UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
DIRETORIA DE PESQUISA
PROGRAMA INSTITUCIONAL DE BOLSAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA –
PIBC: CNPq, CNPq/AF, UFPA, UFPA/AF, PIBC/INTERIOR, PARD, PIAD, PIBD,
PADRC E FAPESP
RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO
Período:
( ) PARCIAL
(X) FINAL
IDENTIFICAÇÃO DO PROJETO
Título do Projeto de Pesquisa: Literatura Comparada e Estudos Culturais II:
perspectivas teóricas para ler literatura, arte, cultura, sociedades e processos
globalizantes na Amazônia, Brasil e América Latina.
Nome do Orientador: Luís Heleno Montoril Del Castilo
Titulação do Orientador: Doutor
Faculdade: Faculdade de Letras – Fale
Instituto/Núcleo: Instituto de Letra e Comunicação – ILC
Laboratório
Título do Plano de Trabalho: Literatura da Amazônia: a poesia de Vicente Franz
Cecim.
Nome do Bolsista: Rogério Alan Tancredo
Tipo de Bolsa: PIBC/UFPA
INTRODUÇÃO
Este relatório técnico-científico tem por objetivo descrever como se deu a
execução das atividades referentes ao Plano de Trabalho Literatura da Amazônia: a
poesia de Vicente Franz Cecim vinculado ao Projeto de Pesquisa Literatura Comparada
e Estudos Culturais II: perspectivas teóricas para ler literatura, arte, cultura,
sociedades e processos globalizantes na Amazônia, Brasil e América Latina.
O Plano de Trabalho em questão tinha como principal objetivo pesquisar o acervo
de Vicente Franz Cecim publicado em revistas especializadas, jornais e suplementos da
época em que produziu até o momento o escritor e, assim, compor um corpus de
pesquisa com a finalidade de mapear a produção de Vicente Cecim. Para isso, contou
com um bolsista PIBC/UFPA autor do presente relatório.
As atividades descritas neste relatório, corresponde ao objetivo do Plano de
Trabalho que foram realizadas no período de setembro de 2014 a agosto de 2015 as
quais compreendem:
a) Pesquisa do Acervo de Vicente Franz Cecim: Fundação Tancredo Neves –
Centur, sala Haroldo Maranhão – obra raras.
b) Pesquisa em revistas especializadas, jornais e suplementos literários
publicados na década de 80 até 2013 ano da última publicação do escritor.
Para que fique claro como as atividades foram realizadas apresentar-se-á um breve
resumo do Projeto de Pesquisa, pelo qual está vinculado o Plano de Trabalho,
pontuando sua justificativa e objetivos. Este relatório contém igualmente apresentação
dos resultados parciais obtidos com as análises empreendidas.
RESUMO DO PROJETO DE PESQUISA:
O projeto busca recompor os campos da literatura e das artes na dinâmica da
modernidade e contemporaneidade na Amazônia, no Brasil e na América Latina, em um
estatuto contemporâneo da cultura. Pensar sobre os objetos artístico-culturais
pesquisados que já não se sustentam unicamente na noção de culturas populares,
culturas de massa, alta cultura, baixa cultura e/ou cultura nacional, regional etc., com
estruturas fixas. Processos globalizantes têm interferido nos sistemas culturais outrora
bem distintos e demandado sistemas disciplinares de conhecimento sobre as
transformações resultantes deles. Tais processos estão ativos na Amazônia, a ponto de
deslocarem as noções uniformes e de senso comum de uma terra isolada, de ciclo da
natureza a reger a cultura do homem. É claro que o rigor científico não se deixa
colonizar, ao contrário, ele é capaz de pensar, sobretudo, a transformação da natureza no
curso do desenvolvimento econômico a pautar a agenda cultural dessa região. Mas é
hora de pensar também sobre a difícil tarefa de interpretar a cultura expandida em seus
objetos artístico-culturais. É assim que a interdisciplinaridade já consagrada na
Literatura Comparada vem somar-se aos Estudos Culturais para dar conta de uma
cartografia de saber aberta e ampliada.
ÁREA: Linguística, Letras e Artes.
Palavras-Chave: Amazônia, poesia, Vicente Franz Cecim.
JUSTIFICATIVA
A modernidade, época que ainda não findou e que se desdobra com o
contemporâneo por compartilhar com este costumes e características, advém de
processos de modernizações que começam a transformar o espaço geográfico como as
construções de ferro, a máquina a vapor, a luz elétrica, a chegado do automóvel, as
construções de vidro, a cultura do trabalho implantado em nossos dias, ou seja, começa
a partir de processos técnicos que se intensificam (devido a expansão da indústria e da
produção em massa) junto à urbanização que se expande ao longo dos séculos XIX e
XX. Filha da técnica, a modernidade traz consigo a carga dessa transformação natural –
do ponto de vista evolutivo - que tirou o homem do campo para jogá-lo na grande
cidade. Esse homem simples, que levava uma vida pacata, de subsistência, agora é
obrigado a conviver com invenções mirabolantes que transformam a realidade,
invenções que prometem, se não solucionar, amenizar seus problemas, melhorar a vida
dentro da existência. Porém, o que se viu como resultado desse processo urbano
industrial foi um homem mecanizado, afastado das relações humanas para se tornar
peça da engrenagem em prol de uma produção incessante. Destituído dos esteios éticos
que durante muitos anos sustentaram a civilização, o indivíduo torna-se solitário e
angustiado apesar dos avanços tecnológicos. Esse é o espírito do homem moderno, a
carga que a modernidade traz consigo. Artistas herdeiros dessa cultura urbana da
máquina e do ferro advindo do período entre guerras (que os lançara num vazio
espiritual e a partir de então têm como missão recuperar a humanidade que se esvaíra
nas trincheira) vão construir suas obras a partir desse sentimento, e do estado de solidão
do indivíduo que vaga anônimo e se perde na multidão. Isso tudo nos remete, é claro, a
relação do homem com a produção artística durante a História. A arte, com os eventuais
processos técnicos na modernidade, se afasta da sua condição tradicional, a poíesis, e
passa a condição desprestigiada da práxis, ou seja, da coisa obscura, capaz de trazer à
luz algo próprio e originário, passa a estar ligada a um fazer continuo, prático, incapaz
de superar a si mesma como objeto.
Nesse contexto histórico-cultural o escritor e cineasta Vicente Franz Cecim
nascido em Belém do Pará cria Andara, a cidade imaginária mito-poética que é o seu
projeto literário moderno, que teve como uma de suas nascente – além do macrocosmos
amazônico – a obra literária de sua mãe também escritora Yara Cecim que passou a
maior parte da vida a margem do rio Tapajós, em Santarém, mudando-se para Belém
onde publicou o livro Lendário – Contos Fantásticos da Amazônia.Vicente Franz
Cecim é a Voz que se insurge contra o atraso cultural, político, econômico e o
colonialismo imposto à realidade social e ao imaginário amazônico. Uma voz que se
dirige ás vítimas deste estado de coisa, exigindo mudanças: “Vítimas de uma sociedade
violentamente gerada pelos mais evidentes padrões de colonização, nossas chances de
muda-la começam na visualização da face oculta de quem nos fez isso. Este esforço que
precisa voltar bem atrás, e que deverá se espalhar, interrogativamente, em várias
direções, para obter êxito” palavra de Vicente Cecim, Manifesto Curau(1983), lidas
durante o primeiro Congresso da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência, realizado em Belém no mesmo ano do lançamento do livro.
Uma literatura sagaz que mostra a força e poder de criação sob a forma ficcional e
poética dando continuidade a uma tradição moderna de ruptura. Esse trabalho visa
mostrar Andara como espaço moderno - irrupção poética - que vem para inovar a forma
da narrativa. Projeto audacioso e inovador, que aproxima Cecim da geração de 45,
movimento modernista que elegera a reflexão sobre a escrita um dos focos principais de
seus trabalhos, recriando e dando uma nova roupagem a literatura brasileira a partir de
paradigmas próprios, que iria nortear as obras daquele período. Criação de um universo
paralelo ao real, que está em constante movimento, proposto por uma linguagem que se
desdobra em si e que fala por meio de alegorias que compõe o universo mítico. Andara
estende a fronteira entre realidade e ficção se constituindo na poética, espaço do pensar,
possibilitado pela criação.
Por essas e outras inovações linguísticas e poéticas consideramos relevante as
atividades aqui descritas, que compreende, nessa primeira etapa do Plano de Trabalho,
em resultados parciais da pesquisa de corpus que, futuramente, será utilizado para a
análise da produção poética de Vicente Cecim como possível intermediadora do
processo de transfiguração da Amazônia na cidade mito-poética Andara, criação e
suporte para a reflexão literária brasileira e Latino Americana. Com isso procuramos
mapear a produção literária e artística contemporânea que movimenta Belém do Pará a
partir dos anos 80 até os dias atuais.
OBJETIVOS
O Plano de Trabalho em questão tinha como objetivo principal, no período já
informado, pesquisar o acervo de Vicente Franz Cecim, considerando nessa primeira
etapa da pesquisa, de acordo com o cronograma, as seguintes etapas:
a) Pesquisa do acervo de Vicente Cecim: revistas literárias, jornais e
suplementos da época em que produziu o escritor.
b) Pesquisar os processos formativos de literatura e de artes de Belém do
Pará.
Nessa fase de pesquisa e coleta do corpus, as atividades diretamente ligadas ao
Plano de Trabalho IC original foram realizadas com êxito absoluto, devido ao acesso do
acervo do escritor, assim como o acesso ao material referencial que trata da questão do
espaço poético, o que ajudou a explicar as fronteiras e a geografia de um lugar abstrato
como a cidade de Andara que se constitui através da linguagem e da poética.
MATERIAIS E MÉTODOS
Todos os procedimentos metodológicos adotadas até o presente momento
seguiram através das pesquisas de livros e dos textos publicados sobrea obra de Vicente
Cecim; das revistas e suplementos literários à época em que Vicente Cecim produziu
suas obras e atuou no circuito literário de Belém do Pará. Utilizou-se, também, o
método de pesquisa documental com a necessidade de utilização de material escaneado
e fotografado permitidos para captar imagens relevantes na composição do corposda
pesquisa a serem utilizados no futuro.
A coleta dedados iniciou partindo do acervo de obra raras da Fundação Tancredo
Neves – Centur, especificamente da investigação e busca do jornal “A Província do
Pará”, onde Vicente Cecim colaborou com uma coluna que fala de cinema, literatura e
política durante os anos 1982 até 1983 (material que está em anexo no final deste
relatório). A coluna se chamava “Contexto” e tinha como colaboradores os poetas Age
de Carvalho, Max Martins e o escritor e crítico José Paulo Paes. Através da coluna
podemos saber das leituras consumidas da época e do filmes que circulavam pelo
circuito alternativo de cinema. Registro importante para sabermos quais os escritores
cultuados daquele período e quais os filmes assistidos nas salas alternativas – sempre
presente em Belém – fora do eixo comercial. A partir de então procuramos reunir a obra
do autor facilmente encontrada nos sebos e livrarias de Belém.
RESULTADOS DO PRIMEIRO MOMENTO DA PESQUISA
A análise preliminar feita com o corpus coletado na Fundação Tancredo Neves –
Centur, e o acervo do autor, diz que Vicente Franz Cecim, apesar de estar na
contemporaneidade, ou seja, no momento presente, aproxima-se dos modernistas, e da
geração de 45, por ter um projeto onde sua literatura se desenvolve e se amplia, projeto
sob o qual o autor usa como suporte para criticar as atrocidades da modernidade, refletir
sobre o ato da escrita e sobre sua produção. Isso caracteriza uma tradição moderna onde
o ato de criar, a atividade poética, passa a ser assunto da narrativa. Tradição a qual
Cecim está ligado - apesar de separado no tempo – por ter um projeto literário onde faz
suas indagações sobre a escrita e que se amplia em torno do próprio eixo seguindo uma
linha de criação. Outro dado que aproxima Vicente Cecim do modernismo é o narrador.
Este por vezes toma forma de criador (demiurgo) e se dissolve em várias vozes
engendrando uma polifonia, característica de muitos narradores modernos, que usam
seus personagens para dizer como veem o mundo e a literatura. O narrador
contemporâneo geralmente mantém distância de seus personagens, e age como um
observador, descrevendo a partir do que vê. Não é costume do narrador contemporâneo
se confundir com sua criação.
Como resultado material do primeiro momento da pesquisa temos a produção de
um artigo (em anexo nesse relatório) intitulado Andara: o projeto moderno de Vicente
Franz Cecim a ser publicado nos periódicos e apresentado no Seminário PIBIC 2015.
CONCLUSÃO
Os resultados apresentados são provenientes da pesquisa do corpus na Fundação
Tancredo Neve e o acervo do autor. A análise feita com os dados coletados, até o
presente momento da pesquisa, indica que Vicente Franz Cecim cria Andara a cidade
mito-poética que vem a ser seu projeto literário moderno, onde a Amazônia surge
(re)significada sob a forma da criação poética. Nesse espaço singular - onde o plano
mítico e a realidade fundem-se para dar origem à ficção - o autor engendra uma escrita
híbrida, inovadora, que vem para quebrar e pôr em xeque os gêneros textuais e inovar a
forma da narrativa. A partir da leitura de textos como A Asa e a serpente (1979), livro
que dá início a sua obra, podemos notar fatores decisivos na sua técnica de composição
como a alegoria, a metáfora e a ressignificação do símbolo, da palavra num sentido mais
amplo sem romper com uma tradição da palavra sacralizada, aproximando Cecim dos
escritores de vanguarda da metade do séc. XX.
Transfigurada – oniricamente - até a dimensão de uma região metáfora da vida,
Andara é a Amazônia onde ele nasceu. Iniciando essa invenção Cecim renova e dá
fôlego a literatura paraense que se moderniza a partir da década de 50 com o grupo dos
novos formado por Max Martins, Mário Faustino, Haroldo Maranhão, Paulo Plínio,
Dalcídio Jurandir entre outros. Com uma escrita transgressora que se mostra nos Livros
invisíveis de Andara sob a forma mais radical literatura fantástica afirmando que a
ficção é só um simulacro da vida, Cecim enriquece o campo da poética expandindo e
renovando o imaginário amazônico e sua linguagem mítica.
PERSPECTIVAS FUTURAS
Em relação às atividades do Plano IC original, o bolsista avançará na pesquisa
analisando filmes, desenhos e reportagens relacionadas a obra, investigando os
processos de criação de Andara e o movimento da literatura e da arte em Belém do Pará
a partir da década de 80 relacionando o período junto ao contexto contemporâneo.
Esperamos, assim, cumprir com o término desta pesquisa que vem contribuir para o
entendimento da formação da literatura na Amazônia.
PARECER DO ORIENTADOR:
O plano de trabalho: Literatura da Amazônia: a poesia de Vicente Franz
Cecim, desenvolvido pelo bolsista de iniciação científica Rogério Alan Tancredo,
constante do projeto de pesquisa Literatura Comparada e estudos Culturais II:
perspectivas teóricas para ler literatura, arte, cultura, sociedades e processos
globalizantes na Amazônia, Brasil e América Latina e integrante do Grupo de Pesquisa
Literatura, história, arte e cultura na Amazônia, sob minha coordenação e liderança,
desenvolveu-se conforme o conteúdo do presente relatório final em foco para o qual
dou parecer plenamente favorável.
Belém, 05 de agosto de 2015
ASSINATURA DO ALUNO
ANEXOS
Artigo
Andara: o projeto literário moderno de Vicente Franz Cecim
Rogério Alan Tancredo1
Resumo:
Este artigo pretende mostrar Andara, a cidade imaginária criada pelo escritor paraense
Vicente Franz Cecim que vem a ser seu projeto literário moderno, onde a Amazônia
surge (re)significada sob a forma da criação poética. Nesse espaço singular - onde o
plano mítico e a realidade fundem-se para dar origem à ficção - o autor engendra uma
escrita híbrida, inovadora, que vem para quebrar e pôr em xeque os gêneros textuais e
inovar a forma da narrativa. A partir da leitura de textos como A Asa e a serpente
(1979), livro que dá início a sua obra, vamos apontar fatores decisivos na sua técnica de
composição como a alegoria, a metáfora e a ressignificação do símbolo, da palavra num
sentido mais amplo sem romper com uma tradição da palavra sacralizada, aproximando
Cecim dos escritores de vanguarda da metade do séc. XX.
Palavras-chaves: Andara, espaço, técnica, modernidade.
1.Introdução
Sob forma transfigurada, a Amazônia aparece como espaço metafórico,
transformada em verbo, estado constante de criação. Universo imaginário e fantástico
onde homens, animais, seres alados e insetos, junto à seus significados, unem-se para
celebrar a linguagem e a criação poética. Andara é o nome da Amazônia transfigurada,
o espaço mito-poético criado pelo escritor paraense Vicente Franz Cecim para a
realização de seu projeto literário moderno: a própria Andara. A cidade imaginária,
1Graduando em Letras pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Este trabalho é resultado de uma
pesquisa junto ao projeto Pibic/Ufpa.
criada segundo o autor sob a influência das histórias que sua mãe Yara Cecim, também
escritora,contava2, surge a partir de um universo imaginário popular regional no
primeiro livro A asa e a serpente (1979), obra que inaugura Viagem A Andara, O livro
invisível (arcos narrativos que se sucedem e se voltam sobre si). Conquanto haja esse
traço de imaginário da região, excede o regionalismo convencional transgredindo a
tradição oral da narrativa. Nesse espaço enigmático e fantasmagórico, numa atmosfera
de sonho e fantasia, Cecim cria histórias para refletir sobre a própria criação, denunciar
as mazelas sociais de sua região, a Amazônia, e num campo mais exíguo, expor as
obsessões e desejos do homem, ser ontológico, jogado num plano universal através da
criação artística, ou seja, através da criação de Andara. Histórias que beiram a
incompreensão e a loucura, que mostram o inconsciente dos personagens num plano
onírico que se abre para a imaginação do leitor num jogo lúdico de linguagem. Uma
literatura sagaz que mostra a força e poder de criação sob a forma ficcional e poética
dando continuidade a uma tradição moderna. Esse trabalho visa mostrar Andara como
espaço moderno - irrupção poética - que vem para inovar a forma da narrativa. Projeto
audacioso e inovador que aproxima Cecim da geração de 45, movimento modernista
que elegera a reflexão sobre a escrita um dos focos principais de seus trabalhos,
recriando e dando uma nova roupagem a literatura brasileira a partir de paradigmas
próprios, que iria nortear as obras daquele período. Criação de um universo paralelo,
que está em constante movimento, proposto por uma linguagem que se desdobra em si e
que fala por meio de alegorias que compõe o universo mítico. Andara estende a
fronteira entre realidade e ficção constituindo-se na poética, espaço do pensar,
possibilitado pela criação. Cosmogonia amazônica ou/e latino-americana que após os
movimentos de vanguarda europeu do início do século emergiram com a força do seu
imaginário mítico, valorizando e expandindo o universo ficcional latino. Espaços que se
consolidaram na poética do novo continente como A biblioteca de Babel, de Jorge Luis
Borges, a Macondo de Garcia Marquês e a Santa Maria, de Juan Carlos Onetti, a cidade
fictícia que faz alusão à Montevidéu. Trago esses nomes não para ligar Cecim a esse
movimento que ficara conhecido como realismo mágico, mas para dar exemplo de uma
literatura que reagia contra essa realidade objetiva, concreta, e que propunha a criação
de novos espaços – ou de outra realidade - através da linguagem. Uma literatura que
consolidou uma estética e modernizou o universo poético do Novo Continente.
2 Revista PZZ ano 07, Ed. Resistencia, PA, 2013.
“Escrever, sonhar os livros de Andara, foi uma opção muito solitária, e do que havia
sido escrito aqui na Amazônia, pelos escritores cultos, chamemos assim, eu não me
nutri de quase nada. Meu único alimento foi a literatura oral, as lendas os mitos, que
aprendi a admirar através da minha mãe, que nos contava, não os contos dos irmãos
Grimm, de Perrault, que tem coisas geniais, de Andersen, que é todo ele um gênio, mas
uma histórias delirantes da região amazônica, para nos fazer dormir, a mim e a meus
irmãos Paulo e Elizabeth. O sono vinha, mas como um portal de acesso a todo esse
mundo feérico. Não sabíamos mais o que era natural e o que era sobrenatural” (CECIM,
1979:12). Aqui, Cecim afirma o que seja talvez sua principal matriz poético-literária: o
imaginário amazônico com suas lendas, crenças e mitos, marcado pela transmissão
através da oralidade, características dos povos que tem uma forte ligação com a terra e
com sua tradição. É desse universo que Andara surge, vai tomando forma até se
constituir como tempo e espaço poético da linguagem. Neste trabalho vamos demarcar o
espaço que tem suas fronteiras delineadas pela linguagem singular que se desenvolve
envolta do próprio centro e sua estrutura física não-linear, mas que segue um padrão de
criação.
2. Modernidade: filha da técnica
A modernidade, época que ainda não findou e que se desdobra com o
contemporâneo por compartilhar, com este, costumes e características, advém de
processos de modernização que começam a transformar o espaço geográfico: como as
construções de ferro, a máquina a vapor, a luz elétrica, a chegada do automóvel, as
construções de vidro, a cultura do trabalho implantado em nossos dias, ou seja, começa
a partir de processos técnicos que se intensificam (devido a expansão da indústria e da
produção em massa) junto à urbanização que se expande ao longo dos séculos XIX e
XX. Filha da técnica, a modernidade traz consigo a carga dessa transformação natural –
do ponto de vista evolutivo - que tirou o homem do campo para jogá-lo na grande
cidade. Esse homem simples, que levava uma vida pacata, de subsistência, agora é
obrigado a conviver com invenções mirabolantes que transformam a realidade,
invenções que prometem, se não solucionar, amenizar seus problemas, melhorar a vida
dentro da existência. Porém, o que se viu como resultado desse processo urbano
industrial foi um homem mecanizado, afastado das relações humanas para se tornar
peça da engrenagem em prol de uma produção incessante. Destituído dos esteios éticos
que durante muitos anos sustentaram a civilização, o indivíduo torna-se solitário e
angustiado apesar dos avanços tecnológicos. Esse é o espírito do homem moderno, a
carga que a modernidade traz consigo. Artistas herdeiros dessa cultura urbana da
máquina e do ferro advindo do período entre guerras (que os lançara num vazio
espiritual e a partir de então têm como missão recuperar a humanidade que se esvaíra
nas trincheiras) vão construir suas obras a partir desse sentimento, e do estado de
solidão do indivíduo que vaga anônimo e se perde na multidão. E sob uma concepção
de técnica - falo das inovações tecnológicas e de processos artísticos que vão
revolucionar a linguagem como a colagem, o recorte, a fotografia e o cinema - que vai
se confundir com o processo de composição da obra de arte. A técnica e a reprodução
em grandes quantidades das obras, no primeiro momento, vão botar em questão o
princípio de obra de arte, reduzindo a mesma a mercadoria, esvaziada de um sentido
mais nobre (a perda da aura) produto descartável de cultura de massa, como aponta
Walter Benjamin em A Obra de Arte na era de sua Reprodutibilidade Técnica:
[...] o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte
é sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito
além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica de
reprodução retira do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na
medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência
única da obra por uma existência massiva. E, na medida em que essa
técnica permite a reprodução vir ao encontro do espectador, em todas
as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos
resultam num violento abalo da tradição, um abalo da tradição que
constitui o reverso da crise e renovação atuais da humanidade. Eles se
relacionam intimamente com os movimentos de massa, em nossos
dias. (BENJAMIN, 2009)
Isso tudo nos remete, é claro, a relação do homem com a produção artística
durante a História. A arte, com os eventuais processos técnicos na modernidade, se
afasta da sua condição tradicional, a poíesis, e passa a condição desprestigiada da
práxis, ou seja, da coisa obscura, capaz de trazer à luz algo próprio e original, passa a
estar ligada a um fazer contínuo, prático e funcional, incapaz de superar a si mesma
como objeto.
Enquanto no centro da práxis estava, como veremos, a ideia de
vontade que se exprime imediatamente na ação, a experiência que
estava no centro da poíesisera a pro-dução na presença, isto é, o fato
de que, nela, algo viesse do não ser ao ser, da ocultação à plena luz da
obra. O caráter essencial da poíesisnão estava, portanto, no seu
aspecto de processo prático, voluntário, mas no seu ser um modo da
verdade, entendida como des-velamento. E era precisamente por essa
sua essencial proximidade com a verdade que Aristóteles, na condição
mesma do homem, tendia a atribuir à poíesisumposto mais alto em
relaçãoà práxis. (AGAMBEN, 2012, p. 118)
A técnica (agora falo da obsessão de alguns artistas de criar algo próprio, novo,
que o identifique e o caracterize como tal), vista como vilã a priori, no século XX,
também acaba sendo uma aliada para processos de composições complexos na
modernidade.Artistas vão começar a compor sob estas perspectivas, e através de suas
obras, espécie de máscaras por meio da qual vão anunciar e cantar seu tempo, vão
desconstruir paradigmas estabelecidos, renovando a linguagem por meio de um
processo de transfiguração, mostrando como veem a realidade e o mundo. A prosa e a
poesia que agora vão ter como substância principal a solidão do indivíduo e a fratura
desse mesmo indivíduo múltiplo e diverso, vão voltar-se para si, questionando-se
enquanto gêneros, num processo de mutação tal qual as transformações da
modernidade. Artistas vão produzir obras de difícil acesso, de difícil compreensão (para
não dizer herméticas) fazendo jus a sua época e seu tempo. Muitos escritores vão criar
narrativas e poemas enigmáticos - que refletem sobre a própria linguagem - e sob um
formato, um projeto estético vão desenvolver suas obras. Assim fez João Cabral de
Melo Neto na suspensão da lírica no verso, Guimarães Rosa na transformação da
sintaxe e do léxico, Clarice Lispector com a epifania e desconstrução de seus
personagens e Osman Lins na fragmentação e geometrização da narrativa,só pra citar
alguns exemplos de composições complexas na modernidade. Vicente Franz Cecim se
aproxima destes nomes quando também por meio de um trabalho com a linguagem, que
envolve a reflexão da escrita, cria um lugar imaginário, em movimento constante, com
leis e dinâmicas próprias que é o seu projeto literário moderno: Andara, a cidade mítica
onde sua literatura se realiza.
3.Andara: o projeto
Vicente Franz Cecim estreia em 1979 com o livro A asa e a serpente, escritura
inclassificável que quebra os parâmetros de gêneros textuais trazendo para a cena da
literatura brasileira o embrião de seu grande projeto: Andara, a cidade mito-poética,
cenário e personagem d‟os Livros Invisíveis de Andara, que representa a Amazônia
transfigurada, transformada em verbo, movimento, que ressurge e resiste com sua magia
e tradição às atrocidades da modernidade. Andara consiste num espaço que surge do
microcosmo mítico amazônico onde Cecim vai denunciar as atrocidades de seu tempo
usando como recurso a alegoria e a fusão da prosa com a poesia para a criação de uma
atmosfera singular, própria, o que legitimará um espaço fantasmagórico, ou seja, ao
misturar o plano narrativo realista ao lirismo metafórico da poesia, cria-se um clima de
sonho e delírio, imagens do inconsciente do narrador-criador, que constitui uma das
características principais das histórias de Andara.
Foi como poesia que li “A asa e a serpente”, um poema lírico-
narrativo talvez, ou um poema dramático na terminologia de Fernando
Pessoa, para dar nome a esse texto revolto, que se desdobra com seu
autor – misto de sonho e alegoria, fábulado sacrifício do algoz
impessoal, morrendo e renascendo, como num ato de expiação
infindável, dos míticos desvão do inconsciente individual e coletivo.
Mas toda fábula é o contorno imaginário exemplar de uma realidade
possível que se intemporaliza. Esta de Cecim alude, parece-me, a uma
realidade muito próxima que traumatizou sua geração: a época do
grande medo, que se tornou assombração política fantasma histórico
na cidade do Grã ou em qualquer outra parte do Brasil após 1964.
Mais firmeza ganharia a fábula se maior contraste houvesse entre o
plano prosaico da narração e o plano lírico da expressão poética,
conciliando osonho e a alegoria. Com a dominância do lado onírico,
ganhou por certo o lirismo, que transforma a narrativa numa
assombração literária impetuosa. Sujeito e objeto de metamorfoses, o
texto se interioriza, e o fantasma da História tende à história fantástica
(Nunes, 2012, p. 327).
Além da referência à ditadura militar, tema implícito de A asa e a serpente, que
aparece sob a figura do sargento Nazareno, que volta da morte para encenar sua patética
existência, e da fúria de seu algoz disposto a matá-lo quantas vezes for preciso, é
importante observar na fala de Benedito Nunes que as histórias de Andara devem ser
lidas e pensadas como escritura de uma linguagem poética que se volta sobre si numa
espécie de dobra, se refazendo a todo momento, e que tal lírica propõe uma abertura, o
que nos leva a crer que a obra de Cecim tende para um outro plano dimensional, o plano
do poético. O autor classifica o próprio texto como “escritura” - por fugir dos padrões
textuais - mas principalmente por essa palavra anunciar algo que estar porvir, anunciar
um desvelamento3, algo que vem à luz através da linguagem e que se vela em si
enquanto obra, o que a aproxima da essência de seu audacioso projeto: a escritura da
criação de Andara. Ora, o novo tende a romper com a tradição vigente e propor outras
saídas e formas para a língua, neste caso, o que Andara traz de novo é a subversão da
3 Conceito heideggeriano para explicar a face obscura do ser “Mas o que se faz necessário é justamente
o contrário: o esconder-se faz parte da pre-dileção do ser, isto é, daquilo em que consolida sua essência [...] Ser é o desvelar-se que se vela – em sentido inicial. O desocultar-se é emergir no desvelamento; e isto significa abrigar primeiramente o desvelamento como tal na essência” (HEIDEGGER, 2008, p. 313-314).
escrita, a busca por uma autenticidade que remeta à própria criação, o que gera uma
linguagem peculiar, linguagem esta que constitui suas fronteiras e sua geografia.
Andara é a “ilha” Santa Maria do Grão, referência a Belém do Grão-Pará,
cidade natal do autor, que este usa para dar verossimilhança a uma realidade absoluta,
assim como o Sertão metafísico de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, que se
amplia e transforma-se no mundo. No entanto, em Cecim, ao invés do sertão, temos a
região amazônica, ou seja, a floresta se expandindo como metáfora da vida. Como nada
em Cecim é gratuito, voltemos ao nome: Santa Maria do Grão, que traz no final a
palavra Grão, ponto de partida de espécie de vida, que alude à semente, àquela que traz
no cerne a essência do que virá: Andara, que aos poucos vai tomando a cidade de Belém
até transformá-la numa floresta inefável. “Andara. Lá as ruas estão sempre vazias e
aquilo, a floresta, vem avançando, vem cada vez mais para perto de nós” (Cecim,
1988:132). Este “perto de nós” não só no sentido de avançar, tomar a cidade, mas no
sentido da floresta se mostrar como o é realmente, e que nós estamos desacostumados a
vê-la. A própria palavra Andara faz jus ao projeto que está em constante movimento,
construção. Ela nos remete a um movimento contínuo que parte do verbo Andar como
mostra Karina jucá:
Além de ressaltar pelo nome a essência da narrativa, o vocábulo
também remete diretamente ao verbo Andar, avançar contínuo de
passos, progressão. No passado mais que perfeito, o sentido do
movimento concluído carrega ao mesmo tempo, conotativamente, a
impressão de continuidade, de fluxo narrativo. Andara como
movimento que se inscreve no passado em passos (presente) que
levam / ou levarão à frente (futuro)? Como truque semântico, os
modos temporais, passado, presente e futuro, se unem e ao mesmo
tempo se anulam na figura poética, instalando a impressão de
simultaneidade, ou da ausência de qualquer tempo. Andara em sua
condensação metalinguística, assinala o nome próprio o conceito da
narrativa do “devir como simultaneidade” (JUCÁ, 2010, p. 12).
Como Andara é a Amazônia transformada em verbo, isso tudo se dá na relação
Livro, meio pelo qual se configura o projeto. Em 1988 é lançado Viagem a Andara, que
traz como subtítulo O Livro invisível, onde Cecim propõe a leitura dos livros de
Andara, ou seja, daquilo que está além de nossos olhos, incapazes de ver o absoluto,
ofuscados pela neblina do mundo técnico científico funcional. Para Cecim, o invisível
tem forma e se constitui paralelamente ao mundo visível, a esfera da dimensão do
poético, esse entre-lugar, possibilitado pela criação através da linguagem. Ideia que
norteará as histórias de Andara e justificará os personagens cegos que atravessam a
obra, pois estes são obrigados a olhar com outros olhos, um olhar imaculado, sem as
marcas do mundo visível. Resultado de reflexão e busca profunda do fazer literário, do
ato de criação através da escrita como meio de buscar o absoluto: forma soberana de ser.
As sentenças, em Andara, tomam uma profundidade abissal devido a
estranheza da forma com que são construídas, deslocando-nos em busca de seu sentido,
para outro lugar: a cidade de Andara, onde a impossibilidade (o inverossímil) constitui a
matéria prima, a própria possibilidade de criação. Território demarcado pela linguagem
insólita, obscura, mãe criadora do espaço em questão, que no seio da palavra - fosso
sem fim - abismo de sentidos e possibilidade, encontra seu lugar. Quando lemos:
Do fundo da terra, a Obscuridade rugerreluz. É isso também a vida.
Por baixo. Estranhos veios de ouro atravessando rochas ainda mais
estranhas, fosseis Faces murchas Lagrimaspetreaspassadas estão
buscando a superfície das coisascoisas (CECIM, 2006, p. 09).
já somos lançados na estranheza das sentenças, no mistério das palavras que calam,
silenciam, o que nos leva à Andara, espaço construído por meio da desconstrução do
processo sintático, que desloca ou coloca o leitor nessa fissura -proposta pela linguagem
- e logo, o convida para A viagem a andara que está prestes a começar. Viagem pelos
meandros da criação, que através de uma força imagética criada pelo universo das
palavras nos leva ao pensar, a buscar o que está por trás e onde vai nos levar aquilo que
se coloca como questão, enigma. “Buscando a superfície das coisas coisas”, diz a voz,
ou seja, buscando a essência, o que realmente são as coisas por trás dos que os olhos
veem, e lançado ao pensar pelo enigmático efeito da frase, se colocar em questão para
pensar a si próprio como ser. Antes temos a sentença “Do fundo da terra, a Obscuridade
rugerreluz”, que anuncia um acontecimento, surgindo na obscuridade da linguagem, que
é a narrativa que está prestes a vir à luz. E o que implode da linguagem, esse
acontecimento poético, é Andara. Em seu último livro Breve é a febre da terra, prêmio
IAP de 2014, Cecim sentencia e afirma seu projeto literário: “Andara quer a Origem, o
Antes do ponto em que tudo começou a se perder do todo, o ponto oculto de nós, que só
se consente a nós em Relances, vislumbres. Andara busca o homem além de si, fora de
si: no Umanoh.” É claro a proposta da leitura dos livros de Andara, a busca do que
realmente é o homem através do belo, da linguagem poética. O Umanoh com h no final
representa a origem, o verdadeiro, o que está latente no humano com h na frente, que
caracteriza o homem moderno, distante da tradição mítica, poética, concepção que em
outros tempos constituía um real mais belo, autêntico, onde esse Homem era integrado à
terra e por sua vez ao universo. Esse Umanoh se perdera quando o homem adotou a
concepção técnico-científica como verdade incondicional e a partir de então se colocou
como sujeito, e o mundo como palco e objetos de suas ações. O Umanoh, de Cecim, nos
remete à civilizações “primitivas” que explicavam o real a partir da própria existência,
para eles sagrada, e que mantinham a tradição que os caracterizava e dizia o que eram.
Retomando Agamben:
Estão distantes os tempos em que Dionísio, o Cartuxo, era arrebatado
em êxtase pela melodia do órgão da igreja de S. João em „s-
Hertogenbosch; a obra de arte não é mais, para o homem moderno, a
aparição concreta do divino, que deixa a alma capturada pelo êxtase
ou pelo terror sagrado, mas uma ocasião privilegiada para colocar em
movimento o seu gosto crítico, aquele juízo sobre a arte que, se não
tem para nós verdadeiramente, de algum modo, mais valor que a arte
mesma, responde porém certamente a uma necessidade pelo menos
igualmente essencial (AGAMBEN, 2012, p. 76).
Andara busca esse espírito perdido em relação à obra, relação para além de
uma avaliação crítica e estética, assim como outra construção da realidade, menos
objetiva, racional, e mais poética, possível somente numa retomada de consciência, na
retomada do Umanoh, na retomada de nossa unidade.
4. Tradição e autorreflexão
Além do espaço de criação, Andara é o espaço onde Cecim reflete sobre a
escrita, essa busca constante por meio da palavra. A afirmação através desse signo
bipartido e obscuro que não só dá sentido às coisas e diz o que somos, mas que também
nos desloca para o silêncio. Atitude que começa ser adotada no processo de criação pela
geração destruidora de 22 e aprofundada pelos escritores contemporâneos a partir de 45.
O caos, portanto, não cessou com o aparecimento do universo;
mas quando a consciência do homem, nomeando o criador,
recriando-o portanto, separou, ordenou, uniu. A palavra, porém,
não é o símbolo ou reflexo do que significa, função servil, e sim
o seu espírito, o sopro na argila. Uma coisa não existe realmente
enquanto não nomeada: então, investe-se da palavra que a
ilumina e, logrando identidade, adquire igualmente estabilidade.
(Lins, 2004, p. 98)
Osman Lins neste trecho de Retábulo de Santa Joana Carolina, reitera o poder
da palavra -signo de luz nas trevas - instrumento e meio de criação que se apropria de
algo até então indefinido e obscuro. Sobre esse tema, Clarice Lispector através de seu
personagem-máscara Rodrigo S. M. reflete sobre sua condição de escritora e sobre as
dificuldade de narrar em A hora da Estrela. Antes, Paulo Honório, personagem de São
Bernardo, de Graciliano Ramos também questiona-se sobre o ato de narrar, a busca pela
palavra precisa, que diga o que acontecera de fato, sem arranjos e artifícios inúteis.
Mário de Andrade com seu Prefácio interessantíssimo também usa o espaço de criação
para refletir sobre a produção poética do começo do século, assim como o seu
contemporâneo Oswald de Andrade travestido de Machado Penumbra critica a prosa
parnasiana. Isso caracteriza uma tradição moderna onde o ato de criar, a atividade
poética, passa a ser assunto da narrativa. No primeiro momento dessa catarse moderna
temos a exigência de atualização de nossa literatura sob um projeto nacional, depois, a
retomada de uma linguagem clássica e a descrição de conflitos sociais sob a perspectiva
moderna, e finalmente experimentações linguísticas ligadas as representações
metafísicas e ontológicas. Isso mostra que, na literatura brasileira, desde o início do
século XX, o pensamento filosófico e literário se voltam para a questão da linguagem,
para os problemas, soluções, e crises contingentes à sua história. Tradição à qual Cecim
está ligado - apesar de separado no tempo – por ter um projeto literário onde faz suas
indagações sobre a escrita que amplia-se em torno do próprio eixo seguindo uma linha
de criação.
Tradição multifacetada e ambígua que em seu caráter diverso tem na
transgressão da forma e na autorreflexão da criação a sua unidade. E dessas multifaces
transgressoras, Cecim alia-se à tradição metafísica (a geração de Clarice Lispector e
Guimarães Rosa) sob a qual personagens mal delineados, obscuros, são jogados no
plano ontológico para questionar a si mesmo como ser – e as questões que os envolvem
como: amor, vida e morte – diante de um mundo que se mostra ao mesmo tempo
receptivo e avessos à suas ações. Esse modo metafísico, voltado para o homem, de
pensar literatura, vai influenciar e encantar as próximas gerações.
Uma nova consciência da forma romanesca, enquanto escrita, trouxera
nos anos 1960 o romance autorreflexivo, voltado para sua própria
fratura, narrando o ato de escrever [...] É essa consciência que se
apura, na década de 1970, no Avalovara (1973), de Osman Lins, aí
sujeito o romance a um jogo ficcional, conforme regras
preestabelecidas sobre temas recorrentes, elaborado como uma figura
mágica, que permite deslocamentos no tempo e no espaço, de
personagens se revezando no desenho cósmico e histórico do destino
que lhes dita a arquitetura da obra, suas vozes autônomas suprindo a
iniciativa do agente externo que os guia, e transpassando-se os pontos
de vista de cada qual, tomados sobre medidas temporais distintas, ora
no passado ora no presente (NUNES, 2009, p. 153-154).
Aqui Benedito Nunes mostra a amplitude que toma a arte romanesca devido o
apuro das resoluções estéticas e formais que foram se desenvolvendo ao longo dos anos
da tradição moderna. Nunes traz como exemplo Avalovara, de Osman Linz, romance de
1973, que aglutina e sintetiza o espírito de criação desse período. O primeiro livro de
Cecim, que vem à luz e abre o projeto Andara, é A asa e a serpente de 1979, seis anos
depois do lançamento do monumental e misterioso livro de Linz. Isso mostra uma
progressão e continuidade na tradição que se instalara, e o que esses autores têm em
comum, além da transgressão da forma, é a fé na palavra, esse objeto obscuro a partir do
qual se constrói mundos.
[...] em Grande sertão: veredas a tônica revolucionária deslocava-se
da estrutura fraseológica para a unidade da palavra [...] A palavra
perdeu a sua característica de termo, entidade de contorno unívoco,
para converter-se em plurissigno, realidade multisignificativa. De
objeto de uma só camada semântica, transformou-se em núcleo
irradiador de policonotações (COUTINHO, 2004, p. 477).
A palavra - a partir da modernidade - não está mais presa a um único sentido,
ela se transforma e amplia sua capacidade de significação, começa a ser explorada
também em sua dimensão sonora e gráfica, e quando sozinha, não basta para dizer o que
quer, se funde à outras engendrando novas palavras, foi o que fez James Joyce inovando
a prosa de língua inglesa, e mais tarde Guimarães Rosa, aqui no Brasil, seguindo uma
tradição moderna. Em Breve é a febre da terra, Vicente Cecim começa o texto
refletindo sobre a palavra, este signo que diz o que são as coisas mas que por vezes
falha por não conseguir expressar alguns sentimentos em sua totalidade devido a
fugacidade das sensações “Contaminada a pureza da Palavra. Oh. Escrever uma
primeira vez da esquerda para a direita: falhar escrever uma segunda vez da direita para
a esquerda, para falhar pior?” (CECIM, 2014). Neste pequeno trecho podemos notar a
preocupação com a Palavra que o autor tem, a capacidade de mutação e ambivalência
desta, do qual vai se nutrir, assim como o drama de narrar que vai tomar boa parte de
suas reflexões.
5. As referências
São muitas as referências implícitas e explicitas que Cecim traz em sua obra –
desde Horderling a Cioran – e o amarram à modernidade, mas duas chamam atenção.
Uma expressa o espírito e sentimento de Andara, a outra a obsessão pela forma e
construção. A primeira, distante de nós no tempo e no espaço, é Novalis, poeta alemão
da geração rebelde de Jena4, que concebia a poesia como algo sagrado “A linguagem é a
dinâmica do reino espiritual” (NOVALIS, 1991). Cecim comunga do mesmo
pensamento dos românticos desse período, para quem a poesia ultrapassa o plano
estético para se ligar à esfera filosófica e religiosa. “Suas diversas surtidas para tantos
autores, de Novalis a Angelus Silesius, de Eckhart a Guimarães Rosa, que não levam
para fora do campo poético, onde desejam permanecer, são como um contraponto ao
pensamento religioso enlaçado ao filosófico” (NUNES, 2006). O romantismo é um dos
primeiros movimentos a quebrar com os paradigmas impostos pelo Classicismo e trazer
a concepção de que a poesia é algo essencial à vida:
Octávio Paz observa, referindo-se aos românticos alemães e ingleses,
que sua originalidade e preeminência se deveram à agudeza crítica e a
concepção da experiência poética como experiência vital – uma
totalidade que supões uma estética, uma linguagem, uma erótica, uma
política, uma visão de mundo e uma ação; em suma um estilo de vida
que no século XX seria retomado pelas Vanguardas (CHIAMPI, 1991,
p. 16).
Ora, é através de Andara que Cecim vai ver e interpretar o mundo. Para os escritores
modernos a literatura é uma forma de conhecimento tão importante e vital quanto a ciência, e o
meio pelo qual vão enfrentar o pragmatismo cotidiano imposto pelos novos tempos. A outra
referência, ao contrário da primeira, e que nos é mais próxima, é o argentino Júlio
Cortázar “que saiba abrir a porta para ir brincar. Cortázar” (CECIM, 1988). Andara é
como O Jogo de Amarelinhas, romance de 1964 no qual sua construção possibilita o
leitor fazer seu plano de leitura como num jogo lúdico. O mesmo acontece na obra do
paraense, não importa por onde começar, os livros visíveis estão situados no mesmo
lugar - Andara – e tem o mesmo objetivo: levar à reflexão por meio da poesia. A “porta”
é a passagem para a descoberta, aparece na sentença como alegoria de livro, é
necessário abrir os Livros de Andara para se fazer a viagem pelos meandros da criação,
a busca pela verdade por outro caminho, pelo caminho poético, pelo caminho da
imaginação. Depois de abrirmos a porta e irmos brincar, cabe aqui uma pergunta tanto
para leitores como para escritores, que mostra a fé na palavra e na poesia de toda uma
geração: “encontraste a chave?”
4 O grande legado do círculo romântico de Jena, aqui representado por seus expoentes Friedrich von
Hardenberg (1772 – 1801), que adotou o nome literário Novalis, e Friedrich Schlegel (1772 – 1829), é a recusa à reprodução mimética da realidade empírica e a concepção de obra literária como construção fechada. Em defesa da liberdade da fantasia, fazem suas as ideias do filosofo Johann Gottlieb Fichte (1776 – 1814), que via o Eu como instância suprema, o mundo objetivo como produto do espírito.
Por fim, a influência surrealista que encontramos em Andara, os elementos
dessa estética vanguardista que podemos perceber na composição da cidade-palavra,
entre eles, a atmosfera de sonho, que atravessa seus arcos-narrativos.O sono é o estado
em que seus personagens vivem:
Olham para nós na outra margem os animais do sono. Um vento forte
começa a soprar, com a madrugada que chega. Sacode as redes dos
que dormem, agita os cabelos do morto. Leva os ecos da sua voz para
longe. Tenho sono (CECIM, 1988, p. 49).
É só quando estamos adormecidos que temos acesso ao inconsciente, quando
nosso estado racional – que é o estado comum - adormece, para dar vasão as
profundezas inacessíveis do eu, mundos do subconsciente, tão verdadeiro para os
surrealistas quanto a realidade objetiva e concreta.
Foi a título muito justo que Freud fez sua crítica ao sonho. É
inadmissível, com efeito, que essa parte considerável da atividade
psíquica (pois que pelo menos desde que o homem nasce até que
morre pensamento não apresenta qualquer solução de continuidade, a
soma dos momentos de sonho, do ponto de vista do tempo,
considerando-se apenas o puro sonho, aquele do sono, não é inferior à
soma dos momentos da realidade, limitemo-nos a dizer: momentos de
vigília) tenha chamado tão pouca atenção. A diferença extrema de
importância, de gravidade, que representam para o observador
ordinário os acontecimentos da vigília e os do sono, sempre me
espantou [...] O sonho encontra-se assim ligado a um parêntese como
a noite. E não mais do que ela, em geral aconselha. Esse singular
estado de coisas parece-me evocar algumas reflexões (BRETON,
2009, p. 227-228).
Os surrealista estavam interessados em alcançar, através da linguagem, uma
realidade absoluta, síntese do que há de fugidio e impenetrável tanto no sonho quanto na
realidade. E é neste mundo, da livre imaginação, com leis e dinâmicas próprias, que as
histórias de Andara acontecem de fato “Por quase nada também isso de deixar o mundo
por fora para ir viver num mundo por dentro, que quase existe”. Sonho e realidade se
sobrepõem “Olham para nós na outra margem os animais do sono”, o personagem está
no limiar do consciente/inconsciente, ou seja, observando acordado os animais abstratos
do seu sonho. Na cena estão todos dormindo, e os sonhos entrecruzam-se, mostrando
simultaneamente os dois espaços, resultando num lugar onírico, que supera a questão
espaço/tempo, porque para Cecim, há uma realidade, porém, esta possui várias
dimensões, e a de Andara é a do poético. Outro exemplo do entrecruzamento de espaços
entre realidade e sonho em Andara, está na narrativa kafkiana menino sonha inseto
sonha menino, presente no livro Silencioso como o Paraíso de 1994. Na história - por
sinal uma das mais breves e intrigantes do livro - um menino sonha com um inseto, e
durante seu sonho um inseto adentra a casa atraído pelo o inseto do sonho do menino.
Ali estava aquele menino e estivera sonhando com um inseto, e então,
eis, acordando, o menino vira aquele outro inseto perto do seu olho, é
fora, na vida, não só um sonho. Aquele inseto viera se arrastando até
ali, até o olho do menino na casa [...] Ali estava o inseto de fora então
e procurando um outro como ele, olhando mesmo através dos olhos
fechados, antes, quando o menino ainda dormia, aquele inseto
sonhado, e principalmente agora que o menino abriu os olhos,
transparências, e acordou. Como olha para dentro do menino esse
inseto. E o que vê? (CECIM, 1988, p. 73-74).
Aqui temos a fusão realidade/sonho se dando mais uma vez, portanto, o
inusitado da história, além da interseção das dimensões, está ainda por vir: o inseto
adentra a casa porque se apaixona pelo inseto do sonho do menino.
É que o inseto, por fora, já havia visto o inseto lá dentro do menino, e
aí dois homens se sonham insetos, e não sabendo para onde o inseto
que vira antes havia ido, ele agora procurava, procurava aquele inseto
por fora, o real, uns olhinhos de cego procurando [...] Veio vindo no
inseto por fora do menino então uma paixão, e era a paixão
imensamente de procurar dentro do menino, e achar, custasse o que
custasse, aquele outro inseto. Enquanto o menino novamente
adormecia
Cecim leva a história ao extremo da consequência atribuindo sentimento ao
inseto, propondo não só a humanização das criaturas de Andara, mas propondo infinitas
possibilidades através da criação. Quanto mais díspares as situações, em relação a
espaços, e objetos distantes de suas colocações usuais e de seus significados, mais
legitimidade e originalidade há para os surrealista. A linguagem se doando em prol da
arte, quebrando as barreiras que nos prende à um pensamento lógico, propondo outras
realidades, não somente esta, que nos limita como indivíduos.
6. Conclusão
E o que queremos com isso? Mostrar que Cecim, apesar de viver na
contemporaneidade, é um escritor moderno porque pensa e elabora sua obra a partir dos
princípios dos construtores da modernidade. Em seus últimos trabalhos, mais
precisamente em K O escuro da semente, de 2001, somente editado em Portugal, o autor
inaugura em sua obra o que ele vai chamar de Iconescritura: imagens (fotografias,
desenhos) que enchem às páginas desérticas de Andara e não só ajudam a contar, mas
leva o leitor para uma experiência imagética de ler e ver, imagens e escrita se
transpassam em prol da reflexão e do silêncio. Recurso contemporâneo usado por
exemplo pelo escritor alemão W. G. Sebald que morreu em 2001, mas, fora isso, o
projeto Andara se constitui por traços modernos como mostramos aqui. O seu
desenvolvimento e construção em volta do próprio eixo, constitui um desses traços, se
não o principal. A obra de Vicente Cecim mostra como a modernidade está presente
ainda hoje e de como é difícil uma separação. Para aqueles que acreditam no fim de um
ciclo e no início de outro (pós-moderno ou contemporâneo) devido ao esgotamento da
capacidade moderna de inovação, os livros visíveis de Andara mostram que é mais
adequado usar o termo dobra para nos referimos a contemporaneidade, porque o
moderno e o contemporâneo se trespassam, tanto na técnica como no sentimento, o que
dificulta uma divisão plena.
Referências Bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo in: Poíesis e práxis. Ed. Autêntica, BH
– 2012.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas Vol. I in: A Obra de Arte na Era de Sua
Reprodutibilidade Técnica. Ed. Brasiliense, SP – 2012.
CECIM, Vicente Franz. VIAGEM A ANDARA O LIVRO INVISÍVEL. Ed. Iluminuras, SP
– 1988.
. SILÊNCIOSO COMO PARAÍSO. Ed. Iluminuras, SP – 1994.
. Ó Serdespanto. Ed. Bertand Brasil, RJ – 2006.
. Breve é a febre da terra. Prêmio IAP, Belém – 2014.
HEIDEGGER, Martin. Marcas do Caminho. Ed. Vozes, RJ – 2008.
NUNES, Benedito. A Clave do Poético in: Reflexões sobre o moderno romance
brasileiro. Ed. Companhia das Letras, SP – 2009.
. DO MARAJÓ AO ARQUIVO. Ed. Ufpa, Belém – 2012.
Anexo 1: artigo referente à pesquisa produzido entre setembro de 2014 a agosto de
2015.