UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
O ESPETÁCULO DO MUNDO: PESSOA, SARAMAGO,
PORTUGAL
Aline Alves de Carvalho
2014
O ESPETÁCULO DO MUNDO: PESSOA, SARAMAGO,
PORTUGAL
Aline Alves de Carvalho
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Literatura da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção
do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria
Literária)
Orientador: Prof. Doutor André Luiz da Lima Bueno
Rio de Janeiro
Março de 2014
O espetáculo do mundo: Pessoa, Saramago, Portugal Aline Alves de Carvalho
Orientador: Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura
(Teoria Literária).
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente Prof. Doutor André Luiz de Lima Bueno
_________________________________________________
Profa. Doutora Carmem Lucia Negreiros de Figueiredo – UERJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Eleonora Ziller Camenietzki – UFRJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Flávia Trocoli Xavier da Silva – UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Víctor Manuel Ramos Lemus – UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor João Roberto Maia da Cruz – Fiocruz, suplente
_________________________________________________
Prof. Doutor Ricardo Pinto de Souza – UFRJ, suplente
Rio de Janeiro
Março de 2014
Carvalho, Aline Alves de
S696an O espetáculo do mundo: Pessoa, Saramago, Portugal / Aline
Alves de Carvalho - Rio de Janeiro: UFRJ, 2014.
281 f. ; 30 cm.
Orientador: André Luiz de Lima Bueno.
Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência
da Literatura, 2014
Bibliografia: f. 275-281.
1. Saramago, José 1922-2010. O ano da morte de Ricardo
Reis - Crítica e interpretação. 2. Saramago, José 1922-2010. O
ano da morte de Ricardo Reis – Personagens. 3. Pessoa,
Fernando 1888-1935 – Crítica e interpretação. 4. Camões, Luís
de 1524-1580. – Crítica e interpretação. 5. Portugal – História –
Séc. XX. 6. Literatura e história. I. Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Faculdade de Letras. II. Título.
CDD B869.25
O ESPETÁCULO DO MUNDO: PESSOA, SARAMAGO, PORTUGAL
Aline Alves de Carvalho
Orientador: André Luiz de Lima Bueno
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da
Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Literária.
Fernando Pessoa cria a biografia de seu heterônimo Ricardo Reis, que se exila no
Brasil em 1919. Em 1935, Fernando Pessoa morre, e a partir desse evento, José Saramago
decide dar a continuidade à biografia de Ricardo Reis que Fernando Pessoa não deu, e traz de
volta a Portugal o heterônimo hedonista e distanciado da realidade. Essa apropriação de
Ricardo Reis é o leitmotiv para a construção do romance O ano da morte de Ricardo Reis,
escrito em 1984. O romance se desenvolve a partir de um narrador que persegue seu
protagonista, que passa seu último ano de morte observando o presente histórico do ano de
1936, quando o salazarismo, o nazismo, o fascismo, a crise econômica compunham o cenário
daquele real que Ricardo Reis chama de espetáculo. Neste trabalho, analiso as relações entre
ficção e história que o romance apresenta.
Palavras-chave: Pessoa, Camões, salazarismo, história, ficção.
Rio de Janeiro
Março de 2014
THE SPECTACLE OF THE WORD: PESSOA, SARAMAGO, PORTUGAL
Aline Alves de Carvalho
Orientador: André Luiz de Lima Bueno
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da
Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Literária.
Fernando Pessoa creates a biography of his heteronym Ricardo Reis, who exiles
himself in Brazil in 1919. In 1935, Fernando Pessoa dies, and from that event, José Saramago
decides to give continuity to the biography of Ricardo Reis that Fernando Pessoa did not, and
brings back to Portugal the hedonistic and alienated heteronym. This appropriation of Ricardo
Reis is the leitmotiv for the construction of the novel The Year of the Death of Ricardo Reis,
written in 1984. The novel develops from a narrator who pursues his protagonist, who spends
his final year watching the historical present of the year 1936, when Salazar, Nazism, fascism,
the economic crisis that made up the real scenario that Ricardo Reis calls spectacle. In this
work, I analyze the interaction between fiction and history that the novel presents.
Key-words: Pessoa, Camões, salazarism, history, fiction.
Rio de Janeiro
Março de 2014
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a Thaíssa Ferreira Costa (1982 – 2013).
In memorian.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador e amigo, André Luiz de Lima Bueno, por acreditar em mim, por
me ensinar o que é ser um mestre e por toda a sua generosidade.
Á minha querida professora do ensino médio, Jackeline Lima Farbiarz, que me
inspirou a estudar literatura e fazer disso minha profissão.
Aos professores da banca, Carmem Lucia Negreiros de Figueiredo, Eleonora Ziller
Camenietzki, Flávia Trocoli Xavier E Víctor Manuel Ramus Lemos, pelos comentários e
interferências tão produtivas para este trabalho.
Ao meu marido, meu parceiro, Rafael Ferreira, por me inspirar, por se aventurar
comigo em todos os meus sonhos e por ser minha família.
A Tatiana Gandelman, pela amizade, pela compreensão, pela cumplicidade, pelas
tantas afinidades que nos unem.
A Lilian Alves Moreira e Elisângela Abrantes, minhas irmãs.
A Hermínia Marins, pelo cuidado e pela amizade.
A Tita, minha filha, meu tesouro, minha companheira mais fiel, o maior amor que há
no mundo.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10
2. RICARDO E OS REIS ............................................................................................................................ 20
2.1. RICARDO REIS, O HETERÔNIMO DE FERNANDO PESSOA ............................................................ 20
2.2. O MESTRE ......................................................................................................................... 25
2.3. O RICARDO REIS HELENISTA ............................................................................................ 30
2.4. O RICARDO REIS PERTURBADO ........................................................................................ 40
2.5. O ESPETÁCULO DO MUNDO ............................................................................................... 52
2.6. O EXÍLIO NO BRASIL ......................................................................................................... 62
2.7. APROXIMAÇÃO DA MORTE ................................................................................................ 83
3. A MARGEM DO TEJO ...................................................................................................... 90
3.1. O RIO ................................................................................................................................. 90
3.2. O “ESPETÁCULO DO MUNDO” ......................................................................................... 103
3.3. O ESPETÁCULO DO INFERNO ........................................................................................... 128
3.4. ESTADO DE EXCEÇÃO .............................................................................................................. 145
4. RICARDO REIS DE SARAMAGO: DA PLATEIA AO PALCO. ................................ 148
4.1. DAS ODES PARA O ROMANCE .......................................................................................... 148
4.2. DAS ODES PARA A CRISE ................................................................................................. 148
4.3. O NARCISO INVERTIDO .................................................................................................... 153
4.4. O CADÁVER ANTECIPADO ............................................................................................... 181
5. O FANTASMA DE FERNANDO PESSOA .................................................................... 192
5.1. UM VISITANTE ................................................................................................................. 192
5.2. UM HABITANTE ............................................................................................................... 211
6. CONCLUSÃO ................................................................................................................... 236
6.1. AOS HOMENS VIVOS .......................................................................................................................... 236
6.2. CAMÕES E ADAMASTOR.................................................................................................. 236
6.3. PESSOA ............................................................................................................................ 262
6.4. REMEMORAÇÃO E CONSTRUÇÃO DO PRESENTE .............................................................. 266
6.5. O ESTILO NARRATIVO ..................................................................................................... 270
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 278
10
1. INTRODUÇÃO
Aqui onde o mar acabou, e a terra espera.
(José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis)
A epígrafe se constitui da frase que encerra o romance O ano da morte de Ricardo
Reis1, do escritor português José Saramago, publicado em Portugal em 1984. A construção do
romance parte da iniciativa de se refletir sobre o momento histórico do ano de 1936. No
entanto, persigo a proposta de leitura do romance como o resgate do passado para a reflexão
sobre o tempo da confecção do romance – o ano de 1984 –, o tempo que leva o sujeito do
agora às perguntas do presente de 1936. Não digo com isso que não existe no romance
estudado reflexão sobre o passado, mas que tal reflexão é parte do exercício de crítica sobre o
presente, e de uma forma bastante específica: Saramago parte do pressuposto de que toda
história deve ser revisitada, e da questão sobre até que ponto o fim de um regime totalitário
implica necessariamente o início de uma democracia.
No início de sua carreira literária, Saramago parece estar completamente voltado para
a revisão histórica como leitmotiv da problematização estética. O primeiro romance do
chamado ciclo histórico de Saramago é Levantado do Chão2, de 1980, cujo objeto histórico é
a luta de classes situada no Portugal das primeiras décadas do século XX, chegando aos
tempos do salazarismo. A leitura desse romance demonstra a evidente concordância com o
Manifesto Comunista3, segundo o qual a revolução será promovida pelo levante do operariado
e pelo campesinato, o que promoverá a apropriação do poder pela classe operária, que será o
novo gestor da sociedade socialista, substituindo as relações capitalistas por um sistema sem
desigualdade e exploração. Destaco que, no caso do romance de Saramago, a classe
1 SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 1984.
2 Idem. Levantado do chão. 11ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2003.
3 ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Global, 2006.
11
trabalhadora explorada é a do trabalhador rural ou artesão, e o poder acumulador de riqueza
está representado pelos latifundiários, os responsáveis pela lógica comercial e econômica em
Portugal, onde a indústria – forma mais moderna de exploração do trabalhador – mal havia
chegado, e demoraria ainda muito para se estabelecer no país. Do mesmo ano de Levantado
do chão, a composição dramática intitulada Que farei com este livro?4 conta com o
personagem histórico Luís Vaz de Camões, e seu empenho em publicar Os Lusíadas5. Nessa
peça, Saramago inicia um recurso que voltará a explorar em outras obras: a recriação de uma
biografia canônica, o que colabora com a validação da revisão histórica através da ficção.
Nesse caso, Saramago vale-se de Camões pela forma como ele se cristaliza no pensamento
geral como símbolo da defesa da fé e do império. A peça aborda as dificuldades de Camões
para publicar o poema épico, que passa pela avaliação e interferência do Santo Ofício, o que
sugere que jamais se tenha conhecido na íntegra o texto que consagra essa figura simbólica
nacionalista do poeta, o que imediatamente desmonta a leitura de Os Lusíadas como
glorificação do império português e do reinado colonialista e mercantilista de D. Manuel.
Memorial do Convento6, de 1982, é o próximo trabalho desse ciclo histórico. A
epígrafe é uma citação de Almeida Garret:
Eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o
número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho
desproporcionado, à desmoralização, (...) à ignorância crapulosa, à desgraça
invencível, à penúria absoluta para produzir um rico?7
No caso de Memorial do convento, o período histórico resgatado é o do século XVIII,
momento do reinado de D. João V, o mais rico da história de Portugal8, aqui revisto pelo
ponto de vista da população pobre e oprimida do país, à qual a riqueza do reino não alcança.
A coexistência entre civilização e barbárie se torna nítida nesse contraste entre o luxo
4 SARAMAGO, José. Que farei com este livro?. 2
a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
5 CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, 1997.
6 SARAMAGO, José. Memorial do convento. 30
a ed. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2004.
7 Idem, 2004.
8 Conferir www.myguide.iol.pt/profiles/blogs/cultura-convento-de-mafra (consulta em 12.nov.2012)
12
ostentado pela nobreza e ilustrado pelo exagero do palácio-convento de Mafra e as vidas
sacrificadas e negligenciadas para que aquela obra pudesse ser realizada. A ideia presente nos
dizeres de Benjamin – “Nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um
monumento de barbárie.”9 – pode ser identificada nessa obra. Esse romance exemplifica o
projeto estético de Saramago de se recuperar a história dos vencidos, que vêm sendo
esquecidos por narrativas históricas que registram a civilização como uma marcha evolutiva,
sem considerar os danos implicados e perpetuados nesse processo.
O materialismo histórico é o método em 1986, no romance História do cerco de
Lisboa10
, em que o protagonista, Raimundo Silva, cujo ofício é de revisor de textos, atreve-se
a interferir no texto que está revisando – um livro de história, o veículo que oficializa a versão
histórica do vencedor – recriando a história e assumindo a posição de autor, que pode ser
considerada, nesse caso, a posição de agente histórico. No caso, o livro transgredido trata do
episódio em que os cristãos, sob o comando de D. Afonso Henriques, fundador de Portugal,
reconquistam a Península Ibérica tomando-a dos mouros, em uma batalha no ano de 1147. O
romance é construído a partir da reflexão crítica sobre a gênese do país.
Em O evangelho segundo Jesus Cristo11
, de 1991, Saramago explora a revisão
histórica para questionar um cânone da civilização ocidental – o cristianismo –, que pelos
últimos 2000 anos vem determinando a organização do mundo em favor do poder,
subjugando os povos ocidentais, que, no geral, aceitam suas leis movidas pela fé, ou,
sobretudo, pelo desamparo que é imanente à condição humana. O recurso de Saramago é,
mais uma vez, a apropriação de um personagem histórico – considerando-se que, como
alicerce da cultura, independentemente de ter ou não existido, passa a existir de fato,
exercendo um papel de autoridade absoluta como se houvesse mesmo existido – e recriação
9 BENJAMIN, Walter. “Teses sobre o conceito de história”. In: Magia e técnica, arte e política. Obras
escolhidas I. trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 225. 10
SARAMAGO, José. História do cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 11
Idem, O evangelho segundo Jesus Cristo. Companhia das Letras, 1991.
13
de sua biografia, com o fim de desmistificá-lo. O Jesus de Saramago caracteriza-se por sua
condição de homem comum e por estar destacado da figura do Deus monoteísta da tradição
judaica, ou seja, esse Jesus não é parte da Santíssima Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo –
mas um homem comum, sem propriedades divinas ou extra-materiais, ao qual Saramago não
atribui a fundação do cristianismo – que, aqui, mostra-se absolutamente arbitrária – apesar de
se tratar do próprio Cristo. Nesse sentido, Saramago recria a história de Jesus como quem
quer dar ao homem Jesus – sujeito histórico anterior à sua canonização – a oportunidade de
contar a história por trás da sua sacralização, produzindo, assim, o testemunho de quem é
sequestrado pela história em favor do poder.
A história conduz o trabalho de sua própria refutação, visto que o presente aponta para
ela como seu pior resultado. Cito aqui alguns exemplos dos trabalhos que compõem o ciclo
histórico da obra de Saramago, que promove a reflexão também sobre os elementos
fundadores da civilização ocidental e da sociedade portuguesa desde seus primórdios como
objetos de crítica e motivadores de questionamento, para defender que o recurso estético de
Saramago transita em torno da leitura dialética da história, adotando como ponto de partida
fragmentos históricos específicos. A obra de Saramago se desdobra como produto do trabalho
de um homem ocidental empenhado em perseguir as fissuras do discurso histórico oficial a
cada novo projeto literário. Cabe, inclusive, dizer que o ofício de Saramago constitui-se da
prática política de um sujeito histórico lúcido sobre seu tempo e sobre o mundo em que vive,
e que dedica sua arte à construção do pensamento crítico. O fio condutor de suas obras é esse
pensamento crítico, e “situa-se entre aqueles que criticam a incapacidade do sistema
capitalista para, considerando-se que as circunstâncias formam o homem, formar de maneira
humana as circunstâncias (...)”, para citar um de seus críticos, André Bueno12
, segundo o qual,
12
BUENO, André. Formas da crise. Estudos de literatura, cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Graphia, 2002.
p. 44.
14
“se essas são as críticas do cidadão José Saramago ao mundo em que vive, vai um bom
caminho entre essas posições públicas e a elaboração formal de seus relatos”13
.
No caso de O ano da morte de Ricardo Reis, o salazarismo é o epicentro, ao qual a
narrativa conduz depois de aberta pela inversão do verso d’Os Lusíadas, de Luís de Camões14
– “Onde a terra acaba e o mar começa” – presente na terceira estrofe do canto III do poema
épico sobre a aventura dos portugueses mercantilistas em busca do Novo Mundo. A versão
parodiada de Saramago – “Aqui, onde o mar acabou e a terra principia” – aponta para o foco
do olhar do narrador: a pátria, linha de chegada à qual o mar percorrido conduz quem vem de
fora. O narrador está retornando a Portugal, e assim inicia o romance. Um retorno, no entanto,
pressupõe uma partida, e nesse caso, deve-se lembrar que Portugal é o país deixado para trás
em muitos momentos de sua história, dentre os quais se destaca a expansão marítima do
século XV. Desde então, observa-se a busca pela vida fora de Portugal, desde os
colonizadores, que deixam o país atraídos por novas formas de predomínio econômico e
político em terras distantes, passando pelo episódio da família real que, em 1808, foge de
Portugal, deixando-o à mercê da invasão de Napoleão III, até as famílias portuguesas que
imigraram para as colônias e ex-colônias – em especial, o Brasil – quando viram nisso a
chance de estabelecerem uma vida mais estável longe da crise portuguesa. Considerando-se,
portanto, que Portugal é o país abandonado por excelência, Saramago se dispõe a retornar ao
país dos autoexilados.
Para tal, o recurso utilizado como guia da narrativa é a apropriação de Ricardo Reis,
heterônimo de Fernando Pessoa, que é transformado em personagem de romance por
Saramago, de modo que apresenta uma existência que extrapola a criação de Fernando
Pessoa. Como heterônimo, Ricardo Reis é criado por Pessoa como um médico educado em
um colégio de jesuítas e que vai viver no Brasil em 1919, “pois se expatriou expontaneamente
13
Ibidem, p. 44. 14
CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Porto: Porto Editora, 1997. p. 134.
15
por ser monárquico”15
. Desde então, não há na obra de Pessoa, referência ao que teria
acontecido a Ricardo Reis depois de decidir por seu autoexílio, e essa lacuna se apresenta a
Saramago como a tela em branco ao pintor. Na verdade, essa lacuna não é preenchida; mas o
diálogo entre ortônimo e heterônimo é restituído, o que se promove por ocasião – mesmo que
pareça paradoxal – da morte real de Fernando Pessoa, em 1935.
Para a compreensão do personagem Ricardo Reis será necessário retornar ao
heterônimo Ricardo Reis e analisar o seu conjunto de odes. A descrição de Fernando Pessoa
sobre seu heterônimo, presente na conhecida carta a Adolfo Casais Monteiro servirá também
de amparo para a análise. Esta se inicia pela identificação das linhas filosóficas de Ricardo
Reis, que partem da influência exercida pela cultura helênica e pela literatura clássica.
Considerando-se que Alberto Caeiro é o mestre de todos os heterônimos, e por ser pagão,
assim como Ricardo Reis, também será brevemente analisado. Em seguida, procurarei
descrever a oscilação emocional e moral presente no conjunto das odes, que se iniciam pelos
princípios helenistas, mas declinam à inconstância emocional que Ricardo Reis identifica no
cristianismo. Essa oscilação será lida em paralelo ao contexto histórico reconhecível a partir
das datas das odes, que demonstram não apenas acompanhar o “espetáculo do mundo”, como
também deixam evidente que o sujeito poético se contagia pela realidade vivida. Essa
realidade histórica será compreendida a partir dos estudos de Eric Hobsbawm16
, no contexto
internacional, e a partir das análises de Oliveira Marques17
e Fernando Rosas18
, no contexto
português do início do século. Em seguida, será o momento de ler o Ricardo Reis que compõe
suas odes do exílio no Brasil, onde a crise também está presente. Para a compreensão desse
15
PESSOA, Fernando. Obra em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998, p. 98. 16
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. O breve século XX. 1914-1991. 2a ed. Trad. Marcos Santarrita. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995. 17
MARQUES, A. H. de Oliveira. A Primeira República Portuguesa. Para uma visão estrutural. Lisboa: Livros
Horizonte, 1970. 18
ROSAS, Fernando. O Estado Novo nos anos trinta. Lisboa: Editorial Estampa, 1986.
16
período, valerei do estudo de Edgar Carone19
. Por fim, apontarei versos escritos a partir de um
sentimento de aproximação da morte, ou da morte como tema central.
Já que Ricardo Reis testemunha, ao longo do romance, o mundo do tempo da narrativa
– 1935 a 1936 –, o terceiro capítulo deste trabalho terá como matéria a investigação do tempo
histórico que o protagonista do romance observa, trazendo de volta a esse tempo o narrador de
1984, que quer voltar-se para o passado, promovendo, assim, um novo testemunho sobre
aquele tempo. Assim como o narrador persegue as andanças de Ricardo Reis e suas
observações do cotidiano, perseguirei esse narrador, e o que ele quer mostrar sobre aquele
contexto histórico narrado. Começarei pela apresentação de Lisboa como a cidade fantasma,
como uma representação do Hades e do mundo dos mortos. Pensarei no lugar que Ricardo
Reis habita como a margem do rio, o que implica uma inversão da imagem simbólica da
realidade construída em suas odes: enquanto antes a margem era o espaço da vida idealizada,
que se mantém à distância da vida real, agora a realidade está à margem do rio, que
representa, desta vez, a vida imaginada, tanto pelo indivíduo, quanto pela história oficial. Isso
será relacionado com a ideia de que o estado de exceção – a margem – tem se tornado a regra,
como bem percebe Walter Benjamin20
. Procurarei montar um panorama histórico a partir do
que o romance oferece: as narrativas extraídas diretamente do real – as notícias de jornal e o
romance pró-regime, Conspiração – e os elementos históricos ficcionalizados – a intimação
de Ricardo Reis pela polícia e o estado de exceção se embrenha e alcança o domínio privado,
a peregrinação em Fátima, o moralismo vigilante, os movimentos subversivos representados
pelo marinheiro Daniel, a população miserável e analfabeta, tudo isso servindo para
confrontar a realidade apresentada pela versão do regime. Para a compreensão da versão
histórica oposta a essa que Saramago quer desmontar, consultarei historiadores orientados por
19
CARONE, Edgar. Revoluções do Brasil contemporâneo. 2a ed. São Paulo: Difel, 1975.
20 BENJAMIN, Walter. “Teses sobre o conceito de história”. In: Magia e técnica, arte e política. Obras
escolhidas I. trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
17
uma metodologia de esquerda, como Antônio de Figueiredo21
, Fernando Rosas22
, Oliveira
Marques23
e Luis Reis Torgal24
. Para a compreensão do Portugal anterior ao século XX,
servirão de apoio os estudos de Oliveira Martins25
.
O quarto capítulo consistirá no estudo sobre o Ricardo Reis construído por Saramago.
O protagonista será descrito, em um primeiro momento, a partir de como está apresentado no
início do romance: homem pertencente à classe dominante, apegado a códigos de conduta e à
filosofia helenista assumida pelo sujeito poético das odes. Em seguida, ele será estudado
conforme as características apresentadas no romance: estrangeirismo do viajante, do homem
em trânsito; os elementos que compõem o sujeito em crise, como o labirinto e o espelho; e a
condição humana aqui representada pela morte em vida. A mudança do personagem como
resultado do contato com o caos da realidade será também analisada. Como parte dos fatores
que servem para desestabilizar o personagem, serão identificados os elementos retirados das
odes e igualmente ficcionalizados: as musas Lídia e Marcenda, e os velhos jogadores de
xadrez do Alto de Santa Catarina.
Em seguida, chegará o momento de se estudar o personagem criado com base em
Fernando Pessoa. Inicialmente, serão percebidas as características dos heterônimos que se
reproduzem no romance, como por exemplo, as discordâncias entre eles, o que serve, no
romance, para delinear as divergências ideológicas entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa.
Para a compreensão de alguns traços da poesia pessoana, como o fingimento, usarei os
estudos de Jorge de Sena26
, Eduardo Lourenço27
e Jacinto do Prado Coelho28
. O próximo
21
FIGUEIREDO, Antônio de. Portugal: 50 anos de ditadura. Trad. de J.M. Martins Dias e Maria Manuela
Palmerin. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. 22
ROSAS, Fernando. O Estado Novo nos anos trinta (1928-1938). Lisboa: Editorial Estampa, 1986. 23
MARQUES, A. H. de Oliveira. A Primeira República Portuguesa. Para uma visão estrutural. Lisboa: Livros
Horizonte, 1970. 24
TORGAL, Luís Reis. Estados novos, estado novo: ensaios de história política e cultural. vol. 1. 2ª ed.
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009. 25
MARTINS, J.P. de Oliveira, 1908. 26
SENA, Jorge de. Fernando Pessoa & Cia heteronímia. (Estudos coligidos 1940-1978). 3ª edição. Lisboa:
Edições 70, 2000.
18
aspecto a se considerar sobre o Fernando Pessoa personagem de Saramago é sua veia crítica.
Esse Fernando Pessoa, então, será considerado um personagem que Saramago constrói com
base em sua leitura do poeta, que vai de encontro com a imagem que o regime salazarista
oferece do poeta, e que se apresenta como a tentativa de Saramago de resgatar Fernando
Pessoa da sua apropriação pelo poder.
O sexto capítulo trará a análise sobre Fernando Pessoa e Camões sendo citados por
Saramago. Primeiro farei uma leitura sobre a forma como Camões é trazido ao romance: está
representado por sua estátua e pela estátua do Adamastor. Por essa razão, retornarei ao poema
mais célebre entre os portugueses, Os Lusíadas, e identificarei a forma como Camões se
imprime na epopeia, isto é, farei uma breve leitura sobre o Velho do Restelo e o Adamastor,
já que esses personagens manifestam as reflexões do próprio poeta. Camões e o Adamastor
são os únicos elementos da epopeia citados por Saramago, porque são os elementos dialéticos
da epopeia, que marcam a crítica às navegações, assim como são os elementos distorcidos
pelo discurso do regime salazarista. Para a compreensão da epopeia portuguesa, recorrerei a
camonistas como Cleonice Berardinelli29
, Jorge de Sena30
e Eduardo Lourenço31
. Em seguida,
procurarei refletir sobre a citação como recurso encontrado por Saramago para resgatar esses
poetas que se encontram assimilados pelo poder, ocasionando uma leitura distorcida de suas
obras. A citação será considerada um meio de revisão histórica, assim como exercício de
compreensão do presente: a citação alerta para o desconhecimento de elementos que são
enterrados pela versão histórica dominante. Isso será relacionado à morte simbólica de
27
LOURENÇO, Eduardo. Fernando Pessoa, o rei da nossa Baviera. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1986. 28
COELHO, Jacinto do Prado. Diversidade e unidade em Fernando Pessoa. 5ª edição. São Paulo:
Verbo/EDUSP, 1977. 29
BERARDINELLI, Cleonice. Estudos Camonianos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Cátedra Padre
Antônio Vieira, Instituto Camões, 2000. 30
SENA, Jorge de. A estrutura de <Os Lusíadas> e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do
século XVI. Lisboa: Portugália Editora, 1970. Trinta anos de Camões. 1948-1978 (Estudos camonianos e
correlatos). Volume I. Lisboa: Edições 70, 1980. 31
LOURENÇO, Eduardo. Poesia e Metafísica. Camões, Antero, Pessoa. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1983;
Labirinto da Saudade. Psicanálise mítica do destino português. 8ª ed. Lisboa: Gradiva, 2012.
19
Ricardo Reis, e a necessidade da revisão histórica será amparada pelas reflexões de Walter
Benjamin32
, em suas “Teses sobre o conceito de história”. Para citar o texto direto de
Benjamin, utilizarei a tradução presente no estudo de Michael Löwy33
, assim como para
compreender melhor o trabalho de Benjamin. Por fim, analisarei o estilo narrativo de
Saramago a partir de alguns trechos do próprio O ano da morte de Ricardo Reis, e de que
forma esse estilo é desenvolvido.
32
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas I. trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed.
São Paulo: Brasiliense, 1994. 33
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”.
Trad, Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.
20
2. RICARDO E OS REIS
2.1. RICARDO REIS, O HETERÔNIMO DE FERNANDO PESSOA
Ricardo Reis é o heterônimo pessoano cuja obra poética manifesta a mais profunda
necessidade de se distanciar do mundo e seu cotidiano. Sua poesia é construída a partir de uma
retomada da filosofia e da literatura clássicas, inclusive da adoção da ode como forma, da
mitologia greco-romana e das musas inacessíveis que caracterizam aquela cultura remota.
Horácio e Epicuro são os filósofos que o influenciam, e dos quais adota os preceitos apônicos e
ataráxicos, apresentando um pensamento da busca pela vida livre de grandes emoções e
compromissos, distanciando-se de tudo o que pode causar sofrimento. Reconhece a brevidade
da vida e a efemeridade das experiências. O heterônimo pessoano em questão é um homem
culto, “latinista por educação alheia, e semi-helenista por educação própria”34
, que adota a
indiferença como princípio. Nas odes, fala como quem quer escapar aos acontecimentos, como
quem quer tornar-se imune a eles35
. No poema que abre sua obra é possível perceber um louvor
à abstenção:
[310]
Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.
Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,
Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De natureza...
34
PESSOA, Fernando. Obra em prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1998. p. 98. 35
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2003.
21
À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.
O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.
Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.
Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.
Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.36
A vida é, aqui, concebida como a jarra em que são postas as flores, que ali ficam
imóveis, apenas esperando para murchar, visto que, cortadas de seus caules, não lhes resta
mais nada; as flores são os homens, aos quais o único destino reservado é a morte, desde o
momento em que são separados do útero pelo corte do cordão umbilical. A vida é a espera
pela morte, que já é um grande assombro para quem vive, portanto, que essa espera seja
calma, plácida, e estática, sem grandes ou bruscos movimentos. A vida deve ser vivida em
uma zona de conforto que se mantém em uma faixa neutra entre “tristezas” e “alegrias”,
invulnerável; nenhum desses estados deve fazer parte da vida, portanto, o sujeito deve conter
as emoções, mantendo-se imperturbável. Ou melhor, a vida não deve ser vivida, mas
36
PESSOA, 2003, p. 254, grifos meus.
22
decorrida. A vida é um longo repouso, em que não se faz nada além de vê-la passar “à beira-
rio” ou “à beira-estrada”, à margem, em isolamento, em uma autoexclusão dos
acontecimentos do mundo. “Sempre no mesmo leve descanso de estar vivendo”, porque viver
é trabalhoso até mesmo para quem apenas decorre a vida. Deixar a vida passar é ir se
desintegrando aos poucos, o que já é cansativo demais para Ricardo Reis, já é agir o
suficiente, portanto, “Saibamos, quase/ Maliciosos,/ Sentir-nos ir”, porque “Não vale a pena/
fazer um gesto”. Qualquer ação é inútil, porque não pode evitar a morte. O homem é visto por
Ricardo Reis tanto como Cronos37
, quanto como seus filhos deuses, porque oscila entre aquele
que age – no caso de Cronos, o homem que devora os filhos para evitar ser destronado por um
deles – e aquele que está submetido a uma vontade superior que não pode ser evitada. A
imagem que Ricardo Reis rejeita é a do homem que age. A condição humana que Ricardo
Reis concebe é a existência submetida ao destino fatal, do qual não está livre nem o homem
ativo, nem o homem inerte. Por isso, Cronos, ou Saturno para os romanos, é o Senhor do
Tempo, supremo e implacável, “Não se resiste/ Ao deus atroz/ Que os próprios filhos/ Devora
sempre”. Por isso viver deve significar restringir-se a aprender com as crianças e com a
natureza, ou seja, sem se integrar ao mundo dos adultos e dos homens civilizados, a urbe, o
mundo criado pelo homem onde se perdem os valores ancestrais. Em vez de entrar na água do
rio, Ricardo Reis propõe que apenas se molhem as mãos levemente e em rios calmos,
mantendo-se na margem e a salvo da corrente de água, cujo fluxo é capaz de transportar quem
mergulha nele para direções que não se escolhem. A corrente do rio é tão implacável quanto
Cronos.
O rio é metáfora da civilização, o mundo não natural criado pelo homem assim que
deixa o jardim do Éden e é obrigado a encontrar seu novo lar. É importante lembrar que no
poema citado há um interlocutor, representado pelo vocativo “Mestre”, que no contexto dos
37
KURY, Mário da Gama. Dicionário de Mitologia grega e romana. 6ª ed. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001.
23
heterônimos é Alberto Caeiro, o mais velho de todos, do qual os outros heterônimos são
discípulos. Alberto Caeiro é o pastor, o guardador de rebanhos, que vive no alto de uma
colina, de onde vê, distanciado, a cidade, enquanto cultiva seu estilo de vida camponês e
arcaico, pré-capitalista, pré-cristão e pré-civilizado, mesmo que esteja situado no tempo da
civilização ocidental e cristã. Mas ele se isola da vida social, mantendo a alma do homem
natural, ou a idealização do homem ainda harmonizado com a natureza. Observa-se em
Alberto Caeiro uma aproximação com o próprio Cristo, pastor e mestre, mas distinto do resto
da humanidade, homem supra-humano, pela nobreza, virtude, e pela natureza divina, sendo
que Alberto Caeiro é pastor pagão, não há nele inclinação ao cristianismo, ele representa
exatamente o elemento exterior à cultura fundada pelos seguidores de Cristo. Suas iniciais –
A.C. – remetem à marca do calendário ocidental para os anos anteriores a Cristo, o que
associa ainda mais Alberto Caeiro ao período anterior à sociedade cristã. Sua aproximação ao
Cordeiro de Deus se restringe à imagem que ambos têm em comum do líder destituído do
poder e respeitado pela comunidade arcaica: Caeiro é exatamente a corrupção do Mestre dos
Cristãos, porque possui a sabedoria inalcançável ao homem civilizado. A distância entre
Caeiro e o homem social é admirada por Ricardo Reis, enquanto revela a impassibilidade e
falta de envolvimento com o mundo pretendidas por Reis. Mas o próprio Ricardo Reis
também tem restrições à poesia de seu mestre, reprovando a emoção presente em seus
escritos, já que se trata de um traço marcantemente cristão, em oposição à pretendida
imperturbabilidade pagã, orientada fundamentalmente pela razão. Segundo Ricardo Reis,
“falta, nos poemas de Caeiro, aquilo que devia completá-los: a disciplina exterior, pela qual a
força tomasse a coerência e a ordem que reina no íntimo da obra”38
, apesar de apresentar uma
“coerência intelectual desconcertante”, coerência da qual, como veremos, Ricardo Reis não
será capaz de apresentar em sua poesia. A admiração de Reis por Caeiro se sustenta sobretudo
38
Ibidem, p. 201-202.
24
no paganismo dessa poesia, do qual Ricardo Reis se serve, pelas razões já mencionadas: o
paganismo não cultiva a emoção, priorizando, ao contrário, a índole racional.
É preciso destacar, no entanto, que o paganismo de Ricardo Reis – e também de
Caeiro – não diz respeito a opção religiosa, mas, trata-se de afinidade ideológica. Ricardo
Reis, pelo menos, não se atém a compromissos, sendo, portanto, inviável o entendimento de
seu paganismo como seu credo. Na verdade, ele está voltado para a Antiguidade Clássica,
período do qual resgata muitos dos valores e padrões estéticos e morais, a começar pela
aproximação entre deuses e homens, tão presente em Homero, cujas epopeias mantêm o
homem no centro da trama, enquanto os deuses interferem coadjuvantes na vida terrena.
Na ode 311, essa aproximação é evidente, já que os deuses são apresentados como ex-
homens:
Os deuses desterrados,
Os irmãos de Saturno,
Às vezes, no crepúsculo
Vêm espreitar a vida.
Vêm então ter conosco
Remorsos e saudades
E sentimentos falsos.
É a presença deles,
Deuses que o destroná-los
Tornou espirituais,
De matéria vencida,
Longínqua e inativa.
Vêm, inúteis forças,
Solicitar em nós
As dores e os cansaços,
Que nos tiram da mão,
Como a um bêbedo mole,
A taça da alegria.
Vêm fazer-nos crer,
Despeitadas ruínas
De primitivas forças,
Que o mundo é mais extenso
Que o que se vê e palpa,
Para que ofendamos
A Júpiter e Apolo.
Assim até à beira
Terrena do horizonte
Hiperion no crepúsculo
Vem chorar pelo carro
Que Apolo lhe roubou.
25
E o poente tem cores
Da dor num deus longínquo,
E ouve-se soluçar
Para além das esferas...
Assim choram os deuses.39
O processo aqui é inverso: enquanto o cristianismo apresenta sua concepção do
homem como aquele que perdeu sua condição semi-divina, a da criatura anterior ao pecado
original, e por isso foi expulso do paraíso, Ricardo Reis fala de deuses que foram expulsos da
terra e por isso deixaram de ser homens e tornaram-se deuses. Eles interferem na vida
humana; não porque querem protegê-lo, mas porque sentem saudades dos sentimentos
humanos. São seres “desterrados”, feitos “de matéria vencida/ longínqua e inativa”, são
“inúteis forças”, “despeitadas ruínas de forças primitivas”. Pode-se até notar uma
identificação entre deuses e homens por sua natureza imperfeita e sua índole duvidosa. Os
deuses provocam eventos para que possam viver, através dos homens, os sentimentos de que
foram destituídos.
2.2. O MESTRE
Voltando-se ao princípio de Ricardo Reis de conter as emoções, nota-se que os deuses
representam o que ele deseja ser: ex-homem. Nisso se observa mais uma lição que Ricardo
Reis tenta aprender com Alberto Caeiro, especificamente em “O guardador de rebanhos”, o
pastor que nunca guardou rebanhos, mas é como se os guardasse:
I
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
39
Ibidem, p. 254-255.
26
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me veem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural –
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
27
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.40
Alberto Caeiro está, entre os heterônimos, no patamar de mestre, no qual se mantém a
figura idealizada. Ele é como os oráculos das culturas antigas, ou como um pajé, que tem o
maior conhecimento, mas que não aprendeu, porque é inato. Pertence a um universo paralelo
e anticultural, no qual os outros heterônimos procuram um modelo, e onde “Toda a paz da
Natureza sem gente/ Vem sentar-se ao meu lado”. Nesse lugar destacado, está em sossego e
longe de precisar das experiências dos homens socializados: é como os deuses descritos por
Ricardo Reis. Ao contrário dos homens, está destituído de emoções – o que não se deve
confundir com as sensações –, mantendo exatamente a racionalidade que Ricardo Reis diz
faltar-lhe, porque os heterônimos nunca estão em acordo. Não se devem dar créditos ao que os
heterônimos dizem uns dos outros, a não ser que isso sirva para a compreensão do heterônimo
que está desenvolvendo a análise, mas nunca para o analisado. Mas, no caso da emotividade
de Caeiro, à qual Ricardo Reis se refere, possivelmente, deve-se ao fato de que o mestre se
guia por seus sentidos, o que ainda o mantém próximo à natureza primária e instintiva do
homem. Caeiro pastoreia suas sensações, enquanto Ricardo Reis procura descartá-las
orientando-se pela razão.
II
O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda.
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade no Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se faz para pensarmos nele
40
Ibidem, p. 203-204.
28
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...41
Caeiro vê com nitidez; mas cada visão é nova, com a qual não se deslumbra. Não há
tédio, mas também não há surpresa. Na verdade, o princípio de Caeiro está em uma zona
neutra e estável: ele confia em suas sensações, apesar de não pensar sobre elas; o sentido se
aguça e simplesmente existe, e Caeiro não pensa sobre ele. Pensar, para Caeiro, é como uma
doença dos olhos, é uma fonte de perturbação que embaça a visão – Caeiro, ao contrário vê
com nitidez e precisão: “O meu olhar é nítido como um girassol”. É guiado pelo que vê, e não
pelo que escolhe, porque escolher é pensar. O girassol acompanha a luz do sol, seu único
movimento depende do astro central. O universo restritamente natural do poeta mantém sua
atenção fixa, e pensa por ele. É o sol, o vento, a relva, a paisagem que o orientam. Essa
capacidade de acompanhar o entorno – “O mundo não se fez para pensarmos nele/ (Pensar é
estar doente dos olhos)/ Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...” – sem se
comover será o ideal de existência tanto do Ricardo Reis personagem de Saramago quanto do
heterônimo pessoano, mas que ambos serão incapazes de sustentar, enquanto Caeiro se
mantém de acordo com seu princípio, ao menos enquanto está longe da morte. Quando ela se
aproxima, nota-se um teor de angústia, até que ele declara: “Estou doente”42
. Como, para
Caeiro, pensar é a doença, aqui, ele admite, ou se dá conta de que pensa, como em “Também
sei fazer conjecturas”43
. Retornando-se ao início, quando ele diz que guarda rebanhos, trata-
se, na verdade, de guardar suas ideias (“Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas
41
Ibidem, p. 204-205. 42
Ibidem, p. 201-202. 43
Ibidem, p. 245.
29
ideias,/ Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,/ E sorrindo vagamente
como quem não compreende o que se diz/ E quer fingir que compreende.”), e que, de fato, seu
universo é tão exterior à dimensão cultural, que se restringe exatamente à poesia:
VII
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-se pobres porque a nossa única riqueza é ver.44
Caeiro despreza o mundo e volta-se para si; e por estar demasiadamente voltado para
si mesmo, reencontra seu estado natural, sua própria natureza, origem de suas ideias, e onde
seu eu infantil ainda se surpreende a cada novidade, mas sem se extasiar, é apenas a sensação
motivada pelo inédito – o êxtase não é natural, é um estado de torpor. É dentro de si que
Caeiro pastoreia e de onde seus sentidos se manifestam em ideias, incluindo-se a visão: ele
não é um observador da realidade, mas de si mesmo. Caeiro é um camponês distanciado da
realidade urbana, tanto no tempo quanto no espaço; seu lirismo não diz respeito a um sujeito
poetizado, mas a um conjunto de ideias, seu rebanho, o pensamento que apenas ele conduz,
sem intervenção cultural, e que faz dele um ser abstrato. A natureza é o habitat original que
atrai sobre si as ideias desse sujeito abstraído do mundo, e que por sua vez, volta-se sobre si
para pastorear suas ideias. Desse modo, localiza-se em uma dimensão que somente existe na
poesia, a que ele chama de “aldeia”, e onde ele pode viver num cimo de outeiro, sabendo que
o mundo existe, mas sem participar dele, e pode ser tão grande quanto ele próprio o é. O
mundo das ideias de Alberto Caeiro é como o platônico, porque deste o homem comum e
urbano – empobrecido em sua visão – se mantém afastado, é um mundo acessível a poucos.
Ao mesmo tempo, é o pensamento presente naquele mundo das ideias que inaugura a razão
44
Ibidem, p. 208.
30
ocidental, através da herança helênica; e a razão ocidental é a base da cultura da qual Alberto
Caeiro quer se manter abstraído. O mundo das ideias de Caeiro é aquela onde ele se insere e
vive, e dele é pastor: o guia do rebanho de ideias é seu senhor. “Com a dialética, Platão
inaugura no pensamento ocidental a ideia da razão como atividade intelectual ou ciência”45
:
enquanto, para Caeiro, a ciência nem sequer chega a ser concebida, fica em sua fase
preliminar, na deambulação dos pensamentos, como as ovelhas que pastam, a ciência do
mundo ocidental se torna um bem cultural que domina o homem e o escraviza obrigando-lhe a
decifrá-la. “A razão [platônica] conquista a ciência examinando uma a uma (...). Separando e
unindo qualidades, a dialética purifica a essência, liberando-a de toda contradição interna,
para apreendê-la em sua identidade real.”46
Essa crença na apreensibilidade da ciência não é
uma ilusão de Caeiro, que não se incumbe de resolver contradições nem de desvendar o saber,
nem os mistérios do mundo, convencido de que pensar é estar doente. Ele se conforma em
existir e ter sensações, as que Platão não inclui no campo do intelecto, mas que são
exatamente as ideias pastoreadas por Caeiro. Platão e Caeiro têm em comum apenas a
concepção do mundo das ideias como não pertencente ao domínio da vida humana. Caeiro se
mantém exclusivo à existência em poesia ou ficcional e distante da vida social e oprimida.
Sua condição de pastor de ideias é a expressão de sua racionalidade.
2.3. O RICARDO REIS HELENISTA
A figura imperturbável de Alberto Caeiro, assim como os ex-humanos despojados de
sentimentos representados pelos deuses, são modelos para Ricardo Reis, e constituem o que
ele almeja ser. Os deuses identificados com os homens, dessa maneira, estão também
destituídos de sua autoridade, o que demonstra novamente que a orientação pagã de Ricardo
45
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia. Vol I. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.
284. 46
Ibidem, p. 284.
31
Reis não se caracteriza como hábito religioso, mas como ausência de religião, reforçando,
portanto, seu descompromisso perante a vida. Na ode 312, ele assume a representação do que
Cristo não é. Todo martírio e santidade são rejeitados pelo sujeito poético que, em vez da
coroa de espinhos, pede a coroa de rosas. Aqui, o sujeito é o próprio jarro que recebe as flores
cortadas do caule, presente na ode 310, aceitando guardar isso que representa a vida que se
esvai, mas sem sofrimento.
Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas –
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.47
E na ode 313, onde o deus Pã está vivo, o deus cujo nome tem origem na palavra
grega pan, que significa “tudo”, a quem os deuses dão esse nome por Pã agradar a todos48
.
Enquanto Nietzsche afirma que “Deus está morto”49
, falando sobre o deus do monoteísmo,
Ricardo Reis alega que Pã não está, porque simboliza o universal, rebaixando todas as
religiões à irrelevância. Pã não morreu porque sua morte seria a morte de tudo, e é exatamente
a existência de tudo em que tudo o que existe se anula. “Cristo é um deus a mais”, Ricardo
Reis assim aceita, porque aceita tudo sem ter compromisso com nada: “os deuses são os
mesmos”.
O deus Pã não morreu,
Cada campo que mostra
Aos sorrisos de Apolo
Os peitos nus de Ceres
Cedo ou tarde vereis
Por lá aparecer
O deus Pã, o imortal.
Não matou outros deuses
O triste deus cristão.
47
PESSOA, 2003, p. 255. 48
KURY, Mário da Gama. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. 6a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001, p. 301.
49 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
32
Cristo é um deus a mais,
Talvez um que faltava.
Pã continua a dar
Os sons da sua flauta
Aos ouvidos de Ceres
Recumbente nos campos.
Os deuses são os mesmos,
Sempre claros e calmos,
Cheios de eternidade
E desprezo por nós,
Trazendo o dia e a noite
E as colheitas douradas
Sem ser para nos dar
O dia e a noite e o trigo
Mas por outro e divino
Propósito casual.50
Como pôde ser visto na ode 315, Ricardo Reis tem uma interlocutora, Lídia. Ela é uma
de suas musas, dentre as quais também se incluem Neera, Chloe e Marcenda. Diferentemente
dos trovadores medievais, Ricardo Reis não tem apenas uma amada, assim como também não
tem um único deus; ele é disperso: antes de ser um herói amoral, é o herói da afirmação,
porque sua moral é pancêntrica. A afirmação de tudo é sua maneira de neutralizar tudo, e
reduzir tudo a pequenas irrelevâncias. Na ode 316, ele chama Neera para que vivam o
momento enquanto esperam pela já conhecida morte. O que se deve fazer é ir sentindo a vida
passar, sem estreitarem-se as relações, e murchar aos poucos, assim como as flores, que vão
murchando longe de suas raízes, e estáticas em seus vasos. Em 318, Epicuro é mencionado
como aquele que tem a postura de um deus, “Tendo para os deuses uma atitude também de
deus,/ Sereno e vendo a vida / À distância a que está”51
, a postura de deus é a da indiferença
em relação à vida, a da serenidade e a de quem decorre a vida, mais um modelo para Ricardo
Reis, enquanto está “Desterrado da pátria antiquíssima da minha/ Crença, consolado só por
pensar nos deuses”52
. A antiquíssima pátria é a Grécia, origem dos deuses pagãos; enquanto
Ricardo Reis está desterrado da terra dos deuses, os deuses estão desterrados da terra dos
homens, para a qual sempre voltam para espreitar a vida humana. Apesar do elogio epicurista,
50
PESSOA, 2003, p. 255. 51
Ibidem, p. 258. 52
Ibidem, p. 258.
33
percebe-se nessa ode a manifestação da melancolia do desterrado, do Adão expulso do
paraíso, sem lar, sem pátria, sem abrigo; do sujeito que vive longe da Grécia de Aristóteles e
da Idade de Ouro, no mundo onde “o frio leve treme”. Não se trata do pastor Alberto Caeiro,
que se distingue no mundo pré-ocidental, e lá quer permanecer; mas do Ricardo Reis do
mundo ocidental, mundo herdeiro dos gregos, mas de onde os deuses foram expulsos. O
elogio de Ricardo Reis é, sim, ao ideal de felicidade helênico – a alcançada através da
impassibilidade – que seria possível pela autoexclusão em um domínio marginal, assim como
a atitude de Epicuro que “vê a vida à distância a que está”. Sendo assim, Ricardo Reis é a
personificação do desterrado, o que mistura a melancolia do homem sem lugar, mas também a
conformidade em não estar fixo, em não ter que se comprometer nem com o lugar que habita.
De qualquer jeito, não se trata absolutamente de um sujeito feliz, como ele pretende, ao
abandonar a reflexão sobre o que acontece à sua volta. Ricardo Reis é indiferente, encontra
um modo de existência em que ele pensa estar seguro, mas não está: é o tempo todo passível
de mudanças emocionais e crises melancólicas, e essa oscilação está bastante presente em sua
poesia.
O modelo filosófico tomado por Ricardo Reis identifica-se com as correntes
desenvolvidas no período do helenismo53
, que é o pensamento em voga no império
alexandrino, desde 332 a.c., momentos de conquistas de Alexandre, até cerca de 30 a.c..
Desse pensamento, o Epicurismo, o estoicismo e o ceticismo destacam-se como correntes
manifestas na poesia de Ricardo Reis. O estoicismo é caracterizado pela concepção do
homem como um microcosmo subordinado ao macrocosmo, é parte do universo e da
natureza. O que se deve lembrar, portanto, é que o homem não é capaz de evitar as
determinações do universo; disso o estoico constrói sua ética fatalista. O destino é o princípio
do estoico, que age conforme o que o destino lhe apresenta, resigna-se perante os
53
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. 9a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p.
84-100.
34
acontecimentos, que são implacáveis. Sendo assim, a índole estoicista apresenta um rigoroso
autocontrole, contenção e austeridade. Danilo Marcondes54
destaca, inclusive, que o
desenvolvimento do cristianismo terá grande influência do caráter determinista e a
valorização do autocontrole, da submissão e da austeridade afirmados pelo pensamento
estoico. O pensamento epicurista tem equivalência com o estoicismo, visto que ambos
postulam como princípio básico a felicidade obtida através da tranquilidade ou
imperturbabilidade (ataraxia). No entanto, o caminho para a felicidade é a valorização do
prazer como algo natural e que deve ser satisfeito, mas com moderação e pragmatismo. A
apatia como meio de se alcançar a felicidade também está presente na corrente cética, cujo
principal expoente é Pirro, para quem as coisas não são possíveis de serem apreendidas, e
tentar conhecê-las é uma iniciativa fadada ao fracasso. Esse pressuposto leva à conclusão de
que não se deve assumir qualquer posição acerca das coisas, à frente do que a melhor atitude é
manter o distanciamento e a inação. Esses princípios de apatia orientam o desejo de Ricardo
Reis de não ter nada:
[319]
Não tenha nada nas mãos
Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?
Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?
Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
54
MARCONDES, 2005.
35
Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.55
O determinismo estoicista manifesta-se: “Que trono te querem dar/ Que Átropos to
não tire?”. Não importa o que se faça, nada pode evitar o destino final, que é a morte; por isso,
o melhor caminho é colher as flores e largá-las logo em seguida, evitando o envolvimento,
realizando, dessa maneira, a satisfação moderada do prazer. Essa postura permite que o
sujeito se resguarde e tenha controle sobre si, como Ricardo Reis aconselha: “Abdica e sê rei
de ti próprio”. Como qualquer ambição, o trabalho é rejeitado, porque nunca será
recompensado: “Pouco usamos do pouco que mal temos./ A obra cansa, o ouro não é nosso./
De nós a mesma fama/ Ri-se, que não a veremos”56
quando estivermos mortos. A abdicação e
a inação acompanham-se, portanto, da aceitação, porque ela impede que se tenham ambições
e que se queira mudar o que pode não estar de acordo. Por isso, a próxima ode é um conselho
sobre como se pode alcançar a abdicação:
[320]
Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.
Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta à flor como a ele
De Átropos a tesoura.
Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgíaco
Apague o gosto às horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.
E ele espera, contente quase e bebedor tranqüilo,
E apenas desejando
Num desejo mal tido
Que a abominável onda
O não molhe tão cedo.57
55
PESSOA, 2003, p. 258. 56
Ibidem, p. 260. 57
Ibidem, p. 259.
36
Aqui, a real sabedoria é epicurista, e consiste na autoexclusão da vida comum, estado
que se situa à margem do mundo, de onde se assiste ao seu movimento – seu espetáculo – sem
que se faça parte dele. Trata a vida não como o presente ou a realidade, mas como uma
recordação, que mantém em uma espécie de universo paralelo, do qual mantém-se distância
através da embriaguez ou do sonho. Entretanto, é preciso destacar que a noção da vida como
lembrança deixa implícito o fato de que essa vida já fora vivida e experimentada, da qual se
formou a lembrança dela. Sendo assim, aquele que se converte em espectador do mundo é
aquele que um dia fora o próprio espetáculo. Mesmo assim, há de se notar algo surpreendente:
o espectador é referido na ode na terceira pessoa – ele – isto é, o sujeito poético, supostamente,
não está falando de si. Considerando-se o processo da heteronímia, sabe-se que o sujeito
poético pode assumir diferentes vozes, reconhecendo-se em um eu que conhece como outro;
porém, ao falar de alguém como se não se tratasse de si mesmo, define esse outro como um eu
reconhecível, mas não como um eu permanente. Não está falando de si. O sábio da ode não é o
sujeito poético, apesar de não ser exatamente exterior a ele; não se reconhece nele, o que
caracteriza o falar sobre outra pessoa. Portanto, aquele que consegue manter a vida somente
como uma lembrança sem se perturbar por ela não é o eu; é a existência que almeja, não aquela
de que dispõe. E, mesmo quando alcançar esse bem, será apenas um “contente quase”, a
plenitude jamais será completa.
Nessa ode, define-se a sabedoria do espectador: o mundo e a realidade devem ser
considerados como um grande espetáculo ao qual se deve assistir, sem participar do que nele
ocorre. Exatamente como o público que assiste a uma peça teatral ou concerto, contempla e
acompanha, mas da peça só participam efetivamente os atores. Aquele que se envolve com os
acontecimentos trágicos do mundo, mesmo que seja só em ter notícia deles, sem experimentá-
los, está sujeito a sofrer; a postura contemplativa e distanciada de Ricardo Reis é sua manobra
para evitar o sofrimento, ou qualquer outro sentimento intenso, que agite a estabilidade de sua
37
existência. Na ode citada, qualquer ambição se mostra evitada, o “desejo mal tido” é o desejo
que não se tem, é a falta de desejo – assim como a memória, porque tudo deve ser sempre
novo e imarcescível. O vinho não é a bebida da alucinação, mas da letargia, e sua cor, assim
como a orgia dionisíaca, deve esconder qualquer consciência da realidade e do tempo.
Dionísio, aqui, não estimula as sensações e visões, o êxtase máximo, mas a ausência de tudo
isso, da verdade dura da vida, assim como da felicidade, que faz sofrer quem a perde. Fala um
sujeito que não quer nada, não tem projetos, sonhos, ambições, nem saudades: a onda pela
qual não quer ser atingido é a morte, destino inevitável e determinado por Átropos e sua
tesoura; mas também é a água do rio, metáfora do mundo e seu fluxo de acontecimentos, que
aparece em uma ode anterior, e talvez a mais conhecida de Ricardo Reis:
[315]
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento –
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
38
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira-rio.
Pagã triste e com flores no regaço.58
O distanciamento que Ricardo Reis quer manter da realidade está representado, nessa
ode, na imagem do indivíduo sentado à margem do rio, observando a corrente de água,
enquanto aproveita também a companhia da musa Lídia, com a qual não tem envolvimento
maior do que o de estar ao seu lado, como duas linhas retas que, paralelas, não se intercedem.
Ele quer olhar o rio sem entrar nele, assim como a plateia não participa do espetáculo. A água
do rio representa os acontecimentos do mundo, o que significa que se molhar nela é o mesmo
que estar envolvido com os fatos correntes. A “abominável onda”, presente na outra ode, é
tanto a morte, maior medo de Ricardo Reis, porque é o desconhecido que o perturba, quanto a
própria vida que existe no mundo, pelo qual ele não quer ser atingido, e do qual se sente
resguardado mantendo-se à margem do rio. Resgatando o imaginário português, pode-se,
inclusive pensar no rio Tejo, o símbolo histórico que colocou Portugal em um trânsito
absolutamente oposto à imobilidade de Ricardo Reis. Nesse sentido, estar à margem do Tejo é
estar destacado de todo o fluxo histórico de Portugal, à parte do que se pode considerar tudo o
que constitui a história de Portugal. Ser atingido pela “abominável onda” do Tejo significaria
tanto ser um sujeito ativamente histórico, quanto um daqueles atores que estão registrados na
história oficial como heróis. Está claro que Ricardo Reis não quer ser nem um, nem outro.
Assim como o envolvimento amoroso é evitado, visto que constitui uma ameaça de frustração,
dor e saudade, a ação política apresenta a possibilidade de derrota. A única ambição aqui é não
ser “mais do que crianças”, não sair dessa condição assexuada e excluída da vida social. As
crianças brincam, fazem jogos, vivem ficções, ilusões, contos de fadas. Sendo assim, Ricardo
Reis recorre a tudo o que garante-lhe estar alienado e alçado do real, porque nisso consiste ser
sábio.
58
Ibidem, p. 256, grifos meus.
39
[323]
Não consentem os deuses mais que a vida.
Tudo pois refusemos, que nos alce
A irrespiráveis píncaros,
Perenes sem ter flores.
Só de aceitar tenhamos a ciência,
E, enquanto bate o sangue em nossas fontes,
Nem se engelha conosco
O mesmo amor, duremos,
Como vidros, às luzes transparentes
E deixando escorrer a chuva triste,
Só mornos ao sol quente,
E refletindo um pouco.59
O fatalismo permite a aceitação, que é, na verdade, conformismo mascarado pela
frustração. Leva à apatia e impede o movimento; no entanto, isso não significa que o sujeito
esteja imperturbável: o mesmo fatalismo que diz que ninguém pode escapar à morte mantém
presente esse fantasma onipresente. Também diz respeito à liberdade como algo inalcançável.
Como foi dito aqui, Ricardo Reis aproxima, muito além da maneira grega, os homens e os
deuses. Quando diz que “Só esta liberdade nos concedem/ Os deuses: submetermo-nos/ Ao
seu domínio por vontade nossa./ Mais vale assim fazermos/ Porque só na ilusão da liberdade/
A liberdade existe”60
, está lamentando a impotência diante da subordinação dos homens aos
próprios homens. Em seguida observa que nem os deuses são livres: “Nem outro jeito os
deuses, sobre quem/ O eterno fado pesa,/ Usam para seu calmo e possuído/ Convencimento
antigo/ De que é divina e livre a sua vida.” Os deuses também se resignam perante sua
condição. E nesse ciclo de dependências entre homens e deuses, não há nada que possa ser
evitado. “Nós, imitando deuses,/ Tão pouco livres como eles no Olimpo(...)” estamos
confinados nessa condição, na vida e no mundo construído pelos homens, de onde Ricardo
Reis não consegue ver saída, construindo uma poesia que é muito mais um lamento do que o
elogio típico da ode. O paganismo de Ricardo Reis assume, então, uma projeção de si na
imagem dos deuses; Ricardo Reis, ao falar dos deuses, fala, na verdade, de si mesmo: é um
sujeito com complexo de superioridade, que se vê distante do mundo real, e não aceita
59
Ibidem, p. 260. 60
Ibidem, ode 326, p. 262.
40
pertencer à mesma condição que a dos outros homens. Os deuses são mais do que modelo: são
mitos com os quais Ricardo Reis se identifica, por estarem acima dos homens. A resignação
dos deuses perante o destino é, na verdade, a aceitação de quem vive em uma zona estável e
imune à miséria do mundo ordinário, a mesma imunidade que se atribui ao mundo da classe
dominante – à qual Ricardo Reis, abastado que é, pertence – que mantém para si o controle da
ordem. Mas, no entanto, o que a própria obra de Ricardo Reis provará é que, apesar de se
encontrar em uma posição privilegiada, e poder se dar ao luxo de se distanciar da realidade, a
suposta imunidade da classe rica mostrar-se-á uma ilusão alimentada apenas pela cultura
dessa classe. A impassibilidade de Ricardo Reis entrará em declínio, como observar-se-á mais
à frente, colocando à prova a segurança que se imagina ser inerente à vida da classe
dominante.
2.4. O RICARDO REIS PERTURBADO
A condição humana acaba impondo que Ricardo Reis assimile o fatalismo estoico
menos por estar consciente de que ele não tem domínio sobre a própria vida do que por aceitar
pacificamente a zona de conforto proporcionada pelo privilégio de classe. Ele contempla o rio
que corre, porque nada do que venha a fazer pode impedir que o rio corra. E ele vive a
existência civilizada, a condição humana, da qual não pode escapar. Não há outra opção além
de viver ou morrer. Por isso tenta aliviar o fardo da vida reservando-se ao direito de ser seu
espectador. Em seguida, na ode 327, Ricardo Reis está se dirigindo a uma de suas musas,
Neera, do lugar imaginado, a margem do rio, onde parece alcançar a desejada distância do
presente. É onde afirma poder fingir que é livre e onde pode ter a ilusão de ser igual aos
deuses:
Aqui, Neera, longe
De homens e de cidades,
Por ninguém nos tolher
O passo, nem vedarem
41
A nossa vista as casas,
Podemos crer-nos livres.
Bem sei, ó flava, que inda
Nos tolhe a vida o corpo,
E não temos a mão
Onde temos a alma;
Bem sei que mesmo aqui
Se nos gasta esta carne
Que os deuses concederam
Ao estado antes de Averno.
Mas aqui não nos prendem
Mais coisas do que a vida,
Mãos alheias não tomam
Do nosso braço, ou passos
Humanos se atravessam
Pelo nosso caminho.
Não nos sentimos presos
Senão com pensarmos nisso,
Por isso não pensemos
E deixemo-nos crer
Na inteira liberdade
Que é a ilusão que agora
Nos torna iguais dos deuses.61
O lugar de onde Ricardo Reis fala em abstenção, obviamente, não é o real, mas o
espaço aberto pela poesia e pela ficção. É o lugar onde a existência dos heterônimos é
possível. A margem do rio é a metáfora desse lugar que não existe; o poeta real, o sujeito do
presente histórico – cuja certidão de nascimento registra a existência apenas de Fernando
Pessoa – é que se encontra no mundo real, em Lisboa, mais especificamente, no ano de 1924.
Ricardo Reis consegue visualizar o lugar descrito na poesia, e pode até mesmo dizer que vive
nele; mas, na verdade, não vive. É preciso lembrar que, a leitura é de versos escritos por
Fernando Pessoa, e que a aparência da poesia vela o sentimento vivido por um sujeito real, é
a criação desse sujeito e seu fingimento. Ricardo Reis é o Fernando Pessoa quando este sabe
que nem a morte e nem o curso do rio podem ser evitados, por isso se guarda à resignação.
Mas Fernando Pessoa não é apenas Ricardo Reis, apesar de não querer que nós, seus leitores,
lembremo-nos disso. Mas, o fato é que está tudo afirmado e construído pelos versos, o que
nos leva a pensar, depois de ler o que está escrito, é por que está escrito. O que está escrito é a
61
Ibidem, p. 262-263.
42
impotência diante da inevitabilidade da vida; o porquê de estar escrito é, na verdade, o
fundamento da heteronímia.
Da lâmpada noturna
A chama estremece
E o quarto alto ondeia.
Os deuses concedem
Aos seus calmos crentes
Que nunca lhes trema
A chama da vida
Perturbando o aspecto
Do que está em roda,
Mas firme e esguiada
Como preciosa
E antiga pedra,
Guarde a sua calma
Beleza contínua.62
A margem do rio não é o cenário dessa ode, mas o “quarto alto”. O que não se pode
precisar é se Ricardo Reis está dentro ou fora dele. Mas o que se sabe é que a combustão da
chama provoca um efeito ilusório, como se o quarto ondulasse. Trata-se da iluminação
artesanal, anterior à luz elétrica, conseguida através de lamparinas, ou candeias, dentro das
quais algum material inflamável boia em óleo, produzindo a chama. A lâmpada da ode é
noturna e ambienta o leitor na escuridão da noite. A luz remete ao saber e lucidez, ao
esclarecimento platônico, que, na ode, se confunde com o seu oposto, a ilusão: a chama,
símbolo do conhecimento, com a qual Prometeu63
presenteou o homem, sua criação, também
obscurece o recinto por conta de seu contínuo movimento. A ondulação provocada pela luz da
chama confunde a visão, tal qual a luz projetada dentro da caverna de Platão64
, e que forma as
sombras que os homens acorrentados pensam ser a única realidade existente; só que na ode de
Ricardo Reis, a luz não vem de fora, está dentro do quarto, limitando ainda mais a
possibilidade de o sujeito desejar descobrir o que há fora do lugar que habita, do seu universo
particular: a luz de que precisa é fraca, oscilante e mantém o sujeito voltado para dentro do
62
Ibidem, p. 263. 63
KURY, 2001, p. 340. 64
CHAUÍ, 2002, p.257-260.
43
quarto, ou mais especificamente, para dentro de si. A dádiva de Prometeu é escassa e está em
posse do habitante do quarto, o sujeito da ode é o guardador do fogo, o único responsável por
ele, e o único iluminado por ele. O saber, representado pelo fogo, assume aqui tanto a forma
da dádiva quanto a da maldição: é uma virtude, merecida pelo habitante do “quarto alto”, da
torre onde o saber se encontra a salvo do resto do mundo; é um privilégio para o escolhido
como seu guardador, mas também aprisiona quem o possui, confinando-o ao reduzido espaço
que a chama ilumina, e obscurecendo tudo à volta. Além disso, o saber também desestabiliza
a existência do sábio, que se inquieta com a movimentação crônica das sombras projetadas a
partir da luz. Assim como Alberto Caeiro considera que pensar é uma doença, Ricardo Reis
está percebendo a instabilidade do solo do esclarecimento, e deseja, portanto, o saber calmo e
estático concedido pelos deuses, que não permite que “lhes trema/ A chama da vida/
Perturbando o aspecto/ Do que está em roda”, ele quer ver o mundo ao seu redor parado, e
imperturbável, quer a chama da vida “firme e esguiada/ Como preciosa/ E antiga pedra”. As
paredes ondulantes são uma lembrança permanente do quanto o conhecimento é inquietante.
A sabedoria torna possível tanto a filosofia que Ricardo Reis toma para si – a da indiferença ,
quanto evidencia que a vida “firme e esguiada” que ele almeja não é possível. A sabedoria do
espectador indiferente não evita que ele se perturbe com sua própria sabedoria.
A fé é rejeitada também pela perturbação que provoca, assim como a perturbação pela
sabedoria, apesar de fé e sabedoria serem apresentadas como elementos opostos e
excludentes. Na ode 330 –
Vós que, crentes em Cristos e Marias,
Turvais da minha fonte as claras águas
Só para me dizerdes
Que há águas de outra espécie
Banhando prados com melhores horas –
Dessas outras regiões pra que falar-me
Se estas águas e prados
São de aqui e me agradam?
Esta realidade os deuses deram
E para bem real a deram externa.
44
Que serão os meus sonhos
Mais que a obra dos deuses?
Deixai-me a realidade do momento
E os meus deuses tranquilos e imediatos
Que não moram no Vago
Mas nos campos e rios.
Deixai-me a vida ir-se pagãmente
Acompanhada pelas avenas tênues
Com que os juncos das margens
Se confessam de Pã.
Vivei nos vossos sonhos e deixai-me
O altar imortal onde é meu culto
E a visível presença
Dos meus próximos deuses.
Inúteis procos do melhor que a vida,
Deixai a vida aos crentes mais antigos
Que a Cristo e a sua cruz
E Maria chorando.
Ceres, dona dos campos, me console
E Apolo e Vênus, e Urano antigo
E os trovões, com o interesse
De irem da mão de Jove.65
– Ricardo Reis desdenha a vida cristã porque está satisfeito com a vida que tem sob a proteção
dos deuses pagãos. O cristianismo é apresentado por Ricardo Reis como a doutrina da dor e
do autossacrifício, do martírio e da eterna penitência. Assim como é também a fé das massas,
cujos homens são sacrificados em prol da civilização e da dominação. É a fé imposta pelo
dominador e que garante a submissão da massa, que, dominada, aceita sofrer a culpa por seus
pecados. Tudo isso representa a emoção que Ricardo Reis não quer vivenciar. Ele quer a vida
das águas claras, nas quais a superfície e o fundo não se separam, a certeza do que se vê
garante segurança para quem deseja permanecer impassível. Mas a vida sem emoção e as
águas claras são – e Ricardo Reis bem sabe – a realidade que os deuses deram e “para bem
real a deram externa”: está lá fora e não aqui onde Ricardo Reis se petrifica. “Que serão os
meus sonhos/ Mais que a obra dos deuses?” Ricardo Reis está plenamente ciente de que a
vida calma não é a vida real, são seus sonhos, dos quais o cristianismo – ou seja, a experiência
65
PESSOA, 2003, p. 263-264.
45
do sofrimento – o despertaria. A vida calma é uma vida exterior, ou seja, irreal. O que torna
evidente que o mundo à margem, imperturbável, sem sofrimento, é o lugar imaginado, do
sonho, e onde Ricardo Reis não está. Por isso que, retornando-se à imagem de Ricardo Reis
escrevendo pela mão de Pessoa, pode-se lembrar que Ricardo Reis afirma pelos versos
exatamente aquilo que Fernando Pessoa não vive, mas, talvez, gostaria, e, por hora, apenas
finge. Ou, Ricardo Reis apenas representa um tipo de sujeito, que o homem moderno pode
assimilar, e que é a personalidade do homem da classe dominante daquele tempo. É um tipo
de homem que Fernando Pessoa percebe na sociedade em que está inserido. É Ricardo Reis
que escreve também que está resignado, porque não é possível evitar a morte, nem os
acontecimentos, mas que se angustia exatamente porque gostaria de poder evitá-los, angústia
que é, na verdade, a do homem Fernando Pessoa, que compartilha com esse tipo de homem
representado por Ricardo Reis o desejo de não sofrer, e a desistência de agir em face da
impotência em que se encontra. Aliás, o desejo de não sofrer está presente em todos os
heterônimos, em cada um de uma forma particular, porque cada um deles é a representação de
um tipo de homem moderno acometido pela angústia típica de seu tempo, e cada um é um
tipo assimilável pelo homem comum – de que Fernando Pessoa é exemplo –, está disponível
ao sujeito em seu processo de socialização. Nisto parece consistir o fundamento da
heteronímia: o sujeito parece pluralizado porque tem à sua disposição uma vasta gama de
possibilidades de ser, o que dá uma falsa impressão da liberdade que é desmentida pela
angústia presente em cada um dos heterônimos. Uma das consequências dessa falsa
multiplicidade do sujeito moderno é a despersonificação, a falência da subjetividade, além dos
quadros de neurose identificados por Freud e outros psicanalistas. A questão da heteronímia
será retomada mais adiante.
46
A realidade externa está representada na ode 336 na imagem do quadro, onde está
Ricardo Reis e sua musa Lídia, e que não é a vida, mas uma obra de arte a qual se contempla
sem se envolver com ela:
Bocas roxas de vinho,
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa;
Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.
Antes isto que a vida
Como os homens a vivem,
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.
Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.66
A ode 336 é claramente hedonista, visto que contém um elogio aos prazeres, como o
vinho (“Bocas roxas de vinho”) e o sexo (“Nus, brancos antebraços”). A proposta é que se
vivam os prazeres e se mantenha distante das perturbações, como em um quadro, onde o que
se exibe está fixo e paralisado; além de ser uma cena pintada, e não real. A sequência a essa
placidez hedonista é, no entanto, pouco consoante a ela. A ode 337 descreve dois jogadores de
xadrez que se mantêm focados nos movimentos das peças do tabuleiro, de modo que o caos
do mundo em volta parece não estar nem sequer acontecendo:
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.
À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário.
66
Ibidem, p. 266-267.
47
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.
Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo do xadrez,
Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.
Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca.
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá de longe
Estejam morrendo filhos.
Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado o cálculo dum lance
Pra efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indiferentes.
Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida.
Os haveres tranquilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre,
Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
48
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.
Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranquila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.
O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.
A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.
Ah! Sob as sombras que sem qu’rer nos ama,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.67
A “abominável onda” da ode 320 está muito próxima dessa vez. Ela pode ser
entendida tanto como a própria morte, que assombra quem vive em tempos de guerra, quanto
à realidade representada pelo rio, que é apreciado à distância pelo espectador, mas há sempre
a possibilidade da água se agitar e molhar quem está próximo. Dessa vez, o risco de ser
atingido é alto: o contexto é o da guerra, a mais cruel das realidades. A guerra é, inclusive, a
realidade mais próxima da morte. Nas outras odes, o cenário é bucólico, quando nítido, ou é o
67
Ibidem, p. 268-269, grifos meus.
49
quarto ondulante, quando é embaçado. Aqui o cenário é nítido e trágico: um exército se
aproxima trazendo com ele os horrores da barbárie. Como a referência cultural para Ricardo
Reis é o mundo antigo, a guerra mencionada na ode possivelmente é conhecida por Guerras
Médicas ou Guerras Greco-persas68
. Nessa ode, a Pérsia está invadindo uma “Cidade” – com
“c” maiúsculo – provavelmente uma referência à polis grega, símbolo da civilização, e berço
do mundo ocidental. A história da humanidade apresenta um ciclo de povos dominando uns
aos outros, e no caso da ode 337, o episódio descrito apresenta um desses momentos em que a
política imperialista e violenta é predominante. Há uma batalha sangrenta acontecendo ao
mesmo tempo em que dois homens jogam xadrez e bebem vinho, aparentemente indiferentes
e em um domínio paralelo, acolhidos “à sombra da ampla árvore”. Não que eles se sintam
invulneráveis à violência da dominação, na verdade, o que está em questão é a irrelevância da
fama, da glória, do amor, da ciência e da vida. Os jogadores atêm-se ao jogo – que nada mais
é que a simulação de uma batalha, do conflito entre dois reinos – porque nada podem fazer
contra a tragédia que se aproxima, não podem evitar que sejam mortos pelo invasor, nem
tampouco podem salvar seu povo da derrota. E, sobretudo, não estão interessados em ser
heróis e conquistar prêmios, terras e riquezas: apenas mantêm-se sob a condição de quem
espera pelo destino e deixa a vida correr seu curso da forma mais calma.
Oposta à cena dos jogadores imperturbados pela guerra, na terceira estrofe, está a
descrição do real – repetindo: pela primeira vez posto nas odes de Ricardo Reis. A oposição
pode ser emparelhada à oposição entre poesia e realidade: naquela está Ricardo Reis tentando
se focar em sua existência individual, que ele afirma ser a reprodução da vida impassível dos
deuses, e um conjunto de movimentos fictícios, como os de um mero jogo de xadrez; nesta,
permanece o horror ininterrupto. No entanto, é preciso lembrar que quem escreve a ode –
inclusive a descrição da barbárie – é Ricardo Reis, ou seja, esse que se diz espectador do
68
LAROUSSE, Koogan. Pequeno dicionário enciclipédico. Rio de Janeiro: Larousse, 1979.
50
espetáculo do mundo está oferecendo um relato da barbárie. Um relato é construído com
base naquilo que se conhece, mesmo que não se tenha experimentado, de fato. A estrofe da
barbárie mostra que Ricardo Reis não é alienado, mas um pretenso alheio, ele sabe, e bem,
que tipos de tragédias o mundo tem experimentado, mesmo naquela época que ele tanto
idealiza, o tempo dos deuses gregos, e exatamente por isso, estar alheio é o que ele deseja,
mas nem de longe é o que ele vive.
Na quarta estrofe, os jogadores de xadrez estão envolvidos no jogo, e aparentemente
não se comovem com a guerra e seus horrores. Mas, por mais que tentem, não conseguem
esquecer que algo muito ruim acontece na cidade – eles estão “perto da cidade,/ E longe do
ruído”- e que está se aproximando deles. “Inda que nas mensagens do ermo vento/ Lhes
viessem os gritos”, porque há, sim, consciência sobre o mal, mesmo que, ainda assim, “Breve
seus olhos calmos/ Volviam sua atenta confiança/ ao tabuleiro”. Eles tentam desviar a atenção
do mundo, para a guerra artificial do tabuleiro, mas volta e meia são sequestrados em
pensamento pela guerra real. Sua missão é defender o “rei de marfim”, o artifício, portanto,
não importam as irmãs, as mães, as crianças de carne e osso, quando há uma batalha de pedras
a ser vencida. Mesmo que a qualquer momento chegue o invasor, eles devem continuar
concentrados nas manobras do xadrez, descrito aqui como o “jogo predileto dos indiferentes”.
Mas é sabida a existência da barbárie: Ricardo Reis afirma que “os haverem tranquilos
e avitos ardem”, a tranquilidade, a vida imperturbável estão ardendo, está sendo destruída
pelas chamas da guerra, que são as chamas do conhecimento a serviço do poder, da
dominação e da barbárie. E ardem porque estão sendo sentidas: à distância, os jogadores não
conseguem evitar que a guerra aconteça, e também não conseguem evitar experimentá-la. A
afirmação é feita no presente do indicativo, em meio a outras construções com verbos no
futuro do subjuntivo, que equivalem a hipóteses (“que caiam as cidades”, “que sofram
povos”, “que cesse a liberdade e a vida”), que fechadas pela afirmação, convertem-se em
51
equivalentes afirmações. Percebe-se a sutil observação de que a vida está sendo minada, de
que a destruição se espalha, e essa observação destaca que o alheamento é forjado. Quem nota
com tanta lucidez a presença da catástrofe não pode estar alheio. O futuro do subjuntivo
continua sendo usado, ou seja, a expressão de como se quer que as coisas sejam, porque, no
presente, não é isso o que elas estão sendo: “Tudo o que é sério pouco nos importe,/ O grave
pouco pese”. Que o grave seja leve, porque agora não está sendo. A imagem dos jogadores de
xadrez é uma idealização, é uma possibilidade futura, que venha a aliviar a existência que, no
presente, é penosa. Sendo assim, fica claro que estar indiferente é um desejo, mas não é a
condição dos jogadores de xadrez, e muito menos a de Ricardo Reis, que constrói sua ode
com os tempos verbais escolhidos não à toa. Ele afirma a própria consciência sobre a
realidade, apesar de se fingir de alienado.
As ambições não devem ser desejadas, porque são inúteis, são como o que se guarda
na memória, mas se tem presente: a glória, a fama, o amor, a ciência e a própria vida. Na
estrofe 11, o conhecimento dessas coisas e do peso que elas trazem é evidente. O
conhecimento disso tudo é literalmente verbalizado: “A vida passa e dói porque o conhece.”
Está declarada a dor, porque é conhecido que a vida tem fim, o destino certo é a morte, e por
isso, a vida pesa, é um fardo existir sabendo-se que vai morrer. Por isso, não é verdade que os
jogadores de xadrez estão esperando pacificamente pela morte. Ricardo Reis fala de um
estado de alheamento em que ele gostaria de se manter, mas não é sua condição. Ele deseja se
alienar, mas não está alienado, e é esse o seu conflito. Ele ambiciona – paradoxalmente,
porque, segundo ele, a ambição é um peso – gastar a vida, vê-la passar, enquanto joga xadrez
e bebe vinho, “Mesmo que o jogo seja apenas sonho/ e não haja parceiro”, ou seja, uma
condição imaginada, mas não vivida. Os jogadores representam para Ricardo Reis a
personificação do que ele gostaria que fosse sua própria vida. E, por fim, aconselha que se
imitem os persas da história, que são os guerreiros invasores, e imitá-los é combater na guerra
52
artificial do jogo de xadrez. Imitar é diferente de ser. “E, enquanto lá fora,/ Ou perto ou longe,
a guerra e a pátria e a vida/ Chamam por nós, deixemos/ Que em vão nos chamem (...)”:
contém, aqui, um conselho que vem a calhar, considerando-se a data à qual se atribui essa
ode: 1 de junho de 1916, segundo ano de conflitos da Primeira Guerra Mundial.
2.5. O ESPETÁCULO DO MUNDO
A obra poética de Ricardo Reis tem início com a ode “Mestre, são plácidas”, datada de
12 de junho de 1914. A Primeira Guerra Mundial tem início em 28 de julho de 1914. É nessa
ode em que Ricardo Reis fala ao mestre Alberto Caeiro, o pastor pacífico que vive longe da
cidade e de suas complicações, constituindo o modelo de alheamento ambicionado por
Ricardo Reis. No entanto, quando compõe seus versos, Reis não consegue escapar de seu
tempo, que é o da Primeira Grande Guerra, que inaugura a era mais armada e violenta que a
humanidade já vira, superando qualquer outra nos números de vítimas e nos níveis de
destruição. A intensidade da tragédia é percebida, em primeiro lugar, pelo fato de se tratar de
uma guerra mundial, tipo de conflito que o mundo não via desde 1815. Durante um século, os
pequenos embates existentes duram no máximo alguns meses, como Eric Hobsbawn averigua
em A era dos extremos 69
. Isso significa que, em proporções, tudo é muito maior e mais
trágico depois de 1914. Hobsbawm lembra que houve quem falasse em fim do mundo, ou no
fim da raça humana: essas são as expectativas de quem vive naquele período. “(...) houve
momentos em que talvez fosse de esperar que o deus ou os deuses que os humanos pios
acreditavam ter criado o mundo e tudo o que nele existe estivessem arrependidos de havê-lo
feito.”70
Não é à toa que a crença de Ricardo Reis é mais em ex-humanos do que
propriamente em deuses.
69
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. O breve século XX. 1914-1991. 2a ed. Trad. Marcos Santarrita. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995. 70
Ibidem, p. 30.
53
Hobsbawm é rigoroso e lúcido em sua análise: “’Paz’ significa ‘antes de 1914’: depois
disso veio algo que não merecia mais esse nome”71
. Todas as grandes potências, e todos os
países europeus (menos Espanha, Países Baixos, Escandinávia e Suíça) estão envolvidos no
conflito, e as mais ricas dispõem de material bélico altamente desenvolvido. O
desencadeamento da Primeira Guerra Mundial está relacionado à política de países
interessados em se estabelecerem como dominantes no mapa global. Há a corrida
armamentícia, há o interesse nas colônias africanas aliado ao desejo de expansão. Essa é a
primeira guerra que se orienta não por um motivo específico, mas por metas ilimitadas. De
qualquer maneira, de acordo com as constatações de Hobsbawm, está claro que se trata de
uma guerra imperialista. Começa essencialmente europeia, travada entre a tríplice aliança –
França, Grã-Bretanha e Rússia – e as chamadas “Potências Centrais” – Alemanha e Áustrio-
Hungria – arrastando, em seguida, Sérvia, Bélgica, Turquia, Bulgária, Itália, Grécia, Romênia
e Portugal, que foram obrigados a tomar posições. O Japão e EUA também entram no
conflito, mas cada um com seus interesses particulares. Os objetivos específicos de cada
potência levaram a uma guerra sem limites, um “tudo ou nada”, nas palavras de Hobsbawm,
que só terminaria com a exaustão total de todos os envolvidos, sem a possibilidade de acordo,
e incentivada pela competição e crescimento econômicos iniciados no período que o autor
chama de “Era dos Impérios”72
.
Mais concretamente, para os dois principais oponentes, Alemanha e Grã-Bretanha, o
céu tinha de ser o limite, pois a Alemanha queria uma política e posição marítima
globais como as que então ocupava a Grã-Bretanha, com o consequente relegamento
de uma já declinante Grã-Bretanha a um status inferior. Era uma questão de ou uma
ou outra. Para a França, então e depois, os objetivos em jogo eram menos globais,
mas igualmente urgentes: compensar sua crescente e aparentemente inevitável
inferioridade demográfica e econômica frente à Alemanha. Também aqui a questão
era o futuro da França como grande potência. Nos dois casos, o acordo teria
significado apenas o adiamento. A própria Alemanha, seria de supor, podia esperar
até que seu tamanho e superioridade estabelecessem a posição que os governantes
alemães achavam de direito de seu país. (...) No papel, sem dúvida era possível o
acordo neste ou naquele ponto dos quase megalomaníacos “objetivos de guerra” que
71
Ibidem, p. 30. 72
Eric Hobsbawm tem um estudo exclusivo sobre esse assunto chamado Era dos Impérios, em que o autor trata
do período compreendido entre 1875 a 1914, as vésperas da Primeira Grande Guerra (ver referência).
54
os dois lados formularam assim que a guerra estourou, mas na prática só um objetivo
contava naquela guerra: a vitória total (...).73
O resultado disso verifica-se, por exemplo, nos três anos e meio em que milhões de
homens mantêm-se em linha de batalha ininterruptamente, vivendo como ratos sob sacos de
areia que cercam buracos de lama nas trincheiras e tendo como paisagem solos de crateras
com mais lama, cadáveres, mais ratos e piolhos. Hobsbawm relata também que, na batalha em
Verdun, em 1916, os alemães perdem um milhão de soldados; em Somme, 420 mil britânicos
morrem; os franceses perdem, ao longo de toda a guerra, 20% dos seus homens em idade
militar, sendo que de todos os seus soldados envolvidos no conflito, apenas um terço sai da
guerra incólume74
. Portugal também perde muitos homens ao se ver obrigado a defender suas
colônias e a apoiar a Inglaterra, mesmo não dispondo de recursos para se manter em um
conflito de tamanha magnitude e duração75
. É durante esse período que, conforme apontam as
datas das odes, Ricardo Reis escreve as primeiras 35 odes de um total de 126; e é esse
espetáculo – o do fim do mundo – que ele pensa poder contemplar sem se envolver. É esse
espetáculo de horror que ele está testemunhando enquanto escreve sobre não se envolver com
os acontecimentos. Mas são suas próprias odes que contêm as palavras que mostram a
impossibilidade de se manter alheio ao mundo. Por isso, os versos que tentam se manter fiéis
a esse propósito declinam ao lamento da dor e do medo.
Na ode 342, o espírito contido e plácido é substituído por um homem que odeia, cujas
emoções nem o paganismo consegue mais apaziguar: falando sobre os seguidores de Cristo,
declara: “Odeio-os, sim”:
Não a ti, Cristo, odeio ou te não quero.
Em ti como nos outros creio deuses mais velhos.
Só te tenho por não mais nem menos
Do que eles, mas mais novo apenas.
73
Ibidem, p. 37-38. 74
Ibidem, p. 33. 75
Conferir o segundo e quinto capítulos de MARQUES, A. H. de Oliveira. A Primeira República Portuguesa.
Para uma visão estrutural. Lisboa: Livros Horizonte, 1970; e o segundo capítulo de ROSAS, Fernando. O
Estado Novo nos anos trita. Lisboa: Editorial Estampa, 1986.
55
Odeio-os, sim, e a esses com calma aborreço,
Que te querem acima dos outros teus iguais deuses.
Quero-te onde tu ‘stás, nem mais alto
Nem mais baixo que eles, tu apenas.
Deus triste, preciso talvez porque nenhum havia
Como tu, um a mais no Panteão e no culto,
Nada mais, nem mais alto nem mais puro
Porque para tudo havia deuses, menos tu.
Cura tu, idólatra exclusivo de Cristo, que a vida
É múltipla e todos os dias são diferentes dos outros,
E só sendo múltiplos como eles
‘Staremos com a verdade e sós.76
E do sujeito aborrecido e claramente perturbado pela apologia do mundo cristão (odes
342 e 343), confessa a uma de suas musas o fracasso em tentar ser indiferente e implacável,
porque, na verdade, sofre:
Sofro, Lídia, do medo do destino.
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.
Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar
Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
No anoitecer.77
Aqui, fica claro que não se trata de um homem impassível, mas que gostaria de ser
impassível. Essa ode é construída com base no princípio de “que seja assim”, e não na
afirmação de que “é assim”: que os deuses não renovem minha vida, que eu entre na velhice
como entro no anoitecer. Esses são os desejos de Ricardo Reis, o homem cujo coração está
aterrado pela leve pedra que ergue as rodas de seu carro, assumindo, aqui, a identidade de
Hélio, o deus Sol, que, segundo a lenda, comanda a duração do dia, que começa quando ele, a
cada manhã, logo após do carro de Eós (a Aurora), inicia sua viagem em seu carro puxado por
76
PESSOA, 2003, p. 271. 77
Ibidem, p. 273, grifos meus.
56
quatro cavalos de luz chamados Aêton, Éoo, Flêgon e Piroís, e percorre todo o céu até chegar
ao rio Oceano, na hora do crepúsculo, quando ele e os cavalos descansam. Durante a noite,
Hélios continua sua viagem, mas embaixo da terra e em uma embarcação, no sentido do
Ocidente para o Oriente. Hélios é considerado “o olho que vigiava o mundo e tudo via, mas
seus poderes se limitavam a iluminar a terra”.78
Assumindo-se, portanto, como aquele que
tudo vê, onipresente como os deuses, Ricardo Reis admite que, mesmo pretendendo viver em
estado de alienação, não é alienado, é consciente e onisciente, conhece bem o mundo em que
vive. E, como demonstra nas suas odes, não está à vontade com o que sabe. Não se trata de
um homem que não sofre – como ele pretendia ser. Ricardo Reis é um homem que finge não
saber, que finge não ser quem é, e que procura imitar os deuses irreais e plácidos para, de
alguma forma, esquecer tudo o que conhece e o aflige. Ricardo Reis não conseguiu se alienar
do mundo; ele, na verdade, alienou-se de si mesmo.
A essa altura, cabe observar que essa última ode citada, a 344, é a penúltima escrita
antes de Ricardo Reis deixar Portugal e exilar-se no Brasil: data de 1917; a última é escrita em
1818:
Uma após uma as ondas apressadas
Enrolam o seu verde movimento
E chiam a alva ‘spuma
No moreno das praias.
Uma após uma as nuvens vagarosas
Rasgam o seu redondo movimento
E o sol aquece o ‘spaço
Do ar entre as nuvens ‘scassas.
Indiferente a mim e eu a ela,
A natureza deste dia calmo
Furta pouco ao meu senso
De se esvair o tempo.
Só uma vaga pena inconsequente
Pára um momento à porta da minha alma
Passa, a sorrir de nada.79
Aqui, Ricardo Reis já voltou à sua máscara de placidez, está no final do último ano em que
vive em Portugal. Essa oscilação entre o homem perturbado pelo que vê à sua volta, e essa
78
KURY, 2001, p. 178. 79
PESSOA, 2033, p. 173.
57
pausa em que retorna à serenidade é compatível com o sujeito em trânsito, que está migrando
para outro lugar, um pouco sem rumo, assim como sem raiz; o sujeito que acaba de assumir a
identidade de exilado, expatriado e inadequado. Por isso, é preciso voltar-se ao que acontecia
no mundo naquele período. Como já foi dito anteriormente, Ricardo Reis começa a escrever
suas odes exatamente no ano em que eclode a Primeira Guerra Mundial, 1914. A ode 344, em
que ele confessa temer o destino, é do ano de 1917, quando se dá a Revolução Russa, evento
que realmente significa uma ameaça ao antigo mundo dominado ora pela burguesia, ora pela
aristocracia, assim como a um monarquista conservador como Ricardo Reis, e que representa
um estímulo para deixar a Europa e ir viver no Brasil.
A Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa são dois episódios que vêm a mudar
radicalmente a sociedade ocidental moderna, especialmente pela violência desencadeada e por
todas as mudanças na conjuntura política ao redor do globo. A leitura do relato de Eric
Hobsbawm chamado Era dos extremos80
nos permite concluir que não é possível observar o
século XX sem começar por suas tragédias, que são vistas, talvez unanimemente, por seus
estudiosos como massacres até então inéditos. Tanto as guerras, quanto as revoltas, apesar de
terem objetivos diferentes, apresentam, no século XX, resultados catastróficos. Os números,
os meios, os fatores que as desencadeiam, as proporções, tudo o que pode ser avaliado com
relação às tragédias do século XX provoca assombro mesmo décadas depois de terem
acontecido. No entanto, não só as tragédias, mas todos os eventos transcorridos no século
passado apresentam invariavelmente contornos extremos. Por isso, Hobsbawm entende o
século XX como tendo início no ano de 1914. Como página seguinte ao século XIX, trata-se
do momento em que os avanços tecnológicos e científicos poderiam ter se mostrado recursos
disponíveis ao homem para a melhoria de sua existência. No entanto, o oposto a isso marca a
80
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. O breve século XX. 1914-1991. 2a ed. Trad. Marcos Santarrita. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
58
utilização do desenvolvimento científico pelas sociedades modernas. A ciência potencializou
a guerra.
O período em que Ricardo Reis escreve suas primeiras odes manifesta um paradoxo: o
engenho humano está servindo tanto à dominação quanto ao pensamento revolucionário. Ao
mesmo tempo em que a ciência abastece a humanidade de armas cada vez mais potentes e os
conflitos da Primeira Guerra devastam os países envolvidos, o desenvolvimento de ideias
revolucionárias também se espalham e conseguem fazer crescer a organização de movimentos
de esquerda. O marxismo já havia comprometido organizações em muitas partes do mundo
com a revolução, e no início do século XX, a Revolução Russa provará que uma sociedade
socialista tem muitas chances de se tornar realidade. Os propósitos imperialistas que motivam
a Primeira Guerra acabam também por evidenciar a necessidade de se combater a dominação,
e é quando a Revolução Russa eclode. O movimento bolchevique conquista o poder na Rússia
e espalha rapidamente pelo mundo o comunismo como alternativa ao capitalismo, a liderança
popular como alternativa ao regime dominante. É então que as forças opostas àquele sistema
têm a chance de realizar o que vinha sendo apresentado apenas na teoria. As falhas da
sociedade burguesa, que tanto encantou o século XIX, começam a parecer menos opressoras
quando a Revolução Bolchevique tenta dar início a um estado livre do domínio do capital. A
revolução social e as previsões de Marx sobre a vitória do proletariado parecem não só
possíveis, como muito próximas de acontecerem. A esperança depositada no comunismo,
naquele momento, corresponde à crença inabalável de que o mundo caótico das injustiças
sociais estava prestes a ser transformado. A natureza do movimento que promoveu a
revolução é de real compromisso com as necessidades da população, e o poder não se
apresenta como um fim em si. Os bolcheviques têm largo apoio e Lênin é o líder que não se
utiliza de golpe e a tomada do poder não tem necessidade de ser violenta. “Ao contrário da
mitologia da Guerra Fria, que via Lenin essencialmente como um organizador de golpes, a
59
única vantagem real com que ele e os bolcheviques contavam era a capacidade de reconhecer
o que as massas queriam.”
Quando os bolcheviques (...) se viram em maioria nas principais cidades russas, e
sobretudo na capital, Petrogrado e Moscou, e depressa ganharam terreno no exército,
a existência do Governo Provisório tornou-se cada vez mais irreal (...). A onda
radicalizada de seus seguidores inevitavelmente empurrou os bolcheviques para a
tomada do poder. Na verdade, quando chegou a hora, mais que tomado, o poder foi
colhido. Diz-se que mais gente se feriu na filmagem da grande obra de Einsenstein,
Outubro (1927), do que durante a tomada de fato do Palácio de Inverno em 7 de
novembro de 1917.81
O novo regime se revela resistente, apesar da oposição estrangeira e seu receio em ser
atingida pela onda comunista. De fato, Lênin acreditava no potencial da Revolução Russa
como uma revolução universal. E, apesar de o movimento bolchevique se enfraquecer na
década de 30 e Stalin instaurar um governo autoritário e violento, o fato é que a revolução
inspirada no comunismo não deixará de contagiar e estimular as iniciativas esquerdistas,
realizará, inicialmente, uma transformação que caminha para a construção de um país
socialista e de representar forte ameaça às outras formas de regime ao redor do mundo. O que
também significa a ameaça aos privilégios de classe que garantem a Ricardo Reis a condição
segura e distante dos conflitos vividos pelos menos favorecidos, assim como da obrigação de
agir em favor deles, obrigação que seria inerente a uma sociedade socialista.
Em Portugal, especificamente, a situação não é diferente, mas instável e conturbada,
agitada pela crise política e econômica, pelos conflitos ideológicos, e a continuada
subordinação à Inglaterra. A crise em Portugal, que tem início na decadência da economia
mercantilista e colonial, acaba por mobilizar as rupturas reivindicadas pelas forças
republicanas. Em Portugal, a República não é um regime instaurado de forma definitiva e
pacífica, e leva tempo para se configurar; a campanha republicana é iniciada por movimentos
populares, mas posteriormente será apropriada pelas classes dominantes; é possível afirmar
que ela só se impõe, de fato, com o surgimento do Estado Novo, que é quando o poder volta a
81
Ibidem, p. 68-69.
60
ser centralizado e tirano. Até então, as disputas políticas e a coexistência nada amistosa entre
diferentes grupos e partidos farão da República – especificamente a Primeira (1910 a 1926;
Ricardo Reis escreve suas primeiras 35 odes nos meados desse período) – um momento de
transição e indefinição.
Conforme apresenta o estudo de Oliveira Marques82
, a ideologia republicana começa a
ganhar espaço em Portugal a partir de 1820, e a partir de meados do século XIX alcança
relevo como oposição ao regime monárquico liberal. A prosperidade burguesa é favorecida
pela monarquia, de modo que se manifesta no país o desejo de enfrentar o crescente domínio
da elite comercial aliada ao rei. O primeiro impulso republicano observado em Portugal se dá
pela liderança de Henriques Nogueira, da geração de 48, que defende a república
descentralizada e segue os modelos socialistas de Fourier e Louis Blanc aliados ao propósito
de se reviverem a glória e o prestígio do passado. O segundo impulso republicano se
manifesta na geração de 1865-70, que se posiciona contra a monarquia e a centralização
papal. O republicanismo português é um movimento que se desencadeia a partir da influência
das revoluções europeias de 1848, e que têm base no socialismo, cujos elementos, no entanto,
não se mantêm por muito tempo no contexto português. Para Oliveira Marques, trata-se de um
republicanismo “socialista em princípio, mas burguês na prática”83
. Tanto que, em meados da
década de 1870, o Partido Socialista Português nasce afastado da ortodoxia republicana.
O republicanismo português realça seu elemento nacionalista ainda mais em ocasião
do ultimato inglês, em 1890, que, segundo Oliveira Marques, “humilhara os portugueses e
despertara o interesse pelas colônias”84
. Por essa razão, o programa republicano adota como
meta o desenvolvimento das províncias africanas, mas sempre sob regime colonial. Desde seu
surgimento, o republicanismo português vai se descaracterizando; do movimento de princípio
socialista, depreende-se em ideologia das massas, até configurar-se em oposição à monarquia,
82
MARQUES, 1970. 83
Ibidem, p. 127. 84
Ibidem, p. 129.
61
à Igreja, e aos grupos oligárquicos. A república é proclamada em 1910 e promovida menos
pela transformação social que por interesses de classe e por um ideário republicano tardio.
A economia da Primeira República é essencialmente sustentada pela agricultura, sob a
organização viciosa da propriedade e do comércio, mantida pelas exigências dos grupos
latifundiários. Não se observa, nos primeiros anos da república, nenhuma iniciativa no sentido
de tratar a questão agrária e do absenteísmo latifundiário. Enquanto grande parte da população
rural transferia-se para os centros urbanos ou emigraram, a extensão das áreas produtivas se
mantêm em posse de famílias que não residem nos campos. Apesar de, entre 1889 e 1899,
estabelecerem-se leis protecionistas que aumentam a produção do trigo, o abastecimento
interno ainda é escasso no início da república, impedindo-se, assim, tanto a autossubsistência
do país, quanto a pequena produção suficiente para cada família. Também o desenvolvimento
industrial é incipiente, o que evidencia tanto a dificuldade de geração de empregos, quanto o
atraso na modernização da sociedade portuguesa. A primeira guerra mundial colabora para os
problemas, visto que gera dificuldades econômicas em todo o mundo, além de produzir
dívidas de Portugal com a Inglaterra. A industrialização, inclusive, desde os séculos XIX, só
tocou o país moderadamente, de que resulta o controle de poucas indústrias portuguesas pelo
capital estrangeiro, caracterizando o Portugal republicano, nas palavras de Oliveira Marques,
como “pouco mais que uma colônia em larguíssimos aspectos”85
. “A Inlgaterra absorvia 70%
das exportações portuguesas, peso esmagador de dependência que o país jamais pôde sacudir
nesse tempo”86
. A balança comercial está permanentemente deficitária, e o comércio das
exportações depende dos artigos agrícolas para que a situação do país não piore.
O contexto político da Primeira República acompanha a crise financeira. As
frequentes sucessões no governo de Portugal contam nove eleições legislativas, oito eleições
presidenciais e quarenta e cinco presidentes de Ministério. Os partidos políticos também se
85
Ibidem, p. 29. 86
Ibidem, p. 34.
62
multiplicam desde 1910. “A instabilidade governativa e a mediocridade ou falta de preparação
de alguns titulares das finanças, que se acentuaram com o sidonismo (...), influíram também, e
não pouco, no descalabro dos orçamentos e das contas públicas.”87
A agitação popular
corresponde proporcionalmente a todos os problemas, que se estendem a todas as esferas
públicas. De 1910 a 1925, contam-se um total de 63 greves, que eram contundentemente
reprovadas pela opinião pública e pelas classes dominantes. Esses movimentos populares
deparam-se com a forte repressão, por parte do regime que antes haviam apoiado. Houve luta
armada, prisões e perseguições. Por outro lado, a classe média urbana e o alto funcionalismo
também manifesta descontentamento, queixando-se de seu baixo poder de compra, da escassa
margem de lucro nos seus negócios, do aumento de impostos, do surto dos movimentos
sindicais, etc. É em todo esse contexto crítico e problemático que Ricardo Reis idealiza seu
distanciamento da realidade.
2.6. O EXÍLIO NO BRASIL
Em 1919, de acordo com a biografia inventada por Fernando Pessoa, Ricardo Reis se
exila de um país que vive crises em curva ascendente. É o ano em que o número de
portugueses que emigram para fugir da miséria aumenta assombrosamente; é também quando
uma das inúmeras leis dos cereais, que proíbe a importação do trigo, colabora para a crise do
abastecimento interno e agrava o problema da fome. Nesse mesmo ano, a administração
republicana está bem mais empenhada em proteger latifundiários e a propriedade privada do
que as outras camadas da sociedade, o que obriga a população rural a se mudar para as
grandes cidades, onde a oferta de emprego também é escassa e o custo de vida é alto. Os que
conseguem emprego são explorados, e cobram as promessas republicanas em sucessivas e
violentas greves. O ano de 1919 aparece, também, entre um dos piores – são eles 1917-1918 e
87
Ibidem, p. 43.
63
1918-1919 –, no que concerne ao déficit das receitas públicas e à assombrosa desvalorização
da moeda. A emigração não é um fenômeno que se observa apenas entre as famílias pobres: a
aristocracia – classe à qual Ricardo Reis pertence – também sai de Portugal, mais por motivos
políticos, levando com elas suas fortunas, que deixam de ser aplicadas no país. A fuga do
capital é uma das consequências da desvalorização da moeda, que apavora os ricos. A
Constituição republicana é revista pela segunda vez em 1919, dando ao presidente o direito de
dissolver o Congresso, o que caracteriza o estado de exceção, ou seja, a paz e a garantia dos
direitos básicos também não se encontram mais em Portugal. É também o ano de maior
abstenção eleitoral; ou seja, a insatisfação com o regime em vigor e a instabilidade política
estão cada vez mais comuns. Em 1919 dá-se a terceira guerra civil, causada por monarquistas,
do período que compreende a República Democrática. Além de tudo isso, há de se destacar
dois fatores providenciais para a reflexão sobre o exílio de Ricardo Reis, além do fato de sua
classe estar fugindo do país: é em 1919 que acontece a revolta conhecida como “Monarquia
do Norte”88
. O conflito entre monárquicos e republicanos não deixa de ser intenso após a
proclamação da república. O grupo conhecido como Integralismo Lusitano apoia Sidônio
Pais, que instaura uma breve ditadura em 1918, mas no mesmo ano é assassinado. Em reação
ao ocorrido, os monárquicos do Integralismo Lusitano se organizam. Eles são predominantes
no norte do país, onde a monarquia é brevemente restaurada por uma junta militar em 19 de
janeiro, que pretende se estender pelo resto do país. As forças monárquicas são reprimidas
pelas forças republicanas, e a Monarquia do Norte não passa de 13 de fevereiro, o que
constituiria, para Ricardo Reis, a impossibilidade de Portugal voltar a ser monárquico. Por
fim, em 1919, a influência religiosa já havia sido reestabelecida, o que torna Portugal ainda
mais inóspito a um anticristão como Ricardo Reis.
88
Proclamação da “Monarquia do Norte”. Disponível em: <http://www.fmsoares.pt/aeb/crono/id?id=039707 >.
Acesso em 30.04.2012.
64
Naquele ano, Ricardo Reis se exila no Brasil, passando a habitar um país não menos
conturbado que Portugal, e cujo desenvolvimento industrial, como analisa Edgar Carone
(1975)89
ainda é lento e sua produção se destina apenas a um mercado interno incipente,
enquanto a economia é dominada pelo setor agrágrio, cuja produção observa uma
lucratividade crescente por se destinar à exportação. Como não poderia deixar de ser, a
política é controlada por esses grupos economicamente hegemônicos. Enquanto isso, lembra
Carone, a abolição da escravatura motiva ações de incentivo à imigração, fazendo com que a
população pobre aumente consideravelmente. Tanto os imigrantes, quanto os flagelados das
secas do nordeste, oferecerão mão-de-obra barata à agricultura e à indústria, mesmo que não
recebam assistência do governo oligárquico.
Esse contexto é o resultado da transformação do Brasil em uma república, em 1989,
graças à mobilização da classe dominante, que é constituída exclusivamente por latifundiários
que se preocupam em derrubar a monarquia apenas para substituí-la. Não há a iniciativa para
acabar com a ordem dominante de maneira radical, deixando de promover, assim,
transformações mais profundas no sistema político brasileiro. O republicanismo, no Brasil,
acaba reduzindo-se a um sistema promovido por interesses de classe que se adequam apenas a
um capitalismo agrário livre da subordinação a um rei. “A acumulação capitalista fez-se no
Brasil vagarosamente, numa industrialização que se caracteriza, até 1940, pela dispersão, por
pequenas indústrias e técnica atrasada. (...)”90
, o que se justifica pelo predomínio das
oligarquias agrárias. As camadas sociais oprimidas por essa conjuntura opõem-se a ela e
formam movimentos influenciados pelo comunismo soviético. O movimento operário se
manifesta de forma lenta, mas já é presente desde o início do século XX:
Social e politicamente, o proletariado é uma força que se manifesta de modo lento.
De origem agrária, logo se avoluma com a imigração e desenvolve uma consciência
política de tradição europeia. São anarquistas, anarco-sindicalistas, socialistas,
anticlericais, usando táticas políticas dos movimentos italianos e espanhóis, onde
89
CARONE, Edgar. Revoluções do Brasil contemporâneo. 2a ed. São Paulo: Difel, 1975
90 Ibidem, pg. 12.
65
então Bakunin predominava sobre Marx. As primeiras organizações, como o Partido
Socialista Brasileiro (1902) e a Confederação Operária Brasileira (1908), refletem
essas concepções. Os primeiros dez anos do século, além de mostrar certa
maturidade organizadora no proletariado das grandes cidades (sindicatos, partidos e
jornais) levam-no a exigências de classe contra os baixos salários, baixo nível de
vida, e aumento do custo de vida.91
“As duas primeiras décadas do século XX mantêm o mesmo panorama dos Estados.
Nos do Nordeste, a aristocracia do açúcar e os coroneis do sertão dominam a massa amorfa e
miserável dos campos”92
. Mesmo quando há elementos dissidentes das cúpulas oligárquicas,
as divergências dizem respeito a interesses exclusivos de classe, o que caracteriza a oposição
à elite como oportunista e indiferente às questões operárias e sociais. Depois de um período
em que o governo é dominado pela chamada aliança do “café com leite” – ou seja, aliança
entre as oligarquias agrárias de São Paulo e Minas Gerais – divergências entre esses dois
grupos abrem espaço para o mandato de Epitácio Pessoa, em 1919, ano em que Ricardo Reis
chega ao Brasil. Epitácio Pessoa é escolhido fora do esquema São Paulo-Minas Gerais, o que
dá a impressão de que seu governo atenderia às exigências dos grupos excluídos das elites do
“café com leite”, aparentando amenizar as disputas políticas. Além disso, em 1919, os anos
pós-Primeira Guerra Mundial provêm uma euforia econômica graças ao aumento do volume
de produtos agrícolas e até industriais, que atingem um superávit sobre as importações. Sendo
assim, trata-se de um ano em que o Brasil aparenta atingir uma certa estabilidade. No entanto,
a realidade não demora a desfazer essa falsa impressão, e Ricardo Reis possivelmente percebe
que não saiu de um contexto muito melhor que aquele em que se encontrava em Lisboa, o que
já se poderia esperar. A impossibilidade de se restaurar a monarquia em Portugal também se
verifica no Brasil; a crise social e econômica que poderia perturbar Ricardo Reis no Brasil é
tão grave quanto a que dominava o país que ele abandona. Não há, naquele momento, motivos
para Ricardo Reis se iludir e confiar que poderia encontrar a sua ambicionada tranquilidade
no Brasil.
91
Ibidem, p. 16. 92
Ibidem, p. 21.
66
Os anos seguintes a sua chegada não melhoram. Logo em 1920, o aparente
crescimento econômico perde sua força. Além disso, as contendas políticas voltam ao cenário,
com Epitácio Pessoa negligenciando as classes que o levaram ao poder, e criando planos para
sustentar a produção do café. A insatisfação é geral, por parte dos militares, classes médias e
classes operárias, além de parte das classes dominantes que se opõem ao governo. A essa
altura, há a possibilidade de Ricardo Reis estar de fato tranquilo, visto que a condição é mais
favorável para os ricos, dentre os quais ele se inclui. Mas é importante lembrar que a
conjuntura político-econômica promoverá muita agitação e conflitos. No período de exílio,
Ricardo Reis produz odes em que sua instabilidade emocional é evidente, tanto quanto o fato
de ser atingido pela perturbação. Volta a escrever apenas no ano de 1921, e começa
retornando com o discurso do expectador do espetáculo do mundo, como se o exílio
permitisse viver em contemplação passiva dos acontecimentos. Os reflexos do mundo são
externos a si, não os experimenta; retornam a si próprios e transformam-se em arte, em nada
interferindo na mente:
[346]
Seguro assento na coluna firme
Dos versos em que fico,
Nem tempo o influxo inúmero futuro
Dos tempos e do olvido;
Que a mente, quando, fica, em si contempla
Os reflexos do mundo,
Deles se plasma torna, e à arte o mundo
Cria, que não a mente.
Assim na placa o externo instante grava
Seu ser, durando nela.93
Com base na leitura das odes, o que se percebe é um Ricardo Reis improdutivo de 24
de novembro de 1918 até 1 de setembro de 1923, ou seja, ao longo de quase cinco anos
Ricardo Reis escreve uma única ode, a citada acima. Antes de vir para o Brasil, sua
produtividade é inconstante – seus picos encontram-se observados nos anos de 1914 e 1916;
em 1915 escreve duas odes; em 1917 escreve apenas uma, e em 1918 também – mas, nessa
93
PESSOA, 2003, p. 273.
67
primeira parte da sua obra, não há um período tão longo de improdutividade poética quanto
esse de 1918 a 1923. Em 1921, quando volta a escrever, retorna com o discurso do espectador
do espetáculo do mundo, da indiferença. Mas, isso não dura. Ricardo Reis volta a escrever em
1923, ano de intensa produtividade, compatível com a agitação política do momento: muitas
revoltas e muita repressão por parte do governo. Já na segunda ode do exílio, a voz é de quem
manifesta insatisfação, de quem se queixa por receber dos deuses dádivas que vai perder e
deseja não ter mais desgosto na vida, demonstrando sua insatisfação com aqueles que ele quer
imitar, e demonstrando também que reconhece que é melhor esperar e não ter do que ter e
perder.
[347]
Não quero as oferendas
Com que fingis, sinceros,
Dar-me os dons que me dais.
Dais-me o que perderei,
Chorando-o, duas vezes,
Por vosso e meu, perdido.
Antes mo prometais
Sem mo dardes, que a perda
Será mais na ‘sperança
Que na recordação.
Não terei mais desgosto
Que o contínuo da vida,
Vendo que com os dias
Tarda o que ‘spera, e é nada.94
Na segunda estrofe, Ricardo Reis confessa indiretamente que o contínuo da vida, ou
seja, sua duração é, em si, um desgosto, mesmo quando o sujeito deixou de desejar para não
se decepcionar em não alcançar seu desejo. Esse indício diz respeito à incapacidade de
Ricardo Reis em ser indiferente e em evitar desapontamentos e perturbação. Em seguida, diz
que o que se espera demora – ou não vem –, assim sendo, estar vivo significa estar sempre
decepcionado, e insatisfeito com algo. A condição humana é a do sofrimento, logo, a
existência contemplativa e impassível é uma idealização, e não a existência que Ricardo Reis,
com efeito, tenha alcançado. Na ode 349, lamenta novamente o que vai perder: “Não canto a
94
Ibidem, p. 274.
68
noite porque no meu canto/ O sol que canto acabará em noite.”95
A inquietação do espírito
angustiado substitui a serenidade dita anteriormente, acompanhada da impassibilidade,
abstenção e da racionalidade. “Não ignoro o que esqueço./ Canto por esquecê-lo”: afirma que
não ignora, não está alienado, mas sabe bem o que esqueceu, e que canta para esquecer ou
em razão de ter esquecido; tanto vale, aqui, ler como escrevo odes com o fim de esquecer ou
escrevo odes porque nada me resta depois de ter esquecido. E, dessa forma, o ato de cantar é
uma ironia, visto que não cabe aqui o ato de celebrar ou elogiar, mas de lamentar. Ou seja, a
produção poética, para Ricardo Reis, é um meio de se imunizar contra a realidade, é a
atividade de que necessita para tentar se alienar, apesar de o próprio resultado dessa atividade
demonstrar que ele tenta estar alheio, mas não tem sucesso. Em seguida à ode 349, as
próximas sete odes falam sobre o quanto o tempo é tão descartável quanto o próprio homem,
sobre infalibilidade da vida, sobre ter-se nenhum objetivo, nenhuma recordação, nenhum
apego. E, novamente oscilando entre viver e deixar a vida passar, entre reparar no mundo e
contemplá-lo indiferente, Ricardo Reis volta a sofrer, como deixa exposto na ode 357,
lamentando a brevidade da vida e da juventude, e o quanto sofre mesmo não amando, nem
bebendo, nem pensando:
Quão breve tempo é a mais longa vida
E a juventude nela! Ah!, Cloe, Cloe,
Se não amo, nem bebo,
Nem sem querer não penso,
Pesa-me a lei inimplorável, dói-me
A hora invita, o tempo que não cessa,
E aos ouvidos me sobe
Dos juncos o ruído
Na oculta margem onde os lírios frios
Da ínfera leiva crescem, e a corrente
Não sabe onde é o dia,
Sussurro gemebundo.96
A ode 358 também contém um lamento sobre a brevidade da vida: “Tão cedo passa
tudo quanto passa!/ Morre tão jovem ante os deuses quanto/ Morre! Tudo é tão pouco!/ Nada
95
Ibidem, p. 274 96
Ibidem, p. 277, grifos meus.
69
se sabe, tudo se imagina./ Circunda-te de rosas, ama, bebe/ E cala. O mais é nada.”97
E,
enquanto antes escolhe não enlaçar as mãos com Lídia, ou seja, abstém-se do envolvimento
amoroso, agora já se permite vivê-la, mesmo que seja apenas em circunstâncias furtivas, sem
que sejam planejadas; mas diz à musa que gozem, que não despertem Erínis, que é aquela que
trava o gozo. O prazer ainda é calculado (“Prazer, mas devagar”), mas, sem dúvida, desta vez
as mãos não estão mais desenlaçadas. O momento feliz é experimentado, a dádiva é
concedida, e Ricardo Reis quer se prevenir de ser invejado por sua sorte. Quer gozar em
segredo: tem em suas mãos aquilo que ele dizia que não desejava porque não queria perder, e
agora pede à sua musa para que emudeçam juntos, para que sua felicidade não seja notória,
afastando, assim, a possibilidade de tê-la roubada. O medo, agora, não é apenas da morte, mas
de perder a felicidade conquistada:
Prazer, mas devagar,
Lídia, que a sorte àqueles não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos retiremos do horto mundo
Os depredandos pomos,
Não despertemos, onde dorme, a Erínis
Que cada gozo trava.
Como um regato, mudos passageiros,
Gozemos escondidos.
A sorte inveja, Lídia. Emudeçamos.98
Em 360, há um retorno ao marasmo da impassibilidade, e um campo é usado como
imagem dessa inércia: lavrado ou não, ele continua no mesmo lugar. Mas, logo, em seguida, o
impulso erótico retorna aos versos, com sua força pungente, e a urgência em satisfazê-lo se
manifesta. O sujeito abandona por um momento o empenho em tentar se manter apático, e há
o beijo e o pedido por amor, mesmo sabendo que o amor vai acabar, assim como a própria
vida:
Como se cada beijo
Fora de despedida,
Minha Cloe, beijemo-nos, amando.
Talvez que já nos toque
97
Ibidem, p. 277. 98
Ibidem, p. 277.
70
No ombro a mão, que chama
À barca que não vem senão vazia;
E que no mesmo feixe
Ata o que mútuos fomos
E a alheia soma universal da vida.99
Entre se perturbar e se conter, Ricardo Reis segue com suas odes, e o homem
impassível vai manifestando alterações no ânimo ou simplesmente na escolha do que
expressar em seus versos.
Na ode 362, o gozo é novamente permitido e há o pacto dos amantes: eles estão
tecendo um para o outro uma grinalda, a coroa do casamento. O amor não é mais casual, mas
estabelece um vínculo entre os amantes. A aliança entre eles é o comprometimento recusado
até agora por Ricardo Reis, e é o que ele escolhe viver enquanto espera pela morte, deixando
para trás, portanto, o propósito de decorrer calmamente a vida. Os amantes se coroam e
brindam uníssonos; estão casados, são uma unidade, brindar em uníssono é emitir um som
único, que parte dos dois. Estão voltados um para o outro, conciliando “o insubsistente surdo”
– o amor – podendo esquecer a realidade à volta. Mesmo que ainda haja a recusa em se
prestar atenção na realidade, há o compromisso com o amor, que é um refúgio, é surdo,
portanto, impassível de ser atingido pela realidade:
Tuas, não minhas, teço estas grinaldas,
Que em minha fronte renovadas ponho.
Para mim tece as tuas,
Que as minhas eu não vejo.
Se não pesar na vida melhor gozo
Que o vermo-nos, vejamo-nos, e, vendo,
Surdos conciliemos
O insubsistente surdo.
Coroemo-nos pois uns para os outros,
E brindemos uníssonos à sorte
Que houver, até que chegue
A hora do barqueiro sombrio.100
Mas, logo em seguida, a morte causa angústia, e novamente, o homem impassível se
perturba. Em 363, o vínculo estabelecido em 362 se desfaz, e a interlocutora é uma nova
99
Ibidem, p. 278. 100
Ibidem, p. 278.
71
musa, Neera, a quem são direcionadas as palavras que expressam o medo da morte, que, aqui,
significa deixar de ver, e esse medo provoca o sofrimento que antes se quis evitar:
Olho os campos, Neera,
Campos, campos, e sofro
Já o frio da sombra
Em que não terei mais olhos.
A caveira ante-sinto
Que serei não sentindo,
Ou só quanto o que ignoro
Me incógnito ministre.
E menos ao instante
Choro, que a mim futuro,
Súbdito ausente e nulo
Do universal destino.101
Essa é a última ode escrita no ano de 1923. O conjunto desse ano mostra um sujeito
em intensa oscilação emocional, ora isolando-se, ora abrindo-se para o mundo e a vida; em
alguns momentos está impassível, mas na maior parte do tempo está claramente perturbado.
Essa instabilidade se manifesta em um ano em que as forças revolucionárias no Brasil estão
muito engajadas em derrubar o poder, e o clima é de tensão desde 1922.
Em repúdio às práticas do governo para combater a oposição, o tenentismo surge:
“tem sua gênese imediata na luta dos dissidentes e militares contra a oligarquia dominante; e
as suas origens mais remotas na formação de uma geração combativa de jovens da classe
média, a geração do tenentismo.”102
O movimento tenentista é formado principalmente por
militares de baixa patente insatisfeitos com o domínio das olgarquias no país. Enquanto
Ricardo Reis está no Brasil assiste a duas tentativas de tomada do poder pelas forças
tenentistas (1922 e 1924-27, a primeira delas, no Rio de Janeiro, cidade em que mora), que
mais tarde se incorporam à oposição comunista (1935), isso sem contar com outras revoltas
isoladas ocorridas naquele período. A primeira revolta tenentista é desencadeada em 1922 –
também conhecida como a revolta dos 18 do Forte de Copacabana –, e, mesmo fracassada, é o
sinal de alerta sobre a heterogeneidade ideológica existente naquele momento no Brasil. No
101
Ibidem, p. 278-279, grifos meus. 102
CARONE, 1975, p. 37.
72
entanto, o resultado da revolta de 1922 será o início do estado de sítio e da repressão,
promovendo-se prisões e processos e todas as medidas violentas de combate à oposição ao
governo. Desde a posse de Artur Bernardes, em 15 de novembro de 1922 – ironicamente, o
ano do centenário da independência do Brasil – “o país viveu em estado de sítio, em regime
policial”103
, estado que se estenderia, por inúmeras prorrogações, com alguns intervalos, até o
fim da era Vargas. Apesar das medidas rigorosas de repressão, a classe média e o operariado
não se intimidam e seguem com suas organizações.
O governo de Artur Bernardes é marcado, portanto, por crises de ordem econômica,
social e política. A repressão o torna muito impopular entre militares, e ele nomeia o general
Setembrino de Carvalho, conseguindo, assim, que o exército se unisse ao governo. Com a Lei
de Imprensa instituída, a censura se torna rígida sobre os jornais. As medidas de coerção se
completam com reformas absurdas, “como a restrição a direitos individuais, com limitação do
habeas corpus e retirada de julgamento por júri dos crimes políticos imprescritíveis, quando o
acusado estivesse exilado”104
. E para centralizar ainda mais o poder, Artur Bernardes
consegue proibir as reeleições em alguns estados e veta parcialmente a criação de juízes e
tribunais regionais, e depura deputados e senadores, sem preocupações aparentes em moderar
o despotismo.
O julgamento dos implicados na revolução de 1922, em dezembro de 1923, que são
condenados de forma arbitrária, por conspiração “contra a pessoa do presidente da República,
e não por um golpe de Estado, que foi o motivo da sentença”105
, reacende as forças opositoras
e, em 1924, uma nova revolução é desencadeada, quando “acertos estaduais e a calma
aparente do país trouxeram ao governo a ideia enganadora de tranquilidade e domínio,
fazendo-o suspender o estado de sítio em 23 de dezembro”106
. O movimento tenentista
103
Ibidem, p. 44. 104
Ibidem, p. 45. 105
Ibidem, p. 49. 106
Ibidem, p. 48.
73
articula-se e realiza revoltas que começam com os combates entre os revolucionários militares
e as forças do governo em 5 de julho, em São Paulo. A partir do dia 11, “o governo começa a
usar indiscriminadamente a artilharia contra objetivos militares e civis, o que leva a população
ao pânico e à fuga para o interior”107
. As lutas seguem muito violentas e os revolucionários
abandonam a cidade no dia 27, quando seguem tentando tomar cidades no interior do estado,
depois no Mato Grosso, Paraná, enquanto outros pontos de revolta eclodem no Pará, Sergipe,
e Amazonas. Em outubro, acontece a revolução no Rio Grande do Sul, de onde as tropas
revolucionárias lideradas por Luis Carlos Prestes parte e se une aos revolucionários paulistas,
dando início à marcha da Coluna Prestes, que se espalha por todo o país.
“A Coluna Miguel Costa-Luís Carlos Prestes iniciava seu raide pelo Brasil. Pela
primeira vez uma revolução faria vibrar a expectativa popular, num país amordaçado pelo
estado de sítio e pela censura. A esperança tornou-se nacional.”108
O objetivo da Coluna é
mobilizar as populações locais por onde passam e os núcleos revolucionários para unirem-se e
derrubar o regime. Durante dois anos a Coluna percorre a pé mais de 25 mil quilômetros109
,
alternando-se entre vitórias e deslocamentos, ao mesmo tempo em que outras revoltas
eclodem pelo país. As revoluções se estendem até 1927, quando Washington Luís é
empossado presidente da república. A Coluna não consegue derrubar o governo, mas chega ao
fim invicta. Apesar de a existência do tenentismo apresentar uma potencial força
revolucionária, e de ter estado próxima de efetivamente participar do poder, configurando-se,
por isso, a possibilidade de exercer políticas mais profundas em direção às transformações
sociais necessárias naquele momento do Brasil, “(...) as revoluções que se estendem (...)
fazem-se com uma formulação caótica e vaga, acompanhando as circunstâncias históricas e
representando a ‘ideologia’ das classes médias militares”110
. Somente depois de 1927 é que o
107
Ibidem, p. 53. 108
Ibidem, p. 56. 109
MORAIS, Fernando. Olga. 11a ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1986. p. 46.
110 CARONE, 1975, p. 60.
74
tenentismo evolui para “ideologia mais completa”, que fará da pequena-burguesia “uma
corrente nacionalista e revolucionária”111
. De qualquer forma, enquanto a Coluna engaja-se
em mobilizar o país para a revolução, o antagonismo entre o poder e essa corrente esquerdista
evidencia a agitação política e a possibilidade de a elite à qual Ricardo Reis pertence perder
seus privilégios. Essa ameaça não se cumpre, mas não deixa de ser uma ameaça. Ao fim, os
guerrilheiros da Coluna se exilam na Bolívia, mas o movimento promovido por ela não se
extingue; e seus colaboradores não encerram ali suas atividades subversivas, como ter-se-á
conhecimentos nos anos seguintes.
A ode 364 é um elogio à mutabilidade e à natureza cíclica das coisas, apesar de
Ricardo Reis se afirmar como imutável. Porém, na ode seguinte, lamenta por sua evidente
mudança, do homem jovem para o velho: “Já sobre a fronte vã se me acinzenta/ O cabelo do
jovem que perdi./ Meus olhos brilham menos. Já não tem jus a beijos minha boca./ Se me
ainda amas, por amor não ames:/ Traíras-me comigo.”112
O peso do tempo é sofridamente
sentido. Abatido pelo sofrimento e pela angústia, em 366, deseja ter a alma dos brutos, porque
eles não sentem; ou seja, não é o caso de sua própria alma. Na 367, sucumbe estridentemente
à emoção, e considera feliz ou o bruto – que é o homem do campo, o trabalhador rural – ou o
sábio; o primeiro é insensível, não se abala, e o segundo está alienado na ciência e sua vida é
fútil. Não é nenhuma dessas duas a condição de Ricardo Reis: são dois estilos de vida que vão
“além da nossa”. O bruto e o sábio são opostos – o civilizado e o não-civilizado – entre os
quais se encontra a alma perturbada de Ricardo Reis; são como a fumaça que sobe ao céu,
onde Ricardo Reis reconhece que não há deuses nem cristos para prover os homens:
[367]
Quanta tristeza e amargura afoga
Em confusão a ‘streita vida! Quanto
Infortúnio mesquinho
Nos oprime supremo!
Feliz ou o bruto que nos verdes campos
Pasce, para si mesmo anônimo,e entra
111
Ibidem, p. 60. 112
PESSOA, 2003, p. 279.
75
Na morte como em casa;
Ou o sábio que, perdido
Na ciência, a fútil vida austera eleva
Além da nossa, como o fumo que ergue
Braços que se desfazem
A um céu inexistente.113
Até aqui, nota-se um sujeito perturbado, melancólico e inconformado com a dureza do
mundo, e essa negatividade se observa exatamente no período em que a Coluna Prestes
marcha pelo país empenhada em derrubar o governo oligárquico, com o qual certamente
Ricardo Reis se identifica. As duas últimas odes desse período mostram que ele retorna ao seu
fatalismo, só que, agora, parece ser o fatalismo advindo da frustração, e não do conformismo.
A ode 368 repete, inclusive, a frase “Abdica e sê rei de ti próprio”, presente na ode 319, que
se encontra ainda no ciclo do determinismo estoicista.
Frutos, dão-os as árvores que vivem,
Não a iludida mente, que só se orna
Das flores lívidas
Do íntimo abismo.
Quantos reinos nos seres e nas cousas
Te não talhaste imaginário! Quantos,
Com a charrua,
Sonhos, cidades!
Ah, não consegues contra o adverso muito
Criar mais que propósitos frustrados!
Abdica e sê
Rei de ti mesmo.114
A diferença é que, desta vez, optou-se pelo pronome “mesmo”: antes, o conselho era
para que se abdicasse das ambições para se ser “rei de si próprio”, ou seja, ser dono do eu
próprio, apropriado, que o sujeito possui, ser o dono pleno e absoluto de si. A troca de
“próprio” por “mesmo” não é despropositada. A abdicação, dessa vez, é forçada, porque o
sujeito vem experimentando a angústia decorrente da vida em sociedade, e não a calma
apologizada anteriormente. Ele é obrigado a abdicar, ele deseja abrir mão de todo esse
infortúnio, está buscando por isso. Abdicar não é mais uma escolha; e ser rei de si mesmo não
é mais sua maneira de dominar-se e estar de costas para o mundo: é tudo o que lhe resta,
113
Ibidem, p. 279, grifos meus. 114
Ibidem, p. 279-280.
76
tentar ser rei do seu universo individual, conduzí-lo, porque o resto do mundo está sendo
destruído progressivamente por antagonismos. Sua condição, agora, é a de contentar-se com o
pouco que a vida lhe oferece, e não mais com o pouco que ele escolheu ter:
Gozo sonhado é gozo, ainda que em sonho,
Nós o que nos supomos nos fazemos,
Se com atenta mente
Resistirmos em crê-lo.
Não, pois, meu modo de pensar nas coisas,
Nos seres e no fado me consumo.
Para mim crio tanto
Quanto para mim crio.
Fora de mim, alheio ao em que penso.
O Fado cumpre-se. Porém eu me cumpro
Segundo o âmbito breve
Do que de meu me é dado.115
A partir da ode 370, o tema é a morte, e o tom sombrio assume a voz que até então
estava perturbada e rancorosa. É que a morte está cada vez mais próxima, e viver é o mesmo
que estar morto: existir é ter uma série de experiências que não duram, e conquistar coisas que
podem ser perdidas. A vida, agora, resume-se ao sofrimento. Até sua musa é um pouco
zumbi: em 372, Ricardo Reis fala a uma morta anônima. O tom não apenas é sombrio, como
também é macabro, e está cada vez mais distante do sujeito imperturbável do início.
A nada imploram tuas mãos já coisas,
Nem convencem teus lábios já parados,
No abafo subterrâneo
Da úmida imposta terra.
Só talvez o sorriso com que amavas
Te embalsama remota, e nas memórias
Te ergue qual eras, hoje
Cortiço apodrecido.
E o nome inútil que teu corpo morto
Usou, vivo, na terra, como uma alma,
Não lembra. A ode grava,
Anônimo, um sorriso.116
A amante está morta, não pede mais por amor. Ou, a essa altura, a morte é tão presente
que é sua única companheira, e a ela se dirige, tanto que não reconhece mais suas musas
Lídia, Cloe e Neera:
Lenta, descansa a onda que a maré deixa.
115
Ibidem, p. 280. 116
Ibidem, p. 280-281.
77
Pesada cede. Tudo é sossegado.
Só o que é de homem se ouve.
Cresce a vinda da lua.
Nesta hora, Lídia ou Neera ou Cloe,
Qualquer de vós me é estranha, que me inclino
Para o segredo dito
Pelo silêncio incerto.
Tomo nas mãos, como caveira, ou chave
De supérfluo sepulcro, o meu destino,
E ignaro o aborreço
Sem coração que o sinta.117
Em 377, “Pesa o decreto atroz do fim certeiro./ Pesa a sentença igual do juiz
ignoto”118
. Esse é o momento em que Ricardo Reis atingiu um estado máximo de dor e
alcança, assim, a morte, mesmo que seja apenas a morte como estado de consciência de um
ser vivo de quem a dor roubou a vida. Não está de fato morto, porque mortos não escrevem
odes. Está em um estado de depressão profunda, ou trata-se da morte daquele que foi até
agora, é quando o homem anterior o abandona, e o eu se desintegra. Ou, a desintegração do
sujeito é consequência da depressão profunda. O mundo realiza essa metamorfose
submetendo o sujeito às angústias da vida em sociedade, as quais ele não suporta,
abandonando a condição de homem para a de homem desapropriado de si:
[380]
Tudo que cessa é morte, e a morte é nossa
Se é para nós que cessa. Aquele arbusto
Fenece, e vai com ele
Parte da minha vida.
Em tudo quanto olhei fiquei em parte.
Com tudo quanto vi, se passa, passo,
Nem distingue a memória
Do que vi do que fui.119
É interessante notar que o ciclo da morte, que vai da ode 370 à 380, é composto entre
31 de maio de 1927 a 7 de junho de 1928, ou seja, quando a Coluna Prestes já havia fugido
para a Bolívia sem alcançar seu objetivo primordial: derrubar o regime. Por essa razão, é
possível entender que a perturbação de Ricardo Reis não é provocada apenas pela “ameaça
117
Ibidem, p. 281. 118
Ibidem, p. 282. 119
Ibidem, p. 282.
78
comunista”, mas envolve uma consciência mais abrangente. Naquele momento, entende-se
que o movimento revolucionário havia sido contido, no entanto, a crise geral permanece, e a
angústia subjetiva continua intensificada na voz poética. É claro que o governo continua tendo
que enfrentar oposições, como a corrente moderada que será representada pela Aliança
Liberal, e o liberalismo não é compatível com a orientação monarquista de Ricardo Reis. Mas
o período mencionado, que vem logo em seguida ao fim das ações tenentistas, ainda apresenta
a indissolubilidade do regime. Somente em 1929 é que a corrente de orientação liberal,
originária das camadas oliárquicas, funda a Aliança Liberal, cujo líder é ninguém menos que
Getúlio Vargas. Ou seja, de fato, a maior ameaça à classe dominante é ser substituída por ela
mesma. A Aliança empenha-se em propagar ideias para a derrubada da República Velha e da
antiga classe dominante, e constitui um amálgama de tendências que surge a partir da cisão da
oligarquia estabelecida pela união do “café com leite”. Ideologicamente, a Aliança contesta o
governo sem se aprofundar na questão social e do operariado, com cujos problemas não
demonstra preocupação. Naquele momento, o movimento tenentista se divide: uma parte é
convencida pela Aliança, mas o restante, sobretudo Luis Carlos Prestes, mantém-se receoso
em relação às motivações da Aliança Liberal. Em 1930, a Aliança promove a revolução que
encerra a República Velha e põe Getúlio Vargas no poder, teoricamente derrubando a elite
política conservadora, apoiado por uma ala tenentista. Já Prestes se declara comunista e se
opõe a Getúlio. “A Primeira República terminava marcada por uma atitude civil, embora
vazia de senso histórico.”120
As odes que constituem esse ciclo de morte manifestam a sequência de mortes
experimentada pelo sujeito e isso se converte em um processo de impessoalização. A tristeza,
agora, é abafada por essa impessoalização, como se esta pudesse neutralizar aquela. O sujeito
perde a capacidade de se reconhecer, e se vê a si em muitos. Esses muitos viram “nós”, como
120
CARONE, 1975, p. 83.
79
uma esquizofrenia, até que “nós” vira “eles” – o sujeito vira objeto, um estranho para si
mesmo: “Quem nos conhece, amigo, tais quais fomos?/ Nem nós os conhecemos.”121
Os que
não se conhecem são os eus do passado, que o sujeito foi e não é mais, porque está
despersonalizado. E, agora, esse sujeito é vários, dos quais também será desapropriado. Aqui,
Ricardo Reis não apenas está afastado de si mesmo, como também se aproxima de Fernando
Pessoa, o criador da heteronímia.
[385]
Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o meu presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes.122
Há uma personalidade que não é reconhecida como eu, mas como aquele sujeito do
passado, a recordação, ou um sonho, alguém que se vivencia fora da realidade, como vida
onírica ou ideal. Esse eu onírico é o que deseja ser, mas não é. Se “quem sou e quem fui são
sonhos diferentes”, o ideal da existência epicurista, imutável, e alienada compreende a vida
almejada, que o faz sentir uma saudade que aflige. A noção de passado exposta na ode 320
como espaço temporal onde reside a realidade está aqui presente também como o espaço onde
se mantém o ideal de existência, como uma recordação ou sonho. O eu que é e o eu que foi são
sonhos: não existem. Os elementos que habitam a memória – o eu que já foi e o eu que gostaria
de ser, o eu que sofre e o eu que consegue evitar o sofrimento – neutralizam-se no eu efetivo
que é Nada. Ricardo Reis encontra-se na lacuna entre sofrer e não sofrer, buscar a
impassibilidade e perturbar-se por não consegui-la, ao mesmo tempo se conscientiza de que a
vida imóvel sofre a ameaça das mudanças do futuro. Isso atesta que sua poesia lhe permite
121
PESSOA, 2003, p. 283. 122
Ibidem, p. 283.
80
vivenciar a alienação através da elaboração de uma ideologia, de premissas e princípios. Essa é
sua – talvez, a única – forma de realizá-las. Entretanto, há de se observar que o espírito que
recorre a essa elaboração revela-se movido pela própria perturbação; pelo sofrimento e revolta,
ou seja, tudo o que pretende evitar por já ter experimentado e rejeitado. O homem estável e
indiferente da poesia é uma das máscaras do fingidor pessoano, o retrato da angústia. Ele finge
a indiferença porque apenas ela permite a quietude, mas a dor continua evidente.
O processo de impessoalização dura até a ode 389. Depois, da ode 392, à 393 começa
a rejeitar o que lhe é concedido, apresentando um intenso trânsito de ideias. Logo em seguida,
já aceita o pouco que recebe e demonstra resignação. Ao mesmo tempo, continua perturbado
pelo espetáculo do mundo, “O mundo externo claramente vejo –/ Coisas, homens, sem
alma.”123
Inanimado – “sem alma” – está morto, ou semi-morto; mas a lucidez é irreversível,
por isso permanece despersonalizado, irreconhecível por si mesmo, estranho em um mundo
hostil, em uma vida que não lhe pertence.
Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que estejamos.
Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que moremos. Tudo é alheio
Nem fala língua nossa.
Façamos de nós mesmos do insulto
Do tumulto do mundo.
Que quer o amor mais que não ser dos outros?
Como um segredo dito nos mistérios,
Seja sacro por nosso.124
Aqui, a ignorância não é mais um artifício para aquele que não quer se envolver com
os acontecimentos; é um estado de desamparo e perdição, compartilhado por qualquer
indivíduo do mundo moderno, que se sente alienado da vida real, hostilizado pelo resto dos
homens. Ser estrangeiro não é mais uma escolha do abstêmico epicurista, mas a condição à
qual está submetido e da qual ninguém está livre. E o amor se torna um refúgio, um alívio
123
Ibidem, p. 287. 124
Ibidem, p. 288.
81
para essa condição. Não é mais uma degustação de quem está apenas vivendo a vida vendo-a
passar em inércia, mas uma maneira de se compensar do “tumulto do mundo”. Faz parte dessa
condição de estrangeiro sê-lo até para si mesmo, isso também justifica o processo de
impessoalização. Em 411, assume que quando se ama alguém, está-se amando a parte de si
que há no outro, porque só é possível se reconhecer quando se vê fora de si:
Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto.
Nada te pese que não te amem. Sentem-te
Quem és, e és estrangeiro.
Cura de ser quem és, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrerás avaro
De penas.125
O sujeito é um morto; da mesma forma, antevê o fim das odes:
Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas, vistas, odes findas –
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.126
O sofrimento permanece, mesmo que velado pela máscara do “outramento”. O desejo
da felicidade é evidente, tanto quanto a depressão:
Aqui, neste misérrimo desterro
Onde nem desterrado estou, habito,
Fiel, sem que queira, àquele antigo erro
Pelo qual sou proscrito.
O erro de querer ser igual a alguém
Feliz, em suma – quanto a sorte deu
A cada coração o único bem
De ele poder ser seu.127
O “misérrimo desterro” é o Brasil, o exílio autoimposto. Aqui, é também a
infelicidade, a prisão em que se confina qualquer ser humano vivo, ou a própria vida. A
125
Ibidem, p. 288. 126
Ibidem, p. 289. 127
Ibidem, p. 290.
82
lamentação continua manifestando seu esvaziamento, seu definhamento, continua se partindo
e se deteriorando:
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu ‘screvo.128
Chega a hora de o produto do desconcerto ter forma; aqui se manifesta um sujeito
central e vazio onde os muitos que nele habitam se cruzam, habitando, na verdade, um grande
vácuo. Esse sujeito poético é o abismo de si mesmo: dentro de si há uma grande vala, sem
fim, onde os eus plainam, às vezes arremessados pelo vento que percorre essa fossa interior.
O sujeito poético se descreve assim; e ainda alega ignorar impulsos que se cruzam lá dentro e
ser indiferente aos eus fazendo-os calar. Mas essa descrição varia para a do estado de
angústia, em que as emoções se manifestam, sendo, portanto, muito mais do que impulsos que
se cruzam e que podem ser ignorados, e os eus não se calam, ressoando bem mais alto do que
a própria consciência. Coincide com a situação de violência no Brasil as últimas odes de
Ricardo Reis, em que a preponderância dos sentimentos em relação ao vazio e dos eus em
relação ao ego despertam o terror neste que se diz indiferente.
128
Ibidem, p. 291.
83
2.7. APROXIMAÇÃO DA MORTE
De 1930 a 1935 a situação no Brasil é de agravamento da crise econômica e social,
observando-se também a queda na produção industrial, resultando no aumento do desemprego
e na eclosão de inúmeras novas greves. Esse é o retrato de um país que continuava regido
pelas oligarquias agrárias e sem abertura para o crescimento industrial, e muito menos o
amparo social satisfatório a toda a população. O poder será intensamente disputado por
tenentistas e liberais durante esses cinco anos, enquanto Getúlio Vargas manterá o
corporativismo do regime dominado pelas classes conservadoras e oligárquicas e das velhas
medidas repressoras e autoritárias. Por isso, a ala tenentista que conquista participação no
governo começa a se opôr a Getúlio, que protela a criação de uma nova Constituição, o que
significaria o fim do governo provisório advindo da revolução de 30. Em 1932, os tenenstistas
tentam derrubar o governo e promovem novos combates que duram três meses, mas que não
teve qualquer adesão do proletariado, caracterizando-se, portanto, como uma disputa política
entre classes restritas. Desses combates as oligarquias saem enfraquecidas, mas isso será
convertido em seu favor em 1933, quando é instalada, enfim, a Assembleia Nacional
Constituinte, que promulga uma Constituição conservadora. Os representantes oligárquicos
que apoiam Getúlio são mantidos no poder pelas eleições. Nessa ocasião, “as oligarquias
fizeram a maioria dos deputados, vitória que assinala o início do declínio tenentista. A
Constituinte é o marco da decadência de uma revolução que se desintegrava.”129
. Em 1935,
nas eleições para governador, “os tenentes se viram praticamente desalojados do poder.”130
Nesse cenário manifestam-se muitas correntes ideológicas e muito divergentes entre
si. Além da velha oligarquia, dos tenentistas, e recentemente, a Aliança Liberal, surge o
integralismo, movimento de orientação nazi-fascista, e o movimento comunista se torna cada
vez mais forte e organizado. Por isso, as investidas para se combater o comunismo e a
129
CARONE, 1975, p. 107. 130
Ibidem, p. 107.
84
subversão são cada vez mais extremas. Em março e abril de 1935, “as oligarquias consolidam
suas vitórias com medidas coercitivas legais, nem arrocho à ‘anarquia’ tenentista e outras que
poderão representar perigo, como o comunismo, que avulta ameaçador.”131
Em 30 de março, a
Lei de Segurança Nacional, medida contra as manifestações operárias e da oposição, é
aprovada. Nesse período, surge a Aliança Nacional Libertadora, frente única de partidos de
esquerda e fusão da classe média e do operariado. Suas ações têm caráter profundamente
combatente ao integralismo e ao regime getulista, promovendo greves, manifestações
públicas, organizando caravanas de propaganda, formando uniões reivindicatórias dos direitos
da mulher, do trabalhador agrícola, etc. Luis Carlos Prestes é escolhido seu presidente de
honra. O regime trata logo de reprimir a Aliança, fechando seu núcleo em julho, por
“atividade subversiva de ordem política e social”. Em 21 de agosto a Corte Suprema indefere
o Mandado de Segurança contra a Aliança Nacional Libertadora, enquanto Getúlio Vargas
tem total apoio da oligarquia.
Com o fechamento da Aliança Nacional Libertadora, resta ao Partido Comunista
liderar a próxima ação combativa. O Comintern Internacional delega a Prestes a missão de
liderar o movimento que ficou conhecido como Intentona Comunista ou Revolta Vermelha,
desencadeada em novembro de 1935. Mas o governo de Getúlio abafa a conspiração, prende
os responsáveis – inclusive a mulher de Prestes, Olga Benário, é enviada grávida para a
Alemanha hitlerista para morrer em um campo de concentração. Getúlio Vargas não se alia
declaradamente a Hitler, mas é-lhe simpatizante, inspirando-se na ideologia nazista e no
fascismo de Mussolini, e, inclusive, contratando os serviços da Gestapo para treinar sua
polícia política e adotando os modelos de regime e constituição alemães e italianos para
definir seu governo e leis brasileiras.
Os motivos da articulação e fracasso do movimento de novembro são
vários, destacando-se: o fechamento da Aliança; o recrudescimento da reação e do
Integralismo; a ilegalidade do Patrido Comunista e a ausência de liberdade da
131
Ibidem, p. 115.
85
maioria de seus líderes(...); o grande otimismo (...); as provocações de agentes do
governo infiltrados na clandestinidade (...); o conhecimento que o governo tinha dos
preparativos da revolução (...). Prestes esperava que ao lado da revolta militar
houvesse eclosão da greve de massas. Na verdade, a utopia do esquema resulta na
clássica revolução militar. Em Natal, criara-se o aumento do poderio da polícia
política e especial, numa tentativa de abafar movimentos populares. Em
consequência disso, ou pela provocação de falso telegrama passado pelo governo,
que já conhecia o código e as intenções dos revoltosos, rompe a revolução. (...) A
contínua chegada de reforços e a aviação obrigam os rebeldes a fugir [ou se
entregar]. Terminava assim a revolução comunista por um fracasso total, prisão de
milhares de pessoas e caça a todos os elementos suspeitos.132
Parecendo pressentir o futuro próximo e demonstrando uma consciência clara do que
acontece naquele momento histórico, Ricardo Reis escreve suas últimas 14 odes no dia 13 de
novembro de 1935 – depois dessa série que vai da ode 423 à 436, ele nunca mais escreveu.
No dia 25 é declarado o estado de exceção. Esse conjunto do dia 13 de novembro começa por
uma ode marcada pelo processo de despersonalização, a 423, já citada anteriormente (“Vivem
em nós inúmeros”). Em 424, Ricardo Reis retorna ao tema do estoicismo; e, a seguir, constrói
uma trilogia do abismo, composta pelas odes 425, 426 e 427:
Temo, Lídia, o destino. Nada é certo.
Em qualquer hora pode suceder-nos
O que nos tudo mude.
Fora do conhecido é estranho o passo
Que próprio damos. Graves numes guardam
As lindas do que é uso.
Não somos deuses; cegos, receemos,
E a parca dada vida anteponhamos
À novidade, abismo.133
A ode citada acima é a primeira da trilogia e seu ponto central é o medo. Ricardo Reis
teme o futuro por sua imprevisibilidade, desconhece-se o que há por vir. Aqui ele repete a
introdução da ode 344, “Sofro, Lídia, do medo do destino”. Ao mesmo tempo em que Ricardo
Reis acredita que deve-se entregar ao destino porque ele não pode ser mudado por nossas
ações, depara-se o tempo todo com o medo daquilo que lhe está reservado; a fatalidade é
imbatível, e também elemento opressor na vida do homem. Não é à toa que a ode é encerrada
pela palavra “abismo”, o que também acontecerá na ode 426:
132
Ibidem, p. 102-121. 133
PESSOA, 2003, p. 292.
86
Não queiras, Lídia, edificar no spaço
Que figuras futuro, ou prometer-te
Amanhã. Cumpre-te hoje, não ‘sperando.
Tu mesma és tua vida.
Não te destines, que não és futra.
Quem sabe se, entre a taça que esvazias,
E ela de novo enchida, não te a sorte
Interpõe o abismo?134
O abismo é a palavra que se configura em um eufemismo para a morte e também para
o destino: é a representação da infinitude obscura que se apresenta tanto quando se pensa na
morte quanto no destino. Em 427, Ricardo Reis se despede do momento presente, consciente
de que ficará para trás e será substituído pelo futuro. O nada a que Ricardo Reis tanto faz
apologia é tudo o que ele tem, porque viver é estar à espera do desconhecido. Aqui, a musa
Marcenda aparece pela primeira vez: é a musa que murcha ao seu ritmo, Marcenda vem do
gerúndio do verbo latino “murchar”. As odes iniciais de Ricardo Reis falam em viver como
uma flor em um jarro, cortada do caule, esperando pela morte definitiva, o que corresponde à
vida inerte. Agora, essa espera pela morte enquanto se murcha não é mais tão pacífica, mas
angustiante, e Ricardo Reis chora pelas flores do verão, as mesmas flores que serão postas em
vasos para murchar lentamente.
Saudoso já deste verão que vejo,
Lágrimas para as flores dele emprego
Na lembrança invertida
De quando hei de perdê-las.
Transpostos os portais irreperáveis
De cada ano, me antecipo a sombra
Em que hei de errar, sem flores,
No abismo rumoroso.
E colho a rosa porque a sorte manda.
Marcenda, guardo-a; murche-se comigo
Antes que com a curva
Diurna da ampla terra.135
A musa Marcenda aparece pela primeira vez. Seu nome é de origem latina e significa
“aquela que deve murchar”136
. As odes iniciais de Ricardo Reis falam em viver como uma
flor em um jarro, cortada do caule, esperando pela morte definitiva, o que corresponde à vida
134
Ibidem, p. 292. 135
Ibidem, p. 292. 136
CERDEIRA, Teresa Cristina. O avesso do bordado. Lisboa: Caminho, 2000, p. 276.
87
inerte. Agora, essa espera pela morte enquanto se murcha não é mais tão pacífica, mas
angustiante, e Ricardo Reis chora pelas flores do verão, as mesmas flores que serão postas em
vasos para murchar lentamente. Aqui, o sujeito que se projeta na flor que murcha no vazo está
quase completamente esvaído, e convida sua musa a murchar com ele, já que ela murchará de
quaquer jeito, e não com a vinda do dia seguinte, o futuro, “a curva diurna da ampla terra”.
Ricardo Reis vislumbra a morte, ela está cada vez mais próxima, ele vive mais a morte do que
a vida. Nesse momento, ele se volta para a imagem futura da “lembrança invertida”
antecipando-se “a sombra em que hei de errar, sem flores, no abismo rumoroso”.
Em 428, Ricardo Reis observa que a ciência “não põe/ Mais flores do que a Flora
pelos campos,/ Nem dá de Apolo ao carro/ Outro curso que Apolo”137
, porque ele se utiliza da
filosofia de Alberto Caeiro, segundo a qual pensar é estar doente, e a ciência é o produto do
pensamento, que não tem o poder de evitar que o destino se cumpra ou de livrar o homem da
morte, por isso a ciência é inútil. Para um homem da ciência – Ricardo Reis é médico – essa é
uma constatação assombrosa. Mas enquanto Alberto Caeiro é um observador do mundo,
mesmo que à distância, isolado no cimo do outeiro, Ricardo Reis leva a observação ao nível
do total descomprometimento da contemplação alienada. Logo depois da trilogia do abismo –
o ponto alto do seu assombro diante da morte iminente – ele recobra o estado de aceitação
estoicista do início das odes. Depois de temer o destino e se angustiar com o fim próximo da
vida, a serenidade insensível de um morto parece tomar seus versos. Retoma a ideia de imitar
os deuses em sua calma e entregar-se à imobilidade e ao hedonismo. Mas o que é
imprescindível de se destacar é que os deuses do politeísmo são tudo menos calmos: as
histórias mitológicas narram disputas, intrigas e até mesmo guerras motivadas pelas paixões
dos deuses, seja a inveja, a cobiça, a ambição desmedida, o impulso sexual, bem à maneira
dos seus subordinados homens. A cópia dos deuses, no caso de Ricardo Reis, parece ser,
137
PESSOA, 2003, p. 292-293.
88
portanto, uma inspiração fingida ou irônica. Possivelmente, trata-se de um recurso para driblar
o desespero por ver a morte se aproximar, quando o que mais deseja é poder estar imune a
qualquer sentimento.
Cabe, a essa altura, refletir sobre as repetições como recurso estético nas odes de
Ricardo Reis. Essa retomada da apologia à calma dos deuses é uma repetição, assim como a
palavra “abismo” que se repete em 425, 426 e 427; os trechos “Abdica e sê rei de ti próprio” e
“Sofro, Lídia, do medo do destino”, de 319 e 344, respectivamente, que se repetem em 368 e
425, respectivamente. São repetições, mas que sempre reaparecem com alguma mudança: a
repetição de “abismo” é igual em 425 e 426 – é a última palavra de cada uma dessas odes –
mas em 427, ela aparece no meio da ode; “Abdica e sê rei de si próprio” repete-se em 368,
mas substituindo-se “próprio” por “mesmo”; “Sofro, Lídia, do medo do destino” repete-se em
425 como “Temo, Lídia, o destino”. Os elementos repetidos sempre com algo modificado
indicam, portanto, não a reprodução de um padrão, mas a recorrência de objetos sempre de
forma diferente, repetições sempre acompanhadas de mudanças, assim como o estoicismo do
início não é o mesmo do final. Isso é proporcional à inconstância de Ricardo Reis ao longo de
sua obra poética, que se caracteriza por um trânsito ininterrupto por seus estados emocionais –
ora está impassível, ora perturbado, ora calmo e indiferente, ora deprimido e derrotado –,
assim como sua subjetividade é afirmadamente indefinida, e seu autoexílio é a manifestação
de sua tendência a não se fixar, a estar sempre em constante deslocamento.
Reencontrando-se com seu discurso inicial, mesmo que de forma fingida, Ricardo Reis
cumpre um ciclo e sua obra se encerra. É então que Saramago abre o que estava fechado e o
coloca em movimento novamente, mas justamente no momento de sua morte. Da imobilidade
em que Ricardo Reis tenta se reinserir, Saramago o arranca e o põe novamente em trânsito.
Fernando Pessoa morre em 30 de novembro. A intensa perseguição aos comunistas fornece o
momento e espaço ideal para a implantação do Estado Novo no Brasil e para a sustentação do
89
fascismo getulista. Em dezembro de 1935, Ricardo Reis, como personagem de Saramago,
retorna para Portugal, onde possivelmente não imagina haver a opressão que ele testemunhou
no Brasil, porque o que ele sabe sobre sua terra natal é o que os jornais fornecem. Mas a
realidade que ele encontrará em Portugal será bem diferente da que ele leu.
90
3. A MARGEM DO TEJO
“Ó Portugal, hoje és nevoeiro...”
Fernando Pessoa, em Mensagem.138
3.1. O RIO
A antiga rota dos navegadores portugueses é invertida conduzindo Ricardo Reis de
volta a Portugal, mas não apenas ele, como também o leitor e o próprio narrador. O lugar em
que a narrativa se ambienta é, portanto, a margem do Tejo, o lugar de retorno no romance. O
Tejo é o símbolo do espaço ou da via para as conquistas portuguesas do século XVI, é o início
do Império Português, o que localiza a narrativa se passando à margem dessa história do
Portugal como reino, do país que está fora do seu próprio império. O enredo está localizado,
portanto, no degredo, fora do mundo oficial, no lugar que se configura como o avesso da
história, o lugar do banimento. É por essa razão que esse lugar será apresentado a partir de sua
inabitabilidade, inóspito tanto para quem lá vive, quanto para quem chega.
A primeira imagem que Ricardo Reis tem de Lisboa é apresentada ainda quando ele
está embarcado, o navio se aproxima do cais, e esta imagem recebe os visitantes: “Chove
sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias.”139
O
romance já se inicia na água, que originalmente é clara e transparente, o que não é o caso das
águas do Tejo. As águas embaçadas apontam para o encobrimento do tradicional caminho
para o Império Português, indicando que, ou a história está encoberta, ou esse caminho está
velado. A água, aqui, é um elemento associado mais ao mistério e à melancolia; é mais a água
da tempestade do que do rio. Está mais relacionada com o desconforto, à ameaça e à
calamidade da inundação, do que com a boa sensação de frescor. Mesmo dentro do navio
parece não haver proteção contra a água que quer invadir tudo.
(...) O Highland Brigade é jardim de crianças e paraíso de velhos, porém não hoje,
que está chovendo e não iremos ter outra tarde. Por trás dos vidros embaciados de
138
PESSOA, 2003, p. 89. 139
SARAMAGO, 2003, p. 7.
91
sal, os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa sobre colinas, como se só de
casas térreas construídas, por acaso além um zimbório alto, uma empena mais
esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera,
miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu fechado (...).
Quando amanhã cedo o Highland Brigade sair a barra, que ao menos haja um pouco
de sol e de céu descoberto, para que a parda neblina deste tempo astroso não
obscureça por completo, ainda à vista de terra, a memória já esvalecente dos
viajantes (...). Por gosto e por vontade, ninguém haveria de querer ficar neste
porto.140
Lisboa está escondida atrás da bruma, e a visão que se tem dela é parcial, apenas a
parte plana da cidade, os pontos mais altos estão envoltos. Desse modo, quem chega tem a
impressão de encontrar uma ilha que parece vagar no infinito do oceano. A visão da “ilha”
está tão confusa que parece também ser uma miragem. Lisboa é aqui apresentada como algo
mítico, de cuja existência não se pode ter certeza. É a cidade inventada, imaginada, que só
existe para quem a inventa, logo, quem a visita tem dificuldade de encontra-la. Além disso, a
chuva e a neblina conferem à visão de Lisboa não apenas o aspecto de miragem, mas também
de melancolia e decadência: “(...) é a cidade silenciosa que os assusta, porventura, morreu
gente nela e a chuva só está caindo para diluir em lama o que ainda ficou de pé”141
. É uma
cidade que repele seus visitantes: “Para além dos barracões do cais começa a cidade sombria,
recolhida em frontarias e muros (...)”142
, personificando-se a cidade, parece que ela própria
não quer se mostrar, mas se recolher, se fechar. Retornando-se à citação inicial, vemos que as
águas “descem do céu fechado”, como se tudo o que o céu, a dimensão divina, tivesse
reservado a Lisboa fosse a chuva, ou seja, a tormenta, portanto, é uma cidade esquecida até
por Deus. Esta é a cidade para a qual a providência divina não se volta, onde ninguém ficaria
por gosto e vontade; é a cidade indesejada.
A tarde escurece e ainda agora são quatro horas, com um pouco mais de sombra se
faria noite, porém aqui dentro é como se sempre o fosse (...). O ar carregado de
sombra cheira a roupas molhadas, a bagagens azedas, à serapilheira dos fardos, e a
melancolia alastra, faz emudecer os viajantes, não há sombra de alegria neste
regresso. A alfândega é uma antecâmara, um limbo de passagem, que será lá fora.143
140
Ibidem, p. 8, grifos meus. 141
Ibidem, p. 9. 142
Ibidem, p. 9, grifos meus. 143
Ibidem, p. 10-11.
92
Apesar de não se ouvirem gritos, a imagem pode ser a descrição exata do inferno, do
mundo dos mortos: pessoas emudecidas e ar carregado de sombra. O cheiro de roupas
molhadas, bagagens azedas, serapilheira dos fardos, e melancolia: eis o cheiro da viagem que
é a passagem da vida para a morte. Não se tem aqui a descrição do lugar virgem, jamais
habitado, esperando, solitário, para ser encontrado; de fato, tem-se uma cidade-fantasma, em
ruínas, como aquelas acometidas por alguma tragédia que lhe varre toda a população, como
uma Pompeia, ou o mundo após o dilúvio bíblico. Tendo em vista que a chuva não cessará até
o fim do romance, cabe mais a imagem do dilúvio, o projeto divino da destruição do mundo
tomado pelo mal. Só que, no romance, a chuva dura bem mais do que os 40 dias mencionados
no texto sagrado, e é mandada em doses homeopáticas, apresentando intermitências, como se
o seu caso fosse o da dissipação lenta e prolongada, talvez uma maneira de se agravar essa
morte, torna-la ainda mais dolorosa.
A “cidade sombria” está “por enquanto ainda defendida da chuva, acaso movendo uma
cortina triste e bordada, olhando para fora com olhos vagos, ouvindo gorgolhar a água dos
telhados, algeroz abaixo”144
. A cidade está, aqui, personificada pelos gestos de mover as
cortinas e olhar com olhos vagos, aproximando-se da típica mulher portuguesa, “sombria” e
“recolhida”, reclusa em seu cotidiano beato, isolada do mundo por cortinas “tristes e
bordadas”. É a clara representação da existência oprimida e cerceada, que provoca o medo do
que há lá fora, do desconhecido, o ambiente exato dos tempos de terror dos regimes de
exceção tratados no romance. Os portugueses que chegam a Portugal são reconhecidos
também por esse perfil:
Descem os primeiros passageiros. De ombros encurvados sob a chuva
monótona, trazem sacos e maletas de mão, e têm o ar perdido de quem viveu a
viagem como um sonho de imagens fluidas, entre mar e céu, o metrónomo da proa a
subir e a descer, o balanço da vaga, o horizonte hipnótico. Alguém transporta ao
colo uma criança, que pelo silêncio portuguesa deve ser, não se lembrou de
perguntar onde está, ou avisaram-na antes, quando, para adormecer depressa no
144
Ibidem, p. 9.
93
beliche abafado, lhe prometeram uma cidade bonita e um viver feliz, outro conto de
encantar, que a estes não correram bem os trabalhos da emigração.145
Como se vê na citação, o silêncio e a tristeza são marcas da gente portuguesa; essas
pessoas estão ainda mais tristes porque são as que não se estabeleceram no Brasil, retornando
para o país de origem sem vontade e sem perspectivas. Esse quadro parece caracterizar ainda
mais o povo português, pois trata-se do povo desamparado e estrangeiro na própria pátria, que
parece ser hostil não apenas para os portugueses:
(...) os estrangeiros murmuram contra o temporal, como se fôssemos nós os culpados
deste mau tempo, parecem terem-se esquecido de que nas franças e inglaterras deles
costuma ser bem pior, enfim, a estes tudo lhes seve para desdenharem dos pobres
países, até a chuva natural.146
Mas mesmo que a chuva seja um fenômeno natural em qualquer lugar do mundo, em
Portugal ganha sempre proporções mais graves: “(...) mais fortes razões teríamos nós de nos
queixarmos e aqui estamos calados, maldito inverno este, o que por aí vai de terra arrancada
aos campos férteis, e a falta que ela nos faz, sendo tão pequena a nação.”147
E eis que mais um
traço de personalidade tipicamente portuguesa também é marcado: a resignação – os
portugueses têm mais motivo para reclamar, mas se calam. Com ironia, o narrador aponta a
incapacidade do português de se indignar, e ainda mais de intervir, restando-lhe amargar
perpetuamente a condição de sofrimento.
Em seguida, Ricardo Reis surge pela primeira vez na narrativa, e seus passos servirão
como rosa dos ventos ao narrador, que se servirá do testemunho do seu protagonista para
observar aquele mundo sobre o qual tem interesse. A realidade, portanto, será entendida pelo
que Ricardo Reis vivencia, experimenta e presencia. As experiências de Ricardo Reis
refletirão exatamente o vulto sombrio descrito até agora, presente na cidade, ou seja, a
realidade conhecida por ele será a inóspita:
O viajante olha as nuvens baixas, depois os charcos no terreno irregular, as águas da
doca, sujas de óleos, cascas, detritos vários, e é então que repara em uns barcos de
guerra, discretos, não contava que os houvesse aqui, pois o lugar próprio desses
145
Ibidem, p. 9. 146
Ibidem, p. 10. 147
Ibidem, p. 10.
94
navegantes é o mar largo, ou, não sendo o tempo de guerra ou de exercícios dela, no
estuário (...).148
Assim como a chuva encharca a cidade, resultando em um ambiente frio e cinza, ela
também a deixa suja, o que contribui com a aspereza percebida na atmosfera. E o desconforto
se intensifica pela presença dos navios de guerra, tornando evidente uma instabilidade que
não é provocada apenas pelo mau tempo. Entretanto, esse é o fator mais angustiante nessa
altura da narrativa, porque é a metáfora da crise, inclusive, alcançando também os próprios
navios de guerra, que se igualam a tudo mais que há na cidade, as pessoas, as casas, as ruas,
os prédios, os automóveis, tudo embaixo d’água e sendo levado pela lama: “não fazem
diferença, podiam mesmo trocar-lhes os nomes, todos iguais, gêmeos, pintados de cinzento-
morte, alagados de chuva, sem sombra viva nos conveses, as bandeiras molhadas como trapos
(...)”149
. O taxista avisa Ricardo Reis que ele passou muito tempo fora, e que “vai encontrar
grandes mudanças por cá, e com estas palavras calou-se bruscamente”, como quem teme dizer
o que está em seu pensamento, em sua memória dos últimos anos vividos naquele país. Ou
como quem teme ser repreendido. Em seguida, o diálogo entre Ricardo Reis e o taxista
retorna à chuva:
A chuva rareara, só algumas gotas dispersas caíam, mas no espaço não se abria nem
uma frincha de azul, as nuvens não se soltaram umas das outras, fazem um
extensíssimo e único tecto de chumbo. Tem chovido muito, perguntou o passageiro,
É um dilúvio, há dois meses que o céu anda a desfazer-se em água (...).150
A essa altura, cabe lembrar que a condição climática descrita não é um mero detalhe
incluso na narrativa, mas um fenômeno que, de fato, ocorreu em Lisboa entre os anos de 1935
e 1936, como consta nos jornais da época consultados por Saramago151
. As chuvas são
acrescentadas à narrativa de modo que ajudem a delinear o aspecto decadente e soturno do
148
Ibidem, p. 11. 149
Ibidem, p. 12. 150
Ibidem, p, 13-14. 151
Os eventos históricos relatados no romance, assim como as notícias de jornal transcritas, são resultados da
pesquisa que Saramago realiza para compor o romance. “Para a redação do romance, baseou-se nas recordações
de infância (...), além de se ter documentado nas páginas d’O Século e de ter visitado o Hotel Bragança e o
cemitério dos Prazeres (...).” (AGUILERA, Fernando Gómez. José Saramago: A consistência dos sonhos.
Cronobiografia. Trad. Antônio Gonçalvez. Lisboa: Editorial Caminho, 2008. p. 98).
95
ambiente em que o protagonista se encontra. Além de vivenciar esse momento de
tempestades, ele também lê nos jornais os estragos deixados por elas, que alcançam toda a
população: “Há grandes receios na Golegã, (...) se as cheias destruírem o dique dos Vinte, (...)
veremos repetida a catástrofe de mil oitocentos e noventa e cinco (...)”152
. As chuvas não
apenas destacam o ambiente soturno, mas também se caracterizam como mais um dos
problemas reais vividos pela sociedade da época; aqui, não são apenas um elemento estético,
como também histórico. Além disso, há o fato de que a crise agrava-se pela catástrofe natural
a ponto de aproximá-la de um desfecho apocalíptico, dadas as aproximações com o dilúvio
bíblico, ainda mais quando se trata de um romance que conta o ano de morte: “Uma rajada
súbita fez estremecer as vidraças, a chuva desaba como um dilúvio.”153
A crise não é
entendida, aqui, como um período de instabilidade, mas como, de fato, o fim:
Depois de uma noite de arrebatada invernia, de temporal desfeito, palavras estas que
já nasceram emparelhadas, as primeiras não tanto, e umas e outras tão pertinentes à
circunstância que forram o trabalho de pensar em novas criações, bem poderia a
manhã ter despontado resplandecente de sol, com muito azul no céu e joviais
revoadas de pombos. Não estiveram para aí virados os meteoros, as gaivotas
continuam a sobrevoar a cidade, o rio não é de fiar, os pombos mal se atrevem.154
As aves sem pouso são parte da fábula bíblica, segundo a qual, após Deus enviar as
águas em dilúvio para “dar cabo de toda a carne, porque a terra está cheia de violência dos
homens”155
, Noé permanece na arca, que Deus o instruíra a construir, por 40 dias, que é o
tempo levado até a tempestade diminuir. Noé solta um corvo e uma pomba para ver se já há
terra seca onde possa sair da arca. Sem ter onde pousar, as aves retornam à arca, assim como
no trecho citado, os pombos também não encontram pouso, as águas não secaram, “o rio não é
de fiar”, como se Lisboa ainda estivesse sofrendo a limpeza divina. A tormenta ainda não teve
fim; só que na narrativa, não há arca, todos os homens estão condenados ao afogamento, à
morte. Ninguém será poupado. O rio parece querer transbordar e invadir a cidade, que escoa a
152
Ibidem, p. 25. 153
Ibidem, p. 27. 154
Ibidem, p. 29, grifos meus. 155
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida. 2ª ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do
Brasil, 1993. Gênesis, cap 6, versículo 13.
96
água da chuva para o rio, e o rio manda-lhe a água de volta. Diferentemente da terra de Noé,
em Lisboa a água não tem para onde escoar, o que significa que a inundação é um estado
permanente. Pensa-se no fim do temporal, no momento do arco-íris, como acontece nos
tempos de Noé – “bem poderia a manhã ter despontado resplandecente de sol” – mas isso não
irá acontecer. E, no caso do universo particular de Ricardo Reis, não há um rio que possa ser
contemplado, porque o rio do romance ameaça inundar a terra, é um rio que não tem margem,
onde se pode admirá-lo em segurança. Pode-se dizer, inclusive, que o romance não se inicia
onde o mar acaba e a terra principia, mas na terra que agora é o fundo do rio, ou se se preferir,
o fundo do poço. Enquanto antes os navegadores tinham um porto, ao retornarem de suas
viagens, agora esse porto não existe. Enquanto antes, eles realizavam suas conquistas na
superfície da água, agora, os portugueses estão afogados nela. O rio, que nas odes de Ricardo
Reis, é a metáfora da realidade histórica, no romance de Saramago, ele adquire a forma da
revelação de que a realidade histórica é uma tragédia. O mundo que o narrador vê ao seguir
Ricardo Reis está submerso, e nem embaixo da marquise seu protagonista está protegido da
água. O narrador espera o pior:
(...) e adiante deixou de chover mesmo, chovia, já não chove, há uma claridade
branca por trás [da estátua] de Luís de Camões, um nimbo, e veja-se o que as
palavras são, esta tanto quer dizer chuva, como nuvem, como círculo luminoso, e
não sendo o vate Deus ou santo, tendo a chuva parado, foram só as nuvens que
adelgaçaram ao passar, não imaginemos milagres de Ouriques ou Fátima, nem
sequer esse tão simples de mostrar-se azul o céu.156
O motorista que leva Ricardo Reis ao hotel fala sobre a chuva “como quem já não
acredita em dias melhores”. O futuro está anunciado, e pode ser comprovado pelo narrador,
cujo presente situa-se em 1984, quase 50 anos depois do momento histórico abordado. Por
isso sentencia a inundação que acometerá o mundo que Ricardo Reis quer contemplar:
A chuva recomeçou a cair, faz sobre os telhados um rumor como de areia peneirada,
entorpecente, hipnótico, porventura no seu grande dilúvio terá Deus misericordioso
desta maneira adormecido os homens para que lhes fosse suave a morte, a água
entrando maciamente pelas narinas e pela boca, inundando sem sufocação dos
pulmões, regatinhos que vão enchendo os alvéolos, um após outro, todo o oco do
corpo, quarenta dias e quarenta noites de sono e de chuva, os corpos descendo para o
156
SARAMAGO, 2003, p. 31, grifos meus.
97
fundo, devagar, repletos de água, finalmente mais pesados do que ela, foi assim que
essas coisas se passaram, também Ofélia se deixa ir na corrente, cantando, mas esta
terá de morrer antes que se acabe o quarto acto da tragédia, tem cada um o seu modo
pessoal de dormir e morrer, julgamos nós, mas é o dilúvio que continua, chove sobre
nós, o tempo nos afoga.157
Na cena citada, Ricardo Reis está em seu quarto, onde a água da chuva entra,
alcançando o hóspede. A chuva molha tanto Ricardo Reis, quanto o narrador, que se inclui no
plano da narrativa – “chove sobre nós, o tempo nos afoga” – antecipando um tempo posterior
ao do romance, em que a tormenta também é a realidade, e marcando pelos verbos no
presente do indicativo a chuva como condição comum ao passado e ao presente; a chuva
condensa dois momentos em uma única história: a da destruição. A tempestade se caracteriza,
no romance, como algo de que ninguém consegue escapar, tanto que perdurará muito depois
de 1936, quando continua sendo a representação da realidade sufocante de um estado fascista.
Esse sufocamento, representado pelo afogamento no dilúvio, é avassalador até mesmo para o
mais pretendidamente alheio dos homens, como é o caso de Ricardo Reis, molhado até
mesmo sob o teto de seu quarto de hotel. Nem mesmo a hipnose provocada pelo rumor da
chuva – que pode ser associado ao discurso do estado fascista – é capaz de tornar a realidade
imperceptível. Isso se aplica tanto a Ricardo Reis, que tenta estar indiferente ao mundo,
quanto a sociedade de um modo geral, que está indistintamente sujeita a essa realidade
definida pela crise. Todos estão condenados, e ninguém pode escapar desse destino.
Para representar a decadência que abate Portugal, a chuva passa a assumir também a
forma de lama: “A água nocturna e suja se abre em espuma, escorrendo depois para voltar ao
rio, donde logo regressa, ela, outra, a mesma e diferente.”158
Nessa cena, Ricardo Reis
atravessa o Terreiro do Paço159
, a enorme praça onde se encontram , ou já se encontraram
construções marcantes na história de Portugal. Inicialmente, lá ficava a residência do rei D.
Manuel I e sua biblioteca com 70.000 livros e documentos importantes da época dos
157
Ibidem, p. 43, grifos meus. 158
Ibidem, p. 111. 159
O Terreiro do Paço foi pesquisado em <http://topazio1950.blogs.sapo.pt/72391.html>, acesso em
14.mar.2013.
98
descobrimentos. Mas é depois de 1755 que o Terreiro do Paço passa a refletir o Portugal
administrado pelo Marquês de Pombal.160
De origem média – nem nobre, nem camponesa –
Pombal estava mais empenhado em amparar a grande burguesia, apesar de também privilegiar
a autonomia nacional, imprimindo sua vontade de opulência em seus projetos. Em suma, o
propósito do marquês é fazer Portugal alcançar o status de soberania dos tempos de D.
Manuel e D. João III, quando o país prospera significativamente graças às conquistas
ultramarinas. Além disso, apesar de pretender centralizar cada vez mais o poder real, Pombal
se articula no sentido de ser ele o único representante do rei, o que na prática significa ser o
verdadeiro ator por trás da figura do monarca.
O Marquês de Pombal é integrado ao poder para assumir a Secretaria dos Estrangeiros
e Guerra, mas aos poucos apossa-se de todas as áreas do governo. Sua grande manobra
consiste em aproveitar o terremoto de 1755 para reconstruir Lisboa afastando-a da versão
anterior à catástrofe, e reconfigurando o mapa para a realização dos projetos de Pombal.
Oliveira Martins considera, por essa razão, que “a tempestade formou-se nos anos 56 e 57,
para rebentar nos seguintes, fechando o ciclo dos seis anos que durou o terremoto
português”161
, assim definindo o encadeamento que se inicia com o terremoto e se estende na
profunda varredura dos restos das construções, bem como da antiga configuração e do
passado da cidade, transformando-a na “Jerusalém do utilitarismo burguês”162
. O cenário
deixado pelo terremoto é descrito por Oliveira Martins como um caos absoluto: muitas
mortes, muita gente ferida; dos prédios só restam os esqueletos; os incêndios terminam de
derrubar o que ainda está de pé; e a fome completa o quadro apocalíptico: “já se comiam os
cães, os gatos, os ratos e pássaros vivos; já se devoravam as raízes, as ervas e as cascas das
160
A análise do estilo administrativo de Pombal está orientada com base no estudo de Oliveira Martins, presente
em MARTINS, J.P. d Oliveira. História de Portugal. Tomo I. 7ª ed. Lisboa: PARCERIA ANTONIO
MARIA PEREIRA LIVRARIA EDITORA, 1908. Para uma noção geral, ou, mais propriamente, conhecer a
versão histórica oficial daquele e de outros períodos consultei História de Portugal, de José Hermano Saraiva. 161
MARTINS, 1908, p. 177. 162
Ibidem, p. 173.
99
árvores”163
. Apesar das necessidades que se revelam dadas as consequências do terremoto, o
que se planeja é uma reconstrução voltada exclusivamente para o comércio e para a
sustentação da alta burguesia. “Dessa hecatombe nasceu o poder do marquês de Pombal, e o
acaso, aterrando os ânimos com o pavoroso acontecimento, preparou-se para aceitarem
submissamente o jugo do tirano, que ia consumar o terremoto político, depois da natureza ter
consumado a ruína da cidade perdida de D. João V.” 164
O Terreiro do Paço é idealizado como
o grande centro da cidade, onde localizar-se-iam as atividades comerciais, que seriam
privilegiadas pela nova organização da urbe. E para além do Terreiro do Paço, Pombal
promove medidas rígidas para a construção dos novos edifícios, que controla a forma como os
terrenos seriam aproveitados. Os antigos proprietários das áreas a serem preenchidas são da
antiga aristocracia, e são obrigados a preenche-los em no máximo cinco anos e apenas com
construções que estivessem de acordo com o projeto geral. Sem dinheiro para arcar com obras
tão opulentas quanto o projeto exige, resta aos antigos donos vendê-los, o que facilita o
domínio daquela área pelos novos ricos comerciantes da cidade.
A oposição a Pombal é fortemente reprimida através de prisões, exílios, açoitamento
em público, confiscos, multas, e penas de morte, tudo justificado na absurdidade em se
desobedecer à vontade do rei. E para completar seu empenho em eliminar os grupos que
pudessem interferir em seu mando, Pombal faz questão de se lembrar do clero, e para acabar
com a subserviência do Estado em relação à Igreja, tratou de aniquilar a Companhia de Jesus
e expulsar os jesuítas de Portugal e todos os seus domínios, através da criação de uma lei que
assim determina. A administração pombalina não apresenta preocupação com a população
camponesa ou com a classe pobre das áreas urbanas. Por isso, o quadro real é de um país
miserável, mas com uma imagem próspera e soberana para o resto da Europa, o que está
caracterizado no Terreiro do Paço.
163
Ibidem, p. 177. 164
Ibidem, p. 176.
100
Nas observações de Oliveira Martins sobre o terremoto de 1755 pode-se encontrar um
cenário parecido com o descrito em O ano da morte de Ricardo Reis: “Toda a gente, numa
onda, correu às praias; mas, rolando em massa, estacou perante a onda que vinha do rio,
galgando a inundar as ruas, invadindo as casas.”165
No romance, o Terreiro do Paço parece ser
parte de uma cidade fantasma, como se nunca houvesse sido reerguida: “(...) não há mais
ninguém nesse cais, e contudo outros homens estão olhando a escuridão.”166
Ou, parece a
cidade que vive sob a constante ameaça de ser destruída mais uma vez. A “água suja e
nocturna” do rio fica batendo no cais repetidamente, como se a qualquer momento pudesse
repetir a tragédia que Oliveira Martins compara a um castigo divino, tal como o perpetrado
em Sodoma e Gomorra:
Da Rua do Comércio, onde está, ao Terreiro do Paço distam poucos metros (...), mas
Ricardo Reis não se aventurará à travessia da Praça, fica a olhar de longe, sob o
resguardo das arcadas, o rio pardo e encrespado, a maré está cheia, quando as ondas
se levantam ao largo parece que vêm alargar o terreiro, submergí-lo (...).167
A cidade reconstruída por Pombal, na verdade, não tem bons alicerces, não representa
poder, glória, suntuosidade, visto que a qualquer momento pode ser novamente arrastada pela
tempestade da história. Essa cena deixa sugerido que há bem mais continuidade entre uma
ruína e outra, entre tempos de caos, que de tempos de construção, que são apenas intervalos
entre a perpétua linha do tempo da “história vazia e homogênea”168
. Nesse ponto, a água
assume a simbologia não apenas da realidade dura daquele período específico; trata-se
também de uma realidade que se prolonga, ou que vem se repetindo ao longo dos séculos,
desde sempre. Como se pode notar no trecho a seguir, as inundações se repetem, e, agora
Saramago o demonstra com fatos históricos: “Não fosse esse mau tempo que não há meio de
despegar, dia e noite, e não dá descanso a lavradores e outros agrícolas, com inundações que
165
Ibidem, p. 173. 166
SARAMAGO, p. 111. 167
Ibidem, p. 29. 168
Para usar a expressão criada por Walter Benjamin, presente em suas “Teses do conceito de história”
(BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas I. trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed.
São Paulo: Brasiliense, 1994.)
101
são as piores desde há 40 anos, dizem-nos os registros e a memória dos velhos.”169
Vê-se que
o “mau tempo” é ininterrupto, o que permite dizer que o dilúvio não teve fim, e nem
conseguiu limpar a terra, mas é, na verdade, a condição histórica do mundo. O fim do mundo,
que é o propósito do dilúvio, é a realidade, é a regra. O mundo acabou, e o presente é uma
terra devastada, é a morte. A promessa de Deus de não voltar a acabar com o mundo pela
água não precisa ser cumprida, porque o mundo sempre esteve acabado. As ondas batendo no
cais não são uma ameaça de nova inundação, mas a lembrança de que o mundo já está
inundado e destruído. O arco-íris, portanto, também é uma forma de lembrar isso, não mais o
símbolo da promessa de Deus. E assim seguem-se as desgraças provocadas pela chuva, que
Saramago prova tratar-se de seções de um ciclo:
O tempo tem melhorado, o mundo que vai de mal a pior. Segundo o calendário, já é
primavera, rebentam algumas flores e folhas novas nos galhos das árvores, mas uma
vez por outra o inverno faz um fossado para estas bandas, então desabam chuvas
torrenciais, vão no enxurro as folhas e as flores, depois o sol reaparece, com a ajuda
dele vamos fazendo por esquecer os males da seara perdida, do boi afogado, que
vem de água abaixo, inchado e podre, da casa pobre que não se aguentou nas
paredes, da súbita inundação que arrasta dois homens pelos negros esgotos da
cidade, entre excrementos e ratazanas.170
Agora o narrador observa o que vem depois da chuva, mostrando que ela não é o fim
da tragédia, mas a abertura de um novo ciclo de caos: “(...) depois vieram dias encobertos,
chegou mesmo a chuviscar, porém já nas terras baixas a cheia desceu de vez, do imenso mar
interior não restam mais que algumas poças de água putrefacta que o sol aos poucos bebe.”171
Diferentemente da água do dilúvio, que é mandada do céu para lavar a terra do mal, essa água
é podre, porque se mistura à sujeira que encontra pela frente, e espalha a lama pela terra já
imunda. O resultado disso é o mundo em decomposição, porque já é um cadáver.
A reflexão sobre a chuva extrapola, no entanto, essa associação ao dilúvio bíblico, e se
desenvolve a uma relação direta entre as mazelas dos homens e a reação da natureza a isso.
169
SARAMAGO, 2003, p. 155. 170
Ibidem, p. 262. 171
Ibidem, p. 351.
102
Há uma cena em que Ricardo Reis se mostra angustiado e que é aberta por esta reflexão do
narrador:
Quem disser que a natureza é indiferente às dores e preocupações dos homens, não
sabe de homens nem de natureza. Um desgosto, passageiro que seja, uma
enxaqueca, ainda que das suportáveis, transtornam imediatamente o curso dos
astros, perturbam a regularidade das marés, atrasam o nascimento da lua, e,
sobretudo, põem em desalinho as correntes do ar, o sobe-e-desce das nuvens, basta
que falte um só tostão aos escudos ajuntados para pagamento da letra em último dia,
e logo os ventos se levantam, o céu abre-se em cataratas, é a natureza que toda se
está compadecendo do aflito devedor. Dirão os cépticos, aqueles que fazem
profissão de duvidar de tudo, mesmo sem provas contra, ou a favor, que a
proposição é indemonstrável, que uma andorinha, passando transviada, não fez
primavera, enganou-se na estação, e não reparam que doutra maneira não poderia ser
entendido este contínuo mal tempo de há meses, ou anos, que antes não estávamos
nós cá, os vendavais, os dilúvios, as cheias, já se falou o suficiente da gente desta
nação para reconhecermos nas penas dela a explicação da irregularidade dos
meteoros (...).172
A notória ironia de Saramago está aqui explícita, no deboche ao incansável complexo
de vítima do português, que cultiva o lamento e o martírio, o choro do fado, a eterna
melancolia pela má sorte reservada pelo seu destino, para a qual está prometido um messias
exclusivo, representado pela figura de D. Sebastião. O narrador manifesta o que teria sido a
conclusão de um português comum: o mau tempo só pode ter como causa a condolência da
natureza pelas mazelas dos homens – portugueses. Considerando-se a ironia presente, o que se
percebe é que o narrador diz o contrário: a natureza não está comovida, não está reagindo ao
que o homem sofre, mas ao que o homem faz. Aqui, há um encontro entre o narrador de
Saramago e o sujeito poético de Camões, especialmente o que fala através do Adamastor, que
nada mais é que a manifestação das forças da natureza enfurecidas pelo desrespeito, audácia e
ambição humanos173
. Da mesma forma, a presença constante da chuva na narrativa de
Saramago caracteriza um mundo se desfazendo, o que é consequência das ações humanas. O
alerta de Saramago, estilizado por sua ironia, é: os portugueses não são vítimas do Fado ou de
um deus implacável; eles são os únicos responsáveis por sua miséria. Isso leva à análise
172
Ibidem, p. 187. 173
O personagem camoniano Adamastor será analisado mais detidamente mais à frente.
103
diretamente a Ricardo Reis, cuja indiferença o mantém inerte em relação ao seu presente,
garantindo, portanto, a permanência daquele contexto bárbaro.
3.2. O “ESPETÁCULO DO MUNDO”
Partindo-se do princípio de que Ricardo Reis não se compromete com o mundo à sua
volta, paralelamente, haverá o narrador confrontando a forma como o protagonista percebe o
mundo. As deambulações de Ricardo Reis por Lisboa são sua forma de encontrar seus objetos
de contemplação – a própria realidade – e guiarão as reflexões do narrador. O “espetáculo do
mundo”, no romance, corresponde ao panorama histórico do ano de 1936. O enredo de O ano
da morte de Ricardo Reis se constrói a partir de um mergulho nesse panorama, que se revela
na cidade de Lisboa: ela é o polo que atrai praticamente todos os impulsos históricos
observáveis daquele momento; de lá, é possível ver o mundo. Não por estar no topo dele, mas
por estar acometida de uma vulnerabilidade que é característica de Portugal, e que naquele
momento se torna mais evidente por Portugal estar sendo arrebatado por todas as forças
destrutivas que nascem no resto do mundo. O narrador, portanto, é atraído por Ricardo Reis,
que retorna a esse país natal turbulento ao mesmo tempo em que quer se manter alheio a esse
país e ao mundo. Nesse sentido, o rio Tejo representará a via de acessso do mundo a Portugal,
o rio que recebe quem vem de fora, inclusive os portugueses ausentes, o rio que traz o mundo
para Portugal. Mas, do ponto de vista de Ricardo Reis, a observação do Tejo é a que não
provoca emoções, mas se caracteriza como pura contemplação. Por isso, ao chegar em Lisboa,
ele pede por um hotel de onde possa ver o rio, garantindo a vista dele como na ode “Vem
sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio”, e permanecendo no posto de observador, ou seja, à
margem, à uma distância de onde pode observar sem se deixar aproximar da água, “ouvindo-o
correr e vendo-o”. Mas, aos poucos, ele percebe que não é no rio que ele pode ver os
acontecimentos se refletindo, mas na própria margem do rio, onde ele se encontra.
104
Para evitar o envolvimento com a realidade à sua volta, Ricardo Reis descobre
algumas formas de se manter alheio a ela. Uma dessas formas é essa observação
contemplativa, sem reflexão, que corresponde à sua concepção de sabedoria, presente em
“Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”: o mundo, o real, é um grande show,
do qual Ricardo Reis não participa, porque quer estar anônimo na plateia, assistindo, como o
espectador de um filme. O espectador não pode intervir no roteiro, apenas ser entretido por
ele. Para Ricardo Reis, a vida deve passar como a água tranquila do rio, enquanto ele se
diverte com pequenos prazeres. O prazer é tudo o que há para se viver enquanto se espera
calmamente pela morte. A vida é apenas essa lacuna entre o nascimento e a morte, sempre em
linha horizontal, sem oscilações. Sem desassossegos ou euforias. No romance, Ricardo Reis
tentará preencher essa lacuna da mesma forma que busca fazer nas odes, só que no romance
os fatores históricos estão mais evidentes. Ele manterá o hábito de deambular por Lisboa, para
contemplá-la. Ele acessa os acontecimentos também por outras vias, como as notícias de
jornal. Lídia174
, a criada do hotel, com quem ele se envolve, será também uma interlocutora
fundamental, visto que é através dela que ele tem conhecimento de uma outra versão do seu
presente histórico, onde o irmão dela, o marinheiro Daniel, representa as forças populares de
oposição ao governo, oposição esta que parece inexistente para quem se guia pelas notícia do
jornal e pelos pronunciamentos dos representantes do poder. Além de Lídia, Ricardo Reis
também terá notícias do mundo através de outras pessoas, como os funcionários do hotel,
Salvador, o gerente, o cozinheiro Ramón e o mensageiro Pimenta, que sempre têm
comentários sobre os acontecimentos. Os hóspedes do hotel também portam novidades: os
espanhóis que fogem para Portugal, assustados pela eleição de um presidente comunista na
Espanha; o doutor Sampaio, pai de Marcenda, e seu entusiasmo com o regime salazarista.
Depois que se muda do hotel para um apartamento alugado, suas vizinhas serão a referência
174
Lídia é uma das ficcionalizações dos elementos das odes. Uma análise mais detida sobre ela, assim como
Marcenda será desenvolvida mais adiante, quando me ocuparei do papel das musas no romance.
105
sobre a vigilância da moral e dos bons costumes, assim como os velhos que jogam xadrez ao
pé da estátua do Adamastor serão uma referência sobre a popularidade do regime entre o
povo. Esses personagens serão, portanto, diferentes pontos de contato de Ricardo Reis com a
realidade, fazendo com que a distância entre o espectador e o espetáculo se encurte.
O quadro disposto a Ricardo Reis será, portanto, observado também pelo narrador, que
diferentemente do protagonista, não se esquiva de ser atingido pelo “espetáculo do mundo”. O
enredo se desenrola sobre o narrador crítico que se orienta por um protagonista acrítico, o que
consiste em um dos grandes paradoxos do romance, deixando evidente que não se trata de um
texto cujo fim é uma resolução, mas, de fato, uma problematização. O próprio retorno de
Ricardo Reis a Portugal é articulado a partir da necessidade do autor não concordar com as
convicções do heterônimo de Pessoa, visto que é partidário da ideia de se envolver de fato
com o mundo e promover sua transformação:
Espero que não seja nestas reflexões, de explícita tinta pessimista, o dissolvente
propósito de persuadir a juventude a virar as costas à política. Não perfilho a
filosofia de vida de um Ricardo Reis, o heterônimo de Fernando Pessoa a quem me
atrevi a dar uma vida suplementar e que um dia escreveu: “Sábio é o que se contenta
com o espetáculo do mundo.” Bem pelo contrário. O que eu desejaria, sim, era que
esses esperançosos jovens viessem a praticar, chegando a velhos, uma política tão
boa como a que Juan de Mairena parece disposto a esperar deles a partir do
momento em que, ainda novíssimos, e tendo afastado do volante o pai senil e
irresponsável, nos conduzissem no direto rumo pela estrada (...).175
O último movimento presente na biografia que Fernando Pessoa criou para Ricardo
Reis é sua ida para o Brasil em 1919. Externo a Portugal, independente dele desde 1822, o
Brasil representa algo como um extramundo, o que os portugueses das Grandes Navegações
chamam de “Novo Mundo”. O exílio no Brasil não representa, entretanto, para Ricardo Reis,
nenhum tipo de nostalgia das conquistas marítimas, mas simplesmente o lugar do abstêmio,
de quem quer se sentir efetivamente estrangeiro. Considerando-se a imagem do rio na ode
número 315,176
está nela representado o mundo do qual Ricardo Reis quer ser apenas
expectador. Nesse sentido, a partida para o Brasil simboliza o abandono à pátria, que
175
SARAMAGO, José. Cadernos de Lanzarote. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 98. 176
PESSOA, 1998, p 256.
106
compreende seu mundo, e a ele quer se manter indiferente. Essa partida não é o abandono a
Portugal com destino ao lugar da prosperidade – as Índias, para os navegadores; nem a
travessia do mar constitui movimento análogo ao mergulho no rio. Na verdade, trata-se da
ação pela qual Ricardo Reis alcança a outra margem, o lugar do alheamento, da exclusão
voluntária. A partida é a máscara da recusa.
A biografia fictícia é retomada por Saramago, que aparenta querer sabotar tanto seu
protagonista quanto seu leitor. O protagonista é perversamente posto em um contexto que o
desvia de sua postura inicial de indiferença; e o leitor é convidado a desviar seu olhar da
ficção diretamente para a realidade, onde encontra a parte da história que Ricardo Reis
testemunha, e de que, talvez, não tem conhecimento.
Pode-se dizer que, cronologicamente, a primeira experiência vivida por Ricardo Reis
que é observada no romance é a situação política do Brasil, no final de 1935, quando, como já
foi observado, no capítulo dois deste trabalho, dá-se a Intentona Comunista, e Getúlio Vargas
cria o Estado Novo, a versão brasileira do regime fascista. O que Ricardo Reis oferece à
narrativa sobre esse momento da história brasileira é que “em Novembro rebentou (...) uma
rebelião, muitas mortes, muita gente presa (...)”177
, e que “foi coisa de bolchevistas, uns
sargentos, uns soldados, mas os que não morreram foram presos, em dois dias acabou-se tudo
(...).” Os sargentos e soldados são os tenentistas alimentados pelo bolchevismo, a “ameaça”
que continuará aterrorizando o mundo – inclusive os avessos a revoluções, como Ricardo Reis
– por mais algumas décadas. O que cabe dizer a essa altura é que, naquele momento, o estoico
contempla uma realidade já em crise, e por isso foge dela; o homem que chega a Portugal não
é aquele que é alheio ao mundo que contempla e não se envolve com ele: se não há
envolvimento, não há rejeição, portanto, não há motivações para a fuga, o que não é o caso
desse personagem. Ele não é indiferente. Desde que chega a Portugal, Ricardo Reis já sabe,
177
SARAMAGO, 2003, p. 78.
107
por experiência, que não é possível estar alheio ao espetáculo do mundo. O que se segue a
seu retorno é a insistência em tentar manter-se alienado porque essa é sua única opção, o que
se transcreve como o retrato do homem rendido à condição de engessamento a que o status
quo submete as pessoas, a ciência de estar condenado à impotência.
Lisboa “revisitada” é apenas mais uma fase das deambulações de Ricardo Reis, e seu
primeiro passeio dessa fase, após 16 anos de ausência, tem início na sua chegada, na verdade,
no trajeto que seu táxi percorre, e que vai do porto até o hotel. O taxista comenta que houve
muitas mudanças naqueles últimos 16 anos, e que Ricardo Reis as perceberá. Sua primeira
observação é sobre os barcos de guerra ancorados, o que é atípico, já que não se está em
tempos de guerra. O que parece preocupar Ricardo Reis, que pergunta ao taxista o motivo
pelo qual os barcos estão na doca. A mesma apreensão é percebida no trecho citado na página
29, em que Ricardo Reis está em direção ao Terreiro do Paço, mas não quer atravessá-lo por
notar que a água do rio está agitada e parece querer invadir a margem. Essa apreensão vai se
tornando cada vez mais justificada em razão de deparar-se com uma crise mundial cada vez
mais intensa.
Em 1935, as economias capitalistas estão abaladas não apenas pela “ameaça”
comunista, mas também pelas falhas imanentes à sua própria configuração, e que são expostas
pela Grande Depressão de 1929. Desta vez o desespero não acomete apenas as classes
atropeladas pela engrenagem do capital, mas também as classes possuidoras do capital. As
consequências da Depressão de 29 terão proporções jamais vistas: os níveis de desemprego
são inéditos e inimagináveis, o que sela o destino dos pobres, mas também representa para os
homens de negócios, economistas e políticos uma catástrofe insolúvel. A crise é tão grave que
“destruiu o liberalismo econômico por meio século”178
. O período da Depressão acumula,
portanto, os problemas posteriores à década de 30 somados às graves consequências que
178
HOBSBAWM, 1994, p. 99.
108
implica: os conflitos entre os países envolvidos na Primeira Guerra e as fraturas já antigas
provocadas pelo capitalismo, naquele momento agravadas, definem o mundo junto da pouca
habilidade dos líderes de resolver a crise e do fortalecimento da direita radical. As economias
em depressão, em vez de consertar seus sistemas deficientes acabam por insistir neles, o que
caracteriza um movimento cíclico de crises. Esse é o terreno perfeito para a ascensão do
fascismo e para a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Em vez da crise econômica dos anos
30 ter provocado iniciativas de resolução, e até mesmo de substituição do sistema deficiente
que se fazia exposto, ela agravou os fatores que desencadeavam uma situação ainda pior.
O fim da Primeira Guerra não significa, portanto, um retorno à paz; o período entre-
guerras parece mais uma continuidade dos conflitos, o que é assinalado por Eric Hobsbawm
quando diz que o que o mundo vive no início do século XX é um conflito mundial de 31 anos
– “entre declaração de guerra austríaca à Sérvia, a 28 de julho de 1914, e a rendição
incondicional do Japão, a 14 de agosto de 1945”179
. O período entre as duas grandes guerras
mundiais está abarcado por hostilidades entre países e correntes políticas, instabilidade,
projetos de expansão, a grande crise econômica já mencionada, as questões particulares de
cada país e o fortalecimento de ideologias radicais fomentadas por esse contexto. Por
exemplo, Hobsbawm ressalta que enquanto muitos saem da guerra inimigos convictos dela,
outros, exatamente por terem participado do evento, desenvolvem “um sentimento de
incomunicável e bárbara superioridade – inclusive em relação a mulheres e não
combatentes”180
sentimento que vem a compor as bases da ultradireita do pós-guerra. Isso
significa que a política se define pela guerra, tanto em relação ao lado democrático e
moderado, quanto ao lado extremista: que se torna ainda mais belicista, enquanto aquele, por
mais que passe a adotar um discurso contra conflitos, não abre mão deles, com a desculpa de
ser necessário salvarem-se seus cidadãos. Por mais que, em 1925, a Convenção de Genebra
179
Ibidem, p. 30. 180
Ibidem, p. 34.
109
tenha determinado o comprometimento das nações em não usarem a guerra química, todos os
outros tipos de artefato militar continuam sendo usados sem medidas nem limites, tendo seu
ápice na bomba atômica. A guerra se torna um mal que o homem nunca mais conseguiu fazer
retroceder.
O contexto de conflitos intermináveis também acaba sendo alimentado, ironicamente,
pelo acordo de paz definido pelo Tratado de Versalhes, imposto pelos países que saem
vitoriosos da Primeira Guerra Mundial – Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Itália – à
perdedora Alemanha. Hobsbawm aponta as cinco considerações que dominam o Tratado: “A
mais imediata era o colapso de tantos regimes na Europa e o surgimento na Rússia de um
regime bolchevique revolucionário alternativo, dedicado à subversão universal, um imã para
forças revolucionárias de todas as partes”181
. A segunda consideração diz respeito à
necessidade de se controlar a Alemanha, que quase derrotou todos os aliados. Em terceiro
lugar, considera-se a redefinição do mapa pela Primeira Guerra Mundial, constando a
necessidade de controle dos governos nesse novo contexto. Em quarto lugar, há o conjunto de
considerações sobre as políticas entre Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, e os atritos
entre esses países. E, por fim, nota-se a preocupação em se evitar que uma guerra como a
anterior volte a acontecer. A Revolução Russa também redefine os limites territoriais, assim
como divide o mundo entre apoiadores e não apoiadores do bolchevismo. Como se pode
notar, a geografia do período pós-guerra configura-se pela tensão permanente entre os países,
deixando iminentes novos conflitos. É evidente que as questões que motivaram a Primeira
Guerra não estavam resolvidas. A consequência é uma nova guerra mundial sendo
alimentada. Hobsbawm não ignora os aspectos que caracterizam o período entre-guerras
como uma panela de pressão prestes a explodir.
181
Ibidem, p. 39.
110
Por isso, o desejo de Ricardo Reis de estar distante do mundo o acompanha até Lisboa,
e essa distância vai parecer possível apenas no início; porque não demorará a ficar evidente
que a semente do mal está sendo semeada bem embaixo do seu nariz. Ricardo Reis
acompanhará as notícias do jornal O Século, o de maior circulação na época, e o que servia à
propaganda governista. Através do jornal, Ricardo Reis pode, em um primeiro momento,
reconfortar-se, já que o que lê é que a paz e a ordem estão estabelecidos pelo regime, onde se
está protegido das tormentas vividas em outros países. Já na primeira noite em que está na
cidade, Ricardo Reis fica sabendo pelo jornal que “O chefe do Estado inaugurou a exposição
de homenagem a Mousinho de Albuquerque na Agência Geral das Colônias, não se podem
dispensar as imperiais comemorações nem esquecer as figuras imperiais (...).182
Logo em
seguida, o que se noticia é o receio de que haja enchentes na região de Ribatejo, o que deixa
implícito que ainda não houve tal catástrofe por causa das chuvas. As próximas notícias são
sobre assuntos apresentadas de forma corriqueira: “Avanço geral das tropas italianas”, sobre
as investidas bélicas de caráter imperialista da Itália. Depois, mais amenidades antecipam que
“Em Port-Said desembarcaram numerosos contingentes ingleses”, o que inicia mais um
período da presença militar da Inglaterra no Egito, isto é, a repetição da prática imperialista,
que é intensa naquele período. E, voltando a Portugal, Ricardo Reis lê “Bodos dos pobres por
todo o país de cá, ceia melhorada nos asilos”; em seguida: “O presidente da câmara do Porto
telegrafou ao ministro do Interior, em sessão de hoje a câmara municipal da minha
presidência apreciando o decreto de auxílio aos pobres no inverno resolveu saudar vossa
excelência por esta iniciativa de tão singular beleza (...)”. Como Ricardo Reis testemunhará
mais adiante, o que essas notas ressaltam é o auxílio do governo, e não a existência da
pobreza, o que a propaganda nega. Mas não será difícil perceber que onde há auxílio para
pobre, há mais pobres do que auxílio. Em seguida, há notas mais breves sobre as chuvas,
182
SARAMAGO, 2003, p. 25.
111
sobre a varíola, a gripe e a febre, todas muito curtas em relação aos textos dedicados ao bodo
e à homenagem à figura imperial, fazendo evidente o destaque direcionado às notícias que
exaltam Portugal. Pelo jornal, o mundo parece ainda preso em conflitos, mesmo 18 anos
depois do fim da Primeira Guerra, enquanto Portugal é um oásis da paz. Em outro momento,
mais notícias negativas do exterior aparecem: “Demissão do governo espanhol, aprovada a
dissolução das cortes, uma, O Negus num telegrama à Sociedade das Nações diz que os
italianos empregam gases asfixiantes, outra”183
. Tão direto quanto o são os jornais é o
narrador, que não é indiferente como Ricardo Reis, através do qual tem acesso às notícias, que
são narradas, algumas vezes de forma indireta, ou conforme a leitura do narrador:
Diz-se, dizem-no os jornais, quer por sua própria convicção, sem recado mandado,
quer porque alguém lhes guiou a mão, se não foi suficiente sugerir e insinuar,
escrevem os jornais, em estilo de teatrologia, que, sobre a derrocada dos grandes
Estados, o português, o nosso, afirmará a sua extraordinária força e a inteligência
refletida dos homens que o dirigem. Virão a cair, portanto, e a palavra derrocada lá
está a mostrar como e com que apocalíptico estrondo, essas hoje presunçosas nações
que arrotam de poderosas, grande é o engano em que vivem, pois não tardará muito
o dia, fasto sobre todos nos anais desta sobre todas pátria, em que os homens de
Estado de além-fronteiras virão às lusas terras pedir opinião, ajuda, ilustração, não
de caridade, azeite para a candeia, aqui, aos fortíssimos homens portugueses, que
portugueses governam (...).184
O texto jornalístico original que o narrador está comentando não está transcrito na
narrativa, como os anteriores citados; em vez disso, o narrador oferece, ironizando, a sua
impressão do que lê, debochando do elogio presente na notícia ao governo de Portugal,
notícia que anuncia, àquela altura do primeiro dia de janeiro de 1936, o conselho de ministros,
liderado por Oliveira Salazar. A lista dos integrantes do ministério é encerrada por “um das
Corporações Andrade”185
, ao que o narrador acrescenta “que este Estado nosso e novo é
corporativo, ainda que de berço, por isso um subsecretário basta”, fazendo menção ao regime
do Estado Novo, que na verdade não é exatamente novo, por ter certos aspectos que vêm “de
berço”, isto é, são próprios do organismo da sociedade portuguesa, ou da própria História.
183
Ibidem, p. 48. 184
Ibidem, p. 81. 185
Ibidem, p. 82.
112
Aqui, o aspecto em questão é o corporativismo, que vem a definir o regime em seu caráter
totalitário e antidemocrático, e que não é apresentado pelos jornais:
Dizem também os jornais, de cá, que uma grande parte do país tem colhido os
melhores e mais abundantes frutos de uma administração e ordem pública
modelares, e se tal declaração for tomada como vitupério, uma vez que se trata de
elogio em boca própria, leia-se aquele jornal de Genebra, Suíça, que longamente
discorre, e em francês, o que maior autoridade lhe confere, sobre o ditador de
Portugal, já sobredito, chamando-nos de afortunadíssimos por termos no poder um
sábio.186
Começando com “dizem os jornais” e destacando, portanto, o dono da palavra, o
narrador distingue que é um discurso parcial. E, às vezes, esse discurso não é apenas o que
reporta os fatos conforme convém, mas direciona ideologicamente o seu leitor:
(...) deve-se dar à instrução primária elementar o que lhe pertence e mais nada, sem
pruridos de sabedoria excessiva, a qual, por aparecer antes do tempo, para nada
serve, e também que muito pior que a treva do analfabetismo num coração puro é a
instrução materialista e pagã asfixiadora das melhores intenções, posto o que,
reforça Pacheco e conclui, Salazar é o maior educador do nosso século, se não é
atrevimento e temeridade afirma-lo já, quando do século só vai vencido um terço.187
Ao relatar as notícias de forma indireta, o narrador automaticamente as transgride,
porque as desautoriza como fonte fiel da realidade, além de sobrepor sua voz a elas,
colocando-as no lugar do objeto reportado, que antes é ocupado pela realidade distorcida
pelas notícias. Nesse jogo, as notícias são transfiguradas e ironizadas, e o discurso oficial
perde o peso. Isso significa que esse narrador de que se trata aqui se serve da palavra a que se
opõe, da voz que incorpora em sua narração, exatamente para refutá-la. E, com isso, o que o
leitor percebe é que as notícias do jornal apresentam um conteúdo de que se deve duvidar; e
se o propósito dessas notícias é afirmar o regime, então, deve-se duvidar desse regime
afirmado. O que o narrador também faz é apresentar ao leitor aquilo que Ricardo Reis está
presenciando de uma forma mais intrínseca, isto é, de dentro para fora, e não de fora para
fora, como é realizado pelo protagonista, que, de um jeito ou de outro, não demora a perceber
a impropriedade do discurso dos jornais:
186
Ibidem, p. 82. 187
Ibidem, p. 82.
113
Terá de ser Ricardo Reis a ler-lhe esta outra notícia publicada numa revista, com
retrato em oval, A morte levou-nos há dias Fernando Pessoa, o poeta ilustre que
levou a sua curta vida quase ignorado das multidões, dir-se-ia que, avaliando a
riqueza das suas obras, ocultava avaramente, com receio de que lhas roubassem, ao
seu fulgurante talento será feita um dia inteira justiça, à semelhança de outros
grandes gênios que já lá vão reticências, filhos da mãe, o pior que têm os jornais é
achar-se quem os faz autorizado a escrever sobre tudo, é atrever-se a pôr na cabeça
dos outros ideias que possam servir na cabeça de todos, como esta de ocultar
Fernando Pessoa as obras com medo de que lhas roubassem, como é possível
ousarem-se tais inépcias (...).188
As inépcias também são praticadas quando os jornais se ocupam de sua principal
função: influenciar a aprovação popular ao governo. Salazar é elevado ao status de uma figura
quase religiosa para que essa influência seja eficaz:
Agora festejaram duas datas, a primeira que foi do aparecimento do professor
Antônio de Oliveira Salazar na vida pública, há oito anos, parece que ainda foi
ontem, como o tempo passa, para salvar o seu e o nosso país do abismo, para
restaurar, para lhe impor uma nova doutrina, fé, entusiasmo e confiança no futuro,
são palavras do periódico, e a outra data que também diz respeito ao mesmo senhor
professor, sucesso de mais íntima alegria, sua e nossa, que foi ter completado, logo
no dia a seguir, quarenta e sete anos de idade, nasceu no ano em que Hitler veio ao
mundo e com pouca diferença de dias, vejam lá o que são coincidências, dois
importantes homens públicos.189
Pela simpatia por Hitler expressa no texto jornalístico de propaganda fica explícita a
afinidade entre o regime e o nazismo. A religião também é um artifício, que cria a sentença
“Fiados de Deus e Nossa Senhora desde Afonso Henriques à Grande Guerra”, que é criticada
novamente pelo narrador, que ironiza: “prova irrefutável de que somos um povo eleito, outros
houve no passado, outros haverá no futuro, mas nenhum por tanto tempo, oitocentos anos de
fiança ininterrupta, de intimidade com as potências celestes.”190
Como parte da apologia ideológica dos textos jornalísticos, há também a forma
maniqueísta como se apresentam os fatos, e que, como Lídia nota, estão presentes, ou são
reproduzidas por Ricardo Reis: “Sempre me respondes com as palavras do irmão, E o senhor
doutor fala-me sempre com as palavras dos jornais.”191
Essas palavras a que Lídia se refere
são escolhidas de modo não apenas a louvar Portugal, mas também a diferenciá-lo do inimigo,
188
Ibidem, p. 88. 189
Ibidem, p. 302-303. 190
Ibidem, p. 327. 191
Ibidem, p. 400.
114
ou, mais propriamente, do comunismo. A hostilidade ao bolchevismo e a qualquer movimento
de esquerda está clara em histórias como esta que Ricardo Reis conta a Lídia: “Estás tu aí a
chorar por Badajoz, e não sabes que os comunistas cortaram uma orelha a cento e dez
proprietários, e depois sujeitaram a violência as mulheres deles (...).” E cita outra,
mencionando, inclusive, o autor da notícia: “(...) e também li, escrito por um senhor jornalista
chamado José Vieira, autor de livros, que os bolchevistas arrancaram os olhos a um padre e
depois regaram-no com gasolina e deitaram-lhe fogo (...)”; e a resposta de Lídia é: “Não é do
senhor doutor que eu duvido, o que o meu irmão diz é que não se deve fazer sempre fé no que
os jornais escrevem (...).”192
Em outro momento, um outro veículo de imprensa, o rádio,
divulga a conferência de um “tal Nobre Guedes”193
, contra o comunismo, dizendo que
“publica-se e espalha-se às ocultas a folha repugnante do Marinheiro Vermelho (...)”194
, uma
referência aos marinheiros que se opõem ao regime e que mais tarde promoverão a Revolta
dos Barcos, da qual falarei mais adiante. Também está no jornal a união da extrema direita
europeia contra o “inimigo comum”:
Para os lados da Floresta Negra, os bispos alemães anunciaram que a Igreja Católica
e o Reich iriam combater ombro com ombro contra o inimigo comum, e Mussolini,
para não ficar atrás de belicosas demonstrações, deu aviso ao mundo de que poderá
mobilizar em pouco tempo oito milhões de homens, muitos deles ainda quentes da
vitória sobre esse outro inimigo da civilização ocidental, a Etiópia.195
E da Espanha e Marrocos Espanhol chegam notícias do combate que se quer travar
também em Portugal: “De Tetuão, agora que já chegou o general Milan D’Astray, veio nova
proclamação, Guerra sem quartel, guerra sem tréguas, guerra de extermínio contra o micróbio
marxista (...)”, o que o narrador sente que “seria impossível que estes bons ventos de Espanha
não produzissem movimentos afins em Portugal”: “Anunciaram pois os sindicatos nacionais a
192
Ibidem, p. 400. 193
Francisco José Nobre Guedes é o diplomata que representa Portugal na Alemanha nazista e que simpatiza
com o nazismo. (ver TORGAL, Luís Reis. Estados novos, estado novo: ensaios de história política e cultural.
vol. 1. 2ª ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009. p. 516.). 194
SARAMAGO, 2003, p. 335. 195
Ibidem, p. 412.
115
promoção de um comício contra o comunismo, e mal foi conhecida a notícia perpassou em
todo o corpo social o frêmito dos grandes momentos históricos (...).”196
A propaganda do regime também se estende à literatura, o que Ricardo Reis
experimenta ao ler o romance indicado pelo doutor Sampaio, hóspede do hotel, intitulado
Conspiração, cujo autor é o mesmo Tomé Vieira que escreve a notícia sobre os ataques
bolchevistas a um padre, descrita a Lídia por Ricardo Reis. Trata-se de um romance pró-
regime, que retrata uma polícia indiferente a revolucionários, e que se constrói a fim de
inutilizar o comunismo como bandeira. A protagonista lembra ao personagem conspirador
que ele não tem do que reclamar:
A situação do país merece à imprensa estrangeira referências entusiásticas, cita-se a
nossa política financeira como modelo, há alusões às nossas condições financeiras,
de modo a colocar-nos numa posição privilegiada, por todo o país continuam as
obras de fomento que empregam milhares de operários, dia a dia os jornais inserem
diplomas governativos no sentido de debelar a crise que, por fenômenos mundiais,
também nos atingiu o nível econômico da nação, comparadamente a outros países, é
o mais animador, o nome de Portugal e dos estadistas que o governam andam
citados em todo o mundo, a doutrina política estabelecida entre nós é o motivo de
estudo em outros países, pode-se afirmar que o mundo nos olha com simpatia e
admiração, e os grandes periódicos de fama internacional enviam até nós os seus
redatores categorizados a fim de colher elementos para conhecer o segredo da nossa
vitória, o chefe do governo é, enfim, arrancado à sua pertinaz humildade, ao seu
recolhimento de rebelde a reclames, e projetado em colunas de reportagem, através
do mundo, a sua figura atinge as culminâncias, e as suas doutrinas transformam-se
em apostolados (...).197
E sobre a subversão, Marília, a protagonista, diz, seguindo a fórmula de se reforçar o
heroísmo do regime através da rotulação do inimigo:
Perante isto, que é apenas uma pálida sombra do que podia ser dito, tem de
concordar, Carlos, que foi uma loucura irresponsável meter-se em greves
acadêmicas que nunca trouxeram nada de bom (...). Lá na aldeia, (...) explica numa
roda de subalternos que ser comunista é ser pior que tudo, eles não querem que haja
patrões nem operários, nem leis nem religião, ninguém se baptiza, ninguém se casa,
o amor não existe, a mulher é uma coisa que não vale nada, todos a ela podem ter
direito, os filhos não têm que dar satisfação aos pais, cada um governa-se como
entender.198
196
Ibidem, p. 404-405. 197
Ibidem, p. 139-140. 198
Ibidem, p. 140.
116
O narrador, que acompanha tudo o que Ricardo Reis vê, inclusive suas leituras,
comenta sobre esse Portugal descrito por Marília e livre do comunismo: “(...) afinal não valeu
a pena ter-nos Deus expulsado do seu paraíso, se em tão pouco tempo o reconquistamos.”199
Cabe também mencionar o discurso demagogo por parte de outros líderes, em especial
o de Hitler, cuja estratégia de propaganda nacionalista servirá de modelo a Salazar. À notícia
sobre um discurso do Füher, o narrador trata imediatamente de rebatê-lo:
O que vale é ainda haver vozes neste continente, e poderosas elas são, que se erguem
para pronunciar palavras de pacificação e concórdia, falamos de Hitler, da
proclamação que ele fez perante os camisas castanhas, A Alemanha só se preocupa
em trabalhar dentro da paz, e, para calar definitivamente desconfianças e
cepticismos, ousou ir mais longe, afirmou peremptório, Saiba o mundo que a
Alemanha será pacífica e amará a paz, como jamais povo algum soube amá-la. É
certo que duzentos e cinquenta mil soldados alemães estão prontos a ocupar a
Renânia e que uma força militar alemã penetrou há poucos dias em território
checoslovaco, porém, se é verdade que vem às vezes Juno em forma de nuvem,
também não é menos verdade que nem todas as nuvens Juno são, a vida das nações
faz-se, afinal, de muito ladrar e pouco morder, vão ver que, querendo Deus, tudo
acabará na bela harmonia.200
Vê-se que a propaganda não serve apenas ao governo, elogiando também os líderes de
outros países. Os regimes com os quais o governo de Portugal se identifica também são
venerados, o que sugere a aliança, ou algum tipo de pacto entre essas nações. O ditador da
Itália também tem destaque no jornal português, e o narrador não deixa de ironizar a forma
como o político em questão é elogiado:
Porém melhor do que tudo, por vir de mais subida instância, logo abaixo de Deus,
foi proclamar o cardeal Pacelli que Mussolini é o maior restaurador cultural do
império romano, ora este purpurado, pelo muito que já sabe e o mais que promete vir
a saber, merece ser papa, oxalá não se esqueçam dele o Espírito Santo e o conclave
quando chegar o feliz dia, ainda agora andam as tropas italianas a fuzilar e a
bombardear a Etiópia, e já o servo de Deus profetiza império e imperador, ave-césar,
ave-maria.201
O aniversário de Hitler é noticiado, apesar de ser um fato trivial, porém, torna-se
marcante por ser uma das ocasiões em que o Füher é exaltado: “passou em revista a trinta e
199
Ibidem, p. 141. 200
Ibidem, p. 142. 201
Ibidem, p. 155.
117
três mil soldados, num ambiente de veneração quase religiosa.”202
Ricardo Reis está lendo
essas notícias para o fantasma de Fernando Pessoa, que o visita, e cita o discurso de Goebbels:
“Quando Hitler fala é como se a abóbada de um templo se fechasse sobre a cabeça do povo
alemão.” Em seguida, o de Baldur von Shirach, o chefe das Juventudes do Reich: “Hitler,
presente de Deus à Alemanha, foi o homem providencial, o culto por ele está acima das
divisões confessionais.” E von Schirach: “se a juventude amar Hitler, que é o seu Deus, se se
esforçar por fielmente o servir, cumprirá o preceito que recebeu do Padre Eterno.”203
Essas
são as notícias vindas da Alemanha que o jornal governista oferece a seus leitores. E, como
observa Ricardo Reis, em Portugal há uma mesma confusão entre o divino e o humano, por
causa da declaração de um arcebispo que diz que “Portugal é Cristo e Cristo é Portugal.” O
modelo de governo, bem como os grupos dominantes, também são elogiados no jornal: “A
grande parada corporativa mostrou que não é difícil realizar entre patrões e empregados e
operários um entendimento honesto e bem intencionado”204
; o narrador percebe a aura
conferida ao corporativismo, nesse parâmetro, como “receita de um novo paraíso”.
Vê-se, portanto, que para o narrador faz-se clara a diferença entre ficção jornalística de
efeito de propaganda e realidade, o que também começará a ficar mais nítido para Ricardo
Reis conforme ele se depara com o outro lado, a parte da realidade que não é contada pelos
jornais, mas que está acessível no cotidiano. Há de se notar, inclusive, que Ricardo Reis não é,
nem mesmo, um homem de ter o hábito de ler jornais, e assim o narrador justifica suas
leituras:
Não que por inclinação fosse leitor assíduo, pelo contrário, fatigavam-no as páginas
grandes e as prosas derramadas, mas aqui, não havendo mais que fazer, e para
escapar às solicitudes de Salvador, o jornal, por falar do mundo geral, servia de
barreira contra este outro mundo próximo e sitiante, podiam as notícias daquele de
além ser lidas como remotas e inconsequentes mensagens, em cuja eficácia não há
muitos motivos para acreditar porque nem sequer temos a certeza de que cheguem
ao seu destino.205
202
Ibidem, p. 285. 203
Ibidem, p. 285. 204
Ibidem, p. 290. 205
Ibidem, p. 48.
118
Os jornais são, portanto, não o meio que aproxima Ricardo Reis da realidade, mas que
o distancia dela; seja servindo como aviso de “não perturbe”, como na cena descrita, seja
apenas como veículo de exibição do espetáculo que ele acredita poder contemplar sem se
envolver. Por esse aspecto fica claro que Ricardo Reis está ciente de que a realidade não está
nos jornais, ou não os leria de jeito nenhum, se é ela o que ele tanto evita. Mesmo assim, vez
ou outra algum fragmento da realidade escapa é trazido pelos jornais, como quando ele nota,
com alguma indignação, a confusão entre o divino e o humano. Outro exemplo são as notícias
sobre a morte de Fernando Pessoa; uma delas fala sobre o poeta ter morrido “em silêncio,
como sempre viveu”, o que nem de longe corresponde ao que Pessoa é em vida. Outra notícia
diz que Fernando Pessoa é “o poeta extraordinário de Mensagem, poema de exaltação
nacionalista”206
, o que manifesta a indevida aproximação do poema de Pessoa à orientação
política dominante. Uma terceira notícia transcreve a oração lida no funeral do poeta:
“preferível fora o silêncio, o silêncio que já o envolve a ele e a nós, que é da estatura do seu
espírito”207
, o que equivale a silenciar aquele que jamais se calou em vida, que tinha a veia
crítica declarada tanto em sua poesia, quanto em sua vida. A essas coisas Ricardo Reis está
atento, e tem discernimento para avaliar o que de irreal há nelas, porque Fernando Pessoa é
parte da sua realidade, e ele sabe que o que se diz sobre o poeta nos jornais não é
completamente verdadeiro. Sua indignação ao ler essas linhas prova o quanto ele consegue
perceber essas falhas no discurso dominante.
Além desses equívocos, Ricardo Reis também receberá sua dose diária de realidade
pelos jornais, que, para destacar a – falsa – maré de paz vivida em Portugal, relata os conflitos
armados cada vez mais constantes pelo mundo, e também bem próximos dali, na própria
Europa. Por mais que o jornal não tenha a habilidade de ser integralmente verdadeiro, é
através dele que se tem contato com o que se passa longe dali. Ricardo Reis saberá, portanto,
206
Ibidem, p. 32. 207
Ibidem, p. 33.
119
da ocupação da Etiópia pela Itália, das tropas inglesas presentes no Egito, dos conflitos civis
na Espanha, da prisão de Luis Carlos Prestes naquele Brasil tumultuado que ele deixa para
trás, a tensão por conta das investidas da Alemanha em outros países, o que faz rondar a
ameaça de uma nova guerra mundial. Os horrores são quase presenciados, já que os jornais os
descrevem com precisão: “Addis-Abeba está em chamas, as ruas cobertas de mortos, os
salteadores arrombam as casas, violam, queimam, degolam mulheres e crianças, enquanto as
tropas de Badoglio se aproximam.208
A cena descrita nos leva à ode 337209
em que dois
homens jogam xadrez enquanto uma guerra se aproxima espalhando o terror por onde passa,
mas os dois jogadores não se abalam, esperando calmamente, sem reagir à ameaça iminente,
como quem espera pela morte. Esse é um ponto da narrativa em que Ricardo Reis está
intensamente confrontado, já que ele não consegue se manter impassível como os jogadores
de xadrez que ele criou, e através dos quais elogia a indiferença ao mundo, mesmo que ele
esteja cheio de horror. A simples existência dessas tragédias já as configura como ameaça,
isto é, o que está acontecendo em outras bandas não está impedido de alcança-lo. Tantos
conflitos adensam o clima de medo que contagia a qualquer um que tenha notícia dos
acontecimentos.
Até mesmo a concepção de que a vida é apenas o tempo em que se espera
tranquilamente pela morte inevitável parece muito distante de ser possível, e é isso o que
Ricardo Reis averigua em sua primeira deambulação por Lisboa, quando está indo exatamente
visitar o mundo dos mortos, o cemitério dos Prazeres, onde Fernando Pessoa está sepultado.
Ele se angustia tanto com a lembrança de que a morte é o que o futuro lhe reserva que chega a
sentir náusea e mal-estar. O desconforto o segue nesse primeiro passeio, mesmo fora do
cemitério, quando já atravessa o Terreiro do Paço e depara-se com a multidão:
Aproximam-se as onze horas, há grande movimento sob as arcadas, mas dizer
movimento não quer dizer rapidez, esta dignidade tem pouca pressa, os homens,
208
Ibidem, p. 305. 209
PESSOA, 2003, p. 237.
120
todos de chapéu mole, pingando guarda-chuvas, raríssimas as mulheres, e vão
entrando nas repartições, é a hora em que começam a trabalhar os funcionários
públicos.210
Reproduz-se aqui a monotonia triste, o mesmo clima sentido no porto. Aqui, a classe
dos funcionários públicos se aproxima da terceira classe do Highland Brigade: a mesma
melancolia é percebida como um sentimento coletivo nos dois grupos, assim como será
manifestada por personagens da classe dominante, como Marcenda e seu pai, e o próprio
Ricardo Reis. A melancolia é uma condição, compartilhada entre todos, não importando suas
classes sociais, e é muito mais do que um sentimento momentâneo e individual, o que
significa que nem o impassível Ricardo Reis está livre dela. Mesmo que seus passeios lhe
sirvam para a contemplação que lhe ocupa o tempo enquanto sente a vida passar sem se
abalar, a própria imagem contemplada o abalará, assim como um personagem invisível, a
própria angústia, o assombrará onde quer que esteja. Isso está ilustrado no passeio que se
inicia quando “Ricardo Reis vai descendo a rua, sem nenhuma pressa, fazendo do guarda-
chuva bengala”, e se distrai com as batidas da ponteira do guarda-chuva no chão, e se
transforma na cena em que Ricardo Reis tem a estranha sensação de não haver ninguém além
dele na rua. Até que essa sensação dá lugar a uma verdadeira e desagradável experiência: o
encontro com uma multidão miserável que espera pela distribuição de comida e esmola pelo
jornal O Século. Nessa passagem, é evidente a inconstância da vida, que pode mudar a cada
esquina virada:
Sabe, porque lho afirma o senso comum, depositário só do saber que o mesmo senso
comum diz ser indiscutível, que tal não é verdade, pessoas não têm faltado no
caminho, e agora nesta rua, apesar de tão sossegada, sem comércio, com raras
oficinas, há grupos que passam, todos que descendo vão, gente pobre, alguns mais
parecem pedintes, famílias inteiras, com os velhos atrás, a arrastar a perna, o coração
a rasto, as crianças puxadas aos repelões pelas mães, que são as que gritam, Mais
depressa, senão acaba-se.211
O efeito provocado por essa visão em Ricardo Reis é de dois aspectos. O primeiro diz
respeito à manifestação no Ricardo Reis personagem do que seria, no Ricardo Reis
210
SARAMAGO, 2003, p. 30. 211
Ibidem, p. 64.
121
heterônimo, um recurso poético-filosófico: a pretensa impassibilidade estoica seria, na
verdade, a indiferença aristocrática em relação ao mundo, onde o homem de elite quer se
distinguir, excetuando-se da condição geral de miséria, sofrimento ou calamidade. Trata-se de
um sentimento de superioridade que não permite ao homem da elite transformar o mundo em
que vive, já que isso implicaria extinguir seus privilégios. O segundo efeito está relacionado
ao choque imediato com a realidade, o que consiste numa reação oposta à indiferença
pretendida. O que Ricardo Reis vê é tão absurdo, considerando-se a ideia que ele quer ter da
realidade, que faz com que ele saia de sua bolha de alheamento para ocupar imediatamente
um lugar em meio à multidão faminta. A cena a seguir é narrada conforme as impressões de
Ricardo Reis:
Diante de Ricardo Reis aparece uma multidão negra que enche a rua em toda a
largura, alastra para cá e para lá, ao mesmo tempo paciente e agitada, sobre as
cabeças passam refluxos, variações, é como o jogar das ondas na praia ou do vento
nas searas. (...) Só agora Ricardo Reis deu porque vinha reter a respiração para não
sentir o mau cheiro, ainda há quem diga que os pretos fedem, o cheiro do preto é um
cheiro de animal selvagem, não este odor de cebola, alho e suor recozido, de roupas
raro mudadas, de corpos sem banho ou só no dia de ir ao médico (...).212
A reação aqui não é de indiferença, mas de asco, intensificado pela fobia à gente
miserável e pelo racismo. Essa é uma cena em que Ricardo Reis é dominado pelo impulso de
superioridade e pela distinção de classe que os de sua estirpe aprendem desde que nascem,
fazendo com que ele seja impedido de, pelo menos, em um primeiro momento, ter compaixão
pelo sofrimento que ele presencia tão de perto. O sentimento que vem em seguida é mais o
assombro – provocado pela suspeita de que algo realmente significativo estava sendo
oferecido, dada a enorme disputa entre os que aguardam na fila – a mera curiosidade,
satisfeita pelo policial que organiza a fila, e que lhe informa que são oferecidos agasalhos,
brinquedos e livros para as crianças, e dez escudos às famílias, ao que Ricardo Reis observa,
surpreso, que dez escudos “não dá para muito”, o que o narrador comenta com ironia: “terra
riquíssima em pobres, queira Deus que nunca se extinga a caridade para que não venha a
212
Ibidem, p. 64-65.
122
acabar-se a pobreza”213
. O pensamento do narrador nos leva de volta à relação entre a
manutenção da miséria e esse tipo de assistencialismo, e a ideia de que se há tantos
necessitados de uma esmola miserável, é que há muito mais pobreza do que aquilo que se tem
oferecido para aplacá-la, e é claro que um homem esclarecido como Ricardo Reis pode
perceber facilmente essas desproporcionalidades. Sendo assim, quando lê que “é patente (...)
que Lisboa vive atualmente um surto de progresso que em pouco tempo a colocará a par das
grandes capitais europeias, nem é de mais que assim seja, sendo cabeça de império”214
,
Ricardo Reis é capaz de perceber a disparidade entre a realidade dos jornais e a realidade das
ruas.
Já na página seguinte, narra-se um episódio em que fica evidente que a prosperidade
alardeada pelos jornais não pode ser verificada na vida portuguesa, ou pelo menos, ainda não
se faz sentir pelos portugueses. Ricardo Reis vai assistir a um espetáculo chamado Tá mar, de
Alfredo Cortez, inspirado nos pescadores de Nazaré, que estão presentes na plateia:
(...) um murmúrio exótico que fez voltarem-se e levantarem-se todas as cabeças da
plateia, eram os pescadores da Nazaré que entravam e ocupavam os seus lugares nos
camarotes de segunda ordem, ficavam de palanque para verem bem e serem vistos,
vestidos à sua moda, eles e elas, se calhar descalços, de baixo não se pode ver. Há
quem aplauda, outros acompanham condescendentes, Ricardo Reis, irritado, cerrou
os punhos, melindre aristocrata de quem não tem sangue azul, diríamos nós, mas não
é por isso que se trata, apenas uma questão de sensibilidade e pudor, para Ricardo
Reis tais aplausos são, no mínimo, indecentes.215
Para quem pretende apenas contemplar o espetáculo do mundo, estar na situação
descrita significa ser obrigado a ser mais do que mero espectador. A presença dos
personagens da realidade materializa os personagens da ficção, e Ricardo Reis se vê
coexistindo com esses personagens reais. Isso obriga o espectador a ocupar o lugar do ator,
ele sai da plateia e é empurrado para o palco, onde a ação acontece, e ele tem de vivê-la,
mesmo a contragosto. Há uma provocação implícita nessa cena, que diz respeito à concepção
da arte não como objeto sujeito à contemplação passiva, mas como algo que tem interferência
213
Ibidem, p. 66. 214
Ibidem, p. 104. 215
Ibidem, p. 105.
123
direta em seu receptor – o mesmo que recebe, mas também, se oferece à obra de arte; além
disso, como reflexão dessa interferência do receptor na arte, há a impassibilidade de Ricardo
Reis sendo vencida pelo espetáculo trágico do mundo: o pescadores pobres, a miséria que
suas vidas denuncia, não nasce na criação da peça em questão, mas é o contrário, um
empréstimo da vida real, onde a pobreza de fato existe. Outro fator está em evidência nessa
cena: a indiferença de Ricardo Reis – no caso único do personagem de Saramago – não é fruto
de resoluções filosóficas, mas a vontade explícita de se distinguir da miséria, de uma
necessidade de classe, de um homem privilegiado por não ser pobre. O narrador destaca a
reação de Ricardo Reis que se irrita, cerra os punhos, numa indignação por estar na mesma
sala que os excluídos sociais, e julga indecentes os aplausos aos pescadores, porque no seu
julgamento talvez eles não mereçam esse tratamento. Está claro que Ricardo Reis pertence à
classe dominante pelo que possui e também por seu complexo de superioridade, elementos
que o narrador trata logo de desmerecer, tratando-o como alguém que não tem sangue azul, ou
seja, é rico, mas não é especial; a distinção que Ricardo Reis julga ter não vale aqui, não
existe.
A dureza da realidade miserável será intensificada pela violência de Estado. Ou seja,
enquanto aquela poderá ser vista por Ricardo Reis, mas não vivida, esta será de fato uma
experiência para ele. Inicialmente, a violência poderá ser mais um objeto de contemplação,
enquanto existir apenas nas notícias de jornal, e como forma de fazer Portugal parecer o
paraíso na terra:
Neste nosso oásis de paz assistimos, compungidos, ao espetáculo duma Europa
caótica e colérica, em constantes ralhos, em pugnas políticas que, segundo a lição de
Marília, nunca levaram a nada de bom, agora constituiu Sarraut em França um
governo de concentração republicana e logo lhe caíram as direitas em cima com a
sua razão delas, lançando salvas sucessivas de críticas, acusações e injúrias, um
desbocamento de tom que mais parece de arruaceiros que de país tão civilizado,
farol da cultura ocidental.216
216
Ibidem, p. 141.
124
Mas esse espetáculo caótico e colérico não demora a sair dos jornais e invadir a vida
real. Ele está nos céus de Lisboa, quando um dirigível com a suástica nazista sobrevoa a
cidade, marcando a presença germânica, ao mesmo tempo em que a Alemanha ameaça ocupar
outros países, dando seguimento aos seus projetos imperialistas, não fazendo segredo sobre
sua disposição para o combate entre nações. Outros eventos demonstram que “estando, pois, à
vista de todos que as nuvens da guerra se adensam nos céus da Europa”217
, o clima fica cada
vez mais tenso, e o medo é presente todo o tempo: as ocupações, a situação na Espanha, e a
movimentação em Portugal como preparação para a guerra iminente. Sobre a situação na
Espanha, vizinha de Portugal, Ricardo Reis explica a Ramón, garçom do hotel, “o que sabia
pelos jornais”: “que a voz corrente era de que ganhariam as direitas, e que Gil Robles afirmara
(...) que quando chegar ao poder porá termo ao marxismo e à luta de classes e implantará a
justiça social.”218
Mas quem ganha as eleições é a esquerda, ao que reagem os militares
Goded e Franco, armando um golpe que incluirá a Espanha entre os países fascistas europeus.
Enquanto os planos para o golpe são apenas rumores, Ricardo Reis pode observar de perto a
aflição vivida no país vizinho quando famílias abastadas espanholas fogem para Portugal
temendo o regime comunista. Em julho a situação de conflito entre esquerda e direita se
agrava, o golpe militar fracassa e inicia-se a guerra civil. A guerra na Espanha representa duas
ameaças ao indiferente Ricardo Reis: o risco de “contaminação” do comunismo e a
possibilidade de semelhante estado de desordem em Portugal. O quadro mais detalhado sobre
a Guerra Civil Espanhola é apresentado pelo narrador. Em Badajoz: “(...) armaram-se
homens, mulheres e crianças, armaram-se de espingardas, de espadas, de mocas, de foices, de
revólveres, de punhais, de cacetes, deitaram mão ao que havia, talvez por ser esta a maneira
de armar-se o povo.”219
Em Portugal não há guerra, mas esse fantasma está presente na
217
Ibidem, p. 343. 218
Ibidem, p. 150. 219
Ibidem, p. 387.
125
população agitada e no aparato do Estado. Em razão das comemorações da Revolução
Nacional, organiza-se uma demonstração de ataque aéreo:
(...) decidiu o governo da nação, pela via do exemplo, que é de todas as lições a
melhor, explicar aos moradores como deverão proceder e proteger as vidas em caso
de bombardeamento aéreo, sem contudo levar a verossimilhança ao ponto de
identificar o inimigo possível, mas deixando nos ares a suspeita de que seja o
hereditário, isto é, o castelhano agora rojo (...). Então, pelos jornais e pela telefonia,
tem o governo vindo a anunciar que no próximo dia vinte e sete, véspera do décimo
aniversário da Revolução Nacional, irá Lisboa assistir a um espetáculo inédito, a
saber, um simulacro de ataque aéreo a uma parte da Baixa, ou em termos de maior
rigor técnico, à demonstração de um ataque aéreo-químico, tendo por objetivo a
destruição da estação do Rossio e a interdição dos locais de acesso a essa estação por
meio de infecção com gases.220
E enfim, a violência alcançará Ricardo Reis também em nível privado. A chuva, que
no romance representa a “abominável onda” de que Ricardo Reis fala nas odes e que tanto
teme, atinge o protagonista, eliminando a distância entre ele e a realidade: a Polícia de
Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), a força governista de repressão aos movimentos de
oposição ao regime, que mais tarde será chamada de PIDE, uma versão portuguesa da
Gestapo, começa a espreitá-lo. Apesar de ser um cidadão comum, e de não ter nenhuma
ligação com partidos ou quaisquer organizações políticas, Ricardo Reis levanta suspeitas
simplesmente por retornar a Portugal sem motivos realmente fortes, deixando evidente a
intransigência da polícia política e do próprio regime. A opressão se estende do aparato
político para o público, e Ricardo Reis passa imediatamente de homem respeitado e tratado
como “senhor doutor” a suspeito; todos no hotel ficam sabendo que ele é chamado à polícia, e
mesmo que não haja nada de concreto contra ele, é como se ele já houvesse sido julgado e
condenado por algum crime.
Já todo o pessoal do hotel sabe que o hóspede do duzentos e um, o doutor Reis,
aquele que veio do Brasil há dois meses, foi chamado à polícia, alguma ele teria
feito por lá, ou por cá, quem não queria estar na pele dele bem eu sei, ir à PVDE,
vamos a ver se o deixam sair, contudo, se fosse o caso de prisão não lhe tinham
mandado a contrafé, apareciam aí e levavam-no. Quando ao princípio da noite
Ricardo Reis descer para jantar, (...) verá como o vão olhar os empregados, como
subtilmente se afastarão dele (...).221
220
Ibidem, p. 343-344. 221
Ibidem, p. 171.
126
O julgamento das pessoas não será disfarçado. O Salvador, gerente do hotel, o
Pimenta, que carrega as malas e abre as portas, e a quem Ricardo Reis sempre dá generosas
gorjetas, o doutor Sampaio; todos passam automaticamente a tratar Ricardo Reis com
hostilidade e desconfiança. Isso o motiva até a sair do hotel e ir morar em casa alugada, onde
o julgamento o persegue, na boca das vizinhas, que se mantêm alertas sobre a sua intimidade,
e as visitas de Lídia.
A questão com a PVDE não acaba, obviamente, com a intimação. O que se segue é um
longo e absurdo interrogatório, uma clara artimanha de intimidação e um procedimento que
não se prende a possíveis direitos do interrogado, que, ali, estão todos suspensos. O
interrogatório já começa invasivo, com perguntas sobre onde Ricardo Reis esteve hospedado
desde que chegou em Lisboa, em que barco viajou, se viajou sozinho, se é casado, quantos
anos viveu no Brasil, por que razão foi para o Brasil, por que razão retornou, o que fará em
Portugal, quanta gente conheceu no Brasil; até que toma-se uma direção mais diretamente
acusatória: Ricardo Reis é questionado sobre se tinha relação com militares ou políticos, e até
mesmo se ele não acha “coincidência singular ter voltado para Portugal logo a seguir a uma
intentona revolucionária”222
. O interrogatório é interrompido várias vezes por um interrogado
que quer saber a razão de ser intimado, o que não é esclarecido em nenhum momento. Ele
chega a exigir um advogado, mas não é atendido.
As perguntas dirigem-se à minha vida particular, não tenho obrigação de responder-
lhes, ou então exijo a presença do meu advogado, Tem advogado, Não tenho mas
posso contratar os serviços de um, Os advogados não entram nesta casa, além disso
o senhor doutor não foi acusado de qualquer crime, isto é apenas uma conversa, Será
uma conversa, mas não fui eu quem a escolheu, e, pelo teor das perguntas que me
estão a ser feitas, tem muito mais de devassa que de conversa, Voltemos ao assunto,
que amigos eram esses seus, Não respondo, Senhor Doutor Ricardo Reis, se eu
estivesse no seu lugar, responderia, é muito melhor para si, escusamos de complicar
desnecessariamente o caso, Portugueses, brasileiros, pessoas que começaram por me
procurar como médico, e depois as relações que se estabelecem na vida social, não
adianta estar aqui a dizer nomes que o senhor não conhece, Esse é o seu engano, eu
conheço muitos nomes, Não direi nenhum, Muito bem, tenho outras maneiras de os
saber, se for preciso (...).223
222
Ibidem, p. 191. 223
Ibidem, p. 191.
127
Ricardo Reis é liberado em seguida, mas continua sendo perseguido pelo agente
Victor. A apresentação desse personagem é fiel imagem da repressão política daquele
período: trata-se de um homem desagradável, grosseiro, caricato, com um hálito nauseante de
cebola, e que vive à espreita, como uma sombra. Ele não precisa ser visto para saber-se
presente, seu cheiro o denuncia antes de mais nada; e para disfarça-lo, começa a mascar
chiclete de pimenta, o que atenua, mas não faz desaparecer o odor podre. É como a polícia
política, que se faz passar como defensora da sociedade, mas isso não disfarça a violência de
que faz uso, e nem diminui o medo que acompanha a população, sem distinguir classe, credo,
sexo, ou cor.
Está Ricardo Reis nesta contemplação, alheado, desprendeu-se do motivo que o
levou ali, só está olhando, nada mais, de repente uma voz disse ao lado, Então o
senhor doutor veio ver os barcos, reconhece-a, é o Victor, no primeiro instante
sentiu-se perplexo, não por ele ali estar, mas porque o cheiro não o denunciara, então
compreendeu porquê, o Victor pusera-se a sotavento. O coração de Ricardo Reis
agitou-se, desconfiará o Victor de alguma coisa, será já conhecida a revolta dos
marinheiros, Os barcos e o rio, respondeu, também poderia ter falado das fragatas e
das gaivotas, poderia igualmente ter dito que ia apanhar o cacilheiro, gozar o regalo
da travessia, ver saltar as toninhas, limitou-se a repetir, Os barcos e o rio, afastou-se
bruscamente, consigo mesmo dizendo que fora um erro proceder assim, devia era ter
mantido uma conversa natural, Se ele sabe alguma coisa do que está para acontecer,
com certeza achou duvidoso ver-me ali.224
Essa perseguição tem sucesso não apenas em manter o regime protegido das forças
opositoras, mas também em manter a população sob controle através do medo. Ele é uma
arma do poder, que faz com que o estado de exceção extrapole as ruas e invada cada mínimo
espaço da vida privada. Em constante sobressalto, até as pessoas mais comuns e insuspeitas
vivem reféns do Estado, tornando-se, portanto, um elemento dele. No caso de Ricardo Reis,
além de estar sob a mira da polícia ininterruptamente, essa realidade opressora o alcança até
mesmo de forma indireta, por exemplo, pelas atualizações extraoficiais trazidas por Lídia. Ela
tem um irmão, Daniel, que é marinheiro e está envolvido com o movimento insurgente que
será o responsável por desencadear a Revolta dos Barcos. Pela experiência do irmão, Lídia
será o contato de Ricardo Reis com o outro lado do estado de exceção, o que combate esse
224
Ibidem, p. 420.
128
estado, o que se converte também na via pela qual o narrador apresenta esse outro lado,
invalidando a ideia do estado de exceção mostrada pelo regime, ou seja, o estado indefectível
e insubstituível que agrada a gregos e troianos. De fato, o fracasso da Revolta dos Barcos, que
marca o início de uma era ainda mais intensa de repressão, expõe a violência de Estado mais
uma vez: “Diz o jornal que os presos foram levados primeiro para o Governo Civil, depois
para a Mitra, que os mortos, alguns por identificar, se encontram no necrotério. Lídia andará à
procura do irmão, ou está em casa da mãe, chorando ambas o grande e irreparável
desgosto.”225
3.3. O ESPETÁCULO DO INFERNO
Já pudemos conhecer, até aqui, uma parte do espetáculo do mundo que cabe a Lisboa
através do que Ricardo Reis observa pelos jornais e em alguns de seus passeios. O espetáculo
visto e o lido se confrontam e desmentem o discurso governista dos jornais. Lídia também
aproximará Ricardo Reis da realidade, retirando-o de sua zona de isolamento e apresentando-
lhe o lado do inconformismo, através do que sabe por seu irmão. Inclusive, a tranquilidade
que Ricardo Reis quer demonstrar a Lídia, quando ela se preocupa com o interesse da polícia
nele, ela logo o avisa sobre o que seu irmão lhe conta sobre a PVDE:
Ficou Ricardo Reis a saber que a polícia onde terá que apresentar-se na segunda-
feira é lugar de má fama e de obras piores que a fama, coitado de quem nas mãos lhe
caia, ele são as torturas, ele são os castigos, ele são os interrogatórios a qualquer
hora, não que o conhecesse Daniel por experiência própria, repete só o que lhe
contaram.226
É também pelo que Daniel conta que Lídia fica sabendo sobre o plano de revolta dos
marinheiros, o que pode confirmar a Ricardo Reis a forte rejeição popular do regime,
contrariando os jornais quando falam sobre o momento de paz que Portugal vive e a felicidade
do povo. Ricardo Reis poderá ver de muito perto todos os problemas que assolam o país: além
da violência de Estado, ele conhecerá a miséria e o desespero, por exemplo, em sua viagem ao
225
Ibidem, p. 426-427. 226
Ibidem, p. 173.
129
ponto de peregrinação de católicos em Portugal, a cidade de Fátima, onde ele espera encontrar
Marcenda procurando por um milagre. O local se tornou sagrado após a suposta aparição da
Virgem Maria a três crianças pastoras, e desde então recebe fieis de todas as regiões do país, e
até de fora dele. O que se percebe desde o início é o delírio coletivo, que marca Portugal
desde sempre, dado o fato de que se trata de um país fundado sob o domínio do cristianismo.
A religião a serviço do poder é apenas mais uma característica do salazarismo, o que se nota
em sua apropriação do texto camoniano com ênfase na aclamação do cristianismo, presente,
por exemplo, no brado aos portugueses que dilatem a fé e o império.
Não há um momento sequer em que o desespero não esteja presente em Fátima. A
multidão, a cada gesto, parece responder a uma força superior, ou parece um ente único, como
pode ser visto em outros romances de Saramago: um grupo, uma população, enfim, é tratado
como um só personagem, por uma percepção da sociedade regida por uma entidade que a
sobrepõe e uniformiza. A massa como personagem unificada sofre de uma alienação que a
padroniza, apontando, assim, para a existência de uma consciência coletiva. Essa multidão
está acometida de angústia, histeria, entorpecimento e demência em igual nível, e esse misto
confunde-os como se compusessem um único organismo vivo. Pode-se dizer que esse é o
ponto mais profundo da realidade miserável em todos os sentidos, que Ricardo Reis
presencia: a pobreza é o topo do iceberg da crise social portuguesa. As pessoas que compõem
aquela multidão não sofrem apenas de limitações materiais – o que não é o caso de todos que
recorrem à religião, como Marcenda, por exemplo – mas também, e principalmente, de
desordens internas que parecem insolúveis, e para as quais a última esperança é depositada
nos santos. A degradação já é denunciada no deslocamento da população, que é transportada
por trem, o que lembra os judeus que são encaminhados aos campos de concentração para
serem expostos aos mais altos graus de horror. Ao descerem do trem, os fieis se comportam
como uma manada desesperada, atropelando-se em “empurrões de peregrinos a quem já dera
130
no rosto o perfume do sagrado(...)”, mesmo que estejam sendo aguardados por nada menos
que horas sem comida, sem higiene, sem abrigo, sem assistência, sem dignidade, como
animais:
A maior parte dessas pessoas farão a pé a caminhada de vinte quilômetros até a
Cova da iria, outras correm para as bichas das camionetes da carreira, são as de
perna trôpega e fôlego curto, que neste esforço acabam de estafar-se. O céu está
limpo, o sol forte e quente.227
Ricardo Reis não terá apenas a oportunidade de observar as dificuldades por que passa
a multidão, como ele próprio terá que vivenciá-las. Já quando chega tem dificuldade em
encontrar um lugar para almoçar. Dificuldade que será amenizada por seu porte de homem de
classe rica, de que tirará proveito, aceitando o tratamento distinto que os mais humildes lhe
dispensarão, demonstrando mais uma vez seu complexo de superioridade:
Porém, veio a tirar benefício do fortíssimo influxo espiritual que distingue estas
paragens, foi caso que, por o verem assim bem-posto, vestido à cidade, houve
fregueses que lhe deram, rusticamente, a vez , e por esta urbanidade pôde Ricardo
Reis comer, mais do que esperava, uns carapaus fritos com batatas cozidas, de azeite
e vinagre, depois uns ovos mexidos por amor de Deus, que para o comum não havia
tempo nem paciência para tais requintes.228
A multidão de peregrinos não é a estática dos campos ou da cidade que está vencendo
os problemas econômicos, com a ajuda do governo, mas a que aumenta velozmente, à qual se
junta mais e mais peregrinos que não param de chegar a Fátima. A imagem dessa grande
massa de gente em romaria se traduz na jornada interminável da gente abandonada pelo
Estado, e que não dará em lugar nenhum. Após o almoço, Ricardo Reis toma uma camioneta,
de onde “os vidros, sujos, mal deixavam ver a paisagem ondulosa, árida, em alguns lugares
bravia, como de mato virgem”229
, uma visão que mais parece um delírio. Do que Ricardo Reis
consegue ver, pode perceber que a maior parte dessa gente vai descalça”, e que está orientada
por uma harmonia nascida do desespero:
Ouvem-se cânticos desafinados, as vozes agudas das mulheres soam como uma
infinita lamúria, um choro ainda sem lágrimas, e os homens, que quase nunca sabem
227
Ibidem, p. 313. 228
Ibidem, p. 313. 229
Ibidem, p. 314.
131
as palavras, acentuam as sílabas toantes só a acompanhar, espécie de baixo contínuo,
a eles se lhes pede mais, só que finjam. De vez em quando aparece gente sentada por
esses valados baixos, à sombra das árvores, estão a repousar um migalho, a ganhar
forças para o último troço da jornada, aproveitam para petiscar um naco de pão com
chouriço, um bolo de bacalhau, uma sardinha frita há três dias lá na aldeia distante.
Depois tornam à estrada, retemperados, as mulheres transportam à cabeça os cestos
de comida, uma que outra dá de mamar ao filho enquanto vai caminhando, e sobre
toda esta gente a poeira cai em nuvens à passagem da camioneta, mas ninguém
sente, ninguém liga importância, é o que faz o hábito ao monge e ao peregrino, o
suor desce pela testa, abre sulcos no pó, levam-se as costas das mãos à cara para
limpar, pior ainda, isto já não é sujo, é encardido.230
Essa cena ilustra em pormenores a barbárie; que é uma das revelações da Virgem
Maria aos pastorinhos. Como se sabe, a lenda diz que a santa revelou quatro segredos às
crianças, e o quarto deles é a visão literal do inferno:
Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia estar debaixo da
terra. Mergulhados nesse mar de fogo os demônios e as almas, como se fossem
brasas transparentes e negras ou bronzeadas com forma humana, que flutuam no
incêndio levadas pelas chamas que delas mesmas saíam, juntamente com nuvens de
fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faúlhas em os grandes
incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que
horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demônios distinguiam-se por formas
horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes e
negros. Esta vista foi um momento, e graças à nossa boa Mãe do Céu, que antes nos
tinha prevenido com a promessa de nos levar para o céu! Se assim não fosse, creio
que teríamos morrido de susto e pavor.231
A aproximação entre o cenário testemunhado por Ricardo Reis no local sagrado de
Fátima e a descrição do inferno revelado pela Virgem dessacraliza automaticamente o
símbolo religioso e o expõe em sua violência e calamidade. A salvação prometida pelo credo
é concebida em seu oposto, a perdição. A própria santa é, aqui, a arquiteta do inferno, por
inaugurar aquele lugar onde o “grande mar de fogo” está representado pelo “mar de gente”232
em uma depressão no solo (no romance é descrito como “grande explanada côncava”233
), um
buraco referido como cova, ou seja, está “debaixo da terra”, e onde o calor é intenso. Os
demônios e almas gritando “de dor e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor”,
“mergulhados nesse mar de fogo”, correspondem exatamente à multidão em suas orações e
cânticos suplicantes e agonizantes. Há os grupos de pessoas, que se parecem com caravanas
230
Ibidem, p. 314-315. 231
Irmã Lúcia. Memórias da irmã Lúcia I. 13ª ed. Fátima: Secretariado dos pastorinhos, 2007. p. 21. 232
SARAMAGO, 2003, p. 318. 233
Ibidem, p. 318.
132
de ciganos, expatriados ou refugiados, “milhares de pessoas, há panelas ao lume, cães a
guardar os haveres, crianças que choram, moscas que de tudo aproveitam”234
, todos ao
relento, e deitados no chão enlameado que endurece pelo calor. Há o hospital, onde Ricardo
Reis vê “doentes estendidos no soalho, em enxergas, em macas, a esmo”, com seus parentes
que estão rezando o que parece um “contínuo zumbido de orações, cortado de vez em quando
por profundos ais, gemidos desgarradores, implorações à Virgem”235
, e onde o “mar de gente”
é um tapete de doentes: “Na enfermaria havia pouco mais de trinta camas, e os doentes
podiam ser bem uns trezentos, por cada um acomodado segundo sua condição, dez eram
largados onde calhava, para passarem tinham as pessoas que alçar a perna (...).”236
Há também os aproveitadores da fé e do desespero. Sobre a multidão um avião lança
panfletos de propaganda de um remédio, panfletos que não podem ser lidos, porque a maioria
dos fieis ali presentes é analfabeta, uma realidade que não corresponde ao que é anunciado
pelos jornais e que reflete a condição de toda a população portuguesa. Por isso, é em Fátima
que Ricardo Reis mais pode perceber a precariedade em que vive o povo naquele momento;
Fátima é a mais fiel representação da realidade, e, paradoxalmente, é o retrato mais próximo
ao inferno descrito na visão da irmã Lúcia. Ricardo Reis também pode assistir ao espetáculo
dos vendilhões de objetos sagrados, tão miseráveis e desgraçados quanto aqueles que tentam
enganar; e também ao espetáculo do autossacrifício, os fieis que pagam suas promessas
seguindo a marcha de joelhos, que sangram esfolados, chegando alguns a desmaiar de dor.
Tudo isso temperado pelo forte calor: “com este sol violento não é para admirar que a cabeça
nos tresvarie um pouco”237
. O êxtase religioso, portanto, não é provocado apenas pelo fator
mítico, mas por todas essas condições que acometem essa gente negligenciada pelo Estado: a
234
Ibidem, p. 318. 235
Ibidem, p. 318. 236
Ibidem, p. 319. 237
Ibidem, p. 317.
133
fome, a dor, o calor, as doenças. O delírio atinge seu auge quando se passa a imagem da santa
entre a multidão:
(...) Está a sair a imagem da capelinha das aparições, arrepiam-se as carnes e o
cabelo da multidão, o sobrenatural veio e soprou sobre duzentas mil cabeças,
alguma coisa vai ter de acontecer. Tocados de um místico fervor, os doentes
estendem lenços, rosários, medalhas, com que os levitas tocam a imagem, depois
devolvem-nos ao suplicante, e dizem os míseros, Nossa Senhora de Fátima dai-me
vida, Senhora de Fátima permiti que eu ande, Senhora de Fátima permiti que eu
veja, Senhora de Fátima permiti que eu ouça, Senhora de Fátima sarai-me, Senhora
de Fátima, Senhora de Fátima, Senhora de Fátima, os mudos não pedem, olham
apenas, se ainda têm olhos (...).238
“Os demônios distinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos
e desconhecidos, mas transparentes e negros”: outra aproximação paradoxal pode ser feita
entre os fieis degradados de Fátima e os demônios do inferno revelado pela Virgem. Os
duzentos mil peregrinos são descritos pelo narrador como “multidão negra”, negra pela cor
das roupas e peles sujas, pelos semblantes sombrios ou agonizantes, ou por tudo isso. E, em
razão das condições em que se encontram, do ambiente insalubre e calorento, das muitas
doenças e males físicos, do sofrimento, da alienação, da miséria, estão como “animais
espantosos e desconhecidos”. A experiência de Ricardo Reis em Fátima é a do contato direto
com a realidade, o que pode ser descrito como “de súbito não sabemos donde veio o horror,
esta cantilena gemebunda, romperam os portões do inferno, que só do inferno podia ter saído
um fenômeno assim (...)”239
.
Por essas aproximações entre o que Ricardo Reis presencia em Fátima e a revelação
por Nossa Senhora daquilo que o catolicismo chama de purgatório, a ida de Ricardo Reis ao
santuário recebe uma inversão: em vez de se tornar a viagem de encontro a Deus, converte-se
na descida ao inferno, que pode ser tanto o inferno dantesco, quanto, e mais ainda, a missão
de Orfeu, já que a motivação inicial para essa ida a Fátima é a possibilidade de encontrar
Marcenda, quem ele acredita estar na Cova da Iria em busca de um milagre que cure sua mão
paralisada. Conforme conta a lenda, Orfeu desce ao Hades, o mundo dos mortos, para resgatar
238
Ibidem, p. 323. 239
Ibidem, p. 321.
134
sua amada Eurídice. Mas a condição para realizar essa façanha é jamais olhar para trás, o que
ele acaba fazendo, vencido por sua curiosidade sobre se Eurídice o seguia ou não. Assim
como Orfeu, Ricardo Reis tem sua musa morta: Marcenda significa “murchar”; é a figura da
melancolia240
. Por outro lado, há pontos em que Orfeu se distingue de Ricardo Reis: este quer
estar alienado, enquanto aquele é curioso, tanto que é vencido por seu desejo de saber se
Eurídice o segue. Além disso, no caso de Orfeu, o mundo dos mortos e o mundo dos vivos
têm uma clara divisão, não se confundem. Enquanto que o mundo de Ricardo Reis é todo ele
feito de vários mundos dos mortos – o Brasil-exílio, as ruas de Lisboa, o cemitério dos
Prazeres, os campos de batalha pelo mundo, Fátima –, o que caracteriza o real como o próprio
inferno. Nele, Ricardo Reis assiste ao espetáculo onde os vivos são sombras, enquanto um
morto, Fernando Pessoa, é sua única companhia e forma de vida. O mundo de Ricardo Reis é
o próprio purgatório, onde todas as pessoas são, indiscriminadamente, punidas simplesmente
por estarem vivas.
O choque de Ricardo Reis com a realidade é, por isso tudo, mais grave, tanto que ele
passa a ter uma visão mais crítica sobre o espetáculo a que assiste, nada mais passa
desapercebido. Quando decide ir a um comício, assim o narrador observa:
Em toda a sua vida Ricardo Reis nunca assistiu a um comício político. A causa desta
cultivada ignorância estará nas particularidades do seu temperamento, na educação
que recebeu, nos gostos clássicos para que se inclinou, um certo pudor também,
quem os versos lhe conheça bastante encontrará fácil caminho para explicação. Mas
este alarido nacional, a guerra civil aqui ao lado, quem sabe se o desconcerto do
lugar onde vão reunir-se os manifestantes, a Praça de Touros do Campo Pequeno,
acordam-lhe no espírito uma pequenina chama de curiosodade, como será juntarem-
se milhares de pessoas para ouvirem discursos, que frases e palavras aplaudirão,
quando, porquê, e a convicção de uns e outros, os que falam e os que escutam, as
expressões dos gostos e os gestos, para homem de natural tão pouco indagador, há
interessantes mudanças em Ricardo Reis.241
Assim como a visão da calamidade em Portugal abala Ricardo Reis, a visão sobre a
forma como o poder é constituído e articulado também provoca nele a indignação, ele
consegue perceber os absurdos do regime e os reprova. Como Ricardo Reis é indiferente,
240
Uma análise mais detida dessa personagem será desenvolvida mais adiante. 241
SARAMAGO, 2003, p. 406.
135
porém não tolo, ele percebe o quanto o nacionalismo se manifesta na população como uma
hipnose e fica perplexo quando percebe a aceitação popular do regime: “ e agora tornou Roma
na figura de seus descendentes, esse é, sem dúvida, o melhor domínio, comprar homem por
si, e às vezes nem é preciso comprá-los, que eles oferecem-se baratos, a troco duma tira de
pano no braço (...).”242
O nacionalismo que Ricardo Reis presencia é intrigante por se tratar do
orgulho de um país que não provê seu povo, mas é ainda mais absurdo pelo fato de ser um de
muitos outros fatores em comum entre Portugal e outros regimes fascistas da Europa. O que
Ricardo Reis testemunha nesse comício é o apoio entre esses países, uma cumplicidade
assustadora:
Enfim, entram as entidades oficiais, recheia-se a tribuna, e é o delírio. Esfuziam-se
os gritos patrióticos, Portugal Portugal Portugal, Salazar Salazar Salazar (...). No
lado direito da tribuna, em lugares que até agora tinham permanecido vazios, com
muita inveja do gentio doméstico, instalaram-se representantes do fáscio italiano,
com as suas camisas negras e condecorações dependuradas, e no lado esquerdo
representantes nazis, de camisa castanha e braçadeira com a cruz suástica, e todos
estes estenderam o braço para a multidão, a qual correspondeu com menos
habilidade mas muita vontade de aprender, é nesta altura que entram os falangistas
espanhóis, com a já conhecida camisa azul, três cores diferentes e um só verdadeiro
ideal. A multidão, como um único homem, está de pé, o clamor sobre ao céu, é a
linguagem universal do berro, a babel finalmente unificada pelo gesto, os alemães
não sabem português nem castelhano nem italiano, os espanhóis não sabem
português nem alemão nem italiano, os italianos não sabem castelhano nem
português nem alemão, os portugueses, em compensação, sabem muito bem o
castelhano, usted para o trato, quanto vale para as compras, gracias para o obrigado,
mas estando os corações de acordo, um grito basta, Morte ao bolchevismo em todas
as línguas.243
Um regime fascista não interrompe sua comunicação com o povo, porque conta com
isso para se manter; o comício acompanhado por Ricardo Reis faz parte dessa agenda. O
mesmo delírio que ele presencia em Fátima retorna aqui, mesmo que esteja articulado por
uma razão despótica. A fé cega e desesperada é a mesma, a necessidade do totem é o mesmo,
o que muda são os deuses. Tanto a população mostra essa obediência infalível ao regime,
quanto os próprios representantes do poder. A Mocidade Portuguesa, a versão lusa da
Juventude Hitlerista, é um exemplo dessa aderência ao regime:
242
Ibidem, p. 408. 243
Ibidem, p. 408-409.
136
A onda cresce e rola. Em Portugal afluem as inscrições de voluntários para a
Mocidade Portuguesa, são jovens patriotas que não quiseram esperar pela
obrigatoriedade que há-de vir, eles por sua esperançosa mão, em letra escolar, sob o
benévolo olhar da paternidade, firmaram a carta, e por seu firme pé a levam ao
correio, ou trémulos de cívica comoção e entregam ao porteiro do ministério da
Educação Nacional, só por respeito religioso não proclamam, Este é o meu corpo,
este é o meu sangue, mas qualquer pessoa pode ver que é grande sua sede de
martírio.244
O tom sarcástico do narrador ridiculariza a devoção dos jovens voluntários ao regime,
devoção que está de novo presente no comício, como parte da força arrebanhada. Essa
submissão é característica, e o discurso que a motiva é reproduzido em outras ocasiões,
ressaltando o empenho em simular uma união promovida pelo Estado:
Estamos aqui reunidos, irmanados no mesmo patriótico ideal, para dizer e mostrar
ao governo da nação que somos penhores e fiéis continuadores da grande gesta lusa
e daqueles nossos maiores que deram novos mundos ao mundo e dilataram a fé e o
império, mais dizemos que ao toque do clarim, ou das tubas, clangor sem fim, nos
reunimos como um só homem em redor de Salazar, o gênio que consagrou a sua
vida ao serviço da pátria (...), capitão Jorge Botelho Moniz, que é o do Rádio Clube
Português, e este lê uma moção em que se pede ao governo a criação duma legião
cívica que se dedique inteiramente ao serviço da nação, tal como Salazar se dedicou,
não é de mais eu o acompanhemos, à proporção das nossas fracas forças (...).
Ouvindo falar de legião cívica, a multidão levanta-se outra vez, sempre como um só
homem (...).245
Como já foi dito, é reincidente essa imagem da multidão como unidade nos trabalhos
de Saramago, a partir da qual se percebe uma interpretação dialética da comunhão. A massa
como rebanho está presente como elaboração do cristianismo, assim como dos regimes de
exceção do século XX. O fascismo se utiliza dessa imagem porque explora a união entre o
povo e o Estado – apropriação clara dos preceitos cristãos, da religião como reconciliação do
homem com Deus; da Igreja e da família como células acolhedoras; enfim, da ovelha que é
integrada ao rebanho porque essa é uma bênção ao filho fiel – como meio de apresentar-se
como o grande promotor do bem comum. Nas narrativas de Saramago, isso se converte, a
partir de uma observação mais aproximada, na imagem da massa alinhada, que se orquestra
pelo poder. Saramago constrói o grupo como a grande irmandade, como um só corpo,
padronizado, unificado e sistematizado, porque é produto da administração e subtração da
244
Ibidem, p. 387. 245
Ibidem, p. 409-410.
137
individualidade, e não o respeito a ela, e nem a autêntica harmonia entre os indivíduos. Ela é
apresentada na ficção como uma unificação para a obediência, não para existir em sua
vontade e necessidades individuais. Essa é a ilustração do exercício do fascismo, que
suspende os direitos comuns e promove essa padronização que sustenta a ordem.
Além do medo, o regime dispõe também dessa falsa comunhão como artifício para
dominar. Ricardo Reis não consegue se manter indiferente a tamanho arrebanhamento, ele
“que esteve todo este tempo ao ar livre, com o céu por cima da cabeça, sente que precisa de
respirar, de tomar ar”246
. Enquanto a multidão está orquestrada com os jogos do poder,
Ricardo Reis está sufocado por eles, porque sua reação é a de entendê-los como imposições
ideológicas, não como marcas da harmonia entre o povo e o Estado. A cumplicidade entre
Portugal e a Alemanha nazista, e A Itália e a Espanha, – e Ricardo Reis sabe o que isso
representa – intensifica o pavor ao presente: “Agora queria meditar, refletir, dar uma opinião e
discuti-la consigo mesmo, e não conseguia, tinha apenas lembranças e olhos para as camisas
negras, castanhas, azuis (...)”247
Em ocasião do aniversário da Revolução Nacional, de 1926 –
que inaugura em Portugal a ditadura militar – realiza-se uma simulação de bombardeio, o que
seria necessário em um estado de guerra, uma medida para preparar a população. Mas o
evento reforça a presença da guerra, a iminência de conflitos, mesmo que seja anunciado por
palavras que amenizam a situação:
Estando, pois, à vista de todos que as nuvens da guerra se adensam nos céus da
Europa, decidiu o governo da nação, pela via do exemplo, que é de todas as lições a
melhor, explicar aos moradores como deverão proceder e proteger as vidas em caso
de bombardeamento aéreo, sem contudo levar a verossimilhança ao ponto de
identificar o inimigo possível, mas deixando nos ares a suspeita de que seja o
hereditário, isto é, o castelhano agora rojo, porquanto, sendo ainda tão curto o raio
de ação dos aviões modernos, não é de prever que nos ataquem aviões franceses,
ingleses muito menos, ainda por cima nossos aliados, e, quanto aos italianos e
alemães, têm sido tantas as provas dadas de amizade por este povo, irmanado no
comum ideal, que antes deles esperaremos auxílio um dia, extermínio nunca.248
246
Ibidem, p. 410. 247
Ibidem, p. 411. 248
Ibidem, p. 343.
138
Por mais que, àquela época, Portugal alegue neutralidade, na verdade, suas relações
com o eixo – Alemanha e Itália – efetivam-se e são, inclusive, demonstradas publicamente,
por exemplo, na notícia que fala sobre o comício, em que estão presentes alemães, italianos e
espanhóis das alas fascistas. Outro exemplo está claro na inspiração que a Mocidade
Portuguesa tem na Juventude Hitlerista:
Alguns dias depois, os jornais contaram que vinte e cinco estudantes das Juventudes
Hitleristas de Hamburgo, de visita ao nosso país e viagem de estudo e propaganda
dos ideais nacional-socialista, foram homenageados no Liceu Normal, e que, tendo
visitado demoradamente a exposição do Ano X da Revolução Nacional, escreveram
no Livro de Honra esta frase, Nós não somos nada, querendo significar, com
declaração tão peremptória, segundo explicava pressuroso o plunitivo de serviço,
que o povo nada vale se não dor orientado por uma elite, ou nata, ou flor, ou escol.
Ainda assim, não rejeitaríamos essa última palavra, escol, que vem de escolha, posto
que o teríamos, ao povo, dirigido por escolhidos, se os escolhesse. Mas por uma flor
ou nata, cerdo, afinal de contas a língua portuguesa é de um ridículo perfeito, viva
pois a elite francesa, enquanto não aprendermos a dizer melhor em alemão.
Porventura com vistas a essa aprendizagem se decretou a criação da Mocidade
Portuguesa, que, lá para Outubro, quando iniciar a sério os seus trabalhos, abrangerá,
logo de entrada, cerca de duzentos mil rapazes, flor ou nata da nossa juventude, da
qual, por decantações sucessivas, por adequadas enxertias, há de sair a elite que nos
governará depois, quando a de agora acabar. (...) Usar no cinto um S de servir e de
Salazar, ou servir Salazar, portanto duplo S, SS (...).249
A presença alemã em Portugal é uma realidade, assim como o elogio a Hitler e ao
nazismo são bastante diretos nos jornais. Um traço que coincide tanto no hitlerismo quanto no
salazarismo é o nacionalismo saudosista, isto é, o orgulho nacional temperado pela nostalgia
dos tempos de império, com o fim de se definir o ideal de pátria a partir do modelo dominador
do passado. Ao deambular por Lisboa, Ricardo Reis poderá observar monumentos que se
caracterizam pela simbologia desse passado idealizado. Em um de seus primeiros passeios o
próprio Ricardo Reis reflete sobre uma placa:
Sobre Ricardo Reis a Rua do Alecrim, e mal saiu do hotel logo o fez parar um
vestígio doutras eras, um capitel coríntio, uma ara votiva, um cipo funerário, que
ideia, essas coisas, se ainda as há em Lisboa, oculta-as a terra movida por aterros ou
causas naturais, aqui é somente uma pedra rectangular, embutida e cravada num
murete que dá para a Rua Nova do Carvalho, dizendo em letra de ornamento,
Clínica de Enfermedades de los Ojos y Quirúrgicas, e mais sobriamente, Fundada
por A. Mascaró em 1870, as pedras têm uma vida longa, não assistimos ao
nascimento delas, não assistiremos à morte, tantos anos sobre esta passaram, tantos
hão-de passar, morreu Mascaró e desdez-se a clínica, porventura algures ainda
viverão descendentes do Fundador, ocupados em outros ofícios, quem sabe se já
249
Ibidem, p. 371-372.
139
esquecidos, ou ignorantes, de que neste lugar público se mostra a sua pedra de armas
(...).250
Essa é uma reflexão sobre os monumentos, que, em O ano da morte de Ricardo Reis,
incluem-se na narrativa como marca da petrificação da história. No caso do trecho citado, o
que está petrificado é a placa original – que mesmo não sendo exatamente um monumento,
acaba se tornando um, visto que não foi removido, marcando a cidade, como se pudesse,
assim, continuar existindo, após o fim daquilo que anuncia – a clínica oftalmológica. Somos
levados, imediatamente, à metáfora presente em Ensaio sobre a cegueira251
, em que a visão
representa a consciência, e a ignorância e a alienação estão representadas pela cegueira. Sendo
assim, a placa que chama a atenção de Ricardo Reis é a petrificação do lugar onde a cura da
cegueira é possível, o que indica que a pedra representa não apenas a perpetuação da história
– da continuidade de tudo aquilo que deveria ser superado e não é – mas também a
imobilização do passado e das forças transformadoras. Em seguida, Ricardo Reis passa pela
estátua de Eça de Queiroz, o escritor do século XIX cuja obra está inteira centrada na crítica
social, através de um estilo duramente ferino, e que direciona seu ataque principalmente às
classes dominantes de Portugal, não poupando, é claro, figuras de camadas populares. A
estátua de Eça apresenta o escritor em uma pose altiva, cruzando o olhar com uma mulher
semi-nua, sugerindo um lado esteta do escritor que subtrai o homem atento e lúcido sobre seu
mundo. A escultura, portanto, chega a ser burlesca. A figura feminina do monumento está
mais próxima da heroína romântica, inspirada nas musas clássicas e idealizadas, como uma
tentativa de se definir o ideal social de mulher, quando, na verdade, na escrita de Eça de
Queiroz não é possível encontrar qualquer tipo de idealização. Eça era um antirromântico
declarado e faz parte da escola realista, assim como da Geração de 70, grupo de intelectuais
que se destaca, dentre outros, pelo confronto com os românticos e também pela afinidade com
250
Ibidem, p. 57. 251
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
140
o socialismo. O monumento ao escritor é um bom exemplo de como a imagem de um homem
público pode ser apropriada de maneira indevida. Na narrativa de Saramago, a estátua parece
provocar essa observação desconcertada quando o narrador atenta-se à frase gravada na placa
da estátua: ele sugere que “Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia” seja
invertido para “Sobre a nudez forte da fantasia, o manto diáfano da verdade”252
, o que torna
possível não apenas uma nova visão sobre Eça, que se encontra petrificado nessa estátua
encomendada por um Estado desviado ao nacionalismo; além de redirecionar o leitor à
reflexão sobre os conceitos de verdade, fantasia, realidade e ficção. “Este dito, sim, dá muito
o que pensar.”253
: a mulher da estátua está envolta em um manto da cintura para baixo, o que
indica que a frase fala sobre ela, que constitui a metáfora da verdade. O teor romântico está
flagrante tanto na concepção da mulher, quanto na da verdade – que, aqui, correspondem uma
à outra – ambas positivas, idealizadas e mitificadas no patamar de bens culturais. A fantasia
também se apresenta, na estátua, a partir de uma concepção romântica, em contraste com o
real: corresponde à arte, no caso de Eça, literária, que, na estátua, é concebida como algo
distinto da realidade e, sobretudo, objeto de contemplação, de enaltecimento. Todos esses
conceitos são confrontados pela inversão proposta pelo narrador – que está em sintonia com a
inversão do verso camoniano: em “Sobre a nudez forte da fantasia” – isto é, sobre a clareza da
criação artística – “o manto diáfano da verdade”, ou seja, a estética de Eça de Queiroz está, de
fato, direcionada à produção imaginativa que provoque a reflexão sobre a realidade; trata-se
de uma criação cuja “nudez forte” evidencia uma percepção que pode ser acessada facilmente
pelo leitor, e que é sobre essa criação – a fantasia – que a máscara da verdade – a realidade –
se projeta, e pode ser exposta. Assim como fez com o verso camoniano, o narrador, desta vez,
transgride um outro texto, que, assim como o camoniano, foi antes apropriado pelo poder. O
resultado dessa nova inversão é apresentada pelo narrador: “sólida e nua a fantasia, diáfana
252
Esta frase foi retirada do romance de Eça intitulado A relíquia. (cf. referência) 253
SARAMAGO, 2003, p. 58.
141
apenas a verdade”254
, o que distorce o valor absoluto da verdade, e confronta tudo o que está
dito. Como se pode encontrar nos textos de Eça: uma versão avessa da realidade, a partir do
poder como é concebido pelo senso geral. Em vez de reafirmar essa versão, ele a deforma,
direcionando seu olhar crítico e redescobrindo o status quo de forma dialética.
Continuando seu instrutivo passeio, como o narrador considera, Ricardo Reis passa
rapidamente pela estátua de Camões, e depois encontra outros monumentos: o largo e a igreja
de São Roque, dentro da qual está a capela de São João Batista, que se trata de uma
encomenda, como a do convento de Mafra, o que é lembrado pelo narrador, que ironiza sobre
D. João V chamando-o de “rei pedreiro e arquiteto por excelência”, já que foi ele quem
encomendou a capela e o convento mencionados, além do aqueduto das Águas Livres. Essas e
as próximas obras mencionadas são o outro lado da petrificação: ela serve tanto para assimilar
um elemento à ordem, quanto para imortalizar e enaltecer os representantes do poder. E assim
o próximo monumento é chamado de “marmórea memória”, a petrificação em mármore, um
mineral bastante nobre; aqui a referência é a estátua de D. Luis, encomendada por sua mulher,
D. Maria Pia de Saboia. O passeio de Ricardo Reis por entre os monumentos se encaminha de
forma curiosa:
(...) monumento único em toda a cidade de Lisboa, que mais parece ameaçadora
palmatória ou menina-de-cinco-olhos, pelo menos é o que faz lembrar às meninas
dos asilos, de dois assustados olhos, ou sem a luz deles, mas informadas pelas
companheiras videntes, que de vez em quando aqui passam, de bibe e debaixo de
forma, arejando a catinga da camarata, ainda com as mãos escaldadas do último
castigo. Este bairro é castigo, alto de nome e situação, baixo de costumes, alternam
os ramos de louro às portas das tabernas com mulheres de meia-porta, ainda que, por
ser a hora matinal e estarem lavadas as ruas pelas grandes chuvas destes dias, se
reconheça na atmosfera uma espécie de frescura inocente, um assopro virginal,
quem tal diria em lugar de tanta perdição (...).255
A comparação entre o monumento e a palmatória parece um pretexto para mencionar
algum orfanato vizinho ao Palácio da Ajuda, onde está a estátua do rei D. Luis, na qual
Ricardo Reis, ou apenas o narrador, repara. O narrador começa a refletir sobre o retrato das
254
Ibidem, p. 58. 255
Ibidem, p. 59.
142
órfãs, umas cegas, outras, não, e a rotina de castigos a que eram submetidas. A seguir, a
caminhada de Ricardo Reis o leva a passar por uma área de prostituição, possivelmente a que
já existiu na Travessa da água da Flor. A imagem das órfãs sofridas a que se segue a imagem
das prostitutas, e a descrição delas através da “atmosfera de frescura inocente, um assopro
virginal” reintegra esses dois grupos de mulheres, fazendo parecer que as prostitutas que
Ricardo Reis vê são as órfãs que cresceram, e cujo único destino na sociedade que as
desampara é a prostituição. As prostitutas chamam a atenção por estarem espantadas com a
chuva que cai de repente: o passeio que começa adornado pelos monumentos grandiosos
acaba com essas imagens deprimentes do orfanato, dos prostíbulos, tudo inundado pela chuva,
que cai igualmente em todos os lugares. Esse passeio de Ricardo Reis, portanto, segue a
ordem esplendor-decadência, e enfatiza a convivência íntima entre civilização e barbárie
naquela sociedade.
Dentre as estátuas encontradas nas ruas de Lisboa, a mais curiosa é, possivelmente, a
do gigante Adamastor, visto que não se trata nem de arte sacra, nem de monumento a algum
personagem histórico. É que, sem dúvidas, faz parte da mitologia portuguesa. Ainda assim,
qualquer homenagem ao gigante seria despropositada, já que ele representa os obstáculos
enfrentados pela frota de Vasco da Gama em sua expedição às Índias. Trata-se de uma outra
forma de apropriação de símbolos críticos pelo poder. O gigante Adamastor é um dos
personagens d’Os Lusíadas que manifestam a crítica de Camões à viagem de Vasco da Gama
e ao expansionismo marítimo, estando, portanto, oposto ao apelo nacionalista incutido nos
outros monumentos a outros “heróis” da pátria. No entanto, pode-se dizer que a forma como a
estátua está posicionada exprime exatamente a superação do perigo que o Adamastor
representa: a estátua compõe o miradouro de Santa Catarina, de onde se tem uma ampla vista
do Tejo e do Porto de Lisboa, exatamente onde se ancoram os navios que chegam à cidade,
como chegaram as naus da expedição de Vasco da Gama, ao retornarem vitoriosos da Índia. O
143
observador dessa vista é obrigado a passar pela estátua: primeiro ele a vê de costas, ou seja,
quando ela ainda parece uma grande rocha sem forma. À medida em que avança em direção à
esplanada, pode virar o pescoço e encontra o rosto da estátua, que tem a boca aberta e uma
expressão de fúria, assim como é descrito o gigante no poema de Camões, ao se sentir
afrontado pelos navegadores. Até chegar à grade do miradouro, o observador é obrigado a se
virar de costas para a estátua, podendo contemplar a paisagem tranquilo. A posição da estátua
torna-a, portanto, irrelevante em relação à vista do Tejo, além de torna-la inofensiva, o que
anula a ameaça que representa no poema de Camões. Considerando-se que o Adamastor é que
tenta alertar os portugueses sobre as calamidades a que os portugueses estão destinados, a
petrificação do Adamastor não é apenas a imobilização desse personagem, como é, acima de
tudo, a garantia de que ele continue sendo ignorado e calado. O epicurista Ricardo Reis parece
corroborar essa constatação. Quando se muda do hotel, aluga uma unidade em um edifício, de
onde pode ver o Tejo – para que possa continuar contemplando-o da margem – e também do
miradouro e do Adamastor. Quando vê a estátua do monstro pela primeira vez, sua reação é
de completo estranhamento:
Não consegue Ricardo Reis lembrar-se se já aqui estavam estas árvores há dezasseis
anos, quando partiu para o Brasil. O que de certeza não estava era esse bloco de
pedra, toscamente desbastado, que visto assim parece um mero afloramento de
rocha, e afinal é monumento, o furioso Adamastor (...).256
A estátua nem sequer é identificada como tal, em um primeiro momento, mas, na
verdade, é tão grotesca que Ricardo Reis se espanta com aquele colosso disforme no meio da
praça. A primeira impressão que a estátua provoca é de se estar diante de uma grande rocha
bruta, quando deveria causar a impressão que causam os outros monumentos.
Da sua janela sem cortinas Ricardo Reis olhava o largo rio (...), sobre as águas
pardas deslizavam os barcos cacilheiros já de fanais acesos, ladeando os navios de
guerra, os cargueiros fundeados, e, quase a esconder-se por trás do perfil dos
telhados, uma última fragata que se recolhe à doca, (...) vendo aos poucos diluir-se a
figura contorcida do Adamastor, perder sentido a sua fúria contra a figurinha verde
que o desafia, invisível daqui e sem mais sentido do que ele.257
256
Ibidem, p. 180. 257
Ibidem, p. 211.
144
A visão que Ricardo Reis tem da estátua é uma declaração de que, apesar dos esforços
do Adamastor em, inicialmente defender os oceanos do defloramento, e em seguida, condenar
sua ousadia e avisar os exploradores sobre as consequências desse ato, ele é vencido pelos
portugueses arrogantes, que o calam no poema de Camões, e que, no presente, viram-lhe as
costas para admirar o Tejo como o lugar onde a civilização é fundada e estabelecida,
esquecendo que tudo o que o Adamastor advertira-lhes, de fato, aconteceu. A comparação
entre o Adamastor e o homenzinho que a estátua tenta sustentar é um deboche: o homenzinho
pequeno e insignificante tem mais sentido que o gigante enfurecido. O diagnóstico é trágico: a
fúria do Adamastor perde seu sentido e isso é ainda mais flagrante quando ele é transformado
em pedra, o golpe final para a sua derrota: “(...) aqui está o Adamastor que não consegue
arrancar-se ao mármore onde o prenderam engano e decepção, convertida em penedo a carne
e o osso, petrificada a língua (...).258
A estátua do gigante é “o Adamastor bramindo em
silêncio”259
: “Era o único ser vivo no Alto de Santa Catarina, com o Adamastor já não se
podia contar, estava concluída a sua petrificação, a garganta que ia gritar não gritará, a cara
mete horror olhá-la.”260
Até a conclusão do romance, o “grito contido”261
ainda não consegue desabafar-se:
Ricardo Reis decide ir para o mundo dos mortos com Fernando Pessoa, e “o Adamastor não
se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito”262
. Não há
dúvidas de que um dos grandes lamentos presentes no romance é pelo Adamastor nunca ter
sido escutado: nem quando é silenciado pelos homens que tenta alertar, n’Os Lusíadas; nem
depois, quando seu grito permanece abafado, ao longo dos três séculos seguintes; nem depois,
no século XX, quando o Estado o emudece e petrifica em forma de monumento; e nem após a
258
Ibidem, p. 302. 259
Ibidem, p. 219. 260
Ibidem, p. 421. 261
A expressão foi retirada da música composta por Chico Buarque, que fala sobre a ditadura militar no Brasil,
marcada pelo intenso autoritarismo e pela severa censura à opinião pública, aos artistas e aos meios de
comunicação. (BUARQUE, Chico. Chico Buarque. Rio de Janeiro: Philips, 1978.) 262
SARAMAGO, 2003, p. 428.
145
morte de Ricardo Reis, até 1984, quando o romance é escrito, e “a terra espera”, ou seja, a
crise que o gigante tenta prenunciar e que jamais foi superada, e que poderia ter sido evitada,
pelo aviso do Adamastor, ou pelos avisos da própria história. Sendo assim, o monumento ao
Adamastor, como se pode observar pela narrativa, é mais uma conversão do gigante em
derrotado pelos interessados em seu silêncio, do que propriamente uma homenagem. Já com
seu criador, Luís de Camões, o tratamento é diferente: seu discurso é distorcido, ou
descaracterizado através da apresentação de uma interpretação dominante d’Os Lusíadas, e
que se ampara apenas no caráter ufanista do poema. Assim, o poeta se torna um estandarte do
Estado e do regime salazarista:
À tarde, ao regressar do almoço, reparou que havia ramos de flores nos degraus da
estátua de Camões, homenagem das associações patriotas ao épico, ao cantor
sublime das virtudes da raça, para que se entenda bem que não temos mais que ver
com a apagada e vil tristeza de que padecíamos no século dezasseis, hoje somos um
povo muito contente, acredite, logo à noite acenderemos aqui na praça uns
projetores, o senhor Camões terá toda a sua figura iluminada, que digo eu,
transfigurada pelo deslumbrante esplendor, bem sabemos que é cego do olho direto,
deixe lá, ainda lhe ficou o esquerdo para nos ver, se achar que a luz é forte de mais
para si, diga, não nos custa nada baixa-la até à penumbra, à escuridão total, às trevas
originais, já estamos habituados.263
Considerando-se as palavras simuladas pelo narrador, como se fosse o povo português
manifestando o nacionalismo estimulado pela propaganda do governo, é possível notar com
clareza que Camões está convertido em símbolo da pátria, e também, para agravar a condição
do poeta, do orgulho da raça, sentimento bastante relevante nas ideologias fascistas daquele
período. O auge da apropriação de Camões é a citação de um verso d’Os Lusíadas em um
panfleto da propaganda. Na imagem, Salazar está vestido com trajes de cavaleiro medieval,
com espada e escudo onde transcreve-se “Tudo pela nação, nada contra a nação.” Em cima,
no canto esquerdo, Salazar recebe o epíteto de “Salvador da Pátria”, e na base da figura está o
verso camoniano “Ditosa pátria que tais filhos tem”, que, fora de seu contexto, eleva o povo
português a uma categoria correspondente à supremacia do país, demonstrando, portanto, o
mesmo orgulho racial que cria a supremacia ariana e em que o nazismo se ampara. E sobre a
263
Ibidem, p. 359.
146
frase citada, ou seja, acima dos filhos da ditosa pátria, está Salazar como o grande imperador,
o Dom Sebastião ou Messias português, o maior dos heróis nacionais, praticamente uma
entidade supra-humana.
3.4. ESTADO DE EXCEÇÃO
O ano da morte de Ricardo Reis é um romance ficcional, mas cujos tempo e espaço
são construídos com base em fatos e elementos históricos. E, mesmo que esses elementos
sejam históricos – e não se pretende apresenta-los de outra forma – no romance eles assumem
uma outra dimensão, já que compõem a margem do Tejo, isto é, o lugar que, para Ricardo
Reis, representa o exterior à realidade. Conforme podemos ler na ode 315, a premissa é de se
observar o movimento do rio da margem, sem entrar nele, o que corresponde à maneira como
Ricardo Reis lida com a realidade: ela deve ser evitada, e observada à distância, para que não
se envolva com ela e não sofra. Enquanto o rio representa o mundo, a margem do rio
representa, para Ricardo Reis, a exceção do mundo. No romance, o rio da ode é identificado
com o Tejo – o mundo português – que o protagonista está sempre procurando ter à vista, para
admirar à distância e evitar o envolvimento com a realidade. No entanto, é na margem do
Tejo exatamente o lugar em que ele tem contato com a realidade, a margem deixa de ser
exceção para se tornar a regra. No romance, o rio assume mais a metáfora do passado,
enquanto a margem do Tejo é a metáfora do presente, em que Ricardo Reis acaba submerso,
como se tivesse mergulhado no rio.
A margem do Tejo também é o lugar que se encontra sob estado de exceção, uma
condição moderna, mas que reproduz tantas incidências do passado, como o imperialismo, a
dominação cristã, a guerra, a violência. O lugar a que Ricardo Reis é levado, inicialmente, é
um refúgio a esse que está sempre tentando distanciar-se da realidade. Quando Ricardo Reis
sai do Brasil, deixa um momento conturbado acreditando estar substituindo-o por um país
147
estável – que é o que a propaganda governista anuncia sobre Portugal. Ou seja, em vez de
encontrar um lugar de fuga, que seja exceção naquele mundo bárbaro de 1936, ele encontra
mais uma parte do mundo, da regra geral.
É inevitável fazer uma associação com o conceito de estado de exceção formulado por
Walter Benjamin. A margem do rio não mais como margem, mas como lugar onde corre a
realidade; não mais como exceção, mas como regra geral; é a imagem do mundo que
Benjamin identifica no momento histórico que ele vive – o do nazismo.
A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” no qual vivemos é a
regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá
diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso,
nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor. A chance deste consiste,
não por último, em que seus adversários o afrontem em nome do progresso como se
este fosse uma norma histórica. – O espanto em constatar que os acontecimentos que
vivemos “ainda” sejam possíveis no século XX não é nenhum espanto filosófico. Ele
não está no início de um conhecimento, a menos que seja o de demonstrar que a
representação da história donde provém aquele espanto é insustentável.264
O verdadeiro estado de exceção é, para Benjamin, a sociedade sem classes, o
verdadeiro progresso. É um mundo utópico que ele vislumbra como resultado da revolução e
da destruição da história “homogênea e vazia”, que se reproduz, século após século, por um
continuum ininterrupto. Por isso, ele entende que a realidade é um estado de exceção que, na
verdade, é a regra geral, já que não se observa jamais uma lacuna na história da humanidade
que seja diferente da reincidente barbárie. Por isso, não é possível encontrar “margens do rio”,
fissuras, exceções na realidade presente, e o que Ricardo Reis encontra na margem do Tejo é
própria realidade correndo, não no rio, mas na vida comum, em cada pequeno universo
particular. A margem, aqui, é, como já foi observado, o fundo do rio, a terra submersa na
realidade. É a exceção que virou regra. E a plateia, como veremos a seguir, se torna o próprio
espetáculo; o espectador, de tão íntimo com a trama, passa a ator.
264
BENJAMIN, Water. “Tese VIII”. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das
teses “Sobre o conceito de história”. Trad, Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 83.
148
4. RICARDO REIS DE SARAMAGO: DA PLATEIA AO PALCO.
É um livro sobre a solidão (...).
(...) Se este livro tivessse que levar um subtítulo poderia
ser “Contribuição para o diagnóstico da doença portuguesa”.
José Saramago265
4.1. DAS ODES PARA O ROMANCE
Neste capítulo, centralizo a análise do romance no protagonista criado por Saramago.
Demonstro que o enredo se desenvolve a partir da transformação do alheio Ricardo Reis ao
perturbado Ricardo Reis; ou seja, este que se põe na plateia do espetáculo do mundo acaba se
vendo diretamente no palco onde o espetáculo se exibe. Para iniciar a análise desse processo
de desencantamento do personagem, cabe perceber que não apenas alguns elementos das odes
de Ricardo Reis são trazidos também para o romance, como também demonstrar que, nele,
esses elementos são convertidos em fatores que contribuem com a transformação de Ricardo
Reis.
4.2. DAS ODES PARA A CRISE
Não é apenas Ricardo Reis que Saramago transforma em personagem de romance e
conduz de volta ao Portugal de 1936: duas musas que ocupam o lugar de interlocutoras em
suas odes, Lídia e Marcenda, estão presentes no romance, porém, diferentes da forma como
são representadas nas odes. Lá, as musas são elaboradas conforme os moldes clássicos, ou,
mais propriamente, classicistas. Nas odes, não se encontra apenas um objeto de desejo, apenas
uma única musa; nas odes, elas são várias, assim como o sujeito poético se declara sobre si, o
que segue corresponde ao seu desejo de não se comprometer: sua vivência amorosa é a de
transitar de uma amada para outra, sem ter ponto fixo. Fora isso, as musas não são amantes
265
AGUILERA, Fernando Gómez. José Saramago: A consistência dos sonhos. Cronobiografia. Trad. Antônio
Gonçalvez. Lisboa: Editorial Caminho, 2008. p. 98.
149
que fazem mais do que estar presente e ouvir o conteúdo das odes; elas limitam-se a
permanecer mudas, passivas e apáticas. Não há louvores a elas, como se observa nas cantigas
de amor trovadorescas, por exemplo. E também não são heroínas, como as românticas. São
figuras paralisadas, a quem Ricardo Reis pede que dê-lhe a mão para em seguida dizer que
desenlacem as mãos, enquanto ele observa da margem o correr do rio. Como o próprio
narrador de O ano da morte de Ricardo Reis explica, “não são mulheres verdadeiras, mas
abstrações líricas, pretextos”, a quem não se dá voz, “às musas não se pede que falem, apenas
que sejam”266
. No romance, entretanto, Lídia é radicalmente diferente. É criada do hotel onde
Ricardo Reis se hospeda nos primeiros meses depois que retorna a Lisboa, o que a diferencia
do modelo feminino da literatura clássica: está longe do padrão da perfeição e da pureza da
musa; pertence à classe proletária e excluída, que Ricardo Reis jamais representaria em suas
odes, tem um comportamento que não se encaixa na etiqueta aristocrática, além de ser o foco
central de todo o plano sensual que há no romance. Ela não é a musa intocada:
(...) então Lídia entra, segura ainda a toalha à sua frente, com ela se esconde, (...)
mas deixa-a cair ao chão quando se aproxima da cama, enfim aparece corajosamente
nua, hoje é dia de não ter frio, dentro e fora o seu corpo arde (...).267
Com ela Ricardo Reis tem uma relação ilegítima e exclusivamente sexual, o que desperta a
vigilância e o julgamento de terceiros. A Lídia de Saramago não é passiva como a da margem
do rio: ao contrário, ela é um forte vínculo de Ricardo Reis com o mundo, ela o faz mergulhar
no rio, já que é a ponte entre ele e o real ignorado pelos jornais, e o movimento subversivo, do
qual o irmão dela, o marinheiro Daniel, faz parte. Além disso, Lídia tem um espírito
questionador, que a leva a desenvolver conversas e reflexões que Ricardo Reis não espera de
uma criada, deixando-o sempre com a sensação de “fosse isto um duelo de espada e estaria
Ricardo Reis sangrando”268
Ela é articulada, mesmo não tendo sido favorecida e instruída
como Ricardo Reis: “singular rapariga essa Lídia, diz as coisas mais simples e parece que as
266
SARAMAGO, 2003, p. 302. 267
Ibidem, p. 257. 268
Ibidem, p. 172.
150
diz como se apenas mostrasse a pele doutras profundas que não pode ou não quer
pronunciar.”269
Por fim, é com Lídia que Ricardo Reis cria o maior laço com o mundo: ela
fica grávida dele e não tem intenção de interromper a gravidez. Um filho significa a maior
materialização de um relacionamento entre duas pessoas, além de representar um vínculo
irrevogável entre elas. Além disso, um filho é a herança que se deixa para o mundo, ou a
continuidade dos seus pais. É importante lembrar também da ousadia que representava, em
1936, ser mãe solteira em um país conservador, católico, moralista e patriarcal; isso serve para
acentuar a diferença entre a Lídia das odes e a Lídia de Saramago, que não se atém a
parâmetros morais, ao contrário, despreza-os. Isso fica evidente quando é alvo do julgamento
das vizinhas de Ricardo Reis: “Lídia sente-se feliz, mulher que com tanto gosto se deita não
tem ouvidos, que as vozes maldigam sobre os saguões e quintais, a ela não lhe podem tocar,
nem os maus-olhados, quando na escada encontrar as vizinhas virtuosas e hipócritas.”270
A outra musa retirada das odes é Marcenda, e é completamente oposta a Lídia, apesar
de também se distanciar da representada na ode. Em primeiro lugar, é da mesma classe social
de Ricardo Reis, e por isso serve como uma espécie de lente de aumento para Ricardo Reis,
que permite que ele tenha uma visão menos embaçada sobre seus semelhantes e sobre si
próprio. Marcenda é filha do Dr. Sampaio, um típico representante da direita e da classe
dirigente. Os dois juntos constituem a representação do conceito tradicional de família, isto é,
o conceito devassado de família: o paradigma ao qual todo cidadão deve estar submisso,
vivendo para ele, como propriedade dele. “Marcenda ao lado do pai (...) de modo retraído,
discreto, de quem está em segundo lugar, são rigorosos desta maneira os preceitos da boa
educação.”271
Marcenda apresenta uma curiosa anomalia – sua mão esquerda é paralisada
desde que sua mãe morreu – para a qual seu pai insiste que ela experimente todos os
tratamentos possíveis, sem resultados. Mas, na verdade, a certa altura, revela-se que os
269
Ibidem, p. 309. 270
Ibidem, p. 308. 271
Ibidem, p. 101.
151
tratamentos de Marcenda são meros pretextos para que pai e filha estejam sempre vindo de
Coimbra para Lisboa, onde o Dr. Sampaio mantém em segredo uma relação com uma amante.
Por isso, na verdade, Marcenda serve de joguete para disfarce da vida sexual do pai,
correspondendo, portanto, ao modelo tradicional de família: casamentos e relações por
conveniência, enquanto em paralelo seus membros vivem suas vidas duplas sob ausência de
regras e padrões: “Tenho 23 anos, sou solteira, fui educada para calar certas coisas, ainda que
as pense.”272
Além disso, outro aspecto a se considerar sobre Marcenda é que ela é a versão
feminina de Ricardo Reis, pela paralisia e apatia. A tristeza de Marcenda é mais evidente e
óbvia, porque tem origem pontual, na morte da mãe, na deficiência física e no comportamento
do pai, mas de qualquer forma é o elementos que faz de Marcenda o espelho de Ricardo Reis.
(...) pensou em Marcenda, disse mesmo o nome dela em voz baixa, e ficou a
observar-se atentamente (...). Lembrou-se do alvoroço adolescente com que a olhara
pela primeira vez, então a si mesmo insinuou que o moviam simpatia e compaixão
por aquela pungente enfermidade, a mãozinha caída, o rosto pálido e triste, e depois
aconteceu aquele longo diálogo diante do espelho, árvore do conhecimento do bem e
do mal, não tem nada que aprender, basta olhar (...).273
Sua atração por ela é, na verdade, a atração por si mesmo. Marcenda, como ele, é apática e
inerte:
Ricardo Reis debruçando-se, estendeu as mãos para Marcenda, perguntou, Posso, ela
inclinou-se também um pouco para a frente e, continuando a segurar a mão esquerda
com a mão direita, colocou-a entre as mãos dele, com uma ave doente, asa quebrada,
chumbo cravado no peito. Devagar, aplicando uma pressão suave mas firme, ele
percorreu com os dedos toda a mão dela, até o pulso, sentindo pela primeira vez na
vida o que é um abandono total, a ausência duma reação voluntária ou instintiva,
uma entrega sem defesa, pior ainda, um corpo estranho que não pertence a esse
mundo.274
Marcenda é, como seu nome adianta, como uma flor cortada do caule e cujo único
destino é murchar. Ela é “morte antecipada”275
. Sobre ela Ricardo Reis dá o diagnóstico como
médico, mas parece falar de si mesmo:
Tem algum conselho a dar-me, uma ideia que me cure, um remédio, um tratamento,
Já lhe disse que não sou especialista, e a Marcenda, tanto quanto posso julgar, se
está doente do coração, também está doente de si mesma, É a primeira vez que mo
272
Ibidem, p. 126. 273
Ibidem, p. 174. 274
Ibidem, p. 213-124. 275
Ibidem, p. 166.
152
dizem, Todos nós sofremos duma doença, duma doença básica, digamos assim, esta
que é inseparável do que somos e que, duma certa maneira, faz aquilo que somos, se
não seria mais exato dizer que cada um de nós é a sua doença, por causa dela somos
tão pouco, também por causa dela conseguimos ser tanto (...).276
Enquanto Lídia é um ponto de contato com o mundo, Marcenda é um ponto de contato
consigo mesmo. No entanto, ambas têm algo em comum: longe de serem as musas passivas
das odes, que apenas servem para a interlocução poética, sem falar, apenas sendo, no
romance, são elas que definem sua relação com Ricardo Reis. Lídia é aberta e calorosa, até
que se cansa de ser apenas uma mulher com quem Ricardo Reis tem encontros casuais e em
segredo, e abandona Ricardo Reis, mesmo carregando um filho dele. Marcenda é evasiva,
nada calorosa: e é ela quem decide quando e onde eles se encontram, até que decide por
encerrar essa relação que nunca de fato se iniciou, recusando até mesmo a proposta de
casamento que Ricardo Reis lhe faz. Enquanto nas odes as musas são como títeres, entre as
quais Ricardo Reis oscila, errando entre uma e outra, dessa vez, são elas que têm a palavra
final. No romance, Ricardo Reis é rejeitador e abandonado por elas, sofrendo a decepção que
vem procurando evitar através da sua postura descomprometida.
Nota-se no romance mais dois personagens retirados das odes: os velhos jogadores de
xadrez do Alto de Santa Catarina. Na ode, os jogadores são símbolos da indiferença, a qual
nem a guerra iminente consegue abalar. São como duplos de Ricardo Reis, ou dois dos vários
que nele vive, atentos apenas ao tabuleiro de xadrez, esperando calmamente pela morte,
destino final a que ninguém pode escapar, e que virá de qualquer jeito seja pela guerra, seja
pelo tempo. No romance, os jogadores são mais próximos da realidade, contribuindo com o
processo de desencantamento de Ricardo Reis. São dois velhos ociosos: um é analfabeto, para
o qual o outro lê as notícias do jornal que não pode comprar. São tão alienados quanto os dois
da ode, exceto pelo fato de que estes são, como Ricardo Reis, alienados por opção, enquanto
aqueles são condicionados à alienação por forças exteriores e mais fortes. Os velhos são o
276
Ibidem, p. 126.
153
retrato da população portuguesa: pouco instruídos, abandonados pelo Estado, desfavorecidos
econômica, social e culturalmente. A alienação dos velhos também é consequência do vazio
de suas vidas: “sentados no mesmo banco, calados, (...) talvez andem só a ver quem morrerá
primeiro.”277
O vazio também se expressa pela forma como eles pensam ou reagem diante dos
acontecimentos: é aquela alienação que não se escolhe, mas de que se sofre: “Os velhos lêem
o jornal, já sabemos que um deles é analfabeto, por isso mais abundante em comentários,
exprime opiniões, é que não tem outra maneira de equilibrar esta balança, se um sabe, o outro
explica.”278
Assim como Marcenda e Lídia, os velhos são parte do mundo de que Ricardo
Reis quer se manter distante, mas acabam atingindo-o de forma que ele não possa evitar se
comover e se envolver.
4.3. O NARCISO INVERTIDO
Já no início do romance é possível saber que o personagem apresentado é um homem
que pertence à classe dominante. Ele viaja até Lisboa na primeira classe do navio Highland
Brigade; ao desembarcar, é auxiliado por um bagageiro cujas descrições físicas não estão
muito distantes das do próprio Ricardo Reis, que é “um homem grisalho e seco de carnes”279
,
enquanto o outro é “seco de carnes, grisalho, e moreno, e de cara rapada”280
. São dois homens
fisicamente semelhantes, provavelmente têm mais ou menos a mesma idade, no entanto, “tão
diferentes, passageiro um, bagageiro outro”. Mesmo tendo idades aproximadas, e
possivelmente mesma força física está estabelecido que um deve carregar as bagagens, por
necessidade da gorjeta, enquanto o outro está na posição de quem é servido, porque tem
gorjeta para dar. Assim se cumpre essa relação entre aquele que serve e aquele que é servido:
o bagageiro carrega “a mala grande num carrinho metálico, as duas outras, pequenas em
277
Ibidem, p. 180. 278
Ibidem, p. 355. 279
SARAMAGO, 2003, p.11. 280
Ibidem, p. 11.
154
comparação, suspendeu-as do pescoço com uma correia que passa pela nuca, como um jugo
ou colar de ordem”. O próprio narrador destaca a condição desse homem como subjugado,
porque descreve uma simples cena, de um homem suspendendo uma mala pela alça que passa
pelo pescoço, relacionando essa imagem a de um boi de carga, que se atrela pelo jugo ou colar
de ordem ao carro que tem que puxar. Além da imagem do “homem de carga”, há a referência
ao jugo, que é tanto o objeto que prende o boi quanto a própria condição de estar subjugado.
O bagageiro representa, portanto, a exclusão social pelo subemprego e pela opressão. O fator
que coroa a definição dos lugares ocupados por Ricardo Reis e pelo bagageiro é a espera da
gorjeta e a sua narração: “dez xelins, moeda que mais do que o sol brilhava, enfim logrou o
astro-rei vencer as nuvens que sobre Lisboa pesavam”281
. O xelim é, então, a moeda da
Inglaterra, uma monarquia, o que justifica ainda mais a aproximação ao sol, aqui referido
como “astro-rei”. Ricardo Reis é monarquista e aristocrata, e recompensa com dez xelins o
serviço do bagageiro; este é marcado pelo jugo, e aquele é marcado pela moeda da monarquia,
cujo brilho dourado é exaltado como o sol que vence um céu carregado de nuvens cinzas.
Essa entronização do portador da riqueza é irônica e serve, sobretudo, para revelar a
indiferença de Ricardo Reis em relação ao bagageiro, a quem paga com dinheiro inglês em
um país onde a moeda nacional está cada vez mais desvalorizada. É também o país que, até
então, sofreu por séculos a intervenção britânica, tendo que ceder às exigências daquela
monarquia para garantir a posse das colônias na África.
Esse que acaba de retornar a seu país natal é levado a um hotel, na frente do qual há
um café que chama a atenção de Ricardo Reis por ter o nome de “Royal”, e Ricardo Reis não
sabe se deve pronunciar “rôial” ou ruiale”, demonstrando estar ciente da falta de identidade
nacional, o que é resultado da falta de autonomia de Portugal no contexto internacional. Em
francês, português ou espanhol, aparentemente, o nome do café atrai Ricardo Reis por sua
281
Ibidem, p. 12.
155
referência à realeza, com a qual ele se identifica, tanto por ser monarquista, quanto por ser de
origem aristocrática. Por esse motivo dá-se o incômodo pela presença dos pescadores no
teatro, no episódio já comentado, em que Ricardo Reis vai assistir à peça “Tá mar”. Mesmo
que esteja assistindo um espetáculo inspirado em pessoas reais, enquanto isso se mantém no
âmbito da ficção, é tolerável; no entanto, ocupar o mesmo espaço físico que aquelas pessoas,
que não fazem parte da realidade de Ricardo Reis, pelas questões sociais, provocam nele essas
reações típicas do preconceito de classe. Exposto a essa situação, Ricardo Reis manifesta
cruamente essa mentalidade soberba, discriminatória e pequena cultivada pela lógica cultural.
A divisão entre as classes é um fator de manutenção da ordem estabelecida a partir do subjugo
de um homem a outro, de um grupo a outro; sem isso, a classe dominante não é a classe
dominante, e não está protegida por seus privilégios. A reação de Ricardo Reis, que se
contraria com a ideia de ver homens do povo frequentando o mesmo ambiente que as pessoas
de sua classe, de dividir o mesmo espaço com pescadores pobres e esfarrapados é a reação
pela aproximação a eles, como se houvesse o risco de se suspenderem – mesmo que
momentaneamente – as barreiras que diferenciam aqueles que dominam daqueles que são
dominados, os que são servidos dos que servem, os vencedores dos vencidos. A classe social
também distingue Ricardo Rei quando ele está em Fátima, em meio a uma multidão miserável
e histérica, que abre passagem cedendo-lhe o lugar e a vez, apenas por reconhece-lo como
senhor doutor, respeitando uma hierarquia conhecida e aceita.
Haverá uma outra circunstância que colocará Ricardo Reis em contato direto com a
classe desfavorecida, que é através de seu envolvimento com a criada do hotel, Lídia. Eles
vivem uma relação que se resume aos seus encontros sexuais intermediados pelos favores de
Lídia, que tratará esse hóspede de forma diferenciada, cuidando dele quando estiver doente, e
mais à frente, cuidando da limpeza de sua casa. Essa relação será melhor analisada
posteriormente, quando Lídia e Marcenda – a outra personagem que se envolve com Ricardo
156
Reis – serão confrontadas com as musas com as quais Ricardo Reis conversa nas odes. Por
enquanto, o estudo permanece detido na forma como Ricardo Reis lida com a condição
subalterna de Lídia. Inicialmente, ele repara nela, esta que o chama sempre de “senhor
doutor”, assim como todos os outros funcionários do hotel, enquanto ele a trata apenas por
“Lídia, sem senhoria, mas sendo homem de educação, não a trata por tu, e pede, Faça-me isso,
Traga-me aquilo”, mesmo que use de tratamento supostamente respeitoso, o princípio de
Ricardo Reis é exclusivamente obedecer à regra de comportamento segundo a qual os
empregados são como estranhos, portanto, não são tratados por “tu”, o que sugere intimidade;
além disso, eles não podem ser tratados com senhoria, porque são apenas empregados, sem
títulos. Mas o principal a se observar nessa forma de tratamento é que Ricardo Reis se dirige a
Lídia apenas para dar ordens, mesmo que use de cortesia e polidez, o que não corresponde ao
reconhecimento de Lídia como um ser humano, mas como uma subalterna. Essa observação
caracteriza a educação recebida por Ricardo Reis mais por um ordenamento regedor do que
por esclarecimento. Ou seja, a formação dirigida aos indivíduos da classe de Ricardo Reis tem
como objetivo prepará-los para a vida em sociedade, mas, sobretudo, ensinar a classe
dominante a ser dominante. Por isso, Ricardo Reis naturalmente repara em Lídia, vê que “tem
quê, os seus trinta anos, é uma mulher feita e bem feita, morena portuguesa, mais para o baixo
que para o alto”, mas rapidamente se censura por admirar uma criada:
(...) e como a cabeça de Lídia estava em posição favorável Ricardo Reis notou o
sinal que ela tinha perto da asa do nariz, Fica-lhe bem, pensou, depois não soube de
ainda estava a referir-se ao sinal, ou ao avental branco, ou ao adorno engomado da
cabeça, ou ao debrum bordado que lhe cingia o pescoço, sim, já pode levar a
bandeja.282
Quando Ricardo Reis cede à atração por Lídia, novamente é tomado pela ideia de diferenciá-
la dele: “Ricardo Reis nesse momento se recrimina acidamente por ter cedido a uma fraqueza
estúpida, Incrível o que eu fiz, uma criada.”283
282
Ibidem, p. 83. 283
Ibidem, p. 86.
157
Não só a consciência aristocrática foi ensinada a ele, como também os hábitos típicos
de um homem civilizado. O Ricardo Reis convertido em protagonista de romance tem esses
traços culturais mais marcados que o autor das odes: é bastante apegado a costumes, hábitos
de higiene, asseio e apuro, regras de conduta, práticas de boas maneiras e formalidades. A
dependência a esses códigos aparece quando Ricardo Reis está na recepção do hotel Bragança
perguntando se há quarto vago, enquanto o taxista o aguarda. Por um instante, Ricardo Reis é
abatido pela hipótese de o taxista ir embora levando sua bagagem, que contém seus objetos
pessoais e imprescindíveis para a conservação de seus hábitos cotidianos, “se a si mesmo
perguntou como viveria se o privassem desses e todos os outros bens”284
, quando por “bens”
se entende tudo aquilo que a ele é agregado com o fim de se definir sua identidade, sejam seus
pequenos objetos, seus documentos, assim como suas riquezas. Indo além, a bagagem de um
homem é o acúmulo de bens culturais que identificam esse homem, que determinam sua
identidade, origem e papel social e histórico. Na bagagem se guardam os elementos em que o
indivíduo se assegura, se afirma e se assenta.
Os códigos e valores a que Ricardo Reis está apegado também o orientam sobre como
deve tratar os seus semelhantes, ou seja, os outros membros da classe dominante. No hotel
Bragança, Ricardo Reis conhecerá o doutor Sampaio e sua filha Marcenda. Convidado pelo
doutor Sampaio a acompanhar a ele e sua filha para jantarem, Ricardo Reis irá chamá-los no
horário combinado, mas lembra-se de que deve tocar a campainha para chamar o doutor,
porque “seria muito indelicado chamar primeiro Marcenda”285
. Com pudor semelhante,
também policia os próprios pensamentos, como quando pensa sobre Marcenda ser ou não
virgem:
Ricardo Reis demora-se ainda um pouco, liga a telefonia na altura em que estão a
transmitir A Lagoa Adormecida, são acasos, só num romance se aproveitaria esta
coincidência para estabelecer forçados paralelos entre uma laguna silenciosa e uma
rapariga virgem, que o é e ainda não tinha sido dito, e como o seria se ela o não
284
Ibidem, p. 14. 285
Ibidem, p. 132.
158
proclama, são questões muito reservadas, até mesmo um noivo, se o vier a ter, não
ousará perguntar-lhe, És virgem, neste meio social, por enquanto, parte-se do
princípio de que sim é virgem, mais tarde se verá, na ocasião própria, com escândalo
se afinal não era.286
Ricardo Reis é rigorosamente comprometido com sua rotina. É tão pontual que o
narrador chega a declarar: “este homem é a pontualidade em pessoa”287
. A leitura dos jornais
a cada manhã também é um compromisso; sendo que, e cabe ressaltar, a forma como lê é
mecanizada, sem se permitir grandes reflexões sobre o que lê. Os cuidados com a aparência,
com a barba, com as roupas, com a higiene também são exigências: “Mudou de calças e
casaco, não podia esquecer-se de dizer a Lídia que lhos passasse a ferro”288
. E, mais à frente,
vê-se que, além do hábito, há algo mais que motiva o rigor com o asseio: “vai Ricardo Reis
barbear-se e lavar-se, é um homem vulgar, enquanto se barbeia não pensa, dá apenas atenção
ao deslizar da navalha”289
. Suas ações são sempre bem calculadas:
(...) Ricardo Reis desdobrava e abria as folhas de jornal, segurando-as
cuidadosamente pelas margens brancas para não manchar os dedos, levantando-as
para não sujar a dobra do lençol, são pequenos gestos maníacos que conscientemente
cultiva como quem se rodeia de balizas, de pontos de referências, de fronteiras.290
E calcula metodicamente seus movimentos para não perder o controle de como os
outros o veem:
Está-se muito bem aqui, ao quente, aflige-o a vulgaridade da expressão, mas mesmo
assim, não se decide, não volta a sentar-se, não voltará por enquanto, se se for já
sentar ela pensará que ele quer estar sozinho, se esperar que ela suba ao quarto teme
que ela julgue que ele saiu depois, o movimento tem de ser feito no tempo exacto
para que Marcenda não seja levada a pensar que ele se foi sentar para esperar por
ela.291
A certa altura, será dito que Ricardo Reis já “afirmou detestar a inexatidão”292
; ela não
se encaixa em seu rígido e controlado modo de viver, por necessitar das mencionadas balizas.
É com essa organização e submissão aos códigos que ele consegue ter controle – ou a ideia de
controlar sua vida. A inexatidão é trabalhosa e desorienta. Fazer a barba mantém a aparência
286
Ibidem, p. 130. 287
Ibidem, p. 188. 288
Ibidem, p. 100. 289
Ibidem, p. 289. 290
Ibidem, p. 289. 291
Ibidem, p. 120-121. 292
Ibidem, p. 16.
159
conforme os padrões, além de assegurar que não precise pensar, e pensar pode trazer
perturbações. Todo esse conjunto de hábitos, princípios e códigos são artifícios de que
Ricardo Reis se serve para se proteger, evitando oscilações e variações que podem confundir
ou desorienta-lo; ou agitar a superfície da água em que ele boia seguro. Se é possível fazer um
paralelo entre a ordem que estabelece para a sua vida e a prática de colecionar, vem a calhar o
comentário do narrador de Todos os nomes293
sobre o protagonista, Sr. José, que mantém uma
coleção de notícias sobre celebridades:
Pessoas assim, como este Sr. José, em toda a parte as encontramos, ocupam o seu
tempo (...) a juntar (...), provavelmente fazem-no por algo a que poderíamos chamar
angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a ideia do caos como
regedor único do universo, por isso, com as suas fracas forças e sem ajuda divina,
vão tentando pôr alguma ordem no mundo, por um pouco de tempo ainda o
conseguem, mas só enquanto puderem defender a sua coleção, porque quando chega
o dia de ela se dispersar, e sempre chega esse dia, ou seja por morte ou seja por
fadiga do colecionador, tudo volta ao princípio, tudo torna a confundir-se.294
É quase inevitável, a partir dessa dicotomia ordem/caos, lembrar da cena, naquele
mesmo romance, em que o pastor que cuida da parte do cemitério onde estão sepultados os
suicidas troca os números das tumbas, numa tentativa de manter inacessíveis os que optam
por morrer, num impulso desesperado de se livrarem da prisão que é a vida, mantendo-os,
portanto, na paz da desordem. E, por se tratar também de um pastor, remonta-se ao Diabo de
O evangelho segundo Jesus Cristo295
, que é o pastor que não rebanha, nem para guiar as
ovelhas, nem para cuidá-las até que estejam prontas para o corte da lã, ou para o abate, mas
simplesmente por motivo nenhum, ou apenas para matar aquelas que já se encontram na hora
derradeira. Este é um pastor por acaso, não por finalidade. Esse é, assim como aquele do
cemitério, o pastor que desordena:
Foste tu que compraste a primeira ovelha e a primeira cabra, Não, Quem foi, então,
Encontrei-as, não sei se foram compradas, e já eram rebanho quando as encontrei,
Deram-tas, Ninguém mas deu, eu encontrei-as, elas encontraram-me, Então és o
dono, Não sou o dono, nada do que existe no mundo me pertence (...).296
293
SARAMAGO, José. Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 294
Ibidem, p. 23-24. 295
SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 296
Ibidem, p. 230.
160
O pastor do cemitério representa uma força subversiva que tenta escapar da ordem
burocrática, que na verdade se converte em desordem, por violar a vida privada em prol da
esfera pública, submeter aquela aos domínios desta; a coleção do Sr. José é uma resposta
quase involuntária a isso, é o desejo de recuperar o que a vida social lhe roubou. O Diabo, em
paralelo, é símbolo da desordem, em oposição à ordem cuja criação é atribuída a Deus. O
pragmatismo de Ricardo Reis é sua reação à incerteza da vida. Ele tenta se proteger de estar
tão vulnerável, para criar uma ilusão de estabilidade, certeza e segurança que a lógica do
mundo afasta da vida real. Os hábitos metódicos têm como propósito garantir que ele esteja a
salvo em uma zona de segurança simulada. Mas, assim com o Sr. José, ele recorre à
ordenação, que corresponde ao mesmo artifício da ordem que o subjuga, portanto, ele retorna
à condição de subjugado reproduzindo o artifício da dominação: “(...) sorriu, e eles sorriram
também, são gestos e atitudes que fazem parte dos códigos de civilização, com sua parte de
hipocrisia, outra que é da necessidade, outra que é o disfarce da angústia.”297
Não é exagerado
dizer, portanto, que a reação de Ricardo Reis à realidade que o oprime se converte em um
mascaramento inútil, que não corresponde ao que ele realmente sente, e nem o protege do
mundo. Por isso, esse Ricardo Reis traz para o romance a alienação do Ricardo Reis das odes,
já que tem essa necessidade de dissimular, tanto a si quanto aos outros e qualquer coisa que
ameace sua paz e serenidade, ou, a sua segurança. Esquecer de saber também é uma maneira
de disfarçar. É epígrafe do romance o verso de Ricardo Reis: “Sábio é o que se contenta com
o espetáculo do mundo”, que, como já foi dito, concebe a sabedoria do espectador, que
consiste em saber se manter alheio à realidade, contemplando-a com distanciamento e
indiferença. Desse modo, alienando-se do mundo, é possível contemplá-lo sem se envolver
com ele, o que evita o sofrimento.
297
SARAMAGO, 2003, p. 128.
161
Um exemplo de como Ricardo Reis aplica sua concepção de sabedoria é sua maneira
de ver a arte. No já mencionado episódio da peça em cuja plateia estão os pescadores que a
inspiram
Ricardo Reis reflecte sobre o que viu e ouviu, acha que o objetivo da arte não é a
imitação, que foi fraqueza censurável do autor escrever a peça no linguajar
nazareno, ou no que supôs ser esse linguajar, esquecido de que a realidade não
suporta o seu reflexo, rejeita-o, só uma outra realidade, qual seja, pode ser colocada
no lugar daquela que quis expressar, e, sendo diferentes entre si, mutuamente se
mostram, explicam e enumeram, a realidade como invenção que foi, a invenção
como realidade que será.298
Está claro que Ricardo Reis não erra ao notar que o que se vê na peça não corresponde
necessariamente à realidade dos pescadores, entendendo que se trata de uma composição de
cunho ideológico, visando uma falsa valorização da cultura popular e da população pobre, que
vive da pesca. Isso é menos o reflexo da realidade, do que a demagogia de um regime – ao
qual muitos artistas servem de instrumento – que quer se mostrar próximo ao povo. No
entanto, o que se segue a essa percepção lúcida, nada alienada de Ricardo Reis é a arte
concebida como o espaço em que se pensa o que será a realidade, ou seja, é o domínio das
idealizações, através do qual se imagina o que a realidade deveria ser, e não o que ela é, e essa
concepção equivale o que pode ser visto nas odes, nas quais se vislumbra uma vida próxima a
dos deuses pagãos, à margem do rio, e sem comprometimento com as musas, com o mundo
ou com qualquer coisa. Há também nesse raciocínio a ideia de que a realidade concebida na
arte se opõe à outra, o que as “revelaria, explicaria e enumeraria”, mas isso também é uma
idealização, afinal é uma aposta de que a arte esclarece e revela a realidade. Ao mesmo
tempo, vê-se aí uma contradição, já que Ricardo Reis quer estar alheio à essa realidade que a
arte revelaria, portanto, não deveria ser ele, nesse caso, um poeta. No caso do hedonista
contemplativo, Ricardo Reis não se relaciona com a arte a fim de estar em contato com o real,
e seu incômodo com o uso da linguagem dos pescadores – ou o que o autor da peça pensa ser
a linguagem dos pescadores – deixa isso evidente.
298
Ibidem, p. 106.
162
A relação do Ricardo Reis do romance com o Tejo também manifesta o mesmo desejo
de alheamento do autor das odes. Ao chegar em Lisboa, deseja um hotel que esteja perto do
rio; e, no hotel, pede um quarto com vista para o rio. Em seus passeios pela cidade, vez ou
outra vai até o cais para admirar o Tejo. E quando sai do hotel, muda-se para um prédio perto
do porto e de onde tem vista para o rio, assim como no hotel. No romance, Ricardo Reis
continua ocupando o lugar do espectador do espetáculo do mundo, simbolizado pelo rio, que
deve ser contemplado à distância, da sua margem, segundo o princípio exposto nas odes.
“Assim se alheia do mundo um homem”299
: esquiva-se de participar da corrente da vida, de
mergulhar nas águas do rio. Até mesmo a leitura do jornal, que seria uma aproximação à
realidade, é uma maneira de contemplá-la sem envolvimento e interesse: “prosseguiu a leitura
sisudamente, dando pouca atenção ao peso dos argumentos, em seu íntimo não sabia se estava
de acordo ou duvidava”300
. E assim Ricardo Reis se define: “Sou um Argos com novecentos e
noventa e nove olhos cegos.”301
A vontade de se alienar pode estar também manifesta na falta de vínculo de Ricardo
Reis, o que o faz passar meses vivendo em um quarto de hotel – “um quarto ainda alheio”302
:
(...) um quarto de hotel não é uma casa, convém lembrar outra vez, vão-lhe ficando
cheiros deste e daquela, uma suada insônia, uma noite de amor, em sobretudo
molhado, o pó dos sapatos escovados na hora da partida, e depois vêm as criadas
fazer as camas de lavado, varrer, fica também o seu próprio halo de mulheres, nada
disto se pode evitar, são os sinais da nossa humanidade.303
O quarto de hotel é impessoal, tem rastros de todos os hóspedes que por ali passaram,
o que significa que todos eles são um pouco donos dele, o que lhe tira a mínima possibilidade
de se parecer com um lar. É uma morada transitória, para quem está de passagem, “lugar
neutro, sem compromisso, de trânsito e vida suspensa”304
: é como uma estação de trem, uma
rodoviária, a pausa entre uma viagem e outra. Os locais onde Ricardo Reis se acomoda têm
299
Ibidem, p. 30. 300
Ibidem, p. 290. 301
Ibidem, p. 338. 302
Ibidem, p. 31. 303
Ibidem, p. 19. 304
Ibidem, p. 18.
163
sempre esse caráter de parada, e isso se justifica pelo fato de que viver em residência fixa
implica envolvimento tanto com a casa quanto com o lugar, o bairro, a cidade, cria-se um
laço, um afeto, uma identificação com o local; e, desta forma, não seria possível estar alheio,
nem ao mundo, nem a si: a ligação com um lugar se converte com assimilação e identidade. O
que Ricardo Reis deseja é o contrário disso, e corresponde ao significado de alhear-se.
“Alhear”305
é uma ação direcionada a um objeto que é afastado, apartado, ou desviado.
Aplicada ao caso de Ricardo Reis, significa afastar-se ou desviar-se do mundo, como se
pudesse retirar-se para outro mundo, outro espaço, outra realidade. Nesse sentido, Ricardo
Reis é o próprio objeto afastado. O alheamento também pode ser enlevo, êxtase, o sentimento
que faz o indivíduo ter a sensação de sair do corpo, de si, escapando à realidade. Isso tem
relação com o hedonismo. O alheamento se caracteriza também como uma forma de
anestesia, desfocando-se a noção do indivíduo sobre a realidade. Alhear também é sinônimo
de passar-se para o outro lado, como o objeto que é apartado ou sublimado; é estranhar-se,
como se encontra na etimologia de “alheio” (estranho, afastado, arredado306
); alhear-se,
tornar-se alheio, significa, portanto, também tornar-se de outro, pertencer a outro. Trata-se de
uma ação reflexiva através da qual o sujeito deixa de pertencer a si para entregar-se ao
domínio do outro; alhear-se é excluir-se de si, desapropriar-se de si; é ceder-se para o domínio
coletivo, é renunciar-se. O que se observa no caso de Ricardo Reis é, portanto, o desejo de se
alienar para se proteger, o que acaba, no entanto, falhando, já que se converte no processo de
abandono de si próprio, que corresponde a uma automutilação.
Da mesma forma paradoxal se apresenta a condição de viajante. O Ricardo Reis criado
por Fernando Pessoa é o exilado voluntário. No romance de Saramago, ele assume também o
caráter do viajante: sai de Portugal, para se exilar no Brasil, e depois retornar a Portugal. Em
seu país de origem, passa grande parte do seu tempo deambulando por Lisboa sem um destino
305
Dicionário Michaelis Online (Michaelis.uol.com.br, consulta em 30.jul.2010) 306
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.
164
certo. O protagonista é um homem em constante deslocamento, como um andarilho,
passageiro não apenas do Highland Brigade, mas da vida em si, que, assim como concebe em
suas odes, é efêmera. Viver em movimento não se fundamenta, entretanto, no dinamismo da
busca, mas é sua maneira de não criar raízes ou vínculos, de evitar o comprometimento. No
entanto, o que parece algo de sua iniciativa, por estar tão de acordo com seus princípios,
revela-se, na verdade, uma condição involuntária, visto que é mais o estado do homem sem
direção, deslocado, sem rumo. Isso é exposto desde o início:
(...) o motorista quer que lhe digam para onde, e esta pergunta, tão simples, tão
natural, tão adequada à circunstância e ao lugar, apanha desprevenido o viajante,
como se ter comprado a passagem no Rio de Janeiro tivesse sido e pudesse continuar
a ser resposta para todas as questões, mesmo aquelas, passadas, que em seu tempo
não encontram mais que o silêncio, agora mal desembarcou e logo vê que não,
talvez porque lhe fizeram uma das duas perguntas fatais, Para onde, a outra, pior,
seria, Para quê.307
O narrador observa: “Falta a Ricardo Reis um cãozito de cego, uma bengalita, uma luz
adiante (...)”308
, porque esse protagonista não tem orientação, está perdido. Não se trata
apenas de um homem que é “espectador do espetáculo do mundo, sábio se isso for sabedoria,
alheio e indiferente por educação e atitude”, mas por ser condicionado a isso. O que pode
aparentar é que opta por ser o que é por ter o controle de si, mas não se trata disso: há uma
força externa maior que o retira de seu lugar de origem e o desloca. As escolhas que tem, os
princípios que adota são, como foi dito, uma forma de se iludir sobre sua condição, de
esquecê-la. Mas Ricardo Reis não tem esse autodomínio, e suas ações acabam se mostrando
muito mais o efeito de uma realidade que não lhe dá muitas escolhas. O retorno a Portugal é
exemplo disso, porque não tem um motivo preciso. A primeira justificativa apresentada é a
morte de Fernando Pessoa; depois o que é apresentado é que Ricardo Reis está em fuga:
“Houve ainda outra razão para meu regresso (...), é que em Novembro rebentou no Brasil uma
revolução, muitas mortes, muita gente presa, temi que a situação viesse a piorar”309
. E tem
307
SARAMAGO, 2003, p. 13. 308
Ibidem, p. 87. 309
Ibidem, p. 78.
165
também um terceiro motivo: “Saudades da terra”310
. No entanto, o próprio narrador desmente
as justificativas de Ricardo Reis: “Não é verdade que tivesse regressado porque morreu
Fernando Pessoa”311
. Ele vive entre idas e vindas, na verdade, porque não tem para onde ir.
Ele mesmo confessa sua condição de apátrio: “para lhe falar francamente nem já me sinto
português”312
. Na verdade, Ricardo Reis parece ser a síntese da humanidade, compartilhando,
a contragosto, o desamparo comum a todos esses indivíduos com os quais ele não quer se
envolver:
Um homem recebe uma carda de prego ao largar do porto, abre-a no meio do
oceano, só água e céu, e a tábua onde assenta os pés, e o que alguém escreveu na
carta é que daí para diante não haverá mais portos aonde possa recolher-se, nem
terras desconhecidas a encontrar, nem outro destino que o do Holandês Voador, não
mais que navegar, içar e arrear velas, dar à bomba, remendar e pontear, raspar a
ferrugem, esperar.313
No caso de uma narrativa que se passa em Portugal, é inevitável pensar no viajante
sem remontar à mitologia dos descobrimentos e do mercantilismo, que faz do marinheiro
português um novo nível de herói e uma evolução do cavaleiro medieval. Só que, no caso do
viajante Ricardo Reis, o que se observa é o trânsito da derrota, e não do heroísmo; a evasão
dos homens sem pátria e sem lar, eternamente exilados, criando, portanto, um país sem nação.
Ao longo da história, o povo português vê-se obrigado a deixar o país por diferentes motivos:
a exploração de novos territórios, a guerra, a invasão de Napoleão, o êxodo motivado pelas
crises reincidentes. Por essa razão, Portugal se torna o país abandonado por excelência, e
também o país dos abandonados. Nesse sentido, Ricardo Reis não foge ao perfil do português
viajante que está sempre se pondo em uma jornada em busca de algo que não encontra no
próprio país, enquanto espera pelo retorno do Sebastião salvador, a última esperança, a chance
que resta de reestabelecimento.
310
Ibidem, p. 129. 311
Ibidem, p. 87. 312
Ibidem, p. 183. 313
Ibidem, p. 300.
166
Isso aproxima a condição do português à do judeu, que aguarda pelo Messias e por
Sião. No capítulo anterior, o testemunho de Ricardo Reis oferece a visão de um cenário
apocalíptico, de uma terra destruída e seu povo desvalido. O sebastianismo é o mito que
reflete a espera desse povo por uma terra prometida e uma salvação. Conforme podemos
entender através do estudo de Oliveira Martins314
, o fenômeno surge em um período de crise
semelhante a que Ricardo Reis encontra em Portugal em 1936. Quando D. Sebastião é
coroado, em 1568, com apenas 14 anos, o país sofre com a miséria, com a decadência do
império, com o grande número de mortos pelas epidemias, e pela evasão em massa do país.
Além disso, a Inquisição está instaurada em Portugal desde 1536, propagando temores de
fundamento místico e religioso. Desde que nasce, D. Sebastião é, de certa forma, objeto de
culto, esperando-se dele que realize os milagres de que Portugal precisa. O próprio rei cultiva
fantasias sobre ser o salvador enviado para mudar a sorte do seu reino, o que o inspira a
resgatar os ideais das Cruzadas medievais, acreditando que deve combater as heresias dos
fieis muçulmanos. Seus princípios cavalheirescos e místicos são partilhados pela nação,
apesar de muitos membros da corte reconhecerem-no apenas como um desvairado.
É assim que, mesmo sob os avisos de alguns, D. Sebastião decide empreender uma
campanha em África, a fim de combater a religião anti-cristã. Foram recrutados os últimos
homens portugueses, os sobreviventes à onda de epidemias, somados a cinco mil mercenários
estrangeiros. No início, os portugueses até obtêm êxito, mas quando alcançam a seara dos
soldados africanos, são massacrados e os sobreviventes são presos. Estes contam que D.
Sebastião encontrava-se entre um último grupo, e que, não se rende até desaparecer entre os
mortos. Apesar de haverem encontrado seu cadáver, a população é tomada pelo pânico ao
saber da notícia da derrota de D. Sebastião e da perda dos homens, o que germina a ideia de
D. Sebastião ainda estar vivo preparando-se para retornar e reocupar o trono. As pessoas estão
314
MARTINS, J.P. Oliveira. História de Portugal. Tomo II. 3ª ed. Lisboa: Livraria Bertrand, 1882.
167
em absoluto desespero, vendo o país indefeso sem seu monarca, que também não deixa
herdeiros, e se torna comum recorrer-se não apenas às igrejas, mas também aos feiticeiros. O
misticismo domina a vida portuguesa naquele momento.
O trono desocupado desperta o interesse de D. Filipe, rei de Castela, cujos
concorrentes são os parentes mais próximos do rei morto: o cardeal D. Henrique e D.
Antônio, filho da irmã do pai de D. Sebastião. D. Henrique não demora a morrer, estando já
velho e doente. Oliveira Martins compara o ano de 1580 com o ano de 1385, quando a morte
do rei D. Fernando, que também não deixa herdeiros, cria a mesma condição de instabilidade
e cobiça do trono por parte de Castela, que é derrotada na batalha de Aljubarrota. Só que,
como o autor observa, em 1580, a situação é muito diferente, já que Portugal está falido e seus
homens estão mortos; os vivos custarão os últimos recursos do reino para serem resgatados do
cativeiro em Marrocos, após a derrota em Alcácer-Quibir. Em 1580, “do mesmo modo que se
compunham as tropas, se obtinham recursos: eram assaltos às casas, rapinas, violência.”315
Lisboa está quase abandonada, os ricos e nobres desertam da capital, fugindo do caos dos
roubos e assassinatos. Os que lá permanecem são os plebeus que são caçados e forçados a
alistarem-se para compor as tropas do reino para a defesa do país contra a invasão espanhola.
Nesse contexto, D. Filipe não enfrenta dificuldades em ocupar a cidade, e acaba sendo
aclamado rei, tornando Portugal novamente subordinado à Espanha, situação que durará até
1640. O messianismo sebástico é o sentimento restante ao português desalentado pela
gravidade da situação. Mesmo que o cadáver de D. Sebastião tenha sido encontrado, as
pessoas se deixam acreditar no seu retorno para salvar e redimir Portugal. “A sua simpática
fisionomia, os seus próprios erros que eram virtudes, por fim a sua história trágica, fundavam
os alicerces da sua beatificação que ia se formando. O povo cristalizou seus ideais (...).”316
O
sebastianismo é a espera pelo Messias, cuja missão é tanto salvar o país quanto restaurar o
315
MARTINS, 1882, p. 73. 316
Ibidem, p. 75.
168
antigo império português. Por esses traços, o Estado Novo revive o sebastianismo, e apresenta
Salazar como D. Sebastião que enfim retorna. O desencanto de Ricardo Reis é, portanto, o
elemento que o afasta do viajante nacional desbravador e herói e o situa entre os que viajam
porque são deslocados. Ao mesmo tempo, Ricardo Reis tem uma afinidade com o outro
modelo, porque sua fé na monarquia o aproxima da fé na restauração do império, já que a
monarquia portuguesa era imperialista. Percebe-se nisso uma inconstância entre perceber as
falhas do mundo e recuar em direção à conformidade com o status quo, já que acaba se
afinando com a ideologia dominante de qualquer modo, além de manter a postura da
passividade e da indiferença.
Em outro ponto, Ricardo Reis se distingue do português comum, orientado pelo eterno
lamento, inspiração do fado, que adensa a submissão à fé, e que parece acompanhar geração
após geração, em todos os ciclos históricos; daí a espera incansável de um salvador que nunca
virá. “Agora duvida. Esse país não é seu, se de alguém é, tem uma história só fiada de Deus e
de Nossa Senhora, é um retrato à la minuta, espalmado de feições, não se lhe apercebe o
relevo.”317
Ricardo Reis não se identifica com esse culto cego à autoridade divina; mas isso se
deve ao fato de ser pagão, e não a uma crítica à alienação cultivada pela Igreja. Ele percebe a
irracionalidade do fervor religioso, mas porque vê nisso o comprometimento que rejeita. Por
isso, se sente deslocado em sua própria pátria. Mas, ao mesmo tempo, não compreende que
tem em comum com a pátria a condição de não ter dono, nem rosto, nem identidade, a
condição da anonímia, que é mais uma imposição do mundo que algo que tenha escolhido
para si. Quando Ricardo Reis reconhece em si esses traços impostos, ele se deprime, em vez
de conseguir a calma que almeja ao querer para si esses traços. Por isso, ele se abriga em
moradas provisórias, onde não criará laços, mas a falta de laços acaba intensificando a
sensação de desamparo e de deslocamento. O quarto de hotel é o lugar de passagem, e
317
SARAMAGO, 2003, p. 332.
169
também um pouco exílio – “lembrou do quarto onde dormiu a sua primeira noite de filho
pródigo”318
, o filho que não pertence àquele lar -, assim como a casa que aluga, onde se sente
estranho, que é como se sente em qualquer lugar:
Ainda estava de gabardina vestida, era como se aqui tivesse entrado para log sair,
visita de médico, segundo o céptico dito popular, ou rápida inspecção de um lugar
onde talvez venha a viver um dia, e afinal, disse-o em voz alta, como um recado que
não deveria esquecer, Eu moro aqui, é aqui que eu moro, é esta a minha casa, é esta,
não tenho outra, então cercou-o um súbito medo, o medo de quem, em funda cave,
empurra uma porta que abre para a escuridão doutra cave ainda mais funda, ou para
a ausência, o vazio, o nada, a passagem para um não ser.319
É Ricardo Reis estrangeiro também em si mesmo. A ideia de ser “inúmeros”
permanece no Ricardo Reis do romance de Saramago, e pode, em um primeiro momento, ser
identificada com o outro que Rimbaud diz ser320
, apontando para a complexidade que é
própria da personalidade humana, e que apenas consegue ser percebida quando Freud cria a
psicanálise. Ao dizer “vivem em mim inúmeros”, Ricardo Reis está, sim, falando sobre a
perda de sua integridade psíquica, e esse traço se manifesta também no Ricardo Reis de
Saramago, que tenta reaver um autocontrole através de códigos e hábitos – assegurados por
sua condição econômico-social – de que se cerca e nos quais vê a ilusão de estar seguro, mas
que acabam revelando-se como os elementos que o controlam, privando-o, portanto, de sua
autonomia. Esse é um fenômeno presente em qualquer ser humano – por essa razão, o
narrador percebe que “inúmeros ele, ela decerto não única”321
–, e a condição vária de que
Ricardo Reis fala traduz, na verdade, a experiência própria da vida ocidental moderna. Mas,
há-de se acrescentar que, no caso do abstêmico, alienado e apônico protagonista de Saramago
permanece acreditando ser vários porque isso também tem relação com a memória, isto é, já
que o esquecimento afasta de seu momento presente fragmentos do passado que possam
representar uma ameaça à sua tranquilidade, a ideia de ser outro pode ser entendida como um
artifício de proteção, e não como o reconhecimento de sua complexidade psíquica. O trânsito
318
Ibidem, p. 41. 319
Ibidem, p. 220. 320
RIMBAUD, Arthur. Correspondência. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 2009. 321
SARAMAGO, 2003, p. 248.
170
constante entre espaços pode ser identificado também no âmbito subjetivo, em que Ricardo
Reis pode transitar entre personas diferentes conforme for conveniente, ou evadir da parte de
si que o perturba, evitando o vínculo até mesmo com aquilo que ele é. Por isso, quando
“lembra de ali ter sentado em outros tempos, tão distantes que pode duvidar se os viveu
mesmo, Ou alguém por mim, talvez com igual rosto e nome, mas outro”322
, está apostando
que pode evitar esse que um dia foi, se isso o mantiver seguro em sua aponia, o que remonta
ao alheamento como a renúncia de si próprio.
Este Ricardo Reis não é o poeta, é apenas um hóspede de hotel que, ao sair do
quarto, encontra uma folha de papel com verso e meio escritos, quem me terá
deixado isto aqui, não foi de certeza, a criada, não foi Lídia, esta ou a outra, que
maçada, agora que está começando vai ser preciso acabá-lo, é como uma fatalidade,
E as pessoas nem sonham que quem acaba uma coisa nunca é aquele que a começou,
mesmo que ambos tenham um nome igual, que isso só é que se mantém constante,
nada mais.323
Um Ricardo Reis escreveu o verso, outro o lê agora, outro o terminará, nenhum se
lembrará. “Ricardo Reis rebusca na memória fragmentos de versos que já levam vinte anos de
feitos”324
, mas sua intenção não é relembrá-los, já que isso seria fácil, bastaria relê-los. Vai
puxando pela memória as odes desmembradas, “há um momento que duvida se terão mais
sentido as odes completas aonde os foi buscar do que este juntar avulso de pedaços ainda
coerentes”. Ao longo do romance, não há momento em que Ricardo Reis leia uma ode sequer
na íntegra, e isso leva a crer que ele evita a reintegração, prefere se acomodar sobre a ideia de
estar em pedaços, ou de poder evadir-se de si mesmo quando assim o desejar. Por isso parece
que talvez as odes estejam melhores assim, despedaçadas e “contraditoriamente afirmando, na
sua própria mutilação, um outro sentido fechado, definitivo”, porque “procurar cobrir com
uma unidade estas variedades é talvez tão absurdo como tentar esvaziar o mar com um balde
(...).”325
Além disso, a forma como ele lê as odes é como ele lê os jornais: folheando, de forma
322
Ibidem, p. 30. 323
Ibidem, p. 48. 324
Ibidem, p. 62. 325
Ibidem, p. 62.
171
descompromissada, como se, assim, pudesse contemplar-se tanto quanto pode contemplar o
espetáculo do mundo.
A imagem refletida no espelho, entretanto, coloca Ricardo Reis frente a frente com sua
decomposição, o que significa que mesmo que tente converter essa condição a seu favor, no
sentido de aproveitar a ideia de ser inúmeros para ser quem quiser, o conflito da desordem
desses inúmeros estará sempre presente:
(...) e depois aconteceu aquele diálogo diante do espelho, árvore do conhecimento do
bem e do mal, não tem nada que aprender, basta olhar, que palavras extraordinárias
teriam trocado os seus reflexos, não pôde captá-las o ouvido, só repetida a imagem,
repetido o mexer dos lábios, contudo, talvez no espelho se tenha falado uma língua
diferente, talvez outras palavras se tenham dito naquele cristalino lugar, então outros
forma os sentidos expressos, parecendo que, como sombra, os gestos se repitam,
outro foi o discurso, perdido na inacessível dimensão, perdido também, afinal, o que
deste lado se disse, apenas conservados na lembrança alguns fragmentos, não iguais,
não complementares, não capazes de reconstituir o discurso inteiro, o deste lado,
insista-se, por isso os sentimentos de ontem não se repetem nos sentimentos de hoje,
ficaram pelo caminho, irrecuperáveis, pedaços do espelho partido, a memória.326
O caráter bidimensional do espelho é mítico: na verdade, o ato de olhar o espelho
produz um reflexo que não é uma mera reprodução, mas a exposição de um outro lado que é
infinito. A imagem de si não é reveladora, ou é mais do que isso: ela produz o efeito da
sensação de se estar “perdido na inacessível dimensão”. O espelho revela que o indivíduo que
se mira nele é um desconhecido para si por si próprio. O conhecimento do bem e do mal que o
espelho oferece é conhecer que Eu é alguém que não posso conhecer. A memória que Ricardo
Reis não quer ter, na verdade, não está sob seu domínio, nem ela, nem nada mais que constitui
sua psique, porque é a psique que o controla, e não o contrário. Refletir-se no espelho é
desconhecer-se e saber disso. É uma ação perturbadora e desestabilizadora. Ricardo Reis é um
narciso invertido, que ao se deparar com sua imagem não se apaixona por ela, mas se assusta
com ela; não mergulha na água para se alcançar, é tragado pela dimensão obscura que revela a
si próprio como fonte de sua angústia. O narciso invertido não se transforma em flor; ele olha
seu reflexo porque acredita poder contemplá-lo sem se perturbar, mas, assim como Ofélia, ele
326
Ibidem, p. 174.
172
se afoga na água, hipnotizado, porque é tragado pelo seu interior obscuro, é carregado pelas
correntezas das águas recônditas.
A esta luz, ou por causa destes rostos apagados, o espelho parece um aquário, e
Ricardo Reis, quando atravessa a sala para o lado de lá e pelo mesmo caminho de
volta, questão de não virar costas e fugir logo à entrada da porta, vê-se naquela
profundeza esverdeada como se caminhasse no fundo do oceano, entre destroços de
navios e gente afogada, tem de sair já, vir ao de cima, respirar.327
Mais uma vez é possível fazer a associação com o marinheiro mitológico e despí-lo de
sua aura de herói: Ricardo Reis representa não o marinheiro, mas o náufrago. Afoga-se em
seu reflexo na água – lembrando que o rio desse romance é o Tejo de águas barrentas, mexida
pelos temporais; portanto, a água mirada por esse narciso é turva, o que confunde ainda mais
a visão de si – e afoga-se em si próprio. É ele seu próprio infortúnio.
(...) o grande espelho em que cabe toda a sala, que nele se duplica em uma outra
dimensão que não é o simples reflexo das comuns e sabidas dimensões que com ele
se confrontam, largura, comprimento, altura, porque não estão lá uma por uma,
identificáveis, mas sim fundidas numa dimensão única, como fantasma inapreensível
de um plano simultaneamente remoto e próximo, se em tal explicação não há uma
contradição que a consciência só por preguiça desdenha, aqui se está contemplando
Ricardo Reis, no fundo do espelho, um dos inúmeros que é, mas todos fatigados
(...).328
Uma das considerações já feitas aqui sobre o protagonista de Saramago foi sobre
Ricardo Reis não ter direção, estar desorientado e perdido na ordem do mundo, algo do que
nem sua condição privilegiada de aristocrata pode protegê-lo. Com esse elemento novo, que
diz respeito à incapacidade de se autodominar, sujeitando-se, portanto, à desordem de sua
psique, pode-se dizer que Ricardo Reis se encontra perdido tanto no mundo, na dimensão
exterior a ele, quanto dentro de si próprio. A narrativa – paradoxalmente – se orienta
exatamente por essa falta de orientação da vida em sociedade, servindo-se da imagem do
labirinto: “São assim os labirintos, (...) há quem diga que a mais segura maneira de sair deles
é ir andando e virando sempre para o mesmo lado, mas isso, (...) é contrário à natureza
humana.”329
A cidade para a qual Ricardo Reis retorna é labiríntica: “este mundo e esta
327
Ibidem, p. 101-102. 328
Ibidem, p. 24. 329
Ibidem, p. 86.
173
Lisboa são uma névoa escura onde se perde o sul e o norte, o leste e o oeste, onde o único
caminho aberto é para baixo”330
. Em Lisboa, “mudam eles de direção e sentido, o norte
chama-se sul, o sul é o norte (...)”331
. Mas, mesmo que a cidade fosse segura, isso não mudaria
o fato de que “também no interior do corpo a treva é profunda, (...) o homem, claro está, é o
labirinto de si mesmo”332
, e, por isso, não tem domínio sobre si, é escravo de um tirano
invisível:
Não é Ricardo Reis quem pensa estes pensamentos nem um daqueles inúmeros que
dentro de si moram, é talvez o próprio pensamento que se vai pensando, ou apenas
pensando, enquanto ele assiste, surpreendido, ao desenrolar de um fio que o leva por
caminhos e corredores ignotos (...).333
Apesar de estar desnorteado, Ricardo Reis prefere acreditar que não está, e como já
sabe, tem seus artifícios para, ao menos, tentar. Por isso, apesar de ser a imagem que revela
uma das feridas narcísicas do homem, o labirinto também é apropriado por Ricardo Reis de
modo que lhe sirva como um dos seus mascaramentos, o que explica por que ele escolhe o
livro The god of the labyrinth na biblioteca do Highland Brigade:
O tédio da viagem e a sugestão do título o tinham atraído, um labirinto comum deus,
que deus seria, que labirinto era, que deus labiríntico, e afinal saíra-lhe um simples
romance policial, uma vulgar história de assassínio e investigação, o criminoso, a
vítima, se pelo contrário não preexiste a vítima ao criminoso, e finalmente o
detective, todos três cúmplices da morte, em verdade vos direi que o leitor de
romances policiais é o único e real sobrevivente da história que estiver lendo, se não
é como sobrevivente único e real que todo o leitor lê toda a história.334
A “sugestão do título” chama a atenção de Ricardo Reis porque ele se reconhece no
deus do labirinto, considerando-se que o Minotauro, ao ser confinado, está alienado do resto
do mundo. No caso de Ricardo Reis, a alienação é voluntária, ele não é preso no labirinto para
que o mundo esteja protegido dele, mas para que ele esteja protegido do mundo. Além disso,
sua identificação com um deus pode ser fundamentada por suas odes, nas quais ele aproxima
deuses e homens com base na tradição greco-romana. Nas epopeias de Homero, por exemplo,
330
Ibidem, p. 87. 331
Ibidem, p. 88-89. 332
Ibidem, p. 93. 333
Ibidem, p. 102. 334
Ibidem, p. 20.
174
os homens são os grandes heróis, enquanto os deuses participam da trama de forma
coadjuvante. Na ode 311, como já foi visto aqui, Ricardo Reis chama os deuses de
“desterrados”, porque foram destronados e desapropriados da vida terrena pelos homens, o
que pode ser aproximado ao mito de Prometeu, castigado por toda a eternidade por roubar o
fogo de Hefesto para presentear com ele sua criação, os homens. Ricardo Reis aprende através
de sua educação helenista a cultivar esse antropocentrismo que o iguala aos deuses ao mesmo
tempo em que aprende com eles sobre a resignação diante do destino, como ele diz na ode
326.
O labirinto, no entanto, também é um elemento que provoca perturbação, e isso está
inserido no romance. Assim como outros elementos usados por Ricardo Reis para mascarar o
sofrimento se mostram contraproducentes a ele, assim também é o labirinto. Ele se serve do
jogo de ser inúmeros para poder se alienar de e em si mesmo; ele se serve do espelho porque
acredita poder mergulhar na segunda dimensão que oferece seu reflexo, acreditando poder,
dessa forma, escapar de si próprio, mas tudo isso se volta contra Ricardo Reis, porque a
subjetividade vária acaba se mostrando uma condição de nulidade a que qualquer indivíduo
que vive em sociedade está submetido, e o espelho o absorve para um abismo do qual não é
possível sair. Tudo isso mostra a Ricardo Reis que ele não detém o domínio de si e que está à
mercê de um macrocosmo que ele não governa e que ele não quer enfrentar, apenas
contemplar como se fosse uma obra de arte estática e inofensiva. O labirinto, portanto, será,
em O ano da morte de Ricardo Reis, como esses outros artifícios: em um primeiro momento,
são marcas da alienação voluntária, mas, assumem-se, paralelamente, como uma condição a
que o homem civilizado está obrigado.
O homem metódico que chega em Lisboa procura manter os padrões que ele acredita
imunizá-lo, e isso se manifesta nos pequenos hábitos do cotidiano. Ricardo Reis acomoda-se
em um quarto de hotel e está arrumando suas coisas, que vêm muito organizadas em suas
175
malas, e assim as está dispondo, cada coisa em seu devido lugar, num rigor quase fordista: “os
sapatos na gaveta-sapateira, os fatos nos cabides do guarda-roupa, a mala preta de médico
num fundo escuro do armário, e os livros numa prateleira”335
. Até que, subitamente, surge um
objeto que destoa em meio a essa ordem: o livro que Ricardo Reis traz por descuido, da
biblioteca do Highland Brigade, The god of the labyrinth. A obra, assim como Ricardo Reis,
não existe, é uma invenção, e criação de um escritor inventado, mas que está introduzido na
narrativa, assim como os elementos históricos, como as notícias de jornal e os fatos reais. The
god of the labrynth é um livro de autoria de Herbert Quain, escritor fictício criado por Jorge
Luis Borges, que compõe o conto “Examen de la obra de Herbert Quain”336
, que, na verdade,
é um estudo crítico, apesar de ter como objeto de análise um escritor inventado, e uma obra
que não existe, assim como Ricardo Reis também não é um poeta real, mas criação de
Fernando Pessoa.
Herbert Quain é apresentado já por sua morte, no último fragmento do conto citado,
que tem o mesmo título do conto de que faz parte. A primeira frase do fragmento é: “Herbert
Quain ha muerto em Roscommon”337
, o que é noticiado pelos jornais Times e Spectator. Ou
seja, Herbet Quain é ausente de duas formas: além de ser uma invenção, é uma invenção
morta. As contradições vão se emaranhando à medida que a análise do escritor e sua obra vão
sendo desenvolvidas. The god of the labyrinth é o primeiro livro de Quain, publicado em 1933
e fracasso de vendas. Sua trama se conclui por um caso policial erroneamente resolvido:
ya aclarado el enigma, hay um párrafo largo y retrospectivo que contiene esta frase:
Todos creyeron que el incuentro de los jugadores de ajedrez había sido casual. Esa
frase deja entender que la solucion es erronea. El lector, inquieto, revisa los
capítulos pertinentes y descubre outra solución, que és la verdadeira. El lector de
esse libro singular és más perspicaz que el detective.338
A escrita de Herbert Quain parece, portanto, ser elaborada para confundir, afastando-
se do objeto de contemplação que Ricardo Reis quer ver no “espetáculo do mundo”. O
335
Ibidem, p. 19. 336
BORGES, Jorge Luis. Ficciones. Madrid: Alianza Editorial, 2008. 337
Ibidem, p. 77. 338
Ibidem, p. 79.
176
próprio Herbert Quain define seu segundo romance – April March – como um jogo, cujos
elementos essenciais trabalhados são “la simetria, las leyes arbitrarias, el tedio”339
. O título é
uma regressão, inverte a ordem entre os meses de março e abril, o que é um reflexo de outros
autores que também fazem uso da retrogressão, como Francis Herbert Bradley, Platão e
Teopompo. April March é composto por 13 capítulos, que se conectam regressivamente;
El primero refiere el ambíguo diálogo de unos desconocidos en un andén. El
segundo refiere los sucessos de la véspera del primero. El terceiro, también
retrógrado, refiere los sucesos de outra posible véspera del primero; el cuarto, los de
otra.340
O movimento retrógrado coexiste na obra com a ramificação:
Cada uma de esas tres vísperas (que rigorosamente se excluyen) se ramifica em otras
total consta, pues, de nueve novelas; cada novela de tres largos capítulos. (El
primero es comum a todas naturalmente) De esas novelas, uma es de carácter
simbólico; otra, sobrenatural; otra, policial; otra, psicológica; otra, comunista; otra,
anticomunista, etcétera.341
O narrador relaciona essa estrutura ao que Schopenhauer diz sobre as doze
caractegorias kantianas: “todo lo sacrifica a um furor simétrico”342
, ou seja, os movimentos de
ramificação e retrogressão se somam ao movimento de supressão. O narrador aconselha que
não se leiam os capítulos na ordem cronológica.
O próximo livro de Herbert Quain se intitula The secret mirror e é uma peça em dois
atos, caracterizada pelo narrador como “comédia heroica”, que, pela descrição do narrador-
crítico, está mais para um drama trágico, com personagens nobres, romantizados, duelos e
amores proibidos. Os personagens reaparecem no segundo ato com nomes diferentes. É o
primeiro trabalho de Quain que alcança êxito, e quando ele já tem 40 anos, e quando está na
fase mais livre: “En las obras ya reseñadas, la complejidad formal había entorpecido la
imaginación del autor; aqui, su evolución és más libre.”343
O último trabalho de Quain é
Statements, em que afirma que os leitores estão extintos, porque são, na verdade, escritores
339
Ibidem, p. 80. 340
Ibidem, p. 80-81. 341
Ibidem, p. 81-82. 342
Ibidem, p. 82. 343
Ibidem, p. 83.
177
em potencial. Esse livro é um conjunto de relatos, ou seja, estão mais distantes da forma dos
textos anteriores, que são mais literários, por assim dizer. E é também nesse livro menos
inventado em que Quain fala sobre a invenção. E é também esse que o narrador-crítico
considera sua obra mais original, da qual esse mesmo narrador – leitor e crítico de Herbert
Quain – extrai uma das narrativas de El jardín de senderos que se bifurcan, o conto dividido
em oito fragmentos, dos quais “Examen da obra de Herbert Quain” é o último. Em
Statements, há oito relatos, e em cada um deles há ou prometem-se três argumentos, os quais,
segundo o próprio Quain, o leitor, “distraído por la vanidad, cree haverlos inventado”344
,
exatamente o que faz o narrador, que extrai de lá uma criação sua.
A obra de Herbert Quain, portanto, é apresentada como um conjunto desintegrado,
visto que cada um de seus livros individualmente constituem-se de recursos emaranhados e
são construídos para confundir o leitor, ao mesmo tempo em que pode-se encontrar uma tal
arquitetura sistematizadora do conjunto da obra: arquiteta-se o paradoxo da ordem que
desorganiza; como um confronto à noção de organização cultural, ao Estado burocrático, à
vida pragmática, a obra de Herbert Quain se mostra um sistema que é via de desconfiguração.
Ela oferece uma experiência de leitura que, em vez de orientar o leitor em direção a um certo
lugar, na verdade, desfaz-se em uma sequência metodicamente elaborada para fazer com que
o leitor se perca, como se o colocasse em um labirinto e o distraísse do caminho da saída.
Nisso se pode identificar a possível origem da afirmação do narrador de O ano da morte de
Ricardo Reis, a propósito do próprio Ricardo Reis lendo The god of the labyrinth: o leitor é o
único sobrevivente da trama de um livro, porque ele sobrevive ao efeito desnorteador desse
livro, que é o efeito que o tira da conformidade da vida; e isso é sobreviver. O livro é assim
concebido como o elemento que desestabiliza o indivíduo socializado, cuja existência após a
leitura é uma sobrevida; não é uma morte, porque ele não deixa de viver, mas sem dúvida é
344
Ibidem, p. 85.
178
uma outra vida. O tema do enigma que é erroneamente solucionado vem a calhar. Na verdade,
o exame da obra de Herbert Quain conduz o leitor a um voo em espiral até que ele saia desse
labirinto para entrar em outro, que é o conto do qual “El examinen de la obra de Herbert
Quain” deveria ser a peça final e conclusa: “El jardin de senderos que se bifurcan”, o sistema
construído para ser dessistematizado, em que a linearidade tradicional é convertida em um vai
e vem, uma oscilação contínua e desestabilizadora.
Mas o livro que Ricardo Reis carrega consigo é apenas um micro fragmento dessa
composição ciclônica maior. Há de se atentar para o fator retrogressivo que eclode em todo o
momento ao se ler o último fragmento de “El jardín de senderos que se bifurcan”. Isso
aparece na apresentação de April march como um elemento propagador; aparece no fim de
“El examinen de la obra de Herbert Quain”, que é também o fim de “El jardín de senderos que
se bifurcan”, mas por isso mesmo, é também o início do conto. Mas aparece principalmente
no romance que conduz à investigação de The god of the labyrinth, no qual também se é
conduzido à obra de Ricardo Reis, que conduz, por sua vez, à obra de Fernando Pessoa,
caracterizando-se pela mesma ramificação que também está presente em April march. Na
verdade, O ano da morte de Ricardo Reis se configura por desdobramentos que inicialmente
se aproximam de configurações labirínticas que parecem se multiplicar em ramificações que
se convertem em novos labirintos que, em vez de continuarem se multiplicando, parecem
mergulhar em sua própria garganta, que nada mais é que um abismo autofágico.
Ricardo Reis jamais chegará a concluir a leitura de The god of the labyrinth. Mas o
fato é que ele será surpreendido pelo surgimento do livro sobre o mistério insolucionado em
meio à sua arrumação; é como se o romance de Herbert Quain iluminasse uma
desestabilização ao pragmatismo de Ricardo Reis, enfraquecendo, portanto, o seu rigor. Esse
surgimento é uma bifurcação, como se pode identificar no título do conto de Borges. A leitura
se encaminha tanto para fora do romance, para depois se retornar a ele, quanto para o estudo
179
do caráter de Ricardo Reis. O primeiro encaminhamento será pensando com maior cuidado
mais adiante. A esta altura, é necessário reencontrar Ricardo Reis e, principalmente, o
narrador que se mantém fixo em seu encalço, atento a cada detalhe, em uma perseguição
obsessiva. É assim que ele chega a se deter no nome do autor do livro que Ricardo Reis tem
consigo:
(...) é seu título The god of the labyrinth, seu autor Herbert Quain, (...) mas o nome,
esse sim é singularíssimo, pois sem o máximo erro de pronúncia se poderia ler,
Quem, repare-se Quain, Quem, escritor que só não é desconhecido porque alguém o
achou no Highland Brigade, agora, se lá estava em único exemplar, nem isso, razão
maior para perguntarmos nós, Quem.345
Como é mencionado no conto de Borges, The god of the labyrinth é fracasso de
vendas, e Herbert Quain só alcança reconhecimento dois livros depois; considerando-se que a
The god of the labyrinth segue-se April march, que é de 1936, é apenas o livro seguinte, The
secret mirror, posterior, portanto, a 1936, que alcança êxito, o que significa que quando
Ricardo Reis escolhe The god of the labyrinth na biblioteca do Highland Brigade, em 1935,
Herbert Quain é ainda desconhecido do público. A associação feita pelo narrador entre o
sobrenome do escritor com o pronome que constitui a interrogação “Quem?” o insere ainda
mais na condição de anônimo, acentuando o caráter enigmático do romance policial de
Herbert Quain. No caso de Ricardo Reis, logo ele que “um dia chegou a afirmar detestar a
inexatidão”346
, não parece lógico que tenha se atraído por The god of the labyrinth,
escolhendo-o entre tantas outras opções que uma biblioteca oferece; mas o narrador explica
essa escolha, como é possível encontrar no trecho citado, em que a curiosidade sobre um deus
do labirinto é apresentada: o que faz Ricardo Reis escolher The god of the labyrinth é o fato
de que ele pensa se tratar de um livro sobre ele próprio. Mas, aparentemente, Ricardo Reis
não se lembra de que é vários, e que ser um deus do labirinto é tarefa apenas de um dos
inúmeros que vivem nele. Ao mesmo tempo em que ele parece ser inúmeros por iniciativa
própria, ele se denuncia frequentemente por não controlar sua variabilidade, que revela-se, na
345
SARAMAGO, 2003, p. 19-20. 346
Ibidem, p. 16.
180
verdade, como uma nulidade: o livro que ele pensa falar de si, de fato, oferece um enigma, o
que o faz evitar retornar ao livro, como se isso significasse ter de solucionar o enigma que
constitui ele próprio. Ricardo Reis não quer se autodecifrar porque, talvez, não quer se
lembrar de que em vez de rei ou deus, ele não é ninguém. The god of labyrinth, o livro que se
inclui na entrópica obra de Herbert Quain, surge em meio a toda a organização de Ricardo
Reis como um potencial desestabilizador, e abrindo a sequência de elementos de igual caráter
que servirão para desequilibrar a moral pragmática de Ricardo Reis, aos quais a cidade de
Lisboa, o reino supremo do caos, servirá de cenário.
A cena se segue com Ricardo Reis folheando suas odes. Primeiro encontra a mais
antiga – “Mestre, são plácidas” –, depois pega a última que escreveu até então, a que começa
por dizer “Vivem em mim inúmeros”, e após lê-la, questiona, dos inúmeros, qual é este que
está lendo naquele momento, retornando à interrogativa incitada pelo sobrenome do autor de
The god of the labyrinth: “de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem,
Quain”347
, assumindo – exatamente no momento em que está pensando sobre ser inúmeros – a
anonímia compartilhada com Herbert Quain. É dessa forma que Ricardo Reis se depara com a
variabilidade que não é a evasão de si, mas a nulidade. Ele passa a se reconhecer não apenas
como alguém que pode escolher ser outra pessoa quando se assusta ao perceber quem
realmente é. Ele começa a perceber que desdenha não só o mundo mas também a si próprio,
contradizendo sua autoafirmação como deus. O que se processa em Ricardo Reis é uma
autopercepção maior e a descoberta de si não como um privilegiado, mas um estranho, um
desconhecido, um anônimo, um indigente, um desamparado. Aquele que é desprezado por si,
mas também pelo mundo em que vive. A afirmação de ser vários acaba se voltando contra ele,
assim como todos os seus outros engenhos para ser alheio.
347
Ibidem, p. 21.
181
4.4. O CADÁVER ANTECIPADO348
É possível falar em um anonimato que é indigência quando se considera os artifícios
de proteção de Ricardo Reis contra o envolvimento com o mundo, já que esses artifícios, em
vez de proporcionarem uma vida conforme o que Ricardo Reis entende por dignidade, o que
se observa é, na verdade, uma autoinvalidação e automutilação. Os artifícios de alienação de
Ricardo Reis podem ser considerados como pequenas mortes, antes que ele decida finalmente
seguir Fernando Pessoa ao cemitério dos Prazeres. Antes dessa iniciativa, ele já havia se
obrigado a morrer fracionadamente. O exílio, a errância, o alheamento, a evasão de si, a
rejeição à experiência amorosa duradoura, o apolitismo, tudo isso através da alienação, do
apego aos códigos e da abstenção. A morte de Ricardo Reis não como seu destino final, mas
como sua condição, pode ser pressentida em alguns pontos. A começar pelo título do
romance: nele se lê não a vida, ou uma biografia que Saramago se permite continuar, mas a
morte de Ricardo Reis. Trata-se da história de um morto. A abertura do romance é a chegada
de Ricardo Reis a Lisboa por navio, e a descrição da cidade-fantasma, onde “porventura
morreu a gente nela”349
. A propósito dessa imagem, convém citar a leitura de Regina Helena
Dworzak350
, que identifica no Ricardo Reis retornando a Lisboa o morto sendo conduzido ao
reino de Hades pela barca de Caronte, que, no romance, é o Highland Brigade, descrito pelo
narrador como um barco escuro, sob um fluxo soturno, navio duas vezes fantasma. Essa
leitura é ainda mais pertinente considerando-se que Ricardo Reis tem consigo o óbulo exigido
para pagar por sua viagem derradeira, e o faz ao entregar ao bagageiro a moeda de dez xelins.
Ricardo Reis, latinista por educação, tem consciência dessa obrigação. Sendo assim, o Tejo,
cristalizado no imaginário português como o rio que conduz à vida, porque é a via de acesso
às Índias, a garantia da prosperidade e soberania nacional, e que está criado em Os Lusíadas
348
Essa expressão é inspirada na de Fernando Pessoa, “cadáver adiado”, presente em “D. Sebastião, rei de
Portugal”, de Mensagem. (PESSOA, 2003). 349
Ibidem, p. 9. 350
DWORZAK, Regina Helena. “O tempo em O ano da morte de Ricardo Reis”. (Disponível em:
http://kplus.cosmo.com.br, visitado em 03/06/09).
182
como o caminho cujo fim último é a Ilha dos Amores, o reino de Eros; desta vez, é
identificado com o rio Aqueronte, a estrada que percorre o mundo dos mortos.
O Ricardo Reis que lê The god of the labyrinth seria um sobrevivente ao livro,
segundo a lógica apresentada pelo narrador. Isso é uma antecipação do fim da narrativa,
quando Ricardo Reis morre, já que ele não conclui a leitura do romance de Herbert Quain,
não chegando, portanto, a sobreviver ao livro. O fim da narrativa também corresponde ao
momento em que Fernando Pessoa não pode mais andar pela terra, o término do período de
nove meses em que ele está vagando pelo mundo dos vivos, e que um morto necessita para ser
completamente esquecido, e só então morrer completamente: “depois de morrermos deixam
de poder ver-nos e todos os dias nos vão esquecendo um pouco, salvo casos excepcionais
nove meses é quanto basta para o total olvido (...)”351
. Esse processo de morte é como um
ritual fúnebre, e isso justifica o narrador chamar a alfândega de “limbo de passagem”, sendo o
limbo o lugar para onde as almas são mandadas provisoriamente, segundo os preceitos
cristãos, e onde aguardam pela volta do Cristo. Essa comparação está de acordo com o próprio
Portugal, onde se aguarda o retorno de D. Sebastião.
A morte de Ricardo Reis pode ser pressentida a partir, igualmente, de outros aspectos,
que, aparentemente, são característicos do seu modo de vida, mas acabam se mostrando como
indícios de uma existência que lhe é imposta. O sono, por exemplo, pode ser um indicativo de
sua pouca vontade de ação, mas, por outro lado, acaba convertendo-se no indicativo do estado
sonambúlico próprio da hipnose social, que condiciona o indivíduo a viver como um morto-
vivo, cuja consciência nunca está completamente desperta. A própria maneira de Ricardo Reis
deambular por Lisboa, como um zumbi ou um fantasma, que quase pode ser atravessado pelos
outros transeuntes. Sua transitoriedade nômade, sua errância entre Brasil e Portugal, Portugal
e Brasil, entre hotel e a casa alugada, o trabalho provisório em uma clínica, o vagar entre
351
SARAMAGO, 2003, p. 77.
183
Lídia e Marcenda; tudo isso pode ser comparado aos movimentos de um sonâmbulo, que
apenas caminha, permanece em movimento, mas inconscientemente; não sabe aonde vai, nem
por quê. A forma de vida de Ricardo Reis é a letargia. Não há sentimentos, nem sensações,
“apenas um sono infinito”352
.
Dorme pela manhã adentro, acorda e readormece, assiste ao seu próprio dormir, e,
após muitas tentativas, conseguiu fixar-se num único sonho, sempre igual, o de
alguém que sonha que não quer sonhar, encobrindo o sonho com o sonho, como
quem apaga os rastos que deixou, os sinais dos pés, as reveladoras pegadas, é
simples, basta ir arrastando atrás de si um ramo de árvore ou uma palma de
palmeira, não ficam mais do que folhas soltas, agudas flechas, em breve secas e
confundidas com o pó. Quando se levanta são horas de almoçar. Lavar-se, barbear-
se, vestir-se são actos mecânicos em que a consciência mal participa.353
Assim como quando acorda no meio da noite e se dá conta de que a luz está apagada,
apesar de não tê-la apagado. Supõe que o tivesse, de fato, feito, “afinal sempre se tinha
levantado, desligara o interruptor, são coisas que fazemos meio inconscientes”354
, porque o
sonâmbulo não acessa sua consciência: “é assim a vida quando errada”, ou seja, a vida
errante, “dormimos quando deveríamos vigiar, vamos quando deveríamos vir, fechamos a
janela quando a deveríamos ter aberta”355
. É como um corpo sem alma; que não está
inanimado, mas também não está vivo. A memória também está comprometida, tal qual
acontece com o fantasma de Fernando Pessoa: “ouviram-se as pancadas do relógio no andar
de cima, É estranho, pensou Ricardo Reis, não me lembrava deste relógio”356
. A realidade, a
vida em redor, também vão ficando fantasmagóricos:
(...) aos poucos as coisas perdem o seu contorno como se estivessem cansadas de
existir, será também o efeito de uns olhos que se cansaram de as ver. Ricardo Reis
nunca se sentiu tão só. Dorme quase todo o dia, sobre a cama desmanchada, no sofá
do escritório, chegou mesmo a adormecer na retrete (...).357
Voltando-se à questão sobre o que exatamente motiva Ricardo Reis a retornar a
Portugal, é possível levantar a possibilidade de ele estar em busca da morte, mas nem sempre
352
Ibidem, p. 412-413. 353
Ibidem, p. 353. 354
Ibidem, p. 242. 355
Ibidem, p. 359. 356
Ibidem, p. 427. 357
Ibidem, p. 412-413.
184
da mesma forma. Inicialmente, – considerando-se que ele próprio apresenta a Intentona
Comunista como algo que o tenha assustado e impelido a sair do Brasil – é possível associar o
desejo de evasão como parte de sua índole ataráxica, o que parece ser entendido, no romance,
como uma maneira de se estar morto, assim como a alienação voluntária, o exílio, a abstenção
e o apego aos códigos. Ao mesmo tempo, a morte pode ser também o fim das angústias, como
se Ricardo Reis chegasse a tão profundo desespero que preferisse morrer a viver em
sofrimento. De qualquer forma, ele parece atrair-se pela morte – que, nas odes, o apavora – a
ponto de se ver algumas vezes à procura dela. Como na ocasião do carnaval, quando “de
repente lhe pareceu ver um vulto singular”, que estava vestido “e preto, com um tecido que se
cingia ao corpo, (...) e sobre o negro da veste o traçado completo dos ossos, da cabeça aos
pés”358
, ou seja, alguém fantasiado de morte chama a atenção de Ricardo Reis, incitando-o a
seguir o folião: “aonde me levará esta morte mofina, e eu, porque vou eu atrás dela, pela
primeira vez duvidou se seria homem” ou mulher, porque poderia ser nem um nem outro,
“apenas morte”359
. Igualmente atraído, certa noite Ricardo Reis se senta na mesma “cadeira
onde Fernando Pessoa passara a noite, traçou a perna como ele, cruzou as mãos sobre o
joelho, tentou sentir-se morto (...)”360
. Portanto, parece que Ricardo Reis retorna a Portugal
porque quer ir ao encontro da morte, por isso, “cada um de nós vai fazendo o que pode pela
sua vida e preparando a sua morte”361
, o que sugere que morrer também pode ser uma
escolha, ou ao menos o momento dela, no caso de se buscar a mesma forma de se estar morto
que Ricardo Reis busca: fazendo da vida um lugar de passagem, abstendo-se de viver. Mas,
como se mostrará a Ricardo Reis, a tormenta não pode ser evitada, e a morte parece ser a
única forma de se abandonar o fardo que é a vida. É assim que, antes de morrer de fato, ele
358
Ibidem, p. 160. 359
Ibidem, p. 161. 360
Ibidem, p. 235, grifos meus. 361
Ibidem, p. 261.
185
tenta antecipar a hora derradeira, como quando vai até o cemitério, numa tentativa de forçar a
passagem para o mundo dos mortos:
Ricardo Reis aproxima-se das grades, toca-lhes com as mãos, de dentro, quase
inaudível, vem um sussurro, é a aragem circulando entre os ramículos dos ciprestes,
pobres árvores que nem folhas têm, mas isto é ilusão dos sentidos, (...) é o que diz
Ricardo Reis para dentro, não as palavras todas, Estou cansado, meteu uma mão
entre os ferros, faz um gesto, mas nenhuma outra mão veio apertar a sua, ao que
estes chegaram, nem podem levantar um braço.362
Não parece, portanto, arbitrário que Ricardo Reis “num relance, perceba que o
verdadeiro termo da sua viagem era este preciso instante que estava vivendo”363
, o que faz a
vida – a que ele está vivendo naquele ano de 1936 – parecer a não vida, a própria morte: “A
morte também é pleonástica, é mesmo a mais pleonástica de todas as coisas”364
, como se fosse
a morte o fundamento da vida, ou mais próprio da vida do que a vida em si. A morte passa a
se transpor em relação à vida, que vai se decompondo mesmo antes do cadáver.
(...) agora, mesmo quando o sol encontra uma janela aberta, a luz é diferente, mole,
baça, e o tamis do tempo recomeçou a peneirar o impalpável pó que faz desmaiar os
contornos e as feições. Quando, à noite, Ricardo Reis abre a cama para se deitar, mal
consegue ver a almofada onde pousará a cabeça e de manhã não conseguiria
levantar-se se com as suas próprias mãos não se identificasse, linha por linha, o que
de si ainda é possível achar, como uma impressão digital deformada por uma cicatriz
larga e profunda.365
Assim como Fernando Pessoa, Ricardo Reis também parece estar sofrendo o processo
de decomposição não físico que leva, assim como a gestação, nove meses. A narrativa se
inicia a partir da chegada de Ricardo Reis em Lisboa, no dia 29 de dezembro de 1935, um
mês depois de Fernando Pessoa morrer; e vai até o dia oito de setembro de 1936 – dia em que
os marinheiros se revoltam e são abafados –, quando Ricardo Reis abandona o mundo e vai
para o cemitério com Fernando Pessoa. A narrativa compreende, portanto, os oito meses que
decorrem desde a chegada de Ricardo Reis em Lisboa até o dia em que ele e Fernando Pessoa
“morrem”, ou passam definitivamente para o mundo dos mortos. Desde o dia da morte de
Fernando Pessoa, se inicia também o processo de morte de Ricardo Reis, ele está vivendo esse
362
Ibidem, p. 275. 363
Ibidem, p. 42. 364
Ibidem, p. 228. 365
Ibidem, p.366.
186
processo tanto quanto Fernando Pessoa. É durante esse período que Ricardo Reis está
perambulando por Lisboa e se desfazendo ou descriando: considerando-se que o próprio
Fernando Pessoa se considera uma ficção, uma vida criada, Ricardo Reis, como criação de
Fernando Pessoa, também tem que ser desfeito para morrer, e a invenção de Saramago é, de
fato, a desinvenção de Ricardo Reis. O romance em estudo conta a história de um morto; não
é a narração da vida do protagonista, não é a vida de Ricardo Reis que Saramago cria, mas a
morte. O livro que Ricardo Reis está lendo – assim como o livro que está contando a história
da sua morte – conta a história de um morto.
Ricardo Reis foi buscar à mesa-de-cabeceira The god of the labyrinth, aqui está, na
primeira página, O corpo, que foi encontrado pelo primeiro jogador de xadrez,
ocupava, de braços abertos, as casas dos peões do rei e da rainha e as duas seguintes,
na direção do campo adversário, a mão esquerda numa casa branca, a mão direita
numa casa preta, em todas as restantes páginas lidas do livro não há mais que esse
morto.366
A morte é pleonástica porque a vida é um jogo perdido. Nas odes de Ricardo Reis, a
experiência da angústia também pode ser evitada em uma apática partida de xadrez, como
pode ser lido na ode 337 (já analisada anteriormente): aqui, o xadrez é o jogo preferido dos
grandes indiferentes, que mantém sobre si a atenção dos jogadores, mesmo que uma guerra
esteja se aproximando. Nesse sentido, a morte pleonástica é a vida que Ricardo Reis cria para
si e como sabedoria do espectador. Por se manter isolado do mundo, da convivência mais
íntima com as pessoas, distante de se envolver com os acontecimentos, Ricardo Reis acaba
incorrendo em uma autoanulação, que equivale diretamente à morte. É como se ele estivesse
se subtraindo o direito de viver. É como se ele nem sequer existisse. Ao mesmo tempo, será
demonstrado, à medida que Ricardo Reis vai testemunhando o presente histórico de 1936, que
não é possível se manter isolado quando se vive em um regime como o salazarista, em um
contexto como o do entre-guerras, da disseminação do fascismo, e o da ascensão do nazismo,
e durante uma crise econômica mundial. A narrativa não deixa dúvidas , como se pôde avaliar
na leitura sobre o contexto histórico, de que o momento é de uma crise insolúvel, e, na
366
Ibidem, p. 306.
187
verdade, que parece piorar cada vez mais. Ao longo do romance, o que se percebe é um
Ricardo Reis cada vez mais arrebatado pelo “espetáculo do mundo”, demonstrando que sua
impassibilidade só existe nos limites da idealização. É assim que a morte pleonástica se
desdobra na leitura da condição de Ricardo Reis não como uma escolha, mas como algo a que
ele, e qualquer pessoa, está submetido: a vida em sociedade é, em si, a anulação por
excelência, porque implica a adequação ao status quo, e, acima de tudo, a renúncia, além da
mutilação provocada pela barbárie que a civilização promove para continuar existindo. Os
sinais de angústia poderão ser notados em Ricardo Reis ao longo de toda a narrativa, e, ao
mesmo tempo, será possível identifica-los como a norma da vida civilizada. Nesse sentido, a
morte de Ricardo Reis também pode ser o último objetivo de um homem absolutamente
desesperado, sem conseguir alívio, sem saída, quando parece que nada mais resta que não
morrer – “o corpo por si mesmo, podendo evita as incomodidades, por isso dormimos na
véspera da batalha ou da execução, por isso, afinal, morremos, quando já não conseguimos
suportar a violenta luz da vida.”367
O Ricardo Reis que desembarca no porto em Lisboa é melancólico, ou seja, já no
início do romance é possível notar sua tristeza: “estava muito cansado, era o que sentia, uma
fadiga muito grande, um sono da alma, um desespero”368
. Não se trata apenas do cansaço pela
viagem, mas do estado de espírito que Ricardo Reis traz consigo. Entre a indiferença e a
contemplação, Ricardo Reis manifesta também a tristeza profunda, como em um momento
trivial, em que encosta a testa na janela para ver o rio: “tarde tão triste que do fundo da alma
sobe uma vontade de chorar”369
Até Lídia parece notar que o senhor doutor tem algo de
diferente:
(...) por enquanto este hóspede sorria, tão simpático, mas tem o ar triste, não deve de
ser pessoa feliz, ainda que haja momentos em que o seu rosto se torna claro, é como
367
Ibidem, p. 242. 368
Ibidem, p. 14. 369
Ibidem, p. 211.
188
este quarto sombrio, quando lá fora as nuvens deixam passar o sol entra aqui dentro
uma espécie de luar diurno, luz que não é a do dia, luz sombra de luz (...).370
Luz que não é a do início, mas da noite, do fim, da morte. Todos esses momentos de
cansaço da alma, de tristeza e desespero são como uma prova de falibilidade do equilíbrio
emocional que Ricardo Reis tenta proteger com sua sabedoria do espectador. O narrador bem
observa essa derrota frente à realidade, a histórica e a pessoal:
O dia está de se lhe contar aleluias, que são os evoés de quem não é grego, os
canteiros estão cobertos de flores, tudo mais do que suficientes para sentir-se um
homem feliz se não alimentar na alma insaciáveis ambições. Ricardo Reis faz o
inventário das suas, verifica que nada ambiciona, que é contentamento bastante olhar
o rio e os barcos que há nele, os montes e a paz que neles há, e no entanto não dá por
que esteja dentro de si a felicidade, antes o surdo roer de um insecto que mastiga
sem parar, É o tempo, murmura e depois pergunta a si mesmo como se sentiria agora
se tivesse encontrado Marcenda em Fátima, se, como se costuma dizer, tivessem
caído nos braços um do outro (...), duvida Ricardo Reis, outra vez, do que viria a
seguir, torna a ouvir nos ossos a trituração do insecto, Não há respostas para o
tempo, estamos nele e assistimos, nada mais.371
A sabedoria do espectador se mostra ineficiente quando o próprio Ricardo Reis
percebe que ficar admirando o rio de longe não o protege de se sentir miseravelmente infeliz.
Vê que não adianta se abster de se envolver com o espetáculo do mundo, e com a própria vida
não se permitindo ter ambições, porque mesmo sem elas, ainda assim não está livre do que é
inerente à existência humana, porque sempre se está sujeito à ação do tempo, cujo produto
final é a morte. Imediatamente, Ricardo Reis se dá conta de que também não consegue evitar
ter ambições, e lembra de que desejou o encontro com Marcenda e dela nunca mais se
separar: chega, inclusive, a pedí-la em casamento.
A errância que Ricardo Reis igualmente adota para abster-se do envolvimento, de criar
raízes, é, ao mesmo tempo, a causa do seu incômodo: o excesso de movimento do viajante
também perturba. Isso é sentido também no início do romance, quando Ricardo Reis ainda é
um embarcado: “só os aprendizes de viajante oceânico enjoaram, ou os que, mais veteranos,
padecem de incurável delicadeza do estômago”372
. É possível tomar essa observação como a
370
Ibidem, p. 83. 371
Ibidem, p. 328-329. 372
Ibidem, p. 7.
189
metáfora do mal-estar demonstrado por Ricardo Reis em algumas situações. Isso é sentido na
primeira vez em que vai ao cemitério: “e o mal-estar transformou-se em náusea como se o
arrebatasse e sufocasse uma grande vaga marinha, ele que em 14 dias de viagem não
enjoara.”373
A tontura também acompanha o mal-estar; ao saber que, enfim, se dera o golpe
militar em Espanha, “Ricardo Reis sentiu uma vertigem, (...) como se de súbito tivesse caído
em queda livre sem ter a certeza de estar o chão perto.”374
E conforme a angústia vai se
intensificando, o mal-estar se converte em doença, e a vida é encarada como um longo e
ininterrupto estado de convalescência: “a vida não é muito mais que estar deitado,
convalescendo duma enfermidade antiga, incurável e recidivante, com intervalos a que
chamamos saúde.”375
Chega a admitir a Marcenda:
(...) se está doente no coração, também está doente de si mesma, É a primeira vez
que no dizem, Todos nós sofremos duma doença, duma doença básica, digamos
assim esta que é inseparável do que somos e que, duma certa maneira, faz aquil que
somos, se não seria mais exato dizer que cada um de nós é a sua doença, por causa
dela somos tão pouco, também por causa dela conseguimos ser tanto (...).376
Essa doença diagnosticada pelo médico Ricardo Reis, aos poucos, extrapola o “mundo
das ideias” e se manifesta em sintomas físicos: “Ricardo Reis sente-se um pouco febril, talvez
tenha apanhado um resfriamento (...), talvez a tristeza cause febre, a repugnância delírio, até
aí ainda não chegou.”377
Mas não demora a chegar. “A noite foi de febre, mal dormida”378
, a
ponto de vir acompanhada de pesadelos, aqueles descritos anteriormente, em que vê cada um
dos vários que diz ser, está em um barco diferente, que afundam, todos. A essa altura a
enfermidade é tão física quando moral: “se o corpo está fraco, não tremem com os efeitos da
gripe apenas as pernas, mas também a alma.”379
E quando pensa sobre abrir consultório, isso
acaba oferecendo a possibilidade de tratamento para o próprio médico: “Tenho de abrir
373
Ibidem, p. 37. 374
Ibidem, p. 381. 375
Ibidem, p. 89. 376
Ibidem, p. 126. 377
Ibidem, p. 157. 378
Ibidem, p. 163. 379
Ibidem, p. 179.
190
consultório, vestir a bata, ouvir doentes, ainda que seja só para deixá-los morrer, ao menos
estarão a fazer-me companhia enquanto viverem, será a última boa ação de cada um deles,
serem o doente médico de um médico doente (...)”380
.
Como é possível notar na citação acima, a solidão é outro mal de que sofre Ricardo
Reis, e que acentua seu mal-estar, por se tratar de mais um fator que o impede de estar
impassível. Ao contrário, a solidão é tão perturbadora que se mostra inexprimível:
Não adormeceu, tem os olhos muito abertos, envolvido na penumbra como um
bicho-da-seda no seu casulo, Estás só, ninguém o sabe, cala e finge, murmurou estas
palavras em outro tempo escritas, e desprezou-as por não exprimirem a solidão, só o
dizê-las, também ao silêncio e ao fingimento, por não serem capazes de mais que
dizer, porque elas não são, as palavras, aquilo que declaram, estar só, caro senhor, é
muito mais que conseguir dizê-lo e tê-lo dito.381
A solidão é tamanha que Ricardo Reis chega a criar presenças inexistentes:
Ricardo Reis não saiu para jantar. Tomou chá e bolos na grande mesa da sala,
acompanhado de sete cadeiras vazias, sob um candeeiro de cinco braços com duas
lâmpadas fundidas, dos bolos secos comeu três, ficava um no prato, recapitulou e
viu que lhe faltava dois números, o quatro e o seis, rapidamente soube encontrar o
primeiro deles, estavam nos cantos da sala rectangular, mas para descobrir o seus
teve de levantar-se, procurar aqui e ali, com essa busca ganhou o oito, as cadeiras
vazias, finalmente decidiu que seria ele o seus, podia ser qualquer número, se era,
provadamente, inúmeros. Com um sorriso de meia ironia e tristeza abanou a cabeça,
murmurou, creio que estou a endoidecer (...).382
E assim sugere que os inúmeros que vivem em Ricardo Reis não são o seu estado
subjetivo, mas, talvez uma criação que possa aliviar o peso da solidão. Quando isso não
funciona, a própria solidão, tão densa quanto o silêncio – “sentiu uma presença, talvez não
fosse ainda a solidão, era o silêncio, meio-irmão dela”383
–, parece um organismo animado,
que se divide entre a tarefa de fazer companhia, e o não proposital e inocente efeito de
assombrar: “A solidão pesa-lhe como a noite, a noite prende-o como visco, (...) é um animal
submarino pesado de movimentos, uma tartaruga indefesa, sem carapaça.”384
Em razão de
Ricardo Reis não conseguir dominar-se, como já foi demonstrado aqui, é comum ser
arrebatado pelas emoções, e, por mais que tenha escolhido ser só, abstendo-se de
380
Ibidem, p. 89. 381
Ibidem, p. 199-200. 382
Ibidem, p. 241-242. 383
Ibidem, p. 231. 384
Ibidem, p. 225.
191
comprometimentos afetivos, familiares e sociais, ele claramente demonstra sofrer de
melancolia provocada pela solidão, que é quando ela passa a ter vida própria, e estar presente
mais por uma escolha própria do que de Ricardo Reis. As fantasias sobre estar acompanhado
se tornam férteis, parecendo, muitas vezes, confundidas com a realidade. Por essa razão, um
outro solitário, criado por Saramago, ser referido: em Todos os nomes, o protagonista é um
funcionário público, de meia-idade, muito ordinário, que se divide entre organizar os arquivos
da Conservatória Geral do Registro Civil e sua coleção de notícias de celebridades. Assim
como Ricardo Reis, o Sr. José é um solitário, e de tão só, chega a desenvolver diálogos
imaginários com o teto de seu quarto. Em O ano da morte de Ricardo Reis, a solidão se inclui
na narrativa, inicialmente, como um capricho do protagonista, que não quer ter grandes
envolvimentos de nenhuma ordem, inclusive com outros seres humanos. Mas, aos poucos, ela
se mostra mais um dos efeitos da vida moderna e assume a forma de um dos fatores que
fazem com que Ricardo Reis seja atingido pela realidade e por isso abandone seus escrúpulos
de hedonista indiferente. Esse outro lado da solidão se torna cada vez mais marcante também
nos encontros que Ricardo Reis tem com um visitante muito inusitado: o fantasma de
Fernando Pessoa.
192
5. O FANTASMA DE FERNANDO PESSOA
5.1. UM VISITANTE
Ao longo do romance, que se passa entre dezembro de 1935 e setembro de 1936,
Ricardo Reis recebe as frequentes visitas de Fernando Pessoa, morto em 30 de novembro de
1935. Essas visitas promovem longas e intensas conversas entre os dois, e também refletem as
constantes desavenças e discordâncias observadas entre os heterônimos pessoanos, fator que
serve para indicar o quão próximo da obra original de Fernando Pessoa Saramago parece
querer se manter no romance. Por exemplo, notam-se em Ricardo Reis e Álvaro de Campos
reações opostas à morte de Fernando Pessoa: enquanto um é motivado a encerrar o seu exílio
voluntário no Brasil e retornar a Portugal, o outro deixa Portugal, e vai para Glasgow, Escócia
– “Fernando Pessoa faleceu Stop Parto para Glasgow Stop Álvaro de Campos (...).”385
No
universo pessoano, as discordância entre os heterônimos é frequente, além de o próprio
fundamento poético de cada heterônimo estar muito divergente um do outro.
O reencontro de Fernando Pessoa e Ricardo Reis, ou a primeira visita de Fernando
Pessoa a Ricardo Reis, ao contrário, é bastante tranquila. Na verdade, tão tranquila que nem
parece um contato sobrenatural. No caso de estar diante de um homem que já não vive,
Ricardo Reis poderia reagir com susto, mas não é o que acontece. É fato que ele se prende ao
desejo de estar sempre impassível, o que poderia explicar a naturalidade com que ele conversa
com um fantasma. O diálogo se inicia surpreendentemente normal, como se fossem dois vivos
se reencontrando: “(...) e não pensou que fosse acontecimento irregular estar ali à sua espera
Fernando Pessoa, disse Olá, embora duvidasse de que ele lhe responderia, nem sempre o
absurdo respeita a lógica, mas o caso é que respondeu (...)”386
, e se abraçam de forma cortês o
regressado e o fantasma: “Olham-se ambos com simpatia, vê-se que estão contentes por se
385
SARAMAGO, 2003, p. 77. 386
Idibem, p. 76.
193
terem reencontrado depois de longa ausência (...)”387
. E, logo em seguida Fernando Pessoa é
quem inicia o diálogo, quando, talvez, o esperado fosse que Ricardo Reis o fizesse, já que,
deveria estar abalado pela estranha situação, gritaria assustado, ou perguntaria aflito a
Fernando Pessoa como seria possível que estivesse ali em sua presença. Essa aparente
tranquilidade de Ricardo Reis, em um primeiro momento, poderia ser reflexo de sua
indiferença. No entanto, como foi analisado, a impassibilidade é uma ambição de Ricardo
Reis, mas não é o que ele consegue realmente vivenciar – e isso se observa tanto nas odes,
quanto no romance. Ricardo Reis não consegue controlar suas emoções, e, na verdade, está o
tempo todo sujeito a elas. O próprio Fernando Pessoa perceberá isso, e confrontará Ricardo
Reis.
As discordâncias entre os heterônimos presentes na obra pessoana se devem ao fato de
que são variações muito distintas de pessoas poéticas, com fundamentos ideológicos e
filosóficos muito distantes. No romance de Saramago isso se mantém, inicialmente, nos
afrontamentos que Fernando Pessoa dirige a Ricardo Reis. O traço debochado característico
da poesia de Pessoa se reproduz nos diálogos entre os personagens. Por exemplo, quando eles
se reencontram, Ricardo Reis explica as razões que o levaram a retornar a Portugal e
Fernando Pessoa observa: “Você, Reis, tem sina de andar a fugir das revoluções, em mil
novecentos e dezanove foi para o Brasil por causa de uma que falhou, agora foge do Brasil
por causa de outra.”388
E não hesita em apontar a contradição em Ricardo Reis: “Você
continua monárquico, Continuo, Sem rei, Pode-se ser monárquico e não querer um rei, É esse
o seu caso, É, Boa contradição.” Contradição que se origina na necessidade de consolo, não
no princípio de se distanciar da lógica: “Querer pelo desejo o que sabe não poder querer pela
vontade.” E Fernando Pessoa também apontará o relacionamento de Ricardo Reis com Lídia
como algo que não condiz com o idílio declarado nas odes, em que Ricardo Reis tem como
387
Ibdem, p. 77. 388
Ibidem, p. 78.
194
interlocutoras musas quase etéreas, que não falam, não reagem, parecem apenas corresponder
o que Ricardo Reis quer delas, enquanto ele mantém delas a distância definida pelo desenlaçar
das mãos389
, uma interação amorosa que mais parece frigidez. O Ricardo Reis que Fernando
Pessoa confronta no romance é bem mais carnal do que o das odes:
Não vamos poder conversar muito tempo, talvez me apareça aí uma visita, há de
concordar que seria embaraçoso, Você não perde tempo, ainda não há três semanas
que chegou, e já recebe visitas galantes, presumo que serão galantes, Depende do
que se queria entender por galante, é uma criada de hotel, Meu caro Reis, você, um
esteta, íntimo de todas as deusas do Olimpo, a abrir os lençóis da sua cama para uma
criada de hotel, a uma serviçal, eu que me habituei a ouvi-lo falar a toda a hora, com
admirável constância, das suas Lídias, Neeras e Cloes, e agora sai-me cativo duma
criada, que grande decepção, Esta criada chama-se Lídia, e eu não estou cativo, nem
sou homem de cativeiro, Ah, ah, afinal a tão falado justiça poética sempre existe,
tem graça a situação, tanto você chamou por Lídia, que Lídia veio, teve mais sorte
que o Camões, esse, para ter uma Natércia precisou de inventar o nome e daí não
passou, Veio o nome de Lídia, não veio a mulher, Não seja ingrato, você sabe lá que
mulher seria a Lídia das suas odes, admitindo que exista tal fenômeno, essa
impossível soma de passividade, silencio sábio e puro espírito, É duvidoso, de facto,
Tão duvidoso como existir, de facto, o poeta que escreveu suas odes, Esse sou eu,
Permita-me que exprima minhas dúvidas, caríssimo Reis, vejo-o aí a ler um romance
policial, com uma botija aos pés, à espera duma criada que lhe venha aquecer o
resto, rogo-lhe que não se melindre com a crueza da linguagem, e quer que eu
acredite que esse homem é aquele mesmo que escreveu Sereno e vendo a vida à
distância a que está, é caso para perguntar-lhe onde é que estava quando viu a vida a
essa distância, Você disse que o poeta é um fingidor, Eu o confesso, (...) o pior é que
morri antes de ter percebido se é o poeta que se finge de homem ou se é o homem
que se finge de poeta, Fingir e fingir-se não é o mesmo, Isso é uma afirmação ou
uma pergunta, É uma pergunta, Claro que não é o mesmo, eu apenas fingi, você
finge-se (...).390
Fernando Pessoa acusa Ricardo Reis de vestir nas odes uma máscara, e não pela razão
de criar um outro homem que não seja ele próprio, mas para dissimular um homem que não é,
para “querer pelo desejo o que sabe não poder querer pela vontade”; para ser, nas odes, o
amante das musas etéreas, em vez do homem que precisa de companhia, mas não se permite
enlaçar-se em uma relação que pode lhe provocar decepções, abandono e sofrimento.
Fernando Pessoa é categórico ao afirmar que o Ricardo Reis das odes não existe, já que,
quando Ricardo Reis não está sendo o poeta – mais propriamente, quando ele está sendo
personagem de Saramago – ele está sendo exatamente o homem que se distingue de sua
idealização. O sentido implicado na afirmação sobre Ricardo Reis não existir pode ir além, se
389
Ode 315 (PESSOA, 2003, p.256). 390
SARAMAGO, 2003, p. 115.
195
for identificado com o significado do sujeito que, por não se permitir ter experiências, inflige-
lhe uma anulação que suprime-lhe a própria existência, ou seja, a sua condição como vida,
que está no mundo interferindo nele pelo simples fato de existir. A anulação disso acaba
significando uma conformação exatamente a uma ordem que precisa que seus indivíduos se
anulem, e é esse significado que Saramago está lendo em Ricardo Reis.
É dessa anulação que Fernando Pessoa, criação de Saramago, fala quando acusa
Ricardo Reis de fingir-se, distinguindo-o do fingimento a que Pessoa se refere em seu poema
“Autopsicografia”. Fingir para Pessoa é, portanto, simular uma experiência que constituirá a
sua criação artística, e a forma como é colocado no romance, o fingimento pessoano serve de
confrontação ao fingimento de Ricardo Reis: este é exposto não como uma voz poética, mas
como um modelo de felicidade, uma idealização – que não é o que o personagem de
Saramago vivencia fora de suas odes. A filosofia de Ricardo Reis constitui a poesia que
permite que ele realize ficcionalmente o que ele não consegue realizar em vida. E como o que
ele deseja corresponde à autoanulação, à supressão de seu potencial ativo, questionador e
realizador, em lugar de uma existência de paralisia, cabe aqui ressaltar que o fingimento
pessoano não se articula da mesma forma, nem no mesmo sentido. Na verdade, o fingir de
Pessoa permite o oposto à autoanulação, conforme observa Jorge de Sena em seu estudo “’O
poeta é um fingidor’: Nietzsche, Pessoa e outras coisas mais”391
; aqui lê-se o fingimento como
a descoberta do pensamento autêntico, ou, como primeiro percebe Jacinto do Prado Coelho392
,
o fingimento é, antes de mais nada, a exploração máxima da inteligência do poeta. Jacinto é o
primeiro crítico a falar com propriedade da poesia de Fernando Pessoa, e a tentar ler a
heteronímia como manifestação da lucidez do poeta, e não do seu misticismo, como muito se
fez e ainda se faz. Jacinto do Prado Coelho entende que, apesar de os heterônimos se
391
SENA, Jorge de. Fernando Pessoa & Cia heteronímia. (Estudos coligidos 1940-1978). 3ª edição. Lisboa:
Edições 70, 2000. 392
COELHO, Jacinto do Prado. Diversidade e unidade em Fernando Pessoa. 5ª edição. São Paulo:
Verbo/EDUSP, 1977.
196
caracterizarem pelas diferenças entre si, eles compartilham alguns aspectos – como a
percepção da realidade como algo irreal, a angústia diante do desconhecido, a infalibilidade
da morte, a lucidez, a dor existencial, a expressão da Modernidade, etc. –, inclusive, a questão
do fingimento, que é o princípio da criação artística, de acordo com a concepção pessoana
sobre a arte. O que Jacinto lê em Pessoa é que o artista precisa menos do seu sentimento que
da sua inteligência, por isso se ampara no fingimento. O que é posto no poema é o que o poeta
sente com a inteligência e não com o coração. O poeta finge para expressar a matéria da sua
criação, ou seja, fingir a dor é encontrar uma forma de representar uma ideia de dor na arte; é
a técnica do artista. Fingir é, portanto, diferente de sentir, porque é representar esteticamente o
que não se pode representar fora da ficção. Nisto consiste a diferença entre ficção e realidade:
esta é indefinida, enquanto aquela consegue ser precisa. Por isso, o poeta precisa fingir para
conseguir transmitir o que está vivendo em sua inteligência. É a sinceridade intelectual que
importa ao poeta, enquanto a “sinceridade integral, absoluta, pressupõe uma comunicação
com a nossa realidade íntima, que, como vimos, o poeta considera inviável”393
. Por essa
razão, reencontramos o choque ente Fernando Pessoa e Ricardo Reis: o que este oferece em
suas odes não pode ser considerado “sinceridade intelectual”, visto que não se trata do que
Ricardo Reis sente em sua inteligência – que seria aquilo que ele percebe de irreal na
realidade e sua angústia diante do desconhecido, seu medo da morte – mas daquilo que ele
projeta sobre a realidade, ou seja, suas ambições que ele diz não ter. O resultado disso é a falta
de sinceridade inclusive de Ricardo Reis consigo próprio, o que implica a autoanulação.
O estudo de Jorge de Sena vai além e percebe no fingimento pessoano não apenas a
“sinceridade intelectual”, ou seja, a descoberta da verdade por meio da mentira, mas também,
e por consequência, a ruptura com a verdade dominante, ou seja, a revelação da mentira e a
rejeição a ela. No estudo já mencionado, Jorge de Sena está fazendo uma associação entre o
393
Ibidem, p. 107.
197
fingimento pessoano e a mentira nietzschiana, que é o critério único para que o poeta consiga
dizer a Verdade. Mentir, nesse sentido, não significa “criar ficções”, nem “o pura e
simplesmente fingir, qual os detractores de Fernando Pessoa leram no primeiro verso (e não
nos outros) da ‘Autopsicografia’”394
. Mentir significa alcançar a “expressão autêntica de um
conhecimento do Mundo”395
, rompendo, portanto, com a Verdade historicamente postulada. É
uma forma de autenticidade, e, por isso, de visão, iluminação profana, para lembrar aqui de
Walter Benjamin. Sena coloca as palavras de Nietzsche citadas por Karl Jaspers: “O conceito
de verdade é um contra-senso.” A mentira do poeta, segundo a compreende Jorge de Sena,
será uma verdade autêntica, porque está desvencilhada da ordem e do real, e porque ela é o
resultado da “antinomia ‘verdadeiro-falso’”396
, e do ultrapassamento do poeta de si mesmo,
do sujeito histórico e de experiências próprias, ao qual “se identificava a essência da poesia
que o poeta materializava, existenciava objetivamente”397
. É esse ultrapassamento que Pessoa
busca realizar, visando superar não apenas a compreensão tradicional da poesia, como
também o conceito de Verdade.
Sena cita o “Ultimatum”, do Álvaro de Campos, considerando que naquele manifesto
se imprimem certos critérios para a poesia de Pessoa, cujo conceito essencial é o fingimento.
Em primeiro lugar, aponta-se “a abolição do dogma da personalidade”, porque é necessário
que o artista “sinta por certo número de Outros”; em segundo lugar, “a abolição do
preconceito da individualidade”, justificada a partir de princípios psicanalíticos por Álvaro de
Campos: “a ciência ensina (...) que cada um de nós é um agrupamento de psiquismos
subsidiários”. A individualidade é definida por Álvaro de Campos como um dogma; em
terceiro lugar, “a abolição do dogma do objetivismo pessoal”, porque Álvaro de Campos
considera a objetividade uma “média grosseira entre subjetividades parciais”, ou seja, a
394
SENA, 2000, p. 98. 395
Ibidem, p. 98. 396
Ibidem, p. 99. 397
Ibidem, p. 99.
198
objetividade não só limita e desapropria o artista, como também é falsa. O manifesto se
encerra com a proclamação do advento do Super-Homem, uma conclusão, talvez, imprópria,
porque extrapola, em parte, a conquista da autenticidade poética, idealizando um homem um
tanto quanto definido por sua superioridade... Ao pensar a existência humana como
independente da realidade, Álvaro de Campos imagina um homem que não somente supera
essa realidade, suas artimanhas para limitar a existência – como, por exemplo, o “dogma da
personalidade”, que define a existência e padroniza a vida –, como também, e por causa disso,
supera a si mesmo. Isso implica admitir-se como sub-homem – já que aspira ao Super-
Homem –, o que encaminha o pensamento justamente para um complexo de inferioridade, um
problema de autoestima que coloca a existência objetiva, isto é, aquela definida pelo real,
como, de fato, determinante sobre a maneira como se deve ser e existir. Não é o sujeito que
deve ser superado, mas a imposição que a cultura exerce sobre ele. Mas, Álvaro de Campos
avança muito além da necessidade de superar a cultura, descobrindo também a necessidade de
se superar a si mesmo: é nesse ponto em que ele se vê pequeno e vislumbra o seu Super-
Homem, uma idealização do sujeito que acaba por permitir o desejo de se transformar no
sujeito supremo, o que se caracteriza por uma aproximação à megalomania. Talvez esse
desejo deva ser desacelerado e o entusiasmo pela onipotência deva ser contido, ao mesmo
tempo em que se deva retornar uns passos para trás e manter a energia direcionada
exclusivamente à busca pela superação da cultura e do sujeito que ela cria e impõe
arbitrariamente a todos os indivíduos.
É essa busca que Jorge de Sena está lendo no “Ultimatum”, destacando os pontos que
o sintetizam: “a ruptura no tempo ordinário dos homens; (...) tempo de licença e de deboche,
de violência e de desordem, de sacrilégio deliberado e de audácia premeditada”, que
direcionarão o conhecimento autêntico para a superação, “o transpor do homem para os seus
199
próprios poderes; e a necessidade de poesia como garantia de poder”398
. Mas o que cabe aqui
é deter a atenção apenas à superação do conceito de Verdade e a expressão artística como
conhecimento autêntico, o que vale como fundamento da heteronímia, a estética do
fingimento. Todo o manifesto de Álvaro de Campos é um protesto contra as ideias
estabelecidas, os heróis e líderes eleitos, a ordem, a História, o status quo, a Verdade
dominante. Tudo isso está envolvido na concepção da personalidade socializada, que é
proporcionalmente tão pragmática quanto a necessidade de controle da burocratização, muito
presente nos regimes que estão se desenvolvendo naquele início de século, momento da
elaboração da heteronímia, e da escrita do “Ultimatum”. O que se observa na estética do
fingimento é um esforço próprio do impulso contestador: é a negação da personalidade íntegra
e administrada, moldada conforme as exigências sociais. Como se sabe, a civilização dispõe
de mecanismos de controle cujo propósito é exatamente assegurar que ela continue existindo.
A heteronímia se fundamenta na desordem da personalidade, que não se adequa e não se
controla, e desobedece aquilo que Álvaro de Campos chama de “dogma da personalidade”.
À análise de Sena, une-se o estudo de Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa, o rei da
nossa Baviera399
, em que o autor interpreta a heteronímia – a estética alcançada exatamente
por meio do fingimento – também como uma nova forma de construção da verdade. Eduardo
Lourenço apresenta a heteronímia como a descoberta de si como outro, que é convertida no
jogo da verdade de Pessoa. Lourenço, assim como Sena, aponta um erro de interpretação da
poesia pessoana, promovendo a heteronímia na própria via de mistificação do poeta, que diz
que o “mito é nada que é tudo”400
. Mas essa mitificação não poderia ser mais contrária a um
poeta que não deseja ocupar o lugar dos deuses, ao contrário, torna-se ninguém, para que nós,
“toda a gente”, possamos, talvez, experimentar a descoberta de si como outro, visitando a
398
Ibidem, p. 105. 399
LOURENÇO, Eduardo. Fernando Pessoa, o rei da nossa Baviera. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1986. 400
PESSOA, 2003.
200
“sua barca de melancolia sem reparar, como ele, que a paisagem é uma coleção de imagens
sem sentido e a viagem perdida de antemão”401
. O que Eduardo Lourenço chama de “mito-
Pessoa” se torna objeto de culto e o crítico considera que isso obscurece o poeta, porque o
mito é desconhecido. Esse status é incompatível com um poeta que não fala sobre o
desconhecido, porque ele suspende a ponte que separa suas emoções e o verbo que as modula,
alcançando, portanto, uma forma de comunica-las. Lourenço diz, inclusive, que o fingimento
pessoano, na verdade, significa para Pessoa “o impossível sonho de uma poesia sem
fingimento”402
.
Quer dizer, um contacto entre o homem e a sua verdade, ou antes, entre o homem e a
Verdade – no plano das sensações, dos sentimentos, das emoções e das ideias – tão
misterioso como o que une o animal à natureza e que, só a nós, seres conscientes,
nos é vedado. E por nos ser vedado somos, queiramo-lo ou não, naturalmente
infelizes, infelizes por não sermos naturais, como o gato que brinca na rua como se
fosse sua cama. Ou então, imaginariamente felizes, como Caeiro, despindo-se de si,
palavras e ideias, para se deitar na erva quente da realidade. Este é o fundamento
único da visão de Pessoa e parece impossível como uma visão, ao mesmo tempo tão
desolada e tão intelectual, pôde servir de pedestal ao mito-Pessoa.403
O que faz Pessoa ser tão fascinante a ponto de merecer esse pedestal é, segundo
Lourenço, que ele consegue comunicar o mal-estar da existência moderna, o que é um
sentimento coletivo, atraindo a identificação daqueles que se reconhecem nessa existência. A
encenação da heteronímia, “o célebre ‘drama em gente’, a invenção dos Pessoas-outros”404
,
provoca o alumbramento da revelação de si a si mesmo, ou de si como o próprio produto do
mal-estar da existência moderna. Pessoa comunica essa dor perseguindo a consciência dessa
dor; enquanto isso, Ricardo Reis persegue o sufocamento dessa dor. São como duas forças
opostas incidindo sobre e a partir de um mesmo objeto. Por isso, Pessoa, no romance de
Saramago, acusa Ricardo Reis de fingir-se, a sua paixão é um disfarce de si para si mesmo. O
fingimento de Pessoa, ao contrário, não é disfarce, não é o desvio do eu de si, mas é a
revelação do que Lourenço chama de “longo processo de dissolução do Eu”, que se inaugura
401
LOURENÇO, 1986, p. 11. 402
Ibidem, p. 11. 403
Ibidem, p. 11-12. 404
Ibidem, p. 12.
201
com o Romantismo. Na verdade, ele considera a heteronímia o último ato desse processo,
cujos atores são Hoffman, Dostoievski, Kierkegaard, Browning e Rimbaud, que viveram “sem
a salvadora crença que durante séculos nos inculcaram como feitos à imagem de Deus e,
como ele, unos e virtualmente imortais”. Em Portugal mesmo, Garret é raiz da
“heteronimização”, e depois do romantismo, Antero de Quental e Eça de Queiroz também se
expõem ao “outramento”.
Enquanto Fernando Pessoa vive o “pânico da vida real, defendendo-se dele pelo
humor e pelo sonho”, Ricardo Reis esquiva-se dele, evitando sentir pânico, ou lembrar-se de
que está em pânico, alienando-se da consciência desse estado. Pessoa prefere enfrentar esse
pânico, ironizando-o, reconhecendo-se em seus destroços, na sua dissolução, que representa
na intriga entre os heterônimos. Por essa razão, Eduardo Lourenço entende a heteronímia
como a antecipação da morte do homem: o objetivo é não só avisar a humanidade que Deus
está morto, como descobre Nietzsche405
, como também o homem e a ilusão humanista. É
assim que Lourenço identifica em Pessoa o herdeiro mais direto e coerente da Geração de 70:
ela disfarça “o caos do espírito e da alma”. É consciente da decadência que arrebata Portugal,
da crise e da derrota. “Pessoa é o poeta da Depressão – histórica, psicológica, metafísica e
psiquiátrica.”406
.
Os heterônimos, segundo Lourenço, são os desdobramentos da consciência infeliz
transmutada em felicidade inconsciente, ou seja, são sonhos diversos formulados por Pessoa
para “fingir que é possível descobrir um sentido para a nossa existência”407
. Já Ricardo Reis
não quer descobrir sentido algum, não quer nem sequer lembrar que esse sentido possa existir.
Os heterônimos não curam a tristeza e a solidão de Pessoa, mas nos ajudam a perceber que
somos “puros mutantes”, variamos entre uma e outra forma de buscar respostas. Eduardo
Lourenço acredita que Pessoa deva ser lido à luz do Livro do Desassossego, o grande
405
NIETZSCHE, 2012. 406
LOURENÇO, 1986, p. 15. 407
Ibidem, p. 19.
202
manifesto da Depressão, de modo que possa ser compreendido e salvo da mistificação na qual
vem sendo petrificado. Lourenço compreende que, diante da sua angústia existencial, Pessoa
encena os heterônimos tentando imaginar neles diferentes formas de se responderem todos os
questionamentos. Mas, talvez seja o caso de também se pensar nos heterônimos apenas como
as diferentes reações do homem a quem nenhuma resposta foi apresentada, e que está agora
tentando assimilar a experiência de quem não se encontrou no labirinto de si mesmo. As
respostas não foram alcançadas e a heteronímia é a expressão do homem que descobriu sua
real e irreversível condição.
Por isso, também, que os heterônimos estão em permanente discordância. Cada um
deles tem convicções que orientam suas criações poéticas, mas isso não significa que eles são
capazes de resolver os problemas com os quais qualquer sujeito se depara em algum momento
de sua vida. Se alguma questão pudesse ser resolvida por algum deles, ele seria o único livre
de ser contrariado. Mesmo Alberto Caeiro, o mestre de todos os outros, encontra-se
questionado, por Ricardo Reis, por exemplo, que sente falta da disciplina quando lê os versos
livres do mestre que, por outro lado, consegue manter as emoções disciplinadas. Sendo assim,
não é de se admirar que, também no romance de Saramago, a discordância entre os
heterônimos se mantenha. Começa pelas reações opostas de Ricardo Reis e Álvaro de
Campos à morte de Fernando Pessoa. O próprio Pessoa, ao ler o telegrama, percebe que “é o
Álvaro de Campos por uma pena, mesmo em tão poucas palavras nota-se uma espécie de
satisfação maligna, quase diria um sorriso, no fundo da sua pessoa o Álvaro é assim”408
.
O Álvaro de Campos era, rigorosamente, e para não sair da palavra, um safado,
Você nunca se entendeu muito bem com ele, Também nunca me entendi muito bem
consigo, Nunca nos entendemos muito bem uns com os outros, Era inevitável, se
existíamos vários (...).409
E, como já começou a ser dito, não faltarão discordâncias, embates e provocações
entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis no romance, exatamente como eles se apresentam na
408
SARAMAGO, 2003, p. 77. 409
Ibidem, p. 370.
203
obra poética de Fernando Pessoa. No romance, Ricardo Reis será constantemente alvo das
críticas de Pessoa, que também tem palavras reservadas às novas odes que lhe são mostradas.
Em um ponto diz que Ricardo Reis não muda seu tema – “você já o tinha dito mil vezes de
mil outras maneiras, que eu me lembre, antes de partir para o Brasil, o trópico não lhe
modificou o estro”410
–, o que Reis justifica: “Não tenho mais nada para dizer, não sou como
você”, e Fernando Pessoa responde com um deboche até arrogante: “Há-de vir a ser, não se
preocupe.”411
E Fernando Pessoa é ainda mais duro em sua crítica ao acusar Ricardo Reis de
poetizar a ordem:
(...) reparando bem, meu caro Reis, as suas odes sejam, por assim dizer, uma
poetização da ordem, Nunca vi dessa maneira, Pois é o que elas são, a agitação dos
homens é sempre vã, os deuses são sábios e indiferentes, vivem e extinguem-se na
própria ordem que criaram, e o resto é talhado no mesmo pano, Acima dos deuses
está o destino, O destino é a ordem suprema, a que os próprios deuses aspiram, E os
homens, que papel vem a ser o dos homens, Perturbar a ordem, corrigir o destino,
Para melhor, Para melhor ou para pior, tanto faz, o que é preciso é impedir que o
destino seja destino (...).412
O que se nota no Fernando Pessoa que é criação de Saramago é não apenas uma
divergência entre suas opiniões e as de Ricardo Reis, mas o quanto ele aponta no médico
graves desvios ideológicos, a sua postura contraditória, isto é, sua incapacidade em se manter
coerente ao que ele apologiza nas odes; além disso, e principalmente, Fernando Pessoa aponta
em Ricardo Reis sua inclinação à direita, apesar de se declarar indiferente à política. Em meio
ao processo de desencantamento de Ricardo Reis, Fernando Pessoa é um dos fatores que
colaboram com esse processo, evidenciando, através de sua crítica ácida e ferina, questões
elementares no universo de Ricardo Reis que ele nunca quis encarar. Portanto, é claro que
Fernando Pessoa não se limita a criticar Ricardo Reis em relação ao que ele expõe em suas
odes, mas também ao que ele vive e as escolhas que faz, ou ao simples modo como ele vê a
vida. Fernando Pessoa, inclusive, não se limita a apontar as falhas de Ricardo Reis, como
410
Ibidem, p. 338. 411
Ibidem, p. 338. 412
Ibidem, p. 340.
204
também o faz ver que ele próprio não se aprova. Na primeira noite de Ricardo Reis em sua
nova morada, Fernando Pessoa o visita, o que agrada Ricardo Reis, que não queria passar
aquela noite sozinho:
(...) deu-me até muito gosto que tivesse aparecido, esta primeira noite,
provavelmente, não ia ser fácil, Medo, Assustei-me um pouco quando ouvi bater,
não me lembrei que pudesse ser você, mas não estava com medo, era apenas a
solidão, Ora a solidão, ainda vai ter de aprender muito para saber o que isso é,
Sempre vivi só, Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos
capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a
solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância
entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz, Você está a tresvariar, tudo
quanto menciona está ligado entre si, aí não há nenhuma solidão, Deixemos a
árvore, olhe para dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar
por entre a gente, Pior do que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos.413
Essa tentativa de Fernando Pessoa de definir a solidão parte da vontade de dizer que só
está sozinho aquele que não consegue fazer companhia a si próprio, e que, por isso, não é
capaz de conviver consigo próprio. O solitário se condena e se reprova, não se sente à vontade
em sua própria companhia. Essa é a solidão de que sofre Ricardo Reis, e que Fernando Pessoa
diagnostica em virtude de Ricardo Reis apresentar tantas contradições. Se ele próprio não
consegue seguir o que acredita, ou se ele próprio não é aquele que ele gostaria de ser, é
porque, no fundo, não concorda com o que diz acreditar. Portanto, é como se sua própria
presença fosse indesejada por ele. Há o ponto em que Fernando Pessoa declara a própria
estranheza da condição humana, algo de que Ricardo Reis está sempre tentando se esquivar:
“É esse o drama, meu caro Reis, ter de viver em algum lugar, compreender que não existe
lugar que não seja lugar, que a vida não pode ser não vida.”414
Com isso, mais uma vez
Fernando Pessoa aponta algo em Ricardo Reis que ele próprio não aprova, que é o fato de
estar preso à vida e à realidade, e não gostar de conviver com isso. Por mais que Ricardo Reis
tente deslocar-se da vida, ele jamais será capaz de tal proeza. Tudo o que ele manifesta nas
odes são tentativas de se esquivar da realidade, e até de si mesmo, e é isso o que Fernando
413
Ibidem, p. 227. 414
Ibidem, p. 151.
205
Pessoa acusa nessa afirmação. Essa é a sua tentativa de desencantar Ricardo Reis do feitiço de
sua autoalienação, ou da ilusão de se autoalienar. Mais à frente, ele é mais direto:
Você sempre se decide a voltar para o Brasil, Tenho dias que é como se já lá
estivesse, tenho dias que é como se nunca lá tivesse estado, Em suma, você anda a
flutuar no meio do Atlântico, nem lá, nem cá, Como todos os portugueses.415
Com essa comparação, Ricardo Reis reconhece não apenas a condição histórica de
deslocamento dos portugueses, como também, e consequentemente, a sua própria condição,
que não é algo que ele pode escolher, mas que é inerente à existência. Ele pensa poder escapar
aos infortúnios, às perturbações da realidade, e viver em trânsito é o que ele acredita ser a
forma de evadir-se. Mas não é: isso é apenas ele fingindo-se, isto é, fantasiando sobre sua
existência imperturbada, enganando-se. A respeito da vida sentimental de Ricardo Reis, a
ilusão sobre sua capacidade de evadir-se é a mesma: nas odes, ele tem interlocutoras
diferentes, as suas musas Cloe, Neera, Marcenda e Lídia – esta última mais constante –
demonstrando a inconstância de quem não deseja o envolvimento e o aprofundamento de uma
relação, com tudo o que isso pode acarretar, e perturbar esse estoico heterônimo. No romance,
Ricardo Reis interage com apenas duas mulheres, que têm os nomes de duas das musas das
odes: Lídia e Marcenda. Elas diferem das musas das odes porque elas estão mudas e passivas,
mal demonstram agir, ou expressar sentimentos e reações, enquanto aquelas têm voz,
convicções, ações, ou seja, estão mais próximas de uma mulher real. Lídia e Marcenda são tão
reais que são capazes até de causar assombro, o mesmo assombro que arrebata Ricardo Reis
quando ele é atingido pela realidade do Portugal salazarista, da Europa agitada pela crise
econômica, pelo avanço do nazismo e do fascismo, pela Guerra Civil Espanhola. Enfim, a
interação de Ricardo Reis com Lídia e com Marcenda no romance, não é definida pelo
distanciamento, e isso é notado por Fernando Pessoa, que não perde a oportunidade de fazer
troça em cima do assunto:
415
Ibidem, p. 370.
206
E é mulher essa pessoa que você espera, É mulher, Bravo, vejo que você se cansou
de idealizações femininas incorpóreas, trocou a Lídia etérea por uma Lídia de encher
as mãos, que eu bem a vi lá no hotel, e agora está aqui à espera doutra dama, feito D.
João nessa sua idade, duas em tão pouco tempo, parabéns, para mil e três já não lhe
falta tudo, Obrigado, pelo que vou aprendendo os mortos ainda são piores que os
velhos, se lhes dá para falar perdem o tento na língua.416
E Fernando Pessoa se despede: “Adeus, caro Reis, até um destes dias, deixo-o a
namorar a pequena, você afinal desilude-me, amador de criadas, cortejador de donzelas,
estimava-o mais quando você via a vida à distância a que está”, e Ricardo Reis reconhece “A
vida, Fernando, está sempre perto”417
, demonstrando que a tentativa de Fernando Pessoa
desmontar os princípios estoicos de Ricardo Reis surtiu efeito. Em outra ocasião, Fernando
Pessoa volta a debochar dos namoros de Ricardo Reis, ele insiste nesse ponto, como se ainda
estivesse incrédulo perante o fato de Ricardo Reis, o cortejador de musas inanimadas, estar se
relacionando com mulheres bem vivas e bem reais:
O que eu não esperava era que você fosse tão persistente amante, para o volúvel
homem que poetou a três musas, Neera, Cloe e Lídia, ter-se fixado carnalmente em
uma, é obra, diga-me cá, nunca lhe apareceram as outras duas (...).418
E como se poderia esperar, ao saber que Lídia está grávida, Fernando Pessoa cai em
gargalhada:
(...) Fernando Pessoa, com um sorriso de alegria, pediu, Distraia-me, conte-me
outros escândalos, então Ricardo Reis não precisou de escolher, de pensar muito, em
três palavras anunciou o maior deles, Vou ser pai, Fernando Pessoa olhou-o
estupefato, depois largou a rir, não acreditava, Você está a brincar comigo, e Ricardo
Reis, um tanto formalizado, Não estou a brincar, aliás, não percebo esse espanto, se
um homem vai para a cama com uma mulher, persistentemente, são muitas as
possibilidades de virem a fazer um filho, foi o que aconteceu neste caso, Das duas
qual é a mãe a sua Lídia ou a sua Marcenda, salvo se ainda há uma terceira mulher,
com você tudo é possível.419
Porém, não se observam apenas discordâncias entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa.
A começar pelo fato de que, apesar de um estar vivo e o outro estar morto, há aspectos de vida
e morte em ambos. O que há de óbvio nisso é que Ricardo Reis, como vimos, vive, mas não
está mais animado que um sonâmbulo ou um zumbi, e não é exagero considerar que, em razão
416
Ibidem, p. 180-181. 417
Ibidem, p. 182. 418
Ibidem, p. 278. 419
Ibidem, p. 369.
207
de tantas abstrações e abstenções, o que ele vive é uma semi-vida. Sua afirmação de que
“nenhum de nós é verdadeiramente vivo nem verdadeiramente morto”420
está em sintonia com
esse seu estado de espírito de moribundo. Essa é sua concepção sobre a vida, porque é como
se vê, um homem a meio caminho da morte e a meio caminho da vida, o que é, como ele
descobrirá, condição de todo e qualquer homem. Nem Fernando Pessoa escapa dessa sorte,
mesmo estando morto, porque mesmo assim, ele ainda “vive”, faz coisas de vivo, inclusive
encontra vantagens em se estar morto – “Quando se está morto, sabe-se tudo”; e “outra
vantagem de se estar morto, ninguém nos vê, querendo nós”421
; esquecer e ser esquecido; um
morto também não se vê no espelho, o que, no caso de Ricardo Reis, como já vimos, é uma
vantagem – o que confere a ele um tanto de vida, porque só tira proveito de algo quem está
vivo. Fernando Pessoa chega mesmo ao ponto de dizer que a morte é “uma espécie de
consciência, um juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida”422
, como se, para tornar-se
verdadeiramente consciente e lúcido fosse necessário estar morto, quando a lucidez deveria
ser supostamente uma propriedade de quem vive. A consciência proporcionada pela morte é
exatamente por se ter passado para o outro lado, onde não há mais vida:
O morto tem a vantagem de já ter sido vivo, conhece todas as coisas deste mundo e
desse mundo, mas os vivos são incapazes de aprender a coisa fundamental, e tirar
proveito dela, Qual, Que se morre, Nós, vivos, sabemos que morremos, Não sabem,
ninguém sabe, como eu também, como eu também não sabia quando vivi, o que nós
sabemos, isso, sim, é que os outros morrem, Para filosofia, parece-me insignificante,
Claro que é insignificante, você nem sonha até que ponto tudo é insignificante visto
do lado da morte, Mas eu estou do lado da vida, Então deve saber que coisas, desse
lado, são significantes, se as há, Estar vivo é significante, Meu caro Reis, cuidado
com as palavras, viva está a sua Lídia, viva está a sua Marcenda, e você não sabe
nada delas, nem o saberia mesmo que elas tentassem dizer-lho, o muro que separa os
vivos uns dos outros não é menos opaco que o que separa os vivos dos mortos
(...).423
Como se pode ver, esse que confronta Ricardo Reis apresenta uma lucidez de quem
vive. Já Ricardo Reis, que é o vivo dos dois, evita a lucidez como quem está, em parte, morto.
Essa animosidade incomoda Fernando Pessoa; e não deixa de fazer menção à aura moribunda
420
Ibidem, p. 79. 421
Ibidem, p. 79. 422
Ibidem, p. 279. 423
Ibidem, p. 278-279.
208
deste de quem se despedirá linhas à frente e que lhe pede para que não bata a porta: “Fique
descansado, não ecoará o som cavo da tampa do sepulcro”424
. Sempre que tem a
oportunidade, Fernando Pessoa não poupa críticas ao vivo:
Então já não regressa ao Brasil, porquê, É difícil responder, não sei mesmo se
saberia encontrar uma resposta, digamos que estou como o insone que achou o lugar
certo da almofada e vai poder , enfim, adormecer, Se veio para dormir, a terra é boa
para isso, Entenda a comparação ao contrário, ou então, que se aceito o sono é para
poder sonhar, Sonhar é ausência, é estar do lado de lá, Mas a vida tem dois lados,
Pessoa, pelo menos dois, ao outro só pelo sonho conseguimos chegar, Dizer isso a
um morto, que lhe pode responder, com o saber feito da experiência, que o outro
lado da vida é só a morte, Não sei o que é a morte, mas não creio que seja esse o
outro lado da vida de que se fala, a morte, penso eu, limita-se a ser, a morte é, não
existe, é, Ser e existir, então, não são idênticos, Não, Meu caro Reis, ser e existir só
não são idênticos porque temos as duas palavras ao nosso dispor, Pelo contrário, é
porque não são idênticos que temos as duas palavras e as usamos.425
O que Fernando Pessoa parece identificar no discurso de Ricardo Reis é a
conformação alienada, é o homem que não quer encarar a vida como oposta à morte, mas
como oposta ao sonho, porque ele gosta de acreditar que pode se resguardar da própria vida.
Para Fernando Pessoa, evitar a vida significa imediatamente desejar a morte, o que ele não
concebe como algo que simplesmente é, como Ricardo Reis explica. Isso torna ainda mais
flagrante que suas ideias não se firmam em uma lógica, mas no que ele prefere acreditar. E,
como ele próprio declara em suas odes, a morte é algo que o apavora, o que é motivo
suficiente para evitá-la, ou enganar-se sobre ela, esquecer que ela é o seu destino. Só que a
maneira que encontra para esquecer a morte – fingir que ela, e também a vida, não existem,
como ele deixa claro quando diferencia “ser” de “existir”, e afirmando que “a morte é, não
existe” – acaba sendo, em si, a sua própria morte em vida, já que ele procura estar sempre
nesse outro lado, o sonho, ou seja, o universo paralelo à realidade – claro está que é o sonho
da fantasia, e não o sonho psicanalítico, que pode ser mais real que a realidade – onde se está
fora da vida, e onde, por isso mesmo, nem a vida nem a morte existem. Esse esforço todo de
Ricardo Reis em criar ou fingir uma lógica para a inexistência da morte, ou para a existência
de uma vida possível em sonho, e fora da vida, é como uma tentativa de se anestesiar ou
424
Ibidem, p. 288. 425
Ibidem, p. 90-91.
209
desativar sua consciência, o que se caracteriza como um estado de sonambulismo, deixando
Ricardo Reis mais próximo de estar morto do que de estar vivo. Ao contrário dele, Fernando
Pessoa se mantém lúcido, não evita reflexões desencantadas e nem a realidade – como se
demonstra pelo seu interesse nas notícias – parecendo, portanto, mais vivo do que morto, e
mais vivo do que Ricardo Reis, que ainda não morreu por completo. Por isso, Fernando
Pessoa está sempre confrontando Ricardo Reis, faz parte de estar consciente, atento, e
preocupado com o mundo dos vivos; por isso não faz sentido para Fernando Pessoa ser
chamado de fantasma: “Perdão, meu caro Reis, não sou nenhum fantasma”, porque “um
fantasma vem do outro mundo, eu limito-me a vir do cemitério dos Prazeres”426
. Como pode
ser averiguado na própria fala de Pessoa, o outro lado é a morte, portanto, aquele e o mundo
que ele ainda não alcançou, mantendo ainda um vínculo forte com a vida. Isso é notado pelo
próprio Ricardo Reis: “Enfim, é Fernando Pessoa morto, o mesmo que era Fernando Pessoa
vivo”, e Pessoa confirma: “De uma certa e inteligente maneira, isso é exato.”427
De tão
próximo da vida, Fernando Pessoa, ao alcançar aquele outro lado da vida que Ricardo Reis
identifica no sonho, sonha que está vivo:
De repente, Fernando Pessoa abriu os olhos, sorriu, Imagine você que sonhei que
estava vivo, Terá sido ilusão sua, Claro que foi ilusão, como todo sonho, mas o que
é interessante não é um morto sonhar que está vivo, afinal ele conheceu a vida, deve
saber do que sonha, interessante é um vivo sonhar que está morto, ele não sabe o que
é a morte, Não tarda muito que você diga que morte e vida é tudo um, Exactamente,
meu caro Reis, vida e morte é tudo um, Você já disse hoje três coisas diferentes, que
não há morte, que há morte, agora diz-me que morte e vida são o mesmo, Não tinha
outra maneira de resolver a contradição que as duas primeiras afirmações
representavam, e dizendo isso Fernando Pessoa teve um sorriso sábio, é o mínimo
que deste sorriso se poderia dizer, se tivermos em conta a gravidade e a importância
do diálogo.428
Ricardo Reis se refere a momentos antes, quando menciona o verso “Neófito, não há
mortes”, do poema “Iniciação”, em que Fernando Pessoa-ortônimo dirige-se a esse iniciado,
cujo corpo é “a sombra das vestes/que o encobrem” o ser profundo.
Iniciação
426
Ibidem, p. 282. 427
Ibidem, p. 282. 428
Ibidem, p. 284.
210
Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
........................................................
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não ‘stás morto, entre ciprestes.
.......................................................
Neófito, não há morte.429
O iniciado vai perdendo as vestes, conforme passa por experiências, como na
“Estalagem do assombro” – talvez uma metáfora para o momento da revelação –, até estar
completamente nu, e até não ter nem mesmo corpo, quando vê que os deuses são seus iguais.
Não tem mais vestes, não tem mais corpo, mas não está morto, como lhe é revelado no verso
final. O Ser é eterno e imortal, ideia que se aproxima do que Ricardo Reis diz anteriormente.
Quando Ricardo Reis cita o verso pessoano, o faz para testá-lo, e Fernando Pessoa admite que
estava errado, porque há, de fato, morte. Tanto quanto há vida; uma e outra não se anulam. Na
verdade, morte e vida são dois aspectos diferentes da existência, dois aspectos que se
confundem, mas que, segundo o Fernando Pessoa de Saramago, são a mesma coisa. São dois
pontos que, por serem opostos, dizem tudo um sobre o outro, afirmam-se negando-se. Mais ou
menos o que se observa nos diálogos entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis: os confrontos
429
PESSOA, 2003, P. 161.
211
mútuos também servem para provar aquilo que são. A morte de um torna real a vida do outro,
e vice-versa. Ambos compartilham a morte e a vida e, no fim do romance, os dois se unem na
morte, que, segundo Pessoa, é uma forma de consciência. Ricardo Reis decide deixar o
mundo dos vivos e ir com Fernando Pessoa para o cemitério dos Prazeres, – a configuração do
Hades, no romance – e isso é apenas o ato final do processo de desencantamento pelo qual
Ricardo Reis passa. Ou seja, a sua morte é o seu ápice de consciência, é o momento em que
mais está vivo. A morte de Ricardo Reis, que marca também a sua reunião definitiva com
Fernando Pessoa, é também o ato final de uma série de momentos isolados em que os dois
parecem reconciliados. O romance reproduz as desavenças manifestas entre os heterônimos
quando criações de Pessoa; mas também narra a relação entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis
com concordâncias.
5.2. UM HABITANTE
Há o trecho já citado anteriormente em que Fernando Pessoa diz que o drama da vida
é não ser possível encontrar “um lugar que não seja lugar”, e Ricardo Reis concorda, os dois
dão sequência a uma troca de falas que mais parecem uma fala única:
Enfim, estou a reconhece-lo, E a mim de que me serve não ter esquecido, O pior mal
é não poder o homem estar no horizonte que vê, embora, se lá estivesse, desejasse
estar no horizonte que é, O barco onde não vamos é que seria o barco da nossa
viagem, Ah, todo cais, É uma saudade de pedra, e agora que já cedemos à fraqueza
sentimental de citar, dividido por dois, um verso do Álvaro de Campos que há-de ser
tão célebre quanto merece (...).430
Não apenas concordam um com o outro Fernando Pessoa e Ricardo Reis, como
também citam Álvaro de Campos, concordando com ele também. A essa altura, o visitante,
que antes se ocupa unicamente em enfrentar Ricardo Reis, ironizá-lo e criticá-lo – o que não
deixará de fazer –, mostra-se mais amigável: “Fernando Pessoa estendeu-lhe o roupão sobre a
colcha, aconchegou os cobertores, alinhou a dobra do lençol, maternalmente, Agora durma
430
SARAMAGO, 2003, p. 151.
212
(...).”431
E falando sobre Marcenda, chegam novamente a concordar – “Marcenda não é nada,
Um condenação assim tão definitiva, soa-me a despeito, Diz-me a minha fraca experiência
que despeito é o sentimento geral dos homens para com as mulheres, Meu caro Ricardo, nós
devíamos ter convivido mais, Não o quis o império.”432
– chegando ao ponto de lamentarem
ter sido pouca sua convivência. A sintonia entre eles dois é tanta que chega a provocar a
ironia de Ricardo Reis, que como observa Fernando Pessoa, “você, Ricardo, nunca foi
irônico”433
; a ironia é, na verdade, um atributo de Fernando Pessoa: “(...) nem sequer
precisávamos de receber o Salazar de presente, somos nós o próprio Cristo, você não devia ter
morrido tão novo, meu caro Fernando, foi uma pena, agora é que Portugal vai cumprir-se
(...)”. O diálogo segue, e os dois estão comentando sobre discursos reportados no jornal sobre
comparações entre Hitler e Deus, e Portugal e Cristo, e tanto Ricardo Reis quanto Fernando
Pessoa ironizam tais ousadias, revelando um senso crítico em sintonia (como já foi aqui
observado, Ricardo Reis passa por um processo de rendição ao espetáculo do mundo, no
sentido de que, em razão de estar vivenciando muito proximamente a crise em que Portugal
se encontra, vai abandonando sua máscara de alheio e indiferente, e se permitindo dominar
mais pela indignação):
(...) diga-me se não acha inquietadora essa novidade portuguesa e alemã de utilizar
Deus como avalista político, Será inquietadora, mas novidade não é, desde que os
hebreus promoveram Deus ao generalato, chamando-lhe senhor dos exércitos, o
mais têm sido meras variantes do tema, É verdade, os árabes invadiram a Europa aos
gritos de Deus o quer, Os ingleses puseram Deus a guardar o rei, Os franceses juram
que Deus é francês, Mas o nosso Gil Vicente afirmou que Deus é português, Ele é
que deve ter razão, se Cristo é Portugal (...).434
Para mencionar mais uma vez o ato final de Ricardo Reis, é importante observar que,
assim como sua ida para o cemitério dos Prazeres é o auge de sua comoção com o espetáculo
do mundo, o encerramento do romance é também o máximo de conciliação entre Fernando
Pessoa e ele. Eles se aproximam, como foi visto em algumas cenas, e ao fim da narrativa
431
Ibidem, p. 229. 432
Ibidem, p. 339. 433
Ibidem, p. 280. 434
Ibidem, p. 286-289.
213
terminam – talvez – completamente reconciliados. Não há, com isso, motivo para se afirmar
que eles se tornaram idênticos, mas a questão é que há uma superação dos conflitos entre eles,
já que, ao fim da narrativa, Ricardo Reis não é mais o homem indiferente e alheio que retorna
a Lisboa, com aquelas concepções que suscitaram a crítica de Fernando Pessoa. De fato, o que
se dá é uma maior aproximação entre os dois personagens de Saramago, e a adoção da ironia,
a rejeição ao regime de Salazar, e, por fim, passar, tal qual Fernando Pessoa, para o outro
lado, são sinais dessa aproximação. Pessoa também vai apresentando aspectos que
compartilha com Ricardo Reis; ele manifesta a mesma tristeza que Ricardo Reis: “Fernando
Pessoa fechou os olhos, apoiou a cabeça no encosto do sofá, pareceu a Ricardo Reis que duas
lágrimas lhe assomaram entre as pálpebras (...)”435
. Assim como Ricardo Reis, Fernando
Pessoa demonstra cansaço – “distinguia-se-lhe o sorriso cansado”436
–, o que o impede de
continuar visitando Ricardo Reis com a mesma frequência de antes. E ao cansaço se acresce o
sono: “é apenas o que fica de um longo cansaço, você sabe como é, faz-se um grande esforço
físico, os músculos fatigam-se, ficam lassos, apetece fechar os olhos e dormir.”437
Além do que compartilham, também apresentam uma proximidade como se
estivessem em plena sintonia. Há o episódio do carnaval, em que Ricardo Reis persegue
alguém vestido de morte e que ele pensa ser Fernando Pessoa. Tem a vontade de perguntar-
lhe se era ele, e Ricardo Reis imagina a resposta que receberia:
Ó Reis, então você não viu que se tratou duma brincadeira, ia-me lá eu agora
fantasiar de morte, medievalmente, em morto é uma pessoa séria, ponderada, tem
consciência do estado a que chegou, e é discreto, detesta a nudez absoluta que o
esqueleto é, quando apareceu, ou se comporta como eu, assim, usando o fatinho com
que o vestiram, ou embrulha-se na mortalha se lhe dá para querer assustar alguém,
coisa a que eu, aliás, como homem de bom gosto e respeito que me prezo de
continuar a ser, nunca me prestaria, faça-me você essa justiça, Não valia a pena ter-
lhe perguntado, murmurou.438
435
Ibidem, p, 283. 436
Ibidem, p. 278. 437
Ibidem, p. 283. 438
Ibidem, p. 164.
214
Quando tem a oportunidade de perguntar sobre o episódio a Fernando Pessoa –
“Afinal sempre se mascarou de morte no entrudo”439
– que responde exatamente o que havia
imaginado, palavra por palavra. É quase como se Ricardo Reis estivesse imaginando o que ele
próprio teria respondido, o que demonstra que Fernando Pessoa e ele não apenas
compartilham aspectos como também se confundem na narrativa. Fernando Pessoa também é
capaz de adivinhar o que Ricardo Reis diz ou pensa. Como quando Ricardo Reis escreve uma
nova ode e quer mostrar a Fernando Pessoa, mas ele não quer ler, porque “conheço os seus
versos de cor e salteado, os feitos e os por fazer, novidade seria só o nome de Marcenda”440
.
No dia em que os dois se reencontraram, Fernando Pessoa já havia demonstrado que conhece
Ricardo Reis bem, tão bem quanto conhece a si mesmo: Ricardo Reis admite que continua
sendo monarquista mesmo sem ter um rei, o que Fernando Pessoa define como “ Querer pelo
desejo o que sabe não poder querer pela vontade”, com o que Ricardo Reis concorda.
Fernando Pessoa explica: “Ainda me lembro de quem você é, É natural.”441
Ricardo Reis não
estranha o fato de Fernando Pessoa conseguir decifrá-lo tão bem, assim como parece-lhe
natural receber a visita de um homem morto. É verdade que é um princípio de Ricardo Reis
tentar se manter indiferente a tudo, mas, como já pôde ser analisado, tanto nas odes, quanto no
personagem de Saramago, ele não é tão impassível quanto aparenta. Ao contrário, ele se abala
com todo o cenário de crise que testemunha; mas, a presença de alguém que já não vive – e
que, como o próprio Fernando Pessoa já esclareceu, não é um fantasma – parece-lhe bastante
normal, ele a aceita, e até sente falta quando Fernando Pessoa fica muito tempo sem aparecer.
A essa altura, deve-se considerar que: em primeiro lugar, a solidão é um tema
recorrente na obra de Saramago; em segundo lugar, que, em O ano da morte de Ricardo Reis,
ela é tratada quase como uma personagem, chegando a ser descrita como uma presença –
439
Ibidem, p. 181. 440
Ibidem, p. 371. 441
Ibidem, p. 78.
215
A solidão pesa-lhe como a noite, a noite prende-o como visco, pelo estreito e
comprido corredor, sob a luz esverdeada que desce do tecto, é um animal submarino
pesado de movimentos, uma tartaruga indefesa, sem carapaça.442
–; e, em terceiro lugar, que se pode comparar Ricardo Reis, falando sozinho e travando
diálogos imaginários, com o ao Sr. José, de Todos os nomes, conversando com o teto de seu
quarto, onde a solidão – cuja extensão é a noite, no trecho citado – também parece se
esgueirar como um animal rastejante. E, a partir dessas considerações, é possível ler as
aparições do Fernando Pessoa morto como projeções da imaginação de Ricardo Reis, que,
sozinho, inventa companhias e presenças, ou como desdobramentos da mente desse que não
tem domínio sobre si mesmo, e que acaba produzindo artifícios para driblar a angústia
resultante da solidão. Que Ricardo Reis tem por hábito falar sozinho pode ser facilmente
verificado, já que isso é notado não apenas pelo que o narrador indicar, mas também pelo que
outros personagens observam. Há o episódio do encontro entre Ricardo Reis e Marcenda, e
enquanto ela ainda não havia chegado, Fernando Pessoa aparece. Os dois têm um daqueles
diálogos comuns, que possivelmente é presenciado por Marcenda, que pergunta: “Estava a
falar sozinho (...)”443
. Quem também nota Ricardo Reis se fazendo de autointerlocutor são
suas vizinhas curiosas e vigilantes, como descreve o narrador: “(...) fez cada qual seu juízo
sobre o que lhe tinha parecido e não sobre o que realmente sabia, que era nada, o doutor do
segundo andar apenas ia a falar sozinho.”444
Um desses diálogos solitários é descrito em
detalhe pelo narrador: Ricardo Reis está em casa sozinho, pensando sobre Marcenda, que está
para retornar a Lisboa.
Agora vou-me deixar ficar em casa, apenas para comer sairei, e ainda assim será de
fugida, a olhar para o relógio, que todas as horas aqui estou, noite, manhã e tarde,
por todo o tempo que ela estiver em Lisboa, amanhã, que é segunda-feira, decerto
não virá, chega tarde o comboio, mas talvez apareça terça-feira, ou quarta, ou quinta,
Ou sexta, Sexta não, que vou ter a Lídia a fazer a limpeza, Ora, que importância
tinha isso, juntava as duas, cada uma no seu lugar, a criada e a menina de boas
famílias, não havia perigo de se misturarem, Marcenda nunca se demora tantos dias
em Lisboa, vem só para o médico, é certo que também há aquele caso do pai, Muito
442
Ibidem, p. 225. 443
Ibidem, p. 182. 444
Ibidem, p. 307.
216
bem, e você, que espera você que possa acontecer se ela vier a sua casa, Não espero
nada, limito-me a desejar que venha, Acha que uma menina como Marcenda, com a
esmerada educação que recebeu, o rigoroso código moral do seu pai notário, faz
visitas a um homem solteiro, na própria casa dele, sozinha, acha que as coisas se
passam assim na vida, Um dia perguntei-lhe porque é que queria ver-me, e
respondeu-me que não sabia, num caso destes é a resposta que dá mais esperanças,
acho eu, Um não sabe, o outro ignora, Parece que sim (...).445
Até aqui, o diálogo segue entre duas vozes opostas, ambas fabricadas por Ricardo
Reis, que se revezam nas conjecturas sobre Marcenda, e se rebatendo, bem como acontece nos
diálogos em que Fernando Pessoa é o interlocutor. Entre eles há também a súbita mudança de
assunto, como se pode observar na continuação desse diálogo entre Ricardo Reis e ele
mesmo:
(...) Um sabe e o outro ignora, Parece que sim, Exactamente como estiveram Adão e
Eva no paraíso, Exageração sua, nem isto é o paraíso, nem ela é Eva e eu Adão,
como sabe, Adão era só um pouco mais velho que Eva, tinham só uma diferença de
horas, ou dias, não sei bem, Adão é todo homem, toda mulher é Eva, iguais,
diferentes e necessários, e cada um de nós é homem primeiro e primeira mulher,
únicos de cada vez, Ainda que, se sei julgar bem, continue a sua própria experiência,
Não, falo assim porque a todos nos convém que assim seja, O que você queria,
Fernando, Era voltar ao princípio, O meu nome não é Fernando, Ah.446
O que o narrador conta em seguida é sobre a refeição de Ricardo Reis: ele não sai para
jantar, fica em casa comendo chá com bolos, em uma mesa, tendo por companhia mais sete
cadeiras vazias, o que significa sete ausências, Ricardo Reis está sete vezes mais sozinho.
Passar tanto tempo sozinho o motiva a viver conversas imaginárias como a descrita acima, e
como as que são presenciadas por outras pessoas. Não seria absurdo dizer que, além de criar
as conversas, Ricardo Reis cria também seus interlocutores. Nas odes mesmo, ele já tem
quatro interlocutoras criadas, além de dizer – e como é repetido no romance – que nele vivem
inúmeros. Na conversa reproduzida acima, ele confunde seus inúmeros companheiros
imaginários, esquecendo-se de quem está conversando com ele naquele momento, e pensa ser
Fernando Pessoa, o que sugere que aquele que o visita não passa de um desses inúmeros que
vivem nele, como ele mesmo menciona, quando Fernando Pessoa diz, logo no início do
romance, que ele, Ricardo Reis, Álvaro de Campos nunca se entenderam bem, e Ricardo Reis
445
Ibidem, p. 240-241. 446
Ibidem, p. 241.
217
explica pelo fato de serem eles “vários”: “Nunca nos entendemos muito bem uns com os
outros, Era inevitável, se existíamos vários”.447
Nesse caso, a comparação com o Sr. José
conversando com o teto vem a propósito, e em ambos os casos pode-se relacionar esses
semiautismos com a propriedade do inconsciente de comandar todo o comportamento do
indivíduo, para lembrar aqui a descoberta de Freud.448
O indivíduo está sempre em companhia
de sua mente inquieta; e no caso de um sujeito solitário como Ricardo Reis, sua mente é sua
única companhia, e tudo o que ela cria se torna sua realidade. Em contato com a crise
observada naquele contexto ao qual Saramago o fez retornar, Ricardo Reis está sendo
estimulado pela realidade problemática, ao mesmo tempo em que vivencia seus próprios
conflitos interiores. Os diálogos entre ele e Fernando Pessoa muitas vezes se desenrolam a
partir de questionamentos de Ricardo Reis. Essa forma de um consultar o outro, se for
considerada a leitura de eles dois dos vários de uma mesma pessoa, pode iluminar o
entendimento sobre Fernando Pessoa como sendo uma espécie de alterego de Ricardo Reis –
e não um fantasma –, uma projeção de seu inconsciente que emerge quando o sujeito tem a
necessidade de tentar resolver as questões que o perturbam. É como se essas conversas
fossem, na verdade, elucubrações produzidas pelo sujeito que exercita suas reflexões – muitas
vezes, resultado de suas angústias – e que se manifestam nesses diálogos interiores comuns a
qualquer pessoa. Um exemplo da representação desses diálogos internos está no ponto em que
Ricardo Reis está perturbado pela impotência sexual:
(...) olha o espelho embaciado onde felizmente não pode ver-se, essa deveria ser, em
certas horas, a caridade dos espelhos, então pensou, Isto não é morte de homem,
acontece a todos, algum dia tinha de me acontecer a mim, qual é a sua opinião,
senhor doutor, Não se preocupe, vou-lhe receitar umas pílulas novas que lhe
resolverão esse pequeno problema, o que é preciso é não se pôr a empreender no
caso, saia, distraia-se, vá ao cinema, se realmente foi esta a primeira vez, até pode
considerar-se um homem de sorte.449
447
Ibidem, p. 370. 448
FREUD, Sigmund. O id e o ego. Trad. José Octavio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1997. 449
SARAMAGO, 2003, P. 292-293.
218
Nesse diálogo manifestam-se as palavras trocadas entre o Ricardo Reis-médico e o
Ricardo Reis-paciente que sofre de impotência, quase dois casos de heteronímia. A conversa é
anunciada, depois das palavras do narrador, por “então pensou”, demonstrando diretamente
que o que se segue é uma sequência de pensamentos de Ricardo Reis que se articula em forma
de diálogo. Mais à frente, Ricardo Reis e Marcenda se beijam e seu sexo volta a reagir, e o
Ricardo Reis-médico retorna: “(...) então (...) o sangue de Ricardo Reis desce às profundas
cavernas, metafórico modo de dizer que se ergue o seu sexo, morto afinal não estava, bem que
eu lhe tinha dito que não se preocupasse.”450
Esse eu é o mesmo que aparece quatro páginas
antes, a quem é referido como “senhor doutor”, que parece participar de um diálogo com
Ricardo Reis sobre sua impotência sexual. Isto é, o próprio estilo de narrar descreve os
pensamentos de Ricardo Reis como um diálogo interno. É isto o que acontece quando
Fernando Pessoa aparece: Ricardo Reis está refletindo através de suas vozes interiores, que
são manifestações de diferentes pontos de vista, que surgem à consciência quando o sujeito
está em conflito, e se divide entre diferentes perspectivas. Não é à toa que a heteronímia é
mencionada: o recurso poético de Fernando Pessoa pode ser relacionado a esse processo
mental em que diferentes vozes se chocam e se contradizem, na tentativa de se resolver um
conflito. Outro exemplo de conversa consigo próprio é quando Ricardo Reis está inquieto por
não ter recebido uma carta de Marcenda, e o narrador lembra que “todas as cartas de amor são
ridículas”, mas que “isto é o que se escreve quando já a morte vem subindo a escada, quando
se torna de súbito claro que verdadeiramente ridículo é não ter recebido nunca uma carta de
amor.”451
A essa constatação, “Ricardo Reis diz, Tens razão, nunca recebi uma carta de amor,
uma carta que só de amor fosse.”452
Cabe aqui fazer uma comparação com um outro trecho,
transcrito anteriormente, em que Ricardo Reis está se recriminando por ter se sentido atraído
por Lídia, que segundo sua consciência é apenas uma criada. Aqui, o texto está trabalhado
450
Ibidem, p. 297, grifos meus. 451
Ibidem, p. 272. 452
Ibidem, p. 272.
219
pelo discurso indireto livre, no qual o pensamento de Ricardo Reis é usado como narrativa, e
esse pensamento consiste na reflexão sobre ele mesmo, mas como uma reprimenda, como se
houvesse duas pessoas em diálogo, o faltoso e o que aponta e condena essa falta. Além disso,
não só é usado como narrativa o pensamento de Ricardo Reis, mas também o “Poema em
linha reta” do Álvaro de Campos, outro heterônimo; mais especificamente o verso “Eu, que
tenho sido cômico às criadas de hotel”, o que sugere o cruzamento entre aquele que tem sido
ridículo por estar na contramão do comportamento moralmente aceito, recusando, por isso, a
moral que o define como ridículo; e aquele que se mede e se define exatamente por esse
padrão de comportamento. Um é cômico às criadas de hotel; o outro é cômico por se sentir
atraído por uma criada de hotel. Este é altivo na relação com a criada; aquele se distingue
justamente por ser ridicularizado, até mesmo, por criadas. Naquele trecho, considerando-se
que um dos inúmeros, que vivem em Ricardo Reis fosse Álvaro de Campos, este seria a voz
que critica Ricardo Reis. E, nesse caso, poder-se-ia considerar que esse protagonista do
romance de Saramago seria o polo central da heteronímia, mas não como um recurso poético,
e, sim, como um processo mental. Já no trecho em que Ricardo Reis está queixoso por não ter
recebido uma carta de Marcenda, vê-se Ricardo Reis falando consigo próprio, ao mesmo
tempo em que ele critica Álvaro de Campos, que diz que “Todas as cartas de amor são
ridículas”, constituindo-se nisso mais um exemplo de diálogo imaginário. Há o embate entre
ideias e perspectivas, assim como nas conversas com Fernando Pessoa. E há ainda a
participação, mesmo que indireta de Álvaro de Campos, como um dos inúmeros que vivem
em si, o que torna bastante provável que Fernando Pessoa também seja um desses inúmeros.
Inicialmente, poder-se-ia pressupor que Ricardo Reis estivesse delirando e imaginando
estar recebendo visitas de um morto, já que se trata de algo absurdo. Mas o narrador faz
questão de deixar claro que não se trata de delírio: “(...) mas de Ricardo Reis não há
testemunhas na história da embriaguez. Sempre estado lúcido quando lhe aparece Fernando
220
Pessoa, está lúcido agora quando o vê sentado (...)”453
Não se trata de embriaguez, de delírio,
nem se sonho; não se trata, nem mesmo, de fenômeno sobrenatural, como o próprio Fernando
Pessoa desmente ao dizer que não é nenhum fantasma. Na verdade, os diálogos imaginários
são produto exatamente do bom funcionamento da razão, da lucidez, de uma mente que está
ativa e em trabalho para encontrar soluções ou respostas para questões que desestabilizam
esse homem que preza pela placidez. O uso da razão aponta o contato direto com a
consciência, mas também pode indicar o acesso ao inconsciente. O perfil de Ricardo Reis é de
quem tenta sempre afastar impulsos que o perturbem; no entanto, as situações-limite deixam o
indivíduo em tal estado de tensão que os impulsos acabam irrompendo, e tem-se acesso às
profundezas da mente onde se sufocam as pulsões reprimidas. Nos momentos em que
Fernando Pessoa e Ricardo Reis conversam e discordam, tem-se a imagem clara de duas
forças opostas que se chocam, como se estivessem tentando sobrepujar-se uma a outra, como
acontece entre o id e o superego. Não são poucas as ocasiões em que Fernando Pessoa censura
Ricardo Reis, tal como se dá na estrutura psíquica: enquanto uma parte da mente trabalha
deliberadamente, a outra filtra o produto desse trabalho. Os diálogos, nesse sentido, se
assemelham aos conflitos internos, nos quais uma parte do ego está tentando reprimir outra
parte, outras vozes internas. Da mesma forma, Fernando Pessoa censura a autocensura de
Ricardo Reis: ele aponta suas contradições, porque elas são o próprio conflito interno que
Ricardo Reis vivencia. Ele reprime certos impulsos naturais, como a vontade de se relacionar
com mulheres, para não sofrer, mas acaba fazendo-o. Fernando Pessoa debocha de quando
Ricardo Reis cede aos desejos, porque é como o próprio Ricardo Reis reage aos seus
momentos de entrega. É como se Ricardo Reis fosse o superego repressor, que cria as regras
de existência, e Fernando Pessoa fosse o id, que sempre retorna para lembrar o indivíduo
quem ele realmente é. A solidão cria ainda mais condições para esse tipo de autorreflexão,
453
Ibidem, p. 277.
221
porque, sem ter quem distraia, o indivíduo tem mais tempo e espaço para lidar consigo
mesmo. No diálogo reproduzido na página 227, o tema é exatamente a solidão, que Fernando
Pessoa define não como a ausência de pessoas, mas a ausência do convívio consigo mesmo.
Quando esse convívio, enfim, acontece, traz à tona o estranhamento percebido no sujeito que
não se reconhece em si mesmo. O projeto heteronímico pode ser resgatado por essa reflexão,
já que os heterônimos podem ser entendidos como produções poéticas que refletem as
diferentes personas produzidas pela psique, e pela subjetividade em conflito, e que uma vez
acessadas pelo indivíduo não são reconhecidas como parte dele. Essas personalidades
estranhas são parte da constituição psíquica que o indivíduo aprende a censurar – como
Ricardo Reis censurando sua porção amante com medo do sofrimento que a vivência dessa
parte pode vir a acarretar – em seu processo de socialização, e que irrompem quando a tensão
se torna insuportável, aquilo que Freud chama de “retorno do reprimido”454
. Ricardo Reis é o
homem que se esvaziou – ou tentou esvaziar-se – ao se sujeitar às normas sociais,
principalmente aos códigos de sua classe, que exige do indivíduo um comportamento
exemplar. A condenação a ele por parte dos funcionários do hotel e do Dr Sampaio, quando
ele é chamado à delegacia ilustra o tipo de cobrança feita a pessoas da elite econômica e
social pela própria elite: elas devem ser sempre irrepreensíveis. Mais tarde, a vigilância das
vizinhas também representará esse tipo de cobrança que o indivíduo socializado é obrigado a
atender. A socialização é o processo no qual o indivíduo abre mão de si, dos aspectos em si
inerentes que a coletividade pode não aprovar. Mas isso não significa que esses aspectos
deixem de existir, eles apenas não são vivenciados por algum tempo. A solidão que Fernando
Pessoa define acaba por consistir em uma experiência comum a todos os indivíduos
civilizados, e que está representada na experiência de Ricardo Reis, que não é solitário
necessariamente pela falta de companhia, mas por evitar a convivência consigo mesmo. No
454
FREUD, Sigmund. Artigos sobre metapsicologia. Trad. Themira de Oliveira Brito, Paulo Henriques Britto e
Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 2004.
222
trecho mencionado, há um certo resgate de si no sono velado por Fernando Pessoa: naquela
noite, Ricardo Reis está profundamente solitário, e é quando Fernando Pessoa aparece e traz a
reflexão sobre a solidão. Essa aparição pode ser lida como a presença do eu morto, uma
restituição de si, mesmo que momentânea, que retorna para cobrar mais convivência com essa
parte esquecida, e com quem se compartilham o sono e a noite, está lá quando ninguém mais
está. Isso se inclui no processo de conscientização de Ricardo Reis, que vai despertando aos
poucos do seu estado de indiferença, à medida que vivencia diretamente uma realidade de
crise.
Em outra ocasião, Ricardo Reis e Fernando Pessoa estão caminhando, e Fernando
Pessoa explica que quem os vê , vê nenhum dos dois mas um vulto:
Quem estiver a olhar para nós, a quem é que vê, a si ou a mim, Vê-o a si, ou melhor,
vê um vulto que não é você nem eu, Uma soma de nós amos dividida por dois, Não,
diria antes que o produto da multiplicação de um pelo outro, Existe essa aritmética,
Dois, sejam eles quem forem, não se somam, multiplicam-se, Crescei e multiplicai-
vos, diz o preceito, Não é nesse sentido, meu caro, esse é o sentido curto, biológico,
aliás com muitas exceções, de mim, por exemplo, não ficaram filhos, De mim
também não vão ficar, creio, E no entanto somos múltiplos, Tenho uma ode em que
digo que vivem em nós inúmeros, Que eu me lembre, essa não é do nosso tempo,
Escrevi-a vai para dois meses, Como vê, cada um de nós, por seu lado vai dizendo o
mesmo, Então não valeu a pena estarmos multiplicados, Doutra maneira não
teríamos sido capazes de o dizer.455
Ricardo Reis e Fernando Pessoa não só se confundem, como também se entendem
como uma coisa só, esse vulto, palavra cuja origem é a mesma que a de rosto, aspecto,
semblante, que vêm todas de vultus456
e sendo todas sinônimas. O que se vê é uma unidade,
identificada por um rosto, mas a que Fernando Pessoa se refere como um vulto, ou seja, uma
imagem indefinida, visto que se trata de um só que na verdade é vários. Para o mundo é um só
– o que os outros veem é um vulto – mas, para o próprio sujeito, trata-se de um conjunto de
inúmeros selfs distintos, que são essa multiplicação, o produto das atividades psíquicas dessas
seções internas que nunca se encontram em harmonia ou acordo. Ricardo Reis e Fernando
Pessoa são, portanto, duas partes de um só. Mais adiante, Fernando Pessoa se despede e deixa
455
SARAMAGO, 2003, p. 89-90. 456
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986. p. 829.
223
o amigo, que “se afastava, (...) ouviu-lhe a voz próxima, embora estivesse ali adiante,
Continuaremos esta conversa noutra altura, agora tenho de ir (...)”457
, e sua voz parece
próxima, porque ela está dentro da cabeça de Ricardo Reis. Anteriormente, Fernando Pessoa
está dizendo que ainda lembra de quem Ricardo Reis é, que responde “É natural”458
, porque
nada pode ser mais natural do que o sujeito se lembrar de si próprio. É isso que explica
Fernando Pessoa não ser um fantasma, como ele próprio ensina. Ele é, na verdade, parte de
Ricardo Reis, a parte – ou uma das partes – de que Ricardo Reis, pelas razões já apesentadas,
não quer se lembrar e que esconde de si mesmo.
Na perspectiva da narrativa, Fernando Pessoa e Ricardo Reis, inicialmente são dois
personagens distintos, que vivem em países diferentes, têm nomes, vidas e histórias
separados. Um morre, e o outro está vivo, apesar de estar morrendo. Mas também são parte da
narrativa, e uma articulação dela, as transformações pelas quais Ricardo Reis passa: seu
processo de arrebatamento pela realidade, seu despertar do estado anestesiado da indiferença,
e seu processo de morte. Tudo isso, provoca esse reencontro consigo mesmo, a reunião entre
o Ricardo Reis que o mundo conhece e o Ricardo Reis que tem sido obliterado e agora está
sendo resgatado. As visitas de Fernando Pessoa são o recurso para se apresentar esse
fenômeno de consciência, ao mesmo tempo em que traduz a leitura de Saramago da
heteronímia. Para tal apresentação, o que está sendo narrado é a identificação de Ricardo Reis
com Fernando Pessoa: Ricardo Reis está acessando parte de si que reprova o que ele finge ser,
ou que ele finge para si mesmo, e que Ricardo Reis resgata em seus diálogos imaginários, nos
quais ele vê Fernando Pessoa assumir esse papel de juiz do fingimento, ou o próprio
advogado do diabo. É como se a morte de Fernando Pessoa permitisse a Ricardo Reis
imaginar encontros com o poeta morto; encontros que, por trazerem Fernando Pessoa de
volta, de certa forma, acabassem trazendo o próprio Ricardo Reis de volta à vida. Nos
457
SARAMAGO, 2003, p. 91. 458
Ibidem, p. 78.
224
domínios da narrativa, a convivência com Fernando Pessoa depois de sua morte é via de
acesso ao próprio Ricardo Reis.
Os domínios da narrativa também conduzem a Fernando Pessoa, isto é, o personagem
criado por Saramago, que é uma apresentação de sua leitura de Fernando Pessoa. O
personagem de Saramago é apresentado segundo a matiz crítica de Fernando Pessoa, que é
um viés menos evidente em um primeiro momento, já que o que primeiro se conhece dele é
Mensagem, poema nacionalista, em que não se manifestam críticas ao país. É o lado crítico de
Fernando Pessoa que Ricardo Reis consulta, quando ele já começa a demonstrar estar
reagindo mais ao que vivencia. Assim sendo, mais afastado da costumada indiferença, diante
do comentário de Fernando Pessoa sobre ter composto versos contra Salazar, Ricardo Reis
pergunta “quem é, que é este Salazar”, e Fernando Pessoa o descreve ironizando a forma
como o ditador é apresentado pela propaganda: “É (...) o protector, o pai, o professor, o poder
manso, um quarto de sacristão, um quarto de sibila, um quarto de Sebastião, um quarto de
Sidônio, o mais apropriado possível aos nossos hábitos e índole (...).”459
Ricardo Reis observa
as repetições usadas nessa fala de Pessoa – “Alguns pês e quatro esses” – que não tem um
padrão métrico em sua poesia, mudando muito os recursos estilísticos. Fernando Pessoa diz
que os “pês” e “esses” repetidos não foram propositais, e Ricardo Reis acrescenta que “há
pessoas que (...) exultam com as aliterações, com as repetições aritméticas, cuidam que graças
a elas ordenam os caos do mundo”; Fernando Pessoa concorda: “Não devemos censurá-las,
são gente ansiosa, como os fanáticos da simetria”. E Ricardo Reis conclui: “O gosto da
simetria, meu caro Fernando, corresponde a uma necessidade vital de equilíbrio, é uma defesa
ou proteção contra o caos; funciona como uma ilusão de se ter o controle sobre o mundo ou
sobre a própria vida. Se a fala de Pessoa é construída com um recurso métrico, é possível
presumir que o autor se propõe a demonstrar essa reação diante da imagem de Salazar: essa
459
Ibidem, p.282.
225
fala é a tentativa do Pessoa construído por Saramago se proteger de um elemento da realidade
que provoca o caos. O Fernando Pessoa ficcionalizado por Saramago, portanto, reprova
Salazar. A descrição dele presente em sua mesma fala metrificada é irônica: consiste na
apropriação da imagem de Salazar construída pela propaganda governista para convertê-la em
objeto de sátira, assim como se observa nos versos contra Salazar mencionados logo antes.
Esse fator aponta para um aspecto comum entre o Fernando Pessoa real e o ficcionalizado: a
reprovação a Salazar. A propósito desse ponto em comum, cabe aqui trazer os tais versos
referidos por Pessoa; a apropriação da imagem do ditador pode ser observada neste poema de
20 de março de 1935:
Coitadinho do tiraninho
Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho,
Nem sequer sozinho...
Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
E ninguém sabe porquê.
Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.
Um sonhador nostálgico do
Abatimento e da decadência.460
460
PESSOA, Fernando. Contra Salazar. Coimbra: Angelus Novus, 2008. p. 23-24.
226
Aqui, vê-se Salazar sendo ridicularizado por Pessoa, que debocha da imagem de
autossacrifício do ditador contraposta à realidade dos verdadeiros sacrifícios, que são os
presos políticos daquele período. Outros textos de Pessoa cujo tema é a crítica a Salazar
existem tanto tem forma de poesia, quanto em forma de cartas e crônicas, e já foram até
reunidos em um único volume, intitulado Contra Salazar461
, seleção justificada justamente
pelo grande número de peças em que Pessoa ataca o ditador. A forma como Pessoa se coloca
em relação ao governo de Portugal acompanha a ficcionalização que Saramago faz do poeta.
Apesar de já estar perdendo a memória, Fernando Pessoa ainda se lembra não só do
que pensava sobre Salazar, mas também de como os jornais eram usados pelo governo:
Voltando a Salazar, quem diz muito bem dele é a imprensa estrangeira, Ora, são
artigos encomendados pela propaganda, pagos com o dinheiro do contribuinte,
lembro-me de ouvir dizer, Mas olhe que a imprensa de cá também se derrete em
louvações, pega-se num jornal e fica-se logo a saber que este povo português é o
mais próspero e feliz da terra, ou está para muito breve, e que as outra nações só
terão a ganhar se aprenderem conosco, O vento sopra desse lado, Pelo que estou a
ouvir você não acredita muito nos jornais, Costumava lê-los, Diz essas palavras num
tom que parece de resignação, Não, é apenas o que fica de um longo cansaço, você
sabe como é, faz-se um grande esforço físico, os músculos fatigam-se, ficam lassos,
apetece fechar os olhos e dormir, Tem sono, Ainda sinto o sono que tinha em vida
(...).462
Já foi analisada aqui a relação entre os elementos sono e cansaço com a melancolia de
Ricardo Reis, que, em vez de evitar comover-se com as tragédias do real, demonstra ficar
cada vez mais incomodado com elas, entregando-se à tristeza e à frustração. O sono é o
elemento que ilumina esse desejo de morrer, para que se possa, enfim, dar cabo ao sofrimento.
O que se observa no trecho acima citado é esse estado de espírito de quem percebe bem o
mundo à sua volta e o quanto isso o consome – aqui, temos mais um exemplo de algo
compartilhado entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis, como personagens de Saramago, e,
portanto, mais uma evidência de serem a mesma pessoa. Fernando Pessoa, que já está morto,
ainda carrega o sono e o cansaço da vida, o desejo de “fechar os olhos e dormir”, ou seja, o
desejo de morrer – porque, na verdade, ele ainda não morreu, não este Fernando Pessoa; ele é
461
Ibidem. 462
SARAMAGO, 2003, p. 283.
227
parte de Ricardo Reis, que, por sua vez, vive como se já tivesse morrido, é um semi-vivo, ou
um zumbi. Eles, juntos, representam, de fato, um homem que está entre a vida e o nada, entre
existir e desistir; não é nem vivo nem morto. Dessa forma, fica mais evidente o
descontentamento de Fernando Pessoa, esse aspecto de insatisfação do personagem que
Saramago cria através do poeta e personagem histórico Fernando Pessoa, que não apenas está
atento à realidade, como também faz questão de manifestar sua reprovação à realidade. A
ironia presente nos textos de Pessoa se mantém no Pessoa personagem, mas com um contorno
tão relevante quanto os sentimentos mais passionais, como o desdém, o repúdio, a frustração e
a profunda tristeza. Esta última o arrebata nesse mesmo diálogo, quando Ricardo Reis tem a
impressão de que “duas lágrimas lhe assomam entre as pálpebras”463
, o que parece ser, junto
com o sono e o cansaço de que Fernando Pessoa se queixa, uma reação ao objeto da conversa
com Ricardo Reis: Portugal e seu então administrador, Salazar.
A crítica do Fernando Pessoa que Saramago constrói não se direciona apenas a
Salazar. Hitler também será criticado. Há a passagem, já mencionada, em que Ricardo Reis
está lendo as notícias para Fernando Pessoa, e nelas fala-se sobre a veneração a Hitler e
Salazar, o que Ricardo Reis chama de “confusão entre o divino e o humano”: Hitler é
“presente de Deus à Alemanha; e Portugal, chefiado por Salazar, é Cristo: “Portugal é Cristo e
Cristo é Portugal”. Nesse diálogo, tanto Fernando Pessoa quanto Ricardo Reis estão perplexos
diante da forma como tanto um quanto o outro líder são apresentados, e nem Fernando Pessoa
e nem Ricardo Reis poupam comentários críticos e duros a respeito deles:
Quando Hitler fala é como se a abóbada de um templo se fechasse sob a cabeça do
povo alemão, Caramba, que poético, E von Schirach vai mais longe, afirma que se a
juventude amar Hitler, que é o seu Deus, se se esforçar por fielmente o seguir,
cumprirá o preceito que recebeu do Padre Eterno, Magnífica lógica, para a juventude
Hitler é um deus, servindo-o fielmente cumpre um preceito do Padre Eterno,
portanto temos aqui um deus a agir como intermediário doutro deus para os seus
próprios fins, o Filho como árbitro e juiz da autoridade do Pai, afinal o nacional-
socialismo é uma religiosíssima empresa, Olhe que nós, por cá, também não vamos
nada mal em pontos de confusão entre o divino e o humano, parece até que voltámos
aos deuses da antiguidade, (...) Explique melhor essa tal divina e humana confusão,
463
Ibidem, p. 283.
228
É que, segundo a declaração solene de um arcebispo, o de Mitilene, Portugal é
Cristo e Cristo é Portugal, Está aí escrito, Com todas as letras, Que Portugal é Cristo
e Cristo é Portugal, Exactamente. Fernando Pessoa pensou alguns instantes, depois
largou a rir, (...) Ai esta terra, repetiu e não parava de rir, Eu a julgar que tinha ido
longe demais no atrevimento quando na Mensagem chamei santo a Portgual, lá está,
São Portugal, e vem um príncipe da Igreja, com a sua arquiepiscopal autoridade, e
proclama que Portugal é Cristo, E Cristo é Portugal, não esqueça, Sendo assim,
precisamos de saber, urgentemente, que virgem nos pariu, que diabo nos tentou, que
judas nos traiu, que pregos nos crucificaram, que túmulo nos esconde, que
ressurreição nos espera, Esqueceu-se dos milagres, Quer você milagre maior que
este simples facto de existirmos, de continuarmos a existir, não falo por mim, claro,
Pelo andar que levamos, não sei até quando e onde existiremos, Em todo caso, você
tem que reconhecer que estamos muito à frente da Alemanha, aqui é a própria
palavra da Igreja a estabelecer, mais do que parentescos, identificações, nem sequer
precisávamos de receber o Salazar de presente, somos nós o próprio Cristo, Você
não devia ter morrido tão novo, meu caro Fernando, foi uma pena, agora é que
Portugal vai cumprir-se, Assim acreditemos nós e o mundo no arcebispo (...).464
Na sequência, Ricardo Reis e Fernando Pessoa observam que a história apresenta
outros casos em que o nome de Deus é usado como amparo para o poder. Ambos estão em
sintonia, seguindo um raciocínio crítico e lúcido: é a evidência de que Ricardo Reis não é o
imperturbável que finge ser; mas também é uma luz sobre um Fernando Pessoa que será
mantido desconhecido do público por muitas décadas após sua morte, ofuscado pelo destaque
ao seu nacionalismo manifesto em Mensagem, e que nada tem a ver com a idolatria fascista à
pátria. Ricardo Reis segue lendo as notícias, até que Fernando Pessoa se despede concluindo
que “o mundo está ainda pior do que quando o deixei”465
, depois de já ter se espantado o
suficiente a ponto de dizer: “Só me resta morrer, Já está morto, Pobre de mim, nem isso me
resta.”466
Mais à frente, uma notícia lida por Ricardo Reis cria a oportunidade de Fernando
Pessoa, personagem de Saramago, manifestar o que pensa não apenas sobre Salazar, mas
sobre um regime autoritário como o fascista; sempre com um deboche que é típico tanto de
Fernando Pessoa quanto de Saramago. Ricardo Reis pergunta se Fernando Pessoa conhece
Antônio Ferro: é o secretário da propaganda nacional do Estado Novo, a quem Fernando
Pessoa diz dever “os cinco contos de réis do prêmio da Mensagem”467
. Trata-se do Prêmio
Antero de Quental, criado em 1933, como forma de se credibilizar o regime, do ponto de vista
464
Ibidem, p. 285-286. 465
Ibidem, p. 288. 466
Ibidem, p. 286. 467
Ibidem, p. 285.
229
cultural. Antônio Ferro é quem idealiza o prêmio, que tem como objetivo “premiar um texto
de caráter nacionalista, que exaltasse a pátria, os seus heróis e a portugalidade”468
. O nome de
Antônio Ferro é assim trazido à conversa:
Disse o Antônio Ferro, na ocasião da entrega dos prêmios, que aqueles intelectuais
que se sentem encarcerados nos regimes de força, mesmo quando essa força é
mental, como a que dimana Salazar, esquecem-se de que a produção intelectual se
intensificou sempre nos regimes de ordem, Essa da força mental é muito boa, os
portugueses hipnotizados, os intelectuais a intensificarem a produção sob a
vigilância do Victor, Então não concorda, Seria difícil concordar, eu diria, até, que a
história desmente o Ferro, basta lembrar o tempo da nossa juventude, o Orfeu, o
resto, diga-me se aquilo era um regime de ordem, (...) Estávamos a falar do Ferro, O
Ferro é tonto, achou que o Salazar era o destino Português, O messias, Nem isso, o
pároco que nos baptiza, crisma, casa e encomenda, Em nome da ordem,
Exactamente, em nome da ordem, Você, em vida, era menos subversivo, tanto
quanto me lembro, Quando se chega a morto vemos a vida de outra maneira (...).469
Acredito ser necessário, a essa altura, considerar o “chegar a morto” como o estado
histórico-político de morte, que no caso de Pessoa é um tanto ampla. Pode ser tanto sobre a
existência amputada do sujeito histórico que consegue perceber a realidade para além dos
véus culturais e se sente restringido a viver para essa cultura; como também pode se tratar da
condição do artista depois de morto, quando tudo de si se torna propriedade coletiva, fazendo
com que, por exemplo, Fernando Pessoa seja lido apenas à luz da heteronímia e do
nacionalismo (que, nesse caso, pode ser aproximada do nacionalismo da geração modernista
brasileira, a que não era a dos nacionalistas servos da pátria, mas dos interessados na
construção da identidade nacional como forma de se alcançar uma autonomia frente à
dominação europeia). De qualquer modo, a morte político-histórica, que pode ser lida no
trecho acima citado, diz respeito à desintegração do indivíduo a partir do que a cultura lhe
inflige. E, nessa morte, consegue-se mais um ponto de convergência entre Fernando Pessoa e
Ricardo Reis mas, sobretudo, entre suas vidas que são mortes, ou mortes que são vidas: a vida
em morte de Ricardo Reis e a morte incompleta de Fernando Pessoa se encontram e podem
468
BRAGA, Zaida & RAMOS, Auxília. “Introdução”. In: PESSOA, Fernando. Mensagem. Edição crítica. Vila
Nova de Famalicão: Centro Atlântico, 2010. p. 6. 469
SARAMAGO, 2003, p. 340.
230
ser compreendidos como aspectos diferentes, mas próximos de uma mesma condição – a
invalidez da vida civilizada.
Ainda a respeito do trecho citado, a questão sobre a morte de Pessoa enquanto
supressão do sujeito autêntico está evidente na fala de Reis: o Fernando Pessoa que ele
conhece, ou seja, o não subversivo, é aquele que se permite conhecer por meio de uma
interpretação tendenciosa. Ricardo Reis, como detentor do discurso reacionário, apresenta em
sua fala a leitura de um Pessoa passivo e acrítico. A apropriação da figura de Fernando Pessoa
por Saramago e o relevo crítico e inconformado conferido a ele enquanto personagem de
romance permite exatamente reverter essa condição própria da vida civilizada e da morte em
vida, e da configuração que a própria vida pode conferir a um indivíduo. O resgate do
Fernando Pessoa subversivo é permitido como um desdobramento do seu processo de
enquadramento como personagem de romance. A ficcionalização de Fernando Pessoa,
portanto, sob um certo aspecto, acaba apresentando uma finalidade distinta da ficcionalização
de Ricardo Reis, se é que pode-se considerar pertinente falar sobre finalidade em literatura; de
qualquer maneira, se não se trata de um fim, é possível falar em leitmotiv quando se pensa
nesse recurso estético. No caso de Ricardo Reis, há o interesse em se promover o choque
entre sua ideologia e a realidade, enquanto que no caso de Fernando Pessoa percebe-se seu
viés crítico como parte do processo de desencantamento de Ricardo Reis, sua persona como
parte do conjunto psíquico do protagonista – Fernando Pessoa é o self crítico de Ricardo Reis,
essa parte que está sendo desperta no Ricardo Reis personagem de Saramago, e fazendo com
que ele progressivamente abandone seu status de impassibilidade e indiferença – e, sobretudo,
o interesse de Saramago em resgatá-lo da obscuridade a que a história o submeteu. Esse é o
resgate do poeta e de sua obra, e do homem que se define por essa poesia e por sua obra, em
lugar do domínio do discurso histórico articulado pelo poder. Assim como esse romance
também se desenvolve pelo resgate de Camões, cujo poema Os Lusíadas e seu viés
231
nacionalista também é utilizado pela propaganda do regime de Salazar, reduzindo Camões a
mais um mero soldado da pátria, desconsiderando-se os momentos de refinada e dura crítica
ao império português e à empresa colonial. Em um trecho já mencionado, Ricardo Reis e
Fernando Pessoa estão conversando sobre estátuas, e a conversa se volta sobre a estátua de
Camões, quando Fernando Pessoa opina que estátuas devem ser feitas a militares e políticos,
não aos homens das palavras, “as palavras não podem ser postas em bronze ou pedra, são só
palavras e basta”, por isso, o resultado da monumentalização de Camões acaba reduzindo-o a
“um peralta da corte”, um “D’Artagnan, De espada ao lado qualquer boneco fica bem”470
.
Ricardo Reis e Fernando Pessoa estão fazendo pouco caso da representação de Camões como
soldado do Império, seu defensor, condição posta pelo regime acima da sua condição de
poeta. Esse é um Camões apresentado à nação portuguesa como quem está a seu serviço
incondicionalmente, peça utilizada pelo poder como sustentação de si mesmo, e para o qual as
palavras são quase irrelevantes. Camões está nessa cena, entendido a partir da assimilação que
sofre pelo poder, assim como acontecerá com Pessoa.
Em um de seus momentos de desafio a Ricardo Reis, Fernando Pessoa distingue o
fingimento do fingir-se que Reis pratica: “O seu caso, Reis amigo, não tem remédio, você,
simplesmente, finge-se, é fingimento de si mesmo”, e ele não tem remédio porque “primeiro
de tudo, você nem sabe quem seja, E você, alguma vez o soube, Eu já não conto, morri, mas
descanse que não vai faltar quem dê de mim todas as explicações”471
É Saramago falando
aqui, na fala de Pessoa: as décadas que se seguirão após a morte de Pessoa será o tempo em
que será produzido o mito sobre a sua figura, partindo-se principalmente de uma leitura
errônea da heteronímia, além, é claro, como já foi dito, do desvio de seu nacionalismo para o
sentido luso-fascista. Como o próprio Fernando Pessoa de Saramago “prevê”, a manipulação
de um artista como relega-lo ao esquecimento:
470
Ibidem, p. 367. 471
Ibidem, p. 116.
232
O que me tem enfadado e cansado é este ir e vir, este jogo entre uma memória que
puxa e um esquecimento que empurra (...), Então que memória é essa que continua a
chamá-lo, A memória que ainda tenho do mundo, Julguei que o chamasse a memória
que o mundo tem de si, Que ideia tola, meu caro Reis, o mundo esquece, já lhe
disse, o mundo esquece tudo, Acha que o esqueceram, O mundo esquece tanto que
nem sequer dá pela falta do que esqueceu (...).472
Ser lembrado pelo que não disse é o mesmo que ser esquecido. Camões lembrado
apenas como o soldado do Império é o mesmo que ser esquecido; Pessoa lembrado apenas
como defensor da pátria e criador de uma poesia obscura é o mesmo que ser esquecido. Na
composição do personagem de Saramago é o Fernando Pessoa esquecido que aparece,
emergindo do obscurantismo em que é confinado, enquanto o Pessoa-mito é ofuscado pelo
poeta crítico, combativo, inconformado e subversivo – aquele que Ricardo Reis percebe. Esse
Fernando Pessoa que Saramago intui entende o que é feito dos homens pela memória do país,
e já antevê que consigo não será diferente. Da mesma forma, esse Fernando Pessoa será,
também, bem mais o homem mais próximo do sujeito comum, que experimenta conflitos
motivados tanto pelo que vive dentro de si, quanto o que vive na realidade exterior a ele. São
esses conflitos que o orientam, assim como a sensação um dia orientou a poesia sensacionista.
O Fernando Pessoa de Saramago não é aquele cujos leitores reduziram a um maçônico
inventor de personalidades e misticismo, mas o poeta do desassossego.
Hoje o que me ajudou foi um rasto de cebola, Um rasto de cebola, É verdade, um
rasto de cebola, o seu amigo Victor parece não ter desistido de o vigiar, (...) A
polícia deve ter pouco que fazer, para assim perder tempo com quem não tem culpas
nem se prepara para tê-las, É difícil imaginar o que se passa na alma dum polícia,
provavelmente você causou-lhe uma boa impressão, ele gostaria de ser seu amigo,
mas compreende que vivem em mundos diferentes, você no mundo dos eleitos, ele
no mundo dos réprobos, por isso contenta-se com passar a horas mortas para olhar a
sua janela ver se há luz, como um apaixonado, Divirta-se à vontade, Nem você
imagina o que é preciso estar triste para me divertir assim (...).473
A tristeza é a marca desse Fernando Pessoa “criado” por Saramago – e é o signo que
sobrevive por trás da ironia, o recurso daquele para o qual não é mais suficiente falar da dor,
porque isso não basta para conseguir dizê-lo; nem mesmo multiplicar-se é o suficiente474
. O
472
Ibidem, p. 279. 473
Ibidem, p. 337-338. 474
Como Fernando Pessoa diz a Ricardo Reis, na página 90.
233
Fernando Pessoa que é criação de Saramago se mostra como uma leitura que Saramago
realiza de Pessoa, e a fala do personagem declara que seu divertimento, ou seja, seu deboche,
sua ironia se fazem pela tristeza como matéria-prima. Aliás, esse é um aspecto característico
do próprio Saramago, cujo estilo não é marcado por uma tristeza traduzida em mero
sentimentalismo, mas exatamente da ironia desencantada. Pessoa – o personagem e o poeta –
e Saramago compartilham de uma visão crítica sobre o mundo; o personagem de O ano da
morte de Ricardo Reis não se ocupa apenas da estetização da multiplicidade do sujeito, como
é o que se entende a partir da análise de muitos dos críticos de Fernando Pessoa; na verdade,
ele apresenta a multiplicidade exatamente como a sua maneira de sentir e vivenciar o lado
amargo da vida civilizada. É essa leitura de Pessoa que fundamenta a construção do
personagem. O Fernando Pessoa de Saramago parece bastante capaz de distrair-se de si
mesmo para prestar atenção no que o cerca – o que não se observa em Ricardo Reis – mesmo
que seja para, em seguida, voltar-se para si, mas já transfigurado pela experiência do contato
com o real. Não se trata de um personagem indiferente, alienado, apolítico ou esteta, mas, ao
contrário, demonstra estar consciente, e por isso mesmo, interessado na realidade que
testemunha.
Para aprofundar a reflexão sobre a lucidez claramente perceptível em Fernando
Pessoa, cabe, a essa altura, lembrar de Eduardo Lourenço em “Fernando Pessoa ou o
estrangeiro absoluto”475
, em que começa a reflexão apontando o quanto Pessoa compreende o
mundo em que vive, e é essa compreensão que o define. Eduardo Lourenço reconhece no
poeta a “consciência explodida”, que é o estatuto próprio do espírito moderno, e sobre a qual
Pessoa oferece uma das mais trágicas e geniais visões, já que “ele percorreu de leste a oeste,
de norte a sul, o inferno que havia”476
; ele sente e vivencia por completo todo o horror por que
passa o mundo de seu tempo. Dessa experiência, ele tira sua estética, criando, “para poder
475
LOURENÇO, Eduardo. Poesia e Metafísica. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1983. 476
Ibidem, p. 157.
234
respirar o irrespirável, a formas óbvias para existir no meio de uma civilização onde só já se
podia ‘ser’ não sendo”477
. Eduardo Lourenço descreve a experiência de Pessoa na civilização
e o que é extraído de tal experiência:
Vivendo como ninguém mais a noite escura da ausência de diálogo humano, Pessoa
testemunhou a sua incurável urgência e abriu, por defeito, o espaço futuro de uma
humanidade, enfim, una, e por isso mesmo futuramente unificante. Para se evadir
dela, Pessoa se inventou múltiplo, na esperança de encontrar nas suas diferenças
feitas gente o interlocutor para o diálogo que já não havia.478
Em “Pessoa ou a realidade como ficção”479
, Lourenço segue refletindo sobre a visão
de Pessoa, e continua a seguir essa imagem de uma visão iluminada em meio às trevas, na
verdade, a clara compreensão da obscura realidade fundamenta aquilo que Pessoa manifesta
em sua poesia: “O olhar que estrutura o mundo de Fernando Pessoa emerge de uma opacidade
e de uma treva”480
, como se exatamente a escuridão fosse o impulso para a eclosão da
“consciência explodida”, uma lucidez que irrompe alimentando a genialidade do poeta.
Lourenço chama de “odisseia da Noite” essa experiência pessoana com a sombra, a
consciência infeliz que faz emergir a luz e serve de esteio para a sua estética. A isso Lourenço
define como o ato de percorrer a “Noite humana e histórica”; diz que somos todos “seus pares
em infelicidade ou tragédia anônima”, mas apenas Pessoa se dispôs a explorar tal condição e
traduzí-la; sua poesia é o “resumo mítico” da consciência infeliz da Modernidade excluída do
pensamento da unidade”481
. Pessoa descobre que a unidade é um conceito fictício, uma fábula
apresentada como realidade na vida moderna. A desilusão é a sua realidade, porque ele está
consciente da vida como uma invenção. Isso se relaciona com o que Lourenço diz sobre
Pessoa ser “o Poeta de um mundo em que todas as palavras dos homens e tudo o que eles
chamam valores foi afectado (e infectado) de irrealidade (...)482
. A criação dos heterônimos é
entendida como o projeto de Pessoa para ilustrar a vida moderna, isto é, essa condição da não
477
Ibidem, p. 157. 478
Ibidem, p. 158. 479
Ibidem, p. 163. 480
Ibidem, p. 163. 481
Ibidem, p. 164. 482
Ibidem, p. 166.
235
unidade, da “caoticidade” e da “ausência radical do sentimento de autêntica realidade”. “Foi
sobre essa terrífica experiência de não-ser, sobre esta imolação de si nas tábuas do anonimato
criador que Pessoa se ergueu à vida mítica, à criação de uma nova e incógnita espécie de
mito: o mito de si mesmo como ficção.”483
Pessoa promove, portanto, uma ficcionalização de
si como ato de rejeição à vida não ficcionalizada, isto é, rejeição ao real; Lourenço entende
esse processo como uma autoimolação:
Conservar a saúde numa sociedade enferma, o sorriso no meio de um apocalipse de
horrores vertiginosos, simples prefácio a futuros campos de concentração
disfarçados em parque de diversões sem alegria, era pactuar com essa sinistra e
universal empresa de apagamento de qualquer sentido redentor para o que Mathew
Arnold chamou “a turva pulsação da miséria humana”. Pessoa não pôde, não quis
ser razoável, nem feliz, nem tempo interiormente bloqueado como o seu, bloqueado
sobretudo pela lei implacável da “objetividade”. O seu reino foi o da incodificável
energia da alma humana que quando murada na mentira servida com o esplendor da
verdade ausente sempre descobre em si a força de a recusar. Preferiu ser o cantor do
absurdo proliferante e, na aparência, insolúvel, que o arauto inconsciente, o
hipócrita, de verdade e valores mortos que teimavam em supor-se vivos.484
O “drama em gente”, como Pessoa se descreve, ou como fala da heteronímia, tem um
duplo sentido producente: pode ser lido como o drama humano, sua condição no mundo
moderno, a experiência do homem que Fernando Pessoa traduz na composição da
heteronímia, quando circunscreve, segundo Lourenço, “a solidão, o vazio, a angústia, a
náusea, a negra melancolia, incrustadas como um sol negro no centro da nossa aventura
individual e histórica”485
. O drama tem também o sentido de “ficção em gente”, o teatro dos
heterônimos, a ficcionalização de uma realidade já inicialmente inventada como realidade.
“Os seus plurais rostos foram a sua maneira de inventar uma face para a universal falta
dela.”486
De todo modo, os dois sentidos se complementam. Mas o que importa aqui destacar
é que é a demonstração da lucidez e do olhar crítico de Pessoa que interessam a Saramago,
tanto para a composição do seu personagem, quanto para a composição do romance.
483
Ibidem, p. 167. 484
Ibidem, p. 168. 485
Ibidem, p. 170. 486
Ibidem, p. 170.
236
6. CONCLUSÃO
(...) o Épico no seu hábito de pedra gloriosa habitava entre nós.
Eduardo Lourenço.487
Se não ligasse meu trabalho à História não faria qualquer trabalho (...) o que eu
quero escrever liga-se aos factos e aos homens passados, mas não em termos de
arqueologia. O que eu quero é desenterrar homens vivos. A História soterrou
milhões de homens vivos.
José Saramago.488
6.1. AOS HOMENS VIVOS
Este estudo teve como objetivo formular uma leitura sobre o romance O ano da morte
de Ricardo Reis, detendo a atenção à forma como Saramago traz à narrativa o personagem
que cria a partir do heterônimo Ricardo Reis, de Fernando Pessoa. Comecei, portanto, por me
voltar exclusivamente ao conjunto de odes de autoria do heterônimo, mesmo que, vez ou
outra, tenha sido necessário ler também outros heterônimos, além do próprio Fernando
Pessoa-ortônimo. Em suas odes, percebo que Ricardo Reis é um heterônimo criado a partir de
ideias filosóficas inspiradas pelo helenismo, o que oferece o epicurismo, o estoicismo, o
hedonismo e o paganismo como princípios norteadores da personalidade poética de Ricardo
Reis. Segui as datas relacionadas às odes no sentido de perceber até que ponto essa
identificação de Ricardo Reis com os gregos pode ser anacrônica, e o que se revelou foi que já
nos tempos em que as odes são criadas o contexto global não permite o posicionamento
indiferente que Ricardo Reis prega em seus versos. Falar em pregação, aqui, não é tão
despropositado: ele, de fato, fala como um conselheiro, suas odes são uma apologia a uma
determinada filosofia de vida, apresentada como a melhor forma de se enfrentar as
adversidades e conflitos da existência. Mas, o que se observa é que nem ele próprio é capaz de
487
LOURENÇO, Eduardo. Labirinto da Saudade. Psicanálise mítica do destino português. 8ª ed. Lisboa:
Gradiva, 2012. 488
AGUILERA, Fernando Gómez. José Saramago: A consistência dos sonhos. Cronobiografia. Trad. Antônio
Gonçalvez. Lisboa: Editorial Caminho, 2008. p. 90.
237
pôr em prática aquilo que ele defende, e não consegue evitar, inclusive, expor em seus versos
os mais intensos sentimentos, saindo do estado contido e impassível em muitos momentos.
Nesse sentido, a ideia de “vivem em mim inúmeros” se explica: Ricardo Reis não é apenas o
aristocrata imperturbável, mas também outros, como aquele que tem medo, aquele que sofre,
aquele que se abala pela realidade. A diversidade de estados emocionais deixa evidente que
seu propósito de vida é apenas uma idealização, e que a angústia é a única realidade do
homem moderno. O estudo das odes de Ricardo Reis serviu para mostrar, também, que o
personagem que ele inspira divide com ele essa incapacidade de se manter impassível e
indiferente, e que o que Saramago pretende provar – o quanto é impossível viver em um
mundo como o de 1936 sem se perturbar por ele – já havia sido provado pelo próprio
heterônimo, e que seu desejo de evitar o sofrimento é apenas desejo; ignorar o mundo é seu
objetivo, mas não é o que ele consegue de fato realizar.
Desse ponto segui para a análise do romance a partir do que o Ricardo Reis
personagem de Saramago encontra em Lisboa 16 anos após ter partido para seu exílio
voluntário. Para essa leitura, fixei-me no fato de que o narrador constrói seu relato enquanto
observa, por sua vez, aquilo que Ricardo Reis vai testemunhando, e esse testemunho é a parte
inventada da narrativa. A matéria criada mostra o quanto o ar sombrio da cidade reflete a crise
que o país enfrentava naquele momento. A cidade é descrita como uma cidade fantasma e a
população é cabisbaixa e soturna, como uma grande comunidade de zumbis. Convivendo
diretamente com essa apresentação plástica da cidade e com os elementos inventados por
Saramago estão os elementos reais, como as notícias dos jornais, o romance Conspiração de
direcionamento ideológico pró-regime, alguns eventos históricos, como a Intentona
Comunista e o Estado Novo no Brasil, o bodo do jornal distribuído aos pobres, as
peregrinações a Fátima, a simulação do bombardeio, a Revolta dos Barcos, a fuga dos
espanhóis ricos para Portugal, o nazismo, o fascismo. A identificação dos elementos reais
238
convivendo diretamente com os elementos fictícios levou à reflexão sobre duas questões: a
primeira diz respeito ao quanto os elementos reais – nesse caso, os jornais – apresentam uma
realidade completamente diferente da que os elementos fictícios – no caso, o testemunho de
Ricardo Reis – oferecem; a segunda diz respeito ao quanto a ficção pode ser muito mais real
do que a não-ficção, já que, em se tratando do Estado Novo português, os jornais,
classificados como não-ficção e sendo dotados da propriedade de dizer a verdade, não fazem
mais que apresentar uma versão inventada da realidade. Percebi também, na análise do
contexto sócio-histórico, que a percepção da realidade por parte de Ricardo Reis também está
comprometida. Isso se deve ao fato de que ele vê a realidade como um rio que corre e que ele
pretende contemplar enquanto se mantém na margem, distante, sem entrar nas águas, ou seja,
sem se comprometer. Mas, quando ele retorna a Lisboa, a realidade é profundamente caótica,
fazendo com que ele não consiga evitar se envolver com ela. Por isso, do ponto de vista de
Ricardo Reis, a realidade foi entendida como sendo a própria margem do rio, enquanto o rio é
uma idealização do real. Além disso, por ser uma realidade marginal, isto é, distante do que
deveria ser, o contexto histórico foi identificado com a exceção que Walter Benjamin chama
de “regra geral”, ou seja, o estado de exceção, a barbárie, a história dos vencidos vêm sendo
tão frequentes que não é mais possível chama-los de exceção, enquanto a utopia parece cada
vez mais distante de uma realidade possível.
Em seguida, elaborei o quarto capítulo, que se ocupa da análise da queda de Ricardo
Reis, ou seja, da transformação do homem indiferente ao sujeito afetado e degradado pelo
real. Comparei-o ao Narciso, que se apaixona por sua própria imagem, em razão de Ricardo
Reis ser dotado do complexo de superioridade próprio da classe dominante. No entanto,
chamei-o de narciso invertido porque o que acontece com Ricardo Reis não é descobrir sua
imagem refletida e sua beleza, mas, na verdade, descobrir-se alguém que não quer ser: o
homem que não consegue manter-se distante e indiferente da realidade. Acompanhando a
239
mudança do personagem central estão outros personagens retirados das odes – Lídia,
Marcenda e os velhos jogadores de xadrez – que são introduzidos naquele contexto para, de
certa forma, atualizar os poemas de Ricardo Reis, atualizando-o como consequência. Percebi
que, no romance, as musas são mulheres mais reais do que aquelas que se mantêm mudas nas
odes, assim como os jogadores indiferentes passam a ser dois velhos ignorantes e esquecidos
pela sociedade, e, portanto, mais próximos de homens reais. Esses personagens retirados das
odes são parte do espetáculo que Ricardo Reis encontra em Lisboa e que contribuem com sua
mudança, porque são parte da realidade que o circunda. Além disso, sua presença na narrativa
leva à reflexão sobre a romanização de elementos retirados da poesia, no caso, das odes de
Ricardo Reis, sugerir a superação desse modelo poético pelo romance, no qual os elementos
apropriados estão mais distantes da idealização e mais próximos da realidade, de modo que,
por exemplo, o anacronismo da presença das musas mudas em obras criadas em pleno século
XX possa ser resolvido, aceitando-se que essa nova versão delas esteja mais compatível com
o cenário histórico. Outro ponto analisado no protagonista de Saramago foi a imagem do
viajante, que, no romance, não se identifica mais com o navegante português, o conquistador
e vencedor, mas com o homem que está em trânsito constante, que não se fixa, porque não
tem para onde ir. Essa condição se estende ao aspecto subjetivo: na personalidade fundida em
“vários”, Ricardo Reis é estrangeiro de si mesmo, ele não se mantém constante em uma só
personalidade, por isso tem dificuldade em se reconhecer em suas atitudes e pensamentos. Por
fim, me dispus a analisar a morte de Ricardo Reis e percebi que ela não acontece somente na
conclusão do romance, mas que, na verdade, nele se narra o processo de morte do
personagem, que se inicia no momento em que Ricardo Reis entra no Highland Brigade com
destino a Lisboa, cumprindo, tal qual Fernando Pessoa, o processo de desgestação que cabe a
todo morto. Nesse sentido, fica evidente que os lugares ocupados por Ricardo Reis e por
Fernando Pessoa no romance podem ser vistos de forma invertida: Ricardo Reis que ainda
240
pertence ao mundo dos vivos, mas que é destituído por ele de suas qualidades humanas, está
mais para morto do que Fernando Pessoa, que não pertence mais ao mundo dos vivos, mas é
mais consciente sobre ele do que aqueles que ainda não morreram. Essa perspectiva acaba se
desdobrando para o âmbito coletivo, do qual fazem parte todos os homens comuns, que, assim
como Ricardo Reis, desmerecem o que há em seu redor, não se importam com os outros
homens, adotando cada vez mais uma postura alienada em relação ao mundo de que fazem
parte. A doença portuguesa que Saramago diagnostica acaba se mostrando um diagnóstico
global, a leitura dos homens que convalescem de uma morte antecipada enquanto ainda estão
vivos.
Depois de me deter na leitura do personagem Ricardo Reis, foi a vez de me ocupar da
leitura do Fernando Pessoa criado por Saramago. Comecei por perceber que a reação de
Ricardo Reis ao ser visitado pelo fantasma de Fernando Pessoa foi como se ele estivesse
recebendo a visita de qualquer outra pessoa, ou seja, um episódio supostamente sobrenatural é
recebido como se fosse algo corriqueiro. Em seguida, tratei de analisar a forma como os dois
personagens se relacionam no romance, observando que, na obra de Fernando Pessoa, o mais
comum é os heterônimos se desentenderem. Em razão de Fernando Pessoa estar sempre
confrontando Ricardo Reis, criticando e debochando de sua postura, percebi que as
desavenças da poesia se mantêm no romance. No entanto, à medida que os dois vão
convivendo e se reencontrando, o que se nota é que eles passam a concordar e se entender.
Essa mudança, entretanto, não se deve a qualquer fator observado na relação dos dois, mas no
fato de que ela é parte da conversão de Ricardo Reis em sujeito mais afetado pela realidade. O
que se observa é que ele passa a manifestar uma maneira mais crítica de lidar com a realidade,
o que é próprio não apenas do Fernando Pessoa criado por Saramago, mas também do próprio
poeta e sujeito histórico Fernando Pessoa. Consequentemente, acabei por perceber que o
Pessoa do romance se caracteriza por uma postura crítica e completamente divergente da
241
alienação adotada por Ricardo Reis, o que o aproxima ainda mais do poeta real. O próximo
passo foi desenvolver a tese de que Fernando Pessoa é produto da mente de Ricardo Reis, e
não um fantasma; é como parte do seu inconsciente. É também a parte crítica de Ricardo Reis,
que está desabrochando na medida em que ele vai sendo arrebatado pelo espetáculo do real e
fazendo com que ele progressivamente abandone seu status de impassibilidade e indiferença.
A partir desses inúmeros desdobramentos dialéticos percebidos na trama – a imagem
do país dos sonhos se converte em imagem do país abandonado; o presente histórico
apresentado pela versão oficial se converte na reprodução da “história vazia e homogênea”; o
senhor doutor se converte em pária; o vivo se converte em morto, e o morto em vivo, etc. –
percebe-se uma proposta reflexiva que se encaminha numa contra-corrente cultural. Não
apenas a história é questionada, mas também os bens que ela vem produzindo são revistos.
Nesse sentido, Lisboa é apresentada como a cidade encoberta, porque é uma produção
cultural, ou seja, o que se tem dela ou o que se sabe sobre ela é parcial. A cidade está vedada,
o que se apresenta como referência não está completamente exposta. A apresentação de
Lisboa configura a apresentação histórica elaborada no romance: a visão turva sobre a
realidade, visão comum construída a partir da realidade legitimada. A versão orquestrada pelo
poder. Da mesma forma, Lisboa é apresentada como o lugar aonde se parece não poder
chegar, porque está escondido, e a realidade que os donos dela encobrem. Ao mesmo tempo, a
neblina confere à cidade a impressão de um lugar irreal, ou fantasioso, como os reinos
fictícios das fábulas infantis. Ou como uma miragem.
A narrativa articula a ficção – Ricardo Reis – de modo que a parte encoberta da
realidade seja revelada através da mudança que Ricardo Reis sofre por essa realidade. É como
se a ficção estivesse abrindo o acesso à realidade por meio do romance. Sendo assim, a
elaboração do romance se dá a partir da aposta na ideia de que não há realidade que não esteja
242
encoberta – ou como se sugere n’O conto da ilha desconhecida489
, sempre há lugares a serem
descobertos – o que reaviva a necessidade de se retornar a essas realidades, em vez, por
exemplo, de se querer descobrir lugares novos. Nisso se encontra outra inversão da história
portuguesa: que se redescubra o que já existe, que se retorne à terra já desbravada para que se
possa realmente conhecê-la. A terra é a pátria, e a história é, inclusive, a presente. Por essa
razão é válido retornar a elementos culturais que pedem a revisão.
6.2. CAMÕES E ADAMASTOR
Assim como Fernando Pessoa recebe um tratamento distinto daquele oferecido pela
cultura, em O ano da morte de Ricardo Reis, Camões também aparece com contornos
distintos dos que se percebem em sua imagem mais difundida. Camões terá no romance,
apesar de estar em segundo plano, um papel central. Isso não demora a ser percebido, porque
o romance se abre pela frase que é a inversão do verso presente em Os Lusíadas. A narrativa
do derradeiro curso de Ricardo Reis se inicia com a inversão do verso camoniano “Onde a
terra acaba e o mar começa”, presente na vigésima estrofe do canto III, d’Os Lusíadas490
,
poema épico sobre a aventura dos portugueses mercantilistas em busca do Novo Mundo. O
verso que descreve a visão do navegador português no início de sua viagem, para quem o
mundo ainda desconhecido se abre, se transforma em “Aqui, onde o mar acaba e a terra
principia”, direcionando o leitor ao caminho de volta a Portugal, que os navegadores – e com
eles, toda a nação – nunca realizaram; para o mar partiram e do mar nunca regressaram. O
romance de Saramago se inicia, portanto, como a inversão da narrativa da viagem contada em
Os Lusíadas, ou seja, a inversão da História de Portugal, como ela é contada por Camões; ou,
mais especificamente, por Vasco da Gama, no poema de Camões.
489
SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 490
CAMÕES, 1997.
243
Mais à frente, Ricardo Reis encontrar-se-á, por acaso, com o épico: a estátua do poeta
faz parte da paisagem de Lisboa, por onde Ricardo Reis deambula descompromissado. A
estátua pode ser considerada parte do espetáculo do mundo, que Ricardo Reis tenta
contemplar. Ela suscita reflexões como as provocadas por todos os outros elementos trágicos
do real. É esta a ideia que Ricardo Reis tem ao reencontrar a estátua de Camões após 16 anos
de exílio: “já podemos observar o Camões, a este não se lembraram de pôr-lhe versos no
pedestal, e se um pusessem qual poriam, Aqui, com grave dor, com triste acento, o melhor é
deixar o pobre amargurado (...)”491
. É verdade que, a essa altura, Ricardo Reis ainda está
indiferente e não se mantém diante de Camões. Sai e continua seu passeio. Mas, aos poucos, a
presença da estátua vai ficando mais forte. Ricardo Reis deixa o monumento, mas é levado de
volta a ele pelas ruas de Lisboa:
Ricardo Reis atravessa o Bairro Alto, descendo pela Rua do Norte chegou ao
Camões, era como se estivesse dentro de um labirinto que o conduzisse sempre ao
mesmo lugar, a este bronze afidalgado e espadachim, espécie de D’Artagnan
premiado com uma coroa de louros por ter subtraído, no último momento, os
diamantes da rainha às maquinações do cardeal, a quem, aliás, variando os tempos e
as políticas, ainda acabará por servir, mas este aqui, se por estar morto não pode
voltar a alistar-se, seria bom que soubesse que dele se servem, à vez ou em
confusão, os principais, cardeais incluídos, assim lhes aproveite a conveniência.492
Em um mesmo passeio, Ricardo Reis encontra a estátua de Camões duas vezes: em
uma ele nota, ou lembra, o ar de tristeza em torno da estátua; em outro, de acordo com o que o
narrador conta, a estátua provoca a sensação de estar em um labirinto, como quem anda, anda,
e cai sempre no mesmo lugar. No caso do romance de Saramago, estando Camões no centro, é
como se ele fosse o Minotauro, o monstro mitológico que precisava ser alimentado por jovens
virgens e que é derrotado por Teseu, para quem Ariadne tece o fio que serve de guia dentro do
labirinto. Esse Minotauro será, assim como o mitológico, evitado, mas é a ele que Ricardo
Reis sempre retornará. O protagonista de Saramago não dispõe de fio que o guie, por isso,
como sempre retorna à estátua de Camões, o poeta parece assumir o papel simultâneo de
491
SARAMAGO, 2003, p. 58. 492
Ibidem, p. 67.
244
Minotauro e de guia. Há também outra conclusão a ser feita: o retorno de Ricardo Reis não o
traz apenas ao reencontro com a pátria, mas com Camões. Além disso, a estátua que sempre
ressurge também suscita a observação – não fica claro se feitas pelo narrador ou pelo
protagonista – sobre como o épico será tratado futuramente, e o diagnóstico já antecipa o
questionamento de Saramago sobre a apropriação do poeta pelo regime, assim como de
Fernando Pessoa: dele se servem conforme lhes aproveite a conveniência. Mais à frente,
Ricardo Reis novamente se depara com a estátua de Camões, e a narração desse episódio
reproduz a narração do último encontro: “atravessou a praça onde puseram o poeta, todos os
caminhos portugueses vão dar a Camões”493
. Logo em seguida, fala-se novamente sobre como
é tratado o poeta de tempos em tempos. Saramago usa as próprias palavras de Camões –
“braço às armas feito, mente às musas dada” –, presentes na dedicatória d’Os Lusíadas, em
que ele se coloca à disposição do rei, para ironizar a forma como ele tem sido utilizado pelo
poder
... de cada vez mudado consoante os olhos que o vêem, em vida sua braço às armas
feito, mente às musas dada, agora de espada na bainha, cerrado o livro, os olhos
cegos, ambos, tanto lhos picam os pombos como os olhares indiferentes de quem
passa.494
A repetição comum à métrica está presente nessa narrativa também em outros
momentos. Nessa passagem a sensação provocada pela repetição é comparável à de um som
que ecoa. E isso somado ao que se fala sobre Camões resgata a imagem do poeta como algo
que ressoa através dos tempos, levando-se a crer que ele está gravado na memória coletiva do
país, mas também, e sobretudo, a pensar que ele pode ser um português que precisa ser
relembrado. A repetição aqui sugere o exercício do rememoramento exatamente para que se
possa reconfigurar o Camões lembrado a partir do Camões que está esquecido. É como se,
após a morte, ele tivesse se transformado em uma alma que pena pelo curso do tempo,
vagando e reaparecendo, atraído pela necessidade das novas gerações de uma iluminação a
493
Ibidem, p. 179. 494
Ibidem, p. 179.
245
respeito tanto dele próprio quanto da história do país – da qual Camões é emblema. Aqui cabe
falar sobre os vencidos da história, em cuja redenção Walter Benjamin495
aposta para que um
novo mundo possa ser construído. Tanto Camões, quanto outros elementos esquecidos são
parte enterrada do passado, e constam dessa forma como o esquecimento exigido para que a
história de Portugal, tal como ela é, possa continuar existindo. Em outra passagem, Saramago
não apenas imagina Camões ciente de ser esquecido, bem como especula sobre um outro
esquecido – Fernando Pessoa – ter se esquecido de Camões também:
Quis Fernando Pessoa, na ocasião, recitar mentalmente aquele poema da Mensagem
que está dedicado a Camões, e levou tempo a perceber que não há na Mensagem
nenhum poema dedicado a Camões, parece impossível, só indo ver se acredita, de
Ulisses a Sebastião não lhe escapou um, nem dos profetas se esqueceu, Bandarra e
Vieira, e não teve uma palavrinha, uma só, para o Zarolho, e esta falta, omissão,
ausência, fazem tremer as mãos de Fernando Pessoa, a consciência perguntou-lhe,
Porquê, o inconsciente não sabe que resposta dar, então Luís de Camões sorri, a sua
boca de bronze tem o sorriso inteligente de quem morreu há mais tempo, e diz, Foi
inveja, meu querido Pessoa, as deixe, não se atormente tanto, cá onde ambos
estamos nada tem importância, um dia virá em que o negarão cem vezes, outro lhe
há-de chegar em que desejará que o neguem.496
O papel de Camões no romance pode ser importante a ponto de ele ser considerado
mais um personagem e, nesse diálogo imaginado pelo narrador – quando ele é recriado e
participa da narrativa, interagindo com Fernando Pessoa – ele está ciente da forma como a
consciência coletiva o trata: ora o esquece, ora atribui-lhe um lugar, seja de cânone, seja de
herói, que o faz querer ser esquecido.
Também faz parte do depósito histórico o gigante Adamastor, o monstro que ameaça a
frota de Vasco da Gama, n’Os Lusíadas. Sua importância no poema é inegável, e n’O ano da
morte de Ricardo Reis ele tem papel de destaque. Logo depois de passar pela estátua de
Camões, Ricardo Reis está se dirigindo para o miradouro do Alto de Santa Catarina, onde
puseram o bloco de pedra que chamam monumento, a estátua do “furioso Adamastor”,
“toscamente desbastado”497
495
O conceito de “redenção” elaborado por Walter Benjamin pode ser encontrado tanto em suas “Teses sobre o
conceito de história” quanto em Passagens (cf. BENJAMIN, 1994; BENJAMIN, 2009.) 496
Ibidem, p. 360. 497
SARAMAGO, 2003, p. 180.
246
Desse ponto em diante, o Adamastor suplantará Camões no romance, isto é, sua
presença terá um impacto mais forte e os caminhos portugueses levarão Ricardo Reis a ele
com maior frequência que a Camões. Inclusive, quando Ricardo Reis decide sair do hotel,
procura morada também com vista para o rio, e quando encontra uma, é o Adamastor que está
à sua vista. Todos os dias, quando chega à janela, é o Adamastor que ele vê, quando quer
admirar o rio. O gigante é presença cotidiana em sua vida. Aos poucos, do monstro concebido
pelo imaginário coletivo, o Adamastor, aos olhos de Ricardo Reis, ganha contornos
diferentes. Primeiro, porque ele substitui Camões no papel de eixo dos caminhos portugueses.
Ricardo Reis percebe que a estátua do gigante está no centro da fase itinerante de sua vida, em
certa ocasião, quando observa o monumento: “oito anos depois da minha partida para o exílio
foi aqui posto Adamastor, oito anos depois de estar aqui Adamastor regresso eu à pátria”498
. E
saindo da sua contemplação habitual, de passar pelas ruas como um flâneur499
, admirando
tudo sem se deter mais fixamente no seu plano de visão; em uma daquelas ocasiões em que
vai até o Alto de Santa Catarina para ver o rio – símbolo da sua contemplação
descomprometida – a estátua do Adamastor chama sua atenção a ponto de ele querer ver
melhor, prestar atenção na placa onde diz quando foi posta lá, e não satisfeito, contorna a
estátua, “deu segunda e terceira voltas ao Adamastor”500
. O gigante não é um elemento do real
pelo qual ele passa distraído. Ao contrário, instiga sua curiosidade, atrai sua atenção, e o
obriga a circulá-lo, como os planetas em torno do Sol.
É possível entender a amplitude que a figura do Adamastor alcança no romance,
quando Ricardo Reis começa a se identificar com ele, percebendo os sentimentos
representados pelo personagem camoniano. Chega a questionar a simbologia do gigante como
498
Ibidem, p. 232-233. 499
A propósito do termo, acho importante destacar aqui que, a minha leitura não se desenvolve a partir de
Ricardo Reis como flâneur, como, por exemplo, aquele que Benjamin lê em Baudelaire (BENJAMIN, Walter.
Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa & Hemerson Alves
Baptista. São Paulo: Brasiliense, 2000.) porque Ricardo Reis não é o caso de um observador da cidade, mas
apenas alguém que tenta se distrair da cidade através da contemplação descomprometida. 500
SARAMAGO, 2003, p. 232.
247
antagonista – que representa a leitura nacionalista –, entendendo que a postura não é “nem
medonha, nem má, é puro sofrimento amoroso o que atormenta o estupendo gigante”501
(mesmo que essa leitura ainda não contemple a crítica ao expansionismo lusitano). Mas
quando Ricardo Reis sabe sobre estarem organizando a Revolta dos Marinheiros, o
protagonista se perturba e “uma tenaz de angústia aperta a garganta de Ricardo Reis, turvam-
se-lhe os olhos de lágrimas, também foi assim que começou o grande choro de Adamastor”502
Essa passagem levanta a suspeita sobre os reais motivos da dor do gigante, a partir da leitura
de Saramago; é-se provocado a questionar se o gigante chora pela rejeição amorosa, ou por
ver seus mares invadidos pelos homens audaciosos. Por isso, nesse momento, Ricardo Reis se
identifica com seu sofrimento. E quando a revolta é abafada, é com o Adamastor que ele se
encontra: o gigante que antes tenta alertar sobre as tragédias que aguardam os portugueses e é
calado por Vasco da Gama é agora a maior representação da derrota de Portugal. É feito
estátua, que na verdade não passa de um bloco de pedra imóvel e com a feição aterrorizada e
paralisada: “com o Adamastor já não se podia contar, estava concluída a sua petrificação, a
garganta que ia gritar não gritará, a cara mete horror olhá-la.503
Aqui, Ricardo Reis está se
identificando com a derrota do gigante.
Ricardo Reis também é levado a conhecer a apropriação que Camões sofre pelo
nacionalismo. Como já foi mencionado aqui, Fernando Pessoa e ele percebem essa distorção
na estátua erguida em homenagem ao poeta, que o apresenta como um defensor da pátria-
império colonial. A relação percebida entre pessoas comuns e o poeta também tem esse tom, o
que é narrado na cena em que Ricardo Reis nota que há homenagens deixadas ao pé da estátua
(p. 359). É essa imagem, a do Camões canonizado, que é reavaliada na abordagem de
Saramago. O destaque conferido ao Adamastor realça a leitura dialética sobre as navegações
portuguesas, o olhar lúcido sobre a história, e ilumina a interpretação de Saramago sobre Os
501
Ibidem, p. 266. 502
Ibidem, p. 418. 503
Ibidem, p. 421.
248
Lusíadas, oferecendo ao leitor d’O ano da morte de Ricardo Reis o poema de Camões não
apenas como uma declaração patriótica.
A epopeia é citada através da leitura do Adamastor e também do próprio poeta, que
são os únicos elementos do poema mencionados no romance. Isso reflete a percepção de
Saramago de que Os Lusíadas não se resume à narrativa da viagem de Vasco da Gama. Jorge
de Sena504
analisa as estâncias do poema identificando nelas mais três planos: a História de
Portugal, o Poeta e os Deuses. O Poeta é destacado como um plano específico do poema
porque ele deixa impressas em sua narrativa suas reflexões, como não se observa nas epopeias
clássicas. Inclusive, isso é apontado por Cleonice Berardinelli505
como a grande inovação de
Camões, que introduz no poema os “excursos”, as partes compostas pelas reflexões do poeta.
Além dessas falas diretas, Camões também usa personagens para se imprimir em sua obra, ou
para quebrar o padrão do artista distanciado do objeto que cria. Um deles é o Velho do
Restelo, um homem do povo, que então não apareceria com tamanho destaque em uma obra
de arte. Uma análise um pouco mais detida do personagem permite que se entenda melhor a
forma como Camões é citado por Saramago em O ano da morte de Ricardo Reis.
O personagem aparece no momento em que os navegantes da esquadra de Vasco da
Gama se despedem da pátria para dar início à sua viagem em busca das Índias. O Velho
configura-se pela imagem do ancião respeitado por sua comunidade, cuja sabedoria é
reconhecida por todos, e assim é descrito por Vasco da Gama, o narrador do episódio. Como
homem do povo, tem o respeito até mesmo de um homem da nobreza, que não o ignora, a
ponto de incluir o sermão a si direcionado na narrativa de sua aventura, mesmo que esse
sermão seja de reprovação. O Velho do Restelo condena a expansão marítima e deixa
manifesta sua posição. Considerando-se que sua fala é proferida quando os destinatários já
504
SENA, Jorge de. A estrutura de <Os Lusíadas> e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do
século XVI. Lisboa: Portugália Editora, 1970. 505
BERARDINELLI, Cleonice. Estudos Camonianos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Cátedra Padre
Antônio Vieira, Instituto Camões, 2000.
249
estão a bordo e desancorados, aqui não se identifica uma tentativa de impedimento da viagem,
nem mesmo um discurso com o propósito da advertência; o Velho não é um agente que tenta
interferir na história narrada, mas um observador crítico cuja distância em relação ao objeto
narrado é mantida. Esse distanciamento o evidencia perante os outros homens, conferindo-lhe
ainda mais autoridade. Há de se notar, portanto, que em Os Lusíadas, o conquistador é peça
importante, mas não mais do que o camponês e a tradição popular – aqui contraposta à
ideologia expansionista –, o que fica claro nessa cena, em que essa espécie de guia tribal se
destaca até mesmo em relação ao herói.
O Velho do Restelo fala não sobre conquistas, mas sobre derrotas. Começa dirigindo-
se à Fama, que assume o papel de interlocutora, estando, portanto, personificada, a Fama é
uma espécie de musa, adorada pelos homens, a princípio. Condenada pelo Velho do Restelo,
cujo discurso pretende um efeito oposto ao das odes e cantigas de amigos, em que as musas
são o objeto de desejo e adoração, a Fama é tratada, dessa vez, como a prostituta do
Apocalipse. O Velho do Restelo atribui a ela todos os malefícios dos homens ambiciosos, é a
causa das desgraças futuras por motivar essas ações como a expansão marítima; é a “glória de
mandar”, “vaidade”, “vã cobiça”, dominação sem propósito. As Grandes Navegações não são
entendidas, aqui, como uma grande realização, como é dito em seu tempo, mas como uma
ação de interesse exclusivo daqueles que a promoveram. É apenas uma maneira novade se
subjugar outros povos, e que para tal custaria um preço demasiado alto.
O Velho aponta o preço pago, as conseqüências do poder que impõe sua vontade, na
estrofe 95: “Que castigo tamanho e que justiça/ Fazes no peito vão que muito te ama!/ Que
mortes, que perigos, que tormentas,/ Que crueldades neles esprimentas!”506
A Fama está para
o colonizador português assim como a musa da trova medieval está para o trovador: é um fim
em si. Só que, aqui, a mulher deixa de ser a causa da ruína do homem, e quem assume esse
506
CAMÕES, Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, 1997. p. 188, grifos meus. A escrita original da época de
criação do texto será mantida.
250
papel é a Fama, cuja destruição tem poder de alcance muito maior: “Dura inquietação d’alma
e da vida,/ Fonte de desemparos e adultérios,/ Sagaz consumidora conhecida/ De fazendas, de
reinos e de impérios!”507
Em seguida, o Velho fala daquele para quem a Fama não é musa: o
camponês, preso à vida rural e à terra, que não sai pelo mundo em busca de riqueza, mas se
fixa em seu lugar de origem, e que lá é abandonado à própria sorte pelo navegador que só se
importa com terras distantes. O “Reino antigo” fica à mercê de invasores e se enfraquece
quando seus defensores vislumbram fora dele a promessa de prosperidade, e até mesmo de
salvação. Esse camponês negligenciado se espalhará pelo Ocidente e, juntamente com os
povos colonizados, formará a população mundial às custas da qual o mundo capitalista será
sedimentado:
A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?508
As expedições marítimas produzem riquezas apenas para seus empreendedores; são
fruto de ações realizadas pelo e para o dominador, nas quais o dominado apenas se inclui
quando deve morrer sob o comando de algum “nome proeminente”. A este o Velho se dirige
em seguida, trocando de interlocutor. Agora, o sermão se volta diretamente à “geração
daquele insano”, os descendentes de Adão, o que primeiro desobedeceu a Deus e, por isso, é
responsável por tudo de trágico que o mundo vem presenciando ao longo dos séculos, e que se
resume à perda do estado supra-humano e divino – anterior ao pecado original –, do paraíso –
“Reino soberano”, reino de Deus – e da Idade do Ouro, condicionando-o à perpétua condição
507
Ibid cit., p. 189. 508
Ibid, p. 189.
251
de exilado, um “desterro e triste ausência” em um mundo de guerra e morte (“Que na [idade]
de ferro e de armas te deitou”). Em um texto oficialmente cristão, visto que é autorizado pelo
Santo Ofício, a crítica é exclusivamente direcionada ao homem, e suas desgraças atribuídas
apenas à desobediência e ao atrevimento; não mais aos castigos de Deus ou às tentações de
Eva e do diabo encarnado na serpente. É importante observar que a desobediência condenada
não é o pecado do homem comum, mas aquilo que motiva o homem a colocar suas ambições
à frente de tudo, sem se importar com o mundo à sua volta. E também que esse homem
atrevido é o colonizador, ou seja, os membros tanto da elite portuguesa quanto do clero; são
esses o alvo da crítica do Velho do Restelo, porque são esses que fazem um mau uso de sua
dádiva, simbolizada nas estrofes 103 e 104 pelo fogo concedido por Prometeu e pela vida
soprada por Deus em sua criação de barro: a razão, o conhecimento, a sabedoria são os dons
que a imprudência humana vem transformando em vida irracional.
A reflexão do Velho do Restelo é a do homem do povo, o que “ficava nas praias, entre
a gente”, assimilado como um mestre, por ser “de aspeito venerando” e ter “saber só de
experiências feito”, aproximando-se à figura de um pajé, o líder espiritual da tribo, cujas
palavras têm efeito de lei. Equipara-se também ao próprio Cristo, que ele mesmo cita como
aquele que dá a vida, assim como ele próprio, guiando os homens com palavras que
condenam a busca desenfreada por riqueza e poder. Essa figura remete ao Cristo pastor, o que
fala ao povo em meio à natureza, fora do templo, apreendendo do cristianismo sua origem
justa, pacífica e humanista, do homem que prega o amor ao próximo acima da sujeição a leis
que reprimem e hierarquizam o rebanho. Nesse sentido, por ser contra as expedições
marítimas cuja destruição é comparada à da guerra, o velho do Restelo resgata o camponês
sedentário anterior ao progresso. Por ter coração experimentado (“experto peito”509
), pode ser
associado ao artesão medieval, da atividade manufatureira, que antecede a indústria e a
509
Essa expressão é explicada por Francisco da Silveira Bueno, e diz respeito a um homem que é autoridade em
alguma arte, como o artesanato. In: CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. 10 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
252
Modernidade. É o homem anterior às Navegações, cujas conquistas iniciaram as atividades
mercantilistas e o capitalismo. O velho do Restelo é o eco do mundo arcaico, que Camões
inclui em seu poema para se fazer representado.
Em oposição ao colonizador, o Velho do Restelo é o homem que fica, que não se põe
em movimento porque já tem estabelecido seu lugar no mundo, não está deslocado. Os
portugueses que deixaram o país não puderam experimentar a vida do aquém-mar, portanto,
desconhecem-na. O velho não é apenas o profeta desta vida, como também, sua testemunha.
Seu “saber só de experiências feito” é a matéria mais consistente para a crítica. Na figura do
velho identifica-se o homem resgatado por Walter Benjamin em seu estudo sobre o narrador
de Nicolai Leskov510
. Benjamin vê o narrador como aquele que conta as histórias da tradição
oral, quando a arte de narrar consistia na faculdade de intercambiar experiências. No mundo
moderno, essa arte está sendo ameaçada, visto que o homem tem sido constantemente
suprimido pelos traumas da vida em sociedade; os danos à memória e à subjetividade
extinguem as experiências a serem partilhadas. Se as experiências são raras, a sabedoria –
tecida na substância viva da existência – começa a definhar. Desse modo, a utilidade atribuída
por Benjamin à narrativa se perde. “A experiência que passa de pessoa para pessoa é a fonte
de todos os narradores”511
, os quais Benjamin divide em dois grupos: o camponês sedentário e
o marinheiro comerciante. Esses dois tipos arcaicos fundamentais se interpenetram e dão
origem a todos os outros tipos de narradores. Esses dois têm tempo para apreender o que
vivenciam e sua sabedoria se constitui. Pela aquisição da sabedoria, Benjamin considera que o
narrador sabe dar conselhos. Esse homem experiente e sábio está em vias de extinção devido
à evolução secular das forças produtivas, que exigem cada vez mais que o homem esteja
integralmente disponível para o trabalho ininterrupto, não havendo espaço para as outras
atividades. Em oposição ao mundo do trabalho construído pela colonização, o Velho do
510
BENJAMIN, Walter. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”. Obras escolhidas I.
Magia e técnica, arte e política. 7 ed. Trad. Sérgio Paulo Rounaet. São Paulo: Brasiliense, 1994. 511
Ibid, p. 198.
253
Restelho se pronuncia como aquele que vivenciou com profundidade o momento histórico da
construção desse novo mundo. Ele é não apenas o homem arcaico que não foi privado de suas
experiências, através das quais adquire sua sabedoria e seu discernimento crítico, mas também
a testemunha das transformações decorrentes da cobiça dos homens de seu tempo. Mas,
sobretudo, é uma reminiscência do passado que não faz parte da história oficial, é uma pedra
em meio à ruína da civilização pronta para ser revelada. O Tejo não representa para o Velho
do Restelo o mesmo que representa para o Portugal pós-navegações: o Tejo é o caminho para
o Novo Mundo. O Velho não esteve lá, porque ele já tem o seu mundo: a terra de seus
antepassados, de onde ele não precisa sair. Ele nunca deixou Portugual para trás. O seu
discurso se constitui do sentimento do lar, da origem, e da recusa ao que se encontra fora do
seu universo.
Pelo teor de testemunho, o velho do Restelo constitui um desdobramento cujo discurso
é o do próprio Camões. Ambos narram suas próprias experiências, sendo que, no caso de
Camões, tem-se as palavras de quem estava não “nas praias, entre a gente”, mas na corte e nas
próprias expedições. A crítica às expedições marítimas presente em Os Lusíadas contém o
testemunho do soldado, o homem que experimenta os horrores da guerra e das batalhas das
conquistas, e retorna à pátria despedaçado e traumatizado, mas que não teve a memória e o
espírito comprometidos, ao contrário, faz do trauma a sua experiência. Nesse sentido, o
discurso do Velho do Restelo se articula a partir não exatamente de uma existência idealizada
– a da tribo ancestral, que se mantém fixa em sua terra e sua história –, até porque o tipo de
comunidade representada pelo Velho do Restelo será, pouco a pouco, extinta pela civilização
moderna; mas da negação do que se realiza naquele presente histórico.
Considerando-se a história oficial como uma montagem a partir da ótica do vencedor,
o discurso de Camões e do Velho do Restelo oferecem a outra versão, a do vencido, a que se
mantém oculta, a de vozes não mitológicas, mas da experiência. De um discurso que se vale,
254
na verdade, de todos os ângulos, inclusive, o oficial512
. Esse discurso é de quem avalia o
quanto se perde e o quanto se ganha em obras expansionistas: isso significa que o poema
camoniano se constrói pela tensão entre os descobrimentos – favorecidos por avanços
científicos que poderiam contribuir com uma construção histórica transformadora e justa – e o
rastro de destruição subsequente – uma clara mixórdia entre civilização e barbárie.
O outro personagem de Os Lusíadas que Saramago escolhe para constituir seu
romance é o gigante Adamastor. No poema, o epidódio do gigante é outra passagem marcada
pela sobriedade de Camões a respeito do momento histórico que está tratando e uma outra
oportunidade por ele usada para intervir como homem real e histórico. O Adamastor é
descrito como um monstro, e aparece no poema como um dos muitos obstáculos que os
navegantes vencerão: “(...) hua figura/ Se nos mostra no ar, robusta e válida,/ De disforme e
grandíssima estatura;/ O rosto carregado, a barba esquálida,/ Os olhos encovados, e a postura/
Medonha e má (...).”513
O monstro, mesmo disforme, apresenta traços humanos – rosto, barba,
olhos – que o colocam entre as figuras imaginárias que o homem cria “à sua imagem e
semelhança”, porque é sua criação e também a própria criatura, é aquilo que o homem cria e,
no que o próprio homem se reconhece; entretanto, sua constituição não é exclusivamente
humanizada, visto que também apresenta as características ameaçadoras: “Hua nuvem, que os
ares escurece,/ Sobre nossas cabeças aparece./ Tão temerosa vinha e carregada,/ Que pôs nos
corações um grande medo (...)”. Adamastor representa as forças da natureza em revolta contra
as ações humanas que as desrespeitam, sendo natureza como habitat do homem e como a
natureza humana, constituição orgânica do homem. A natureza é tudo o que o homem deveria
conservar em uma convivência amistosa, mas é o que ele tem subjugado para garantir sua
supremacia. Nisso se inclui sua própria natureza, seus impulsos que ele reprime conforme lhe
512
De fato, o velho do Restelo cita as palavras do seu interlocutor, mesmo que seja para refutá-las: “Já que nesta
gostosa vaidade/ Tanto enlevas a leve fantasia,/ Já que à bruta crueza e feridade/ Puseste o nome ‘esforço e
valentia’.” (CAMÕES, 1997, p. 189, grifos meus.) 513
CAMÕES, 1997, p. 202.
255
convém, como Freud identifica no homem moderno. O Adamastor é a natureza que se volta
contra o homem irracional, o arquiteto da civilização. É o retorno de um organismo racional
pré-civilização, e até mesmo o retorno do reprimido. Ele volta para combater seu opressor,
que não se reconhece naquele que reprimiu, por isso o teme. O Adamastor é a vingança
temida. É o homem e a natureza secularmente oprimidos, que retornam para reivindicar
justiça e liberdade. Também como força ameaçadora e ainda como criação do homem,
Adamastor é entidade metafísica. A ele Vasco da Gama se refere como “ameaço divino”,
assumindo, portanto, também natureza divina e sobrenatural, conforme se encontram na
mitologia antiga a fauna e a flora, sempre confundidos com seres místicos e parte do próprio
universo mitológico, ou seja, exteriores à esfera do homem, a ele tão superiores e temidos
quanto dominados e inferiores. Todas as representações do Adamastor configuram um
personagem que, como antagonista do homem, é o próprio homem.
Mais adiante, o Adamastor se apresenta como o próprio cabo da Boa Esperança, a cujo
nome é preciso atentar. No poema, Camões utiliza o primeiro nome do promontório, cabo das
Tormentas, que é como Bartolomeu Dias o vê, em virtude das tragédias enfrentadas por ele e
sua frota ao passarem por aquela região, caracterizada por adversidades naturais. Sua viagem
vem a ser a que abre o caminho para as Índias, portanto, como descobridor dessa rota, afirma
no nome do cabo das Tormentas aquilo que de fato encontrou pelo caminho. Já D. João I tem
outra visão, o que é expresso quando troca o nome do cabo das Tormentas por cabo da Boa
Esperança, porque via aquele trecho como uma passagem que garantiria novas conquistas. A
escolha de Camões por usar o nome do cabo das Tormentas para a apresentação do
Adamastor aponta para uma reflexão sobre o lado trágico das expedições marítimas.
No discurso do Adamastor, encontra-se mais uma vez o próprio Camões e suas
reflexões sobre as viagens colonialistas, distinta da visão demagoga que entende as viagens
apenas como o melhor momento para Portugal e a chegada da civilização às colônias. Isso
256
tudo, no episódio do Adamastor, é apontado como tudo o que deveria ter sido evitado, como
ele tenta em sua aparição. Como guardião, o gigante tenta manter virgens os mares em razão
de serem como um lugar sagrado, o lugar da pureza, intocado pela mão do homem. É o
habitat dos deuses marinhos, inclusive de sua amada Tétis. A proteção que Adamastor
concede ao mar é a do guardião da água (“húmido elemento”), e se enfurece ao perceber que
os mares sagrados que ele tenta preservar estão ameaçados, mares que “tanto tempo há já que
guardo e tenho,/ Nunca arados de estranho ou próprio lenho (...)”, cujos segredos nunca foram
“a nenhum grande humano concedidos/ De nobre ou de imortal merecimento”514
. A água é
também morada do Amor, símbolo da origem da vida, da gestação e da gênese, substância do
batismo – o renascimento; é o que concede a imortalidade de Aquiles, que lava e purifica,
que, benta, oferece proteção divina. Tudo isso faz do Adamastor, como guardião da água,
guardião da vida, a outra face que transcende sua condição de monstro e de ameaça. É por
isso que fala da navegação como uma ousadia responsável pela maculação da água e,
portanto, a conversão do mar no espaço da morte após o seu desbravamento pelos
portugueses.
Assim sendo, o que é referido como conquistas e grandes feitos é aqui entendido
apenas como prejuízo, fruto da vontade desmedida de dominar: “Ó, gente ousada, mais que
quantas/ No mundo cometeram grandes cousas,/ Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,/ E
por trabalhos vãos nunca repousas (...).”515
Como é típico dos deuses, o Adamastor é
vingativo e sentencia as punições – ou conseqüências inevitáveis de atos prepotentes – mais
do que adverte os invasores, ou profetiza tragédias. Como criação do homem, a natureza
vingativa dos mitos revela o sentimento de culpa adquirido no processo de socialização. O
homem que cria deuses que o punem aceita que é portador de uma má índole inata e que por
isso merece ser castigado. O próprio Adamastor em sua forma de promontório é uma
514
Ibid., p. 203. 515
Ibid. p. 203.
257
representação do castigo divino. As suas sentenças são aceitas, inclusive, pelo próprio Vasco
da Gama, que narra a aparição do monstro em que ele vai “dizendo nossos Fados”516
; com
isso, Gama entende que o que o Adamastor diz é o destino preciso. Ele não adivinha o futuro,
mas o determina e realiza. Começa pelos desastres causados pela natureza, os “ventos e
tormentas desmedidas”, que vitimarão incontáveis homens e marcarão aquele trecho da
travessia pelas tragédias enfrentadas: “Naufrágios, perdições de toda sorte,/ Que o menor mal
de todos seja a morte!”517
Em seguida, condena vencedores a converterem-se em vencidos,
citando o exemplo do que aconteceu em 1509, quando o primeiro vice-rei da Índia (“primeiro
ilustre”), D. Francisco d’Almeida, vence a batalha naval de Diu, destruindo a esquadra do
sultão do Egito (“Turca armada”) e a do senhor de Diu, Mélique de Jaz. No entanto, o vice-
rei, ironicamente, une-se a seus adversários na sepultura, visto que acaba morrendo vítima de
uma azagaia na garganta, e, com mais 50 portugueses, é enterrado na areia da praia. Não só é
morto pela mesma guerra que venceu, como tem o mesmo túmulo que aqueles que ele vitima.
E do primeiro ilustre, que a ventura
Com fama alta fizera tocar os Céus,
Serei eterna e nova sepultura,
Por juízos incógnitos de Deus.
Aqui porá da Turca armada dura
Os soberbos e prósperos troféus;
Comigo de seus danos o ameaça
A destruída Quíloa com Mombaça.518
O Adamastor, guardião da vida violada, assume-se também como guardião da morte, a
sepultura de cristãos e mulçumanos, inimigos seculares, destinados a passar a eternidade lado
a lado, na mesma cova. Adiante, o Adamastor fala do casal Manuel de Sepúlveda e sua
mulher Leonora, que morrerão tragicamente após o naufrágio de 1552, no cabo da Boa
Esperança. Dos 400 náufragos, apenas oito portugueses e 17 escravos sobreviverão. Dona
516
Ibid ., p. 205. 517
Ibid ., p. 204. 518
Ibid., p. 204, grifos meus.
258
Leonora e os filhos morrerão de fome, após ela ser violentada por nativos, assim como os
portugueses violentarão os mares sagrados e virgens. D. Manuel enlouquecerá e desaparecerá
na selva. Nesse episódio, o destino permitirá que os náufragos sobrevivam apenas para depois
morrer de forma desesperadora:
Triste ventura e negro fado os chama
Neste terreno meu, que, duro e irado,
Os deixará dum cru naufrágio vivos,
Pera verem trabalhos excessivos.
Verão morrer com fome os filhos caros,
Em tanto amor gerados e nascidos;
Verão os Cafres, ásperos e avaros,
Tirar à linda dama seus vestidos;
Os cristalinos membros e perclaros
À calma, ao frio, ao ar verão despidos,
Depois de ter pisada, longamente,
Cos delicados pés a areia ardente.519
O Adamastor cita apenas esses dois casos como exemplo das tragédias que esperam para
castigar os portugueses, o que não pôde se estender; a fala do gigante é interrompida pelo
Gama: “Mais ia por adiante o monstro horrendo,/ Dizendo nossos Fados, quando, alçado,/
Lhe disse eu: ‘Quem és tu? (...)”520
Dizer “alçado” é altear-se, erguer-se, impor-se ao
interlocutor, tomando para si a palavra, por imposição. Gama interrompe arrogantemente o
Adamastor, como quem espera evitar as tragédias calando aquele que as enviará, suspendendo
as palavras que as proferem. O ato que demonstra sua vontade de anular o destino, vontade
desesperada, visto que o destino não pode ser interrompido, apenas no diálogo, através do
silêncio ou da censura. Isso também deixa evidente que o Adamastor não é apenas mais uma
criatura mística que tenta atrapalhar a viagem dos heróis portugueses, mas um personagem de
relevo e autoridade. Mesmo assim, Vasco da Gama não respeita essa autoridade, atrevendo-se
a interromper seu discurso e dando continuidade à viagem, mesmo depois de saber as
519
Ibid., p. 204-205. 520
Ibid., grifos meus.
259
conseqüências de sua ambição e dos planos de dominação arquitetados pela empresa colonial.
É a partir desse “grito contido”, ou seja, das tragédias que não foram anunciadas, que José
Saramago, em 1984, reflete sobre os frutos dessas ousadias e constrói a trama de O ano da
morte de Ricardo Reis521
.
Expostas essas análises, volto à questão da apropriação do texto de Camões pela
ditadura salazarista, o que marca um novo capítulo – ou canto? – do poema fundador do
imaginário português. A ideologia nacionalista vem a direcionar radicalmente as ações
daquela administração, que se serve d’Os Lusíadas como se ali se encontrasse a defesa da fé e
do império, tão conveniente ao programa neocolonialista de Salazar e sua aliança com a Igreja
católica, motivado pelo propósito de encorajar o cidadão português a se envolver com a
religião e o passado como respostas para o futuro. A essa leitura panfletária, Saramago se
opõe, apresentando Camões por uma outra ótica, que pode se amparar por estudos orientados
por iniciativas livres de tendenciosismos e mais atentas. Um dos responsáveis por esse tipo d
leitura é Eduardo Lourenço, que declara: “É impossível comemorar Os Lusíadas
inocentemente.” Essa é sua tentativa de atenuar o culto celebrado pela última versão do
Estado Novo à ocasião do quarto centenário do poema, quando escreve o seu “Camões no
presente”522
, confrontando esse culto sem meias palavras: “À primeira vista a Epopeia
justifica as interpretações mais desvairadas de nacionalismo. (...) Lido num abstracto e irreal
presente, o Poema (...) presta-se mais, com efeito, para ditirambos e slogans de Cruzada
Imperial”523
. Os Lusíadas não louva a pátria: o texto se desdobra dialeticamente da aventura
heroica lusitana para a percepção trágica da história. O poema é lúcido e pouco comedido em
suas críticas. O Velho do Restelo é o próprio Camões declarando sua visão sobre a política
portuguesa de seu tempo. “Onde só o Poeta falara no Canto I, é agora a contrafilosofia quem
521
SARAMAGO, 2003. 522
LOURENÇO, 1992. 523
Ibidem, p. 153.
260
fala: a contrafilosofia não só do heroísmo, mas da própria atividade humana.”524
A fala do
Velho do Restelo é a crítica transferida por Camões para um personagem que Jorge de Sena
considera histórico, já que Vasco da Gama – figura histórica – o viu. É a crítica à
“absurdidade desmedida de uma aventura” que o próprio Camões conheceu bem. E “os
considerandos abstractos do Velho do Restelo concretizar-se-ão nas profecias de Adamastor”,
e repercutirão no desespero pessoal do poeta” no fim do canto X. O poema vai sendo uma
gradação interpretativa da História. Os episódios são “história dentro da história”, e são
representações do pensamento do Poeta, e não os mais significativos da História. Os episódios
são “motivos condutores” através dos quais Camões elabora sua Filosofia da História525
. É
possível ler o eco dessa filosofia no romance de Saramago, quem parece estar próximo a
Jorge de Sena e Eduardo Lourenço no que diz respeito à leitura d’Os Lusíadas, e ao
tratamento conferido a Camões pelo Estado Novo. É nisto que se encontra a razão de se
inverter o verso camoniano e conduzir-se de volta a Portugal para a criação do romance: ler
Camões e Pessoa à luz não do ultraufanismo que os sequestra e canoniza, mas do interesse em
compreender a História de Portugal sem as pinceladas ideológicas que convêm a qualquer
regime em vigor. “Comemorar Camões e o seu Poema é reexaminar sem frio na inteligência e
no coração, de «amor da pátria apenas movidos», a mitologia cultural e ideológica de que o
Poeta é irradiante símbolo”526
, para que, assim, haja a possibilidade de o poeta escapar à
condição de símbolo reconquistando seu lugar na História.
Por isso Saramago revisita a Lisboa de 1936, quando dá-se a Revolta dos Barcos, cuja
coibição vem a iniciar um intenso período de perseguição política e rigorosa repressão. O
medo passa a ser elemento constante na vida de pessoas de todas as classes sociais; a censura
é rígida aos meios de comunicação e às instituições de ensino; a prisão do Tarrafal é
transformada em campo de concentração para os inimigos do regime; o setor cultural passa a
524
SENA, 1970, p. 62. 525
Ibidem, p. 70. 526
LOURENÇO, 1992, p. 158.
261
ser controlado por bases conservadoras e católicas. Camões tem naquele cenário sua estátua
caricatural em que não é reconhecido por Ricardo Reis e Fernando Pessoa. Adamastor está
petrificado e mudo no monumento que celebra o poema em que personifica os obstáculos
impostos ao Império. Ele representa a censura contra tudo o que se atreve a tentar se opor
contra o Estado português. Na solidão de Ricardo Reis, a estátua parece estar sempre em
diálogo com o protagonista, através de uma presença quase atuante, mas também tão
fantasmagórica quanto Fernando Pessoa. Contudo, visto que o gigante aparece no romance
como estátua, ao contrário do fantasma do poeta-personagem, está privado de movimentos e
de fala. Nisso se observa que, além da derrota do século XX, o romance fala também da
derrota de Camões, ou seja, dos portugueses do século XVI, que Camões antecipa em seu
poema, porque é uma derrota secular; entretanto, o alarme jamais foi escutado. A fala
interrompida do gigante está, desde, então, vagando ininterruptamente como um eco afônico.
Camões é distorcido pelo regime, e Adamastor compartilha essa condição quando é
transformado em estátua, no Alto de Santa Catarina: o discurso interrompido por Vasco da
Gama está definitivamente anulado no monumento, o gigante petrificado mantém apenas a
lembrança de um poema que louva a empresa expansionista. Imobilizado com a boca aberta, o
gigante está condenado à mudez que fica gravada na pedra, um silêncio que não é inato, mas
adquirido na iminência do grito. A censura à palavra que combate a ordem tem aqui seu
símbolo: “preso à sua pedra o Adamastor vai lançar um grande grito, de cólera pela expressão
que lhe deu o escultor, de dor pelas razões que sabemos desde Camões.”527
O grito
petrificado, “grito contido”528
, é o selo da derrota, é a pedra da lápide e do túmulo, onde jaz o
grito morto – se antes o Adamastor é o promontório onde se sepultam os portugueses
castigados por suas ousadias, agora é a sepultura do próprio gigante. É a rocha onde se ergue
527
Ibid., p. 354. 528
Referência à composição “Apesar de você”, de Chico Buarque (BUARQUE, Chico. Chico Buarque. Rio de
Janeiro: Philips, 1978.
262
o monumento à civilização e à dominação, monumento na opulência e na indestrutibilidade, e
monumento à barbárie.
6.3. PESSOA
Os poemas de Fernando Pessoa citados na abertura do romance, que apresenta a
Lisboa decadente, também seguem esse impulso em se resgatar os sequestrados da História, e
uma forma de realocar Pessoa no seu posto de combate à realidade mistificada, em que a
humanidade é enterrada ao mesmo tempo em que é levada a pensar que está contemplada pela
civilização. Sobre isso, Pessoa também tenta dar seus sinais. Toda essa abertura do romance
delineia-se por uma descrição que é ora de uma paisagem imaginária, ora concreta, retomando
a antítese fantasia e realidade, apresentada pelos símbolos do céu-mar e da terra. A fantasia,
em termos freudianos, é uma “fachada psíquica”, que disfarça a lembrança de acontecimentos
traumáticos529
. Estão presentes no romance o céu e o mar como lugares da fantasia, e a terra
como lugar da realidade. Juntamente com o retorno a Lisboa, a visão desta como cidade
imaginária e o deslocamento do céu-mar para a terra, e vice-versa, resgatam um poema de
Fernando Pessoa-ele mesmo (“Chuva oblíqua”) e dois de Fernando Pessoa-Álvaro de Campos
(“Lisbon revisited”e “Lisboa com suas casas”).
Em “Lisboa com suas casas” 530, a imagem da cidade cinzenta é mostrada pela
repetição dos versos “Lisboa com suas casas/ De várias cores”, diferentemente do cinza,
seguindo a repetição dos versos, conotam uma monotonia irreversível e imanente à cidade e à
existência nela: “à força de diferente, isso é monótono”.
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores...
529
FREUD, Sigmund. Duas histórias clínicas (o “Pequeno Hans”e o “Homem dos ratos”). Rio de Janeiro:
Imago, 2006. 530
PESSOA, 2003, p. 389-390.
263
À força de diferente, isto é monótono,
Como à força de sentir, fico só a pensar.
Se, de noite, deitado mas desperto
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos,
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.
Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
À força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.
Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa, com suas casas
De várias cores.
Nesse poema, o sujeito poético fala enquanto está deitado, entre o sono e o estado
desperto, o que caracteriza a condição de quem existe, mas não vive. Existência que se
esvazia pelas repetições infinitas do aparelho cultural, como a projeção de um filme, que se dá
pela troca repetitiva e veloz das películas, ou como a produção industrial em larga escala,
igualmente rápida e multiplicadora do mesmo.
Em seguida, “Lisbon revisited”531
, de 1923, constitui-se pelo grito, e não pela voz, de
um indivíduo que repudia tudo o que é resultado e artifício da civilização: estéticas, moral,
metafísica, ciências, artes, o casamento, o trabalho e a condição de contribuinte e a vida social
e confraternizada.
Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!)
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
531
Ibidem, p. 356.
264
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!
Ó céu azul o mesmo da minha infância ,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
Fala um sujeito que escolhe a solidão para se afastar desses paradigmas e que não se
identifica com sua capital, Lisboa: “Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.”
O sentimento presente no poema é da aversão à polis, símbolo de habitat civilizado, uma
Lisboa que se resume ao destino do retorno monótono e fatigante de um passado de glórias
que não existem mais, mas que se repete e constitui o presente.
E revisitando a mágoa, Fernando Pessoa-Álvaro de Campos escreve um novo “Lisbon
revisited”532
, em 1926, um retorno a Lisboa e ao mundo que repele, e à insatisfação em ter
que viver nele, à perturbação, à angústia, um retorno do sono à vida desperta: “Durmo
irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto/ De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.” Não
podendo escapar à consciência, “[Acorda] para a mesma vida para que tinha adormecido.” E
num eterno retorno, repete a chegada a Lisboa, seu mundo empírico, sua realidade.
532
Ibidem, p.359.
265
(...)
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo —,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...
Outra vez te revejo,
Sombra que passa através das sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...
Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim —
Um bocado de ti e de mim!...
Em “Chuva oblíqua”533
, Fernando Pessoa-ele mesmo imprime a forma como se realiza
a atividade poética: através do trânsito constante do sujeito poético entre imagens. Nesse
poema, há um sujeito mais próximo do momento de fantasia que do momento de consciência,
e esse momento faz surgir países imaginários diferentes, e é iniciado pela travessia duma
paisagem pelo seu “sonho de um porto infinito”. Esse porto é descrito como sombrio e assim
como Lisboa é vista pelos passageiros do Highland Brigade, e é também “infinito”, como se o
momento de chegada nunca acabasse, adiando para nunca o reencontro com a terra. E como
num processo onírico, as imagens vão aparecendo e se entrelaçam absurdamente (navios que
atravessam troncos de árvores, chuva que acende velas, um poeta que se vê escrevendo
embaixo de pirâmides, numa noite há “luar no dia de sol”, um “cão verde”, um “cavalo azul”,
533
Ibidem, p. 113.
266
um “jockey amarelo”), como o retorno de substâncias do extramundo, ou do mundo que não
existe, que por vezes se manifestam em sonho, como recalcamentos tentando esvair-se, à
maneira surrealista, que privilegia a verdade do sonho. Ricardo Reis, que chega pelo mar, é
recebido por essa “chuva oblíqua”, chuva que dissimula a imagem, que ilude a visão. Mas
quando está em terra e a chuva abranda, a imagem se revela.
6.4. REMEMORAÇÃO E CONSTRUÇÃO DO PRESENTE
O romance de Saramago não é exatamente uma proposta de dar ao Adamastor, assim
como a Camões e Fernando Pessoa, a oportunidade de, enfim, serem escutados; mas investe
no resgate dessas figuras como forma de se alertar para o fato de que eles representam algo
que está esquecido ou escondido, além do que já se repete sobre eles. O exercício presente no
romance, na verdade, é mais propriamente o da recitação do que o da citação, porque reincide
em figuras mitológicas da identidade nacional, ou seja, que são mencionadas à exaustão, mas
– e por isso – são inventadas pelo discurso dominate. A invocação dos mitos atenta para o que
possa ser desconsiderado por essa mitologia, sujeitando à inexistência ou a uma morte
ideológica esses componentes desconsiderados. O romance de Saramago desperta, enfim, a
urgência em se pensar que a realidade não está completamente revelada, mesmo depois do fim
do Estado Novo e com o advento da democracia.
O passado obscurecido é um produto da historiografia oficial, a ciência da dominação
que precisa criar bens culturais para se legitimar. Para confrontar esses bens culturais, Walter
Benjamin534
pensa um novo conceito de história, a que será construída a partir da revolução. É
esse conceito que alerta para a necessidade de se voltar para o passado e resgatar o que o
poder tem desviado ou apagado do curso da História. Walter Benjamin reflete sobre os
valores e bens culturais apresentados como legitimidade e se serve deles para desarmá-los.
534
BENJAMIN, 1994.
267
Um desses bens é a história, cujo relato oficial é aceito como indiscutível documento da
existência humana e de suas formas de relação. A concepção que Benjamin apresenta sobre
essa versão histórica é de que se trata de uma sequência de eventos repetitivos, e que se
caracterizam exclusivamente por contar as realizações dos vencedores, o que significa que a
história oficial é contada a partir da visão dos dominadores. Como experiência daqueles que
se encarregam de dar seguimento ao projeto de ganhar o domínio da vida e do mundo, a
história oficial registra o que Benjamin chama de “cortejo triunfal dos vencedores”: a marcha
que vem passando pela terra e acumulando destroços, e que é o que se conhece por
civilização. Nesse processo, o fluxo da contracorrente, que avança no sentido da revolução, e
que se ocupa da tarefa de parar o cortejo do vencedor é esquecido. Camões e Pessoa são
exemplos desse deslocamento ideológico. As contradições do presente só podem ser
resolvidas através do resgate desses lampejos furtivos. É assim que o presente encontra sua
origem e pode-se compreender seu desenvolvimento, compreensão que consiste em “escovar
a história a contrapelo”.535
O materialismo histórico é o método que tem como objetivo essa
compreensão e que se vale da história que ainda não foi contada, que não consta na versão
oficial. Considerando a fragilidade dessa versão, o historiador materialista compromete-se
exatamente com o confronto com ela, o que significa confrontar-se com o poder, o único
favorecido pelo relato historiográfico, visto que se trata de desmontar um de seus artifícios. A
história, como Benjamin a lê, é um enorme livro uniforme, sem capítulos, que coleciona
tragédias e vidas sacrificadas em vão. A história é, na verdade, o conjunto de fatos que
contam a existência humana, que não tem se mostrado dissociada da dominação e da barbárie.
É um fluxo, uma correnteza, sem pausa, sem desvio, e que leva consigo tudo o que encontra
pela frente. A rememoração histórica é o exercício de confrontar os condutores desse fluxo.
Ela se correlaciona com a práxis subversiva, mesmo que esta não seja diretamente equivalente
535
Ibid., p. 225.
268
àquela, que corresponde mais propriamente ao caminho para o desencantamento do presente:
a rememoração oferece o alerta, tanto para os momentos de crises não solucionados do
passado, quanto para as possibilidades do presente, de se viverem novas tragédias e, também,
de se evitá-las. A história para Benjamin é o acúmulo de destroços, mas também um curso em
movimento que não está sujeito a fatalidades, está aberto e seu fim é desconhecido; ou como
Michael Löwy a entende, é a “história aberta”536
que Benjamin quer mostrar às gerações do
presente. É, portanto, no presente que o passado pode ser salvo dos discursos oficiais e ser
exposto como imagem dialética.
Percebe-se, portanto, que a arte também pode ser assimilada como instrumento do
poder e que Saramago está ciente disso ao recitar Camões e Pessoa. Mas não se trata de salvá-
los do esquecimento; a narrativa de Saramago fala sobre o esquecimento, e não sobre
salvação. A citação aqui corresponde à rememoração de que fala Benjamin, mas como um
exercício de alerta. O exercício da citação provoca as consciências a pensarem sobre a
reincidencia de um texto literário em outro. O objeto lembrado só o é porque em algum
momento ele foi esquecido; ou, no caso de Pessoa e Camões, foi convertido em outro
discurso. A citação expõe a arte como elemento sujeito a ser apropriado pelo discurso
dominante, ou seja, a literatura, os artistas, qualquer produção humana corre o risco de escorar
a história “vazia e homogênea” e ser distorcida para um fim específico. Por isso, a citação,
assim como a rememoração, atenta para a realidade de tantos elementos históricos, que
seguem obliterados e precisam ser resgatados
O fim do romance é a morte de Ricardo Reis, após sua transformação da indiferença
para a comoção frente ao espetáculo trágico que o mundo lhe oferece. Cumpridos os nove
meses de desgestação de Fernando Pessoa, o poeta agora não voltará a visitar o mundo dos
vivos. Sendo assim, Ricardo Reis decide ir para o Cemitério dos Prazeres com Fernando
536
LÖWY, 2005.
269
Pessoa, abandonando o real, numa tentativa de fugir dessa condição que o oprime. Pensando-
se no título do romance, a morte de Ricardo Reis não se caracteriza pelo fim biológico da
vida; afinal, a narrativa não relata nenhum fator que possa ter causado esse tipo de morte. O
que se conta é diferente: Ricardo Reis simplesmente decide abandonar o mundo, sair dele e ir
para o cemitério. Sua partida não é a morte convencional, é uma morte simbólica.
Até aqui a morte é entendida como a condição do homem civilizado, que precisa se
adequar à sociedade, e para isso abre mão de sua identidade e de suas vontades sujeitando-se
ao emparedamento cultural. Ao fim do romance essa morte não é apenas a condição do
homem, mas também de tudo o que ele produz, e de tudo o que a vida dispõe. A morte de
Ricardo Reis também é a morte de Fernando Pessoa, de Camões, do Adamastor, do Velho do
Restelo, e de todo elemento cultural de que a ordem possa se servir. A morte é a condição
cultural dos elementos obnublados pela dominação, pela historiografia oficial, pelo discurso
dominante; é a simbologia dos artifícios do poder. Ricardo Reis, Fernando Pessoa, Camões –
e, por que não? Saramago – são todos mortos históricos porque se contrapõem à vida – que,
aqui, tem o conceito de invenção, realidade inventada pela cultura. A vida, aqui, é a ficção
criada pelo Estado Novo, pelos regimes de exceção, pelo fascismo, enfim, pelo Ocidente
Moderno. É a realidade imposta como unicamente legítima. Para retornar ao conceito
histórico de Benjamin, a vida é, na verdade, a maior das ficções. Ela contém o traço do objeto
inventado, e no caso do “era uma vez”, a fábula se evidencia como uma história que nunca
aconteceu, e que é criada para moralizar as crianças. O lado educativo – e controlador – da
fábula é apresentado como exercício do controle e artifício do poder. Como “era uma vez”,
isto é, como fábula criada como bem cultural, a história oficial é uma ficção educativa,
socializante, e legitimadora do poder, que é a unidade que educa homens que não participam
desse poder, embalados como crianças orientadas pela moral da fábula. Benjamin também
entende a narrativa fictícia da história como um narcótico, porque é como uma substância
270
aplicada com o propósito de alcançar um efeito calmante, paralisador e até mesmo
alucinógeno, quando a consciência se desabilita entrando em um estado de dormência ou de
coma. Sem sua percepção normal, o indivíduo modalizado está suscetível a aceitar as visões
que o estado de torpor lhe oferece, tornando-se um fantoche a serviço dessas visões, do
espetáculo cultural, e adquire a condição que Marx identifica como alienada.537
Morrer, em O ano da morte de Ricardo Reis, é tanto existir na contramão dessa vida,
quando ser elemento negado pela História do vencedor. Os mortos da História não são
ressucitados por Samarago, mas reunidos no Cemitério dos Prazeres, ou nessa Lisboa
representada no romance como um grande cemitério simbólico, e lembrados como exemplos
de uma realidade que é ainda tida como irreal, e por isso precisa ser resgatada e redescoberta.
Por isso, o romance se inicia pela premissa de que é aqui que o mar acaba e a terra começa, ou
seja, aqui está o início de uma nova História possível. Saramago apenas indica o caminho das
pedras. Mas, ao fim – que é tanto o ano de 1936 e o abafamento da Revolta dos Barcos,
quanto o ano de 1984, ou seja, o Portugal pós-salazarismo, quando o romance é escrito – a
terra espera: porque ela ainda não foi descoberta, o discurso dominante continua sendo
dominate, a cegueira continua governando a humanidade, e os elementos esquecidos
continuam mortos. O Adamastor continua censurado e seu grito engasgado. Portugal
permanece esperando para ser descoberto por sua própria nação, sua História continua
precisando ser desvendada.
6.5. O ESTILO NARRATIVO
Uma nova leitura dos bens culturais só é possível pela transgressão formal, e a
narrativa de Saramago apresenta aspectos que acompanham a iniciativa de transgredir. Isso
pode ser percebido pela aproximação do estilo à escrita informal, à oralidade, a um estilo que
537
BENJAMIN, Walter. Passagens. Trad. Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora
UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.
271
se desprenda o máximo possível do romance tradicional, e, talvez principalmente, do discurso
formal e burocrático. A reformulação dos diálogos é o traço mais característico de Saramago e
uma das suas maiores inovações. É original a ponto de causar estranhamento em muitos
leitores viciados nas narrativas convencionais. Mas, além disso, também é muito próprio da
narrativa de Saramago suas intervenções, carregadas ora de ironia, ora de uma crítica
melancólica e desistente. Isso também serve para distanciá-lo da forma tradicional do
romance, em que é aceito apenas o narrador distanciado do objeto narrado. Não é exagero
dizer que Saramago se faz presente em sua narrativa linha por linha, sempre muito próximo
do objeto que narra, chegando, em alguns momentos, a se confundir com ele. No caso do
romance em estudo, não são raros os momentos em que não se sabe ao certo se os
pensamentos expostos são do personagem ou do narrador. E, por mais que haja a tentação em
se tentar resolver essas incertezas, logo se descobre que é melhor manter a dúvida. Por
exemplo, há esta passagem em que o narrador transita entre a primeira e a terceira pessoa:
Chove lá fora, no vasto mundo, com tão denso rumor é impossível que, a esta
mesma hora, não esteja a chover sobre a terra inteira, vai o globo murmurando águas
pelo espaço, como pião zumbidor, E o escuro ruído da chuva é constante em meu
pensamento, meu ser é a invisível curva traçada pelo som do vento, que sopra
desaforado, cavalo sem freio e à solta, de invisíveis cascos que batem por essas
portas e janelas, enquanto dentro deste quarto, onde apenas oscilam, de leve, os
transparentes, um homem rodeado de escuros e altos móveis escreve uma carta,
compondo e adequando o seu relato para que o absurdo consiga parecer lógico, a
incoerência rectidão perfeita, a fraqueza força, a humilhação dignidade, o temor
desassombro, que tanto vale o que fomos como o que desejaríamos ter sido, assim o
tivéssemos nós ousado quando fomos chamados a contas, sabê-lo já é metade do
caminho, basta que nos lembremos disto e não nos faltem as forças quando for
preciso andar a outra metade.538
Nessa cena, Ricardo Reis está escrevendo uma carta para Marcenda, portanto, o relato
de que se fala é dele. Na terceira linha, há uma troca de interlocutor – a fala de um termina em
vírgula, e a fala do outro se inicia em letra maiúscula – bem ao estilo de Saramago. É como se
fosse a narração de um diálogo entre Ricardo Reis e o próprio narrador. Pode ser também um
dos diálogos imaginários do protagonista. De qualquer forma, há também a mudança da
538
SARAMAGO, 2003, p. 197, grifos meus.
272
primeira pessoa – com o uso do pronome “meu” – para a terceira pessoa – “um homem”. Esse
narrador se mostra tão próximo do que narra que parece quase viver o que está sendo contado.
Na cena em que Ricardo Reis e Marcenda se beijam e seu sexo volta a reagir, o narrador
comenta: “o sangue de Ricardo Reis desce às profundezas, metafórico modo de dizer que se
ergue o seu sexo, afinal morto não estava, bem que eu lhe tinha dito.” Por mais que seja
lógico identificar esse eu como um dos inúmeros que vivem em Ricardo Reis, nessa sentença
não há a mudança de fala característica do estilo de Saramago: a sentença é toda parte de uma
fala só, a que está narrando o episódio, ou seja, esse eu pode perfeitamente ser identificado
com o narrador. Por outro lado, há também os momentos em que o narrador parece não saber
as intenções de seus personagens, afastando-se do convencional narrador onisciente:
Vê lá tu se tens bastante confiança em mim, Oh, senhor doutor, se eu não tivesse
confiança em si, De duas uma, ou Ricardo Reis é de todo inábil esgrimista,
descuidado na guarda, ou esta Lídia Martins é amazona de arco, flecha e durindana,
salco se deveremos considerar ainda uma terceira hipótese, estarem afinal os dois
desprevenidamente falando, sem cuidarem das recíprocas fraquezas e forças, muito
menos de subtilidades de analista, só entregues à conversação ingénua.539
E não é apenas Fernando Pessoa quem tem comentários ácidos a fazer sobre Ricardo
Reis; o narrador também o faz: “Ora, Ricardo Reis é espectador do espetáculo do mundo,
sábio de isso for sabedoria, alheio e indiferente por educação e atitude, mas trémulo porque
uma simples nuvem passou.”540
O narrador também interfere para atacar o governo e criticar o
contexto histórico em que seu protagonista está inserido, dirigindo-se diretamente a ele:
(...) o ministro do Interior foi dizer a Montemor-o-Velho quando inaugurou a luz
eléctrica, grande melhoramento, Declarei em Lisboa que os homens-bons de
Montemor sabem ser leais a Salazar, podemos facilmente imaginar a cena, o Paes de
Sousa explicando ao sábio ditador, assim cognominado pela Tribune des Nations,
que os homens-bons da terra de Fernão Mendes Pinto são todos leais a vossa
excelência, e, sendo tão medieval o regime, já se sabe que daquela bondade estão
excluídos os vilões e os mecânicos, gente não herdadora de bens ao luar, logo
homens não bons, porventura nem bons nem homens, bichos como os bichos que os
mordem ou roem ou infestam, O senhor doutor já teve ocasião de ver que espécie de
gente é o povo deste país, e mais estamos na capital do império, quando no outro dia
passou à porta do Século, aquela multidão à espera do bodo, e se quiser ver mais e
melhor vá por esses bairros, por essas paróquias e frequesias, veja com os seus olhos
a distribuição da sopa, a campanha de auxílio aos pobres no inverno, iniciativa de
tão singular beleza, como escreveu no telegrama o presidente da câmara do Porto, de
539
Ibidem, p. 173. 540
Ibidem, p. 87.
273
boa lembrança, e diga-me se não valia mais deixá-los morrer, poupava-se o
vergonhoso espetáculo do nosso mundo, sentam-se na berma dos passeios a comer a
bucha de pão e a rapar o tacho, nem a luz eléctrica merecem, a eles basta-lhes
conhecer o caminho que vai do prato à boca, e esse até às escuras se encontra.541
Mais uma vez nota-se a mudança de falas: até a linha nove é o narrador narrando e
comentando; depois, é ele se dirigindo a Ricardo Reis, como se estivessem lendo a notícia
juntos e compartilhando comentários. Os comentários do narrador são críticos, enquanto
Ricardo Reis quer apenas contemplar o espetáculo, por isso o narrador se dirige a ele
lembrando do que ele já viu e que é bem diferente do que está no jornal, como quem quer
interferir não apenas na narrativa, mas também no próprio personagem. Isso demonstra o
quanto ele não é um fantoche do narrador, e que tem mais autonomia. O narrador não tem
domínio sobre seus personagens, mas não deixa passar despercebido o que observa através
deles, e do que Ricardo Reis lê nos jornais. A interferência do narrador no texto é um recurso
de que Saramago dispõe, e corresponde à necessidade de se construir uma obra aberta. Obra
esta na qual até mesmo a obra de outrem precisa também estar aberta. Por isso – e aqui
recupero a questão da citação de Camões e Pessoa – outras ficções – Ricardo Reis e o
Adamastor – são reficcionalizadas, assim como sujeitos históricos – os poetas em questão –
são ficcionalizados. Na página 144, o narrador imagina um diálogo entre Fernando Pessoa e
Ricardo Reis – destacando: o diálogo é imaginado e não criado; é uma hipótese, e não matéria
narrada. Ou seja: da matéria criada no romance cria-se uma nova; da ficcionalização dos
heterônimos ficcionaliza-se mais uma vez, quase numa geração expontânea. Esse diálogo
imaginado é ficção da ficção da ficção, quase como o eco da criação inicial. O que o narrador-
criador define: “Duas vezes improvável, esta conversação fica registada como se tivesse
acontecido, não havia outra maneira de torná-la plausível.” O que é o mesmo que dizer que
quanto mais ficcional é o discurso, mais credibilidade terá, porque ele tem muito mais a ver
541
Ibidem, p. 92-93.
274
com a imaginação do que com a obrigatoriedade em dizer; trata-se de liberdade, e não de
dever.
A essa altura, a interferência do narrador alcança um outro nível: a de tornar evidente
o quanto a criação é aberta e inconclusa, valendo, portanto, mais que o discurso absoluto. Por
isso que tanto fatos históricos, como personagens históricos e as notícias de jornal são
incluídos nessa narrativa. Em primeiro lugar, estão postos no mesmo plano em que objetos
fictícios são elencados – os heterônimos pessoanos e o Adamastor, por exemplo. Um exemplo
forte de ficcionalização do real está na passagem em que é lida a notícia sobre o cenário de
guerra em Addis-Abeba: “Addis-Abeba está em chamas, as ruas cobertas de mortos, os
salteadores arrombam as casas, violam, saqueiam, degolam mulheres e crianças, enquanto as
tropas de Badoglio se aproximam.”542
Dez linhas depois, esse mesmo trecho é repetido; e oito
linhas adiante, repete-se mais uma vez. A repetição não é, tradicionalmente, um recurso
narrativo, mas da poesia, o que permite identificar nessa passagem uma poetização da notícia,
de um fato histórico. É claro que os elementos históricos não deixam de ser reais; eles
aconteceram e nada pode mudar isso. O romance de Saramago não quer transformar o
salazarismo, o fascismo europeu, e outras tragédias em mentiras; a finalidade de se citá-los –
mesmo de forma poética – é, na verdade, abrir não o seu registro, mas a sua leitura, para que
eles possam ser recontados. Da mesma forma estão as citações de criações artísticas e os
artistas, que são frequentemente apropriados ora por propagandas de Estado, ora por seus
críticos e leitores que, querendo ou não, incorrem, muitas vezes, em leituras distorcidas. Essa
articulação desabsolutiza as verdades inconstestáveis – históricas ou artísticas – e permite
apresentá-las como objeto inacabado. Talvez a obra de arte, pelo menos a contemporânea,
seja um nível em que isso seja permitido mais facilmente.
542
Ibidem, p. 305.
275
No romance estudado, Saramago contrapõe o discurso dominante – representado
principalmente nas notícias de jornal citadas na narrativa – aos contradiscursos – Camões e
Pessoa. O primeiro é citado ipsis litteris. Já os contradiscursos são ficcionalizados, porque
aqui a ficção tem valor exatamente por não ser instrumento do poder; ela tem mais relação
com a vida não pragmática, a utopia. Por essa dissociação da realidade, a arte alcança a
dimensão subversiva. Camões e Pessoa são apresentados como mortos e fantasmas da história
dos vencidos. Enquanto o discurso dominante apenas alimenta o contínuo histórico, o
contradiscurso alerta sobre esse contínuo. O contradiscurso é fantasmagórico porque nunca
foi devidamente escutado. Nesse romance, Saramago resgata esses contradiscursos para, no
fim, fazer um novo alerta: depois de apontar as duas crises – 1) a histórica; 2) a subjetiva,
representada pelo declínio de Ricardo Reis – ele alerta: “a terra espera”. Ele nega o discurso
dominante alertando sobre o que ele produz, ou melhor dizendo, reproduz. O que agrava a sua
mensagem é que ele não tem o tom sebastianista; ele não pensa um Portugal trasnformado
porque não consegue vislumbrá-lo. Antes de pensar em como Portugal deve ser, é preciso
notar o que ele não deve ser, nunca mais. Saramago se atém unicamente à decadência, e vê
para o povo português um único destino: o cemitério dos Prazeres e a morte ideológica. O
declínio de Ricardo Reis denuncia isso. Por isso, a sua narrativa se constrói a partir de uma
única premissa: todos foram derrotados. O romance se inicia e se encerra com a mesma visão:
Lisboa como labirinto. É a cidade capital do extramundo, onde os vencidos da história vagam,
como almas penadas. Seus caminhos não levam a lugar nenhum. O Tejo não é mais a via de
acesso ao futuro glorioso. Seus caminhos levam apenas a Camões, porque qualquer um que
ali erre é levado a se descobrir como Camões: um morto histórico, um esquecido. O destino
de todos está anunciado no fim a que a história relegou Camões. Todos estão destinados a
serem esquecidos. Inclusive a mensagem de Saramago: ela vaga no oceano para o qual os
portugueses continuam voltados, com medo de partir, ou à espera de Dom Sebastião.
276
E é pela via de um romance remodelado que a revisão crítica se torna mais possível,
como é possível concluir pela leitura do romance de Saramago. Suas inovações não apenas
refrescam o modelo do romance, como também provocam novas reflexões, que se estendem
de toda a reflexão histórica. As inovações textuais de Saramago apontam para o fato de que só
é possível oferecer uma nova perspectiva sobre o relato histórico se o relato ficcional
corresponder a essa transgressão transgredindo-se a si mesmo: estando a historiografia oficial
confrontada pelo relato ficcional aquela é suplantada por este, o que significa dizer que ela é
descredibilizada pelo conteúdo do objeto ficcional. Em outras palavras: a obra de arte, sendo
uma invenção, tem maior valor que a versão histórica dominante, sendo apresentada como
verdade. E como invenção, a obra de arte tem a tarefa de ser revolucionária, se pretende
estimular essa pequena revolução, que é a revisão histórica.
O que a narrativa de Saramago permite concluir é que a existência do romance
histórico pode questionar não apenas o texto histórico oficial, mas o modelo de texto admitido
como histórico, no qual a ficção não é admitida. Se a ficção não for admitida por seu valor
histórico, então cria-se a regra de apenas se pensar a história em um modelo específico de
texto. A narrativa de Saramago é transgressora também por isso: ela força a passagem para a
crítica literária, para o ensaio filosófico, e para a reflexão histórica, mesmo em textos
literários. Em O ano da morte de Ricardo Reis, o elemento ficcional está no centro de uma
trama que parece, a princípio, se guiar pelos elementos históricos, predominantemente. Ao
mesmo tempo, o destino do elemento ficional é moldado pelos elementos históricos. Mas, em
razão disso, o destino do elemento ficional – Ricardo Reis – acaba definindo a perspectiva
histórica do romance. Diferentemente dos romances do século XIX, em que o real era
apresentado diretamente pela narrativa, representado pela descrição, n’O ano da morte de
Ricardo Reis, o real é representado por aquilo que ele provoca no protagonista, que é uma
criação artística inserido em outra criação artística. O seu desenvolvimento no romance, a
277
parir do que ele é elaborado antes de ser parte desse romance, é o que pode oferecer uma
visão histórica. Saramago articula a transformação da criação de Pessoa de modo que seja
possível apresentar, através dessa transformação, a história por uma perspectiva diferente da
oficial, e o real como fator determinante da vida civilizada, que não é autônoma.
278
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