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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Psicologia
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica
Da determinação simbólica ao encontro com o real:
como se produz a diferença a partir da repetição na experiência de
uma análise?
Cecília Moraes de Castro Leal
Rio de Janeiro
2011
2
Da determinação simbólica ao encontro com o real:
como se produz a diferença a partir da repetição na experiência de
uma análise?
Cecília Moraes de Castro Leal
Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre.
Orientadora: Profª. Drª. Simone Perelson
Rio de Janeiro
2011
3
Da determinação simbólica ao encontro com o real:
como se produz a diferença a partir da repetição na experiência de
uma análise?
Cecília Moraes de Castro Leal
Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre.
Aprovada por:
___________________________________________
Profª. Drª. Simone Perelson - Orientadora
___________________________________________
Profª. Drª. Ana Lucia Lutterbach Holk
___________________________________________
Prof. Dr. Joel Birman
Rio de Janeiro
2011
4
Leal, Cecília Moraes de Castro
Da determinação simbólica ao encontro com o real: como se produz a diferença a partir
da repetição na experiência de uma análise?
Cecília Moraes de Castro Leal. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2011
xi, 107f. ; 29,7 cm
Orientadora: Simone Perelson
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/IP/Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica, 2011.
Referências Bibliográficas: f. 105-107.
1. Psicanálise 2. Repetição 3. Diferença 4. Simbólico 5. Real 6. Transferência
I. Perelson, Simone. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de
Psicologia/ Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. III. Da
determinação simbólica ao encontro com o real: como se produz a diferença
a partir da repetição na experiência de uma análise?
5
AGRADECIMENTOS
Ao CNPq, pelo apoio financeiro provido para a realização desta pesquisa.
À Simone Perelson, por me orientar neste percurso, dando-me, ainda assim, espaço para
escolher os trajetos a seguir.
À Ana Lucia Lutterbach Holk e a Joel Birman, por aceitarem, tão solicitamente,
participar da banca de defesa desta dissertação de mestrado.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. E,
em especial, à Fernanda Costa Moura e à Isabel Fortes pela presença no exame de
qualificação.
À Bárbara, minha mãe, pelos inúmeros cafezinhos adoçados com amor, nas madrugadas
(quase) solitárias de trabalho. E, por tentar me ajudar no que fosse possível, ao longo
desta jornada.
Ao meu pai, Milton, pelos almoços e lanches compartilhados entre um parágrafo e
outro, que me ajudaram a recobrar as energias para continuar seguindo.
À minha irmã, Celina, por seu carinho e pela confiança.
À Dora, tia querida, pelos intervalos, algumas vezes inesperados, mas sempre oportunos
e muito bem vindos.
À querida amiga Joana, pelas conversas (teóricas ou não), pela companhia nas longas
horas de biblioteca e, sobretudo, por suas infinitas palavras de incentivo, que não me
deixaram esmorecer.
À Júlia, por seu apoio temperado com aquela dose de pragmatismo, que por vezes tanto
me falta.
Aos de todas as horas: Adriana, João, Gabriel, Flávia Nahon, Tatiana Restrepo e
Rodrigo. Pela amizade, pelo incentivo, pelos momentos de distração. Vocês, Júlia e
Joana foram simplesmente fundamentais.
Aos amigos e companheiros de mestrado, Fábio e Tatiana Holanda, por dividirem as
dores e as delícias de ser um mestrando em teoria psicanalítica.
À Elisabet, amiga querida, que mesmo em outro continente, permanece contida em meu
coração.
À Rodrigo Lyra Carvalho, por sua escuta que faz a diferença.
6
RESUMO
A presente dissertação tem como proposta investigar a possibilidade de engendramento
da diferença na experiência de uma análise, a partir da repetição em que se encontra
capturado o sujeito. Com este objetivo, examina-se o conceito de repetição a partir das
duas dimensões nele implicadas: a simbólica e a real. Inicialmente, privilegia-se a
investigação da face simbólica da repetição. Observa-se que a presença de alguns
trajetos aos quais o sujeito é insistentemente reconduzido em suas narrativas, e que
marcam sua história, é inerente a própria estruturação do simbólico e está relacionada
com a determinação do sujeito pelo discurso do Outro. A seguir, aborda-se a causa real
da repetição, recorrendo-se a três noções que fazem a ela alusão: o conceito de pulsão
de morte, de das Ding e de tiquê. Constata-se que a força motriz da repetição se refere a
um excedente pulsional que resiste a qualquer esforço de significantização, e que se
presentifica no simbólico como um cavo. Um cavo que, ao mesmo tempo, faz limite e
incita à remissão significante. Através deste exame, evidencia-se que quando do
encontro com o real é com a diferença radical que o sujeito se depara. E, a seguir,
demonstra-se que o confronto com a falta no Outro é condição de possibilidade para
este fugaz (re)encontro com a causa perdida do inconsciente. Por fim, trabalha-se a
repetição em relação à experiência analítica. Para tanto, investiga-se as junções e
disjunções entre este conceito e o de transferência – desde o início, fortemente
articulados na obra freudiana –, recorrendo-se às contribuições de Lacan para desfazer o
nó entre eles. Conclui-se que a transferência tem por efeito velar a castração do Outro e
que, neste sentido, ela é um recurso contra a tiquê. Contudo, infere-se que é por meio da
circularidade da demanda do analisante, isto é, dos significantes que retornam nela, que
o analista pode ter acesso ao objeto em torno do qual eles gravitam. Deduz-se, então,
que através das suas intervenções, o analista deve visar este resto de non-sense que
assedia, nas entrelinhas, o discurso do paciente e que é, assim, que o sujeito poderá ser
conduzido a se deparar com o inesperado, com o novo.
Palavras-chave: psicanálise, repetição, diferença, simbólico, real, transferência
7
RESUMÉ
Cette dissertation se propose d‟étudier la possibilité d‟engendrement de la différence
dans l‟expérience d‟une analyse, en partant de la répetition dans laquelle le sujet est
capturé. Avec cet objectif, le concept de répétition est examiné sur les deux dimensions
qui y participent: la symbolique et la réelle. Initialement, la recherche met en relief le
visage symbolique de la répétition. On observe que la présence de certains chemins
auxquels le sujet est régulièrement réconduit dans ses récits, et qui marquent son
histoire, est inhérent à la structuration même du symbolique et est liée à la
détermination de l'objet par le discours de l'Autre. À suivre, on aborde la cause réelle de
la répétition, avec l‟aide de trois notions qui lui font allusion: les concepts de pulsion de
mort, de das Ding et de tiquê. On constate que la force motrice de la répétition se réfère
à un excédent pulsionel qui résiste à tout effort de significantisation, et qui se présentifie
dans le symbolique comme un trou. Un trou qui, en même temps, fait limite et incite à
la rémission significative. Grâce à cet examen, il devient évident qu‟au moment de la
rencontre avec la réalité, le sujet est confronté avec la différence radicale. Et puis, on
démontre que la confrontation avec le manque dans l'Autre est la condition de
possibilité de cette rencontre fugace avec la cause perdue de l'inconscient. Bref, on
analyse la répetion par rapport à l'expérience analytique. Dans ce but, on étudie les
jonctions et les disjonctions entre ce concept et le transfert - dès le début, fortement
articulés dans l'œuvre de Freud – avec l‟aide des contribuitions de Lacan pour défaire le
nœud entre eux. On conclu que le transfert a un effet de voile sur la castration de l'Autre
et, dans ce sens, il est un recours contre la tiquê. Toutefois, on infère que par la
circularité de la demande de l'analysant, c'est à dire, des signifiants qui retournent sur
elle, l'analyste peut avoir accès à l'objet autour duquel ils gravitent. On en déduit, alors,
que par ses interventions, l'analyste doit viser ce reste de non-sens qui assiége, entre les
lignes, le discours du patient et c‟est, ainsi, que le sujet pourra être amené à rencontrer
l'inattendu, le nouveau.
Mots-clés: psychanalyse, répétition, transfert de différence, symbolique et réel
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 11
1.1 Na trilha das facilitações do Projeto............................................................................... 16
Algumas considerações sobre o artigo ............................................................................. 16
O aparelho psíquico no Projeto ........................................................................................ 18
Bahnung: memória e repetição ......................................................................................... 19
A experiência de satisfação e as primeiras facilitações .................................................... 21
1.2 O inconsciente estruturado como linguagem.................................................................. 25
O retorno à Freud a partir da lingüística ........................................................................... 25
A subversão do signo saussuriano e suas conseqüências ................................................. 25
Metáfora e metonímia ....................................................................................................... 29
1.3 O automatismo da cadeia significante ............................................................................ 34
A carta roubada ................................................................................................................ 34
Anterioridade e determinação significante ....................................................................... 36
“Par ou ímpar?” – a emergência da lei a partir do acaso .................................................. 40
CAPÍTULO 2: A FACE REAL DA REPETIÇÃO .............................................................. 47
2.1 Além do Princípio do Prazer: a repetição é própria à pulsão ......................................... 47
O primado do prazer em xeque......................................................................................... 47
Fort-Da ............................................................................................................................. 49
Trauma: excesso e falta .................................................................................................... 50
Redefinindo a pulsão e estabelecendo uma nova dualidade pulsional ............................. 52
2.2 Das Ding ......................................................................................................................... 55
Revendo o Projeto à luz do Além: breve introdução à Coisa ........................................... 55
Juízo, pensamento e fabricação da realidade .................................................................... 58
Essa estranha Coisa tão íntima ......................................................................................... 61
2.3 Tiquê: a causa acidental da repetição ............................................................................. 65
Automatôn e Tiquê ............................................................................................................ 65
O encontro traumático com o desejo do Outro ................................................................. 70
CAPÍTULO 3 – REPETIÇÃO E EXPERIÊNCIA ANALÍTICA ........................................ 76
3.1 Repetição e transferência na obra freudiana ................................................................... 76
9
Sobre a dinâmica da transferência .................................................................................... 77
Agieren ............................................................................................................................. 80
A regra da abstinência ...................................................................................................... 83
3.2 Considerações sobre o conceito de transferência em Lacan........................................... 85
Sujeito-suposto-saber ....................................................................................................... 85
Agalma .............................................................................................................................. 90
Reflexões sobre a intervenção analítica............................................................................ 95
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 105
10
Repetir, repetir – até ficar diferente.
Manoel de Barros
11
INTRODUÇÃO
Na experiência clínica, não é raro que analisantes venham constatar
queixosamente que “não conseguem fazer diferente” ante alguma situação (nova,
porém, de certa forma, familiar) que se lhes apresenta. O conteúdo dessas queixas, é
bem verdade, diverge de uma a outra. Em todas, porém, é possível apontar um problema
em comum, a saber: a repetição em que se encontra capturado o sujeito e da qual este
não consegue escapar, a despeito de seus esforços. Tem-se a impressão, aí, que é como
se um roteiro ou um caminho já tivesse sido previamente traçado, e o sujeito não
pudesse evitar segui-lo; ou ainda, como se ele fosse obrigado, impelido,
necessariamente, a percorrê-lo, mesmo que por vezes já esteja advertido e ciente de que
o desfecho para o qual estas vias tão familiares irão lhe conduzir pode vir a ser bastante
doloroso.
A força desta compulsão a repetição, que constrange o sujeito a passar pelas
mesmas situações, com os mesmos desenlaces, é tão intensa e, ao mesmo tempo, parece
tão alheia àquele que a experimenta que, não é à toa, muitos tendem a ver nela a ação do
destino. É, aliás, o que o próprio Freud nos aponta em 1920, no texto Além do Princípio
do Prazer, onde se dedica justamente a abordar esta problemática da compulsão a
repetição. Ali, ele afirma a respeito das pessoas que encontram sempre o mesmo
resultado em suas relações humanas que “a impressão que [elas] dão é o de serem
perseguidas por um destino maligno” (p.35). Freud, entretanto, faz questão de sublinhar
que a psicanálise discorda deste tipo de explicação: “a psicanálise [...] sempre foi da
opinião de que seu destino é, na maior parte, arranjado por elas próprias e determinado
por influências primitivas” (idem).
Contudo, a despeito de não deixar de reconhecer a implicação do sujeito nessa
estranha repetição, Freud também desde a primeira vez que tratou deste conceito, em
1914, no artigo técnico Recordar, repetir e elaborar, sempre nos indicou claramente que
o sujeito está fadado a repetir a sua revelia. Nessa época, vale dizer, ele ainda não
concebia a repetição como o princípio mais fundamental do aparelho psíquico e índice
de uma força que se mantém para além do princípio do prazer – o que só viria a
acontecer em 1920.
Ainda assim, o que ele já nos apontava no referido artigo técnico, e que se
manteria mesmo depois de suas elaborações ulteriores sobre este tema, é que no decurso
12
do tratamento, o paciente não pode se furtar de repetir, na sua relação com o analista,
“suas inibições, suas atitudes inúteis [...], [bem como] todos os seus sintomas”
(FREUD, 1914, p.198), pois – como haveremos de demonstrar em nosso último
capítulo – o próprio dispositivo analítico provoca-o para tal. Quer dizer, se aqui ele
ainda não admitia a repetição como algo inerente ao funcionamento psíquico e,
portanto, à constituição do sujeito, o que Freud já nos deixava entrever, ainda que se
referindo à repetição apenas enquanto um fenômeno clínico, é que o sujeito não tem
qualquer domínio sobre ela. Longe de se manter numa posição de maestria com relação
à repetição, o sujeito se encontra a ela submetido.
Foi a partir dessas considerações que vimos esboçar-se um interessante
paradoxo, pois se por um lado há que se admitir que “enquanto o paciente se acha em
tratamento, [ele] não pode fugir desta compulsão a repetição” (FREUD, 1914, p.198),
por outro, acreditamos que seja indubitável também que a experiência de uma análise
propicia – ainda que este não seja o objetivo primordial desta – o engendramento de
importantes modificações subjetivas. Afinal, se afirmamos logo de saída que é freqüente
que pacientes em análise se queixem das repetições nas quais se vêem capturados,
também – devemos admitir – não é nada incomum que, depois de um certo tempo de
trabalho analítico, alguns deles consigam deslocar-se dessas rotas já conhecidas, vindo a
construir desenlaces alternativos para algumas de suas histórias.
Ora, como isso é possível? Se o sujeito está condenado a repetir não apenas fora
da cena analítica, mas também nela; se o próprio dispositivo psicanalítico incita-o
especialmente a repetir, e ele não possui qualquer controle sobre isso, como é possível o
advento do novo a partir desta experiência?
Com efeito, o que Manoel de Barros parece nos sugerir no sucinto verso que nos
serve de epígrafe na abertura desta dissertação, “Repetir, repetir – até ficar diferente”, é
que não é sem a repetição que se chega a uma nova configuração das coisas. Mas, o que
propicia essa passagem da repetição à diferença? E, sobretudo, como ela se dá em
análise?
Fruto dessas interrogações, a presente dissertação tem como proposta central
debruçar-se sobre este conceito fundamental da psicanálise: a repetição, a fim de
investigar como, a partir dela, algo de inesperado pode ser produzido dentro do processo
analítico. Para tanto, entendemos que será preciso esclarecer no que consistem esses
caminhos familiares que na sua história o sujeito se vê cegamente levado a percorrer
13
repetidas vezes, bem como o que jaz para além desta repetição automática, motivando-a
compulsivamente como uma força estranha.
Nesse sentido, acreditamos que as contribuições lacanianas para este tema nos
serão de grande relevância. Pois, grosso modo, o que elas nos permitem vislumbrar é
que a repetição apresenta duas faces: uma delas é a simbólica, que se refere ao aspecto
da repetição que, de alguma maneira, se dá a ver. Onde? Na própria fala do sujeito, nos
enunciados através dos quais sua vida e sua história são narradas. Ou seja, ela se refere
justamente à repetição de certos enredos à que fizemos referência, aos quais o sujeito
parece não poder escapar.
É à investigação desta face simbólica que nos deteremos em nosso primeiro
capítulo. A fim de compreendê-la, julgamos interessante, antes de tudo, nos debruçar
sobre as considerações freudianas encontradas no Projeto para uma Psicologia
Científica (1950[1895]), e mais especificamente sobre a noção de Bahnung que nos é ali
apresentada. Pois, acreditamos que a partir delas já nos será possível entrever parte do
que Lacan pretende nos indicar ao afirmar que o inconsciente é estruturado como uma
linguagem.
Em seguida, nos ocuparemos precisamente das contribuições feitas por Lacan à
psicanálise a partir da lingüística estrutural. Nosso objetivo com isto será traçarmos um
panorama que nos permita compreender como se estrutura a ordem simbólica, a fim de
podermos, então, logo depois, apontarmos como o psicanalista francês explica a
insistência de determinadas articulações significantes no desdobramento automático da
cadeia simbólica e a posição do sujeito em relação a ela. Para tanto, recorreremos
principalmente aos escritos lacanianos A instância da letra no inconsciente ou a razão
desde Freud (1957) e O seminário sobre „A carta roubada‟ (1956) em articulação com
O Seminário – livro 2 (1954-1955).
Já em nosso segundo capítulo, é a outra face da repetição que nos interessará: a
sua face real, que se refere justamente à dimensão que não se dá a ver na repetição, que
permanece inassimilável à fala, para além de qualquer narrativa que o sujeito possa
construir sobre si, sobre sua vida, e sobre o mundo que o cerca. Ou seja, nos
dedicaremos a trabalhar aquilo que não cessa de não se escrever, retornando sempre ao
mesmo lugar: aquele no qual o pensamento ao pensar nunca o encontra.
Para abordarmos aquilo que de real insiste na repetição, e deslindarmos como
isto se articula ao automatismo da cadeia simbólica, planejamos começar utilizando o
artigo freudiano Além do Princípio do Prazer (1920), para depois nos debruçarmos
14
sobre a noção de das Ding desenvolvida no Projeto para uma Psicologia Científica
(1950[1895]) e retomada por Lacan em O Seminário – livro 7 (1959-1960). E, ao final
deste capítulo, recorreremos ainda às formulações lacanianas encontradas em seu
seminário destinado aos quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), onde ele
nos apresenta, servindo-se de duas noções aristotélicas, Automatôn e Tiquê, esses dois
níveis da repetição, reconhecendo nesta última a causa real da repetição.
Acreditamos que por meio desse estudo o que se evidenciará é que tanto as
noções de pulsão de morte, quanto à de das Ding e de tiquê são maneiras distintas de
tentar dar conta desta estranha força que incita imperativamente à repetição dos mesmos
enredos que marcam de maneira singular a história de vida de cada um.
Por fim, reservaremos o terceiro e último capítulo desta dissertação para
refletirmos sobre as incidências da repetição na experiência de uma análise, a partir das
possíveis junções e disjunções deste conceito com o de transferência. Isso porque, como
haveremos de mostrar, na obra freudiana estas duas noções aparecem sempre de tal
forma atreladas uma a outra, que muitas vezes pode parecer que a transferência se
resume a um tipo especial de repetição: aquela que se dá especificamente dentro do
dispositivo clínico, na relação com o analista. O que, com efeito, nos traz embaraços,
pois temos como hipótese de base que é por meio da transferência, já que esta constitui
o motor do tratamento analítico, que se torna possível passar da repetição do mesmo à
diferença.
Assim, na primeira parte deste capítulo, nos dedicaremos a investigar a
aproximação que realiza Freud entre essas duas noções, com o objetivo de esclarecer a
seguinte questão: se Freud supõe que a transferência é repetição, então, o que ele admite
que se repete nela? Tentaremos responder a esta pergunta utilizando as suas
considerações encontradas nos artigos técnicos A dinâmica da transferência (1912),
Recordar, repetir e elaborar (1914), e Observações sobre o amor de transferência
(1915), articulando-as às elaborações tecidas acerca deste tema em Além do Princípio
do Prazer (1920).
A seguir, na segunda metade de nosso terceiro capítulo, julgamos relevante nos
ocuparmos somente do conceito de transferência, pensando-a, desta vez, a partir de duas
noções lacanianas, quais sejam: a de sujeito-suposto-saber e a de agalma, desenvolvidas
para nos indicar o que está no cerne do estabelecimento e da sustentação da
transferência. Com isso, pretendemos ter uma visão da transferência que não seja
subsumindo-a ao conceito de repetição, para que depois, tendo-os compreendido
15
melhor, possamos novamente rearticular esses dois conceitos, já com vistas de preparar
o caminho para esboçarmos uma resposta para a principal interrogação que nos põe a
trabalhar.
Vale dizer, ainda, que não temos a pretensão de examinarmos a fundo as noções
de sujeito-suposto-saber e de agalma. Nosso interesse, aqui, é apenas o de circunscrevê-
las de forma geral, a partir principalmente da Proposição de 09 de outubro de 1967 e
das formulações tecidas em O Seminário – livro 8 (1961-1962), a fim de tentarmos
encontrar uma possível solução para o nosso impasse.
.
16
CAPÍTULO 1.
A VERTENTE SIMBÓLICA DA REPETIÇÃO
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra
(...).
Carlos Drummond de Andrade
1.1.
Na trilha das facilitações do Projeto
Algumas considerações sobre o artigo
Em 1895, no artigo intitulado Projeto para uma psicologia científica, Freud se
deu a tarefa de tentar escrever o funcionamento psíquico a partir de uma abordagem
quantitativa, utilizando-se de noções retiradas da fisiologia e da anatomia cerebral.
Acabou desistindo da empreitada e abandonando o texto, que nunca divulgou. Foi
apenas postumamente, em 1950, que este chegou até as mãos do público, oferecendo-
nos elaborações riquíssimas e controversas. Controversas, justamente porque ao
empregar uma linguagem neurológica para falar do aparato psíquico, o pai da
psicanálise teria dado margem para que alguns entendessem que ele se esforçava por
situar as bases do funcionamento deste aparato na fisiologia do cérebro.
Todavia, como nos aponta Garcia-Roza (1991), o que uma crítica como esta
desconsidera é que, mesmo que Freud estabeleça no Projeto um certo isomorfismo entre
o sistema nervoso e o psiquismo, ele ainda assim não parecia admitir uma
correspondência exata entre ambos. Afinal, “os neurônios aos quais ele se refere como
constituindo a base material do aparelho psíquico não correspondem às descobertas da
histologia do século XIX” (GARCIA-ROZA, 1991, p.80), de onde precisamente teria
tomado de empréstimo esta noção. Logo, se é inegável que Freud concebe ali o
psiquismo tal como uma rede neuronal, suas formulações não nos levam a acreditar que
ele buscasse fundamentar os processos psíquicos na anatomia cerebral, porquanto elas
implicam “uma recusa da anatomia e da neurologia da época” (GARCIA-ROZA, 1991,
p.81).
17
Deste modo, como nos aponta tão bem Lacan (1959-1960), “o que constitui o
interesse ardente que podemos ter lendo o Entwurf não é a pobre contribuiçãozinha a
uma fisiologia fantasista que ela comporta” (LACAN, 1959-1960, p.50), mas sim,
acreditamos, o fato de que neste artigo já é possível encontrarmos, em estado germinal e
sob a terminologia pretensamente científica, muitas das idéias que serão posteriormente
desenvolvidas por Freud – dentre elas, por exemplo, a noção de desejo – e outras tantas
que serão retomadas pelo próprio Jacques Lacan – tais como a idéia de trilhamento
(Bahung) e a noção de das Ding. Com efeito, como pretendemos demonstrar, a estrutura
do aparelho psíquico construído no Projeto se encontra em fina consonância com as
elaborações que Lacan traçará a partir da lingüística estrutural. O que torna esses
renegados rascunhos um documento preciosíssimo para a psicanálise.
Mas, vejamos como as elaborações do Projeto poderiam contribuir
especialmente para o nosso debate; em que medida elas nos ajudam a pensar a repetição
na qual se encontra capturado o sujeito.
Na ocasião da redação deste artigo, é bem verdade, a noção de repetição ainda
não havia sido elaborada enquanto um conceito pelo pai da psicanálise. Tal feito, aliás,
como abordaremos em nosso terceiro capítulo, só ocorreria quase vinte anos depois, no
artigo técnico Recordar, repetir e elaborar (1914). E, mesmo assim, a repetição
apareceria ali muito mais como um fenômeno peculiar à clínica (intimamente
relacionado à transferência e à resistência) do que como um princípio inerente ao
funcionamento psíquico – o que somente seria admitido expressamente em 1920, em
Além do Princípio do Prazer, e não sem graves conseqüências para a teoria
psicanalítica.
Não obstante, acreditamos que já é possível vislumbrarmos no Projeto para uma
Psicologia Científica o esboço dessa idéia que virá a ser concebida em 1920. No
referido artigo, a concepção de que há algo da ordem do repetitivo na origem e
estruturação do psiquismo fica evidente através da noção de Bahnung (essencial para
pensarmos a memória em Freud e interessante para entendermos a ordem simbólica em
Lacan) e se encontra intrinsecamente articulada com a experiência que, segundo as
observações freudianas, estaria na raiz do desejo: a experiência de satisfação.
Investigaremos essas articulações com mais calma a seguir, mas antes julgamos
imprescindível explicarmos rapidamente os moldes nos quais é concebido o psiquismo
nesses rascunhos.
18
O aparelho psíquico no Projeto
Nesse artigo, nos é apresentado um aparato psíquico composto como que por
circuitos neuronais divididos em três sistemas – memória (ψ), percepção (φ) e
consciência (ω) –, através dos quais circula, menos ou mais livremente, dependendo do
sistema em questão, uma certa quantidade (Q) de energia, provinda tanto de fontes
exógenas quanto endógenas de estimulação.
De acordo com as hipóteses freudianas, o funcionamento psíquico seria regido,
de início, pelo princípio da inércia neurônica, segundo o qual os elementos materiais
que compõem o aparelho – isto é, os neurônios – tendem a desenvestir-se
completamente de Q mediante uma descarga motora, privilegiando neste processo,
dentre todas as possíveis vias de descargas, aquelas que acarretassem a cessação do
estímulo. Assim, no caso das excitações advindas do mundo externo, esta quantidade de
energia seria empregada numa ação reflexa de fuga.
Contudo, como Freud reconhece que para aplacar as estimulações de origem
interna a fuga do estímulo não é eficaz, fazendo-se aqui necessária a realização de uma
ação específica – processo energeticamente mais dispendioso –, ele admite que o
aparelho psíquico logo relativiza esta propensão primordial de reduzir Q a zero, através
da atuação do princípio da constância, que o obriga a reter e tolerar um acúmulo
mínimo de Q – sua função secundária.
Aqui, cabe uma ressalva: no Projeto, apesar de não se referir expressamente ao
princípio do prazer, Freud praticamente o assimila ao princípio da inércia neurônica, ao
afirmar que, com efeito, sentia-se tentado a identificar a tendência já conhecida da vida
psíquica de evitar o desprazer com a tendência primária à inércia, colocando esta última,
portanto, em oposição à função secundária do aparelho. Posteriormente, no entanto, em
1920, no artigo que marca a sua grande virada teórica, intitulado Além do Princípio do
Prazer, Freud irá rever esta posição ao admitir ali a existência de uma tendência mais
primordial do aparelho psíquico do que a disposição de evitar o desprazer, qual seja: a
tendência de zerar por completo todas as excitações e conduzir-se, assim, ao próprio
aniquilamento. Neste texto, ele associará este impulso à pulsão de morte e ao princípio
de funcionamento por ela imposto ao psiquismo, denominado então de princípio do
Nirvana.
Quanto a essas reformulações, não é de nosso interesse nos aprofundar nelas
agora, até mesmo porque pretendemos debatê-las detidamente no capítulo seguinte.
19
Porém, o que acreditamos que seja importante sublinharmos neste momento é que, de
certa maneira, parte dessas suas teorizações ulteriores já podia ser encontrada nesses
rascunhos, uma vez que – como é possível notar – o imperativo que é prescrito pelo
princípio do Nirvana não é senão o mesmo que Freud reconhecia em 1895 como sendo
próprio ao princípio da inércia. Todavia, a diferença – a grande diferença, aliás – é que
em 1920 ele promove uma espécie de torção em relação àquilo que proclamava sua
elaboração anterior, pois a partir daí o princípio do prazer ficará associado ao que ele
denomina no Projeto de função secundária, respondendo pela manutenção de uma certa
homeostase no aparelho, e não mais ao princípio da inércia, como aqui.
Feita esta ressalva, voltemos aos rascunhos de 1895.
A fim de explicar como a função secundária – qual seja, a de conservar um certo
nível basal de Q – pôde ser garantida, Freud supõe, então, a presença de barreiras de
contato entre os neurônios, que dificultam a descarga imediata e total da quantidade de
excitação.
Ao postular a existência de tais barreiras, ele também tentava explicar o quê
diferencia o sistema mnêmico do perceptivo sem apelar para uma diferença na
constituição dos neurônios que compõem cada sistema. Assim, concebe que aquilo que
distingue os dois sistemas é precisamente a forma como se comportam as barreiras de
contato num e noutro. Enquanto que no perceptivo essas não se fazem sentir entre os
neurônios; no sistema ψ, as barreiras de contato opõem resistência à livre passagem de
Q.
Contudo, Freud admite que o nível de resistência apresentado por essas barreiras
não é imutável, nem idêntico em todo sistema mnêmico. De acordo com suas
conjecturas, ao abrir caminho (trilhar) por entre determinados neurônios, a passagem da
quantidade de excitação acarreta a diminuição da resistência oferecida pelas barreiras de
contato, tornando o caminho atravessado mais permeável à próxima condução de Q.
Bahnung: memória e repetição
A noção de Bahnung se refere justamente a essa espécie de trilhamento que, por
proporcionar o aumento de permeabilidade das barreiras de um determinado percurso,
garante que este se torne doravante um caminho privilegiado no sistema ψ para escoar a
excitação. É nesse sentido que eles poderiam ser considerados mais “facilitados” do que
os demais. E, segundo Freud, quanto maior a intensidade e a freqüência das correntes de
20
excitação que atravessaram anteriormente o mesmo circuito neuronal, maior será o grau
de facilitação deste.
Como afirmamos antes, essa característica do sistema ψ de ter suas barreiras de
contato modificadas pela passagem de Q é precisamente o que nas considerações do
Projeto oferece uma explicação para a memória, ali concebida como a “a capacidade de
ser permanentemente alterado por simples ocorrências” (FREUD, 1950[1895], p. 408).
Entretanto, é preciso dizer que a possibilidade de permanência de uma marca no
tecido nervoso só pode ser assegurada porquanto essas marcas se inserem, articuladas
umas às outras, em um sistema de diferenças. Isto é, porque as alterações deixadas e as
facilitações promovidas a partir da passagem de excitação não são idênticas em todas as
direções. Se fossem, os traços ou as trilhas preferenciais se apagariam enquanto tais,
indistinguíveis entre si. O caminho tomado pela excitação seria, portanto, totalmente
fortuito e não haveria memória. E, afinal, o que seria a memória senão uma tal
preferência, que direciona a passagem de excitação por caminhos já trilhados?
É por isso que Freud afirmará que o que garante a memória são as diferenças de
facilitações (Bahnung) entre os neurônios ψ. Mas, com efeito, se pensarmos bem, tal
afirmação talvez comporte uma certa redundância, pois a própria noção de Bahnung já
parece implicar necessariamente esta idéia de um sistema organizado a partir de
relações diferenciais, ou opositivas. Pois, afirmar que uma via é mais “facilitada” à
condução de energia é pressupor que ela o é sempre em oposição a outros percursos que
apresentam um grau de facilitação menor (ou zero) e, logo, distinta desta; não havendo
nunca uma facilitação pura e simples.
Assim, podemos concluir que “é a Bahnung a responsável pela origem da
memória e do próprio aparato psíquico” (GARCIA-ROZA, 1991, p.136). Quer dizer,
estes não preexistem aos trilhamentos que vão sendo traçados e que formam uma trama
diferencial de cadeias mais ou menos favoráveis ao escoamento de energia.
Ademais, evidencia-se também – e isso é de extrema relevância para a nossa
pesquisa – que este sistema de diferenças instaurado com as facilitações é o que
possibilita a repetição de caminhos já conhecidos, familiares.
Contudo, Lacan (1959-1960) nos adverte para não tomarmos esta repetição de
caminhos familiares que é a própria função da memória, isto é, a rememoração, como
um mero efeito mecânico do hábito ou de reforçamento. Entendemos que com esta
assertiva Lacan buscava enfatizar que a concepção de memória que Freud desenvolve,
não só no Projeto, mas em toda sua obra não é o de uma memória biológica que se
21
presta à adaptação do organismo ao meio, e sim uma memória organizada e acionada
pelo desejo. Assim, diz-nos, ele:
O recurso ao trilhamento de Freud não tem nada a ver com a função
do hábito tal como é definida no pensamento de uma aprendizagem...
[mas, com o] prazer engendrado pelo funcionamento desses
trilhamentos (LACAN, 1959-1960, p. 266).
Afinal, é preciso lembrar que, justamente por facilitarem a condução de energia,
essas vias já percorridas favorecem a descarga de excitação, reduzindo a tensão no
interior do aparelho psíquico e levando, conseqüentemente, à obtenção de prazer. E que,
ademais, não foi senão por este motivo – o de terem possibilitado a satisfação – que elas
foram conservadas, tornando-se percursos privilegiados.
A experiência de satisfação e as primeiras facilitações
A fim de compreendermos melhor a relação intrínseca, para a qual Lacan nos
chama a atenção na passagem destacada anteriormente, entre o recurso aos trilhamentos
(isto é, a preferência por repetir vias já trilhadas) e a satisfação engendrada nessa
repetição, acreditamos que seja importante tratarmos da vivência que Freud afirma estar
na raiz das mais primitivas Bahnungen e a qual ele nomeia de experiência primária de
satisfação.
Sobre tal experiência algumas considerações merecem destaque: cabe sublinhar
que esta se refere especificamente à estimulação endógena, ou seja, à excitação de
origem somática, que se Freud não denominava, aqui, de “pulsão” é tão somente porque
ainda não dispunha deste conceito. Pois é inegável que já podemos ver aí, na noção
mesma de “excitação endógena”, tal como ela é concebida nesses rascunhos – ou seja,
como uma força constante (constant Kraft) –, a precursora daquele. Ademais, outro
aspecto digno de nota é que Freud reconhecerá, não apenas que esta vivência jaz na
origem do estabelecimento dos primeiros trilhamentos – e assim, portanto, da
estruturação da memória –, como também da irrupção do desejo. Contudo, como
veremos a seguir, afirmar uma coisa é necessariamente afirmar a segunda também. Ou
seja, dizer que esta experiência se encontra na raiz dos primeiros trilhamentos é dizer
também que ela marca o ponto zero do desejo.
Assim, antes mesmo de explicarmos como Freud a descreve para nós,
entendemos que é importante ressaltar que esta experiência articula embrionariamente
22
pulsão, memória (ou, melhor dizendo: a estruturação do aparato psíquico enquanto um
aparelho de memória – quer dizer, enquanto um sistema organizado a partir da inscrição
de marcas diferenciais que orientam o fluxo de excitações por determinados caminhos),
irrupção (e insistência) do desejo, repetição e objeto1. E, não só, na verdade. Mas, estas
são, com certeza, as noções que mais nos interessam devido ao tema de nossa pesquisa.
Dito isto, vamos à experiência de satisfação.
Freud estabelece no Projeto que a excitação endógena atua através de um
processo de somação. Ela é ininterrupta e, acumulando-se, eleva o nível de tensão no
interior do aparelho psíquico. Este aumento, tal como aquele desencadeado por uma
estimulação externa, é sentido como desprazer e gera uma propensão à descarga pela via
motora. Entretanto, a situação neste caso específico é bem mais delicada, na medida em
que é impossível para o organismo empregar esse quantum de energia para fugir do
estímulo, que, originado no seu interior, representa as grandes “urgências da vida”
(como a fome, por exemplo).
Dessa forma, a fim de promover uma descarga que restabeleça o nível mínimo
de Q, acionam-se, então, as vias motoras que conduzem a uma alteração interna (choro,
gritos). Contudo, nenhuma descarga assim efetuada é capaz de produzir alívio, pois o
estímulo interno continua a ser recebido e, segundo Freud, só poderá ser aplacado
através de uma ação específica, a qual pressupõe uma intervenção no mundo externo. O
problema é que o pequeno sujeito ao nascer, e nos primeiros anos que se seguem, é
incapaz de promovê-la sozinho. Ele se encontra num completo estado de desamparo
(Hilflösigkeit) e, portanto, totalmente dependente da ajuda alheia para poder realizá-la.
Não obstante, de acordo com as proposições do Projeto, esse auxílio é obtido graças
justamente às alterações internas que, atraindo a atenção do adulto, são interpretadas por
ele e adquirem, a partir de então, a função secundária de comunicação.
1 Sobre esta última noção e, mais precisamente, sobre a relação que podemos traçar entre objeto e
repetição, deixaremos para abordá-las no segundo capítulo, onde voltaremos a falar da experiência de
satisfação, mas desta vez mantendo-a apenas como pano de fundo para discutirmos o conceito de das
Ding. Neste momento de nosso percurso, nos contentaremos apenas em mencionar o objeto de satisfação
sem maiores problematizações quanto ao seu estatuto, pois nosso intuito aqui é privilegiar a investigação
da relação da repetição com o desejo e com a memória. Sabemos que fazer uma tal divisão é arriscado,
uma vez que todas essas noções encontram-se tão fortemente imbricadas que não se pode conceber uma
sem a outra. Mas se assim procedemos é apenas com o objetivo de já podermos ir vislumbrando a
distinção que Lacan realiza em O seminário, livro 11 (1964), ao dissecar o conceito de repetição, entre
Automatôn e Tiquê. Distinção, esta, que – vale à pena enfatizar – não acreditamos servir para apontar-nos
a existência de duas sortes de repetição, mas sim para lembrar-nos que a repetição, na medida em que é
um conceito que articula, privilegiadamente, os registros simbólico e real, pode ser apreciada tanto de um
prisma quanto de outro: ou a partir de seus efeitos no simbólico – o automatismo da cadeia significante,
que privilegia as mesmas articulações significantes ou os mesmos trilhamentos –, ou a partir de sua causa
real – sobre a qual nos absteremos de fazer qualquer comentário, por ora.
23
Somente depois de obtida a provisão externa e de realizada a ação específica é
que o sujeito pode enfim abolir temporariamente os estímulos endógenos dos quais é
alvo, sendo levado a experimentar, pela primeira vez, o prazer. Como conseqüência,
esta vivência primária de satisfação deixa marcas indeléveis no aparelho psíquico:
facilitações que, doravante, passam a orientar o fluxo de energia na direção da imagem
do objeto de satisfação, sempre que houver um acréscimo no nível de excitação
endógena.
Segundo Freud, estas primeiras facilitações resultam do investimento
simultâneo, produzido nessa experiência, de três grupos de neurônios: (1) dos neurônios
nucleares investidos constantemente pelos estímulos internos; (2) daqueles que, situados
no pallium2, foram catexizados pela percepção do objeto de satisfação (e passaram a
guardar a imagem perceptiva deste); e (3) dos neurônios do pallium nos quais chegam
às informações sobre a descarga efetuada pelo movimento da ação específica (os quais
registram a imagem motora correspondente).
Assim, graças ao vínculo que se estabelece aí, entre esses diferentes grupos de
neurônios, elevando-se novamente o nível de tensão no aparelho psíquico (devido ao
processo de acúmulo de estimulação endógena), o que ocorrerá é que os neurônios
nucleares, trabalhando a favor da função primária e, portanto, em obediência ao
princípio da inércia, tenderão sempre a escoar a energia em direção aos caminhos
facilitados que conduzem aos dois grupos do sistema ψ pallium, propiciando a
reativação da lembrança do objeto que viabilizou a satisfação do sujeito.
É a esta tendência de reinvestir a imagem do objeto que Freud chama, então, de
desejo. E, segundo suas anotações, a conseqüência imediata da irrupção deste impulso é
justamente a alucinação do objeto de satisfação. Sem dúvida, esta é a via mais rápida
que o sujeito poderia dispor para „reencontrá-lo‟ durante o estado de desejo, mas nem
por isso a mais conveniente, uma vez que, não estando diante do objeto material, ele não
pode de fato satisfazer e aplacar as exigências pulsionais que o acossam, sendo levado a
um inevitável desapontamento.
Como resultado dessa frustração, segundo encontramos no Projeto, forma-se o
ego: uma organização psíquica, composta por neurônios constantemente investidos que
tem como função atrair para si parte dos investimentos, impedindo assim a
2 Freud admite no Projeto uma divisão do sistema ψ em núcleo e pallium. Enquanto a excitação endógena
atinge ψ nos neurônios nucleares; os neurônios do pallium, que compõe a parte mais externa desse
sistema, são investidos com energias de fontes exógenas, a partir de φ.
24
hipercatexização da imagem mnêmica do objeto (que culminaria na alucinação), e inibir
a descarga motora até que se confirme a presença deste através de uma “indicação de
realidade”, dada pelo sistema ômega a partir do estabelecimento de uma identidade
entre percepção externa e lembrança. Esta identidade, vale dizer, só poderá ser obtida
através do desencadeamento de uma atividade judicante, mas, de qualquer modo, como
nos lembra Freud (1900), “toda esta atividade constitui apenas um caminho indireto
para a realização de desejo [...]. O pensamento afinal não passa de o substituto do desejo
alucinatório” (p.517).
Com isso, torna-se compreensível em que medida se pode afirmar que “nada
senão o desejo pode colocar nosso aparelho anímico em ação” (idem), pois o que se
evidencia é que todos os processos psíquicos se constituirão tendo como escopo
reencontrar esse objeto primordial e repetir a vivência de satisfação, seja de forma direta
ou indireta. E é nesse sentido que entendemos porque Freud postula também que o
desejo, o resíduo dessa experiência, produz „motivações do tipo compulsivo‟ no
psiquismo.
Para a nossa pesquisa, esses últimos apontamentos parecem especialmente
relevantes pois através deles acreditamos que é possível vislumbrarmos a relação entre
desejo, memória e repetição. Afinal, o que Freud está a nos apontar aqui é que esse
impulso a reinvestir a imagem do objeto irrompe precisamente como produto (ou como
resto) da articulação das marcas deixadas pela vivência de satisfação, através do
estabelecimento dessas primeiras facilitações. O que nos leva a inferir, portanto, que o
desejo surge concomitantemente à estruturação da memória, a qual – como vimos – não
é senão a própria articulação das inscrições psíquicas num sistema de diferenças.
Ademais, ao admitir que isso que resta da experiência de satisfação dá ensejo a
motivações compulsivas, pensamos que Freud deixa-nos entrever ainda a relação
intrínseca entre desejo e repetição, porquanto se evidencia aí que é a irrupção do mesmo
(e a sua indestrutibilidade) aquilo que imprime o caráter repetitivo que marcará o
funcionamento psíquico desde sua origem.
Todavia, como havemos de estudar no próximo capítulo, se é a insistência do
desejo aquilo que enseja a repetição de caminhos já trilhados, tal insistência só é
possível na medida em que esse objeto nunca é alcançado, e nunca é alcançado
porquanto nunca foi tido. Pois é desde sempre que o objeto de satisfação se constitui
como perdido.
25
1.2.
O inconsciente estruturado como uma linguagem
O retorno à Freud a partir da lingüística
Vimos anteriormente como a memória freudiana é constituída pelas Bahnungen
que sugerem um sistema de diferenças no qual as marcas deixadas pela passagem de
excitação se articulam em contraposição umas as outras, formando uma rede complexa.
Esta idéia, com efeito, se mostra em profunda consonância com as elaborações
propostas por Lacan em seu retorno à Freud a partir da lingüística estrutural. E, já que
acreditamos que essas elaborações serão essenciais para a compreensão de um de seus
escritos, O seminário sobre “A carta roubada” (1956), onde Lacan teoriza sobre a
repetição, propomos, a seguir, investigá-las mais a fundo.
Mas, primeiramente, cabe perguntarmo-nos: por que partir da lingüística?
Uma resposta possível é que se Freud percebeu, desde cedo, que os sintomas
neuróticos recrudesciam por meio da palavra do analisante, chegando mesmo a erigir a
associação-livre como a regra de ouro da psicanálise, Lacan deu um passo adiante e
inferiu que “é justamente porque alguma coisa foi atada a alguma coisa semelhante à
fala que o discurso pode desatá-la” (LACAN, 1957-1958, p.13). Isto é, ele compreendeu
que se o discurso podia desfazer os nós dos sintomas é somente na medida em que estes
– e todas as demais formações do inconsciente – são estruturados como uma linguagem.
E foi nesse sentido, objetivando demonstrar este axioma e, assim, trazer “a psicanálise
de volta para o seu campo específico – o da linguagem” (COUTINHO JORGE, 2000,
p.65), que ele se apropriou de algumas noções da lingüística de Ferdinand de Saussure e
de Roman Jacobson para aplicá-las à psicanálise.
É importante salientar, contudo, que nessa apropriação ele não apenas importou
tais noções, mas as subverteu. Investiguemos rapidamente de que maneira ele o faz e o
que visava com isso.
A subversão do signo saussuriano e suas conseqüências
Uma das idéias centrais desenvolvidas por Saussure em seu Curso de Lingüística
Geral (s/d) é que a língua é formada por signos, os quais se referem a unidades
compostas de duas partes: o significado (ou conceito) e o significante (imagem
acústica), representados por ele da seguinte forma:
26
Signo = Significado
significante
Segundo o lingüista, a união dessas duas partes seria arbitrária. Entretanto, como
observa Saussure,
a palavra arbitrário [...] não deve dar a idéia de que o significado
depende da livre escolha do que fala [...] não está ao alcance do
indivíduo trocar coisa alguma num signo, uma vez esteja estabelecido
ele num grupo lingüístico); queremos dizer que o significante é
imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não
tem nenhum laço natural na realidade (SAUSSURE, [s/d], p.83).
Contudo, uma vez constituída, esta unidade não mais poderia ser desfeita; isto é,
ela se caracteriza pela indissociabilidade de seus componentes, que remeteriam um ao
outro reciprocamente. Dito de outro modo, dentro do pensamento saussuriano,
determinado significante sempre reclamaria um certo significado e vive-versa.
Além dessas duas características atribuídas ao signo lingüístico – a
arbitrariedade e reciprocidade biunívoca, respectivamente –, Saussure também
reconhece mais uma: a linearidade do significante. Quer dizer, ele entende que os
significantes se dispõem numa linha temporal, se apresentando um após o outro e
formando uma cadeia. E, tal como nos lembra Dör, a fala “não é outra coisa senão o ato
mesmo que presentifica este desenrolar temporal significante” (DÖR, 1989, p. 33).
Como conseqüência, dependendo do lugar onde se situa um significante – com quais
outros elementos ele se articula em cadeia –, a significação produzida por este mesmo
significante poderá ser alterada. Isso é o que Saussure denomina de valor lingüístico: “o
valor de qualquer termo que seja está determinado por aquele que o rodeia”
(SAUSSURE, [s/d], p.135).
Interessante notar, acerca desta noção, que ela implica que se o valor de cada
termo nos é dado pelo lugar que eles ocupam numa cadeia é somente na medida em que
esses valores “são puramente diferenciais”, definidos “negativamente por suas relações
com os outros termos do sistema. Sua característica mais exata é ser o que os outros não
são” (SAUSSURE, [s/d], p.136). Dessa forma, conclui ele que “o que importa na
palavra não é o som em si, mas diferenças fônicas que permitem distinguir essa palavra
de todas as outras, pois são elas que levam a significação” (SAUSSURE, [s/d], p.137).
Mas, ora, poderíamos nos perguntar: Saussure não afirmara que um determinado
significante vai sempre remeter a um mesmo significado ao qual se encontra unido no
27
signo? Sim, certamente. Para o lingüista, a significação, de maneira primordial, é dada
por esta relação significado/significante, mas – como percebemos através de suas
considerações acima – ele também reconhece que a posição (ou, o valor) do signo no
interior de um sistema de linguagem também constitui um elemento da significação.
Sobre isso, Garcia-Roza (1994) nos esclarece que:
ao introduzir a noção de valor, Saussure não faz dela o elemento
central da significação, nem tampouco elimina a relação isolada entre
o significado e o significante. Em sua opinião, apesar de a significação
local de um elemento numa frase ser dada pela sua relação com os
outros elementos da frase, a relação significado/significante continua a
gozar de relativa autonomia, tal como é indicada (...) [no] algoritmo
inicial (GARCIA-ROZA, 1994, p.186).
E o que faz Lacan diante dessas considerações? Ele se utiliza da concepção de
signo desenvolvida pelo lingüista para aproveitar o que lhe interessa e a partir dela
desenvolver uma lógica do significante, que, como entende, é a lógica própria ao
inconsciente. Assim, em seu escrito A instância da letra no inconsciente ou a razão
desde Freud (1957), ele nos apresenta um outro algoritmo inspirado naquele oferecido
por Saussure, qual seja:
S (Significante)
s (significado)
Contudo, como podemos perceber, ele inverte as notações originais: o
significante que antes ficava abaixo da barra é colocado acima desta, e o significado que
era localizado na parte superior do algoritmo é situado em baixo. Entendemos que com
esta inversão, Lacan almejava demarcar sua tese de que há, na ordem simbólica, uma
primazia3 do significante sobre o significado. Isto é, que na linguagem o significante
tem predomínio e autonomia sobre este último.
Sobre esta subversão, Nancy e Lacoue-Labarthe (1991) nos dizem:
Consiste isto em trabalhar o signo até destruir nele toda a função
representativa, isto é, a própria relação de significação. Aí esta
precisamente o papel e a função do algoritmo. O algoritmo não é o
signo. Ou melhor: o algoritmo é o signo enquanto não significa (sobre
o modo de uma representação do significado pelo significante). Poder-
se-ia, talvez arriscar-se a escrever: o algoritmo é o signo (cancelado).
3 Uma outra maneira também de se ler este algoritmo é dizer que ele nos aponta a primazia do significante
em relação ao sujeito. Pois, Lacan entende que o significante não só é anterior, mas é condição de
possibilidade para o advento do sujeito do inconsciente.
28
Signo sob canceladura de preferência a signo destruído. Não
funcionando (NANCY & LABARTHE, 1991, p.47).
Assim, podemos notar que se Saussure apresenta o seu algoritmo para sublinhar
a indissociabiliade de seus componentes, Lacan inverte (e perverte) a notação do signo
justamente para negar esta unidade e nos livrar de qualquer “ilusão de que o significante
atende à função de representar o significado” (LACAN, 1957, p.501). Sua intenção
também fica evidente no acento que ele dá à barra que se interpõe entre essas duas
ordens distintas presentes no algoritmo. Ele indica-nos que ela representa a barreira que
separa (e não aquilo que ata) significante e significado ao afirmar que esta se trata de
“uma barreira resistente à significação” (LACAN, 1957, p.500).
Isto quer dizer que o psicanalista francês descarta a possibilidade de veiculação
de sentido? Não. Mas ao afirmar que há uma barreira que resiste a significação ele nos
aponta que o significado não está colado ao significante, quer dizer, que esse não nos é
dado diretamente por um único significante, e sim que ele é um efeito, um produto
mesmo, da remissão significante. “Se pode dizer que na cadeia significante o sentido
insiste, mas que nenhum dos elementos da cadeia consiste na significação de que ele é
capaz nesse mesmo momento” (LACAN, 1957, p.506).
Ou seja, Lacan admite, portanto, que um significante não representa nada em si
mesmo. É por este motivo, aliás, que ele afirmará que “o significante é unidade por ser
único, não sendo senão símbolo de uma ausência” (LACAN, 1957, p.27). Sozinho, ele é
puro non-sense. É somente na sua articulação com outros que algum sentido pode ser
produzido (e sempre a posteriori). Isto é, o sentido depende das relações que estabelece
um significante dentro da rede na qual está inserido.
Assim, podemos perceber que o sistema ψ apresentado no Projeto (1950[1895])
não é senão o predecessor do inconsciente, e mais: do inconsciente estruturado como
uma linguagem. Afinal, o que seriam as marcas mnêmicas que se organizam através das
Bahnungen senão a própria articulação significante em cadeias?
Lacan, ele mesmo, nos aponta esta idéia de forma clara e inequívoca em O
Seminário – livro 7 (1959-1960), ao dizer-nos:
Bahnung evoca a constituição de uma via de continuidade, uma
cadeia, e penso até que isso pode ser aproximado da cadeia
significante, uma vez que Freud diz que a evolução do aparelho ψ
substitui a quantidade simples pela quantidade mais a Bahnung, ou
seja, sua articulação (LACAN, 1959-1960, p.53).
29
Sendo assim, estamos em condições de inferir agora que a repetição de caminhos
familiares – regida, tal como vimos no Projeto, pelo princípio do prazer – diz respeito
justamente a insistência de determinados significantes na cadeia associativa. Esta
insistência, aliás, pode ser muito bem observada na prática clínica através da fala do
paciente, que ao adotar a regra de ouro da psicanálise de dizer tudo que lhe vem à
cabeça, sem censura e restrições, é reconduzido por seu discurso a passar pelos mesmos
lugares; a esbarrar nas mesmas lembranças.
Isso demonstra que por mais que se dê toda a liberdade ao analisante de falar
qualquer coisa, suas associações não são tão livres quanto se poderia crer. Pois, apesar
de não serem construídas deliberadamente, elas tampouco se estabelecem de forma
arbitrária, nem se dão ao sabor do acaso. Ao contrário, o que se evidencia por meio
dessa repetição de significantes é a presença de uma certa lógica que, a despeito de
permanecer completamente desconhecida pelo sujeito, faz funcionar autonomamente as
articulações simbólicas, favorecendo ou dificultando algumas vias associativas, e
impossibilitando outras.
Metáfora e metonímia
Antes de nos lançarmos na aventura de investigar como Lacan justifica a
emergência da ordem simbólica em seu funcionamento autárquico e explorarmos mais a
fundo de que maneira ele o articula à repetição, acreditamos que seja importante
abordarmos rapidamente as duas formas de articulação significante admitidas por ele,
quais sejam: a metonímia e a metáfora.
É também no escrito A instância da letra (1957) que Lacan nos apresenta esta
proposta de que o inconsciente, como uma linguagem, também se estrutura por meio
dessas duas operações significantes. E para chegar a formular tal idéia foi, uma vez
mais, às elaborações de um lingüista que ele recorreu: mais especificamente, àquelas
desenvolvidas por Roman Jakobson em seu artigo Dois aspectos da linguagem e dois
tipos de afasia (1954).
Ali, Jakobson formula, grosso modo, que a linguagem se organiza de maneira
bipolar, isto é, em dois pólos – o pólo metafórico e o pólo metonímico –, que se
relacionam, cada um, a uma atividade linguageira distinta. Enquanto que o primeiro
compreende o processo de seleção das unidades da língua, implicando o arrolamento de
palavras equivalentes e a possibilidade de substituição de um termo por outro, o
30
segundo envolve a operação por ele denominada de combinação. Esta, por seu turno,
pressupõe uma relação de contigüidade entre dois signos, sendo através dela que os
agrupamentos de unidades lingüísticas são ligados numa unidade superior – ou seja, em
frases e proposições.
Foi a partir do seu estudo sobre as afasias de ordem motora e de ordem sensorial
que Jakobson pôde fazer uma tal inferência. Através desse estudo, ele concluiu que nos
dois tipos de distúrbio da fala há um comprometimento específico de uma dessas duas
atividades. Segundo suas observações, no caso da afasia de origem sensorial, existe
perda na capacidade de substituição; o sujeito apresenta dificuldades em encontrar
palavras, e o processo de seleção fica então prejudicado. Já nas afasias motoras é a
atividade combinatória que se encontra comprometida; o sujeito consegue nomear, mas
fracassa nas tentativas de compor frases, apresentando, assim, uma fala quase
telegráfica.
A idéia mais interessante desenvolvida no referido artigo, contudo, pode ser
encontrada já ao final deste. Depois de identificar a operação de seleção à metáfora e a
de combinação à metonímia, e de tecer outras considerações, o lingüista pós-
saussuriano associa os dois principais mecanismos envolvidos no processo de
elaboração onírica descritos por Freud em A interpretação dos sonhos (1900) – quais
sejam: o deslocamento e a condensação – à atividade metonímica.
Lacan se apropria desta concepção. Porém, como de costume, não sem promover
algumas alterações. Diferentemente de Jakobson, ele não irá relacionar ambos os
processos empregados no trabalho dos sonhos à operação combinatória que caracteriza
a metonímia, mas somente o processo de deslocamento. Quanto ao mecanismo de
condensação, Lacan equivalerá este à atividade metafórica.
A fim de compreendermos melhor de onde ele se apóia para fazer esta afirmação
é preciso retornarmos às teorizações freudianas. No referido artigo, publicado no ano de
1900, o pai da psicanálise se propõe a investigar as forças e os processos implicados na
formação dos sonhos. Dessa investigação, infere que toda e qualquer produção onírica
tem como causa pensamentos e desejos inconscientes que se esforçam por driblar a
censura e, assim, ganhar acesso à consciência. Durante o estado de sono, tais
pensamentos, fortalecidos por sua associação com os desejos inconscientes, logram se
realizar na consciência graças, principalmente, a ação de mecanismos de deformação
que possibilitam a expressão disfarçada do material recalcado.
31
Dentre esses mecanismos que asseguram a transcrição dos pensamentos latentes
no conteúdo manifesto do sonho, Freud dá especial enfoque a dois, aos quais nomeia de
condensação e de deslocamento. Com relação ao primeiro, ele nos esclarece que este é o
principal responsável pelo caráter lacônico e sintético dos sonhos. Segundo suas
elaborações, ainda que o sujeito realmente se esqueça de parte daquilo que foi sonhado
– e tal esquecimento também seja conseqüência da censura –, não é isso que explica a
concisão do conteúdo manifesto. O que a justifica é mesmo o processo de condensação
em larga escala ao qual foram submetidos os pensamentos oníricos. Para corroborar esta
tese, ele nos aponta que durante o trabalho de interpretação, através do qual é solicitado
ao analisante que trace associações a partir do relato do sonho, é possível observar o
imenso número de representações que se relacionam com cada um dos parcos elementos
evocados e que simplesmente não figuram na produção onírica.
Mas se apenas alguns elementos dos pensamentos do sonho conseguem penetrar
no conteúdo do sonho, quais são as condições que determinam sua seleção? – se indaga
Freud. A reposta vem logo a seguir:
[esses] elementos penetraram no conteúdo do sonho porque possuíam
inúmeros contatos com a maioria dos pensamentos [latentes] do
sonho, ou seja, porque constituíam “pontos nodais” para os quais
convergia um grande número de pensamentos do sonho [...] (FREUD,
1900, p.276).
É nesse sentido, portanto, que esses elementos possibilitariam um trabalho de
condensação, pois estariam associados não apenas a um único pensamento inconsciente,
mas a vários. E, vale dizer, é por este motivo que Freud concluirá que as representações
que ganham expressão no sonho são sobredeterminadas.
Já o trabalho de deslocamento funciona de forma diferente, mas não
separadamente. Ele se caracteriza pela transferência de intensidade psíquica entre duas
sortes de representações: daquelas que possuem elevado valor psíquico (e, nisso, leia-se:
altamente investidas de desejo) para outras, anódinas. Um exemplo destas últimas são
os restos diurnos; recordações do dia anterior que muitas vezes aparecem no sonho.
Sobre eles, Miller (1987) afirmará que os restos diurnos ilustram “os disfarces do desejo
que, permanecendo inconsciente, se exprime [...] ao se deslocar do recalcado para uma
32
representação, cuja própria banalidade a torna aceitável para a consciência4” (MILLER,
1987, p. 59).
Como afirmamos anteriormente, Lacan retomará essas noções freudianas a partir
da sua teoria sobre o significante e em articulação com as idéias desenvolvidas por
Roman Jakobson. Disso resultará a concepção de que os sonhos, como qualquer outra
formação do inconsciente, derivam de um processo metaforonímico5, o qual só é
possível, por sua vez, na medida em que significante e significado constituem duas
ordens distintas e separadas por uma barra que resiste à significação.
Com relação à metonímia – isto é, a atividade discursiva que Jakobson admite
envolver a concatenação de entidades sucessivas e a contextura das relações in
praesentia –, Lacan irá afirmar que ela é análoga ao trabalho de deslocamento descrito
por Freud porquanto ele reconhecerá, nesse tipo de conexão significante caracterizada
pelo encadeamento de palavras contíguas, a mesma operação através da qual o desejo
inconsciente desliza de um significante para outro. E uma tal equivalência só é possível
na medida em que ele compreende que aquilo que viabiliza, ou antes, que solicita este
processo combinatório é justamente a propriedade do significante de não representar
nada, de não ser mais do que a insígnia de uma ausência: ausência do referente ou do
objeto. Pois, é esta falta estrutural (e estruturante) da linguagem que garante que o
sentido reste sempre inacabado, exigindo, em conseqüência, o remetimento da
significação de palavra em palavra.
E, uma vez que levamos em conta que o desejo não é senão propriamente essa
falta colocada pela impossibilidade de se dizer o objeto, de se dar acabamento ao
significado, compreendemos que é a precariedade do sentido que dá ensejo ao desejo
em seu deslocamento metonímico, remissivo. Por isso, Lacan nos dirá que:
A metonímia [...] é esse efeito tornado possível pelo fato de não existir
significação alguma que não remeta a uma outra significação e no
qual produz-se o denominador mais comum das duas, isto é, o pouco
sentido, [...] que se revela no fundamento do desejo. (LACAN, 1957,
p.622)
4 A partir dessa citação, acreditamos que se evidencia, portanto, que o processo de deslocamento é um
efeito direto do recalque. Pois, é somente na medida em que a representação que supostamente
representaria originalmente o objeto de desejo foi recalcada que o impulso que a investia, impossível de
ser extirpado da psique, desviou-se para uma outra representação. Se quiséssemos colocar essa mesma
idéia a partir das formulações lacanianas, diríamos que a operação metonímica pressupõe a elisão de um
significante, ou a presença de um “significante impossível”. 5A criação deste neologismo serve justamente para sublinhar que na concepção lacaniana não pode haver
metáfora sem metonímia e vice-versa.
33
A partir dessas considerações, acreditamos que se esclarece ainda porque, em A
instância da letra, Lacan irá escrever o efeito da função metonímica da seguinte
maneira: f (S....S‟) S S (-) s , ou seja, com um menos (-) de significado, afirmando
quanto à utilização deste sinal que ele manifesta justamente a manutenção da barra que
indica no algoritmo (S/s) a resistência da significação – isto é, a barra do recalque. Pois,
o que se evidencia é que esse movimento remissivo que caracteriza a metonímia, longe
de contribuir para uma acumulação de sentido, faz tão somente recolocar esta falta que
opera na sua própria origem ao garantir que o sentido se estilhace, se divida, entre um e
outro significante, e depois em mais outro e mais outro..., e assim por diante,
indefinidamente. A indestrutibilidade do desejo, aliás, se refere – entendemos – a essa
re-afirmação contínua da falta do sentido, ou da falta a ser, que subsiste e insiste pelo
encadeamento significante que caracteriza o processo metonímico.
Assim, Nancy e Lacoue-Labarthe concluirão que “a metonímia não é, pois, uma
figura que [...] que manteria salvo o sentido. É o sintagma como eixo ou como rodeio
segundo o qual o sentido se empobrece ou se esgota na letra do discurso” (NANCY &
LABARTHE, 1991, p.82).
Já a metáfora, por sua vez, tal como Jakobson a concebe, caracteriza-se –
lembremos – por ser um processo de substituição que implica a concorrência de
entidades simultâneas e o estabelecimento, entre elas, de relações in absentia. Afinal, a
palavra escolhida ficará no lugar de outras tantas que não se farão presentes
explicitamente no discurso, ainda que estas permaneçam tacitamente relacionadas
àquela.
Ora, o que Lacan notará é que uma operação como essa, que pressupõe a
substituição de uma palavra por outra em muito se assemelha àquilo que Freud nos diz
a respeito do trabalho de condensação, através do qual, como vimos, uma determinada
representação é selecionada para participar da trama onírica em detrimento de outras
justamente por se constituir enquanto um “ponto nodal” para onde convergem inúmeros
pensamentos latentes. E é por isso, então, que ele equivalerá ambas as noções.
Entretanto, seu trabalho não se resumirá em apontar-nos uma tal equivalência.
Além disso, Lacan nos dirá também que é a partir da operação metafórica que algum
sentido pode ser produzido no discurso. Ou melhor, ele nos apontará que é através dessa
superposição de significantes que poderá se dar o advento da significação. E, para tanto,
ele escreve a função da metáfora por meio do seguinte matema: f (S‟/ S) S S (+) s, a
34
respeito do qual ele nos esclarece que o sinal de (+) ilustra a transposição da barra e o
efeito de significação promovido por esta transposição.
Interessante reproduzir, aqui, ainda com relação a este matema o comentário de
Quinet (2000) no qual ele pontua que “a barra entre S‟ e S corresponde ao recalque,
sendo que o significante (S‟) substitui o significante recalcado (S)” (QUINET, 2000,
p.32). Pois, através dele, acreditamos que se torna mais fácil compreendermos que o que
está em jogo na metáfora é a supressão de um significante (e o aparecimento de outro
em seu lugar). E esta idéia é muito importante porque, se a articularmos com as
considerações lacanianas que vimos acima, somos levados a inferir desde já que é
graças precisamente a esta supressão que algum sentido pode ser produzido. Ou seja,
julgamos que ela nos deixa entrever que é somente na medida em que um significante
resta terminantemente excluído da cadeia, deixando-a, assim, incompleta, que se torna
possível a emergência da significação. O que esclarece, pelo menos em parte, a
afirmação lacaniana de que “a metáfora posiciona-se no ponto exato em que o sentido se
produz no não-sentido” (LACAN, 1957, p.512).
Voltaremos a tratar deste ponto cego da cadeia significante ainda mais algumas
vezes quando abordarmos as noções de caput mortuum e de das Ding.
1.3.
O automatismo da cadeia significante
“A carta roubada”
Em 1956, Lacan se servirá de um conto policial do escritor anglo-americano
Edgar Allan Poe, intitulado A carta roubada, precisamente para demonstrar-nos que a
articulação significante não se dá de maneira aleatória, mas obedecendo – como
dissemos antes – a uma determinada lógica. E mais especificamente, a uma lógica
autônoma, uma vez que independe das intenções e da deliberação do sujeito.
De forma bastante resumida, o conto narra o furto de uma carta e os esforços
empreendidos na tentativa de recuperá-la, e é composto por duas grandes cenas. A
primeira transcorre na alcova real, tendo como personagens: a rainha, o rei e o ministro.
Esta cena, que é propriamente a do roubo, se inicia com a entrada do rei no aposento
pouco depois da rainha ter recebido uma carta. Segundo Lacan, Poe não nos revela o
remetente, nem mesmo o conteúdo da correspondência, mas não nos deixa qualquer
35
dúvida de que se trata de uma missiva que em muito poderia comprometer a rainha. E
isso, o autor evidencia através das ações da sua personagem – não só aquela que ela
mantém diante de seu cônjuge, como também perante o ministro, que surge em cena
logo a seguir.
Mas, o que faz a rainha? À chegada do rei, ela se esmera para disfarçar seu
embaraço e, tal como nos diz Lacan, não tendo mais nada a fazer a não ser jogar com a
desatenção deste, repousa calma e displicentemente a carta sobre a mesa. Isto é, ao
invés de tentar encobri-la ou guardá-la às pressas, a rainha a deixa completamente
exposta aos olhos do rei, o qual, no entanto, nada vê. É o terceiro personagem, o
ministro, quem percebe com clareza tudo o que se passa aí. Maliciosamente, então, este
saca uma outra carta que por acaso guardava em seu bolso, e, distraindo o monarca, a
substitui por aquela que jaz em cima da mesa. A rainha observa a manobra do ministro,
mas não se manifesta sobre o furto, nem faz nada para impedi-lo – o que denuncia ao
leitor a conduta escusa da mesma.
Já na segunda cena, o drama gira em torno da recuperação da carta por Dupin,
um investigador particular cuja astúcia e inteligência nos faz lembrar Sherlock Holmes
ou Hercule Poirot. Dupin é acionado pela própria polícia depois desta realizar inúmeras
buscas minuciosas no gabinete do ministro à procura da tal carta, sempre sem qualquer
êxito. Dupin faz então uma primeira visita ao ministro e enquanto trava uma conversa
com o mesmo, inspeciona a sala por trás de seus óculos escuros. Não demora muito para
que seu olhar repouse sobre um bilhete amassado dentro de um porta-cartas, acima da
lareira. Neste instante, o investigador já tem a certeza de estar diante daquilo que
buscava, ainda que a aparência do bilhete em tudo contrarie a descrição que lhe fora
dada da carta furtada. Sendo assim, ele se apressa em se despedir do ministro para
retornar no dia seguinte (com o pretexto de recuperar sua tabaqueira oportunamente
„esquecida‟ no gabinete) trazendo consigo outro papel que simule a aparência atual da
correspondência. Neste dia, do lado de fora do gabinete, a polícia se encarrega de
chamar a atenção do ministro com o disparo de uma arma, a fim de que Dupin possa ter
um momento favorável para trocar uma pela outra.
O resultado de tal operação, nos lembra Lacan, é que o investigador particular
consegue finalmente reaver a carta roubada sem que o larápio sequer desconfie que já
não a tem mais em seu poder. De forma que se algum dia este vier a fazer uso dela, sua
surpresa só não será maior do que sua derrocada, a qual, no entanto, ele poderá
vislumbrar no átimo mesmo em que, desdobrando o bilhete falso deixado por Dupin, se
36
deparar com o verso oracular ali lhe dirigido pelo investigador: “Um desígnio tão
funesto / Se não é digno de Atreu, é digno de Tiestes”6.
Anterioridade e determinação significante
A fim de entendermos porque Lacan escolheu justamente este conto para ilustrar
o automatismo da ordem simbólica que caracteriza a repetição em sua vertente
significante, é preciso antes de tudo atentarmos para o fato de que a segunda cena não
faz senão, mais ou menos, repetir a situação descrita na primeira. É claro que os
personagens são diferentes, assim como o ambiente em que tudo se passa. Não se trata
de uma reprodução. Todavia, não se pode deixar de reconhecer entre elas uma certa
similaridade. Em ambas é possível notar a presença de três elementos que, situados em
três posições distintas, equivalem a três olhares. O primeiro corresponde ao lugar da
cegueira, isto é, ele nos diz de um olhar que nada vê. Na cena primitiva este olhar é
encarnado pelo rei, enquanto que na outra este papel é desempenhado pela polícia. O
segundo se refere a um olhar que vê que o primeiro não percebe nada, mas que se
equivoca por ver encoberto aquilo que ele esconde. No conto, é respectivamente a
rainha e o ministro. Já o terceiro olhar é aquele que, observando esses outros dois
olhares, percebe que eles deixam exposto o que supostamente estaria ocultado: trata-se,
primeiro, do ministro e, depois, de Dupin.
Sobre isso, o que Lacan irá nos apontar é que muito mais do que as
particularidades de cada indivíduo que, numa ou noutra cena, vem desempenhar um
desses três papéis, sua função na história é definida justamente pelo lugar que eles
ocupam em relação à carta. E, com efeito, o fato de ser, aqui, uma carta desaparecida7
àquilo em torno do que esses três termos da trama se organizam não poderia ser mais
conveniente para servir aos propósitos do psicanalista. Afinal, em francês, carta se
traduz por lettre, palavra que comporta um duplo sentido: ela designa não apenas uma
epístola, mas também significa letra. E letra é como Lacan se reporta, nesse momento
de seu ensino8, ao “suporte material que o discurso concreto toma emprestado da
linguagem” (LACAN, 1957, p. 498). Trata-se, portanto, de uma noção que fazia então
6 “Un dessein si funeste / S‟il n‟est digne d‟Atrée, est digne de Thyeste” (LACAN, 1956, p. 16).
7 Como veremos ao final deste capítulo, através da noção caput mortuum é justamente a exclusão de um
significante que possibilita a organização da estrutura. 8 Posteriormente, vale dizer, Lacan retoma essa noção (qual seja: a de letra) dando-lhe um sentido
diferente deste aqui apresentado. Contudo, diante das limitações que se impõe a esta pesquisa, preferimos
não abordá-lo aqui.
37
uma clara referência ao significante, não só enquanto elemento material mínimo com o
qual se estrutura a linguagem, mas, sobretudo, ao significante em movimento, articulado
em rede com outros significantes; isto é, inserido numa trama discursiva, de falas.
Dessa forma, levando-se em conta esse trocadilho que a língua francesa permite
e do qual Lacan habilmente se serve, torna-se mais fácil compreender o que este
almejava ao afirmar que é a posição em relação à carta/letra (roubada) o que define o
papel desempenhado no conto pelos personagens. Ele pretendia indicar-nos que o
sujeito não é uma substância, nem possui uma essência, e sim que este é determinado
pelo lugar estrutural que assume dentro de um discurso, ou de um universo simbólico,
que o precede:
o deslocamento do significante determina os sujeitos em seus atos, seu
destino, suas recusas, suas cegueiras, seu sucesso e sua sorte, não
obstante seus dons inatos e sua posição social, sem levar em conta o
caráter ou o sexo [...] (LACAN, 1956, p.33-34).
E não é senão esta mesma idéia que o vemos defender numa outra passagem,
retirada de O Seminário – livro 2, quando admite que:
O jogo do símbolo representa e organiza, (...) independentemente das
particularidades de seu suporte humano, este algo que se chama um
sujeito. O sujeito humano não fomenta este jogo, ele toma [aí] seu
lugar [...] (LACAN, 1954-1955, p.243).
Ou seja, o sujeito humano não fomenta o jogo simbólico – poderíamos
complementar – porquanto ele não lhe é anterior; posto que não preexiste à linguagem.
Podemos ver, aí, o quanto há de subversivo nesta idéia. Subversivo na medida
em que inverte a noção corrente e facilmente aceita de que há um sujeito prévio à
palavra, a coordenar suas falas e a dominar os símbolos. O que nos é apontado nos
trechos acima destacados, e ao longo de toda obra lacaniana, é que o que se dá é
precisamente o contrário: o sujeito tal como o concebe a psicanálise – sujeito do desejo,
sujeito cindido – depende do significante para poder ex-sistir. E, nesse sentido, “a
ordem do símbolo já não pode ser concebida como constituída pelo homem, mas
constituindo-o” (LACAN, 1956, p.50).
Assim, entendemos que é a anterioridade (e, portanto, a autonomia) da ordem
simbólica em relação ao sujeito e a constituição deste último como efeito do
encadeamento significante, aquilo que Lacan se esforça por demonstra-nos através deste
apólogo. E por isso ele afirmará, neste escrito contemporâneo, que se o sujeito “pode
38
parecer servo da linguagem, o é mais ainda de um discurso em cujo movimento
universal seu lugar já está inscrito ao nascer, mesmo que [...] sob a forma de seu nome
próprio” (LACAN, 1956, p.27).
Sobre o processo de constituição do sujeito a partir de sua localização num
discurso que o antecede, isto é, no discurso do Outro – ou, ousaríamos dizer, em relação
à letra9 –, Colette Soler (1997) nos esclarece que:
O Outro como lugar da linguagem – o Outro que fala – precede o
sujeito e fala sobre o sujeito antes mesmo de seu nascimento. Assim, o
Outro é a primeira causa do sujeito. O sujeito não é uma substância: é
um efeito do significante. O sujeito é representado por um
significante, e antes do surgimento do significante não existe sujeito.
Mas o fato de não existir sujeito não quer dizer que não exista nada,
porque pode existir um ser vivo, mas este ser vivo se torna um sujeito
somente quando um significante o representa. (SOLER, 1997, p. 56)
Nesse sentido, compreendemos que o Outro, tal como referido acima, diz
respeito a “um espaço aberto de significantes que o sujeito encontra desde seu ingresso
no mundo” (KAUFMANN, 1996, p.835). Trata-se justamente do lugar –
convencionalmente chamado de o tesouro dos significantes – em relação ao qual o
sujeito será localizado a partir de um primeiro significante que passará, então, a
representá-lo (para outro significante).
Esse Outro, vale ressaltar, apesar de ser um lugar simbólico, pode ser encarnado
pelas figuras parentais, que falam sobre seus filhos antes mesmo de seu nascimento e
que, ao procederem de tal maneira, nada mais estão fazendo do que, paulatinamente,
situando a criança na família e no mundo. É o que Lacan chamou de “falas fundadoras”
em O Seminário, livro 2:
As falas fundadoras que envolvem o sujeito são tudo aquilo que o
constitui, os pais, os vizinhos, a estrutura inteira da comunidade, e que
o constituiu não só como símbolo, mas o constituiu em seu ser
(LACAN, 1954-1955, p. 31).
Dez anos depois de proferir estas palavras – no seminário dedicado aos quatro
conceitos fundamentais da psicanálise, em 1964 –, Lacan voltaria uma vez mais a
lembrar-nos de que o sujeito, sendo efeito do significante, só pode advir enquanto tal
9 Essa equivalência entre a letra e o discurso do Outro, aliás, nos é dada pelo próprio Lacan. Afinal, em O
Seminário, livro 2 (1954-1955), ele afirma que “a carta [a letra] é, para cada um [dos sujeitos] seu
inconsciente” e em 1964, ele nos aponta que “o inconsciente é o discurso do Outro” (p. 130), porquanto
“o inconsciente, são os efeitos da fala sobre o sujeito, é a dimensão em que o sujeito se determina no
desenvolvimento dos efeitos da fala...” (LACAN, 1964, p. 147).
39
assujeitado ao campo do Outro. E denomina esse primeiro momento que consiste
precisamente no processo de instituição da ordem simbólica e de atribuição de um lugar
ao sujeito nessa ordem, de alienação10
.
Mas, voltemos ao escrito sobre A carta roubada. Ali, bem como em seu segundo
seminário (1954-1955), acreditamos que Lacan insistia em alertar-nos quanto à primazia
do significante na determinação do sujeito principalmente com o intuito de sublinhar o
quão equivocado é assimilar o sujeito ao eu; ou seja, à função egóica. Confusão que
certamente parecia ser bastante comum no campo psicanalítico de então, dentre aqueles
que pareciam se esquecer que “com Freud irrompe uma nova perspectiva que
revoluciona o estudo da subjetividade e que mostra justamente que o sujeito não se
confunde com o indivíduo” (LACAN, 1954-1955, p.16).
É a excentricidade do sujeito do inconsciente que está em relevo, aqui.
Excentricidade que já nos era apontada por Freud em suas teorizações, e que fica
especialmente evidente em sua frase célebre: “o ego não é o senhor da sua própria casa”
(FREUD, 1917 p.178). Por isso, Lacan faz questão de lembrar-nos que é “Freud [quem]
nos diz – o sujeito (...) é excêntrico. O sujeito está descentrado com relação ao
indivíduo” (LACAN, 1954-1955, p.16).
E, ousamos inferir que o sujeito é excêntrico não apenas com relação ao eu (ou,
ao indivíduo), unidade imaginária, mas também em referência à própria cadeia
significante, ainda que – como já apontamos algumas vezes – este seja efeito da
remissão significante e se encontre “preso em redes que se entrecruzam” (LACAN,
1954-1955, p. 243). Pois, é sempre como ausência, ou como hiância, entre um e outro
significante que o sujeito se faz presente na tecitura da cadeia.
Quanto a isso, Lacan afirmará que “o sujeito literalmente, em sua origem, é,
como tal, a elisão de um significante, o significante saltado na cadeia” (LACAN, 1959-
1960, p.273). E, como veremos mais adiante, quando voltarmos a trabalhar a repetição
no Projeto a partir de um outro prisma, não é senão porque a cadeia permanece sempre
aberta e inacabada, graças a esta elisão, que pode continuar a haver o deslocamento
significante. É nesse sentido, aliás, que o psicanalista francês irá inferir que a insistência
10
Talvez seja interessante recordar que nesse seminário de 1964, Lacan formulará que o processo de
causação do sujeito é composto por dois momentos lógicos: o primeiro, como dissemos, trata-se da
alienação, momento de inserção do sujeito na linguagem, sendo assim inscrito no discurso do Outro. E o
segundo momento é justamente aquele definido como separação. Voltaremos a falar sobre este processo
de constituição subjetiva ao final de nosso segundo capítulo.
40
da cadeia simbólica é “correlata da ex-sistência (isto é, do lugar excêntrico) em que
convém situar o sujeito do inconsciente” (LACAN, 1956, p.13).
Assim, podemos compreender, agora, em que medida Lacan admite que os
desdobramentos da cadeia simbólica funcionam autonomamente. Afinal, diante do que
expomos acima, torna-se claro que o sujeito não está em posição de maestria em relação
ao simbólico, mas se encontra muito mais próximo de uma posição de submissão ao
mesmo.
Contudo, falta-nos ainda explorar como Lacan faz uso do conto de Edgar Allan
Poe para demonstrar que esses desdobramentos, ainda que se movimentem sozinhos,
não se constituem de maneira aleatória – nem mesmo na associação-livre. Mas, sim,
regidos por uma lei, uma sintaxe, que estabelece os caminhos possíveis e impossíveis de
serem traçados na história de um sujeito.
Segundo Miller (2005), a principal preocupação de Lacan no referido escrito não
seria outra senão apresentar-nos esta tese. Diz-nos ele:
O sentido mesmo do comentário de Lacan de “A carta roubada” de
Edgar Allan Poe é demonstrar que existem leis do simbólico que se
estabelecem por si mesmas. Por esse caminho, liga memória e lei,
dando à memória inconsciente o valor de uma lei invariável
(MILLER, 2005, p.176).
Para tanto, Lacan se utiliza de uma parte do conto em que Dupin, ao avaliar o
método (pouco eficiente) da polícia na procura pela carta, fala ao seu amigo interlocutor
sobre um menino que conhecera e que astuciosamente ganhava todos os seus oponentes
no jogo do “par ou ímpar”.
Não pretendemos entrar em detalhes quanto à hipótese lançada ali pelo
investigador para justificar o êxito do menino em contraposição ao fracasso da polícia
na tentativa de desvendar aquilo que seus respectivos rivais escondiam. Nem tampouco
nos deteremos na análise que Lacan empreende a respeito desta hipótese. O que nos
interessa particularmente é como a partir dessa brincadeira tão simples e tão comum,
evocada no conto de Poe, o psicanalista francês poderá tratar de questões relevantes,
como a emergência da lei simbólica e sua relação com o automatismo de repetição –
tema de nosso interesse.
“Par ou ímpar?” – a emergência da lei a partir do acaso
41
Neste jogo, vale lembrar, cada um dos dois participantes possui um certa
quantidade de bolas de gude das quais pode se servir. A brincadeira consiste em
escolher um número de bolinhas, dentre aquelas que se possui, e mantê-las escondidas
da vista de seu oponente, guardando-as em sua mão. A seguir, deve-se, então, tentar
adivinhar se a quantidade total de bolas ocultadas (somando-se as suas e as de seu
adversário) consiste num número par ou ímpar. Se um dos jogadores apostar “par”, ao
outro resta arriscar “ímpar”. Ganha aquele que acertar o palpite e, a cada partida, nova
aposta deve ser feita.
A respeito desta brincadeira, o que se pode perceber logo é que, não obstante os
jogadores saberem o número de bolinhas que têm nas mãos, a quantidade que guarda o
rival é por eles sempre desconhecida, o que torna impossível prever logicamente o
resultado. Assim, se um deles ganha ou perde, a princípio, não é por outra razão senão
por mero acaso. Dizemos „a princípio‟, porque o que nos aponta Lacan é que depois de
sucessivas rodadas e a partir da introdução de um símbolo, uma lei pode ser construída
com base nos resultados anteriores. E, então, o que antes era da ordem do contingencial,
deixa de sê-lo.
Acompanhemos um pouco mais de perto qual foi o raciocínio11
que o levou a
fazer tal afirmação. Para tanto, adotemos a convenção utilizada por Lacan segundo a
qual as rodadas cujo saldo final foi “par” devem ser representadas pelo signo (+),
enquanto que àquelas cujo saldo foi “ímpar” se deve atribuir o signo (-). E, suponhamos
uma série hipotética de dez partidas sucessivas – que chamaremos arbitrariamente de
série A – onde se obtenha a seguinte seqüência de resultados:
+ - - - + + - + - + ... série A
Esta primeira seqüência – como afirmamos – nos é dada de modo inteiramente
fortuito. Jogam-se dez partidas, e a cada uma delas o resultado obtido pode ser qualquer
um dos dois: tanto par, quanto ímpar. Ademais, a rodada anterior em nada serve para
ajudar a antever qual será o desfecho daquela que sobrevirá. Tomadas separadamente,
cada partida é um evento independente e imprevisível.
11
Uma ressalva: não temos a pretensão de expor o raciocínio que desenvolve Lacan em O seminário
sobre “A carta roubada” em toda a sua complexidade. Simplificaremo-no o máximo possível, apenas
para explicitar a idéia geral nele expressa. Acreditamos que para os fins propostos pela presente pesquisa,
não há necessidade de irmos mais a fundo do que isto.
42
Todavia, o que nos diz Lacan é que se agruparmos em três os resultados que
podem se apresentar – isto é, todas as combinações possíveis de serem feitas com três
resultados consecutivos – e estabelecermos notações distintas de acordo com o tipo de
seqüência que temos, então, esta simples transformação já será o suficiente para fazer
surgir leis bastante precisas (LACAN, 1954-1955, p. 243).
A fim de que compreendermos melhor esta inferência, eis todas as combinações
possíveis de serem obtidas neste caso; os tipos de grupos nos quais Lacan as separa; e a
notação12
conferida a cada um deles:
Combinações Tipos de Grupos Notação
(+ + +), (- - -) "simetria da constância" (1)
(+ + -), (- - +) "dissimetria" (2)
(- + +), (+ - -)
(+ - +), (- + -) "simetria da alternância" (3)
Através desta operação de cifração, uma nova série poderá ser construída a partir
daquela primeira. Esta segunda série – que chamaremos de série B – se estruturaria,
então, da seguinte maneira:
2 1 2 2 2 3 3 3 ... série B
Mas, qual seria a diferença entre uma e outra? – se poderia perguntar. A grande
diferença é que se a série A se constitui – tal como vimos – de forma completamente
aleatória, desordenadamente, a série B, por seu turno, já deverá obedecer algumas regras
em sua composição. Os elementos que a compõe não poderão se seguir de modo
inteiramente livre e sem restrições. Ao contrário, na série B, a emergência de uma
determinada unidade significativa (dentro da relação que ela estabelece com as demais
unidades que a antecederam na cadeia) necessariamente restringe o leque de
possibilidades de sua sucessão. Por exemplo, se torna impossível que após um (1) se
12
Essas notações – cabe salientar – foram tão arbitrariamente estabelecidas quanto a seqüência da série A.
Lacan elege os números (1), (2) e (3), mas poderiam ter sido utilizados quaisquer outros símbolos. Não
obstante, o que podemos observar é que é precisamente do cruzamento da série aleatória dos “+” e dos “-“
com as notações (indiferentes em sua natureza) que se produzirá uma segunda série que, distinguindo-se
da anterior, deverá seguir uma sintaxe que estabelece escritas possíveis e impossíveis. Veremos isto a
seguir.
43
siga diretamente um (3). Quer dizer, passa a haver uma limitação nas possibilidades de
encadeamento da seqüência, a partir de então.
Assim, o que podemos observar é que esta operação de cifração, que dará
origem a série B, envolve justamente os dois processos que caracterizam a linguagem:
metonímia e metáfora. A metonímia se faz presente aí no encadeamento linear dos “+” e
dos “-”, agrupados em trios, enquanto que a metáfora se dá precisamente na substituição
desses agrupamentos por um símbolo. Assim, evidencia-se que sem a produção de uma
metáfora, não existe a possibilidade do advento da lei e, conseqüentemente, da
estruturação da ordem simbólica. E, nesse sentido, aliás, vale sublinhar que a sucessão
dos “+” e dos “-” somente pode ser pensada como uma articulação metonímica só-
depois do advento da metáfora, pois antes não há, com efeito, qualquer articulação entre
os termos da série A.
Sobre essa transcrição de uma série composta ao acaso por outra determinada
por uma lei, Lacan afirma que:
Qualquer coisa de real sempre pode sair. Porém, uma vez constituída a
cadeia simbólica, a partir do momento em que vocês introduzem, sob
a forma de unidades de sucessão, determinada unidade significativa,
não pode mais sair qualquer coisa (LACAN, 1954-1955, p. 243).
Carvalho e Kubrusly (2008) nos resumem bastante bem quais são as leis que
deverão ser respeitadas na escrita da série B. A primeira delas pode ser sintetizada
assim: os elementos (1), (2) e (3) podem repetir a si mesmos indefinidamente. Já a
segunda lei preconiza que: partindo-se de um elemento (1), só se pode chegar a (3),
passando-se antes por uma seqüência de (2) em número ímpar; do contrário, deve se
retornar ao (1). E, por fim, a terceira e última lei a ser obedecida impõe que: partindo-se
do elemento (3), só é possível chegar a um elemento (1), passando-se por uma
seqüência de (2) em número ímpar; do contrário, deve retornar-se ao (3).
Dessa forma, a série B, ainda que possa ser arranjada de diferentes maneiras
(afinal ela dependerá da série A, que nos será dada sempre contingencialmente), deve,
em todo caso, obedecer impreterivelmente a estas três regras, as quais – vale lembrar –
seriam outras, se se agrupassem, digamos, quatro resultados consecutivos ao invés de
três.
De qualquer maneira, o menos importante aqui são o quê estabelecem essas
regras, mas sim precisamente aquilo que ilustra este exemplo, a saber: o advento da lei a
partir de uma série primitiva composta ao acaso. Quanto a isso, aliás, Lacan nos
44
esclarece que tal advento não se dá por outra razão senão pela própria irrupção do
significante (no real). Diz-nos ele:
(...) desde o surgimento mais elementar do significante, surge a
lei, independentemente de todo elemento real. Isso não quer
dizer em absoluto que o acaso seja comandado, mas que a lei
surge com o significante, de maneira interna,
independentemente de toda a experiência (LACAN, 1956-1957,
p.243).
É nesse sentido, portanto, que ele afirmará ainda que “desde que há grafia, há
ortografia” (idem, p.242), pois com o aparecimento do significante emergem também
escritas possíveis e impossíveis graças à lei que, concomitantemente a ele, se instaura. E
são essas escritas possíveis e impossíveis que “definem os trajetos por onde passa a
rememoração e que fazem retornar os significantes” (BASTOS, 1998, p.53).
No exemplo que trabalhamos acima, podemos vislumbrar de maneira
simplificada as escritas possíveis para a construção da série B, através do grafo abaixo:
E, acreditamos que esse grafo evidencia também que é o estabelecimento desta
sintaxe aquilo mesmo que determinará a insistência13
de certas articulações
significantes, em detrimento de outras, na narrativa singular mediante a qual a realidade
se constrói para cada sujeito. Não é por outro motivo, aliás, que Miller nos dirá em O
osso de uma análise (1998) a respeito deste que “ele representa a repetição, isto é, a
manifestação dos elementos que se repetem” num discurso, e ainda, mais
especificamente, que ele “representa a repetição, sob a forma de um saber [...] que
prescreve o que um sujeito pode ou não dizer” (MILLER, 1998, p.65).
Contudo, como este autor nos adverte não é apenas isso que este grafo ilustra.
Além da insistência de determinados termos no encadeamento simbólico (isto é, na
rememoração), o referido grafo também nos deixa ver que há algo mais envolvido na
13
É a essa insistência de determinados significantes no desdobramento automático da cadeia simbólica,
propiciado pelo advento da lei, que Lacan chama nesse momento de seu ensino de “automatismo de
repetição” e que, posteriormente, ele denominará de “autômaton”.
45
repetição: “ele [o grafo] representa a evitação, isto é, que em todos os casos há
elementos que não aparecem, elementos cuja evitação se repete” (MILLER, 1998, p.65).
Ou seja, ele nos permite compreender que a repetição não se refere apenas ao
movimento de retorno dos significantes regido por uma lógica inconsciente, mas que ela
também comporta a esquiva, o contorno, de algo que permanece terminantemente
excluído da articulação significante, algo impossível de ser escrito, que resiste, pois, a
qualquer tentativa de significantização14
, como sem-sentido.
Esse “algo” a que fazemos referência aqui, esse elemento sempre evitado, que
resta excluído da trama significante, e o qual – acreditamos – pode ser aproximado do
recalcado original de Freud porquanto este também se refere àquilo que faz obstáculo à
rememoração, Lacan aludirá a ele de diferentes formas ao longo de seu ensino –
algumas das quais nós veremos mais detalhadamente no capítulo seguinte. Mas, em O
seminário sobre “A carta roubada”, especificamente, ele no-lo apresenta sob a
denominação de caput mortuum – “o significante impossível”. E, a partir do que
trabalhamos anteriormente, julgamos que algumas inferências importantes podem ser
feitas com relação a ele e em articulação com a repetição.
Primeiramente, podemos perceber que a exclusão desse elemento é inerente à
própria incidência do significante. Afinal, como vimos, é com ele que surge a lei
sintática por meio da qual se traça, não apenas aquilo que é possível de se escrever ou
de se rememorar, como também o impossível.
A fim de compreendermos melhor a afirmação de Lacan na qual postula que
concomitantemente com o aparecimento do significante emerge também a lei, é preciso
lembrarmos que o que caracteriza o significante é precisamente o fato dele estar
conectado a outros significantes. Ou, nas palavras de Lacan que: “a estrutura do
significante está em ele ser articulado” (LACAN, 1957, p.504). E, tal articulação, como
vimos, só pode se dar mediante o advento da lei a partir da produção de uma metáfora.
Isso fica claro quando tomamos os exemplos da série A e da série B. Na série A,
os elementos que a compõe não possuem nenhuma ligação entre si – isto é, são
completamente independentes – até que se os agrupem em trios e se substitua esses
agrupamentos por uma notação específica (1, 2 ou 3). Somente depois dessa
substituição, isto é, dessa metaforização, é que terá lugar uma outra série (a série B),
esta sim, composta de elementos articulados. E o que nos dá notícias de que há mesmo
14
Nesse sentido, insistência e evitação são dois lados da mesma moeda, isto é, dois lados de uma só
repetição.
46
uma articulação aí? Ora, precisamente o fato de que, na série B, o aparecimento de
determinada unidade significante restringe as suas possibilidades de sucessão na cadeia
por outros elementos. É isso que nos demonstra que mais do que um termo seguindo-se
a outro, trata-se aqui de termos articulados uns com os outros; quer dizer, de elementos
inseridos dentro de uma estrutura, e, por isso mesmo, de significantes.
Assim, podemos inferir que é justamente essa operação de nomeação que produz
um limite que não existia até então, instituindo a ordem simbólica. O que nos leva a
compreender que: 1. o caput mortuum, esse ponto impossível de ser incorporado à
estrutura, é produto desta operação significante; 2. a estrutura, enquanto tal, pressupõe
esse ponto opaco para poder se organizar. Não é por outro motivo que se pode afirmar
que este se trata de um limite interno à cadeia significante.
Ademais, Bastos (1998) nos indica muito claramente a sua relação com a
repetição quando nos diz que:
O significante impossível responde, em certa medida, pela repetição
dos símbolos ao longo da cadeia. A série reproduz certos arranjos à
medida que contorna os excluídos, pode-se dizer, à medida que
margeia o impossível de ser dito. O caput mortuum do significante
figura uma dimensão de perda, introduzida com a própria
simbolização: uma não subsiste sem a outra. O significante impossível
é algo, um furo que a série deve necessariamente contornar. Mas esse
contorno não é um mero desvio: não se passa ao largo do caput
mortuum sem ser afetado por ele. Todo o percurso subjetivo sofre a
determinação causal dessa perda residual (BASTOS, 1998, p.95).
Diante disso, acreditamos que o que começa a se descortinar é que no cerne
mesmo da insistência simbólica jaz um vazio, um cavo, ineliminável que não é senão
aquilo que a motiva. No capítulo seguinte é precisamente sobre ele que nos
debruçaremos, na tentativa de apreender qual o seu estatuto.
47
CAPÍTULO 2.
A FACE REAL DA REPETIÇÃO
_ _ _ estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.
Tentando dar alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar
com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa
desorganização profunda. (...)
Só por um inesperado tremor de linhas, só por uma anomalia na
continuidade ininterrupta de minha civilização, é que por um átimo
experimentei a vivificadora morte.
Clarice Lispector
2.1.
Além do Princípio do Prazer: a repetição é própria à pulsão
Até o presente momento nos detivemos em investigar a repetição pensando-a
quase que tão somente em relação ao retorno dos significantes ao longo do
desdobramento automático da cadeia associativa. Nesse sentido, podemos dizer que a
examinamos privilegiando o efeito por ela suscitado dentro dos limites da linguagem –
isto é, dentro dos alcances do princípio do prazer. Contudo, o que haveremos de notar
através do artigo de 1920, Além do Princípio do Prazer, aquele que marca a grande
virada teórica de Freud, é que a causa mesma da repetição escapa a esses limites,
fugindo, portanto, a regulação deste princípio.
Vejamos do que se trata.
O primado do prazer em xeque
Vinte anos após a publicação do texto que serve de marco inicial da psicanálise e
no qual Freud estabelece as bases teóricas que regem a sua primeira tópica, este se vê
confrontado por algumas questões que pareciam colocar em xeque a hegemonia do
princípio do prazer.
Até então, o que a teoria psicanalítica postulava era que, de uma forma ou de
outra, os processos psíquicos obedeciam primordialmente a esse princípio. Os
desprazeres experimentados pelos sujeitos, portanto, não eram compreendidos como
uma refutação desta premissa, mas antes eram explicados em conformidade com ela.
Isto fica bastante claro logo no capítulo primeiro do referido artigo de 1920, no qual
48
Freud indaga-se se o desprazer neurótico e o desprazer resultante da vigência do
princípio de realidade não contrariavam a noção de que o aparato psíquico é
invariavelmente colocado em movimento por um aumento de tensão e que o curso de
seus processos se dão sempre no sentido de reduzir essa tensão, e assim possibilitar a
obtenção de prazer.
Ali, uma vez mais, chega à resposta que nem uma nem outra destas duas
modalidades de desprazer se opunha verdadeiramente a tal pressuposto. No primeiro
caso, que se refere ao sintoma neurótico, Freud relembra-nos que o desprazer, por ele,
suscitado é apenas tópico. Pois, se conscientemente este traz grande sofrimento ao
sujeito, ainda assim é através dele que a pulsão sexual pode se satisfazer,
inconscientemente. Ou seja, há no sintoma uma satisfação (substitutiva), mas que não
pode ser sentida como tal.
Já no segundo exemplo em exame, Freud também não encontra nada que
pudesse colocar em risco a tese defendida, porquanto o desprazer causado pelo princípio
de realidade, resultante do adiamento de uma satisfação pulsional, com efeito, apenas
assegura que o sujeito não padeça com um desprazer ainda maior ao tentar realizar a
ação específica sem que o objeto de satisfação esteja diante dele.
Contudo, se até o presente momento essas respostas bastavam para explicar em
consonância com o princípio do prazer grande parte das experiências desagradáveis, a
partir do final da Primeira Guerra Mundial tornou-se evidente que elas não davam conta
de esclarecer o desprazer recorrente experimentado pelos inúmeros veteranos de guerra
acometidos pela neurose traumática. No caso deles, o seu sofrimento relacionava-se
com os sonhos que produziam, através dos quais eram devolvidos repetidamente aos
campos de batalha e aos horrores que lá testemunharam.
O enigma da compulsão a repetir experiências aflitivas, ainda que em sonhos,
definitivamente causava grande embaraço para a psicanálise. Afinal, esses sonhos
traumáticos pareciam contrariar os ditames do princípio de prazer e configurar uma
exceção à regra de que toda produção onírica é a realização de um desejo. Mas, se assim
o fosse – e este era o impasse que precisava ser solucionado –, seriam eles índice de que
este princípio, até então supostamente soberano, não regia o curso de todos os nossos
processos psíquicos?
Uma vez que as análises sobre o desprazer neurótico e o desprazer causado pelo
princípio de realidade não ajudavam a esclarecer essa indagação, Freud se propõe
examinar uma brincadeira infantil, por ele nomeada de Fort-Da, na qual também notara
49
a presença dessa imperiosa compulsão a repetir. O que ele buscava com isso? Ora,
compreender o que estava no cerne da repetição observada na neurose de guerra; se se
tratava de uma tendência mais elementar e independente ao princípio de prazer, ou não.
“Fort-Da”
Freud toma conhecimento dessa brincadeira, bastante comum entre crianças da
mais tenra idade, ao observar que um dos entretenimentos preferidos de seu netinho,
que na época contava com aproximadamente um ano e meio de idade, era arremessar
repetidas vezes um carretel para fora do berço, emitindo um arrastado “o-o-o-ó”, para
logo em seguida puxá-lo de volta para perto de si, saudando o seu reaparecimento com
um “da”.
Levando em conta a circunstância em que era proferido e, provavelmente,
também o fato de que “da” significa em alemão “ali”, Freud infere que o “o-o-o-ó”, por
sua vez, não consistia apenas numa mera interjeição sem sentido, mas que este som
representava a palavra “fort” – que pode ser traduzida em português por “embora”,
como se utiliza na expressão “ir embora”. E daí conclui, portanto, que toda esta
atividade constituía, com efeito, “um jogo e que o único uso que o menino fazia de seus
brinquedos era brincar de „ir embora‟ com eles” (FREUD, 1920, p.26).
O súbito interesse de Freud por essa brincadeira infantil justifica-se pela
constatação de que ela também comporta a repetição de algo desagradável, na medida
em que ao fazer desaparecer o objeto, a criança está encenando – e por meio dessa
encenação, revivendo – a partida da mãe. Isto é, uma situação que de forma alguma
pode ter sido experimentada como prazerosa, já que – como vimos no Projeto
(1950[1895]) – o sujeito, ao nascer, necessita da provisão alheia para amenizar as
exigências pulsionais que o acossam, ficando, assim, em ocasião da ausência materna,
desamparado e a mercê dessas exigências que ele não pode satisfazer.
Entretanto, o que o pai da psicanálise percebe através da análise do jogo do Fort-
Da é que este não pode ajudá-lo a esclarecer se há, ou não, uma tendência mais
primitiva do que o princípio do prazer. Pois, a despeito dessa brincadeira repetir uma
experiência dolorosa, ainda assim, como observa, ela é acompanhada de prazer.
A fim de compreendermos de que maneira a repetição compulsiva de tal
encenação poderia suscitar prazer – o que, a princípio, poderia parecer um contra-senso
–, acreditamos que se faz necessário atentarmos para a conclusão a que chega Freud a
50
respeito do Fort-Da:
A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ela se relacionava à
grande realização cultural da criança, a renúncia pulsional (isto é, a
renúncia à satisfação pulsional) que efetuara ao deixar a mãe ir
embora [...] (FREUD, 1920, p, 27).
Através desta afirmação, o que se revela é que, se por um lado, essa brincadeira
encena uma perda, por outro, ela promove um ganho. E, este, como nos aponta Freud
não se trata de um ganho qualquer, mas antes constitui “a grande realização cultural da
criança”. O que nos leva a inferir que este concerne, nada menos, que à própria
aquisição da linguagem, uma vez que entendemos que não poderia haver realização
cultural maior do que ela.
Desta forma, articulando tal inferência às considerações lacanianas trabalhadas
no capítulo anterior, se torna claro que este jogo ilustra precisamente aquilo que se
convencionou chamar de “simbolização primordial”, através da qual o pequeno sujeito,
já imerso na dimensão simbólica desde antes de seu nascimento, se constitui
propriamente enquanto tal – isto é, enquanto sujeito do desejo, dividido entre dois
significantes, aqui representados pelo Fort e pelo Da. Afinal, lembremos que, segundo
Lacan (1960), o sujeito é o que um significante (S1) representa para outro significante
(S2), só podendo ex-sistir nesse hiato entre um e outro. E é nesse sentido, aliás, que o
psicanalista francês irá dizer que aquilo que a repetição do jogo representa é a “saída da
mãe como causa de uma Spaltung [divisão] no sujeito” (Lacan, 1964, p.67).
Veremos a seguir, ao tratar das considerações freudianas acerca do trauma, de
que maneira este processo de simbolização permite a produção de prazer.
Trauma: excesso e falta
A hipótese que Freud que nos apresenta em 1920 para explicar o traumático
pode ser resumida, tal como indicamos no título deste sub-tópico, em duas palavras:
excesso e falta. Excesso, porquanto o trauma passa a ser compreendido, então, como um
aumento abrupto de energia livre que, ao inundar o aparelho psíquico, faz-lhe uma
exigência de trabalho maciça no sentido de vincular o excedente energético a
representações para, assim, viabilizar a descarga e restaurar um certo equilíbrio
tensional.
Contudo, o que Freud nos aponta ainda é que uma tal elevação de energia
51
(característica às situações de perigo) somente se constitui propriamente enquanto
traumática na medida em que há também, por outro lado, uma falta de preparação do
aparelho para receber esta soma excessiva de excitação. É para esta carência que ele nos
chama atenção quando nos diz da particular importância do fator “susto” (Schreck) para
o desencadeamento de uma neurose de acidente.
Uma situação de susto – nos explica ele –, diferente daquelas de medo ou de
angústia, se caracteriza pela exposição do sujeito a uma experiência de perigo
imprevista, para a qual este não se encontrava psiquicamente predisposto, o que,
segundo as considerações traçadas nesse artigo, deveria se dar através do
estabelecimento de um estado de angústia preparatória, que levaria, por sua vez, a
subseqüente promoção de contra-investimentos psíquicos.
A relevância da realização prévia de contra-investimentos para a prevenção do
trauma pode ser vislumbrada quando levamos em conta que é através deles que o
psiquismo pode mobilizar a energia interna necessária para criar uma espécie de barreira
que dificulte ou limite o afluxo excessivo de excitação em estado livre.
Mas, como funcionaria esta barreira? Se recorrermos às considerações
freudianas traçadas no Projeto a respeito da experiência primária de dor e
aproximarmos essa noção de contra-investimento à noção de investimento colateral, ali
desenvolvida para explicar o mecanismo implicado na defesa primária, inferiremos que
o poder desta barreira reside no fato de que, graças a uma tal mobilização, diferentes
representações vizinhas são investidas simultaneamente. E, disto resulta uma ligação
(Bindung) entre elas que cria algo análogo a um campo de forças unificado, capaz de
atrair para si este excedente e os direcionar a favor dos trilhamentos, promovendo novas
ligações, até o ponto em que “as resistências seguintes sejam maiores do que a fração de
Q disponível para a corrente” (Freud, 1950[1895], p.495), quando, então, finalmente “a
totalidade da massa catexizada entra em equilíbrio” (idem).
Nesse sentido, é possível concluir que quanto maior a captação prévia da energia
interna, mais fácil será para o aparelho restituir o equilíbrio e evitar o trauma, pois,
como Freud afirmará em 1920, “quanto mais alta a própria catexia quiescente do
sistema, maior parece ser a sua força vinculadora; [enquanto que] inversamente [...]
quanto mais baixa a catexia, menos capacidade terá para receber o influxo de energia, e
mais violentas serão as conseqüências [...]” (FREUD, 1920, p.46).
Dentro dessa hipótese, os sonhos traumáticos seriam, grosso modo, uma
tentativa do aparelho de realizar retroativamente aquilo que não teria conseguido no
52
momento do acidente: produzir o sinal de angústia e, assim, controlar o excesso de
excitações livres, promovendo ligações. Contudo, o fracasso aí é evidente, pois neles a
cena do acidente é reproduzida quase sem alterações, recolocando o sujeito na mesma
situação de desconhecimento quanto ao perigo que está prestes a enfrentar. Assim, ele
continua tendo o mesmo sonho repetidas vezes, e despertando de cada um deles
abismado diante de um novo susto, que não é senão o mesmo susto de antes.
A constatação de que a compulsão à repetição nesses sonhos aponta para um
esforço premente (e mal-sucedido) no sentido de agenciar a ligação da energia por meio
da associação de representações compelirá Freud a rever algumas de suas principais
concepções acerca do funcionamento psíquico. Primeiramente, ele terá que admitir que
uma das funções mais antigas deste, que, aliás, precede e possibilita a instauração do
princípio do prazer, é precisamente a função de sujeitar à representação15
as excitações
que com ele se chocam e assim converter as catexias livres em quiescentes. Ou seja:
O princípio do prazer não estará mais ligado, como antes, ao processo
primário. O que Freud descobre são as condições mediante as quais o
prazer se põe como princípio. O prazer, que anteriormente se
relacionava ao processo primário, não é o mesmo que agora se
inscreve como princípio. A transformação do processo primário em
secundário, ou a ligação da energia que circula livremente, é a
condição necessária à instalação do princípio do prazer (SANTOS,
2002, p. 114).
Ademais, Freud reconhecerá também que esta função expressa uma tendência
mais primitiva do psiquismo do que a de obter prazer, qual seja: a tendência de se
libertar totalmente das excitações, vinculando-as e descarregando-as por completo. E ele
a atribuirá nada menos que ao caráter fundamentalmente conservador das pulsões cujo
desígnio último – nos diz – é zerar a tensão própria à matéria viva e retornar ao estado
inanimado original, quando precisamente a vida não existia.
Redefinindo a pulsão e estabelecendo uma nova dualidade pulsional
É claro que se Freud passa a imputar às pulsões esta tendência mais primordial
do aparelho psíquico é somente porquanto ele é conduzido, a partir dessas elaborações
recentes, a um novo entendimento com relação a elas.
15
Assim, o que se evidencia, aqui, é que a condição de possibilidade para o estabelecimento do princípio
do prazer é justamente a aquisição da linguagem, que promove estas associações significantes.
53
Para compreendermos como ele chega aí, faz-se necessário lembrarmos que
Freud conclui em referência ao trauma que este diz respeito a uma invasão de energia
livre circulante que o aparelho psíquico fracassa em seu esforço de simbolizar. Ou seja,
ainda que aparato trabalhe incansavelmente sujeitando as excitações livres às
representações, o traumático implica justamente a presença de um resto não-ligado que
insiste compulsivamente. Ora, já em A pulsão e suas vicissitudes (1915b), Freud já
reconhecia que a pulsão não é mais do que um certo acúmulo de excitações oriundas do
corpo fazendo exigência de trabalho contínuo ao psiquismo. O que leva inevitavelmente
à inferência de que esse resto – que, como vemos, nos é apresentado aqui como sendo a
causa da repetição –, não pode ser senão a própria pulsão.
É nesse sentido que entendemos que o pai da psicanálise postulará que a
repetição é aquilo que há de mais propriamente pulsional. Pois, afinal, se a pulsão
responde por um excedente ineliminável que não pode ser totalmente ligado, ela só pode
fazer repetir seu imperativo de inscrever-se psiquicamente. Ela repete porque não pode
ser completamente simbolizada; porque dela sobra algo de não-representado que sempre
persevera. Quer dizer, como coloca Garcia-Roza (1986), “a repetição insiste porque a
pulsão persiste” (p.59). Persiste como o resíduo inassimilável que se, por um lado,
coloca a estrutura psíquica em movimento, por outro, o faz justamente com o derradeiro
propósito de fazer-se assimilar por ela e conduzi-la, assim, ao seu próprio
aniquilamento.
Por isso mesmo a pulsão passará a ser concebida como “um impulso, inerente à
vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, (…) ou, para dizê-lo de outro
modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica” (FREUD, 1920, p.54). O que
levará Freud ao momento teórico mais decisivo de sua obra, aquele no qual ele postula a
pulsão de morte, enquanto pulsão primeira, em oposição às pulsões de vida, concebendo
um novo dualismo pulsional.
Resumidamente, dentro dessa nova dualidade, ele admitirá que se as pulsões de
morte operam no sentido de encaminhar o organismo para o seu fim, as pulsões de vida
– que englobam tanto as pulsões sexuais narcísicas quanto objetais – trabalham visando
o prolongamento desta jornada ao garantir, pelo investimento libidinal egóico, a
retenção de uma certa reserva energética “para sua posterior e momentosa atividade
54
construtiva16
” (FREUD, 1920, p.70). Mas que atividade construtiva seria esta? A
promoção de uniões, coalescências, através das catexias de objeto, por meio das quais
Freud nos diz que novas tensões são introduzidas no aparelho.
Contudo, na medida em que tais uniões levam à descarga, o que se evidencia é
que, se por um lado, as pulsões de vida propiciam desvios que retardam o fim, por
outro, elas ainda assim servem ao objetivo maior colocado pela pulsão de morte. Quer
dizer, se Eros e Thanatos dizem respeito – tal como Freud nos sugere – a duas forças
que trabalham em sentidos diferentes, todavia não se pode dizer que os processos que
elas desencadeiam correm separadamente e em franca oposição, mas que eles se fundem
e até certo ponto se confundem17
. O que fica evidente com a noção de “fusão pulsional”
elaborada neste artigo.
Para nossa pesquisa, acreditamos que seja mais interessante pensarmos esta
distinção que nos apresenta Freud a partir da dicotomia “energia livre x energia ligada”.
Isso porque entendemos que, deste modo, não caímos no equívoco de conceber a
existência de uma diferença qualitativa entre essas duas ordens pulsionais – idéia que o
próprio Freud (1923) parecia já rechaçar – e destacamos que a principal diferença entre
elas é tópica. Enquanto Eros diz respeito às moções pulsionais já submetidas ao espaço
da representação, ligadas a representantes, Thanatos se refere à força pulsional em
estado bruto, livre, que se mantém para além do campo da linguagem. Assim,
concordamos com Garcia-Roza (1986) quando ele infere que:
ao colocar a questão de um além do princípio do prazer, Freud não
está retomando o ponto de vista naturalista com o qual a psicanálise
rompe desde os seus começos. Dizer que a vida aponta para a morte
não significa abrir mão da dimensão simbólica que caracteriza
essencialmente a psicanálise, mas sim admitir a possibilidade de um
limite da palavra [...] (GARCIA-ROZA, 1986, p.92).
Nesse sentido, aliás, se torna compreensível a asserção freudiana de que “as
pulsões de morte são, por sua natureza, mudas” (FREUD, 1920, p.62). E, com isso, é
possível concluir que, se a causa da repetição – tal como vimos anteriormente – consiste
em um resto pulsional não-ligado que sempre persevera, então, esta causa muda recebe,
no artigo Além do Princípio do Prazer, o nome de pulsão de morte. Mas, como veremos
16
Essa, aliás, seria uma outra forma de se pensar a oposição entre Thanatos e Eros: o primeiro enquanto
uma força disruptiva e o segundo como uma força assimilatória. Lacan, em seu seminário sobre a ética da
psicanálise (1959-1960), privilegia precisamente este modo de conceber a pulsão de morte. 17
Sobre isso, nos diz Lacan (1954-1955): “a tendência à união (...) nunca é apreendida a não ser em sua
relação à tendência contrária, que leva à divisão, à ruptura, à redisposição [...]. Estas duas tendências são
estritamente inseparáveis. Não há noção que seja menos unitária” (p.106).
55
ao longo deste capítulo, este não é o único.
2.2.
Das Ding
Revendo o “Projeto” à luz do “Além”: breve introdução à Coisa
Como aparece no Projeto para uma Psicologia Científica (1950[1895]) esse
“para além da linguagem” que funciona como força motriz do automatismo de
repetição? O que este texto e as considerações lacanianas a respeito dele – traçadas
principalmente no seminário sobre a ética da psicanálise (1959-1960) – podem nos
ensinar sobre ele e sobre sua relação com o simbólico (isto é, com a linguagem)? E,
ainda, como podemos articular as formulações ali encontradas com o que vimos
anteriormente no artigo Além do Princípio do Prazer (1920)?
Para respondermos as indagações acima, acreditamos que se faz necessário
retornarmos, rapidamente, às elaborações freudianas acerca da primeira vivência de
satisfação – experiência que tenta explicar a origem e o modo particular de
funcionamento de nosso aparelho psíquico, e que, como veremos agora, não pode ser
senão uma experiência mítica.
Lembremos que, segundo Freud (1950[1895]), essa vivência se dá logo nos
primeiros momentos de vida, quando o bebê consegue, mediante o auxílio alheio,
promover a ação específica e, assim, supostamente, eliminar a estimulação endógena
que lhe bombardeia sem tréguas, sendo levado, pela primeira vez, à satisfação. E não a
uma satisfação qualquer – diga-se de passagem –, mas à satisfação absoluta, que desde
então o sujeito viveria na vã expectativa de repetir.
Até o presente momento, não havíamos feito qualquer ressalva quanto a esta
pressuposição freudiana, indispensável para se justificar os efeitos estruturantes dessa
experiência tal como eles nos são apresentados no Projeto. Todavia, agora que já
debatemos as considerações traçadas no artigo Além do Princípio do Prazer,
acreditamos que se torna manifesto o quão insustentável – para dizer, no mínimo – é
admitir que em algum momento tenha sido possível suprimir, ainda que
provisoriamente, a descarga de Q no interior do corpo. Afinal, através das formulações
de 1920, se esclarece que uma tal remoção da estimulação endógena, por meio do que
resultaria a neutralização da tensão no interior do aparato psíquico, não poderia senão
56
conduzir ao próprio aniquilamento do aparelho. Ou seja, consentir que isso tenha
ocorrido é consentir que a pulsão de morte, em algum momento, por mais breve que
seja, tenha conseguido alcançar o seu desígnio. O que é inconcebível.
Dessa forma, entendemos que o que se evidencia quando lemos o primeiro
desses textos à luz do segundo, e que certamente não ficava claro antes, é que sob
hipótese nenhuma esta vivência pode ter ocorrido de fato. Pois, do contrário, caso,
algum dia, se tivesse conseguido eliminar completamente a tensão interna, jamais se
teria sobrevivido a essa experiência, nem para gozar da suposta satisfação plena que
extrairia dela tampouco para continuar tentando repeti-la.
Assim, somos inevitavelmente conduzidos a inferir que a experiência primária
de satisfação é, com efeito, mítica. E que, portanto, a tão perseguida e almejada
satisfação absoluta, bem como o objeto que a teria proporcionado, não deixam de ser
apenas uma miragem. Esta miragem, contudo, é estrutural, porquanto ela é inerente à
constituição do sujeito, sendo, tal como ele, efeito da linguagem.
Explicamos este salto. Como afirmamos anteriormente, o bebê quando vem ao
mundo não tem condições de aplacar, sozinho, as excitações endógenas, requerendo o
auxílio externo para isso. E de que forma Freud nos diz que ele consegue a atenção de
um adulto? Através de manifestações de choros e gritos. Essas manifestações por elas
mesmas não dizem nada. Entretanto, conforme sublinhamos no primeiro capítulo, elas
adquirem a função secundária de comunicação. Como? Ora, justamente porque aquele
que vem ao seu socorro, longe de tratá-las como simples descargas motoras, as entende
como o signo de um apelo, fornecendo-lhes uma interpretação e provendo a criança de
acordo com esta. E o resultado de tal intervenção é que esse grito é elevado
retroativamente à potência de uma demanda (DREYFUSS, 1982), e o bebê mais do que
ter uma exigência biológica atendida, é introduzido na ordem simbólica.
Diante disso, é possível compreendermos que aquilo que a experiência primária
de satisfação ilustra não é senão o começo da inserção do sujeito (que ainda é um
sujeito-por-vir) nessa ordem que o precede, que já está lá desde antes do seu
nascimento. Ou seja, trata-se, nesta situação emblemática, do primeiro encontro com a
linguagem. Por isso, Dreyfuss (1982) afirmará que diante desse primeiro „chamado‟ não
é o outro especular que vem em auxílio do bebê, mas sim, antes de tudo, o grande Outro
(A) – isto é, a linguagem enquanto alteridade radical – que vem acolher e nomear o seu
choro, conferindo-lhe um sentido.
57
Esse sentido conferido ao grito, portanto, não está dado a priori. Mas é
produzido somente quando atravessa o lugar do código e é articulado em significantes
no Outro, ganhando o estatuto de fala. Todavia, ainda assim, o grito „fala‟, mas não diz.
Se dissesse, se tivesse um significado a ele inerente, intrínseco, diante do choro de um
bebê, a pergunta “o que será que ele quer?” não se colocaria. Não haveria espaço para a
dúvida (e nos falantes, mesmo quando aparentemente não há dúvidas, há sempre
margem para ela). O objeto, então, estaria já pré-determinado e seria perfeitamente
adequado. Neste caso, sim, se poderia pensar em objeto absoluto, em necessidade (não
em demanda), e em instinto. Mas, o que observamos, é que para o humano, por ele
nascer imerso na linguagem, o referente, o real, a coisa mesma que se quer dizer na fala
está desde e para sempre perdida. E é por isso que nos seres falantes afirmamos que as
exigências do corpo não são da ordem do instinto, mas da pulsão, porquanto esta se
caracteriza justamente pela ausência de um objeto específico. O objeto da pulsão – nos
diz Freud (1915b) – é indiferente; ele é o que há de mais variável.
Assim, podemos afirmar também que esta experiência primária de satisfação é
mítica na medida em que pressupõe que em algum tempo imemorial se teve acesso ao
objeto absoluto, à Coisa mesma – ou, como veremos a seguir, à das Ding. O que seria
equivalente a admitir que se possa ter tido acesso, um dia, a um objeto original sem
qualquer mediação da linguagem, quando entendemos que isto simplesmente não é
possível. Aliás, acreditamos que o estado de desamparo sobre o qual nos fala Freud no
Projeto, não consiste, portanto, no fato do homem nascer completamente dependente do
outro, mas do Outro; da linguagem. E é apenas por meio dela que este poderá aceder a
alguma satisfação. Mas nunca a toda satisfação. Nunca ao gozo pleno – este que
corresponderia à perfeita adequação e complementaridade entre “sujeito” e “objeto”.
Todavia, como é possível notar através das considerações acima, a despeito do
referente estar desde sempre perdido, a fala necessariamente o pressupõe. Afinal, a
própria pergunta pelo sentido parece colocar em seu horizonte um significado
derradeiro, real, sempre visado, mas nunca alcançado. E, assim, julgamos que se
esclarece nossa afirmação anterior de que tanto a satisfação absoluta quanto o objeto
que poderia tê-la proporcionado não passam de um engodo que, no entanto, é efeito da
própria linguagem, sendo impossível prescindi-lo ou erradicá-lo. A palavra coloca esse
mais-além.
Diante disso, aspectos importantes para nossa pesquisa se evidenciam.
Perguntamos, logo de início, como é que aparecia esse “para-além” da linguagem no
58
Projeto, e a partir do que expomos já é possível esboçarmos uma resposta: ele aparece
como esse objeto absoluto, das Ding, que, segundo nos aponta Braunstein (2007), é “a
Coisa como um real puro, anterior a qualquer simbolização, exterior a qualquer tentativa
de apreensão, apagada para sempre por qualquer palavra (...) e o mais inacessível ao
sujeito” (p.78).
Lacan se dedicou a trabalhar esse conceito freudiano detidamente em O
Seminário, livro 7 (1959-1960). Ali, ele examina as considerações sobre das Ding
encontradas no Projeto quando Freud discorre a respeito da atividade de pensamento e
sobre o complexo do próximo (Nebenmensch). A fim de melhor poder apreciá-las,
julgamos indispensável recorrermos, uma vez mais, a esses renegados rascunhos.
Juízo, pensamento e fabricação da realidade
Quando tratamos da experiência de satisfação no capítulo anterior, vimos que
Freud reconhece que esta deixa atrás de si facilitações que levariam, em princípio, ao re-
investimento da imagem mnêmica do objeto que teria possibilitado, supostamente, a
cessação do estímulo, e que disto resultaria a sua alucinação e a subseqüente frustração
do sujeito.
Ademais, afirmarmos também que, de acordo com as teorizações freudianas, é a
partir do desprazer suscitado por esse desapontamento que se dará a organização do ego
enquanto uma organização psíquica composta por neurônios constantemente investidos
e interligados, com a função específica de inibir o livre fluxo de Q, atraindo para si os
investimentos que se dirigem à imagem mnêmica do objeto, e transferindo-os a favor
dos trilhamentos para os neurônios adjacentes a ele.
Diante disso, torna-se compreensível, portanto, que é esse escoamento da
energia promovido pelo ego através das facilitações – e em obediência ao princípio do
prazer –, que garante que, mesmo diante de um súbito acréscimo de tensão, a catexia da
imagem do objeto permaneça sempre moderada e não ultrapasse um certo limite, acima
do qual o sistema ω (responsável pela consciência) seria incitado a produzir uma „falsa‟
indicação de realidade, desencadeando justamente a alucinação.
Mas até quando a inibição egóica deve acontecer? – poderíamos perguntar.
Segundo Freud, o ego deve suspender a descarga motora até que se reencontre no
exterior um objeto idêntico àquele primeiro. Para isso, durante o estado de desejo, os
neurônios que compõe essa organização dirigirão seus investimentos para qualquer
59
percepção que se faça presente, a fim de procurar um objeto que corresponda ao
desejado.
Caso apareça diante do sujeito, um objeto cuja percepção coincida totalmente
com o investimento do desejo (isto é, com a imagem-lembrança do objeto de
satisfação), a descarga é imediata. Contudo, como se pode inferir, tal situação específica
é, de fato, impossível de acontecer. E se o próprio Freud, não admite isso abertamente
no Projeto, ele ao menos reconhece ali que as chances de ocorrer uma identidade
completa entre as duas imagens são muito pequenas, uma vez que ambas as catexias,
tanto a perceptiva quanto a mnêmica, nunca se referem a um único neurônio, mas a um
complexo.
Deste modo, Freud passa a analisar outro caso que supõe mais comum, qual seja,
aquele em que, no estado de desejo, o investimento moderado do complexo-lembrança –
representado pelo exemplo (neurônio a + neurônio b) –, se dá simultaneamente com
uma percepção que não corresponde inteiramente a ele – ilustrada pelo conjunto
(neurônio a + neurônio c). De acordo com suas anotações, é nesse momento que surge,
então, o ímpeto para a atividade do pensamento, que tem como propósito último
verificar se o objeto percebido corresponde, ou não, ao objeto da ação específica
Esta atividade é suscitada, assim, a partir de uma análise (ou juízo) das imagens
mnêmica e perceptiva, mediante a qual se evidencia, por um lado, a semelhança
existente entre elas graças à presença de um elemento comum a ambas (neurônio a), e,
por outro lado, aquilo que há de dessemelhante entre as duas – seus componentes
variáveis (os neurônios b e c). É a este elemento constante, presente nos dois
investimentos, que Freud nomeará de das Ding, ou a Coisa, enquanto que aos
componentes divergentes ele chamará de atributos.
Com essa coincidência parcial, Freud nos diz que a inibição da descarga
continuará até que a identidade de todo o complexo seja confirmada pela atividade do
pensamento. Nesta, o ego direciona a corrente de Q para o elemento perceptivo
desconhecido (neurônio c), a fim de que, a partir dele, emirjam no pallium novas
associações até que se alcance, por meio delas, o componente que deveria estar presente
na percepção do objeto (neurônio b) para que houvesse uma completa adequação com
investimento do desejo. De acordo com Freud, uma vez tendo-a alcançado, é que se
produziria, então, um „estado de identidade‟ que desencadearia a indicação de realidade,
colocando termo à atividade de pensar e promovendo o início da descarga motora.
Aqui, cabe tecermos algumas considerações em relação ao que vimos até agora.
60
Primeiramente, julgamos pertinente apontar que o processo que Freud nos
descreve como sendo próprio à atividade do pensamento – qual seja: o deslocamento de
investimentos através de uma cadeia associativa (neste caso, neuronal) – é análogo ao
que Lacan reconhece como característico ao funcionamento simbólico, isto é, da
linguagem. E, mais especialmente ainda, à função metonímica nela presente.
Ademais, é interessante notar que, curiosamente, o que ocorre no
estabelecimento da identidade perceptiva não é senão, com efeito, uma operação de
retificação da realidade. Afinal, como podemos constatar pelas considerações acima,
aquilo que supostamente se apresentaria aos olhos do sujeito (o complexo neurônio a +
neurônio c) deve ser corrigido através do pensamento em favor da lembrança investida
pelo desejo, para que assim possa se dar essa identidade. E, nesse sentido, somos
levados a inferir que a realidade tal como nós a percebemos já é, de certa forma,
fantasística, porquanto ela é, desde sempre, construída em conformidade às expectativas
do desejo.
Tais considerações, a princípio, poderiam nos conduzir a imaginar, então, que
existiria um real puro, em estado bruto, anterior a qualquer atividade do pensamento,
mas inacessível enquanto tal ao sujeito, já que este só pode vir a conhecer a realidade
através da mediação do pensamento – o que é o mesmo que dizer: através da mediação
do desejo –, que „distorceria‟ este real primeiro. Contudo, o que as considerações de
Lacan nos permitem compreender é que não há um real prévio ao processo de
simbolização, e sim que o real (como isso que nos daria a essência, o ser mesmo das
coisas) é justamente um produto, um efeito, desse processo. Aliás, foi precisamente para
esta idéia que atentamos quando abordamos a questão de que é a própria linguagem que
coloca em seu horizonte esse “mais-além” interditado a ela mesma: esse referente
último, sempre visado e nunca alcançado, que não passa, com efeito, de uma quimera.
Agora, porém, acreditamos que seja conveniente tentar buscar nesse símile
freudiano para explicar a atividade de reconhecimento, isto que constitui o real. Ora,
como afirmamos acima, o real pode ser pensado como aquilo que, supostamente, nos dá
a essência de um objeto e que, sendo assim, se refere ao que, a despeito das infinitas
propriedades contingenciais (e, portanto, variáveis) que esse objeto pode apresentar, se
mantém necessariamente constante nele, uma vez que sem isso, o mesmo deixaria de ser
o que é. E, no exemplo dado, o que é que se mantém invariável nos dois complexos
envolvidos no estabelecimento da identidade de percepção? Das Ding.
Vejamos, a seguir, um pouco mais a respeito desta curiosa Coisa, a fim de
61
melhor compreendermos a sua importância para a estruturação da ordem simbólica e
também a sua relação com a repetição.
Essa estranha Coisa tão íntima
Tal como vimos a pouco, Freud introduz a noção de das Ding precisamente para
designar o elemento constante cujo „reconhecimento‟ imediato, a partir do juízo, incita a
atividade de pensar. Este elemento comum, o neurônio a, é, pois, encontrado tanto no
ego (núcleo de ψ), permanentemente investido pelo desejo, quanto na imagem-
perceptiva (situada no pallium), sem ser, entretanto, redutível a um ou a outra. Dessa
forma, somos levados a inferir que ele está numa e noutra região, mas, com efeito, não
pode ser localizado especificamente em nenhuma delas. É tal particularidade, aliás, que
nos aponta Dreyfuss (1982) no seguinte trecho:
das Ding, como estrutura comum a esses dois investimentos distintos,
não pertence propriamente nem ao pallium, nem à zona nuclear e não
é também localizável dentro do aparelho psíquico do Projeto. “A
coisa” é antes assimilável a interseção vazia desses dois conjuntos
disjuntos (DREYFUSS, 1982, p. 58).
Em outras palavras, das Ding é algo que resta da lembrança da primeira vivência
de satisfação e que retorna na percepção, sem que se possa precisar exatamente onde ele
está, já que não se encontra nos traços mnêmicos deixados por essa experiência e
tampouco na imagem do objeto „re-achado‟, ao mesmo tempo em que se presentifica em
ambos os sistemas (perceptivo e mnêmico) como ausência.
Então, cabe perguntarmos: Qual seria o estatuto desse estranho elemento? E,
ainda, que lugar é este que ele ocupa?
Uma primeira resposta que podemos esboçar, a partir do que já foi visto, é que
das Ding é precisamente aquilo que, no processo de verificação do pensamento em sua
busca por estabelecer a identidade do complexo percebido em relação à catexia do
desejo, é excluído das cadeias associativas. Afinal, Freud nos aponta que essas vias
serão traçadas do neurônio c ao b, enquanto que o neurônio a permanece, aí, isolado,
ainda que, curiosamente, seja apenas por meio da semelhança parcial que ele introduz
que essa atividade do pensamento seja suscitada.
A fim de complementar essa resposta, parece-nos importante considerar ainda o
Freud menciona acerca de das Ding ao tratar do complexo do próximo (Nebenmensch) e
da importância deste para o surgimento da atividade judicante no sujeito.
62
De forma resumida, ele nos diz que é justamente a partir dos complexos
perceptivos que emanam do próximo que “o ser humano aprende a conhecer” (FREUD,
1950[1895], p.447), distinguindo-os em duas partes: uma que se refere aos traços novos
e incomparáveis, e outra que diz respeito aos conjuntos perceptivos passíveis de serem
reconhecidos através das lembranças que o sujeito mantém de suas próprias vivências
(como a percepção visual dos movimentos das mãos, por exemplo). Ainda sobre este
processo, Freud afirma que:
O complexo do próximo se divide em dois componentes, dos quais um
produz uma impressão por sua estrutura constante e permanece unido
como uma coisa (Ding), enquanto o outro pode ser compreendido por
meio da atividade da memória – isto é, rastreado até as informações
sobre o próprio corpo [do sujeito] (FREUD, 1950[1895], p.448)
Mas, que „próximo‟ seria este ao qual Freud se refere? Mediante as
considerações já traçadas, somos levados a inferir que o Nebenmensch diz respeito à
primeira alteridade com a qual se depara o recém-nascido. Nesse sentido, Dreyfuss
(1982) faz questão de sublinhar que nada permitiria identificar, no Projeto, essa
alteridade como a unidade imaginária na qual o sujeito reconhece seu semelhante.
Podemos dizer, ao contrário, que ao se deparar no complexo do próximo com das Ding,
elemento que sobra de radicalmente estranho (Fremde) e escapa a qualquer tentativa de
compreensão, é com o Outro absoluto que o pequeno desamparado se confronta.
A respeito desse encontro com o Outro, Lacan (1959-1960) sublinha que é em
torno da Coisa, como primeiro exterior, alteridade radical, que se traçará todo o
encaminhamento do sujeito no mundo. Este se dirigirá e se reportará aos objetos tendo
como referência a suposta satisfação daí extraída, colocando-a sempre em seu horizonte,
e buscando revivê-la. É nesse sentido, pois, que se pode afirmar que o modo do sujeito
abordar a realidade será marcada , inexoravelmente, por essa experiência primordial.
Contudo, como nos alerta Lacan, a tentativa de repetir essa experiência de
reencontrar das Ding enquanto Outro absoluto está fadada ao fracasso. Diz-nos ele,
taxativamente: “Reencontramo-lo no máximo como saudade” (LACAN, 1959-1960, p.
68). Isso porque aquilo que se busca reencontrar, esse objeto primordial, não pode ser
encontrado. Ele é desde e para sempre perdido, uma vez que nunca existiu como tal.
Já desenvolvemos rapidamente esta idéia quando explicamos em que medida se
podíamos dizer, com base nas considerações freudianas de 1920, que a experiência de
satisfação é mítica. Mas, uma outra maneira de entendermos esta impossibilidade
63
estrutural de se reencontrar este objeto é se levarmos em conta que essa vivência
precede qualquer distinção entre sujeito e objeto, interior e exterior. Pois, é somente
quando a mãe se ausenta e que, portanto, o objeto de satisfação se constitui enquanto
faltoso, que o bebê pode concebê-lo como algo externo, fora de seu corpo; quer dizer,
como um objeto, propriamente. E, sendo assim, não é senão nesse momento mesmo que
a fronteira entre interior e exterior começará a se estabelecer, e sujeito e objeto poderão
se constituir enquanto tais.
Agora, acreditamos que se torna mais claro em que medida o encontro com o
primeiro objeto marca, a posteriori, a experiência de realidade para o sujeito. Pois,
como dito acima, é apenas na ocasião em que esse objeto se constitui como ausente, que
um exterior pode ser diferenciado de um interior, e que o mundo, enquanto realidade
material, pode se abrir para o sujeito. E, se ela se abre – como vimos – é já, desde então,
como fonte de investigação, não como um dado; e já, desde sempre também, mediada
pelo desejo. Afinal, se o pequeno sujeito se dirigirá ao mundo externo para conhecê-lo,
o faz justamente porque deseja reencontrar nele o objeto perdido. Quanto a isso, Lacan
(1959-1960) nos aponta que:
No final das contas, sem algo que o alucine [isto é, a este objeto, das
Ding] enquanto sistema de referência, nenhum mundo da percepção
chega a ordenar-se de maneira válida, a constituir-se de maneira
humana. O mundo da percepção nos é dado por Freud como
dependendo dessa alucinação fundamental (LACAN, 1959-1960,
p.68).
Esse movimento que se estabelece em busca do objeto, e do qual depende a
organização do mundo da percepção – lembremos –, nada mais é do que o próprio ato
de pensar. E talvez não seja excessivo sublinhar novamente que se no Projeto, Freud
coloca que ele se daria através do deslizamento dos investimentos nas cadeias
associativas dos neurônios, enquanto a Coisa ficaria à parte do mesmo, permanecendo
isolada dessas cadeias, Lacan, em sua releitura do texto freudiano, retoma esta idéia,
porém colocando-a em outros termos. Ele substitui a trama neuronal à articulação
significante (ou à cadeia de representações); identifica o objeto perdido da satisfação à
das Ding; e ao invés de falar em atividade do pensamento, se refere a processo
simbólico. Nesse sentido, ele afirmará que das Ding é aquilo que permanece estranho à
rede de representações, é o não-representável, em torno do qual se organizam as
Vorstellungen, concluindo: “ao nível da Vorstellungen, a Coisa não é nada, porém,
literalmente não é – ela se distingue como ausente, alheia” (LACAN, 1959-1960, p.80)
64
Assim, podemos compreender melhor, então, do que se trata a Coisa e qual lugar
peculiar que ela ocupa em relação à ordem simbólica. Das Ding é uma das
denominações para aquilo que o sujeito teve que perder, quando ainda não era sujeito
(quer dizer, que nunca perdeu, então), para poder se constituir enquanto um sujeito
(ainda que divido); é a parte de si mesmo que nunca foi sua; algo de interior que se
tornou exterior ao mesmo tempo em que tornado excluído no interior. Ele diz respeito
ao vazio central ao redor do qual gira a cadeia de representações, radicalmente estranho
e integrado a ela; sendo aquilo mesmo que, por um lado, a possibilita e, por outro, a
fura. Ele é “originalmente o que chamaremos de o fora-do-significado” (LACAN, 1959-
1960, p.70) que permite que o mundo do sentido possa ser construído, mesmo que de
forma precária, uma vez que é justamente esse ponto opaco na cadeia aquilo que
inviabiliza o acabamento do sentido.
Como índice de uma exterioridade irredutível à cadeia de representações, a
Coisa se mantém fora, para além, daquilo que é regulado pelo princípio de prazer, não
obstante o fato de que seja através da dimensão simbólica, pelas vias do significante,
que sua procura incansável se dê e que se possa, de alguma maneira, apontá-la. Afinal,
ainda que das Ding não pertença ao espaço da representação, nem por isso ele deixa se
fazer presente, ali, em sua ausência. Pode-se dizer, ainda, sobre a Coisa enquanto esse
exterior radical, que ela é “o que do real (…) padece de significante” (LACAN, 1959-
1960, p.144), quer dizer, das Ding é aquilo que escapa ao processo de simbolização;
que resta insistentemente como inominável, fazendo limite ao simbólico: o real.
Ademais, resta-nos articular o que trabalhamos até aqui a respeito de das Ding
com a repetição. Para tanto, começaremos evocando o que vimos no artigo Além do
Princípio do Prazer (1920). A partir desse texto, foi-nos possível constatar que Freud
concebe, ali, que o traumático implica justamente o fracasso do esforço de dominar o
excedente pulsional, e, portanto, a persistência de um resto não-ligado que insiste
compulsivamente em se fazer representar.
Sendo assim, se torna claro como estas formulações se aproximam do que vimos
anteriormente a respeito de das Ding enquanto Outro absoluto do sujeito (seu primeiro
exterior) e como seu primeiro objeto de satisfação. Se o trauma é aquilo que produz um
resíduo não assimilável pelo processo simbólico, esse encontro primordial com o Outro,
a partir do qual se introduz no pequeno sujeito uma alteridade radical, inassimilável, no
seio de sua subjetividade, ele então não só é satisfatório, como falamos até o momento,
mas também traumático. E, deste modo, podemos afirmar ainda que aquilo que desta
65
experiência sobra de não articulável à cadeia significante – a Coisa, como objeto
perdido – não é senão a causa primordial da compulsão à repetição.
E, se torna possível compreendermos especificamente a sua relação com a face
simbólica da repetição (isto é, com o retorno automático dos mesmos signos à cadeia
associativa) quando levamos em conta a afirmação lacaniana que nessa busca por
reencontrar das Ding, o que achamos são suas coordenadas de prazer (LACAN, 1959-
1960, p. 68); quer dizer, as marcas significantes deixadas por este encontro primeiro
com a alteridade, que precisamente orientarão toda a rede em torno desse vazio central.
2.3.
Tiquê: A causa acidental da repetição
Automatôn e Tiquê
Em 1964, Lacan se debruçará novamente sobre o tema da repetição no seminário
dedicado aos quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Ali, o que ele nos apresenta
de maneira inequívoca é que este conceito articula, privilegiadamente, dois registros: o
simbólico e o real. Não que isso não se fizesse já entrever em sua obra. Muito pelo
contrário, acreditamos que mesmo em seu seminário sobre a ética (1959-1960) já era
possível notar que não se pode conceber a repetição senão em referência a essas duas
dimensões. E, com efeito, nas reflexões que traçamos acima, grande parte de nosso
esforço se deu no sentido de sublinhar de que modo as considerações lacanianas a
respeito de das Ding permitiriam vislumbrar tal articulação.
Porém, ainda assim, entendemos que é apenas em O Seminário – livro 11 (1964)
que ele formaliza de maneira mais acurada que, precisamente pelo fato de articular esses
registros heterogêneos, a repetição apresenta duas faces, as quais, apesar de distintas, se
encontram inexoravelmente imbricadas, de tal forma que não podem ser amplamente
compreendidas senão remetidas uma à outra.
A fim de assinalar estes dois lados da repetição, Lacan se utiliza de duas
concepções aristotélicas, autômaton e tiquê, desenvolvidas no livro Física.
Nesta obra – vale lembrar –, partindo do pressuposto que tudo que existe e/ou
acontece (isto é, tudo o que se realiza) no mundo possui uma causa, o filosofo grego
distingue quatro princípios genéticos das coisas. Dentre elas, está a de causa eficiente ou
motora (kinoun), que se refere especificamente àquilo que responde por colocar em
66
movimento (ou engendrar a mudança de) alguma coisa. É nesta categoria que
Aristóteles inclui a noção de causa acidental (symbebekos), que subdivide em dois tipos:
autômaton e tiquê.
Segundo Garcia-Roza (1986), essas duas causas acidentais se distinguem das
outras causas eficientes por se referirem a acontecimentos excepcionais, que eram em
geral associados ao acaso justamente por se tratarem de eventos para os quais a razão
humana não consegue atribuir uma inteligibilidade. Não obstante, como nos aponta
Echandía – tradutor e comentador da edição à qual recorremos –, para muitos
pensadores que precederam a Aristóteles, tiquê e automatôn eram considerados como a
verdadeira razão de tudo acontecer, estando em íntima conexão com a idéia de
necessidade; sendo, este, aliás, o principal motivo que teria levado o filósofo a inseri-las
em seu esquema causal.
Contudo, é importante sublinhar que essas duas noções não eram utilizadas num
mesmo sentido, nem sequer antes das formulações aristotélicas. No uso corrente em que
geralmente eram empregadas na Grécia antiga, tiquê servia para designar “uma
divindade desconhecida – porém nomeada – responsável pela sorte ou pelo infortúnio
dos homens” (GARCIA-ROZA, 1986, p.40). Assim, podemos pensar que ela se
aproximaria ainda mais da idéia de necessidade do que o autômaton, porquanto, se
referia a uma força externa – “algo de divino e tão demoníaco que se faz inescrutável ao
pensamento humano” (ARISTÓTELES, 1995, p.61) – que sela o destino inescapável de
cada sujeito.
Já, automatôn, por sua vez, tinha um emprego mais profano, mas nem por isso
menos inquietante, como nos aponta a nota do tradutor. Entre os gregos, este termo era
usado, corriqueiramente, para indicar algo que se produz espontaneamente ou que se
move por si mesmo. Isto é, independente de qualquer deliberação humana ou mesmo
divina. Aristóteles irá, grosso modo, manter essa acepção, acrescentando que “como
indica seu nome (automatôn), [esta causa] tem lugar quando ocorre algo „em vão‟
(maten18
)” (ARISTÓTELES, 1995, p. 66).
Todavia, com relação à tiquê, o filósofo retira o sentido teológico que antes a
impregnava, destituindo-lhe de seu caráter místico, ao fazer questão de sublinhar que
aquilo à que se denomina “sorte” ou “fortuna” se refere a acontecimentos que, apesar de
se darem por acidente, implicam necessariamente à atividade humana, pois – como nos
18
Sobre este termo, o tradutor nos esclarece em nota que ele pode apresentar dois sentidos: a) em vão,
uma finalidade malograda; b) sem razão, gratuitamente.
67
indica – para aqueles que não têm capacidade de eleger, não se pode falar em “boa
sorte” ou em “má sorte”. Dentro dessa hipótese, Aristóteles explicava a tiquê, portanto,
não a partir dos caprichos de algum deus, mas concebendo-a como o “encontro de duas
séries causais, cada uma perfeitamente determinada, ficando o caráter de
excepcionalidade referido ao encontro de uma com a outra” (GARCIA-ROZA, 1986,
p.41)19
.
Feita esta breve explanação acerca dessas duas noções, vejamos a seguir de que
modo Lacan se apropria delas, e o que podemos supor que pretendia sinalizar-nos ao
utilizá-las para tratar do conceito de repetição em psicanálise.
Quanto ao automatôn, Lacan se servirá desta noção para se referir ao retorno, à
volta, dos signos comandados pelo princípio do prazer. Ou seja, ele emprega este termo
para fazer alusão à faceta simbólica da repetição, caracterizada pela insistência de
determinadas articulações significantes no desdobramento da cadeia simbólica, que se
cruza sempre do mesmo modo.
Com efeito, foi precisamente à investigação desta insistência que nos ocupamos
primordialmente em nosso primeiro capítulo. E, acreditamos que o que se revelou a
partir das considerações ali traçadas é que Lacan, num primeiro momento de sua
démarche, a explica como sendo resultante da própria incidência do significante,
porquanto simultaneamente ao surgimento deste dá-se também a emergência de uma lei,
ou de uma sintaxe inconsciente, que estabelece, a despeito das intenções do indivíduo
ou do sujeito, os caminhos pelos quais deve passar necessariamente suas rememorações,
a sua história. Aliás, nesse sentido, vimos também que Lacan faz questão de sublinhar,
não só que os desdobramentos da cadeia simbólica independem de qualquer deliberação
do sujeito, como este não é anterior à concatenação significante, mas sim, um produto
desta. De tal forma, que seus atos e seu destino seriam sobredeterminados pelo modo
idiossincrático que se entrecruzam essas redes e, portanto, pelo lugar singular que lhe é
designado dentro desta estrutura.
Diante disso, poderíamos ser levados a pensar que Lacan utiliza-se desta
categoria aristotélica de causa acidental, não só para designar a face simbólica da
repetição, como também para indicar-nos com isso que uma das causas da repetição é o
19
Um exemplo dado por Aristóteles, que ilustra o acaso como fruto do choque de duas séries causais
independentes, é o de uma pessoa que, indo a uma praça com um determinado propósito específico –
como o de comprar ou vender qualquer coisa –, acaba por esbarrar fortuitamente com alguém que lhe
devia dinheiro e que vem, então, a lhe pagar. Sendo que, quitar a dívida também não fora o motivo que
levara esta outra pessoa a se dirigir a mesma praça. Ou seja, cada um desses indivíduos escolheu ir à
praça, mas o encontro dos dois e a quitação da dívida, que desse encontro resultou, se deu por “sorte”.
68
próprio encadeamento significante (que podemos equivaler às Bahnungen freudianas,
ou, ainda, representar pela bateria mínima S1-S2), porquanto este, uma vez
estabelecido, funciona automaticamente, promovendo o retorno dos mesmos signos.
Porém, fazer uma tal inferência – parece-nos – seria desconsiderar as formulações que
Lacan nos apresenta neste mesmo seminário com relação à causalidade, nas quais ele
faz questão de sublinhar que:
Ela [a causa] se distingue do que há de determinante numa cadeia,
dizendo melhor, da lei. Para exemplificar, pensem no que se figura na
lei de ação e reação. Só existe aqui, se quiserem, apenas um titular.
Um não anda sem o outro. (...) Ao contrário, cada vez que falamos da
causa, há sempre algo de anticonceitual, de indefinido. As fases da lua
são a causa das marés (...). Ou ainda, os miasmas são a causa da febre
– isto, também, não quer dizer nada, há um buraco, e algo que vem
oscilar no intervalo. Em suma, só existe causa para o que manca.
(LACAN, 1964, p.29)
Ou seja, o que ele nos aponta é que a causa diz respeito sempre a uma fenda, ou
a uma hiância. Assim, somos levados a concluir que aquilo que jaz na origem da
repetição, motivando-a, não pode ser senão algo desta ordem. Mas do que se trataria?
Acreditamos que, para responder a esta indagação, temos que nos debruçar sobre as
considerações lacanianas a respeito da tiquê.
Com relação a esta outra antiga noção grega, Lacan se serve dela para designar o
encontro do real, que, segundo ele, é precisamente “o que vige sempre por trás do
automatôn” (LACAN, 1964, p.59) – isto é, o que se mantém sempre mais-além das
articulações significantes. Explicamos a pouco esta idéia quando tratamos da noção de
das Ding, que – como vimos – é uma das formas possíveis de se falar do real. E, a partir
das considerações que traçamos a respeito dela esperamos ter conseguido esclarecer a
posição peculiar que o real ocupa em relação ao simbólico, e a qual Lacan nomeia de
extima.
Todavia, talvez fosse bom enfatizá-la, lembrando que o real é, não só o que
permanece excluído da cadeia significante, mas também em torno do quê esta mesma
cadeia gira. Ele se refere àquilo que escapa ao pensamento, ou seja, ao processo de
simbolização, na medida em que é justamente um resto da operação significante. E,
deste modo, por mais que se ponha a tentar dizê-lo, o real resiste implacavelmente na
estrutura como um ponto opaco, impedindo o seu fechamento e, por isso mesmo,
sustentando a remissão significante.
69
No referido seminário, Lacan aponta-nos esse lugar de forma bastante
interessante. Diz-nos, ele:
A repetição (Wiederholen) tem relação com a rememoração
(Erinnerung). O sujeito em sua casa, a rememorialização da biografia,
tudo isso só marcha até um certo limite, que se chama o real. (...) Um
pensamento adequado enquanto pensamento, no nível em que
estamos, evita sempre a mesma coisa. O real é aqui o que retorna
sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito, na medida em
que ele cogita (...), não o encontra (LACAN, 1964, p.55).
Mas se o real é o que permanece para além do princípio do prazer, esse resíduo
inapreensível, impossível de ser articulado em significantes, sempre contornado pela
cadeia simbólica, do que se trata a tiquê, isto é, o encontro com o real? Lacan nos dá
algumas pistas. Ele nos diz que se trata aí de um encontro essencialmente faltoso: “um
encontro marcado ao qual sempre somos chamados com um real que escapole”
(LACAN, 1964, p.59).
Ora, isso significa que a tiquê se refere, então, a um encontro impossível?
Acreditamos que não. Pois, se assim o fosse, como explicar uma situação
traumática onde o sujeito é surpreendido, como que por acaso, por um acidente, algo
que lhe escapa à compreensão e que lhe toma de angústia subitamente? E, vale lembrar
que Lacan nos aponta que a função da tiquê, do real como encontro, se apresenta
primeiro na história da psicanálise justamente sob a forma do traumatismo (LACAN,
1964, p.60).
Sendo assim, somos levados a inferir que a tiquê talvez não se refira a um
encontro impossível, mas a um encontro com o impossível, com o sem sentido que
insiste e subsiste no coração da dimensão simbólica.
Destacamos anteriormente que esse ponto ineliminável de non-sense é sempre
evitado pela rememoração, pelo desdobramento automático da cadeia (S1-S2). Todavia,
isso não implica que não se possa vir a se deparar com ele. Tal suposição, aliás, parece-
nos de acordo com o que Lacan nos diz no trecho a seguir:
Com efeito, o trauma é concebido como devendo ser tamponado pela
homeostase subjetivante que orienta todo o funcionamento definido
pelo princípio do prazer. Nossa experiência nos põe então um
problema, que se atém a que, no seio mesmo dos processos primários,
vemos conservada a insistência do trauma a se fazer lembrar a nós. O
trauma reaparece ali, com efeito, e muitas vezes com o rosto
desvelado (LACAN, 1964, p.60).
70
Para ilustrar essa experiência de irrupção do real de uma maneira bastante
simplória, tomemos como exemplo o poema de Drummond que nos serviu de epígrafe
no capítulo anterior. Se através da rememoração somos conduzidos a percorrer o mesmo
caminho e a desviar-nos da pedra que jaz no meio deste, ainda assim ocasionalmente,
como que por acidente, tropeçaremos nela – mesmo que logo depois retomemos o
passo. A pedra sempre esteve ali, no meio e à margem da trilha. A via que se traça,
aliás, a pressupõe, já que pressupõe o seu desvio. Contudo, no instante em que se
tropeça, em que se vacila, resvalando-se no real, o que se experimenta é a surpresa
diante de alguma coisa que se apresenta como totalmente imprevista. E, a cada vez em
que se tropeça ali, é sempre a mesma surpresa, como se estivesse sempre diante de algo
radicalmente novo.
Assim, é como essa experiência de tropeço, de ruptura, que podemos vislumbrar
o encontro do real. E é precisamente nestes termos que Lacan nos fala da tiquê no
seguinte trecho:
Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita,
alguma coisa se estatela. [...] O que se produz nessa hiância, no
sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado.
[...] Um achado que é [...] – a surpresa – aquilo pelo que o sujeito se
sente ultrapassado, pelo que ele acaba achando ao mesmo tempo mais
e menos do que esperava [...]. Ora, esse achado, uma vez que ele se
apresenta, é um reachado, e mais ainda, sempre prestes a escapar de
novo, instaurando a dimensão de perda (LACAN, 1964, p.32).
Mas, como se produz este evanescente achado? Como se vem a tropeçar na
pedra? Para esboçarmos uma resposta para estas indagações, julgamos interessante
voltarmos ao trauma.
O encontro traumático com o desejo do Outro
Se o encontro com o real pode aparecer sob a forma do traumatismo, parece-nos
que se faz preciso compreendermos melhor o que está em causa aí para assim também
melhor entendermos a tiquê. Já abordamos o trauma de diferentes perspectivas ao longo
deste capítulo. Vimos, por exemplo, com o Além que ele diz respeito a um excesso
pulsional que não pode ser completamente assimilado ao simbólico. Agora, vamos tratá-
lo a partir do processo de constituição do sujeito – que não é senão a experiência
traumática por excelência.
71
Com relação a este processo já fizemos alguns apontamentos. Falamos da
anterioridade do significante com relação ao sujeito e da importância daquilo que Lacan
chama em O Seminário – livro 2 (1954-1955) de “falas fundadoras” que vão
paulatinamente situando o sujeito no campo do Outro, antes mesmo dele chegar ao
mundo. É precisamente nesta operação, nomeada por Lacan de alienação, de inscrição
do sujeito num universo simbólico que o precede, que se inicia o processo de causação
do sujeito. Trata-se aí, com efeito, do nascimento do sujeito no lugar do Outro,
identificado ao significante unário (S1), que assinala uma posição singular que lhe foi
designada dentro da estrutura simbólica.
No instante em que o sujeito desponta, identificando-se, aderindo, a um
significante do Outro, Lacan afirma que ele se petrifica; ele se reduz a não ser mais do
que um significante. O que implica em dois efeitos concomitantes a este. O primeiro é
que nesse mesmo movimento em que se coagula em significante, ele é convocado a
funcionar como sujeito. E o segundo é o seu desaparecimento sob a ação do significante
– efeito que Lacan (1964) denominou de fading ou afânise.
Como podemos entender isso? Quando o vivo deixa-se capturar pelo significante
unário (também denominado de significante-mestre), isso implica uma perda: ele perde
o seu ser, uma vez que o significante não é senão a insígnia de uma ausência. Por isso,
aliás, entendemos que Lacan afirma que o sujeito se resume, então, a não ser mais que
um significante. Por outro lado, é justamente graças a esta falta-a-ser aí instaurada que o
significante unário pode representá-lo para outro significante, e o sujeito passar a
funcionar como tal, isto é, como sujeito de linguagem, dividido entre S1 e S2. E, como
nos aponta Lacan, é nesse momento mesmo no qual ele é representado no Outro, pelo
remetimento ao significante binário (S2), que se dá a sua afânise. Em suas palavras:
nesse primeiro acasalamento significante (...) o sujeito aparece
primeiro no Outro, no que o primeiro significante, o significante
unário, surge no campo do Outro, e no que ele representa o sujeito,
para um outro significante, o qual (...) tem por efeito a afânise do
sujeito. Donde, divisão do sujeito – quando o sujeito aparece em
algum lugar como sentido, em outro lugar ele se manifesta como
fading, como desaparecimento (LACAN, 1964, p.213).
Diante disso, podemos compreender que há uma impossibilidade do sujeito se
representar por completo na linguagem pela própria estrutura do significante. O sujeito
72
só poderá aparecer no campo do sentido, como efeito de significação, apagando-se20
.
Isso implica que a cada vez que o sujeito tentar se encontrar no Outro, ele só conseguirá
fazê-lo parcialmente. Pois algo sempre lhe escapará. E este „algo‟, como colocamos, não
é senão seu próprio ser, que, pela ação mesma da função significante, cai no non-sense.
Esta impossibilidade de se apreender totalmente no discurso do Outro tem como
conseqüência imediata lançar o sujeito num deslocamento infinito da cadeia
significante. Assim, é que Lacan nos dirá que:
pelo efeito de fala, o sujeito se realiza sempre no Outro, mas ele aí já
não persegue mais que uma metade de si mesmo. Ele só achará seu
desejo sempre mais dividido, pulverizável, na destacável metonímia
da fala. (...) É por isso que ele precisa sair disso, tirar-se disso, e no
„tirar-se disso‟, no fim, ele saberá que o Outro real tem, tanto quanto
ele, que se tirar disso, que se safar disso (LACAN, 1964, p.184).
A operação pela qual o sujeito deve “tirar-se disso”, isto é, através da qual ele
deve se desprender do Outro, é denominada por Lacan de separação, e constitui o
segundo tempo do processo de causação do sujeito. É a partir desta operação que será
possível ao sujeito se fazer existir como ser fora do Outro – idéia evocada pela escansão
do termo latino “separare” promovida por Lacan: “separare, separar, conclui-se aqui em
se parere, gerar a si mesmo” (LACAN, 1964b, p. 857)
Mas, a questão que se coloca é: como o sujeito se tira disso? O que o motiva a
sair, a se desprender da cadeia significante na qual ele se encontra alienado?
Curiosamente, o que tem o potencial de motivá-lo a sair desse “círculo infernal
da demanda do Outro” (EIDELSZTEIN, 1995, p.71), característico da alienação, não é
senão à própria demanda naquilo que ela aponta um mais além do Outro (A), isto é, para
uma carência no Outro.
Uma falta é, pelo sujeito, encontrada no Outro, na intimação mesma
que lhe faz o Outro por seu discurso. Nos intervalos do discurso do
Outro, surge na experiência da criança, o seguinte, que é radicalmente
destacável – ele me diz isso, mas o que é que ele quer? Nesse intervalo
cortando os significantes, que faz parte da estrutura mesma do
significante, está a morada do que, em outros registros de meu
desenvolvimento, chamei de metonímia. É de lá que foge como o
furão, o que chamamos desejo. O desejo do Outro é apreendido pelo
sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso do Outro, e todos
os por quês? da criança testemunham […] um por que será que você
20
Nesse sentido, podemos inferir que para que haja alienação, não basta que o significante venha do
Outro. É preciso também uma concatenação. É a articulação produtora de sentido que gera a alienação, o
sujeito capturado na teia significante e apagado no processo de representação que teve lugar no campo do
Outro.
73
me diz isso? […], que é o enigma do desejo do adulto (LACAN, 1964,
p. 209).
Assim, podemos compreender que o sujeito encontra o desejo do Outro ao
experimentar que algo falta em sua fala. Isto é, que há alguma coisa por trás (ou para
além) do seu discurso que não pode ser expressa em palavras, pois nem tudo é dito no
Outro21
. “É por isso que Lacan diz que o desejo é metonímia, algo que desliza na fala,
mas que é impossível de se capturar” (SOLER, 1997, p. 63). Esta impossibilidade de se
capturar, de se apreender, o que seria o desejo do Outro é justamente o que lhe dá esse
caráter de enigma (apontado na passagem acima), porquanto ele permanece sempre
como indecifrável para o sujeito.
E como este encontro faz com que o sujeito se desprenda (momentaneamente)
da cadeia significante na qual permanece enredado entre as remissões de sentido? É que
ao se defrontar com essa questão o sujeito experimenta que existe algo nele que não se
resume a significantes. Afinal, se suponho que o Outro quer alguma coisa para além do
que me pede é porque há algo em mim mais do que eu, que não corresponde a nenhum
dos significantes através dos quais eu me represento no Outro. E é isso que ele
(supostamente) deseja.
Já havíamos dito que no processo de representação do sujeito no Outro algo do
sujeito fica de fora, e que ele visa recuperar através da remissão significante: o seu ser
em falta. E, agora, se torna possível compreender que, quando da separação, ao se
confrontar que existe algo nele mais do que ele, é justamente com seu ser que o sujeito
se confronta. Neste átimo, portanto, não é como efeito de significação que o sujeito se
apreende, mas justamente como este furo no Outro. Quer dizer, ao se defrontar com o
enigma do desejo do Outro, com aquilo que há de intervalar em sua demanda e que
permanece velado pelo deslocamento automático da cadeia, é com o resto que escapa a
rede de significações do Outro que o sujeito se identifica. É naquilo que há no Outro de
inassimilável, de sem-sentido, de opaco que ele se reconhece de relance. É importante
reter esta idéia, pois ela será indispensável para entendermos o encontro com real.
21
Aqui, podemos notar, portanto, que o Outro presente na separação não é o mesmo daquele que se trata
na alienação. Afinal, nesse segundo tempo, o sujeito não se depara com um Outro cheio, repleto, de
significantes, mas sim com um Outro incompleto, furado: um Outro a quem falta algo. Ou seja, se através
da alienação teremos um sujeito barrado como produto da incidência do significante, na separação, como
vemos, é no Outro que deverá ser colocada a barra. Sem um indício de sua insuficiência, a separação não
poderá se concretizar.
74
Antes, contudo, de fazermos esta articulação, julgamos ser digno de nota apontar
em que medida este encontro, este primeiro encontro com o desejo do Outro, é
necessariamente estruturante.
Dissemos anteriormente que diante deste enigma o sujeito se reconhece de
relance neste ponto opaco no Outro, mas esta posição é insustentável. E a palavra
“relance”, aqui, vem a calhar justamente porque ela evoca uma olhadela muito rápida –
num abrir e fechar de olhos –, mas porque também nos remete a idéia de ser relançado.
E, neste caso, é precisamente o que acontece: o sujeito é logo relançado no deslizamento
metonímico da cadeia, na tentativa de compreender, de dar um sentido a este enigma,
apropriando-se, para isso, dos significantes que nele se depositaram a partir das
demandas, do discurso do Outro. O que se passa aí é que o sujeito começa a construir
sua a fantasia fundamental, a fantasia do lugar que ele teria ocupado enquanto objeto no
desejo do Outro. Ou seja, é, pois, com os significantes da demanda do Outro, que lhe
servem então de coordenadas, que ele circunscreverá esse lugar, mas sem nunca
conseguir dizê-lo.
Ao começar a circunscrevê-lo com esses significantes, o que o sujeito está
fazendo é dando um contorno ao seu ser: aquilo que ele supõe que o Outro deseja dele
como objeto para se completar. Interessante notar com relação a isto, que é
precisamente neste movimento de cerzir uma resposta para esta questão impossível que
o sujeito se constitui enquanto ser desejante – o que é o mesmo que dizer enquanto
objeto desejante. Por quê? Porque aquilo que instiga o sujeito neste movimento que dará
contorno ao seu ser não é senão o desejo de ser este objeto desejado pelo Outro. É
assim, portanto, nesse esforço de fazer coincidir as duas faltas, a do Outro e a sua, que o
desejo do Outro começa a funcionar como causa do desejo do sujeito. E, por isso é que
se pode dizer que é como Outro que se deseja. Pois é a partir desse lugar de objeto que o
sujeito, em sua fantasia, imagina ter ocupado no desejo do Outro que ele começa a
desejar.
Nesse sentido é que se pode afirmar, então, que este encontro traumático
primeiro com o desejo do Outro é estruturante, pois é a partir dele que a causa acidental
do sujeito é nele introduzida através da construção da fantasia que dará suporte ao seu
desejo, e enquadre a realidade.
Acreditamos que era importante tecermos estas considerações porquanto
suspeitamos que elas poder-nos-ão ser de grande ajuda em nosso terceiro capítulo. Mas,
75
cabe, agora, voltarmos à questão que havíamos deixado em suspenso com relação ao
encontro com o real.
Ora, se vimos anteriormente que o encontro com o real se refere precisamente ao
encontro com isso que resta de radicalmente sem-sentido na cadeia significante, mas
que a parasita em seus intervalos, agora acreditamos estar em condições de inferir que o
encontro com o real não diz senão do encontro com esse enigma do desejo do Outro,
quando o sujeito perde a possibilidade de se representar como sentido e confronta-se,
num abrir e fechar de olhos, com a opacidade de seu ser.
Diante disto, pensamos que podemos responder a questão que nos colocamos
antes a respeito de como se tropeça no real: a cada vez que – parafraseando Clarice
Lispector –, por um tremor de linhas, por uma pequena vacilação na continuidade
ininterrupta da cadeia significante, abre-se uma brecha no Outro e eu perco a
possibilidade de me representar como sentido, é o real que aparece. Toda vez que eu
cometo um ato falho, por exemplo – se ele se apresenta como tal, quer dizer, se ele me
faz algum enigma –, eu tenho um encontro com real. Mas, no momento seguinte em que
já lhe confiro um sentido, isto é, que eu retomo o passo e volto a me alienar no Outro, o
real escapole novamente.
Sobre a tiquê, acreditamos que falta-nos ainda sublinhar um aspecto que talvez
não tenha ficado tão claro. Todo o tempo em que tratamos deste encontro, o tratamos
sempre como um encontro da ordem da negatividade, sempre nos referindo a ele como
encontro com uma falta de sentido, ou com um furo do Outro. Contudo, esse encontro
não é apenas da ordem do negativo. Há algo de positivo nele e que não ficou claro
nessas considerações porque privilegiamos pensá-lo a partir do simbólico, da estrutura,
onde, com efeito, o real não passa de um lugar vazio. Porém, se voltarmos, uma vez
mais, ao Além do Princípio do Prazer, veremos que este encontro também comporta
algo de positivo, algo da ordem de um a mais, de um excedente pulsional. No encontro
com real, não é apenas o furo no simbólico que se apresenta, mas também por trás dele
insinua-se uma estranha presença, que até então permanecia velada. É para isto, aliás,
que parece nos lembrar Lacan ao afirmar com relação à tiquê que:
O real pode ser representado pelo acidente, pelo barulhinho, a pouca-
realidade, que testemunha que não estamos sonhando. Mas, por outro
lado, essa realidade não é pouca, pois o que nos desperta é a outra
realidade escondida por trás da falta de representação – é o Trieb
(LACAN, 1964, p.64).
76
CAPÍTULO 3
REPETIÇÃO E EXPERIÊNCIA ANALÍTICA
Nenhuma práxis, mais do que a análise, é orientada para aquilo
que, no coração da experiência, é o núcleo do real.
J. Lacan22
3.1
Repetição e transferência na obra freudiana
Nos primeiros dois primeiros capítulos de nossa pesquisa nos detivemos em
examinar o conceito de repetição, buscando elucidar o que leva o sujeito a reviver em
sua história os mesmos enredos e, muitas vezes, a partir deles, os mesmos desencontros.
Através dessa investigação inicial, privilegiamos, portanto, compreender o que estaria
em jogo de um modo geral na repetição – ou seja, como e porque se é conduzido a
repetir, de maneira aparentemente inescrutável, um determinado destino.
Pouco falamos, no entanto, da repetição em relação a experiência de uma
análise, que é precisamente onde reside a questão que nos incita a trabalhar. A seguir, é
a esta tarefa que vamos nos dedicar. Para tanto, começaremos com os artigos
freudianos, onde podemos notar – como veremos – uma articulação tão forte entre os
conceitos de repetição e de transferência, que se pode ter a impressão que o pai da
psicanálise subsume o segundo ao primeiro, como se a transferência nada mais fosse
senão uma forma bastante particular de manifestação da repetição.
Aliás, em um de seus artigos técnicos, Recordar, Repetir e Elaborar (1914),
onde se dedica pela primeira vez a teorizar sobre a repetição, é isto mesmo que ele
parece nos sugerir, ao afirmar categoricamente ali que: “a transferência é, ela própria,
apenas um fragmento da repetição” (FREUD, 1914, p.197).
Mas será que ela se resume a isso? Afinal, como problematiza Bernardes (2003):
Se a transferência só repete, como conceber que a experiência
[analítica] conduza a uma saída diferente da neurótica? Como obter
uma mudança na posição subjetiva se a repetição se impõe? O
22
Lacan, 1964, p.58.
77
trabalho de transferência deve promover algo de novo [...]
(BERNARDES, 2003, p.52).
Esta é, com efeito, nossa suposição também. Contudo, entendemos que, antes de
nos aventurarmos a tentar desvendar o que há na transferência que a difere da repetição,
é importante perquirirmos justamente o que Freud reconhece que existe de repetição na
transferência. Quer dizer, se este conclui que ela é repetição, então, o que ele pressupõe
que ela repete?
Analisando alguns de seus escritos técnicos, ousamos dizer que Freud nos oferta
duas explicações distintas para a pergunta que nos colocamos acima. Distintas, vale
ressaltar, mas não contraditórias ou excludentes. E que, ademais, podem ser muito bem
articuladas com suas teorizações ulteriores acerca deste tema, encontradas em Além do
Princípio do Prazer (1920). Vejamos quais são elas e como é possível pensá-las à luz
das considerações deste texto.
Sobre a dinâmica da transferência
A primeira vez que a palavra Ubertrangung (transferência) aparece na obra
freudiana foi no texto A Interpretação dos Sonhos (1900), mais precisamente no
capítulo VII. Ali, Freud emprega este termo para se referir, a propósito da elaboração
onírica, ao processo de deslocamento por meio do qual um desejo inconsciente,
originalmente ligado a uma representação recalcada, poderia se exprimir e se disfarçar,
apropriando-se de conteúdos recentes fornecidos pelo pré-consciente, em especial
daqueles provindos do dia anterior. Segundo Freud (1900), esses restos diurnos
utilizados no sonho se caracterizam por serem representações anódinas, esvaziadas de
sentido, das quais se apodera o desejo para carregar e dotar de uma nova significação.
Ora, neste momento o que se apresenta, então, é uma concepção ainda muito
geral de transferência, já que esse trabalho de apropriação e revestimento de um
significante anódino pelo desejo (condição de possibilidade para sua aceitação na
consciência) é aquilo mesmo que caracteriza o processo geral das formações do
inconsciente.
É possível observar que será somente após o caso Dora, relatado e debatido no
artigo Fragmentos de Análise de um Caso de Histeria (1905), que este termo começará
a ganhar alguma especificidade, se aproximando daquilo que conhecemos no meio
psicanalítico sob o conceito de transferência. No pós-escrito desse texto, aliás,
78
encontramos um primeiro esboço de definição, que em muito se assemelha àquela que
nos será dada nos artigos sobre a técnica. Diz-nos Freud:
O que são as transferências? São reedições, reproduções das moções e
fantasias que, durante o avanço da análise, soam despertar-se e tornar-
se conscientes, mas com a característica (própria do gênero) de
substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico. (FREUD, 1905,
p.107)
Ou seja, é a partir daqui que este termo passará a ser utilizado para designar o
momento em que o desejo do paciente se aferra não a qualquer significante, mas a um
bastante particular: o significante do analista. Miller (1987) ressalta a importância dessa
nova acepção freudiana de transferência ao apontar-nos que ela “já implica […]
precisamente que não há exterioridade do analista em relação ao inconsciente” (p.60),
ou, nas palavras de Lacan (1964), que “a presença do analista é ela própria uma
manifestação do inconsciente” (p.125).
A despeito do contorno um pouco mais preciso dado em 1905, será no artigo A
Dinâmica da Transferência (1912) que esta noção receberá toda relevância teórica que
atribuímos a ela hoje, e se estabelecerá formalmente enquanto um conceito. Não como
um conceito qualquer, diga-se de passagem, mas como àquele que define “o modus
operandi da psicanálise, a mola mestre da cura, seu motor terapêutico e o próprio
princípio de seu poder” (MILLER, 1987, p.56).
Ademais, é nesse artigo também que podemos começar a vislumbrar em que
medida o conceito de transferência em Freud permanece indissociavelmente imbricado
ao de repetição. Vejamos como ele nos deixa entrever esta imbricação, aqui.
Freud abre este texto nos dizendo que cada pessoa apresenta um modo
específico próprio de conduzir-se na vida erótica, determinado pelas condições que
regem seu enamoramento, por quais pulsões visa satisfazer e pelos alvos que estabelece.
E, mais importante: que esta maneira singular de portar-se nas relações amorosas
produziria, então, clichês estereotípicos que seriam constantemente repetidos pelo
sujeito ao longo de sua vida.
Para a construção desses estereótipos, que levam o indivíduo a se aproximar de
cada nova pessoa com expectativas libidinais antecipadas, faz-se necessário – supõe
Freud – que parte dos impulsos sexuais do sujeito direcionados para objetos reais tenha
sido frustrada. Como resultado, esta cota libidinal insatisfeita sofre um processo de
introversão, através do qual o sujeito retira o investimento erótico dos objetos da
79
realidade, passando a destiná-los aos objetos na fantasia (inconsciente), onde
permanecerá então retida. Podemos, então, pensar que as fantasias são os próprios
clichês, formas fixas de o sujeito obter satisfação na relação com os objetos.
Quanto a este processo de introversão, Freud nos adverte que ele é precondição
indispensável para o desencadeamento de toda neurose, e que a parcela da libido que se
encontra fixada e disponível no inconsciente, em conseqüência do mesmo, é
precisamente o que explica a irrupção da transferência. Afinal, como pontua, “é
perfeitamente normal e inteligível que a catexia libidinal de alguém que se acha
parcialmente insatisfeito, uma catexia que se acha pronta por antecipação, dirija-se
também para a figura do médico” (FREUD, 1912, p.134).
Nesse sentido, a transferência pode ser definida aqui como o momento em que o
analista é capturado por um desses clichês, sendo introduzido numa das séries psíquicas
já formadas pelo analisante e tornando-se alvo de seu investimento erótico. Isto é, ela se
refere à ocasião na qual o paciente repete com o analista suas formas singulares de se
relacionar com seus objetos de amor e de gozar com eles.
Esta seria, então, a primeira explicação que Freud nos oferta como resposta à
questão “o que a transferência repete?”.
Mas, o que mais nos diz ele a respeito da transferência, aqui? Como Freud
explica a irrupção desta? Bem, já sabemos que há uma predisposição do neurótico para
transferir, graças ao processo de frustração e de introversão da libido, mas de que
maneira e em que momento do tratamento, se daria a sua eclosão? Além disso, quais as
conseqüências da re-atualização desses protótipos amorosos para o progresso do
tratamento? Quer dizer, qual seria o papel desempenhado pela transferência no processo
de cura?
O que Freud faz questão de sublinhar neste artigo é que “a transferência surge
como a resistência mais poderosa ao tratamento” (FREUD, 1912, p.135). Contudo,
ainda assim, inevitável. Nem médico, nem paciente podem impedir a sua eclosão, pois
ela é provocada pelo próprio dispositivo analítico.
Mais precisamente, Freud admite que o investimento libidinal no analista se dá
como conseqüência imediata do próprio método psicanalítico: a associação-livre. Isso
porque através dela, nada mais se requisita do paciente senão que ele produza derivados
do recalcado, que, em conseqüência de sua distância ou de sua distorção em relação ao
núcleo patológico, logrem driblar a censura da consciência (FREUD, 1915a). Assim, no
desfiar associativo, o que acontece é que se torna possível rastrear, partindo de uma
80
representação consciente do complexo patogênico (sob a forma de sintoma, por
exemplo), a libido que, pelo processo de introversão, entrou em curso regressivo.
Porém, nesse trabalho investigativo inevitavelmente chega-se a uma região muito
próxima ao esconderijo onde a libido permanece retida. E é, então, nesse momento que
“todas as forças que fizeram a libido regredir erguer-se-ão como resistências ao trabalho
de análise” (FREUD, 1912, p.137), e que a transferência entra em cena: “Quando algo
no material complexivo serve para ser transferido para a figura do médico, essa
transferência é realizada; [...] e se anuncia por sinais de resistência – por uma
interrupção, por exemplo” (FREUD, 1912, p.138).
Todavia, convém ressaltar que se por um lado Freud admite que a transferência
serve muito bem aos propósitos da resistência, ainda assim isto não a impede de ser o
instrumento mais poderoso de que dispõe o analista em favor do progresso do
tratamento. Pois, são precisamente os fenômenos transferenciais que “prestam o
inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e
esquecidos do paciente; porque, no fim das contas, ninguém pode ser executado in
absentia ou in effigie” (FREUD, 1912, p.143).
Disso podemos concluir que repetir sua forma singular de amar em análise é
condição sine qua non para o tratamento porquanto é por meio dessa repetição que se
evidencia a satisfação, o gozo daí retirado, mas que permanece completamente
ignorado, estranho ao sujeito. E, mais, torna-se possível inferirmos que se é
indispensável que esta satisfação se faça presente é somente na medida em que deve ser
precisamente neste nível, isto é, no nível da pulsão que devem incidir as intervenções do
analista.
Agieren
Passemos, agora, a investigar a segunda resposta que podemos encontrar nos
artigos técnicos freudianos acerca da repetição na transferência. Para isso, voltemo-nos
ao texto em que Freud nos introduz pela primeira vez o conceito de repetição, qual seja,
o artigo Recordar, repetir e elaborar (1914).
Freud inicia o texto promovendo uma breve recapitulação das diferentes
abordagens metodológicas que marcaram a história do movimento psicanalítico, e
ratificando, uma vez mais, o desígnio comum a todas elas, qual seja: "descritivamente
falando, trata-se de preencher lacunas na memória; dinamicamente, é superar
81
resistências devidas ao recalque" (FREUD, 1914, p.193). Contudo, linhas adiante, ele
surpreende seu leitor, adicionando uma assertiva acerca da impossibilidade de se reaver
a totalidade das lembranças recalcadas. De modo mais específico, ele admite que
haveria uma sorte especial de experiências que teriam ocorrido na infância remota do
sujeito sobre as quais recordação alguma, via-de-regra, poderia ser recuperada. E, a
respeito de tais experiências, constata:
podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que
esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it
out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação, repete-o,
sem, naturalmente, saber que o está repetindo (FREUD, 1914, p.197).
Sobre este ímpeto a repetir determinados conteúdos inconscientes pela via da
atuação, Freud nos diz também que ele é inerente ao tratamento analítico. Nem o
analista, nem mesmo sequer o paciente poderiam impedir a sua manifestação. E, assim,
conclui ele, “compreendemos que esta é a sua maneira de recordar" (idem).
Quer dizer, a repetição é concebida aqui, justamente, como uma alternativa à
recordação de tais experiências; uma outra maneira do paciente reproduzir certos
conteúdos recalcados, que não através da lembrança, mas, sim, revivendo-os em ação,
atuando-os sob a forma de conflitos atuais. O paciente repete-os ao invés de recordá-los
– ao contrário do que preferiria ver o médico.
Segundo Freud, isso ocorre diversas vezes no decorrer da análise, a cada
momento em que esta progride e aproxima-se do conteúdo recalcado. É nessas ocasiões,
pois, que a resistência incide com toda a sua força e passa a determinar o material que
não deve ser recordado pelo paciente, e sim repetido. Quanto maior a resistência, mais a
atuação (repetição) substituirá a recordação verbal e, logo, “aprendemos que o paciente
repete [..] sob as condições da resistência” (FREUD, 1914, p.198).
Dessa forma, podemos compreender que, em seu primeiro esforço de
conceituação da repetição, Freud a apreende como mais um dos diversos obstáculos
que, a serviço da resistência, podem se opor ao progresso da análise e ao alcance do
objetivo final desta, qual seja, a rememoração. No entanto, convém ressaltar, ele não vê
nessa impossibilidade de atingir o “recordar ideal” (FREUD, 1914, p.197) um entrave
intransponível à cura. Pois, se por um lado, reconhece que o uso da repetição pelas
resistências pode dificultar esse processo, por outro, admite também que é somente por
meio da transferência – a qual não é senão “um fragmento da repetição” (idem) – que a
cura poderia advir.
82
Sendo assim, torna-se possível inferir agora que a outra forma de responder, a
partir dos artigos técnicos, à questão que nos fizemos no início deste capítulo é esta: que
na transferência o analisante repete em ato (Agieren) determinadas experiências que não
podem ser evocadas pela rememoração.
No referido artigo, contudo, Freud não tece maiores considerações sobre que
sorte de experiência seria esta. Porém, se recorrermos às elaborações anteriores, é
possível vislumbrar que ela só pode dizer respeito a uma experiência de cunho
amoroso/sexual.
E, com efeito, é exatamente isso que ele parece inferir em 1920, em Além do
Princípio do Prazer, quando retorna a investigar essa questão. Desta vez, como vimos, à
luz de novos problemas envolvendo a compulsão à repetição. Neste texto, ele nos
aponta que aquilo que é repetido pelo analisante na transferência ao invés de ser
recordado através de associações diz respeito mesmo a uma experiência amorosa. Mas
também traumática – sendo justamente por isso que ela escapa a qualquer tentativa de
simbolização.
Aqui, se evidencia, portanto, uma diferença essencial entre essa formulação da
década de 20 e a anterior. Se em 1914, Freud entendia que aquilo que se repete na
transferência é da ordem do recalcado (uma lembrança recalcada), em Além do
Princípio do Prazer ele nos deixa entrever que isso que se atualiza na transferência é
independente da ação do recalque propriamente dito porquanto não chegou nem mesmo
a ser simbolizado.
Trata-se, segundo Freud, da situação na qual o laço afetivo que liga a criança à
mãe sucumbe ao desapontamento. Sucumbe – poderíamos completar –, a partir da
intromissão de um terceiro termo: a figura paterna, que, colocando uma barra sobre o
desejo da mãe, marca o fim da completude imaginária, na qual mãe e bebê estariam
supostamente unidos, resultando na chamada “fratura narcísica”. Dizemos
„supostamente‟ porque, com efeito, esta completude imaginária só pode ser pensada a
posteriori, após a incidência da castração.
Com isso, podemos entender que aquilo que se atualiza na relação transferencial
é a impossibilidade de satisfação chancelada pelo interdito paterno – ou, dito de outra
forma, pela incidência da lei – que caracteriza o declínio do complexo de Édipo. Quer
dizer, repete-se na transferência, portanto, o fracasso, o desencontro.
83
A regra da abstinência
Nesse momento de nossa investigação, acreditamos que seja interessante
fazermos uma breve reflexão a respeito da novidade que Freud introduz em 1920 acerca
da repetição que se dá sob transferência, relacionando-a com as considerações que ele
faz sobre a maneira que o analista deve se posicionar diante do amor transferencial no
artigo Observações sobre o amor de transferência (1915[1914]).
Neste texto, vale lembrar, Freud faz questão de sublinhar que ainda que o amor
de transferência seja suscitado pelo dispositivo analítico e definitivamente não se deva
aos encantos pessoais do analista, este amor é tão genuíno quanto qualquer outro. Diz-
nos, ele:
É verdade que o amor [de transferência] consiste em novas edições de
antigas características e que ele repete reações infantis. Mas este é o
caráter essencial de todo estado amoroso. Não existe estado deste tipo
que não reproduza protótipos infantis. [...] O amor transferencial
possui talvez um grau menor de liberdade que o amor que aparece na
vida comum e é chamado de normal [...] (FREUD, 1915[1914], p.218)
Menor grau de liberdade, justamente porque a resistência intensifica este amor e
agrava suas manifestações, “a fim de justificar ainda mais enfaticamente o
funcionamento do recalque” (FREUD, 1915[1914], p.212), e assim estorvar a
continuidade do tratamento.
Freud nos diz, ainda, que este acirramento do estado amoroso pela resistência
leva a irrupção na transferência de uma apaixonada exigência de amor que visa destituir
o analista da sua posição de autoridade e rebaixá-lo à condição de amante23
. Isto, porém,
caso viesse a acontecer, destruiria toda e qualquer suscetibilidade do analisante às
intervenções do analista.
É nesse sentido, portanto, que Freud infere que a delicada postura que o analista
deve manter frente à eclosão dessas demandas de amor é a de não satisfazê-las, mas
tampouco suprimi-las. Constata, ele:
Instigar a paciente a suprimir, renunciar ou sublimar suas pulsões [...]
seria, não uma maneira analítica de lidar com eles, mas uma maneira
insensata. Seria exatamente como se, após invocar um espírito dos
infernos, [...] devêssemos mandá-lo de volta para baixo, sem lhe haver
feito nenhuma pergunta. (FREUD, 1915[1914], p.213).
23
Essa idéia, como veremos, está em profunda consonância com o que Lacan irá teorizar a respeito da
transferência em O Seminário – livro 8 (1960-1961), a partir do diálogo platônico O Banquete.
84
Por outro lado, o pai da psicanálise insiste que o analista não deve atender às
demandas de amor do analisante. É preciso que ele “negue à paciente que anseia por
amor a satisfação que ele exige. O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência”
(FREUD, 1915[1914], p.214).
Aqui, é onde queríamos chegar. Pois acreditamos que é somente na medida em
que o analista se recusa a atender essas exigências de amor que lhe são endereçadas pelo
paciente que este último pode atualizar em transferência a impossibilidade atestada pela
incidência da castração. Ou seja, entendemos que é precisamente porque o tratamento é
conduzido na abstinência que pode haver sob transferência a repetição do desencontro,
do traumático. Do contrário, como em qualquer outra relação amorosa, o paciente
velaria este impossível através da ilusão imaginária de completude que a reciprocidade
lhe permite alimentar.
Assim, o que tentamos apontar, aqui, é que, apesar de Freud nos sugerir em 1920
que na transferência se repete este desencontro, somos levados a inferir a partir de suas
considerações mesmas que, com efeito, seria mais preciso se afirmássemos que a
transferência pode levar à esta repetição, mediante o manejo do analista. Afinal, se
pensarmos em sua face de resistência, qual seja: a do amor de transferência, esta, pelo
contrário, não faz senão justamente tentar evitá-lo.
E por que nos parece interessante fazer a articulação entre essas idéias? Porque
Freud nos aponta, neste artigo técnico, que é precisamente a sustentação deste estado de
desejo decorrente da recusa do analista em atender as demandas do paciente aquilo
mesmo que possibilita em análise o engendramento de algo novo. Em suas palavras: “se
deve permitir que a necessidade e anseio da paciente nela persistam, a fim de poderem
servir de forças que incitem a trabalhar e efetuar mudanças” (FREUD, 1915[1914],
p.214).
Através dessas considerações, acreditamos que algumas questões se esclarecem.
Primeiro, revela-se que o amor de transferência, como qualquer outro amor, traz em seu
bojo a cicatriz de um desencontro originário, qual seja, a cicatriz narcísica. E que foi
justamente este primeiro desencontro o que fixou as precondições para amar e gozar
próprias a cada sujeito, repetidas não apenas na experiência analítica, mas como vida a
fora por ele. Assim, as demandas que este endereça ao seu analista, por mais diversas
que sejam, são as mesmas que ele endereçaria a qualquer outro parceiro sexual. E, nesse
sentido, podemos compreender também que é por meio delas que o analista poderá ter
acesso à fantasia do sujeito que rege seu modo singular de enamoramento. O que, como
85
nos aponta Freud, é indispensável ao tratamento, uma vez que “o trabalho [de análise]
visa [...] desvendar a escolha objetal da paciente e as fantasias tecidas ao redor dela”
(FREUD, 1915[1914], p.217).
Em segundo lugar, podemos inferir ainda que a diferença entre este amor e os
demais não reside, portanto, na postura do amante frente ao seu novo objeto de amor,
mas sim daquele que foi eleito para ocupar esta posição, ou seja, o analista, que não
deverá responder nem positiva nem negativamente às exigências amorosas do sujeito. E
isto, como vimos, parece ser precisamente o que possibilita que a transferência conduza
não apenas ao retorno circular dessas demandas, mas também, mais além delas, à
repetição deste encontro faltoso, a partir do qual, como Freud parece nos sugerir, seria
possível então aceder ao novo.
3.2.
Considerações sobre o conceito de transferência em Lacan
No tópico anterior nos debruçamos sobre a transferência em Freud a partir de
sua articulação com o conceito de repetição. A seguir, nos deteremos em algumas
formalizações lacanianas a respeito do conceito de transferência. Para tanto,
privilegiamos abordá-la através das noções de sujeito-suposto-saber e agalma.
Entendemos que elas não esgotam, nem de longe, o debate sobre esta noção. Mas,
acreditamos que, ainda assim, elas podem nos ajudar a pensar a transferência sem
reduzi-la à repetição.
Através do exame dessas noções, buscamos entender o que está em jogo na
transferência a fim de pensarmos qual deverá ser a posição do analista de modo a
possibilitar a emergência do novo a partir da repetição.
Sujeito-suposto-saber
Uma das primeiras referências que Lacan faz à noção de sujeito-suposto-saber
pode ser encontrada numa nota de rodapé, acrescentada em 1966 ao escrito Função e
campo da fala e da linguagem (1953), em relação a uma frase na qual afirma que a
entrada em análise é correlata a um erro subjetivo: “o sujeito crê que sua verdade está
dada em nós [analistas], que a conhecemos de antemão” (LACAN, 1953, p.309).
86
Em ocasião desse escrito, Lacan postula ainda que é neste equívoco que
podemos encontrar a razão dos efeitos que constituem a transferência. E, se ele não o
associa no corpo do texto à noção de sujeito-suposto-saber, porquanto ainda não a havia
formulado, a nota adicionada mais de dez anos depois vem para fazê-lo. Nela, ele
admite que a passagem acima citada define justamente aquilo que “designamos como o
suporte da transferência: nomeadamente, o sujeito suposto saber” (idem).
Diante dessa formulação inicial, poderíamos ser levados apressadamente a
inferir que Lacan concebe o sujeito-suposto-saber como um fenômeno ilusório apenas,
mediante o qual o paciente imputa a pessoa do analista um saber que ele não detém.
Contudo, entendemos que a despeito deste fenômeno se fazer (quase sempre) presente
na relação transferencial, essa ilusão não constitui o cerne da função do sujeito-suposto-
saber. Aliás, parece-nos que é precisamente para nos livrar deste engodo que Lacan faz
questão de sublinhar que:
O sujeito suposto saber, fundando os fenômenos de transferência, não
traz nenhuma certeza ao analisante de que o analista saiba muito –
longe disso! O sujeito suposto saber é perfeitamente compatível com o
fato de ser concebível pelo analisante que o saber do analista seja bem
duvidoso (LACAN apud QUINET, 1991, p.28).
Ora, no que consiste então essa suposição imanente ao estabelecimento da
transferência, se o sujeito-suposto-saber pode operar ainda que o paciente duvide do
saber do analista? E de que maneira se dá essa operação?
Tentaremos, inicialmente, responder a esta primeira pergunta. Sobre isso, Miller
nos diz que esta suposição não se refere a um sentimento alimentado pelo sujeito: “trata-
se de uma suposição de estrutura [...]. Isso é difícil de entender [...] porque existe a
tendência a confundir, a que se superponha a dimensão fenomênica e a dimensão
estrutural” (MILLER, 1987, p.75).
Todavia, é importante que não as confundamos. E, para tanto, julgamos
necessário recordar que a estrutura se refere à ordem simbólica, isto é, ao campo da
linguagem e à função da fala. O que já nos leva a inferir que essa suposição não se
relaciona ao outro especular – no caso, à pessoa do analista –, mas sim ao Outro (A),
lugar significante a partir do qual o sujeito se constitui e para onde sua fala se endereça
a fim de receber sua significação.
Assim, podemos deduzir que se há uma suposição de estrutura presente na
instauração do sujeito-suposto-saber, ela se relaciona com a crença colocada de antemão
87
por todo ser falante, em seu próprio ato de fala, simplesmente por falar, de que isso que
se enuncia vai encontrar um sentido, uma interpretação alhures. Quer dizer, a suposição
de que a minha fala receberá seu significado [s(A)] através do Outro (A). O que, aliás,
nos deixa entrever que toda fala não é senão também demanda: demanda de sentido ao
Outro.
Diante disso, se evidencia que ainda que esta suposição, com efeito, esteja
presente na função do sujeito-suposto-saber, ela não a explica por completo. O sujeito-
suposto-saber não pode se reduzir à crença no Outro. Pois, afinal, se o próprio ato de
fala já pressupõe o endereçamento ao Outro, logo, esta crença se faz presente sempre,
ainda que nem se desconfie disto. Aliás, acreditamos que é por isso que Lacan irá fazer
questão de sublinhar que:
O Outro, latente ou não, está desde antes, presente na revelação
subjetiva. (...) A interpretação do analista não faz mais do que recobrir
o fato de que o inconsciente – se ele é o que eu digo, isto é, jogo de
significante – em suas formações – sonho, lapso, chiste ou sintoma –
já procedeu por interpretação. O Outro, o grande Outro (A) já está lá,
em toda abertura por mais fugidia que ela seja, do inconsciente
(LACAN, 1964, p.129).
Mas, sendo assim, como entender a função do sujeito-suposto-saber, própria ao
dispositivo analítico? A fim de esclarecermos esta questão é preciso lembrar que apesar
da experiência de análise ser uma experiência de fala, ela tem uma particularidade. Não
se trata apenas de falar, mas de falar seguindo a regra da associação-livre, que exige que
se diga tudo aquilo que vier a cabeça, sem se preocupar com a ordem ou com a
coerência de seu discurso; sem reter nada, nem censurar-se. Ora, o que traz de implícito
esse convite do analista ao paciente para associar livremente, senão que este pode dizer
qualquer coisa que isso sempre vai querer dizer algo? Ou seja, este modo discursivo
peculiar ao dispositivo analítico sugere que essas associações não se dão de forma
aleatória (ainda que ostensivamente assim o pareça), mas antes que elas seguem uma
lógica inconsciente, desconhecida pelo sujeito. O analista, portanto, ao propor o pacto
analítico garante tacitamente ao paciente que ele não fala à toa, pois por mais que não o
saiba, há um sentido naquilo que diz.
Sobre isso, nos resume Bernardes (2003):
Falar, seguindo a regra fundamental, supõe um saber latente aos ditos.
A entrada em análise é a própria instauração dessa modalidade de
discurso que supõe uma significação que me escapa. Essa significação
é dada a partir de um lugar Outro. A posição enunciativa do
88
analisante, mesmo que ele não se dê conta, é a assunção, na fala, da
alteridade que lhe constitui (BERNARDES, 2003, p.130).
Dessa forma, é possível notar que a função do sujeito-suposto-saber, inerente ao
estabelecimento da transferência, mais do que implicar o endereçamento ao Outro, se
refere à admissão pelo paciente, em sua própria fala, desta alteridade que lhe constitui
enquanto sujeito cindido. Ao fazer isso, nas entrelinhas, mediante o consentimento de
associar livremente, o analisante não só atualiza esta divisão, como também anui com a
colocação do analista no lugar do Outro, para onde sua fala/demanda se dirige. Afinal, é
dele que o paciente supõe que receberá o sentido que lhe foge.
Quanto à instituição desta relação dissimétrica, como fundamento da relação
transferencial, suscitada por esse dispositivo artificial no qual um é convidado a
entregar a sua fala enquanto que o outro assume a função estrutural de recebê-la e
pontualmente interpretá-la, Lacan nos diz:
É claro que essa relação se instaura num plano que não é de modo
algum recíproco, de modo algum simétrico. (...) nessa relação de um a
outro, institui-se uma procura da verdade em que um é suposto saber
mais que o outro (LACAN, 1964, p. 136).
Através dessas considerações, alguns aspectos relativos à função do sujeito-
suposto-saber enquanto suporte da transferência começam a ser deslindados. Contudo,
para dar-lhes uma amarração é indispensável recorrermos à Proposição de 09 de
outubro de 1967, onde Lacan nos mostra que o sujeito-suposto-saber é, antes de tudo,
uma operação: uma operação significante que tem por efeito produzir um sujeito
(suposto) ao saber inconsciente.
Nesta Proposição, Lacan enfatizará novamente a distinção entre esta função e a
pessoa do analista, desta vez, formalizando o referido conceito a partir da lógica
significante. Isto é, aquela segundo a qual: (1) um significante em si mesmo não
significa nada; (2) “um significante é aquilo que representa um sujeito para outro
significante” (LACAN, 1960, p.833).
Seguindo essa lógica, o que nos diz Lacan ali é que de modo algum um sujeito
poderia ser suposto por outro sujeito. Ele é taxativo quanto a isso: “um sujeito não
supõe nada, ele é suposto. Suposto, (...) pelo significante que o representa para um outro
significante” (LACAN, 1967). Com isso ele nos aponta uma vez mais que se há
articulação significante – e se há saber, portanto –, deverá haver também supostamente
um sujeito. E que este sujeito não se identifica, com efeito, nem com o analisante, nem
89
com o analista. Mas, consiste, sim, no sujeito do inconsciente, feito emergir em sua ex-
sistência, como vimos, pela modalidade discursiva inerente ao tratamento psicanalítico.
Feito essa importante ressalva, Lacan, para nos explicar a irrupção do sujeito-
suposto-saber como condição da experiência analítica, apresenta-nos o algoritmo da
transferência; um matema através do qual ele tenta formalizar o que ocorre na entrada
do paciente em análise. Quanto a isso, Quinet (1991), nos lembrará que esta tentativa de
formalização está completamente de acordo com as considerações de Freud encontradas
no artigo técnico O início do tratamento (1913), onde, comparando a psicanálise com
um jogo de xadrez, ele afirma que apenas as aberturas e os finais das partidas permitem
uma generalização. “Esse algoritmo da transferência é o que responde, num esforço de
formalização, independente das particularidades de cada um, à própria estrutura da
entrada em análise” – observa (QUINET, 1991, p.27). Vejamos, a seguir, a fórmula
proposta:
______S______ Sq
s (S1, S2..., Sn)
Do lado esquerdo da fórmula, encontramos como numerador, “S”, ao qual Lacan
denomina de significante da transferência. Trata-se de um significante do analisante
que vai se dirigir a um significante qualquer, “Sq”, referente ao analista – que pode ser,
por exemplo, algum traço particular do mesmo, pinçado pelo analisante, ou um nome
próprio. É, aliás, este significante qualquer, porém não indiferente à história do
paciente, aquilo que fará com que determinado analista seja escolhido em detrimento de
outro. Já a articulação entre esses dois significantes será, então, precisamente o que
representa o estabelecimento da transferência; o enlace do analisante com o analista.
Quanto a esta parte superior da fórmula, vale à pena ressaltar o quanto ela se
assemelha ao que Freud nos fala em A dinâmica da transferência (1912) ao afirmar que
a transferência se estabelece quando, no desfiar associativo, a representação do analista
é investida pelo desejo e inserida numa das séries psíquicas já formadas pelo paciente.
Abaixo da barra, sob o “S”, representado na fórmula por “s”, localiza-se o
sujeito produzido por esta operação significante (S Sq), “implicando dentro do
parêntese o saber, supostamente presente, dos significantes no inconsciente” (LACAN,
1967); saber que daria uma significação a s.
Bernardes (2003) nos sugere ler esse saber inconsciente entre parênteses (S1,
S2,..., Sn), como aposto ao sujeito, entendendo esse aposto como aposto gramatical:
90
“isto é, aquilo que adjunto a um substantivo, lhe dá sentido” (BERNARDES, 2003,
p.131).
Deste modo, podemos compreender que a função do sujeito-suposto-saber
corresponde à instauração de uma relação dissimétrica, onde o analista é alçado à
posição de grande Outro, a partir de um significante nele pinçado (Sq) para o qual um
outro significante (S) virá representar o sujeito do inconsciente. Ou seja, ela se refere à
operação de precipitação do sujeito do desejo (sujeito barrado) através do engajamento
do paciente numa busca: a busca pela verdade, pelo sentido último, da sua fala (mas
também do seu sintoma), que lhe faz enigma então. Como efeito dessa busca, um saber
começará a ser construído em análise. Em Freud, podemos pensar essa construção como
equivalente ao processo de elaboração a partir do trabalho de rememoração. Os
significantes que de alguma maneira marcaram a história do sujeito vão sendo trazidos à
tona e através deles um saber, antes desconhecido, mas que operava desde sempre no
inconsciente, vai tomando forma.
Agalma
Trabalhamos a pouco a operação significante que Lacan reconhece como sendo
aquela que marca a entrada em análise e que fundamenta os efeitos de transferência. O
que nos foi possível perceber através desta exposição é que esta entrada pressupõe o
reconhecimento, ainda que tácito, por parte do paciente de que há um saber latente em
sua fala, um saber que, no entanto, ele ignora: um saber inconsciente.
Vimos também que a conseqüência da assunção dessa ignorância com relação ao
sentido do que se diz é o fato do analisante se lançar numa busca por desvendar isso que
permanece incógnito em seus próprios enunciados. Ele se lança numa busca por sabê-lo
e supõe que é no analista que ele encontrará esse saber.
A seguir, pretendemos mostrar como esta suposição não pode ser pensada
dissociada do principal efeito imaginário suscitado pela irrupção da transferência: o
amor. E, para tanto, recorreremos às elaborações lacanianas encontradas em O
Seminário – livro 8 (1960-1961), dedicado inteiramente à investigação deste conceito.
No referido seminário, Lacan elege abordar a relação transferencial através da
sua dimensão amorosa. E, com este desígnio, portanto, ele empreende uma análise do
diálogo de Platão, O Banquete, que gira todo em torno do amor.
91
Neste diálogo, vale lembrar, Sócrates se encontra reunido com alguns jovens na
casa de Agatão para algo que se assemelha a uma festa, quando Erixímaco sugere um
jogo no qual os presentes fizessem discursos para louvar o amor, tentando, através
deles, defini-lo. No meio da brincadeira, irrompe Alcebíades propondo uma mudança:
ao invés de enaltecerem o amor, cada um dos convidados deveria, a partir daquele
momento, elogiar aquele à sua direita. Ou seja, eles deveriam, pois, manifestar o amor
em ato, na relação de um com o outro (Lacan, 1960-1961, p.140). Assim, Alcebíades
inicia seu elogio a Sócrates, seu amado, que pode ser resumido da seguinte forma: ele
afirma que tal como um sileno24
, Sócrates serve de envoltório para um objeto precioso,
divino. Diz ele:
Que esta atitude não é conforme à dos silenos? E muito mesmo. Pois é
aquela com que por fora ele se reveste, como o sileno esculpido; mas
lá dentro, uma vez aberto, de quanta sabedoria imaginais,
companheiros de bebida, estar ele cheio?
Uma vez que [...] se abre, não sei se alguém já viu as estatuetas lá
dentro; eu por mim já uma vez as vi, e tão divinas me pareceram elas,
com tanto ouro, com uma beleza tão extraordinária que eu [...]
julgando porém que ele estava interessado em minha beleza,
considerei um achado e um maravilhoso lance de fortuna, como se me
estivesse ao alcance... (PLATÃO, 1972, p.53).
Este objeto precioso aos olhos de Alcebíades e que ele julga Sócrates guardar em
seu interior, é denominado de agalma, palavra que significa ornamento ou enfeite, em
grego. Eidelsztein (1994) nos elucida, com relação a este termo, que ele designa a noção
de „valor‟ em seu emprego mais antigo, anterior mesmo ao surgimento da moeda legal,
que também se deu na Grécia.
Este autor também nos diz que tais objetos de valor pré-monetário possuiriam,
de acordo com a mitologia grega, algumas determinadas particularidades, que é o que os
tornavam tão estimados. Dentre elas, uma característica dos objetos agalmáticos é que
estes seriam dotados de um poder misterioso próprio, intrínseco, que aos olhos da
sociedade tornava mais digno aquele que o possuísse. Tais objetos, contudo, não
poderiam ser adquiridos por meio de jogos ou como recompensa, senão através de um
24
Os silenos eram estatuetas esculpidas a imagem das divindades campestres que faziam parte do séquito
de Dionísio, e as quais levavam essa mesma denominação (isto é, eram chamadas também de silenos).
Esses deuses “eram figurados com cauda e cascos de boi ou bode e rosto humano, singularmente feio”
(Os pensadores III, N.T.160, p.52). Importante também dizer que os seguidores de Dionísio receberam
esta alcunha devido a um deles que tinha este nome: “Sileno era descrito como o mais velho, o mais sábio
e o mais beberrão dos seguidores de Dionísio. (...) Quando estava sob o efeito do álcool, sileno adquiria
conhecimentos especiais e o poder da profecia” (fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sileno).
92
ato nobre de renúncia por parte daquele que o detém. Isto é, eles se configurariam
enquanto objetos de dom; concedidos, pois, por amor.
Todas essas idéias, aliás, ficam bastante em evidência no diálogo platônico
quando Alcebíades afirma que ninguém senão seu amado Sócrates teria o poder de
tornar-lo uma pessoa melhor, na medida em que crê que é, justamente, dentro dele que
se esconde este valioso objeto. Sócrates, no entanto, retruca-lhe que não possui este
poder. “Ditoso amigo, examina melhor; não te passe despercebido que nada sou” – lhe
diz, ele.
Lacan utiliza-se desta cena, comparando, de certa forma, esta situação do
Banquete com o que ocorre na experiência analítica, para mostrar-nos aquilo que está no
cerne mesmo do amor de transferência, a saber: o agalma, que ele identifica neste
seminário como sendo o objeto do desejo. Ele nos aponta que a relação transferencial é
marcada, justamente, pelo fato do analisando imputar ao analista – tal como Alcebíades
a Sócrates – o agalma; ou seja, ela é caracterizada pelo fato deste último ser colocado,
pelo paciente, no lugar daquele que contém o objeto do seu desejo.
Quanto a esta situação, Lacan irá, ademais, analisar as condutas de ambas as
personagens do diálogo para nos ajudar a pensar como analisando e analista se portam
dentro da transferência. Em relação a Alcebíades, ele nos diz que este, com seu elogio,
nada mais faz do que demandar um sinal do desejo de Sócrates (por ele), quer dizer, ele
requer que seu amado transforme-se em amante; enquanto que Sócrates, por seu turno,
permanece indiferente ao rogo do primeiro, se recusando em se mostrar amante.
De acordo com suas observações, Sócrates rechaça a metáfora de amor, que
consiste justamente na substituição do amado (érôménos) pelo amante (érastès), pois
ele sabe que “se recusa a ter sido, sob qualquer título, justificado ou justificável,
érôménos, o desejável, aquele que é digno de ser amado (...) porque, para ele nada há
que seja amável nele. Sua essência é este ouden, esse vazio, esse oco” (LACAN, 1960-
1961, p.157).
Ora, na transferência, o que faz o paciente diante do analista não é algo similar?
E, segundo a regra de abstinência, a posição que o analista deve adotar perante a
demanda deste também não se assemelha em muito a de Sócrates? Vejamos, mais
detalhadamente, de que maneira elas se aproximam e como nós podemos articular o
agalma (o objeto de desejo) e o sujeito-suposto-saber dentro desta situação.
93
Para tanto, talvez seja necessário realizarmos uma pequena digressão e
voltarmos a alguns pontos já trabalhados, a fim de resumirmos o que se passa na relação
entre analista e analisante.
Vimos anteriormente que a transferência na experiência analítica se sustenta a
partir de uma suposição de saber evocada pela própria instauração da associação-livre: a
suposição de que há em minha fala um saber inconsciente e que encontrará seu sentido
alhures. A partir disso, apontamos ainda como o paciente situa o analista nessa posição
de grande Outro, pelo fato mesmo de lhe endereçar o seu discurso e esperar dele receber
o sentido do que diz. E, assim, tornou-se claro que, na medida em que o faz, tudo o que
o analisante diz em análise toma a forma de uma demanda de sentido ao analista. A fala
do analisante é, em si mesmo, um apelo ao Outro pelo significado de seus ditos.
Percebemos, contudo, que o analista através de sua resposta enquanto não
resposta a demanda de sentido (calando-se ou equivocando a fala do paciente), propicia
o surgimento da dimensão do desejo, o qual, vale lembrar, apesar de presente na
articulação da demanda na cadeia significante, não é, ele próprio, articulável nesta.
Afinal, como nos diz Lacan (1958):
O desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela demanda
aquém dela mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia
significante, traz à luz a falta-a-ser com o apelo de receber seu
complemento do Outro, se o Outro, lugar da fala, é também o lugar
dessa falta (LACAN, 1958, p.633).
Assim, entendemos que o sujeito, pelo próprio fato de demandar ao analista,
atualiza sua falta-a-ser em análise, apresentando-se como incompleto, faltoso. Pois, ao
dirigir sua demanda articulada em significantes em direção ao analista, também ali se
faz presente nas entrelinhas, no inter-dito, o desejo. E é porquanto este não atende ao
seu apelo, quer dizer, que o paciente não recebe seu suplemento do Outro (o qual então
também aparecerá como barrado), que ele será levado a confrontar-se com esta falta que
assedia seu próprio enunciado; essa falta que a princípio ele demandava que o Outro
suturasse com algum sentido.
Ou seja, o analisante será impelido a se deparar com a opacidade de seu próprio
desejo, que retorna do Outro para ele (uma vez que é próprio à estrutura de toda
demanda retornar ao sujeito de forma invertida) sob a forma da pergunta: “Que
queres?”. E, dado que, como Lacan nos aponta, “o desejo do homem é o desejo do
Outro” (LACAN, 1960, p.829) – isto é, dado que é como Outro que se deseja –, quando
94
o sujeito se depara com esta questão sobre o seu desejo, é, com efeito, com o enigma do
desejo do Outro que ele se vê as voltas.
Diante disso, acreditamos que começa a se esclarecer a articulação entre agalma
e sujeito-suposto-saber. Pois, se, como vimos, pela própria estrutura do dispositivo
analítico, o analista é situado nesse lugar Outro, ao aparecer então como desejante – isto
é, ao fazer cair a barra sobre o Outro, mediante a sua não resposta à demanda do sujeito
– ele será suposto saber responder a este enigma. Ou seja, ele será suposto saber a
significação do desejo inconsciente, saber dizer o objeto deste desejo (agalma). Ele é
suposto deter a verdade com relação ao desejo do sujeito; suposto saber o que desejar25
.
Por isso, Lacan (1964) nos dirá que: “enquanto o analista é suposto saber, ele é suposto
saber também partir ao encontro do desejo inconsciente” (LACAN, 1964, p.229).
Certamente que esta suposição de que o Outro possui aquilo que nos falta – e
que aqui, neste caso, trata-se do saber sobre o desejo – não deixa de ser uma miragem,
uma ilusão. Uma ilusão que é própria ao amor, vale dizer; e que não passa de um astuto
artifício para velar a castração (a castração do Outro, sobretudo, mas também a sua
própria). É nesse sentido que Lacan irá afirmar que “o efeito de transferência é esse
efeito de tapeação” (LACAN, 1964, p.246), que se configura ainda como uma
armadilha. Afinal, se amar é essencialmente querer ser amado, o amor de transferência
não é senão um esforço do sujeito, enquanto assujeitado ao desejo do analista, de
enganá-lo dessa sujeição, fazendo-se amar por ele, isto é, tentando fazer com que o
analista passe de objeto amado (érôménos) a sujeito amante (érastès), a fim de assim
obter aquilo que ele acredita que o analista detém.
Sobre isso, Lacan nos adverte que o psicanalista não deve cair no engodo de
acreditar que tem aquilo que falta ao sujeito. Mas, assim como Freud, ele também
sublinha a importância deste efeito na experiência analítica: “precisamos fazer surgir o
domínio da tapeação possível” (LACAN, 1964, p.132), pois é apenas por meio desta
ficção que podemos ter acesso ao real26
, isto é, à causa perdida do inconsciente, que
escapa sempre à cadeia significante e faz limite à rememoração.
25
Desta forma, podemos compreender também que as demandas de sentido que o paciente dirige para o
analista nada mais são, em sua essência, do que demanda de amor. E o que subjaz nas entrelinhas dessas
demandas não é senão um desejo de saber; um desejo de saber o que se deve desejar. Como se o sujeito
assim supusesse ao analista: “o que eu desejo lá dentro, você é quem deve saber” (LACAN, 1964, p.?). 26
“esse indeterminado de puro ser que não tem qualquer acesso à determinação [...] é a isto que a
transferência nos dá acesso, de maneira enigmática” (LACAN, 1964, p.128).
95
Mas, como podemos pensar que esse efeito de tapeação, que justamente é um
artifício para encobrir o real pode nos dar acesso a ele? E o que deveria fazer o analista
diante disso a fim de promover o engendramento do novo?
Estas são as questões que tentaremos responder a seguir.
Reflexões sobre a intervenção analítica
No último sub-tópico sublinhamos que para que a função do sujeito suposto
saber se instaure efetivamente, e a transferência se estabeleça, faz-se necessário que o
analista apareça enquanto desejante. O que conduz o analisante a se confrontar com o
enigma do desejo do Outro. E vimos, ainda, que é justamente neste instante que se dá a
irrupção do amor de transferência como forma de se escamotear a castração do Outro,
atribuindo-se ao analista a chave deste enigma, isto é, o saber sobre o objeto do desejo
inconsciente.
Como podemos articular isto com a repetição?
Quando trabalhamos a tiquê, ao final de nosso segundo capítulo, o que nos foi
possível perceber é que uma das maneiras de se pensar o encontro com o real – a causa
acidental da repetição – é justamente abordando-o em referência ao encontro com o
desejo do Outro. Nesse sentido, então, ousamos dizer que a transferência se desencadeia
a partir de uma tiquê. Contudo, entendemos que aqui não se trata de um mau-encontro,
de um encontro traumático, porque diante dele o analisante não admite o furo no Outro,
mas, pelo contrário, tampona-o, ao atribuir ao analista a significação que lhe escapa.
Isto é, por ocasião deste encontro com o sem-sentido a barra recai sobre o sujeito, mas
não sobre o Outro. Ou, melhor dizendo, ela recai sobre o Outro, porque somente a quem
falta algo é possível desejar, mas paradoxalmente – como vimos – é justamente porque
ele deseja que ele é suposto saber a significação do desejo. O que é o mesmo que
afirmar que ele é suposto saber o objeto que o Outro deseja para se completar.
Assim, parece-nos que a transferência enquanto amor dirigido ao saber é mesmo
um recurso para não se haver com o real, para continuar a ignorá-lo solenemente.
Todavia, como Lacan nos aponta, trata-se aí de um efeito de tapeação indispensável ao
tratamento. Sendo por isso que o analista deve sustentar esta posição que lhe é conferida
pela transferência, qual seja, a de suposto saber, mantendo-a, no entanto, vazia.
Qual a relevância deste engano para o tratamento?
96
Vimos anteriormente que o sujeito se constitui enquanto ser desejante
justamente a partir de um encontro primeiro com a insondável pergunta sobre o desejo
do Outro, diante da qual ele acaba por fabricar uma resposta a partir dos significantes
incorporados através da demanda do Outro. Sublinhamos também que é aí que ele
constrói uma fantasia sobre o lugar que teria ocupado como objeto no desejo do Outro.
A fantasia, com efeito, é uma maneira singular do sujeito se haver com este impossível,
de dar um contorno a isso que resiste a qualquer esforço de representação: ao seu ser de
objeto. E, como dissemos, é a partir desta ficção que o sujeito poderá sustentar o seu
desejo e a realidade.
Vimos ainda que o que acontece quando o paciente entra em análise é que por
meio do desejo do analista ele é levado a se confrontar com esta questão. E supondo que
ele detém esta resposta, que ele possui a significação de seu ser, o paciente se enamora,
e se esmera em se fazer amado pelo analista por acreditar que assim conseguirá obtê-la.
Ora, o sujeito só pode tentar se fazer amado a partir das coordenadas da sua
fantasia, isto é, tentando encarnar aquilo que supõe que o Outro deseja. E é assim,
graças a este efeito de tapeação, que o analista poderá vir a ter acesso a ela. Mas, com
efeito, a princípio, ele nada sabe sobre esta. Nem tampouco o analisante. É preciso que
este saber seja construído, então, em análise. O que só é possível mantendo insatisfeitas
as demandas de sentido do paciente. Pois, somente assim ele poderá continuar a desejar
e a perseverar na sua busca por saber.
Engajado nessa busca, o analisante prosseguirá o seu trabalho de rememoração e
de elaboração. Enquanto o faz, é bem verdade, o sujeito permanece alienado no sentido
e na dimensão da demanda, e só faz colocar sempre mais adiante o objeto. Contudo, é
através deste trabalho associativo que ele será levado a repetir os significantes que
determinam a sua história, isto é, os significantes da demanda do Outro aos quais ele
permaneceu fixado. E é por meio deles que o analisante começará a cerzir a narrativa
singular que dirá sobre o lugar que ele ocupa no desejo do Outro.
Diante disso, podemos inferir que é através das demandas do paciente que o
analista poderá ter acesso ao objeto em torno do qual elas gravitam. O objeto que jaz
como causa de desejo do sujeito. Por isso entendemos que Lacan nos diz que a
transferência nos dá acesso ao real. E se essas demandas não passam de uma tentativa
de encobrir esse objeto, entendemos que a tarefa do analista é o desvelá-lo. Como? A
partir da interpretação que deve visar justamente isso que assedia o discurso do sujeito,
mas que em si, permanece rebelde ao enunciado. Ela deve apontar essa outra coisa que
97
permanece latente nos ditos do analisante, isso que é sempre contornado pela sua fala e
que se apresenta nas rupturas no significante. A interpretação do analista não deve,
então, permanecer na dimensão do sentido, ainda que opere através do significante. Ela
deve apontar para o não-sentido. “A interpretação opera pelo significante, mas incide
sobre o objeto, sobre o real” (SOLER, 1991, p.45).
Ora, se o objetivo do analista em suas intervenções é justamente desvelar o real;
é fazer surgir a presença deste resto de nons-sense que parasita e incita o discurso do
paciente, logo, somos levados a concluir que, por mais que o amor de transferência seja
um recurso do sujeito para não ter que se deparar com o furo no Outro, este apelo ao
saber deverá conduzi-lo, pelo manejo do analista, ao encontro com o real, isto é, com a
causa sem sentido de seu destino.
98
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É chegado o momento de fazermos uma breve retrospectiva e retornarmos Aos
principais pontos trabalhados a fim de tentarmos esboçar uma resposta para a questão
central de nossa dissertação, a saber: como se produz a diferença a partir da repetição na
experiência de uma análise?
Em nosso primeiro capítulo, nos dedicamos especialmente a examinar a face
simbólica da repetição. Buscávamos quando do início de nosso percurso compreender
através deste exame como se constituem os roteiros que são insistentemente repetidos
por um sujeito. Para tanto, partimos da noção de trilhamento (Bahnung), apresentada no
Projeto para uma psicologia científica (1950[1895]). Através dela o que começou a se
evidenciar é que a predileção por repetir caminhos já conhecidos está associada à
memória tal como ela é desenvolvida na obra freudiana – isto é, não como uma função
biológica que se presta à adaptação do indivíduo ao meio, mas sim como uma memória
ativada pelo desejo –, estruturada a partir da organização das marcas mnêmicas num
sistema de diferenças.
Vimos, também, neste capítulo, analisando a apropriação e subversão do signo
saussuriano por Lacan, como a idéia acima se coaduna com as contribuições lacanianas
feitas à psicanálise a partir da lingüística estrutural. E esforçamo-nos, então, para
demonstrar em que medida é possível afirmar que o inconsciente é estruturado como
uma linguagem. Para isso, investigamos ainda como o psicanalista francês se serve das
noções de metonímia e metáfora de Roman Jakobson e as aproxima dos processos de
deslocamento e condensação.
A seguir, nos propusemos investigar as considerações de Lacan relativas ao
automatismo da cadeia simbólica, tomando como ponto de partida seu comentário sobre
o conto de Edgar Allan Poe intitulado A carta roubada. Visávamos com esta
investigação esclarecer três aspectos relativos ao deslocamento automático significante,
que nos pareciam de extrema importância para compreendermos a face simbólica da
repetição. Quais sejam: 1. que o sujeito não tem qualquer domínio sobre eles, posto que
é feito dessas articulações; 2. que o desdobramento automático da cadeia não se dá de
forma aleatória, mas seguindo uma sintaxe inconsciente; 3. que o estabelecimento desta
sintaxe, correlata ao advento da lei através de uma metáfora, é precisamente aquilo que
determina os trajetos pelos quais devem passar a rememoração.
99
A fim de elucidarmos este primeiro aspecto, apontamos como Lacan ressalta a
anterioridade do significante em relação ao sujeito e como ele faz questão de sublinhar
que o sujeito não se confunde com o indivíduo. A partir dessas considerações, nos foi
possível entender que o sujeito não preexiste à linguagem, mas que ele se constitui
como um efeito da remissão significante que toma lugar no Outro, permanecendo numa
posição de ex-centricidade com relação à cadeia. Vimos, então, que isto implica que o
sujeito não é senhor de sua fala, mas antes, que ele é determinado pelo discurso do
Outro, pelo lugar que lhe foi conferido a partir deste discurso.
Por outro lado, o que tentamos demonstrar também é que apesar do
encadeamento significante não depender do sujeito, isso não significa que ele se dá de
maneira contingente, ao sabor do acaso. Para explicamos este segundo aspecto inerente
ao automatismo simbólico, recorremos à análise que Lacan empreende sobre o jogo do
“par ou ímpar” a fim de apontar-nos que conjuntamente à incidência do significante
surge também uma lei que prescreve os caminhos possíveis de serem traçados na
história de um sujeito, os trajetos pelos quais devem passar a rememoração. E
apontamos como é esta lei sintática, portanto, aquilo que justamente determina a
insistência de certas articulações significantes.
Por fim, ressaltamos que o estabelecimento daquilo que é possível de se escrever
implica necessariamente, em contrapartida, algo que é impossível de se escrever, algo
que é sempre evitado, contornado pela cadeia. E indicamos como este ponto impossível
de ser assimilado pela estrutura, e que recebe no escrito sobre A carta roubada o nome
de caput mortuum – o significante impossível – é de um só tempo resíduo da articulação
significante e condição de possibilidade para a ordenação do simbólico. Sendo por isso
mesmo que se pode dizer que ele é inerente à estrutura, ainda que permaneça dela
excluído.
Nesse sentido foi que chegamos à conclusão, ao final deste capítulo, que no
centro mesmo da insistência simbólica resta, erradicável, um buraco que é precisamente
aquilo que a incita. E, foi aí que começamos a vislumbrar o outro lado da repetição.
Em nosso segundo capítulo nos propusemos investigar mais apuradamente esta
outra face. Para tanto, começamos nos debruçando sobre o artigo Além do Princípio do
Prazer (1920). Através das considerações tecidas ali, esclareceram-se pontos
importantes para a nossa pesquisa. Dentre eles, evidenciou-se que, neste artigo, o
conceito de compulsão à repetição alude justamente à face real da repetição, uma vez
que ele diz da persistência de algo que escapa ao processo de simbolização e que recebe
100
ali o nome de pulsão de morte. Sobre este conceito, fizemos questão de sublinhar que
ele se refere à pulsão em estado bruto, livre, não ligada a representantes, que se mantém
para além do campo da linguagem – e, portanto, do domínio do princípio do prazer –,
em oposição às pulsões de vida, que constituem a força pulsional ligada, já submetida
ao espaço das representações.
Assim, nos foi possível compreender que aquilo que incita os deslocamentos
significantes, não diz respeito apenas a um cavo no simbólico, ilustrado em nosso
primeiro capítulo pelo caput mortuum, mas também a um excedente pulsional, um a
mais.
Nesse sentido, esclareceu-se ainda o quanto esta idéia está atrelada ao trauma,
posto que, como vimos através das elaborações freudianas, o traumático implica
precisamente um aumento abrupto de energia livre que o aparelho psíquico não
consegue dar conta de simbolizar. Isto é, ele indica a presença de um resto pulsional
não-ligado que insiste compulsivamente em se fazer representar.
A seguir, passamos ao exame de outra noção que também alude a esta causa
silenciosa que funciona como força motriz do processo simbólico e do automatismo de
repetição a ele inerente, qual seja: a noção de das Ding. Para isso, voltamos ao Projeto
para uma psicologia científica (1950[1895]), mas desta vez, à luz das formulações
encontradas em O Seminário – livro 7 (1959-1960).
Da longa exposição que fizemos sobre esta noção, o que de primordial se
evidenciou foi que das Ding, o objeto perdido da satisfação – perdido desde e para
sempre –, é uma das denominações dadas ao que o sujeito teve que perder, quando
ainda não era sujeito, a fim de poder se constituir enquanto tal. É uma parte de si mesmo
que nunca foi sua, algo de interior tornado exterior, ao mesmo tempo que excluído no
interior. Ela diz de uma alteridade radical, inassimilável ao simbólico, introduzida no
seio mesmo da subjetividade a partir de um primeiro encontro com o Outro.
Além disso, constatamos ainda que no nível simbólico, a Coisa não passa de um
vazio central, ao redor do qual gravita a cadeia de representações; sendo aquilo que ao
mesmo tempo a possibilita e a fura.
Outro aspecto importante que se revelou é a imprescindibilidade desta perda
mítica para a construção da realidade para o sujeito. É este buraco no simbólico que
permite a construção do mundo do sentido e é ele quem servirá de referência para o
sujeito se reportar ao mundo de seus desejos.
101
Na última parte de nosso segundo capítulo, nos dedicamos a trabalhar as noções
de automatôn e tiquê, tomadas de empréstimo de Aristóteles por Lacan, para nos indicar
mais claramente estes dois níveis presentes na repetição. Sublinhamos que o automatôn
é empregado para designar o retorno dos signos graças à insistência de determinadas
articulações significantes na cadeia, que, como demonstramos no primeiro capítulo,
segue uma sintaxe idiossincrática.
Com relação à tiquê, reservada para tratar da causa real da repetição, vimos que
ela se refere a um encontro ao qual sempre somos convocados com um real que
escapole. Apontamos, porém, que isto não implica que se trate aí de um encontro
impossível, pois, mesmo que este ponto ineliminável de non-sense seja tenazmente
evitado, ainda assim, vez ou outra, se tropeça nele. Ressaltamos, então, que isso se dá a
cada vez que o sujeito se depara com o enigma do desejo do Outro.
Trabalhamos este encontro tratando rapidamente dos processos de alienação e
separação. Vimos que o primeiro encontro com este enigma se dá neste segundo tempo
de causação do sujeito, a partir dos intervalos daquilo que o Outro lhe demanda.
Quando deste encontro, ressaltamos que não é como sentido que o sujeito se apreende,
mas justamente como este furo no Outro. Dissemos que é aí, nesse instante, que ele se
confronta com a opacidade de seu ser. E, a seguir, demonstramos como é nesta ocasião
que se dá início a construção da fantasia, na qual o sujeito circunscreve o lugar que
imagina ter ocupado como objeto no desejo do Outro por meio dos significantes que
nele se fixaram através da demanda do Outro, dando contorno ao seu ser e despontando
como desejante.
Acreditamos que a partir da investigação que promovemos sobre a tiquê, dois
pontos muito relevantes se evidenciaram. Primeiro, que é quando o sujeito se depara
com o furo no Ouro, perdendo a possibilidade de se representar como sentido, que ele
vem a se confrontar com algo que resta sempre como radicalmente novo, isto é, que ele
se depara com a diferença. Ou seja, evidenciou-se então que o encontro com o real é o
encontro com a diferença, com o novo.
E, ademais, nos foi possível perceber como os significantes que determinam
simbolicamente o sujeito, e que se repetem na rememoração, estão necessariamente
relacionados com este encontro primeiro com o desejo do Outro. Eles aludem –
certamente, uns mais do que outros – ao lugar que o sujeito ocupa, na sua fantasia, em
relação a este desejo.
102
Finalmente nosso último capítulo foi dedicado a pensar a repetição em relação à
experiência de uma análise. Assim, começamos com Freud, partindo de seus artigos
técnicos A dinâmica da transferência (1912) e Recordar, repetir e elaborar (1914).
Objetivávamos nesta primeira parte do terceiro capítulo esclarecer duas questões que há
muito nos intrigavam devido à forte articulação entre os conceitos de transferência e
repetição na obra freudiana: a transferência só repete? Se ela repete, o que ela repete?
A partir das formulações traçadas nesses artigos e consideradas em articulação
com as elaborações ulteriores sobre este tema, apresentadas no Além do Princípio do
Prazer (1920), constatamos que Freud admite que na transferência repete-se a
impossibilidade de satisfação atestada pela incidência da lei quando do declínio do
complexo de Édipo. Contudo, em seguida, refletindo sobre os apontamentos
encontrados no artigo Observações sobre o amor de transferência (1915[1914]), nos foi
possível inferir que é somente na medida em que o tratamento é conduzido na
abstinência que pode haver sob transferência a repetição do desencontro, do traumático.
Tal inferência, com efeito, não apenas nos ajudou a afrouxar o nó entre os conceitos de
repetição e transferência, mas também viabilizou que começássemos a vislumbrar uma
resposta para nossa questão central. Afinal, uma das conclusões a que chegamos em
nosso segundo capítulo, como já apontamos, foi precisamente que, neste encontro com
o impossível, aquilo com o que o sujeito se depara não é senão com o que resta sempre
como radicalmente novo, isto é, com a diferença.
Ainda assim, considerávamos importante recorrer às considerações lacanianas a
respeito da transferência a fim de aclarar um pouco mais a distinção entre esses dois
conceitos. Para, depois, voltarmos a articulá-los e corroborar, ou não, a hipótese a que
tínhamos chegado a partir das formulações de Freud.
Para tanto, escolhemos trabalhar este conceito em Lacan por meio de duas
noções, que ele nos aponta estarem no cerne do estabelecimento e da sustentação da
transferência, quais sejam: a noção de sujeito-suposto-saber e a de agalma. Através do
breve estudo que empreendemos, nos foi possível notar de que maneira elas se
encontram profundamente imbricadas: a atribuição ao analista do objeto agalma (objeto
de desejo) pelo analisante, na irrupção do amor de transferência, é correlata ao
estabelecimento do sujeito-suposto-saber.
Mas, julgamos que o mais importante que pudemos extrair ao trabalhar essas
duas noções, foi que a regra da abstinência, ainda que essencial ao tratamento, não basta
103
para promover o advento do novo – o que nos pareceu, a princípio, quando abordamos
esta questão a partir dos textos freudianos.
Reconhecemos que não atender as demandas de sentido do paciente é essencial
para que ele possa vir a se confrontar com o enigma do desejo do Outro e, portanto,
imprescindível para que o sujeito-suposto-saber se instaure e para que o amor de
transferência ecloda. O que, como vimos, é indispensável para o tratamento, pois ainda
que este amor, como todos demais, vele a castração do Outro, é graças a ele que o
sujeito continuará na sua busca por saber, trazendo à tona os significantes que o
determinaram.
Contudo, o que nos foi possível perceber é que se a análise se resumir a isto, o
paciente com sua fala/demanda continuará a gravitar ao redor do objeto. Ele prosseguirá
tentando alcançá-lo pela via do sentido, mas por esta via ele só poderá colocá-lo sempre
mais distante.
Desta forma, pudemos entender que não basta ao analista abster-se de dar
sentido, faz-se necessário que ele com sua interpretação aponte para o ser, aponte para o
objeto em torno do qual as rememorações do sujeito se organizam; para este resto opaco
que parasita o seu discurso. É assim, acreditamos, que o analista poderá fazer com que a
partir da repetição em que se encontra capturado o sujeito – ou seja, a partir da repetição
dos enredos que marcam a sua história –, este possa vir a se deparar com a diferença, e
que não é senão, como vimos, a causa do seu destino.
E como é que podemos pensar que este encontro com a diferença radical tem o
potencial de viabilizar que o sujeito se descole um pouco das rotas conhecidas e faça
diferente? Pelo que trabalhamos em nossos primeiro e segundo capítulos, somos
levados a inferir que isso é possível porquanto é ao redor deste ponto opaco que se
estrutura o simbólico e que, assim, a fugaz irrupção do real não pode senão ter um efeito
de desordenação, que conduz (ou tem a potência de conduzir) a uma nova configuração
dessas rotas; a uma forma diferente de narrar, perceber e estar no mundo.
Contudo, não queremos dizer com isso que as lembranças do sujeito se
modificam. “A vida que o analisando teve não se refaz. Ao contrário, o que modifica é a
maneira como ele se situa nela e o sentido que lhe dá” (SOLER, 1991, p.56).
Mas, sendo assim, uma nova questão parece se impor: o que vai acontecendo
com a fantasia fundamental de um sujeito, ao longo do processo de análise? Afinal, ela
funciona precisamente como o princípio de inteligibilidade das relações deste sujeito
com o mundo. E ela, como vimos, é estruturante; não podendo, portanto, ser alterada.
104
Não estamos ainda em condições de responder a questão acima colocada, que
nos parece essencial para podermos responder de maneira mais satisfatória o problema
que propusemos de início. Fica, aqui, a indicação para uma pesquisa futura. E a certeza
de que a resposta que nos foi possível esboçar a partir desta investigação nem de longe
dá conta de resolver este problema.
105
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