
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relataremos como se deu a interação da pesquisadora com a comunidade em
questão.
Os rastros da pesquisa de campo
Inicialmente buscou-se realizar um levantamento sócio histórico da comunidade de
Regência Augusta por meio de trabalho de campo identificando elementos-chave
para definição do objeto de estudo, até então não definido. Os primeiros contatos da
pesquisadora com o lócus de pesquisa deram-se por meio de observações livres,
durante os meses de junho 2010 a fevereiro de 2011. No intuito de estabelecer
relações de convivência com os moradores de Regência a pesquisadora pernoitou
na casa de nativos e de ―pessoas de fora4‖ que moram no campo de pesquisa há
alguns anos, durante as observações esporádicas. Enquanto era vista pelos de fora
como ―mais um‖ querendo morar em Regência, para os nativos era um elemento
perturbador, tendo em vista a ausência de informações ao seu respeito. No intuito de
amenizar tal fato a mesma obteve ajuda de um informante que a apresentou para
algumas pessoas da comunidade.
Devido as suas peculiaridades, o cotidiano dos pescadores chamou atenção da
pesquisadora. Dessa forma ele então passou a ser observado com mais acuidade.
Ouvir estórias de pescadores, do Caboclo Bernardo e do Mestre Miúdo auxiliaram
na compreensão de onde vinha a coragem daqueles homens para transpor a Boca
da Barra. Acompanhar os festejos religiosos e profanos também ajudou a desvendar
a dinâmica social local. Percebe-se que durante a trajetória da pesquisa exploratória
feixes de luz foram lançados em direções diversas, entretanto tantas possibilidades
proporcionaram maior aproximação nas relações estabelecidas no campo
observado.
A pesca em Regência Augusta foi então eleita como objeto de estudo devido os
motivos citados anteriormente. A maturidade trazida pelo tempo permitiu que fossem
realizados diversos recortes em torno do objeto até culminar nos reflexos
4 Categoria utilizada para denominar aqueles que fizeram da vila sua morada, diferente daqueles que
nasceram e vivem em Regência. Tal categoria inclui principalmente os profissionais do meio ambiente.
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decorrentes das pesquisas sísmicas marítimas desenvolvidas por uma empresa do
setor petrolífero, na pesca de Regência Augusta. Sendo assim, o ambiente natural,
sobretudo os espaços marítimos, tornou-se o pilar de sustentação da pesquisa, tanto
pelo valor simbólico quanto pelo valor prático.
A fotografia, escolhida pela pesquisadora como instrumento de investigação, foi
aceita pelos moradores, tornando-se seu passe livre para caminhar pela cidade
sobre a identidade de fotógrafa. De instrumento para coleta de dados a fotografia
passou a ser um elemento de interação entre a pesquisadora e a população da Vila.
Algumas fotografias foram reveladas e posteriormente entregues aos fotografados
como restituição que de acordo com Eckert e Rocha (2008, p. 1) é ―[...] o retorno ao
grupo pesquisado das informações e dados que o (a) etnógrafo (a) deles retirou
quando de sua estadia entre eles‖.
As entrevistas informais realizadas entre maio de 2010 e janeiro de 2012 com
perguntas abertas passaram a girar em torno das fotografias. Para Marconi e
Lakatos (2007, p. 199) ―o entrevistador tem liberdade para desenvolver cada
situação em qualquer direção que considere adequada‖. Cabe salientar que desde
então se realizou notas de campo que posteriormente foram transpostas para o
caderno de campo. Enquanto a fotografia permitiu a construção do conhecimento
juntamente com o fotografado, em um processo de interação na qual os vínculos de
pesquisador-pesquisado foram transpostos.
Devido à necessidade de organização, as fotografias foram classificadas5 e
arquivadas no banco de dados da pesquisadora. Em seguida as mesmas foram
selecionadas e posteriormente postadas no flickr6, um site da web de hospedagem e
partilha de imagens fotográficas caracterizado também como rede social. Tal
iniciativa foi realizada no intuito de dar retorno aos que não receberam as fotos
reveladas, bem como compartilhar as imagens com os que não são da comunidade.
5 Animais, artesanato, congo, crianças, diversão, empreendimentos, nativos, Tamar, paisagens,
pesca, quintais, reuniões e turistas. 6 www.flickr.com/photos/charlene_bicalho.
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Ciente do acesso restrito da comunidade a internet, bem como, da inviabilidade
econômica de revelar todas as fotos que foram tiradas durante o trabalho de campo,
a pesquisadora realizou uma exposição7 fotográfica no Centro Ecológico do Tamar,
em Regência Augusta, durante a festa de Carnaval (março/2011). Comentários de
incentivo sobre a exposição foram recebidos, como: ―Será bom ver Regência com o
olhar de uma pessoa de fora‖ (Jorge, comerciante, nativo), assim como comentários
do tipo ―Não fui ver sua exposição porque vejo essas pessoas que fotografou aí
todos os dias ao vivo‖ (Pedro, pescador). O local e o período em que as fotografias
foram expostas podem ter influenciado na visitação da exposição por parte dos
nativos. Entretanto cabe ressaltar que a utilização de tal recurso visual se fez de
suma importância no processo de divulgação do conhecimento.
Após oito meses de pesquisa exploratória o problema de pesquisa foi delimitado
dando então prosseguimento à segunda etapa da coleta de dados, na qual se
realizou observação participante, que ―[...] consiste na participação real do
pesquisador com a comunidade ou grupo‖, Marconi e Lakatos (2007, p. 196). Após
cerca de quatro meses procurando uma casa para alugar por um preço acessível,
somente em março/2011, após o veraneio e o Carnaval, foi possível negociar o
aluguel de uma casinha. Dessa forma a pesquisa passou a ser desenvolvida no
lócus de estudo, onde até hoje reside a pesquisadora.
Na ocasião, carregou na bagagem a confiança de que as relações estabelecidas
durante os feriados e finais de semana seriam imediatamente estreitadas. Mas não
foi exatamente o que aconteceu. Viver o cotidiano dos nativos sem compartilhar das
mesmas referências, ao mesmo tempo sem abandonar seu quadro de referências
alicerçado por experiências passadas, foi doloroso. Nesse processo, segundo
Bachelard (apud BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2004, p. 19) ―o
conhecer deve evoluir com o conhecido‖.
Fazer do lócus de pesquisa sua morada forçou a pesquisadora a permear
dimensões de tempos diferentes que passaram a conviver simultaneamente. Ela
7 Com o apoio da Secretaria de Cultura de Linhares e da Full Color Linhares. Todas as pessoas
retratadas assinaram o termo de exibição de imagem, e receberam uma cópia da foto exposta de lembrança. A mesma exposição foi realizada em Linhares e no I Seminário de Ciências Sociais da UFES.
20
teve que adaptar-se há um tempo ao qual não pertencia, o tempo dos quintais, dos
animais, das marés, dos cafés, dos ventos e das chuvas. As compreensões de
tempo do meio rural o urbano, foram marcadas por náuseas devido à intensidade de
luzes e sons aos quais estava exposta. Presenciou sua própria morte por diversas
vezes, morte do que acreditava poder fazer em prol do outro, morte do que gostaria
de construir naquela comunidade. Todos esses momentos foram simplesmente
necessários para a reconstrução de suas identidades.
No intuito de permear o universo dos pescadores a pesquisadora passou a realizar
as entrevistas não estruturadas durante as pescarias. Foram acompanhadas no total
8 pescarias, durante os meses de março a setembro de 2011, totalizando 20
entrevistados. Nas primeiras pescarias tentou-se gravar as entrevistas, mas notou-
se que o instrumento era mais um fator inibidor, sendo assim foram realizadas notas
de campo durante as pescarias. Essas foram posteriormente transcritas e
categorizadas por temas no intuito de facilitar a organização das informações.
Salientamos que fora as entrevistas realizadas com os pescadores durante as
pescarias, também foram realizadas entrevistas com demais moradores durante
toda a vivência da pesquisadora, permitindo assim melhor entendimento da
dinâmica local.
Inicialmente foram formuladas algumas perguntas pontuais a cerca da problemática
do trabalho, contudo não se obteve sucesso. Ao invés de uma ―fusão de horizontes‖
o que no entender de Oliveira (2006, p. 24) seria um diálogo entre iguais, a
pesquisadora acabou gerando alguns confrontos. A questão do gênero também
contribuiu inicialmente para tal confronto, pois uma mulher não era bem aceita pelas
esposas e pelos pescadores mais experientes, sobretudo participando de uma
atividade reconhecida como exclusivamente do gênero masculino.
A inserção durante as pescarias, principalmente em alto mar foi marcada por
desencontros propositais. Tornou-se normal o fato de alguns pescadores informarem
o horário errado para que não fossem acompanhados nas pescarias. Sendo assim,
a forma de coletar os dados foi modificada, o ponto chave das conversas travadas
entre entrevistadora e entrevistados passou a ser o cotidiano de ambas as partes.
Dessa forma descortinaram-se questões que auxiliaram no recorte do objeto.
21
Também se alterou o foco em acompanhar as pescarias com os pescadores mais
velhos, pelos pescadores mais jovens. Contudo, ciente da importância dos relatos
dos pescadores mais experientes, os mesmos foram identificados e posteriormente
entrevistados, informalmente fora das pescarias.
Novamente a fotografia entrou em cena abrindo espaço para conversas acerca das
participações nas pescarias. Com as imagens capturadas foi possível permear o
imaginário visual do fotografado com o intuito de evitar o etnocentrismo até então
vigente, muito frisado nos trabalhos etnográficos, aproximando o olhar do
pesquisador com o do pesquisado. Segundo Martins (2008, p. 28), ―o que o fotógrafo
registra em sua imagem não é só o que está ali presente no que fotografa, mas
também, e, sobretudo, as discrepâncias entre o que pensa ver e o que está lá, mas
não é visível‖.
Além do fato das fotografias terem sido importante fator de aproximação com a
comunidade pesquisada, foi também uma forma de retribuição. Após a revelação de
algumas fotos selecionadas, as mesmas foram dadas aos fotografados que por sua
vez diziam o que as imagens representavam. Tais dados permitiram a pesquisadora
um melhor entendimento do campo a ser pesquisado, construindo o entrosamento
junto ao pesquisado. Segundo Oliveira (1996), o trabalho do antropólogo não é
incompatível com atividades de outras disciplinas sociais, sobretudo quando
articulam pesquisa empírica com a interpretação de seus resultados.
Resguardadas as devidas preocupações teóricas, cabe aqui salientar que os
recortes realizados durante as entrevistas, as vivências durante as pescarias e as
falas privilegiadas foram reinterpretados pela pesquisadora durante a transcrição e
elaboração do texto do trabalho. Dessa forma salientamos que não nos eximimos da
influência de uma subjetividade na elaboração da pesquisa, sobretudo a
valorizamos, nesse sentido Velho (2006) nos diz:
―[...] O que importa é, sem ferir os padrões minimamente consensuais da atividade de pesquisa na nossa área de conhecimento, abrir espaço para investigações e trabalhos apoiados em mais liberdade, livres de certas camisas-de-força que cerceiam a criatividade.‖ (VELHO, 2006, p.18)
22
Foi necessário um esforço para alinhar seu olhar na direção do que os pescadores
olhavam. Quando acordava pela manhã estava sempre atenta ao clima para ver se
os pescadores iam pescar, entretanto apenas fatores climáticos não determinavam a
ocorrência da pescaria. Sendo assim, teve que aprender a compreender8 o que eles
diziam. Foi também difícil acostumar a ouvir o que não é dito, como: a instabilidade
dos fatores meteorológicos; o silêncio das ondas; a direção e identificação dos
ventos sudeste, nordeste, terral; as cheias e as vazantes; as fases da lua.
Segundo Clifford (1998, p. 20), ―a observação participante obriga seus participantes
a experimentar, tanto em termos físicos quanto intelectuais, as vicissitudes da
tradução‖, assim, foi possível enxergar parte do que estava submerso, abaixo da
linha d’água. Ou seja, foi possível participar das rotinas até então submersas por
uma visão etnocêntrica. Tal fato nos leva a repensar duas questões, a primeira é o
papel da mulher na atividade pesqueira, onde sua presença acarreta a ―má sorte9‖,
restando-lhe trabalhos como o beneficiamento do pescado. O segundo é o lugar dos
―de fora‖ para os ―filhos da terra‖, a dificuldade de aproximação e divisão social
existente.
Além das observações realizadas durante as pescarias se fez de suma importância
o acompanhamento de duas reuniões do Plano de Compensação da Atividade
Pesqueira da Pesquisa Sísmica (PCAP) com os pescadores da Vila. Tais reuniões
tiveram como objetivo assegurar o cumprimento da exigência do Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) para concessão da
licença ambiental, por conta da interferência causada por uma empresa do setor
petrolífero durante a exclusão e restrição temporária do uso do espaço marítimo,
conforme exposto no capítulo III.
Todos os dados coletados, seja por meio de entrevistas, das vivências oriundas da
observação participantes, das leituras de livros, informações e notícias, foram
selecionados de acordo com o recorte do objeto. Essa etapa exigiu uma análise para
que no texto restassem somente as informações advindas do cruzamento de dados.
8 Apesar de falar o mesmo idioma, inicialmente a pesquisadora não compreendia o que os
pescadores diziam. 9 Existe uma crença entre os pescadores que a presença da mulher durante as pescarias dá azar.
23
Quanto ao marco teórico, o mesmo foi sendo construindo ao longo da pesquisa,
adequando-se dessa forma as informações encontradas no campo empírico.
Em suma, o trabalho está disposto em três ordens de informações. Inicialmente
apresentaremos no primeiro capítulo o lócus de pesquisa a fim de situar o leitor
quanto ao cenário pesquisado, juntamente com os marcos teóricos que inspiraram a
possibilidade de reflexão nos capítulos posteriores. No segundo capítulo
abordaremos algumas mudanças no trabalho e nas práticas sociais por meio de
depoimentos dos pescadores, realizados ao longo da pesquisa. No último capítulo
aprofundaremos a análise de um dos fatores que possivelmente tem alterado a
forma de trabalho dos pescadores de Regência Augusta, as pesquisas sísmicas
marítimas. Além disso, apresentaremos a descrição de duas reuniões do PCAP com
a comunidade de pescadores da Vila, mostrando assim o grau de fragilidade da
Associação de Pescadores de Regência (ASPER) como elemento político.
24
CAPÍTULO I – PORTEIRA SUL DO RIO DOCE
Nesse primeiro capítulo, situaremos o leitor quanto ao lócus de investigação,
dinâmica local, costumes e contextualização da pesca. Além de apresentarmos
algumas categorias teóricas que serão abordadas ao longo do trabalho. No intuito de
trazer a você leitor uma visualização de aspectos e personagens que abordamos,
complementaremos o texto com fotografias realizadas durante a pesquisa de campo.
1.1 LÓCUS DE INVESTIGAÇÃO
Regência Augusta, distrito de Linhares, está localizada a cerca de 120 km ao norte
de Vitória, capital do Espírito Santo. Situada a 7 km da Reserva Biológica de
Comboios10, cercada pelo rio Doce e o Oceano Atlântico, essa pequena vila ocupa
uma área de cerca de 40 hectares. Possui aproximadamente 102211 habitantes,
pertencentes a 288 famílias, sendo a distribuição por sexo a seguinte: 507 homens e
515 mulheres. As principais atividades econômicas são: pesca, Projeto TAMAR,
Petrobrás e empreiteiras, Prefeitura, comércio e outros.
Durante a ocupação do Espírito Santo pelos portugueses, na procura de riquezas,
ouro e pedras preciosas, as estradas hidrográficas eram as únicas vias de acesso
do litoral com o interior e vice-versa, neste sentido o rio Doce se fez de extrema
relevância na história da Vila de Regência Augusta. Ele nasce na Serra da
Mantiqueira, Minas Gerais e atravessa o Estado do Espírito Santo de oeste para
leste, percorrendo 202 municípios, vindo a desaguar entre as Vilas de Povoação e
Regência Augusta. Seu nome foi dado pela esquadra portuguesa, em 150112, que
encontrando água doce defronte à foz do rio deram-lhe o nome de rio Doce.
10
Criada em 1984 por meio do Decreto 90.222, a Reserva Biológica de Comboios foi criada pelo Governo Federal com o objetivo de conservação da espécie de tartaruga marinha. 11
Tais informações foram cedidas pela Secretaria de Assistência a Saúde, equipe do Programa Saúde da Família (PSF). Os dados de 31/03/2011 são referentes ao número de habitantes permanentes, residentes na área urbana de Regência Augusta. 12
Esquadra comandada pelo navegante André Gonçalves.
25
Figura 1: Vila de Regência Augusta e foz do rio Doce. Fonte: Plano de desenvolvimento integrado e sustentável do entorno da Reserva Biológica de Comboios.
Até o início do século XVII os descobridores portugueses se limitaram a defender as
áreas litorâneas brasileiras das invasões estrangeiras e dos ataques indígenas. No
início do século XVIII foram encontradas as primeiras jazidas minerais pelos
bandeirantes paulistas na região mineira13. O Espírito Santo viveu durante séculos
um fechamento para o mundo, sendo parte deste devido às restrições de acesso às
regiões mineradoras pelo rio Doce e seus afluentes. Qualquer pessoa que chegasse
ao Espírito Santo pelo rio Doce poderia ser presa pelas autoridades que mantinham
desconhecida a geografia do curso do rio (ESPINDOLA, 2008).
Em 1796, com o esgotamento das minas, o príncipe regente Dom João a pedido do
Conde de Linhares, Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, abriu a navegação no rio
13
Foram encontradas jazidas em Mariana (1696), Ouro Preto (1698) e São João Del Rey (1705).
26
Doce. Em 1800, o Governador da Capitania do Espírito Santo, o senhor Antônio
Pires da Silva Pontes, iniciou o mapeamento do baixo curso do rio Doce na tentativa
de ocupação das terras a partir do Litoral. Os primeiros registros históricos
descrevem o Forte de Regência Augusta em torno do qual surgiu o povoado, por
volta de 1820, porém, desde o início da colonização as expedições que subiam o rio
Doce passavam pela região. Contudo ele nunca foi completamente navegável,
apresentando algumas dificuldades à navegação, segundo (REIS, 2003).
As dificuldades de navegação foram acentuadas após destruição das matas ciliares
para cultivo da mandioca, seguida pela implantação de pastagens, e desmatamento
para produção de carvão. As tentativas de navegação e ocupação as margens do rio
Doce não obtiveram sucesso, devido principalmente a malária. A partir de tal fato a
natureza passou a ser vista ―como paisagem terrivelmente opressora e portadora de
males terríveis‖ (ESPINDOLA, 2008). Iniciou-se então o desmatamento da mata
ciliar sendo desta eliminados os obstáculos ao povoamento, as doenças, as pragas,
os índios e, iniciou-se o povoamento e a agricultura.
A ocupação do litoral para o interior fracassou levando o Príncipe Regente a inverter
o processo ao mesmo tempo em que declarou uma guerra ofensiva aos botocudos e
demais índios em prol da ―segurança‖ da navegação. Toda a região do Baixo Rio
Doce era habitada pelos índios Aimoré14, vulgarmente conhecidos como botocudos
em virtude dos botoques – discos brancos feitos, em geral, de madeira leve - que
usavam nos lábios e nas orelhas (ZUNTI, 1941). Já em alguns relatos os botocudos
eram vistos como sendo de convivência pacífica, mas se defendiam dos homens
brancos que por sua vez buscavam ampliar os seus domínios.
Logo se percebeu que tal ofensiva aos índios, era desnecessária devido à
fragilidade de tais povos que foram então catequizados e civilizados. Segundo
Espindola (2008) os relatos de antropofagia presentes nas documentações do final
do século XVII ―[...] não passou de uma justificativa para a guerra ofensiva, dentro da
tradição portuguesa do conceito de guerra justa.‖ Entre 1808 a 1818, o Governador
da capitania do Espírito Santo fundou várias fortificações (quartéis militares) nas
14
Em Tupi, a palavra Aimoré significa nação diferente, que indica que esse grupo era culturalmente diferente dos demais.
27
margens do rio Doce, dentre eles o de Regência Augusta, na foz do rio e o Quartel
Coutins, que mais tarde daria origem a Vila de Linhares.
O povoado de Coutins foi elevado à condição de Vila, recebendo o nome de ―Vila de
Linhares‖ em homenagem a Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, Conde de Linhares.
O comércio e transporte de mercadorias e de pessoas do quartel de Regência para
Vila de Linhares eram realizados pelo ―Sistema de Navegação Fluvial do Rio Doce‖.
No final do século XIX, a Vila de Linhares entrou em decadência e o Povoado de
Colatina, que pertencia ao Município de Linhares, alcançou grande progresso,
devido aos imigrantes italianos que se dedicavam ao cultivo da lavoura de café e à
inauguração da ―Estrada de Ferro Diamantina‖, cujo traçado passava por Colatina,
Baixo Guandú e parte dos municípios de Ibiraçu, Santa Tereza e Itaguaçu, hoje
incorporada à Estrada de Ferro Vitória-Minas.
O município de Linhares, em 1921, foi englobado ao município de Colatina, o que
aumentou ainda mais sua decadência. Contudo, em 1943 o município de Linhares
foi recriado15. Após seu desmembramento do município de Colatina, Linhares se
desenvolveu vagarosamente. Dois fatos impulsionaram o desenvolvimento posterior
do município: a construção da Ponte Presidente Vargas16 e o asfaltamento17 do
trecho da BR-101, entre os municípios de João Neiva a Linhares. Tais fatos aliados
ao asfaltamento da BR-101 de Linhares a capital em 1904 e a Estrada de Ferro
Vitória a Minas têm impulsionado o desenvolvimento da região, culminando com o
surgimento de inúmeras cidades e povoados ao longo do rio Doce.
As dificuldades de navegação citadas anteriormente aliadas à construção da ponte
Getúlio Vargas18 em 1954, tornou as estradas fluviais dispensáveis. Até 1960 o
baixo rio Doce não passou de uma fronteira agrícola fornecedora de alimentos para
as cidades industriais. A vila de Regência Augusta, formada etnicamente por
caboclos19 [foto 1], entrou em declínio tendo em vista que o escoamento das
15
Através do decreto nº 15.177. 16
Inaugurada em 1954, pelo então Presidente da República, Getúlio Dorneles Vargas. 17
Inaugurado em outubro de 1972. 18
Ponte sobre o rio Doce. 19
Miscigenação entre os índios moradores da barra sul do rio Doce e negros vindos de São Mateus.
28
mercadorias foi transferido para as estradas rodoviárias. Dessa forma a comunidade
passou a viver uma exclusão sócio-territorial.
Fotografia 1: Caboclo Luis Preto. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 22/01/11.
A pesca nesse contexto era inicialmente praticada como fonte de subsistência,
sendo realizada de forma rudimentar utilizando-se de técnicas herdadas dos povos
indígenas. As pescarias eram realizadas em canoas com redes confeccionadas com
linha de barbante e boias de madeira, gruzeiras20, mijuadas21, tarrafas e linha de
mão feita de tucum22. Outras formas de se capturar peixes abundantes na época
eram o quitandu23, a camboa24 e o jequiá25 utilizado para a pesca no rio do camarão
pitu e lagosta.
20
Uma corda esticada de uma vara a outra, anzóis presos a linhas de mais ou menos meio metro, pendentes nessa corda e enfileirados em distância regular. 21
Atualmente chamada de rede de espera. 22
Tipo de cipó. 23
Armadilha afunilada. 24
Cercado de madeira onde o peixe entrava na maré cheia e ficava preso na maré baixa. 25
Confeccionado em taquara.
29
No Brasil, a atividade pesqueira foi reconhecida em 1960, por meio do Decreto-lei nº
221/67, revogado pela Lei nº 11.958, de 26 de junho de 2009 que dispõe sobre a
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Agricultura e da Pesca. No
Capítulo III, art. 4º, a atividade pesqueira é compreendida ―como todos os processos
de pesca, exportação e exploração, cultivo, conservação, processamento,
transporte, comercialização e pesquisa dos recursos pesqueiros‖.
Neste trabalho abordaremos a pesca comercial artesanal definida no Decreto nº
221/67, de 29 de junho de 2009, capítulo IV, art. 8º:
a) artesanal: quando praticada diretamente por pescador profissional, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações de pequeno porte.
A pesca artesanal faz parte do cotidiano de diversas vilas pesqueiras, não só como
fonte de alimento, mas também como modo de vida, fornecendo identidade a essas
comunidades. Segundo Diegues (1999), várias culturas litorâneas ligadas à pesca
como o jangadeiro (em todo o litoral nordestino, do Ceará até o sul da Bahia), o
caiçara (no litoral entre o Rio de Janeiro e São Paulo) e o açoriano (no litoral de
Santa Catarina e Rio Grande do Sul) emergiram de atividades pesqueiras.
Ao contrário da atividade pesqueira comercial industrial, a artesanal não é realizada
por meio do regime de parceria por cotas partes, contém embarcações de pequeno
porte, sendo praticada de forma autônoma, além de se apresentar como
organizadora das demais dimensões da vida social, norteando hábitos alimentares,
festividades, formas de solidariedade e negociação.
Tal modo de vida está diretamente relacionado aos recursos naturais da região onde
se sustenta, tendo em vista que depende do ecossistema aquático para execução
das práticas profissionais. Todavia, se o ambiente torna-se inadequado para
reprodução e sobrevivência dos peixes, tal modo de vida tende a ser alterado, ou
seja, torna-se alvo de ressignificações ou passa a ser até mesmo extinto.
30
Ser pescador na atualidade significa assumir um ofício tradicional, ou seja, assumir
uma conduta desviante dentro das ideologias modernizantes instauradas (PRADO,
2002). De acordo com a legislação vigente, no inciso I presente no artigo 3º do
decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, uma Comunidade Tradicional pode ser
denominada como:
[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condições para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
Tal denominação vai ao encontro da definição de Diegues (apud DIEGUES, 2001, p. 87):
Comunidades tradicionais estão relacionadas com um tipo de organização econômica e social com reduzida acumulação de capital, não usando força de trabalho assalariado. Nela produtores independentes estão envolvidos em atividades econômicas de pequena escala, como agricultura e pesca, coleta e artesanato. Economicamente, portanto, essas comunidades se baseiam no uso de recursos naturais renováveis. Uma característica importante desse modo de produção mercantil (petty mode of production) é o conhecimento que os produtores têm dos recursos naturais, seus ciclos biológicos, hábitos alimentares, etc. Esse “know-how” tradicional, passado de geração em geração, é um instrumento importante para a conservação. Como essas populações em geral não têm outra fonte de renda, o uso sustentado de recursos naturais é de fundamental importância. Seus padrões de consumo, baixa densidade populacional e limitado desenvolvimento tecnológico fazem com que sua interferência no meio ambiente seja pequena. Outras características importantes de muitas sociedades tradicionais são: a combinação de várias atividades econômicas (dentro de um complexo calendário), a reutilização dos dejetos e o relativamente baixo nível de poluição. A conservação dos recursos naturais é parte integrante de sua cultura, uma ideia expressa no Brasil pela palavra ―respeito‖ que se aplica não somente à natureza como também aos outros membros da comunidade.
Ainda nesse sentido o autor salienta que o reconhecimento é um dos aspectos mais
importantes para intitular determinada comunidade como tradicional. Neste trabalho
pode-se ilustrar tal fato com o relato de pescadores que trabalham em empresas que
prestam serviço para Petrobrás, e mesmo assim se auto-reconhecem como
pescadores.
Os pescadores artesanais são responsáveis por 60% da pesca nacional, resultando
em uma produção de mais de 500 mil toneladas por ano. De acordo com o Relatório
técnico sobre o censo estrutural da pesca artesanal marítima e estuarina de 2005, a
31
região costeira do Espírito Santo possui aproximadamente 460 km de extensão,
sendo composta por 14 municípios, a saber: Anchieta, Aracruz, Conceição da Barra,
Fundão, Guarapari, Itapemirim, Linhares, Marataízes, Piúma, Presidente Kennedy,
São Mateus, Serra, Vila Velha e Vitória. O setor pesqueiro se faz de grande
relevância para a economia do Estado tendo em vista que é responsável pela
geração de, aproximadamente, 14.000 empregos diretos e 5.000 indiretos.
O Estado possui como forma de representação mais antiga 12 Colônias de
Pescadores e Aquiculturas, além de 25 associações ativas, 01 cooperativa de pesca
e 01 federação das entidades de aquicultura e pesca profissional. Dos 14 municípios
citados acima, dois encontram-se na Microrregião de planejamento 0626, dois na
Microrregião de planejamento 0227, cinco na Microrregião de planejamento 0128 e
quatro nas Microrregiões de Planejamento 0329 e 1130. O município de Linhares, do
qual Regência é distrito localiza-se na microrregião 2, juntamente com Aracruz.
Como representação dos pescadores existe duas colônias, a Z-7 e a Z-6, da qual a
Associação de Pescadores de Regência faz parte. Para melhor visualização segue
mapa da divisão regional do Espírito Santo.
26
Formada pelos municípios de Conceição da Barra, Jaguaré, Pedro Canário e São Mateus. 27
Formada pelos municípios de Aracruz, Ibiraçu, João Neiva, Linhares, Rio Bananal e Sooretama. 28
Formada pelos municípios de Cariacica, Fundão, Guarapari, Serra, Viana, Vila Velha e Vitória (capital). 29
Formada pelos municípios de Alfredo Chaves, Anchieta, Iconha e Piúma. 30
Formada pelos municípios de Apiacá, Atilio Vivacqua, Bom Jesus do Norte, Castelo, Cachoeiro de Itapemirim, Jerônimo Monteiro, Mimoso do Sul, Muqui, Presidente Kennedy, Rio Novo do Sul e Vargem Alta.
32
Mapa 1: Mapa da divisão regional do Espírito Santo. Fonte: www.es.gov.br/site/imagens/espirito_santo/mapas.jpg (acesso em 28 jun. 2011).
Criada em 1998 a Associação de Pescadores de Regência (ASPER), segundo reza
o estatuto, possui como finalidade a representação, promoção do desenvolvimento
econômico dos pescadores associados, bem como a defesa dos direitos e
interesses dos mesmos. Segundo o entrevistado A (2011), funcionário da Prefeitura
de Linhares, ―[...] tudo começou com uma solicitação da Colônia Z6 – Caboclo
33
Bernardo, para que a comunidade de Regência tivesse um porta voz junto a Colônia
e outras instituições [...]‖.
Na época as seguintes pessoas incentivaram a idéia de criação de uma associação
de pescadores: Carlos Sangália, Joca, Aranha, Nelsinho (na época todos
funcionários do Projeto Tamar), Janilson (Presidente da Colônia Z-6), Geraldo
(extensionista do Incaper), Noel de Assis, Zé de Sabino, Leônidas Carlos, Sapateiro,
Sônia, Arnoilton, Jerônimo (todos pescadores), dentre outros.
Ainda segundo o entrevistado A (2011), antes da criação da ASPER faltava
infraestrutura e os pescadores eram desorganizados. Muitos deles não eram
registrados sendo dessa forma penalizados socioeconomicamente. Atualmente
cerca de 56 pescadores são legalizados, além de possuírem maior diálogo com
instituições governamentais e empresas privadas. Segundo o entrevistado B (2011),
funcionário do Projeto Tamar, [...] a parceria do Tamar junto aos pescadores não foi
realizada apenas porque os pescadores comiam tartaruga, mas porque eles
precisavam se organizar [...].
Quanto à infraestrutura, a ASPER possui atualmente: uma sede própria fornecida
pela Petrobrás, com bancadas de inox doadas pela Aracruz e um computador; um
veículo Saveiro com baú fornecido pela Prefeitura de Linhares, que permite o
transporte de parte da produção local sem necessidade de atravessador uma vez
que o acesso ao distrito é difícil; uma fábrica de processamento pescado onde
trabalham mulheres dos pescadores fazendo bolinhos de peixe; uma fábrica de gelo,
doada pela Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca (SEAP); horta comunitária
que fornece alimentos à escola da comunidade e uma câmara fria para conservação
do pescado. Nota-se que com a implantação de investimentos na região a
associação cresceu por intermédio de medidas compensatórias.
No que diz respeito à comercialização, a ASPER compra, beneficia (limpa),
armazena e comercializa. Mas os pescadores preferem realizar a venda em suas
próprias casas, onde condicionam o pescado em freezers ou geladeiras. Tal fato se
deve a diversos motivos dentre eles a impossibilidade da associação em pagar pelo
34
pescado no ato da entrega do mesmo, tendo em vista que não possui capital de giro
sendo necessário primeiro efetuar a venda para poder repassar o valor ao pescador.
Atualmente a Vila possui aproximadamente 300 pescadores, dos quais 56 são
associados à ASPER. A transmissão dos saberes da arte pesqueira em Regência
Augusta se dá por meio de familiares, onde geralmente poucos continuam com a
mesma profissão do pai. Como exemplo temos o filho do entrevistado C (2011),
pescador, de 12 anos o único dentre os cinco filhos a seguir o pai durante as
pescarias. Em outros casos a transmissão se dá por intermédio de pessoas que não
são da família, como é o caso do entrevistado D (2011), pescador desde os 14 anos,
―[...] sou filho de cachaceiro31, aprendi a pescar assim, como os outros, trabalhando
pros outros [...]‖, diz entrevistado que hoje é Mestre de seu próprio barco chamado
Nova Vida.
A pesca continua sendo realizada de forma artesanal, por meio de apetrechos
tradicionais confeccionados com outros materiais, modificando dessa forma o
trabalho e as formas de fazer. Como exemplos temos as seguintes modalidades de
pesca estuarina, a saber:
Modalidades Embarcação
a) Caceio - consiste na captura dos peixes que vêm do mar para
desovar no rio. Inicialmente os pescadores identificam um
pesqueiro, juntamente com uma corrente marítima que fará a
rede descer. Então dois pescadores lançam a rede na água,
esta possui uma boia de marcação mais leve que permite maior
agilidade. Enquanto isso o barco fica a deriva, ou mira-se32
alguma rede neste intervalo. O mestre, no momento em que a
rede esta com peixe, faz sinal aos demais para que a mesma
seja recolhida. Ela é retirada d’água com o auxílio do bicheiro,
logo depois os pescadores desprendem os peixes capturados e
os acondicionam em caixas ou baldes. Tal pescaria pode ser
Somente
embarcado.
31
Expressão utilizada para dizer que o pai não trabalha, apenas toma cachaça. 32
Denominação utilizada pelos pescadores para o ato de verificar se algum peixe foi capturado na rede.
35
repetida em outros locais, por diversas vezes. Essa modalidade
permite a captura de vários tipos de peixe como: robalo,
cumatã, bagre caçari, bagre branco, carapeba, tainha e
guaibira.
b) Rede de espera – Essa modalidade trata-se da rede de pesca
que é colocada a espera do pescado, amarração de corda
presa a garatéia de ferro que a mantém presa. O pano de
formato retangular possui boias na parte de cima e chumbos na
parte de baixo. A garatéia é jogada na água; em sequencia as
redes são colocadas na água geralmente por um ou mais
pescadores. As redes são feitas com panos de 100 metros e
por 50 malhas de altura, ou seja, em torno de 5 metros A
panagem é estendida entre duas cordas: uma corda superior
munida de flutuadores e uma inferior, com um lastro ou
chumbada. Graças às boias o pano mantém-se verticalmente
na água. Alguns peixes são capturados por ficar malhados pela
parte central do corpo e outros porque o fio da rede se envolve
com o osso maxilar ou com os dentes. Estas redes têm
tamanho de malhas que variam segundo a classe de peixe que
se quer capturar. As que são mais comumente utilizadas têm
entre 0,60, 0,50, 0,12 e 3 e 6 cm de nó a nó. Estas são
fabricadas de fio fino, geralmente de polietileno. O
relacionamento entre os flutuadores e as chumbadas pode
permitir três posições da rede: rede de fundo e rede boiada.
Estas redes são miradas duas vezes ao dia para que o pescado
não estrague; o horário não tem a ver com a maré, mas sim
com o horário de transpor a Boca da Barra.
Embarcado e
desembarcado.
c) Tarrafa – pescaria realizada com uma rede de pesca circular
com pequenos pesos distribuídos ao seu redor. A tarrafa é
arremessada com as mãos, de tal forma que a mesma abre-se
antes de cair na água.
Desembarcado.
d) Linha de mão – pesca realizada com linha e anzol. Embarcado e
desembarcado.
Quadro 1: Modalidades de pesca estuarina.
36
Os tipos de embarcações existentes são de médio e pequeno porte, movidas a remo
ou motor de poupa ou motor de centro, sendo os segundos barcos de boca aberta33
ou canoa. Em 1998 foram inseridos, na frota de embarcações de Regência Augusta,
seis barcos de médio porte vindos da Bacia de Campos destinados à pesca de
camarão.
A localização das residências mais antigas da Vila [foto 2] próximas a foz do rio
Doce e do rio Preto34 indica onde a pesca predominava em tempos áureos, mas
atualmente os pescadores necessitam ir para o mar em busca do pescado que está
escasso nos estuários. De acordo com o entrevistado E (2011), pescador, ―[...]
antigamente a gente ia pro mar de canoa, mas era como uma brincadeira porque
nem precisava com uma tarrafada no rio Doce a gente pegava muito peixe, hoje em
dia não [...]".
Fotografia 2: Casas antigas da Vila. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 08/04/11.
Dessa forma verifica-se que o rio Doce [foto 3], fonte de recursos para a comunidade
pesqueira, encontra-se ameaçado. A sangria por água doce pode agravar ainda
mais as condições da pesca estuarina, em Regência. Segundo entrevistada F
(2010), marisqueira, ―[...] há uns 40 anos atrás a água do rio Doce era usada pra
33
Embarcações sem convés. 34
Afluente do rio Doce.
37
gente tomar banho, lavar vasilhas e as roupas quando a água estava clara, mas
depois que construíram umas barragens rio acima acabou o rio agora está cheio de
ilhas, a água suja [...]‖.
Fotografia 3: Rio Doce. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 30/04/11.
Além das barragens, segundo Meirelles e Calazans (2006) foi construído o canal de
derivação de água, chamado de Caboclo Bernardo, em benefício da Aracruz
Celulose para que a mesma ampliasse sua capacidade de produção para 2 milhões
de toneladas/ano. Para tanto, em 1999 foram construídos mais de 50 km em canais
abertos, interligando o rio Doce à bacia do rio Riacho, passando pelo rio Comboios,
compondo o complexo hidráulico da Aracruz Celulose.
Retomando a fala da entrevistada F (2010), podemos apontar que a implantação de
grandes empreendimentos próximos ao rio Doce traz interferências para tal
comunidade de pescadores, podendo ser positivas ou negativas. Entretanto
devemos nos atentar aos efeitos negativos gerados por grandes projetos de
infraestrutura que visam apenas o desenvolvimento econômico esquecendo-se de
levar em conta os impactos socioambientais (SILVEIRA, 2011). Ainda segundo esse
autor, tais projetos trazem graves consequências para as comunidades tradicionais,
que por sua vez não conseguem fazer valer seus direitos devido ao discurso
desenvolvimentista dos que detém o poder político. Dessa forma os pescadores
artesanais ribeirinhos vêm sofrendo com a poluição das águas dos rios.
38
De acordo com a Federação de Indústrias do Espírito Santo – (FINDES) 35, em
agosto/2010 foi divulgado pelo governo do Estado os projetos a serem implantados
em Linhares, a saber: a) Weg (maior fabricante de motores elétricos) – investimento
de R$ 186 milhões com geração de mil empregos diretos será implantado no distrito
de Rio Quartel. A operação começou em 2011, e o pleno funcionamento se dará em
2013; b) Tecnotêxtil (uma das maiores empresas brasileiras na confecção de cintas
para a movimentação de cargas) – investimento de R$ 6,3 milhões será instalado na
região de Baixo Quartel; c) Petrobrás – Polo Gás-Químico, o objetivo da Petrobrás é
que o complexo tenha capacidade para produzir 763 mil toneladas por ano de ureia
e 1,09 milhão de toneladas de metanol por ano.
Dentre os investimentos citados destacamos o Complexo Gás-químico de Linhares
tendo em vista que o mesmo será construído na região de Palhal, entre os distritos
de Bebedouro e Regência. A previsão é de que as obras de construção tenham
início em 2013 com início de operação em 2015. O novo projeto faz parte do Plano
Estratégico 2010-2014 que prevê investimentos de US$ 5,7 bilhões em
empreendimentos gás-químico. Ainda segundo a FINDES foi divulgado que os
moradores do município de Linhares e da região norte do Espírito Santo terão
prioridade durante a contratação da mão de obra para trabalhar na fábrica de
fertilizantes da Petrobrás, estima-se que serão gerados cerca de 9 mil empregos
indiretos.
De acordo com o entrevistado A (2011), a Petrobrás já solicitou à Secretaria do Meio
Ambiente a utilização das águas do rio Doce para implantação da Fábrica de
Fertilizantes. Cabe destacar que tal ambiente natural, no caso o rio Doce, é alvo de
interesse das empresas devido à necessidade de utilização da água doce na cadeia
produtiva. Segundo Ramalho (2002), a pesca estuarina é de pouco interesse para
empresas capitalistas devido à produção diversificada e em baixa escala nesses
ambientes. Dessa forma a pesca de Regência envelhece, tendo em vista que os
mais jovens preferem um emprego de carteira assinada a ir pescar.
35
Disponível em: < http://www.sistemafindes.org.br >. Acesso em: 27 jun. 2011.
39
Segue mapa hidrográfico do Espírito Santo:
Mapa 2: Mapa hidrográfico do Espírito Santo. Fonte: www.es.gov.br/site/imagens/espirito_santo/mapas.jpg (acesso em 28 jun. 2011).
40
A poluição do rio Doce, dentre outros fatores, têm conduzido os pescadores a
buscarem empregos com carteira assinada. Outra opção praticada pelos mesmos é
a busca de pesqueiros no mar, todavia os estudos sísmicos têm excluído e
restringido o uso do espaço marítimo para realização das seguintes modalidades
realizadas no mar: rede de espera36; espinhel de anzóis37; arrasto38 e linha de mão.
Alterações no ambiente aquático, sem comprovações científicas, têm emergido para
o espelho d’água alterando as técnicas de produção pesqueira e práticas sociais
dessa comunidade. Identificar tal fato nas falas dos pescadores somente foi possível
devido à observação participante realizada in lócus. Abaixo apresentaremos
algumas categorias teóricas que vão nortear as nossas análises nesse estudo. Logo
adiante, no capítulo II, retomaremos a discussão sobre mudanças no trabalho e nas
práticas sociais, por meio da fala dos pescadores.
1.2 MARCO TEÓRICO – DISCUTINDO ALGUMAS CATEGORIAS
Os conceitos de tradição e modernidade que norteiam este estudo ancoram suas
bases nas discussões de Anthony Giddens e em parte nas discussões de Ulrich
Beck e Eric Hobsbawm a respeito da sociedade de risco em que vivemos na
atualidade. As questões sobre o campo do desenvolvimento e a geração de
impactos socioambientais em certas localidades foram norteadas pelos estudos de
Gustavo Lins Ribeiro.
Num primeiro momento percebe-se que a tendência da tradição pesqueira esta
apenas perdendo seu domínio para a modernidade. Entretanto, o tema se revela
abrangente devido à riqueza de relações existentes, vindo a ser de suma
importância para futuras reflexões acerca de como os pescadores lidam com os
36
Mesma modalidade realizada no rio Doce. 37
Nessa modalidade utilizam-se pedras que se colocam flutuadores em conexão com a linha principal. O flutuador possui sempre uma bandeira para facilitar a localização. A distância entre uma linha secundária e outra, deve ser suficiente grande para evitar o entrelaçamento de anzóis uns com os outros. O comprimento da linha principal é em conseqüência do número de anzóis, pode ser até de quilômetros e de centenas de anzóis e neste caso há necessidade de se usar um maior número de flutuadores e âncoras. 38
Pesca de camarão.
41
processos modernizantes. A escolha do referencial baseado nas reflexões de
Giddens (2001) sobre tradição e modernidade se deve ao modo como o autor
compreende a relação entre as duas:
A modernidade, quase que por definição, sempre se colocou em oposição à tradição; não é verdade que a sociedade moderna tem sido ―pós-tradicional‖? Não, pelo menos da maneira em que me proponho a falar aqui da ―sociedade pós-tradicional‖. Durante a maior parte da sua história, a modernidade reconstruiu a tradição enquanto a dissolvia (GIDDENS, 2001, p. 22).
A era globalizante impõe transformações que podem ressignificar tradições locais.
Identifica-se uma interdependência cada vez maior entre o global e o local. Nesse
sentido, as vidas individuais nos espaços locais passam a influenciar os resultados
globais. Estas inter-influências incidem sobre grupos, que por sua vez não tendem a
acabar, mas a se reestruturarem. Para Giddens (1991) a dinâmica da modernidade
é totalmente descontínua, ou seja, a pós-modernidade passa a ser radicalização da
própria modernidade.
A palavra tradição advinda do latim tradere significa ―transmitir, ou dar qualquer
coisa a guardar a outra pessoa‖ (GIDDENS, 2006, p. 47), onde o receptor tem a
obrigação de proteger e promover o que foi transmitido. Sendo assim, as tradições
são passíveis de serem inventadas e reinventadas ao longo do tempo ou até mesmo
repentinamente. De acordo com Giddens (2003, p. 51), ―a ideia de que a tradição é
impermeável à mudança é um mito‖, tendo em vista que não existe tradição
inteiramente pura. Um conjunto de símbolos e práticas não precisa ter existido por
séculos para ser tradicional; as características da tradição são o ritual, a repetição e
o fato de serem propriedades de grupos, comunidades ou coletividades.
Na obra ―A Invenção da Tradição‖ os autores Hobsbawm e Ranger (1984)
desconstroem a ideia de que as tradições são ou parecem ser antigas. Portanto, as
tradições podem ser inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas.
Por tradição inventada entende-se um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado (HOBSBAWM e RANGER, 1984, p. 9).
42
Na visão de Giddens (1991) tradições inventadas podem ser validadas pelo guardião
da tradição. Este pode ser representado por um homem capaz de interpretar a
verdade ritual das tradições, sendo capaz posteriormente de transmiti-la as novas
gerações.
Existem descontinuidades que separam as instituições sociais modernas das ordens
sociais tradicionais. Giddens (1991) as identifica por meio das seguintes
características: ritmo de mudança imposto pela modernidade; escopo da mudança,
onde transformações sociais são postas em interconexão por meio da virtualidade; e
a natureza intrínseca das instituições modernas, devido a inexistências de algumas
formas sociais em períodos anteriores.
Viver influenciado diretamente pela globalização nos leva até a noção de risco, a
qual está diretamente relacionada à probabilidade e a incerteza. As incertezas,
acopladas aos riscos ambientais gerados por nós, desencadeiam a sensação de que
estamos girando em um mundo em descontrole. Atualmente nem mesmo o
progresso da ciência e da tecnologia é capaz de tornar nossas vidas previsíveis. Na
visão de Giddens (2003), estamos passando por momentos de transformações, que
alteram quase todos os aspectos de nossa vida social.
Hoje, as cadeias produtivas são tão complexas que é impossível definir o agente do
risco, o responsável pelo risco. Os mesmos riscos que não eram pensados na
sociedade industrial, frutos do sucesso dessa sociedade, derivam consequências
que podem retornar a nós. Como exemplos, os riscos não visíveis, tais como: a
contaminação da água, do ar, contaminação do solo. Dessa forma percebe-se que a
modernidade gerou uma ilusão de segurança entre os seres humanos, tendo em
vista que a mesma possui um ―lado sombrio‖, (GIDDENS, 1991, p. 14). Nesse
trabalho destacamos a destruição do meio ambiente como constituintes desse lado
ainda pouco estudado.
Para Giddens (2006, p. 35), o risco provocado ―é o risco resultante do impacto do
nosso desenvolvimento tecnológico sobre o meio ambiente‖, diferente do risco
exterior imposto pela tradição ou pela natureza. Os riscos tornaram-se mais
arriscados com a intervenção humana sobre a natureza. Somos obrigados a viver
43
em um mundo onde as ações humanas, transformando o ambiente e a natureza,
têm produzido cada vez mais incerteza acerca de suas consequências. Não parece
possível a produção de cálculos precisos sobre as consequências de tais
intervenções e o domínio de suas fontes de riscos intrínsecas.
Mediante as diversas opções de ação dos agentes as escolhas serão realizadas
diariamente em um clima de insegurança generalizada. A sociedade do risco ocorre
na continuidade dos processos modernizantes, a partir do sucesso dos mesmos.
Para Beck (2008), a sociedade do risco não emerge de uma crise da sociedade
industrial, mas da vitória da mesma, que se expande produzindo as consequências
às quais terá de lidar. Ainda segundo o mesmo autor, a sociedade de risco originou-
se da sociedade industrial, tendo como suporte três pilares as ―crises econômicas
globais‖, as ―crises ecológicas‖ e o ―terrorismo‖. A mesma está exposta a sentir mais
cedo ou mais tarde os efeitos dos riscos gerados por ela mesma, nem mesmo os
agentes mais poderosos estão seguros em tal sociedade.
A projeção de ameaças para o futuro está estritamente ligada ao risco, entretanto
esquecemos que onde existe o risco já existe destruições irreversíveis. Dessa forma
são realizadas ações no intuito de ―evitar, minimizar, prever os problemas e as crises
de amanhã e depois de amanhã (BECK, 2008, p. 49, tradução livre). Passamos a ter
consequências diversas e sem fronteiras no caso da globalização dos riscos
alicerçada pela modernização. No entendimento de Giddens (2001, p. 27) a
globalização supracitada ―tem que ser entendida como um fenômeno dialético, em
que eventos em um polo de uma relação muitas vezes produzem resultados
divergentes ou mesmo contrários em outro‖.
Os riscos têm permeado todos os espaços nas últimas décadas, gerando rápidas
mudanças cujas consequências ainda são desconhecidas. Cabe aqui salientar que
os riscos não são prontamente identificáveis, por vezes nem mesmo percebidos por
aqueles que vivem em seu entorno, dessa forma não são incorporados pela
população. Nesse sentido ―[...] A educação e o comportamento sensível em relação
à informação abrem novas possibilidades de enfrentar os riscos e evitá-los‖ (BECK,
2008, p. 51, tradução livre).
44
Nem mesmo os favorecidos economicamente estão imunes ao efeito social
bumerang que, segundo Beck (2008, p. 54) segue a produção de riscos da
globalização. Sendo assim, quem está impactando também será impactado,
independente de fronteiras territoriais. Tal efeito atinge também o meio ambiente,
como exemplo o autor cita a contaminação do pescado que atinge além das
pessoas que os consomem, todas as comunidades que vivem de atividades
realizadas nesse mar.
De acordo com a visão de Beck (2008) ocorre a distribuição dos ricos entre as
classes ocorre de forma generalizada. Entretanto, os danos irreversíveis causados
pelos riscos da modernização geram conflitos, sendo esses ocultados pela bandeira
do progresso irracional, alicerçado pela racionalidade científica. Tais conflitos por
sua vez podem ser de ordem internacional ou local, agravando cada vez mais as
desigualdades em qualquer dos casos, o que converge com o pensamento de
Ribeiro (2008):
―Os atores e instituições menos poderosos são grupos locais vulnerabilizados por iniciativas de desenvolvimento que destroem as relações entre povos indígenas, seus territórios e culturas — como os reassentamentos forçados para a construção de represas — e proveem o cenário mais óbvio da vulnerabilidade de populações locais vis-à-vis ao "desenvolvimento" (RIBEIRO, 2008, p. 111).
Dessa forma pode-se notar que a distribuição dos riscos fortalece a desigualdade
entre as classes, tendo em vista que os pobres recebem a maior parcela dos riscos.
O setor privado por vezes sem saber da impossibilidade de conter os riscos
compensa alguns danos, ao mesmo tempo em que potencializa outros durante o
processo produtivo. Tal atitude pode funcionar em alguns casos de proporções
menores, entretanto quando atingem os recursos comuns a todos não se faz
possível qualquer tipo de compensação.
As normas de segurança e proteção industriais são seguidas por pessoas que
sequer possuem consciência dos riscos a que estão expostas. Segundo palavras de
Beck (2008, p. 64, tradução livre), ―a ignorância dos riscos não perceptíveis, que
encontram sua justificação (e que de fato tem, como no Terceiro Mundo) na
supressão da miséria palpável, e o terreno cultural e político onde florescem,
45
crescem, e prosperam os riscos e as ameaças‖. Ilustrando tal contexto Ribeiro
(2008) diz:
Por causa de seus enormes impactos ambientais e sociais, os PGEs mostram claramente o desequilíbrio das relações de poder entre populações locais e outsiders desenvolvimentistas. Por outro lado, esses projetos têm também causado um aumento na capacidade de reação de atores locais na forma de movimentos sociais e ONGs. As pessoas passaram a entender as desigualdades inerentes a esse tipo de expansão econômica. O capital estrangeiro, vários tipos de profissionais técnicos expatriados comumente ficam com a maior parte das riquezas produzidas em tais empreendimentos (RIBEIRO, 2008, p. 112).
Dentro desse contexto devemos nos atentar às articulações realizadas entre os
diferentes atores no campo de desenvolvimento, entendido ―como um campo de
poder formado por muitas redes e instituições‖ (RIBEIRO, 2008, p. 109). Segundo o
mesmo autor o campo de desenvolvimento é constituído por populações locais;
empresários privados, funcionários e políticos em todos os níveis de governo;
pessoal de corporações nacionais, internacionais e transnacionais; e pessoal de
organizações internacionais de desenvolvimento. Sendo assim, tal reflexão se faz de
suma importância para futuras interpretações de como os pescadores lidam com os
atores do campo do desenvolvimento.
Como característica importante da modernidade podemos destacar, segundo a visão
de Giddens, o conceito de reflexividade. Assim temos:
A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter (GIDDENS, 1991, p. 39).
Sendo assim, as práticas sociais são passíveis de reinvenção, emergindo dessa
forma novas práticas. Quanto mais inserido nesse contexto da modernidade,
transitando por entre seus sistemas peritos e tendo contato com a produção
acelerada de informação e conhecimento, mais o indivíduo agrega recursos para
repensar a sua biografia e trajetórias de vida, e consequentemente, mudar seu
comportamento.
46
Estamos a todo o momento alterando nossas decisões perante a contínua geração
de autoconhecimento em diversas áreas. Nesse sentido o conhecimento perito pode
ser alterado pelo conhecimento leigo que também esta sendo mudado. A tradição
nesse sentido pode ser autoconfrontada à medida que é alterada por mecanismos
modernizantes.
Enfim, identificamos nesse item algumas categorias como modernidade, tradição,
reflexividade e campo de desenvolvimento. Ao longo deste trabalho tais categorias
serão tratadas considerando as peculiaridades da pesca local e a fala dos
pescadores no campo pesquisado.
47
CAPÍTULO II – REFLEXOS ACIMA DA LINHA D’ÁGUA
No capítulo anterior situamos o leitor quanto à contextualização da pesca no lócus
de pesquisa, além da apresentação de algumas categorias teóricas pertinentes ás
reflexões aqui empreendidas. Nesse capítulo, apresentaremos algumas mudanças
no trabalho e nas práticas sociais, sobretudo por meio da fala dos pescadores. Para
tanto faremos uma incursão em dois tipos de pescaria: rede de espera no rio e
espinhel no mar, tipos predominantes respectivamente no tempo quente e no tempo
frio. No intuito de facilitar a visualização de aspectos e personagens que abordamos,
ilustraremos o texto com fotografias realizadas durante a pesquisa de campo.
2.1 REFLEXOS NA ÁGUA
A pescaria artesanal em Regência Augusta é realizada tanto na região estuarina39
quanto no mar. As modalidades de pesca realizadas atualmente nesta localidade
são: pesca de rede de espera com barco ou sem barco, realizada tanto no rio como
no mar; caceio realizado no rio; espinhel realizado no mar; arrasto de camarão
realizado no mar; tarrafa com barco ou sem barco, realizada tanto no rio quanto no
mar; linha de mão realizada tanto no rio quanto no mar. Cabe aqui mencionar que
todas as modalidades descritas acima foram acompanhadas pessoalmente. Sai
embarcada em oito pescarias, sendo quatro no rio e quatro no mar, além das
pescarias desembarcadas. Dessa forma foi possível montar parte do quebra-cabeça
da trajetória da pesca ao longo das últimas quatro décadas em Regência Augusta,
além de aprender termos e expressões de linguagem utilizadas pelos pescadores.
As pescarias realizadas no rio Doce destacaram-se nos relatos dos pescadores mais
antigos. Herdada dos índios tal modalidade era praticada por água40, sendo
desnecessária a prática da pescaria de rede de espera [foto 4]. Nesse sentido Britto
(1999, p. 77) salienta que a pescaria ―envolve um conhecimento sistematizado sobre
39
Região de ambiente aquático transicional entre o rio Doce e o Oceano Atlântico, geralmente com elevada produtividade biológica devido aos nutrientes que as águas de terra transportam. 40
Sem utilização de embarcações.
48
seu objeto de trabalho e sobre as condições naturais que interferem diretamente
nessa atividade‖.
Fotografia 4: Pescaria de rede de espera no rio Doce. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 14/07/11.
Segundo relato do entrevistado G (2010), pescador, ―[...] antes a gente pescava com
rede de barbante, isso eu devia ter uns 17 anos. Era pesado precisava de 3 a 4
pessoas para segurar. Pescava com rede de lanço41 dentro do rio Doce também.
Não precisava deixar a rede esperando no rio, era só jogar que vinha aquele monte
de peixe [...]‖, diz ele. Outras modalidades também eram praticadas na época como
linha de mão e com rede de barbante embarcado42.
A partir da pescaria de rede por água no rio Doce, hoje pouco praticada, podemos
perceber a inserção da tecnologia tanto na forma de trabalho como na utilização de
novos materiais. Devido alterações nas condições naturais, no caso o
assoreamento43 [foto 5] do rio Doce, aliadas ao crescimento da população, da
sobrepesca, da chegada dos atravessadores44, dentre outros fatores, surgiu a
necessidade de aumentar a captura dos peixes. Dessa forma as redes antes feitas
41
Cerca de três pescadores com bote a remo jogam de duas a três redes emendadas no rio. Enquanto um fica na água segurando o calão, um fica no bote remando em direção a praia enquanto o outro joga a rede. 42
Duas canoas pareadas com a rede de barbante no meio. 43
O assoreamento e a erosão nas margens do rio formam bancos de areia dificultando a navegação e a atracagem dos barcos no porto. 44
Pessoas que compram o peixe na mão dos pescadores para comercializá-lo em outros locais.
49
de barbante foram substituídas pelas redes feitas de corda de navio45 encontradas a
beira mar. Posteriormente foi inserido o nylon, material utilizado até os dias atuais.
Devido à fartura do pescado não era necessário deixar a rede na água, pois uma
jogada de rede supria a necessidade de todas as famílias da Vila. Temos assim a
fala do entrevistado G (2010), ―[...] antes era bom, tinha pouca gente em Regência,
então a gente pescava, descansava e consertava rede [...]‖.
Fotografia 5: Ilhas no meio do rio Doce devido ao assoreamento. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 30/07/11.
A comercialização do pescado era algo raro tendo em vista a dificuldade de acesso
à Regência, ―[...] o pescado era suficiente para todo mundo porque eram poucas
pessoas e ninguém aparecia para comprar [...]‖, ainda segundo o entrevistado G
(2010). Quando chegava algum comprador os pescadores pescavam e entregavam
a mercadoria imediatamente devido a inexistência de luz elétrica. As mulheres
salgavam46 o pescado e posteriormente os colocava nos telhados para secar,
somente após a chegada de um gerador47 na Vila o mesmo passou a ser
refrigerado. Segundo o entrevistado E (2011), ―[...] na época como não tinha energia
a gente salgava o peixe, só dava peixe em cima desses telhados [...]‖.
45
As cordas grossas de navio eram desmanchadas para confecção das redes. 46
Até os dias atuais esse tipo de receita é utilizada pelas mulheres. 47
O gerador foi comprado por um atravessador que comprava todo o peixe armazenado.
50
Devido à baixa comercialização, na época, alguns pescadores deixaram a pesca,
indo para outros Estados, onde encontravam trabalho de carteira assinada,
conforme diálogo com entrevistado E, a beira do rio Doce:
―_ Antes dava muito peixe nesse rio Doce? (Pesquisadora) _ Antes dava, hoje não dá mais não (Entrevistado E, pescador). _ Mas se antes dava peixe porque o Sr. Foi trabalhar fora e deixou de pescar? (Pesquisadora) _ Porque dava peixe, mas não dava dinheiro, a gente pescava só para comer, não vinha ninguém comprar‖ (Entrevistado E, pescador).
Dessa forma constata-se que a fartura do pescado não era suficiente para que o
pescador continuasse na profissão. Após a chegada dos atravessadores vindos,
sobretudo de Colatina por água ou por terra, e o aumento do número de pescadores,
passou-se a deixar mais redes armadas no rio Doce. Com isso, desenvolveu-se de
forma intensa a pescaria de rede de espera, realizada até hoje em proporções
maiores, segundo o entrevistado H (2011), pescador, ―[...] antigamente quem tinha
dois panos de rede era rico, hoje em dia cada pescador possui cerca de 20 panos
cada um [...]‖.
Essa modalidade ocorre principalmente na zona de confluência48 do rio Doce com o
mar, o que desacata o Art. 2º da Portaria Sudepe nº 681, 28 de dezembro de 1967,
onde ―É proibido colocar artes-de-pesca fixas ou flutuantes nas zonas de confluência
de rios, lagoas e corredeiras‖. Os pescadores concordam que a grande quantidade
de redes de espera na Boca da Barra coloca em risco a vida dos colegas de trabalho
que precisam passar com suas embarcações naquele trecho, mas elas
permanecem.
Nota-se além do aumento do número de pescadores o maior acesso aos materiais
utilizados nas pescarias. De acordo com entrevistado I (2011), funcionário da
Prefeitura Municipal de Linhares, cerca de vinte anos atrás os ônibus não passavam
dentro da Vila de Regência, sendo necessário percorrer um longo percurso para
chegar até o ponto de ônibus49 para ir até Linhares fazer compras. Atualmente o
48
O valor da passagem, R$ 11,75, é alvo de reclamações entre os moradores. Os materiais utilizados durantes as pescarias são comprados apenas em Linhares, dentre outras atividades como serviços bancários e compras domésticas.
51
ônibus entra na Vila, circulando em três horários durante o dia. Nota-se que o valor
da passagem para Linhares aumenta o custo das pescarias, sobretudo da
manutenção dos barcos.
O planejamento das pescarias de rede de espera está atrelado às variações do meio
natural, sendo assim exige-se do pescador um estudo sobre um conjunto de
condições naturais. Na visão de Britto (1999), tais condições naturais são
conjugadas a razões de ordem econômica e social. Cabe aqui destacar que as
fontes utilizadas pelos pescadores para saber das condições climáticas são distintas
das utilizadas tempos atrás o que pode ser confirmado por meio da fala do
entrevistado E, pescador detentor do saber50 ―[...] o pessoal das antigas era mais
sabido, só de olhar para o tempo eles sabiam quando o vento ia virar51, hoje eles
têm que olhar na internet [...]‖.
Nesse sentido, retomando a discussão proposta por Giddens (2001, p.22), vemos o
quanto a tradição mescla com a modernidade sendo assim reconstituída. Percebe-
se dessa forma que novas fontes de informação são inseridas no processo de
produção da pesca artesanal de Regência Augusta. Identifica-se, com isso, uma
interdependência cada vez maior entre o global e o local, em que os processos
globalizantes passam a influenciar as vidas individuais nos espaços locais, enquanto
ações locais também são passíveis de influenciar e produzir resultados globais.
Estas inter-influências incidem sobre grupos, que por sua vez não tendem a acabar,
mas a se reestruturarem.
A incerteza no ambiente pesqueiro faz com que os pescadores busquem trabalhos
na construção civil52, na Prefeitura e, sobretudo nas empreiteiras da Petrobrás.
Ocorre também o movimento contrário como no caso do entrevistado J (2011),
pescador, que perdeu o emprego e desde então começou a pescar:
50
Na mesma ocasião o entrevistado me disse que o vento sul iria chegar por causa do vento norte forte que abatia sobre nós e a flor da lua dando força, faltavam 4 dias para mudança da lua, o que de fato ocorreu. 51
Termo utilizado pelos pescadores quando querem dizer que o vento irá mudar. 52
O número de casas de veraneio tem aumentado significativamente, gerando especulação mobiliária.
52
―[...] comecei a pescar há dois anos. Sou mesmo eletricista, trabalhava em uma firma que prestava serviço para Petrobras, mas aí a firma perdeu o contrato e não consegui mais emprego. Eles falam que vão dar oportunidade para quem é de Regência, mas num é nada. A firma que pega o serviço já vem com seu eletricista, eles não contratam ninguém não, vem todo mundo de fora [...]‖ (Entrevistado J, pescador).
A partir do depoimento acima se constata a presença de ―processos migratórios e de
recrutamento de força de trabalho associados a um projeto‖ (RIBEIRO, 1992, p. 4).
Tais processos alteram a dinâmica social da Vila tendo em vista dentre outros
fatores a presença esmagadora de homens adultos em relação ao número de
mulheres e crianças acarretando transtornos para a comunidade como prostituição e
filhos sem pais. A perda de referência também é uma das consequências, conforme
a fala do entrevistado I (2011), ―[...] antes a gente sabia quem não era da
comunidade, quem trabalhava nas empreiteiras, mas hoje a gente não sabe mais, é
muita gente [...]‖. Na visão de Ribeiro (2008):
―Como cultura e educação são determinantes estruturais dos modos de vida das sociedades, e não mudam no ritmo que os projetos de desenvolvimento requerem, expatriados ou outsiders de outras regiões de um mesmo país são frequentemente enviados para compensar deficiências locais. Seu compromisso com a vida local é temporário. Eles são usualmente membros de redes que se reproduzem em níveis de integração nacionais, internacionais e transnacionais‖ (RIBEIRO, 2008, p. 121).
Outro saber naturalístico peculiar diz respeito às mudanças na entrada da foz, o que
altera a rota de trafego de barcos. Os mestres ficam atentos às alterações, estas por
sua vez são compartilhadas com os demais a partir de referências já conhecidas
como o farol [foto 6], Ponta da Aninga53 [foto 7], Ilha do Cabrito. Não menos comuns
são os troncos encalhados próximos a foz do rio Doce. Quando a maré esta cheia
eles ficam submersos colocando em risco as embarcações e consequentemente
toda a tripulação. Dessa forma, o mestre tem que saber onde estão localizados os
obstáculos, para poder desviar.
53
Planta pioneira na formação de ilhas, principalmente às margens dos rios.
53
Fotografia 6: Farol novo. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 02/07/11.
Fotografia 7: Ponta da Aninga. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 13/04/11.
Conforme os depoimentos dos pescadores, podemos visualizar o inverno54 e o
verão55 como importantes condições naturais que expressam modos de organização
social e da própria pesca. Essas épocas são recortadas por espécies de pescado
predominantes, sendo utilizados tipos distintos de pescarias. Segue quadro com
relação de espécies, vento e pescaria predominantes nas épocas de tempo quente e
frio, em Regência:
54
Para os pescadores o inverno compreende os meses de abril a setembro. 55
Para os pescadores o verão compreende os meses de outubro a março.
54
Tempo Espécies
predominantes
Vento
predominante
Pescaria
predominante T
em
po
qu
ente
Ou
tub
ro a
Ma
rço
Pescadinha
Sarda
Curvina
Pescada
Bagre caçari
Dorminhoco Curvina
Guaibira
Vento norte Rede de espera
no rio
Tem
po
frio
Ab
ril a
Sete
mb
ro
Robalo
Carapeba
Manjubinha
Tainha
Baiacú
Vento sul Espinhel no mar
Quadro 2: Espécies predominantes nas pescarias de rede de espera, conforme as épocas de tempo frio e tempo quente.
No período de tempo quente predomina a pescaria de rede de espera no rio e no
mar. Além de estarem à mercê das variações impostas pelo meio natural, como
exemplo o período de chuvas no verão, os pescadores também tem que obedecer
ao período de defeso56. No mês de janeiro, período das chuvas, os pescadores
ficam sem condições de pescar devido à força das águas do rio Doce, e
consequentemente de transpor a Boca da Barra57 para pescar no mar. Mas,
segundo fala do entrevistado H (2011), pescador, ―[...] quando o rio toma água58 a
gente fica contente, quando a água baixa a gente pega peixe [...]‖.
56
Período em que as atividades de caça, coleta e pescas esportivas e comerciais ficam vetadas ou controladas em diversos locais do território nacional. 57
Local de encontro do rio Doce com o mar, dependendo das condições do mar não é possível passar. 58
Expressão utilizada pelos pescadores para dizer o rio está enchendo, ―O rio tá tomando água‖. Quando o rio está seco eles dizem ―O rio tá com sede‖.
55
No tempo frio predominam-se as pescarias de espinhel [foto 8] no mar, nesse
período o vento sul dita os dias em que se pode pescar. Geralmente as pescarias de
rede de espera no mar nessa época são reduzidas devido ao risco de perda do
material quando a mar fica bravo59. Nessa situação os pescadores são obrigados a
retirar os panos da água para não ficarem no prejuízo do material. Segundo o
entrevistado E (2011), pescador, ―[...] a gente ia pescar de canoa a remo no mar,
mas era raro porque não precisava, a gente ia só de vez em quando [...]‖. Nota-se a
mudança nas embarcações utilizadas, atualmente a Vila possui uma frota com cerca
de quinze embarcações de pequeno e médio porte, com motor de centro.
Fotografia 8: Pesca de espinhel no mar, Abel e Monstro. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 09/08/11.
As pescarias em Regência Augusta caracterizam-se pelo ir e vir diário para o mar.
Tal fato sinaliza a mudança no trabalho, atrelada à importância da área de pesca
marítima para os mesmos. Segundo fala do entrevistado B, funcionário do Projeto
Tamar, quanto à pesca estuarina e a pesca no mar ―[...] eu to cansado de falar com
eles, vocês tem que deixar de fazer pescaria de menino e fazer pescaria de homem,
ir para o mar, a pesca tem que dar um salto [...]‖. Todavia, quando chegam ao mar
são pressionados pela restrição da área de pesca abordada no próximo capítulo.
Dentro desse contexto podemos visualizar por meio das falas de alguns pescadores
que os ―riscos provocados‖, definidos por Giddens (2006) como aqueles gerados
59
Expressão utilizada quando a maré sobe.
56
pela intervenção da ação humana sobre a natureza, não são prontamente
identificáveis pelas comunidades atingidas. Nesse sentido temos o depoimento do
entrevistado K (2011), pescador, ―[...] acho que os peixes tão acabando porque a
gente só pega né, tudo que a gente só tira e não põe no lugar acaba mesmo [...]‖.
Cabe aqui ressaltar que não descartamos nesse estudo a existência de outras
variáveis como a pesca de arrasto bastante praticada no “mar do rio Doce60” sobre a
diminuição do pescado.
Visando auxiliar o entendimento do leitor, segue transcrição ilustrada do diário de
campo da pesquisadora durante o acompanhamento da primeira pescaria, rede de
espera no rio Doce, bem como da primeira pescaria que acompanhou no mar,
espinhel61. Dessa forma será possível além de mostrar duas modalidades
contrastantes, o desenvolvimento da pesquisadora no campo pesquisado.
2.2 DIÁRIO DE CAMPO – REDE DE ESPERA NO RIO DOCE
13/04/11
Lua: Crescente
1ª Pescaria: Rede de espera
Local: Rio
Horário: 8h 30min
Em busca de um pescador que pudesse me levar para pescaria cheguei até o
entrevistado H (2011), pescador. Após explicar que estava fazendo uma pesquisa
sobre a pesca ele me disse que eu poderia acompanhá-lo e marcou comigo às 8h e
30min no porto. Quando cheguei ele estava conversando com mais dois homens.
Perguntei se eles estavam me esperando e o entrevistado H (2011), pescador, me
respondeu ―[...] Estamos esperando a coragem [...]‖. Depois de cerca de 15 min. o
60
Expressão utilizada para designar o a região onde o rio deságua no mar. 61
A pescaria de espinhel destina-se a capturar a maior diversidade de peixes possível. Sendo realizada somente no mar. Os peixes geralmente capturados são: cação, dorminhoco, baiacu, espada, bagre, dentre outros, dependendo da época.
57
entrevistado H (2011) foi buscar o combustível62 e quando voltou fomos para o rio
Doce, eu e três pescadores. Posteriormente descobri que toda a tripulação era da
mesma família, sendo o mais velho tio dos demais.
Fotografia 9: Hermínio retirando rede de pesca do rio Doce, durante pescaria de rede de espera. Foto:Charlene Bicalho. Regência/ES em 13/04/11.
62
Atualmente é possível comprar o combustível no posto localizado em Regência, antes era necessário ir até Barra do Riacho.
58
Fotografia 10: Flor (à esquerda) e Audir durante pescaria de rede de espera no rio Doce. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 13/04/11.
Como a pesca da manjuba ia fechar63 dia 15/04 fomos colocar, mirar e retirar redes
de espera. Os pescadores quase não conversaram durante a pescaria, e quando
diziam algo eu não entendia, me olhavam desconfiados com exceção do mais
jovem. O Mestre da embarcação apenas guiou o barco enquanto os demais jogavam
e miravam as redes. A rede retirada da água foi levada para o porto cheia de
manjubas. Essas foram constantemente molhadas [foto 11] durante o percurso
visando sua conservação. Quando chegamos ao porto uma lona foi estendida para
retirada das manjubas da rede [foto 12], enquanto isso o Mestre foi buscar o gelo.
Eles colocaram os peixes na caixa de isopor com gelo e foram em seguida para o
mar64. O entrevistado L (2011), pescador que estava no porto e resolveu ajudar na
tarefa de retirar as manjubas, disse que ia estocar manjubinha, [...] hoje o que tá
valendo R$ 2,00, depois65 vou vender por R$ 5,00, isso se quiser, se não quiser vai
tudo pra panela [...].
63
Devido período de defeso. 64
Não acompanhei essa etapa. 65
Fora da temporada de manjuba.
59
Fotografia 11: Hermínio molhando as manjubas durante pescaria de Rede de espera no rio Doce. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 13/04/11.
Fotografia 12: Hermínio (à direita), Audir (à esquerda) retirando as manjubas da rede. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 13/04/11.
2.3 DIÁRIO DE CAMPO – PESCARIA DE ESPINHEL
16/07/11
Lua: Cheia
4ª Pescaria: Espinhel
Local: Mar
60
Horário: 9h 30min às 16h 50min
Por volta das 9h o entrevistado D (2011), pescador, me ligou chamando para
acompanhar a pescaria de espinhel. Sai correndo para o porto, o dia tão esperado
havia chegado. Queria saber quem eu era navegando pelo mar, queria saber quais
divergências e convergências encontraria no espaço marítimo. Até então não sabia
sequer responder aos pescadores que eu pedia para me levar para o mar se eu
botava engordo66 ou não.
Quando cheguei ao porto os pescadores estavam organizando os materiais no barco
para saída. Essa arrumação67 se faz de suma importância para a pescaria de
espinhel para que não se perca a viagem68 e não ocorram acidentes. O espinhel
deve estar desembolado, os baldes onde ficam os anzóis na borda [foto 13] devem
ficar devidamente amarrados, as cordas do espinhel desemboladas dentro do
tambor e as bandeiras dentro do barco. Enquanto desancorava a embarcação o
entrevistado D (2011) me disse ―[...] cê vai ver a fartura que é lá no mar, cê vai ver!
[...]‖. A fartura a que ele se referiu não estava atrelada somente a quantidade, mas
também a variedade de espécies capturadas.
Fotografia 13: Monstro, durante pescaria de espinhel no mar. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 16/07/11.
66
Termo utilizado quando a pessoas vomita. Bota engordo é uma prática realizada por eles durante as pescarias de linha de mão para atrair os peixes. 67
Caso eles esqueçam algo eles perdem a viagem, como arrumar as malas para ir viajar. 68
Perca do dinheiro desembolsado para ir ao mar.
61
Não é possível realizar esse tipo de pescaria sem tripulação, pois requer no mínimo
três pescadores, o mestre, o proeiro e o ajudante. O mar tem que estar liso,
primeiramente devido à necessidade de transpor a Boca da Barra [foto 14] para
alcançá-lo e também porque o espinhel precisa ficar na superfície d água [foto 15].
Ainda segundo o entrevistado D (2011) o mar iria subir nos próximos dias, fator
importante para os que praticam esse tipo de pescaria. Segundo ele quando precisa
saber da previsão liga para Robinho69. Para fazer uma pescaria de espinhel se gasta
em torno de R$ 80,00, onde está incluso despesas com: alimentação, combustível,
isca e pagamento da tripulação. Tal modalidade requer um investimento inicial alto70
o que às vezes inviabiliza sua prática. Utilizando as palavras do entrevistado D
(2011) ―[...] se pega alguma coisa dá dinheiro, agora se não pega é prejuízo certo‖.
Fotografia 14: Mar na Boca da Barra. Foto: Charlene Bicalho. Regência /ES em 16/07/11.
69
Surfista que mora em Regência, provedor do site www.regenciasurf.com.br que dentre outros conteúdos informa a previsão do tempo. 70
Segundo informação do entrevistado M (2011), pescador, ―os pescadores às vezes não saem pro mar para pescar, nem é por causa do vento, é pra não gastar o que não tem‖.
62
Fotografia 15: Bandeira e espinhel no mar. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 16/07/11.
Durante o percurso o ajudante e o proeiro cortaram corda para emendar o espinhel,
amarraram pedras nas bandeiras, prepararam a isca cortando algumas manjubinhas
ao meio para atrair os peixes e economizar na isca que seria reposta no decorrer da
pescaria. Durante o trajeto do rio para o mar as manjubas71 eram cortadas e
colocadas em um balde. Enquanto isso o mestre guiava a embarcação até
determinado local, escolhido de acordo com a cor da água, direção do vento, bem
como a localização de redes que podem prejudicar a pescaria.
Transpor a Boca da Barra é ultrapassar as barreiras entre o possível e o impossível,
o real e o imaginário. O Mestre da embarcação parou em determinado local e me
disse, ―[...] O teste começa agora [...]‖. E eu achando que o teste já tinha passado,
pensando que a momento crítico era transpor a Boca da Barra. Quando o motor
cessou o barco começou a dançar ao som de uma música que parecia não ter fim,
somente naqueles primeiros minutos percebi a gravidade da situação. Sentia-me na
71
Nessa data como ainda tinha manjuba no mercado ela foi utilizada como isca. Em outras épocas eles fazem a pesca de arrasto antes da de espinhel para capturar a isca.
63
obrigação de passar naquele teste, caso contrário poderia ser reprovada nas
próximas pescarias pelos outros pescadores. Comecei a suar frio embaixo de sol
escaldante em plena 10h da manhã. A tontura72 assombra até mesmo alguns
pescadores, dessa forma não saí ilesa dessa situação.
Percebi que para o entrevistado D (2011), assim como para outros pescadores o
barco conjugado ao ambiente aquático torna-se mais agradável do que sua própria
casa, no ambiente terrestre. ―[...] me sinto melhor no mar do que na terra, no mar me
dá fome, na terra quase não como. Vamos soltar esse espinhel logo porque eu to
nervoso. Ontem eu comi galinha, mas hoje eu não como não [...]‖, disse o
entrevistado D, brincando. Após sua fala a bandeira de marcação73 amarrada à
corda74 do espinhel foi lançada ao mar sinalizando assim para outras embarcações e
os pescadores sua localização.
O espinhel contendo em torno de 3 km de extensão de corda, com
aproximadamente 300 anzóis75 começou a ser iscado [foto 16], lançado ao mar [foto
17], e direcionado pelo Mestre [foto 18] ao mesmo tempo em que conduzia a
embarcação que desliza a deriva. A atenção nesse momento redobra-se, todos
ficam em alerta para não se machucarem ou machucarem o colega. Caso a
embarcação ande mais rápido do que os anzóis iscados, alguém pode se machucar
sendo iscado. Quando o espinhel está todo na água outra bandeira é colocada em
sua extremidade. Enquanto isso o barco fica com o motor desligado, sendo
embalado pelos anzóis iscados lançados ao mar. A pesca de espinhel segundo os
pescadores é tranquila por requerer pouco esforço físico, entretanto mais perigosa
do que as demais.
72
O Mestre da embarcação vendo que não estava bem me perguntou se estava passando mal e eu respondi que estava quase, ele então disse para eu olhar para o horizonte. Foi o que fiz e melhorei um pouco. 73
Nessa modalidade utilizam-se pedras que se colocam flutuadores em conexão com a linha principal. O flutuador possui sempre uma bandeira para facilitar a localização. 74
Geralmente com cerca de 3k de extensão. 75
A distância entre um anzol e outro, deve ser suficiente grande para evitar o entrelaçamento de uns com os outros. Geralmente a distância de um anzol para outro é de uma braçada e meia, totalizando cerca de 300 anzóis.
64
Fotografia 16: Abel iscando o espinhel com manjuba durante pescaria de espinhel. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 16/07/11.
Fotografia 17: Monstro lançando o espinhel ao mar. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 16/07/11.
65
Fotografia 18: Cuíca direcionando o espinhel ao mesmo tempo em que conduz a embarcação.Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 16/07/11.
Por volta das 12h todos foram convidados para o lanche. Fomos para a popa do
barco, enquanto o Mestre entrou no casario76, espaço privilegiado dentro da
embarcação tendo em vista que era o único espaço onde havia sombra. Na ocasião
não vi os ajudantes entrarem ali a não ser a mando do mestre para ligar o motor. O
lanche providenciado pelo Mestre continha bananas, pão, biscoito, maionese e suco.
Entretanto, nada me fazia esquecer a falta que o ronco de um motor estava me
fazendo. Tentei me distrair fotografando a balsa [foto 19] da Aracruz, transportando
eucalipto para Bahia, que passava aparentemente próxima ao barco.
Fotografia 19: Cuíca e balsa ao fundo durante pescaria de espinhel. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 16/07/11.
76
Estrutura de madeira que se ergue sobre o convés e abriga os tripulantes da embarcação.
66
Após cerca de uma hora o motor foi ligado para começarmos a correr77 o espinhel.
Essa etapa consiste em verificar se algum peixe picou a cara78, o que é identificado
quando alguma boia fica submersa. Devido às correntes marítimas o espinhel curva-
se constantemente, sendo assim, se faz necessário desembolá-lo [foto 20] em
diversos pontos. Outro dificultador é os baiacus que cortam o espinhel sendo
necessário remendá-lo frequentemente. Antes mesmo de retirar o peixe da água os
pescadores os identificam quando ainda estão submerso [foto 21], como uma
brincadeira de adivinhação. Dentre os peixes capturados tinha dorminhoco, baiacu,
bagre bandeira e cação branco.
Fotografia 20: Monstro e Abel desembolando o espinhel. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 16/07/11.
77
Consiste em percorrer toda a extensão do espinhel verificando se algum peixe fisgado e posteriormente retirando-os do anzol. 78
Expressão utilizada para dizer que o peixe foi fisgado.
67
Fotografia 21: Peixe ainda submerso capturado durante pescaria de espinhel. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 16/07/11.
A habilidade do mestre é testada nesse momento, tendo em vista que o mesmo tem
que manobrar o barco ficando o mais próximo do espinhel possível para que o
proeiro possa puxar o espinhel com o bicheiro79. Dependendo do tamanho do
pescado o ajudante o ajuda a colocar o peixe na proa. O peixe ainda vivo é jogado
dentro de caixas ou tambores [foto 22].
Fotografia 22: Peixes capturados durante pescaria de espinhel. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 16/07/11.
79
Instrumento que consiste em um cabo de madeira com um gancho na ponta parecida com um anzol.
68
Paramos mais uma vez e fizemos um lanche antes da retirada do espinhel. Agora
além do que restou do primeiro lanche tinha também arroz com farinha, frango e
batatas. Ainda com o motor desligado, fomos todos para a popa do barco,
conversamos sobre o alimento, sobre o que estaria embaixo de nós, submersos por
aquela imensidão de água. Por vezes toques de silêncio cortavam nossa respiração
que repentinamente passavam a ser ritmadas pela ondulação de sonhos. O espaço,
mar e barco80, torna-se um espaço de convergência de vivências cotidianas, sonhos
e temores em comum que emergem das profundezas.
O Mestre pediu que eu tirasse uma foto do interior do convés me dizendo, ―[...] você
ainda não fotografou aqui dentro! Isso é importante, é detalhe [...]‖. Nesse instante
não soube se a embarcação pertencia ao mestre, ou se o mestre pertencia à
embarcação, tamanho zelo com a mesma, além da necessidade de estar no mar.
Conhecendo alguns dos irmãos81 do entrevistado N (2011), pescador, perguntei por
que ele escolheu a vida de pescador e ele esparramado na popa do barco me disse:
―[...] já trabalhei em empresa grande, no Projeto Tamar, mas não é isso que eu
quero não. Eu gosto de ficar assim, à vontade [...]‖.
Apesar dos perigos dessa modalidade os pescadores consideram essa modalidade
pesqueira tranquila, pois não exige tanto esforço físico como as demais. Os
pescadores mais jovens preferem a pescaria de espinhel à de rede de espera. Esse
fato gera um conflito geracional onde as outras modalidades de pescaria são vistas
pelos mais jovens como ultrapassadas. Assim, entrevistado N (2011) nos diz,
quando questionado se seu pai não ligava dele pescar em outro barco ―[...] nada,
meu pai não liga não, a pesca dele é pesca de velho, só fica ali no rio [...]‖.
O espinhel foi recolhido; enquanto um pescador puxava o espinhel, o outro retirava
as iscas e acomodava os anzóis a borda do tambor [foto 23]. No retorno aproveitou-
se para mirar duas redes que estavam à beira mar, praticamente sem peixe. Além
disso, retirou-se toda a barrigada dos peixes capturados [foto 24]. Devido ao vento
que pegamos contra a embarcação o retorno foi mais demorado.
80
Percebe que o mar transforma-se no lar do pescador. 81
Os irmãos não são pescadores.
69
Fotografia 23: Monstro e Abel recolhendo o espinhel. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 16/07/11.
Fotografia 24: Abel e Monstro retirando a barrigada do baiacu capturado. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 16/07/11.
Quando pisei em terra uma sensação estranha tomou conta do meu corpo, parecia
que ainda estava no mar. Era algo incontrolável que tomava conta da minha mente e
do meu corpo simultaneamente. Estava zonza como no início da pescaria no mar, o
teste ainda não tinha passado. Não conseguia sair daquela dimensão que
inicialmente não me pertencia, mas agora me dominava. Era como se estivesse
pronta para retornar, tudo o que antigamente era aparentemente paralelo se
apresentava turvamente ondulado. Consegui comer algo requentado do dia anterior,
posteriormente me deitei, ficando praticamente imóvel por cerca de 1h e meia.
70
CAPÍTULO III – REFLEXOS SUBMERSOS
Foram apresentadas, no capítulo anterior, algumas mudanças nas técnicas
pesqueiras de captura do pescado, bem como nas práticas sociais por meio,
sobretudo, da fala dos próprios pescadores de Regência Augusta. No presente
capítulo vamos aprofundar a análise de um dos fatores que possivelmente tem
alterado a forma de trabalho dos pescadores de Regência Augusta, as pesquisas
sísmicas marítimas, realizadas por uma empresa do setor petrolífero. No item 3.2
esclareceremos também como essa empresa, por meio de licenças ambientais,
recompensa a comunidade pesqueira da Vila pelos impactos negativos relacionados
às atividades derivadas das pesquisas sísmicas marítimas.
3.1 AS PESQUISAS SÍSMICAS MARÍTIMAS
A pesca artesanal e a agricultura de subsistência foram até 1980 o meio de
sobrevivência dos moradores de Regência Augusta. Atualmente tais atividades são
relevantes, entretanto dividem o espaço com atividades econômicas que
introduziram novos usos do espaço: a exploração de petróleo, preservação da
natureza e o turismo. Se por um lado tais alternativas de sobrevivência ofereceram
oportunidades diretas ou indiretas de trabalho, geraram conflitos para comunidade
local, por outro.
A maior empresa do setor petrolífero implantada no Brasil82 é uma sociedade de
economia mista vinculada ao ministério de Minas e Energia, que tem como objetivo
a pesquisa, a lavra, a refinação, o processamento, o comércio e o transporte do
petróleo proveniente de poço, de xisto ou de rochas, de seus derivados, de gás
natural e de outros hidrocarbonetos fluidos83. Fundada em outubro de 1953,
atualmente é a maior empresa do Brasil e a 8ª do mundo em valor de mercado,
possui mais de 100 plataformas de produção pelo país, além de 16 refinarias, 30 mil
82
Conforme a lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997. 83
Disponível em: < www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9478.htm>. Acesso em: 02 out. 2011.
71
quilômetros em dutos e mais de seis mil postos de combustíveis84. Sua estruturada é
dividida em Unidades de Negócios – UN, que por sua vez são responsáveis pela
gestão de um conjunto de concessões exploratórias e de produção, instalações
operacionais e administrativas.
A Unidade Operacional de Exploração e Produção do Espírito Santo (UO-ES) possui
4 complexos de produção: campo Jubarte, no litoral sul; campo On Shore com
produção em terra e no mar, no litoral norte; e os campos marítimos. Neste trabalho
abordaremos as pesquisas sísmicas marítimas. No Espírito Santo foram definidas
duas áreas para pesquisa sísmica, Complexo Golfinho e Peroá-Cangoá. A primeira
abrange os campos de Golfinho, Canapu, Camarupim e Camarupim Norte, enquanto
a segunda engloba os campos de Peroá e Cangoá conforme mapa abaixo:
84
Disponível em: < http://www.ccibra.com.br/website/empresa-mes_view.php >. Acesso em: 03 outubro 2011.
72
Mapa 3: Localização das áreas onde estão sendo realizadas as pesquisas sísmicas. Fonte: RIMA (2010)
A Vila de Regência encontra-se na área de influência dos campos marítimos que
estão localizados a algumas dezenas de quilômetros mar adentro como dos campos
on shore que mais interferem na composição visual da paisagem dos arredores de
Regência como a Unidade Operacional de Lagoa Parda [foto 25] e o Terminal
Aquaviário de Regência [foto 26] – responsável pelo escoamento de toda a
produção de petróleo dos poços em terra e da plataforma continental do Espírito
Santo e de campos produtores do sul da Bahia.
73
Fotografia 25: Unidade Operacional de Lagoa Parda. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 02/07/11.
Fotografia 26: Terminal Aquaviário de Regência, à direita, compondo a paisagem local. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 30/04/11.
Na vila de Areal85, encontram-se também cavalos de extração de petróleo [foto 27]
próximos às casas, dentro de propriedades rurais, além uma complexa rede de
gasodutos encontrados tanto submersos como acima do solo beirando a estrada,
instalados para transportar a produção. Ao contrário da comunidade de pescadores,
localizada na área urbana de Regência a comunidade rural beneficia-se diretamente
das áreas que são exploradas, pois recebem porcentagens da produção de acordo
com a área ocupada.
85
Área rural de Regência Augusta, distante cerca de 7 km da área urbana.
74
Fotografia 27: Cavalo de extração de petróleo. Foto: Charlene Bicalho. Área rural de Regência/ES em 02/07/11.
Assim como as demais comunidades pesqueiras do Espírito Santo que se
encontram na área de influência das pesquisas sísmicas a de Regência é
―beneficiada‖ por meio de compensações ambientais pelos impactos gerados por
atividades sísmicas marítimas. Segue mapa das áreas de influência, bem como
relação das associações e colônias identificadas em tal área.
75
Mapa 4: Mapa das áreas de influência. Fonte: RIMA (2010).
76
Segundo informações do Plano de Compensação:
―A avaliação sísmica é um método utilizado para a descoberta de depósitos de petróleo, de gás ou de minerais, por meio da emissão de ondas sonoras que se propagam através do fundo do mar. A análise da reflexão dessas ondas indica a presença ou não de depósitos adequados para a exploração. O navio emite uma onda sonora, que atravessa a água, chega ao solo marinho e se distribui pelo subsolo. Ao encontrar-se com cada uma das camadas do subsolo, parte dessa onda é refletida e capturada por sensores (hidrofones) na superfície do mar‖ (PLANO DE COMPENSAÇÃO, sem data, p. 4).
De acordo com informações técnicas do Escritório de Licenciamento das Atividades
de Petróleo Nuclear/Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (ELPN/IBAMA)86, o método sísmico libera ar comprimido à alta
pressão87, diretamente na água, tendo como efeito a geração de ondas acústicas
que se propagam pela água até atingir a crosta terrestre. Nessa etapa ocorre um
fenômeno físico denominado ―partição de energia‖, onde parte da energia é refletida,
parte é refratada e parte é transmitida para as camadas subjacentes. A energia
refletida é então captada por hidrofones88 que por sua vez as converte em sinais
elétricos, sendo possível assim reconhecer e mapear estruturas geológicas de
subsuperfície do fundo do mar. As ondas, convertidas em sinais elétricos, são
digitalizadas e transmitidas para o registro de processamento instalado no navio
sísmico. Dessa forma são identificadas estruturas geológicas que contém
acumulações de óleo e gás em quantidades substanciais para exploração
econômica.
―As operações de aquisição de dados sísmicos marítimos são realizadas por
embarcações89 devidamente equipadas, em áreas previamente selecionadas e
demarcadas por uma malha sísmica90‖, ainda segundo informações do ELPN/IBAMA
(2003, p. 5). Enquanto a atividade sísmica é executada ininterruptamente 24 horas
86
O documento Informação ELPN/IBAMA nº 012/03 tem por objetivo avaliar os efeitos ambientais da atividade de prospecção sísmica marítima, a partir de uma revisão bibliográfica sobre os impactos já conhecidos. 87
Tal procedimento substituiu o emprego de explosivos nas atividades sísmicas. 88
Detectores de pressão. 89
Tipicamente, os navios sísmicos são equipados com grupos de canhões de ar e rebocam cabos sismográficos com comprimentos que variam entre 4km e 16km, ocupando superfícies em torno de 10km2, e que se deslocam a uma velocidade média de 15km/h. 90
Um conjunto de linhas que define a trajetória de uma ou mais embarcações durante a atividade sísmica.
77
por dia, as comunidades de pescadores artesanais que se encontram na área de
influência segundo o Plano de Compensação (2011, sem data, p. 7) ―com potencial
de sentirem impactos negativos‖ são atingidas com disparos realizados de forma
regular em intervalos que variam entre 4 e 15 segundos, dependendo das
características do levantamento.
Figura 2: Embarcação rebocando os arranjos de canhões de ar e os cabos sísmicos (Thomas, 2001). Fonte: Informação ELPN/IBAMA nº 012/03.
A substituição de explosivos como fonte sísmica por canhões de ar reduziu o
impacto ambiental da atividade, todavia efeitos ambientais significativos ainda
ocorrem, segundo informação do ELPN/IBAMA.
―O aumento do nível sonoro nos oceanos tem vários efeitos potencias sobre os organismos aquáticos, que podem ser divididos basicamente em efeitos diretos, com potencial de causar danos físicos ou fisiológicos, ou em efeitos indiretos, que podem causar interferências em atividades básicas como a alimentação e a reprodução‖ (ELPN/IBAMA, 2003, p. 16).
78
Segue levantamento realizado sobre os efeitos das ondas sísmicas sobre a biota91,
ainda segundo informações do ELPN/IBAMA.
Efeitos das ondas sísmicas sobre a biota
Efeitos físicos
1. Danos a tecidos corporais e órgãos (e. g. pulmões e bexiga natatória)
2. Danos ao tecido e estruturas relacionadas à audição;
3. Alterações permanentes e temporárias no limiar auditivo (redução da capacidade
auditiva).
Efeitos sensoriais
4. Mascaramento de sons essenciais à sobrevivência do animal (e.g. sinais de
comunicação, busca de presas, e percepção da aproximação de ameaças como
predadores e navios.
Efeitos comportamentais
5. Interferência no padrão comportamental (o animal passa a evitar certas áreas, ou
tem os padrões de mergulho e respiração alterados).
Efeitos crônicos
6. Estresse que pode levar à diminuição da viabilidade de sobrevivência do animal,
ou aparecimento de doenças.
Efeitos indiretos
7. Diminuição da disponibilidade de presas, reduzindo a alimentação, restrição a
áreas de desova, alimentação e reprodução.
Quadro 3: Efeitos das ondas sísmicas. Fonte: Informação ELPN/IBAMA nº 012/03.
Ainda existe uma discordância de opiniões entre representantes da comunidade
científica sobre a real dimensão dos danos que os disparos dos canhões de ar
causam em órgãos e tecidos de peixes. ―De um modo geral, a percepção sonora é
de grande utilidade para os peixes, pois no ambiente oceânico os níveis de
luminosidade são baixos, limitando o sentido da visão‖, informações ELPN/IBAMA
(2003, p. 26). A seguinte declaração do Dr. Arthur Poppe da Universidade de
Maryland (apud ELPN/IBAMA) sintetiza a disparidade de opiniões sobre o assunto:
91
Conjunto de seres vivos de um ecossistema, o que inclui a flora, a fauna, os fungos e outros grupos.
79
―Uma breve exposição de peixes a sons de alta energia, ou a longa exposição a sons de baixa energia podem, ambos, potencialmente danificar o aparelho auditivo ou afetar o comportamento (e.g. morte, alteração no comportamento, mudanças fisiológicas e comprometimento do sistema acusticolateralis de peixes). Entretanto, há poucas evidências quanto ao efeito da atividade sísmica sobre peixes, o que pode ser devido mais à falta de pesquisas bem elaboradas do que à ausência destes efeitos‖ (ELPN/IBAMA, 2003, p. 28).
Em um experimento em gaiolas, realizado por McCauley et al. (apud ELPN/IBAMA),
concluíram que ocorre aumento na velocidade de natação e uma maior agregação
na formação de cardumes em direção ao fundo, em resposta a aproximação de
canhões de ar. Outros estudos abordam os efeitos de atividades sísmicas, em
diversos grupos de organismos marinhos, conforme o nível sonoro recebido, a
saber: Goold (1966), Bowels et al. (1994), Richardson et al. (1995), McCauley et al.
(1998), Booman et al. (1996), Saetre & Ona (1996), Trovarelli et al. (1998),
Kosheleva (1992), Matishov (1992), Holliday et al. (1987), Kostyvchenko (1973). No
Brasil pesquisadores do Departamento de Oceanografia da Fundação Universidade
do Rio Grande – FURG, apresentaram ao IBAMA um documento92 contendo
informações a cerca da redução na abundância de recursos pesqueiros nas
proximidades de uma embarcação sísmica que operava ao largo da costa brasileira
(ELPN/IBAMA, 2003).
Cabe salientar que os estudos citados a cerca dos efeitos da sísmica marítima na
pesca não são conclusivos, entretanto vão ao encontro dos depoimentos dos
pescadores, que, embora destituídos de caráter científico, são expressões de como
tais atividades são percebidas e como se tornam fontes de risco e comprometimento
à pesca artesanal. Como exemplo, temos a fala do entrevistado E (2011), pescador,
―[...] depois que a Petrobrás veio pra cá o peixe acabou, agora tem esses navios
passando também, aí é que os peixes vão acabar mesmo [...]‖. Tendo em vista a
importância da pesca para a comunidade em questão, denota-se que apesar dos
depoimentos serem destituídos de valor científico poderiam ser considerados para
efeito de comparação com estudos efetuados em outras comunidades pesqueiras e
até mesmo em outros países.
92
Documento protocolado no IBAMA em 24.07.01, sob o número 10100.003999/01).
80
Ainda segundo informação do ELPN/IBAMA (2003), os estudos ambientais
requeridos pelo IBAMA devem também levar em consideração os impactos sísmicos
nas relações tróficas, presa-predador, tendo em vista que tais relações podem
dificultar a predação, ou até mesmo tornar determinadas presas mais vulneráveis à
predação. Quanto ao processo de desova, o ELPN/IBAMA (2003) salienta que os
disparos sequenciais dos canhões de ar podem impedir o deslocamento migratório
de espécies marinhas, por meio da formação de uma ―barreira sônica‖. Tal fato pode
impedir, dificultar ou afugentar peixes em processo de desova ou em
desenvolvimento de estágios larvais iniciais.
Regência Augusta encontra-se na área de influência, ou seja, encontra-se tanto nas
regiões da pesquisa sísmica em si, como no trajeto dessas regiões até os portos ou
bases de apoio em terra. Segundo o Relatório de Impacto Ambiental – RIMA (2010),
questões básicas quanto à área de influência foram consideradas, a saber:
―Em relação aos organismos marinhos, o disparo dos canhões de ar para geração das ondas sonoras da pesquisa sísmica provoca o susto, a fuga e, em alguns casos, danos a animais marinhos, como peixes, baleias, golfinhos e tartarugas, principalmente àqueles mais sensíveis ao barulho, ou seja, com maior capacidade de perceber os sons. Esse comportamento pode provocar o deslocamento momentâneo dos animais das áreas de reprodução, alimentação e desova, e ainda reduzir a quantidade deles em determinados espaços, dificultando a pesca, que é a principal atividade profissional de muitos moradores dos municípios próximos à área da pesquisa sísmica. Devido à grande área de isolamento para realização da pesquisa sísmica, incluindo a de manobra do navio sísmico, haverá restrição nos espaços utilizados para a pesca. Isso ocorre porque, por motivo de segurança, não é permitido que embarcações pesqueiras naveguem no local reservado para a pesquisa sísmica enquanto ela estiver acontecendo. Terminada a pesquisa sísmica, o espaço é liberado‖ (RIMA, 2010, p. 31-32).
O trecho acima deixa nítido que existe a ocorrência de afugentamento do pescado,
gerando impactos, sobretudo às comunidades pesqueiras artesanais aqui definidas
pelo RIMA (2010) como:
―Feita com fins de alimentação da própria família ou comercial, podendo ser uma alternativa extra de trabalho ou não. É feita por familiares ou por um grupo de vizinhos, sendo o pescador o proprietário das ferramentas de pesca (redes, anzóis, etc.). O barco, normalmente de pequeno porte, não é um meio de produção, mas de deslocamento, e nem sempre pertence ao pescador. O uso dele é pago com parte da produção pescada‖ (RIMA, 2010, p. 32).
81
Tendo em vista que os levantamentos sísmicos em Regência ocorrem em áreas
utilizadas pelos pescadores artesanais, os impactos socioeconômicos são
maximizados em função da menor capacidade de mobilidade das embarcações93, e
do fato dos pesqueiros serem mais localizados. Ainda cabe salientar a possibilidade
de ocorrência de vazamento acidental de óleo diesel no mar durante as operações
de abastecimento do navio sísmico e demais embarcações, ou do líquido que
preenche o interior dos cabos sismográficos. Desta forma, a atividade pesqueira e a
aquisição de dados sísmicos são formas mutuamente excludentes de uso do espaço
marinho, implicando no estabelecimento de uma área de exclusão temporária para
as atividades pesqueiras. Cabe salientar que áreas de influência da pesquisa
sísmica no Espírito Santo são consideradas de alta sensibilidade ambiental no que
diz respeito à pesca.
A área de influência em questão também serve como rota de passagem, de cria, de
descanso e alimentação de várias espécies de animais como a baleia jubarte. No
caso específico de Regência temos a praia de Comboios significativa para desova
de tartarugas marinhas, que ocorre de outubro a março. Apesar dos impactos das
pesquisas sísmicas sobre as tartarugas marinhas serem também pouco conhecidos,
assim como dos peixes, foram adotadas medidas mitigadoras de impactos para as
mesmas por meio da exclusão temporária das atividades de levantamento de dados
sísmicos, perfuração de poços e instalação de dutos, durante o período de 1º de
outubro ao último dia do mês de fevereiro (INFORMAÇÃO TÉCNICA, 2006).
Segundo informações do RIMA (2010) deve ser dada atenção ao período de desova
de alguns peixes, devido à proximidade da foz do rio Doce com a área de influência
da pesquisa sísmica, entretanto o PCAP deixa claro que o intervalo entre as
pesquisas durante o período de julho/11 a fevereiro/12 deve-se a desova das
tartarugas e migração das baleias jubarte. Destacamos que a foz do rio Doce é uma
região considerada berçário para muitas espécies de peixes além de ser usada por
golfinhos e botos.
93
As embarcações possuem pouca autonomia de navegação, operando nas proximidades da costa.
82
A avaliação destes impactos, socioeconômicos e ambientais, deve ser conduzida
por intermédio de procedimentos de licenciamento ambiental, uma vez que estes se
baseiam em critérios que permitem ao IBAMA analisar os aspectos da interface
entre pesca e sísmica, bem como as especificidades regionais decorrentes. No
licenciamento ambiental, quando identificada acentuada restrição de acesso a
pesqueiros ligados à pesca artesanal, são propostas medidas compensatórias
baseadas no dimensionamento financeiro do prejuízo imposto àquelas comunidades
pela atividade sísmica.
3.2 “PARABÉNS, FOI UM PROCESSO DEMOCRÁTICO!”
Nesse item faremos a descrição de parte de duas reuniões promovidas por uma
empresa do setor petrolífero com a comunidade pesqueira de Regência Augusta.
Segundo informações do PCAP, tais reuniões fazem parte do ―Ciclo de Oficinas de
Elaboração de Projetos‖ onde os envolvidos na cadeia produtiva da pesca são
auxiliados na escolha e escrita de projetos importantes para a comunidade. Essa
medida classificada como mitigadora compensatória visa compensar as
comunidades pesqueiras artesanais inseridas na área de influência, por meio de um
processo coletivo e participativo de capacitação e estruturação dessas
comunidades.
De acordo com ELPN/IBAMA (2003), o aumento das atividades de exploração e
produção de óleo e gás, devido à abertura do setor de petróleo para o capital
externo desde 1997 fez com que o IBAMA a partir de 1999 adotasse procedimentos
de licenciamento ambiental específicos para operações de prospecção sísmica
marítima em águas brasileiras. Para tanto são exigidos dos empreendedores um
Estudo Ambiental, definido nos termos do art. 10 da Lei 6.938 de 31.08.81,
regulamentado por meio do Decreto 99.274/90 de 06.06.90, onde é realizada a
avaliação dos impactos ambientais inerentes à atividade, bem como a proposição de
medidas de monitoramento, mitigação e compensação ambiental.
83
Segundo informações do RIMA (2010) uma equipe de profissionais de diversas
áreas chegou à conclusão que os impactos reais, ou seja, decorrentes da execução
normal da atividade, ou potenciais, decorrentes de algum acidente nessa execução,
relacionados à pesquisa sísmica, podem ser eliminados ou reduzidos por meio de
ações de controle ambiental e de medidas de segurança.
As comunidades de pescadores artesanais de Conceição da Barra Sede (Conceição
da Barra), Regência (Linhares), Barra do Riacho, Barra do Sahy e Santa Cruz
(Aracruz), impossibilitadas de pescar durante o período de realização das pesquisas
sísmicas são compensadas pelo PCAP94. Tal plano procura compensar
especificamente as comunidades que desenvolvem a pesca artesanal, ―[...] por meio
da implementação de projetos específicos, que atendam às necessidades das
comunidades pesqueiras [...]‖, (RIMA 2010, p. 59).
A fim de atender as condicionantes do IBAMA, de forma a orientar os objetivos do
PCAP, a empresa Cepemar, juntamente com funcionários da empresa do setor
petrolífero, realizou um ―Ciclo de Oficinas de Elaboração de Projetos‖ visando
auxiliar os atores envolvidos na cadeia produtiva da pesca a escolher e escrever
projetos importantes para as comunidades envolvidas95, seguindo os seguintes
requisitos:
a. Os projetos devem ser coletivos e elaborados de maneira participativa;
b. Os projetos não podem constituir ações que são de obrigação do governo
(municipal, estadual ou federal);
c. Os projetos devem apresentar viabilidade ambiental e econômica, pressupondo
contrapartida da comunidade em seu desenvolvimento;
d. Os projetos deverão promover um processo educativo, deixando bem clara a
responsabilidade das partes na implementação e gestão coletiva dos projetos;
e. Formar o Grupo de Trabalho que irá conduzir o projeto;
f. Os projetos não podem gerar um maior esforço de pesca (sobrepesca) nem
resultar em degradação ambiental.
94
Plano de Compensação da Atividade Pesqueira da Pesquisa Sísmica Marítima 4D. 95
Como atores da cadeia produtiva da pesca compreendem-se: pescadores (as), catadores (as), marisqueiros (as), proprietários de embarcações, beneficiadoras do pescado, atravessadores, peixarias, lideranças, instituições, entre outros.
84
3.2.1 Reunião dia 23 de setembro de 2011
No dia 23 de setembro de 2011 foi realizada uma das reuniões do ―Ciclo de Oficinas
de Elaboração de Projetos‖, conduzida por funcionários da Cepemar e da empresa
do setor petrolífero. Tendo em vista que a ASPER ficou incumbida de fazer os
convites para classe pesqueira, somente os associados foram convidados, ou seja,
nem todos os atores envolvidos na cadeia produtiva da pesca estavam presentes.
Cabe aqui salientar que o convênio entre Petrobrás e comunidade pesqueira é
firmado via ASPER, ou seja, uma entidade jurídica. Entre os 23 pescadores também
estavam presentes dois funcionários do Projeto Tamar que tiveram voz durante toda
a reunião, além de terem feito uma reunião prévia no porto com os pescadores.
Iniciou-se a reunião com a leitura da cartilha do PCAP entregue aos participantes na
entrada do auditório do Centro Ecológico do Projeto Tamar. Nesse momento o
constrangimento pairou entre a maioria dos presentes, tendo em vista que não
conseguiam acompanhar a leitura devido ao alto grau de analfabetismo entre os
presentes. Logo após a leitura foi informado aos presentes o valor fixado pelo
IBAMA/IEMA de R$ 150.000,00 para a compensação em questão. Em seguida
iniciou-se a leitura de um diagnostico que segundo funcionária X, da empresa do
setor petrolífero, tinha sido realizado em reunião anterior96, o que auxiliaria na
definição das reais necessidades da comunidade no momento. Vários itens foram
questionados pelos pescadores, dentre eles o valor destinado para compensação,
bem como sua forma de destinação. Para alguns o valor deveria ser dividido entre
os pescadores, ao invés de ser destinado para um projeto específico.
―_ Quem definiu esse valor de R$ 150.000,00? (participante A, pescador). ―_ O IBAMA que define o valor‖ (funcionária X da empresa do setor petrolífero).
―_ O IBAMA não está passando necessidade, quem tá passando necessidade somos nós. O IBAMA não deve dizer o que nós precisamos. Precisamos de soluções imediatas, queremos dividir o dinheiro‖ (participante A, pescador).
96
Nessa reunião onde eu não estava presente foi aprovado o projeto de construção de uma loja de pesca, também no valor R$ 150.000,00, tendo em vista a dificuldade de acesso até Linhares para compra dos apetrechos utilizados durante as pescarias. Apesar de o projeto ter sido aprovado pelo IBAMA, as obras ainda não iniciaram.
85
A funcionária X que conduzia a reunião explicou que aquele valor era referente à
legislação vigente e que era necessário que eles votassem um projeto para ser
executado com aquele valor, pois, caso contrário, não teriam para quem destinar a
verba. Devido à indignação da maioria dos presentes o funcionário Y do Projeto
Tamar interveio com a seguinte fala:
―_ Essa é a legislação que a gente tem, é o valor que a gente tem‖ (Funcionário Y do Projeto Tamar).
Os pescadores conduzidos pela funcionária X tinham que sugerir propostas de
projetos que apresentassem viabilidade ambiental e econômica, pressupondo
contrapartida para comunidade. Entretanto os pescadores insistiam em falar sobre a
inviabilidade de executar qualquer projeto com apenas R$ 150.000,00.
―_ Antes de existir a Petrobrás existia o pescador, mas ela tá tomando conta de tudo, vai virar escravidão daqui uns dias. Ela e a Aracruz acabam com o rio Doce! E o pescador? Se depender da Petrobrás a gente morre, o pescador tem que se virar. E depois é o pescador que acaba com os peixes‖ (Participante B, pescador).
―_ As coisas estão acontecendo, o dinheiro dá para fazer alguma coisa. Tem que acreditar!‖ (Funcionária Z da empresa do setor petrolífero).
Em seguida o funcionário Y do Projeto Tamar, também interveio dizendo que tinha
uma proposta, o que desencadeou novas propostas resultando nas seguintes
opções:
1. Caminhão baú / criação de peixe;
2. Construção de barracão no porto;
3. Sinalização da foz do rio Doce;
4. Instrumentos para potencializar o turismo;
5. Conversão dos motores de biodiesel para utilização do óleo de cozinha;
6. Complementar estrutura de beneficiamento;
7. Outro veículo para ASPER;
8. Reforma da frota;
86
9. Compra de materiais para loja de pesca97.
Insatisfeitos e revoltados com as opções que foram sugeridas de forma
―participativa‖ alguns pescadores mais exaltados retiram-se do auditório e foram
embora recusando até o lanche que foi servido. Durante o intervalo ouvi algumas
falas dos pescadores, que se mostravam indignados com o que acontecia.
―_ Isso é uma falta de respeito com o pescador.‖ ―_ Isso é um cala boca pra gente rapaz.‖ ―_ Vamos comer
98 [foto 28] porque a Petrobrás só serve pra isso, dá comida
para gente.‖ ―_ Essa renda não vai chegar até o pescador porque a gente vai ter que comprar o que foi doado. No meu ponto de vista essa é uma propaganda enganosa.‖ ―_ Com a sísmica os peixes acabam tudo. A Petrobrás não tá nem aí, faz seu projeto e pronto.‖
Fotografia 28: Lanche servido aos pescadores durante a reunião. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 22/11/11.
Depois do lanche foi realizada a votação dos projetos que foram sugeridos, sendo
escolhido o item 9, compra de materiais para loja de pesca99. Logo, foi eleito o grupo
97
A loja de pesca foi o projeto eleito pelos pescadores no ano de 2010, referente à outra compensação. Segundo informações da funcionária Z, o projeto foi aprovado, eles já sabem onde será construída a loja, entretanto os trabalhos ainda não começaram. 98
Pescador referindo-se ao farto lanche oferecido pela Petrobras durante as reuniões. 99
Projeto de compensação das pesquisas realizadas no campo de Camarupim.
87
de trabalho que irá escrever o projeto, bem como transmitir aos demais as decisões
tomadas pelo grupo. A reunião foi finalizada com a seguinte frase:
―_ Parabéns pela reunião, foi um processo democrático!‖ (Funcionária Z da empresa do setor petrolífero).
3.2.2 Reunião dia 22 de novembro de 2011
No dia 22 de novembro de 2011 foi realizada outra reunião [foto 29] do PCAP, dessa
vez devido a uma carta da ASPER solicitando à empresa do setor petrolífero nova
reunião para redefinição da proposta de projeto votada100 na reunião anterior. Cabe
que salientar que nenhum dos pescadores que conversei antes da reunião soube
me dizer o que iria ser tratado, eles apenas me disseram que tinham recebido uma
ligação convidando para reunião. Notei que o convite da reunião dessa vez tinha
sido realizado diretamente pela empresa do setor petrolífero diferente da forma
usual, via ASPER.
Fotografia 29: Reunião no Centro Ecológico do Projeto Tamar. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 22/11/11.
A funcionária X da empresa do setor petrolífero iniciou a reunião dizendo que iriam
ser tratadas duas questões. Em primeiro lugar a alteração de prioridade levantada
na última reunião e, posteriormente, seria apresentado por dois analistas do IBAMA 100
Compra de materiais para loja de petrechos.
88
algumas restrições sobre o projeto da loja de pesca. Ela explicou um pouco sobre o
plano de compensação, esclarecendo que os pescadores deveriam restringir sua
área de pesca ficando no mínimo a 50m de distância do navio de pesquisa sísmica.
Após sua fala o participante B, pescador, fez o seguinte comentário:
―_ Isso se a gente achar o peixe depois, porque quando o navio passa demora um ano para o peixe voltar‖ (participante B, pescador).
―_ A compensação é referente à restrição e não ao afugentamento dos peixes, não existe nenhuma comprovação científica de que as pesquisas sísmicas afugentam os peixes‖ (funcionária X da empresa do setor petrolífero).
Depois ela explicou que a empresa do setor petrolífero tinha recebido uma carta da
ASPER solicitando alteração da prioridade levantada na reunião anterior. Sendo
assim a carta solicitava que ao invés de destinar o valor de R$ 150.000,00 para
compra de equipamentos de pesca, o recurso fosse utilizado para conversão da
câmara existente por câmara de congelamento e melhoria da Unidade de
Beneficiamento do Pescado para obtenção do Selo de Inspeção Sanitária Estadual
(SIE), visando à comercialização dos produtos em outros municípios dentro do
Estado. E por esse motivo a empresa do setor petrolífero estava ali para verificar se
era isso mesmo que eles queriam. A projeção seguida da leitura da carta aos
presentes gerou incômodo entre os pescadores tendo em vista que somente alguns
sabiam de sua existência.
―_ Eu concordo com a conversão da câmara fria, mas o Leônidas101
tinha que avisar sobre essa carta, ele tinha que conversar com o pessoal primeiro‖ (participante B, pescador).
―_ A ideia é que a conversa seja feita hoje‖ (funcionária X da empresa do setor petrolífero). ―_ Essa carta a gente não sabe de nada não, então ele tem que explicar‖ (participante C, pescador).
A funcionária X então explicou mais uma vez que o estudo realizado pelo Sebrae
para implantação da loja apontou que não seria necessário um valor102 para comprar
101
Presidente da Associação de Pescadores de Regência Augusta – ASPER. 102
Segundo Plano de Viabilidade realizado pelo SEBRAE para loja de pesca, dos R$ 150.000,00 foi
destinado R$ 67.000,00 para o estoque inicial dos seguintes apetrechos: panos para rede, cordas, chumbos, caixas de isopor, anzóis, linha de nylon, boias, coletes e cola araldite 170g.
89
materiais de pesca, a loja seria auto-sustentável e por isso a ASPER tinha enviado a
carta para empresa do setor petrolífero.
―_ Então aquela reunião não valeu de nada?‖ (participante C, pescador).
Nesse momento o participante D, presidente da ASPER, respondeu rispidamente
com uma fala direcionada ao participante C, pescador.
―_ Olha, ele não é sócio, é um dos que mais atrapalha a Associação, não foi convidado para essa reunião, nem sei o que ele ta fazendo aqui!‖ (participante D, presidente da ASPER).
A funcionária X da empresa do setor petrolífero interveio dizendo que a
compensação era para todos, não somente para os associados, entretanto a
empresa do setor petrolífero referia-se a associação porque tinha que se reportar a
uma entidade que representasse os pescadores, que iria gerir o projeto. O
participante D explicou que iria gastar R$ 50.000,00103 para a conversão da câmara
e o restante para a Unidade de Beneficiamento. O participante C então questionou a
destinação do valor:
―_ Esse dinheiro tem que beneficiar os pescadores e não a Associação‖ (participante C, pescador). ―_ A ideia é beneficiar você! O peixe dos não associados pode ser vendido pela associação em prol do pescador‖ (funcionária X da empresa do setor petrolífero). ―_ Você tá falando isso porque não mora aqui. A Associação tá toda irregular, a documentação pode estar certa, mas o resto... Isso aí não funciona não!‖ (participante C, pescador).
Após mais discussões a cerca da associação a reunião foi interrompida com a fala
do participante E, funcionário da Prefeitura Municipal de Linhares:
―_ Gente, [...] acho que vocês estão perdendo tempo discutindo. O IBAMA está aqui hoje, coisa que todo mundo quer e é raro acontecer. O momento é de discutir propostas. Foi feito um diagnóstico sério pela CTA
104, a
Petrobrás engavetou esses projetos e pegou projetinhos que estão prejudicando a comunidade pesqueira como um todo. Atratores artificiais,
103
Em um segundo momento o participante D disse que o valor para conversão seria de R$ 22.000,00. 104
CTA é uma empresa prestadora de serviços da empresa do setor petrolífero.
90
por exemplo, um projeto que não é de interesse da Petrobrás, beneficiaria a todos‖ (participante E, funcionário da Prefeitura Municipal de Linhares).
A funcionária X da empresa do setor petrolífero respondeu ao participante E,
funcionário da Prefeitura Municipal de Linhares que o diagnostico ao qual ele se
referiu não estava engavetado, tinha sido utilizado na última reunião para definição
das prioridades. Ela também salientou que o diagnóstico estava sendo utilizado
como apoio para o PCAP que por sua vez é tido como uma compensação imediata.
Logo após foi aberta a votação a favor ou contra a solicitação da carta da
Associação, vencendo com 31 votos a favor da conversão da câmara e melhorias na
Unidade de Beneficiamento.
A segunda etapa da reunião foi conduzida pelo funcionário K, analista do IBAMA.
Sua fala foi direcionada às restrições impostas pelo IBAMA para implantação da loja
de pesca, a saber:
a. Comercialização de determinado número de panos de rede por mês;
b. Cadastro do pescador no ato da compra (nome do pescador, CPF e número da
embarcação;
c. Preço diferenciado dos produtos apenas para as pessoas de fora ou turista,
para os demais o valor deverá ser o mesmo sem discriminação de
associados105 ou não;
d. O coordenador106 geral do projeto deverá ser remunerado e não poderá ser o
presidente da associação.
O funcionário K, analista do IBAMA, esclareceu que esse tipo de projeto
normalmente não é aprovado pelo IBAMA, tendo em vista que pode ocasionar a
sobrepesca, entretanto, devido às condições de acesso de Regência à Linhares
para compra dos apetrechos, o projeto tinha sido aprovado com as ressalvas citadas
acima, finalizando assim a reunião.
105
Nesse momento todos aplaudiram o funcionário K. 106
No projeto elaborado de viabilidade da loja de pesca elaborado pelo SEBRAE o participante D, foi nomeado como coordenador do projeto.
91
Fotografia 30: Reunião no Centro Ecológico do Projeto Tamar. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 22/11/11.
A partir das observações realizadas durante as reuniões descritas acima podemos
perceber que a empresa do setor petrolífero, a fim de atender as condicionantes do
IBAMA para aquisição do licenciamento ambiental, necessita se reportar a uma
entidade que represente os pescadores, no caso a ASPER. Dessa forma, tal
empresa por meio da implementação de projetos, compensa financeiramente a
comunidade pesqueira artesanal de Regência Augusta pelo prejuízo imposto. No
caso, referente somente à restrição da área de pesca, desconsiderando
especificidades locais.
A ASPER por sua vez, pode ser vista como um tipo de organização social que de
fato não expressa o sentindo real do associativismo. Assim sendo, a associação
perde sua legitimidade perante a comunidade pesqueira de Regência Augusta,
como uma entidade representativa. Podemos observar diferentes opiniões dos
pescadores a cerca da ASPER. Por um lado, há uma minoria que está à frente das
decisões tomadas pela associação, fazendo uso dos benefícios e parcerias
firmadas. Enquanto do outro lado temos a maioria, dividida entre associados não
pagantes e não associados, que ficam de certo modo à margem das decisões que
envolvem a associação, mas que em termos substantivos também lhes dizem
respeito. Possivelmente, devido à ausência de um senso de pertencimento entre os
pescadores, os não associados não se unem aos associados em prol dos interesses
comuns.
92
Toda a dinâmica do campo do desenvolvimento apresentada acima altera os modos
de vida e de trabalho dos pescadores. Os projetos de compensação apresentam
uma lógica e exigem padrões tanto de socialização quanto de informação que não
estão constituídas entre tais grupos. A ASPER, alvo de interesse de determinados
agentes é vista tanto como pessoa jurídica, pela empresa do setor petrolífero, como
uma instituição que funciona somente no papel, segundo os pescadores.
93
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse tópico retomo algumas questões retratadas nesse estudo. Para tanto recorro
à problemática107 exposta na introdução do trabalho.
A relação de convivência estabelecida entre a pesquisadora e moradores de
Regência Augusta foi determinante na formulação da problemática condizente com a
realidade local. Durante a pesquisa participante foi possível à realização de recortes
em torno do objeto direcionando dessa forma o estudo onde o espaço marítimo
tornou-se o pilar de sustentação da pesquisa, tanto pelo valor simbólico quanto pelo
valor prático.
O modo de vida da comunidade de pescadores está diretamente relacionado aos
recursos naturais da região onde se sustenta. Dessa forma, vimos que o rio Doce,
local onde se predominava as pescarias, encontra-se ameaçado devido à utilização
de suas águas na cadeia produtiva de Projetos de Grande Escala (PGE)
implantados na região. O ambiente então se torna inadequado para reprodução e
sobrevivência dos peixes levando os pescadores a alterarem sua dinâmica social e
de trabalho. As mudanças no ambiente natural, rio Doce, aliadas ao crescimento
populacional, sobrepesca, chegada de atravessadores, dentre outros fatores têm
levado os pescadores a realizem suas pescarias no mar.
Nesse sentido, quando os pescadores se lançam ao mar deparam-se com
pesquisas sísmicas marítimas realizadas por uma empresa do setor petrolífero. As
possíveis alterações no meio natural marítimo, causadas pela sísmica, vão ao
encontro dos depoimentos dos pescadores que destituídos de caráter científico, são
expressões de como tais atividades são percebidas e como se tornam fontes de
riscos e comprometimento à pesca artesanal. Vimos também que a atividade
pesqueira e a aquisição de dados sísmicos são formas mutuamente excludentes de
uso do espaço marinho, implicando no estabelecimento de uma área de exclusão
temporária para as atividades pesqueiras.
107
―Como os pescadores artesanais de Regência Augusta ressignificam seus trabalhos pesqueiros e práticas sociais, sobretudo diante de reflexos gerados por Projetos de Grande Escala (PGE´s)?‖
94
A avaliação dos impactos socioeconômicos e ambientais é conduzida por intermédio
de licenciamento ambiental onde são propostas medidas compensatórias baseadas
no dimensionamento financeiro do prejuízo imposto à comunidade. No capítulo III
vimos o relato de duas reuniões do PCAP realizadas com a comunidade pesqueira
de Regência Augusta, a fim de atender as condicionantes do IBAMA para aquisição
do licenciamento ambiental pela empresa do setor petrolífero. Vimos também que a
empresa do setor petrolífero por meio da implantação de projeto necessita se
reportar a uma entidade que represente os pescadores, no caso a ASPER.
A ASPER apresenta-se como ferramenta política, alvo de interesses de atores locais
e outsiders, o que pode contribuir para sua fragilização. Na situação apresentada no
capítulo anterior os pescadores não se apresentaram como um grupo coeso em
oposição à empresa do setor petrolífero, também representada pela Cepemar.
Utilizando palavras do participante A, pescador, em fala já reproduzida
anteriormente: ―Com a sísmica os peixes acabam tudo. A Petrobrás não tá nem aí,
faz seu projeto e pronto‖ (p.85), podemos verificar que a indignação dos mesmos se
mostra insuficiente para resistir à pressão a que são submetidos.
Dessa forma, as reuniões do PCAP transformam-se em arenas onde os atores locais
são pressionados pelos outsiders a tomarem decisões sobre a implantação de
projetos que apresentem viabilidade ambiental e econômica, sem que estes tenham
desenvolvida uma cultura voltada para esse tipo de ação. Enquanto isso os
pescadores em busca de soluções imediatas para os problemas108 do dia a dia
solicitam que o valor da compensação seja repassado para cada pescador. Mas
devido à fragilidade do associativismo da classe acabam por ceder à pressão dos
outsiders presentes. O campo do desenvolvimento (RIBEIRO, 2008) ganha,
portanto, a sua conformação em Regência Augusta.
Tais compensações ambientais, no entanto, têm potencializado os conflitos
existentes no dia a dia da pesca entre os associados e não-associados. O
favoritismo aos associados pode ser notado por meio da forma de convite para as
108
Consertar embarcação, pagar contas atrasadas, comprar congelador, levar familiares ao médico na cidade, comprar apetrechos de pesca, dentre outros.
95
reuniões, enquanto na reunião do dia 23/09/11 os pescadores foram convidados por
alguém da comunidade, onde os associados são avisados, na reunião do dia
22/11/11, com a presença do IBAMA, os convites foram realizados via telefone
respaldando dessa forma a presença dos não associados.
Quanto aos depoimentos acerca do afugentamento do pescado, diz-se que este é
recorrente no dia a dia da pesca. Todavia podemos notar que os mesmos são
inviabilizados tanto pela empresa do setor petrolífero quanto pelo IBAMA, por serem
destituídos de valor científico. Ainda nesse sentido, na tentativa de incorporar
questões ambientais às estratégias da empresa, faz-se o uso de um modelo
―democrático‖ de participação, no qual os projetos devem ser elaborados de forma
conjunta por toda a coletividade organizada. No entanto, não havendo uma genuína
cultura política previamente gestada, as ações dos pescadores ficam engessadas
nesse tipo de associativismo que muito mais reproduz as relações personalistas do
que impulsiona as necessárias transformações. Nesse processo a comunidade
pesqueira de Regência torna-se um objeto de político dos PGE´s.
Cria-se nesse campo de desenvolvimento uma interdependência mútua entre
outsiders e atores locais, seja por meio de compensações ambientais
regulamentadas ou compensações informais como, por exemplo, a doação de
equipamentos para sede da ASPER. Tal observação nos faz refletir se essas
compensações informais não se tratam de negociações para que ambas as partes
tenham uma convivência harmoniosa. Sendo assim, a dependência dos grupos
atingidos mostra-se diretamente proporcional aos impactos no meio natural, onde
esses retiram sua subsistência.
Em suma, o que busquei nessa dissertação, realizada por meio de observação
participante, foi entender as mudanças no trabalho pesqueiro e os mecanismos de
adaptação social perante os reflexos gerados por um PGE’s instalados no distrito de
Regência Augusta. Na primeira parte do texto realizamos uma caracterização da
pesca em Regência Augusta, onde foram diagnosticados reflexos de alguns PGE´s
sobre o maior corpo de água doce do Estado do Espírito Santo, o rio Doce. Tal fato
ocasionou mudanças não somente no trabalho que passou a ser realizado
predominantemente no mar, mas também na dinâmica social dos pescadores.
96
Dessa forma no Capítulo II tentamos descortinar, sobretudo por meio da fala dos
pescadores, os modos como os mesmos percebem tais mudanças e como estas
geram alterações nas suas atividades pesqueiras. Para tanto recorremos à
descrição de dois tipos de pescaria, a saber: a pescaria de rede de espera no rio,
predominante há cerca de quatro décadas atrás, e a pescaria de espinhel, no mar.
Nessa última modalidade, preferida entre os mais jovens, nos deparamos com a
restrição da área de pesca por conta de vários fatores, dente eles privilegiamos os
estudos sísmicos.
No último capítulo aprofundamos, finalmente, os comprometimentos dos impactos
advindo desses estudos. Também esclarecemos como a empresa do setor
petrolífero presente na localidade, por meio de licenças ambientais, recompensa a
comunidade pesqueira da Vila pelos impactos negativos relacionados às atividades
derivadas dessas pesquisas.
97
REFERÊNCIAS
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100
APÊNDICES
APÊNDICE A – VIAGEM
O percurso, de cerca de 120 km, utilizado pela maioria dos turistas que vêm da
capital do Estado de carro para Regência Augusta é realizado pelo litoral, rodovia
ES-010 até Vila do Riacho, seguido por cerca de 30 km de estrada de terra. O
deserto verde dos eucaliptos emerge durante todo o percurso ultrapassando pastos
destinados ao gado de corte. Já para a maioria dos nativos e turistas que realizam o
trajeto de ônibus o caminho é outro, sendo necessário percorrer 133 km de Vitória
até Linhares, pela BR-101109. De Linhares a Regência são mais 58 km sendo que
destes apenas 10 km são asfaltados. Para realizar tal percurso se faz necessário
pegar dois ônibus, de Vitória para Linhares e de Linhares para Regência. Os
horários de ônibus de Linhares para Regência são reduzidos a 3 vezes ao dia e não
são raros os acidentes nesse trecho durante a noite. As condições precárias dos
ônibus, bem como o valor da tarifa de R$ 11,00 por trecho são reclamações triviais
entre os moradores da Vila. A manutenção dos trechos sem pavimentação é
realizada pela Prefeitura de Linhares e pela Petrobrás.
No percurso do município até Regência, passamos pela comunidade de Perobas,
localizada a 18 km de distância da sede do município ainda no trecho asfaltado. No
término do asfalto a paisagem altera-se dependendo da época do ano em forma de
lama ou poeira. A agropecuária destaca-se na economia do Município, com ênfase à
pecuária. A paisagem deste percurso é marcada por pastos destinados à produção
intensiva de gado de corte, enquanto antigas fazendas de produção de cacau
compõem o cenário com suas barcaças de secagem. Os solos arenosos acolhem
vastas plantações de mamão papaya fazendo do município o maior exportador
brasileiro.
109
A inauguração, em 1972, do asfaltamento desta BR que liga Vitória ao sul e ao norte do Estado até
São Mateus, assim como a construção da ponte Presidente Vargas, sobre o rio Doce, contribuíram para o desenvolvimento socioeconômico do Município de Linhares de onde Regência é distrito.
101
Tendo em vista que as pastagens não desenvolvem na sombra, a maior parte do
percurso é marcada por cemitérios de tocos de árvores que ainda persistem. As
conseqüências que viriam após o desmatamento das florestas do Norte do Estado
foram advertidas pelo cientista capixaba Augusto Ruschi desde 1973 (MEDEIROS,
1983). Segundo palavras de Ruschi (apud Medeiros, 1983, p. 29) ―Há regiões em
que o terreno passou da floresta para a pastagem e logo virou caatinga. O rio Doce
está morrendo, Era fundo, ficou raso. A vida animal extinguiu-se dentro dele. Está
sendo assoreado.‖ A região do município de Linhares, sofreu forte processo de
degradação ambiental durante o período de ocupação de suas terras. Grande parte
de sua cobertura vegetal nativa, especialmente a Mata Atlântica, foi removida para
comercialização da madeira e para os plantios agrícolas ou introdução de
pastagens. Acho melhor colocar isso em nota de rodapé.
Atualmente o município possui, além das manchas remanescentes da Mata Atlântica
em propriedades particulares, quatro reservas que preservam o que restou, a saber:
Reserva Biológica de Sooretama e Reserva Florestal de Linhares ao norte do
município; Reserva de Comboios, próxima ao litoral no distrito de Regência; Floresta
Nacional de Goytacazes, ao sul do rio Doce, próxima a sede do município. A
vegetação que ainda resta modifica-se à medida que nos aproximamos do litoral, as
árvores diminuem de tamanho tornando-se cada vez mais rasteiras até alcançar a
restinga. Essas áreas de influência, denominadas restinga, são compostas por
ecossistemas que mantém estreita relação com o oceano e simultaneamente com o
homem, particularmente para o desenvolvimento de atividades turísticas. Além disto,
possui características próprias relativas à composição florística.
Após a Ponte Nova, existe uma bifurcação onde o destino de ambos os caminhos é
o mesmo, a estrada principal da Vila de Regência Augusta. Na estrada à direita
encontramos a aproximadamente 7 km da Vila Regência a sede do Projeto Tamar-
ICMBio e da Reserva Biológica de Comboios. Neste trecho encontramos
inicialmente duas entradas na beira da praia, denominadas de point 1, point 2. Estes
pontos são frequentados por surfistas que vem de todo o Brasil a procura da onda
perfeita110. A maioria dos que frequentam tais picos não chegam a ir até a Vila,
110
A praia de Comboios abriga uma das melhores ondas do Brasil.
102
retornando dali mesmo após o surf. Enquanto os que ficam para pernoitar
geralmente se limitam a vigiar as ondas na praia e frequentar o forró111, o que gera
conflito com os surfistas mais antigos que relatam ter uma relação diferente com as
ondas. Estes defendem que os que ficam no forró até de manhã viram a noite
bebendo, saem do forró e caem na água para surfar colocando em risco a
integridade dos que foram dormir cedo para surfar pela manhã.
Retomando o percurso, em torno de 4 km adiante, após a base da Reserva
Biológica de Comboios, temos o terminal aquaviário de Regência, conhecido entre
os nativos e turistas como tonéis. Neste trecho a vegetação rasteira é alterada por
palmeiras que foram plantados ao redor da construção encravada em meio à
restinga. Em frente aos tonéis também existe um pico de surf atualmente bastante
frequentado pelos surfistas que se sentem mais seguros em deixar seus veículos em
frente às construções devido às câmeras de filmagem existentes como forma de
proteção aos veículos. Os assaltos são recorrentes, entretanto se intensificam
durante os feriados prolongados e finais de semana. Sem um posto policial ou
investigações a respeito não se sabe ao certo se os assaltantes são pessoas de
fora112 ou da própria Vila. Existem mais duas entradas que dão acesso à praia,
sendo essas utilizadas prioritariamente pelos moradores.
A estrada da esquerda foi construída com o propósito de desviar o fluxo de
caminhões da Petrobrás que passavam pela estrada, mencionada anteriormente,
disputando espaço com os nativos e principalmente com os turistas, surfistas e
visitantes do Projeto Tamar. Quem opta por esta estrada encontra pastos e gado
cercados por lagoas formadas devido à regressão do mar. A cerca de 6 km da
entrada da vila passamos por um pequeno trecho asfaltado que parece mais uma
ilusão de ótica em meio a tal cenário. Esse se justifica pela presença do terminal
petrolífero de Regência – ―TORGUA, construído em 1981. Se ao invés de
111
Essa atividade turística acontece no estabelecimento Choupana da Praia, na rua da Praia. Frequentado basicamente pelos de fora, inicia-se por volta das 1h da madrugada com término por volta das 6h da manhã. Os nativos homens que freqüentam o local ficam a maior parte do tempo observando pelos cantos enquanto as meninas nativas ficam em busca de um de fora para dançar. 112
Nesse caso pessoas de fora se refere a pessoas que não moram na vila, o mesmo termo é utilizado para identificar aqueles que residem na vila, mas não são filhos da terra (nascidos em Regência).
103
passarmos em frente aos tanques da Petrobrás seguirmos adiante, nos deparamos
com imensos cavalos de extração de petróleo a caminho da comunidade de Areal.
Na vila de Regência Augusta encontramos todas as ruas sem pavimentação. As
casas em sua maioria de alvenaria abrigam por vezes famílias inteiras que dividem
suas casas em um mesmo terreno. A área urbana de Regência possui um posto de
saúde com atendimento médico duas vezes por semana mediante consulta
agendada previamente, um supermercado, vendas, ―botecos‖, uma associação de
pescadores, uma Escola Estadual de Ensino Fundamental, uma associação de
moradores, um museu, pousadas, um posto de gasolina e restaurantes que
atualmente atendem os funcionários das empreiteiras da Petrobrás e os turistas
durante os finais de semana.
APÊNDICE B – SEJAM BEM-VINDOS
A temporalidade dos pescadores que antes era demarcada apenas pelo inverno e
verão, seca e cheia, hoje também é marcada pelo calendário das festas devido a
inserção econômica do turismo. Na maioria dos casos os pescadores como
alternativa econômica alugam suas casas durante as principais festividades que
ocorrem na Vila, a saber: Carnaval [foto 31], Festa do Caboclo Bernardo [foto 32],
Festa dos Pescadores113, Fincado do Mastro de São Benedito [foto 33] e Retira do
Mastro de São Benedito [foto 34].
113
No ano de 2011 a festa não ocorreu.
104
Fotografia 31: Bloco Valete de Ouro entre os foliões Durante Carnaval. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 07/03/11.
Fotografia 32: Banda de congo São Benedito de Regência durante a Festa do Caboclo Bernardo. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 05/06/11.
105
Fotografia 33: Banda de congo São Benedito de Regência em cortejo pelas ruas durante festa de fincada do Mastro. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 30/10/10.
Fotografia 34: Festa de derrubada do Mastro. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 22/01/11.
Durante as festas o tempo dos Regencianos mescla-se com o tempo dos de fora.
Todos preparam suas casas para alugar, receber parentes, amigos, amigos dos
amigos, tudo se torna permitido. O cotidiano da pacata Vila é interrompido por
pessoas em busca do uso do espaço natural, isso inclui passeios destinados
principalmente às famílias como: trilhas ecológicas, visitas à base do Projeto Tamar
e ao Centro Ecológico, passeio de caiaque. E por outro lado, destinado, sobretudo
aos jovens, forró [foto 35], surf [foto 36], festas na varanda, timbres afinados nos
106
quintais. Seja qual for à diversão todos vão para Regência em busca da
tranquilidade que apenas existe na ausência dos então presentes.
Fotografia 35: Forró na Choupana da Praia. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 10/10/10.
Fotografia 36: Surfista na praia. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 30/04/11.
Nesse sentido, Santos (2006, p. 90) reconhece que ―cada lugar é teatro de tempos
―externos‖ múltiplos‖. Desta forma percebe-se que a Vila passa a viver uma colagem
de tempos, enquanto os que vêm de fora buscam o espaço ideal para satisfazerem
suas necessidades, os nativos por sua vez ocupam-se em trabalhar e receber os de
fora, enquanto os animais perambulam atordoados com a poluição sonora. Todos os
107
personagens fundem-se contraditoriamente sem dialogarem, em um mesmo espaço
[foto 37].
Fotografia 37: Criança que foi quase atropelada por veículo enquanto brincava na rua. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 07/03/11.
Dentre as festas citadas destacamos a festa do Caboclo Bernardo, cuja versão
institucionalizada encontra-se na 21ª edição, sendo organizada pelas Secretarias de
Cultura do Município e do Estado, juntamente com a Petrobrás e Associação dos
Moradores de Regência. Esta ocorre anualmente próxima à data de morte do
Caboclo Bernardo, no dia 03 de junho. Não foi possível identificar ao certo quando
se originou a Festa do Caboclo Bernardo. Entretanto as narrativas datam o início de
tal comemoração, em 1887, quando o Caboclo Bernardo retornou do Rio de Janeiro
após ser homenageado pela Princesa Isabel por seu ato de heroísmo.
A história que todos os moradores de Regência Augusta possuem em comum
transformou o herói do naufrágio em um modelo de superação a ser seguido,
carregando a esperança de que um dia também sejam reconhecidos por superarem
todas as adversidades que a natureza lhes impõe na barra do rio Doce [foto 38]. A
presença imaginária do pescador Caboclo Bernardo faz parte, portanto, de uma
auto-representação dos pescadores, na qual estão expressos os elementos de uma
bravura cotidiana.
108
Fotografia 37: Pescadores na sul do rio Doce. Foto: Charlene Bicalho. Regência/ES em 14/07/11.
APÊNDICE C – “CABOCLO” BERNARDO
A história do ―Caboclo‖ Bernardo merece um relato especial. Nascido na Vila de
Regência Augusta, passou para os anais da História do Espírito Santo ao salvar
cento e trinta e dois tripulantes do Cruzador Imperial Marinheiro. À 1h e 40min da
madrugada do dia 7 de setembro de 1887, o Cruzador chocou-se contra o pontal sul
da barra do rio Doce, há duas milhas da desembocadura do grande rio, em
Regência Augusta. Enquanto todos diziam que não havia nada a fazer, porque além
de ser madrugada reinava uma tempestade, o ―Caboclo‖ Bernardo se lançou
corajosamente ao mar, para levar a bordo o ―cabo salvador‖, com a ponta presa aos
dentes.
Por quatro vezes foi repelido pela fúria do mar, mas na quinta atingiu o ―Imperial
Marinheiro‖, iniciando o processo de salvamento pelo cabo que foi amarrado ao
navio. Dez pessoas não resistiram e morreram. Diante da percentagem de mortos, o
próprio ―Caboclo‖ Bernardo pegou uma pequena chalana, que existia entre os
destroços, e ligada ao cabo finalizou o processo de salvamento. Durante cinco horas
de lutas incessantes foram salvas cento e vinte e oito vidas.
109
No dia 29 de Setembro de 1887 o herói nacional foi agraciado pela Imperial
Regente, Princesa Isabel, com a medalha humanitária de 1ª classe, cunhada em
ouro, juntamente com um envelope lacrado e outro aberto contendo um documento
de agradecimento. Após trinta e quatro dias o Caboclo Bernardo regressou do Rio
de Janeiro para o seu berço natal, sua querida Regência Augusta.
O imaginário social formado em torno do ―Caboclo‖ Bernardo se mostra mais real do
que a realidade propriamente dita. A história que todos os moradores de Regência
Augusta possuem em comum transformou o herói do naufrágio em um modelo de
superação a ser seguido, carregando a esperança de que um dia também sejam
reconhecidos por superarem todas as adversidades que a natureza lhes impõe na
barra do rio Doce. Nesse sentido, segundo Valim (2008, p. 64) ―[...] Caboclo
Bernardo configura-se como uma metáfora ritual dos dramas sociais vivenciados
pela comunidade de pescadores‖.
Toda sociedade cria e recria seu próprio mundo por meio de significações que lhe
são específicas. Utilizando o conceito de Castoriadis (2004), o ato heroico de
Bernardo Jose dos Santos faz emergir um magma de significações imaginárias,
peculiar à comunidade de Regência Augusta. Estas significações por sua vez
estruturam as representações, designam as finalidades da ação e estabelecem os
tipos de efeitos característicos daquela sociedade. A presença imaginária do
pescador Caboclo Bernardo faz parte, portanto, de uma auto-representação dos
pescadores, na qual estão expressos os elementos de uma bravura cotidiana.