UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
por
Luisa Müller Cardoso
(Aluna do curso de Mestrado em Literaturas Hispânicas)
O BUFÃO E O INTELECTUAL EM
MALUCO. LA NOVELA DE LOS DESCUBRIDORES
Rio de Janeiro
2012
O BUFÃO E O INTELECTUAL EM
MALUCO. LA NOVELA DE LOS DESCUBRIDORES
Luisa Müller Cardoso
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Letras Neolatinas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito para a obtenção do título de Mestre em Literaturas Hispânicas. Orientador: Víctor Manuel Ramos Lemus
UFRJ / Faculdade de Letras
Rio de Janeiro, fevereiro de 2012
FICHA CATALOGRÁFICA
Cardoso, Luisa Müller. O bufão e o intelectual em Maluco la novela de los descubridores / Luisa Müller
Cardoso - Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2012. 152f.: 2,0cm Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) – Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Faculdade de Letras, 2012. Orientador: Víctor Manuel Ramos Lemus 1. Baccino Ponce de León, Napoleón. 2 Novo romance histórico latino-americano. 3.
Representação alegórica do intelectual na pós-ditadura – Teses.
I.Víctor Manuel Ramos Lemus (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III. O bufão e o intelectual em Maluco. La novela de los descubridores.
O bufão e o intelectual em Maluco. La novela de los descubridores
Luisa Müller Cardoso
Orientador: Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Literaturas Hispânicas.
Aprovada por:
Presidente, Prof. Doutor Victor Manuel Ramos Lemus - UFRJ
Prof. Doutor Ary Pimentel - UFRJ
Prof. Doutor Juan Pablo Chiappara Cabrera - UFV
Prof. Doutor Miguel Ángel Zamorano Heras - UFRJ
Prof. Doutor João Roberto Maia da Cruz - Fiocruz
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2012
SINOPSE
Análise do narrador de Maluco. La novela de los descubridores, de Napoleón Baccino Ponce de León, como sendo uma representação alegórica do próprio autor, intelectual uruguaio no contexto da pós-ditadura. O estudo deste narrador proporciona um entendimento a respeito das mudanças teórico-ideológicas ocorridas em relação ao papel da figura do intelectual latino-americano depois do período ditatorial, partindo do caso do próprio autor. Através desta interpretação de Maluco, pensa-se na construção do lugar para o intelectual, representado pelo narrador-bufão, Juanillo Ponce de León.
RESUMO
CARDOSO, Luisa Müller. O bufão e o intelectual em Maluco. La novela de los desubridores. Rio de janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O romance Maluco. La novela de los descubridores (1989), do uruguaio Napoleón Baccino Ponce de León, reconta a história da primeira viagem de circunavegação comandada por Fernão de Magalhães, desde o ponto de vista do bufão da tropa. Apesar da trama (re)contar um fato histórico situado no século XVI, desde o título há uma advertência: trata-se de um romance, e é a partir deste patamar que a pesquisa se desenvolve. Este é um texto escrito durante os últimos anos da ditadura militar no Uruguai, afinado com as tendências contemporâneas da ficção (e também da disciplina da história), acompanhando a evolução literária latino-americana que se desenvolveu a partir dos anos 60 até os anos 80. Assim, considera-se que, para além do fato histórico ali apresentado, em "Maluco" estão colocadas questões relativas ao tempo presente da escritura do romance, partindo-se do princípio de que, em termos literários, a representação traumática em tempos ditatoriais é predominantemente alegórica. Enfim, com a análise do narrador de Maluco é possível refletir a respeito das mudanças teórico-ideológicas ocorridas no que concerne ao papel da figura do intelectual latino-americano depois do período ditatorial atravessado por diversos países no continente. Juanillo Ponce de León, o narrador-bufão (não acidentalmente homônimo tanto de um grande descobridor do século XVI, quanto do próprio escritor do romance) é interpretado como uma representação alegórica deste intelectual latino-americano que se configurou no contexto da pós-ditadura. Palavras-chave: Napoleón Baccino Ponce de León, Narrador, Bufão, Representação alegórica, Pós-ditadura latino-americana, Intelectual, Narrativa, Literatura Latino-Americana, Literatura uruguaia, Novo romance histórico latino-americano.
ABSTRACT
CARDOSO, Luisa Müller. O bufão e o intelectual em Maluco, la novela de los desubridores. Rio de janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
The uruguayan novel Maluco. La novela de los descubridores (1989),from the Uruguayan Napoleon Baccino Ponce de Leon, re-tells the story of the first round-the-world trip, conducted by Fernao de Magalhaes, seeing from the viewpoint of the troop's buffoon. Despite the fact that the plot (re)tells a historic fact from the 16th century, you have a clear warning from the title: this is a novel, and it is from there that the research takes place. This was a piece written during the last years of Uruguay's military dictatorship, in tune with the contemporary tendencies for ficcion (and as well in History), following the latin-american literary evolution which sprouted from 1960 to 1980. Therefore, it is considered that, beyond the historic facts presented, "Maluco" also sets questions relating to the present time in which the novel was written, taking into consideration that, in literary terms, the traumatic experiences of dictatorship is represented, mainly, allegorically. Regardless, with the analysis of "Maluco"'s narrator, the reflection upon theoric-ideological changes concerning the role of the intelectual latin-american post-dictactorship across several countries in the continent is made possible. Juanillo Ponce de Leon, the buffoon-narator, (not only by chance sharing his name with a very famousconquisterfrom the 16th century as well as the romance's author) is constructed as an allegoric representation of this latin-american intellectual which was established in this post-dicatorship background. Key-Words: Napoleón Baccino Ponce de León, Narrator, Buffoon, Allegoric Representation, Latin American Post-Dictatorship, Intellectual, Latin American Narrative, Uruguayan Literature, Latin America’s New Historical Novel.
RESUMEN
CARDOSO, Luisa Müller. O bufão e o intelectual em Maluco, la novela de los desubridores. Rio de janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
La novela "Maluco. La novela de los descubridores" (1989), del uruguayo Napoleón Baccino Ponce de León, recuenta la historia del primer viaje de circunavegación comandada por Hernando de Magallanes, desde el punto de vista del bufón de la tropa. Pese a que la trama (re)cuente un hecho histórico, desde el título hay uma advertencia: es una novela, y partiendo de ahí se desarrolla esta pesquisa. De esta forma, “Maluco” está muy al día con las tendencias contemporáneas de la ficción (y también con las la historia), y se puede considerar que para allá de la trama ubicada en el siglo XVI, en “Maluco” están puestas cuestiones relativas al tiempo presente de la escritura de la novela (segunda mitad de la década de los 80 del siglo XX), siguiendo la evolución literaria latino-americana que se desarrolló entre los años 60 y los 80. Así, se considera que, para allá del hecho histórico representado, en “Maluco” aparecen las cuestiones relativas al tiempo presente de la escritura de la novela, partiéndose del principio de que, en términos literarios, la representación traumática en tiempos dictatoriales es predominantemente alegórica. Finalmente, con el análisis del narrador de Maluco es posible reflexionar acerca de los cambios teorico-ideológicos ocurridos en relación al rol de la figura del intelectual latinoamericano después del periodo dictatorial vivido por diversos países en el continente. Juanillo Ponce de León, el narrador-bufón (no acidentalmente es homónimo tanto de un descubridor del siglo XVI, como del escritor de la novela mismo) es interpretado como una representación alegórica de este intelectual latinoamericano que se hizo en el contexto de la post-dictadura. Palavras-llave: Napoleón Baccino Ponce de León, Narrador, Bufón, Representación alegórica, Post-dictadura latino-americana, Intelectual, Narrativa, Literatura latino-americana, Literatura uruguaya, Nueva novela histórica latino-americana.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a meu orientador, Víctor Manuel Ramos Lemus, pela paciência com minhas tantas ausências e demoras. Devo um agradecimento especial a Ary Pimentel e Martha Alkimin, pela “adoção” acadêmica durante a graduação na Faculdade de Letras da UFRJ: obrigada por todas as possibilidades que me mostraram,por todo o rigor de mim exigido, por não terem se contentado com menos. A Diego Vargas, Lauro, Benjamin, Rebeca e Alice muito obrigada por todo tempo, atenção e ajuda a mim dedicados, aceitando o desafio de opinar e participar ativamente sobre algo que de fato não faz parte de suas formações. A todos da The Sequoia Foundation / Associação Sequoia, especialmente Carolina e Patricia, pelo apoio que me dedicaram desde o primeiro dia de minha contratação. Obrigada pelo indispensável “dia do mestrado”. A Marilene Flores e toda a equipe da biblioteca da Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación da Universidad de la República, em Montevidéo, Uruguai, que me receberam como uma verdadeira pesquisadora. A Julia Moreno, Matías Gonzáles e Roberto Capay, que não mediram esforços para ajudar com as fotocópias do material conseguido na biblioteca, extrapolando todas as cotas estudantis comuns em vigência na Universidade. Obrigada pelo carinho, indicações bibliográficas e artigos aMalva E. Filer, professora na Brooklyn College, The Graduate School and Universiy Center e The City University of New York; a Roberto Ferro, professor de Literatura Latino-americana da Facultad de Filosofía y Letras da Universidade de Buenos Aires;a Idelber Avelar, professor da Tulane University, Nova Orleans. Obrigada a Carlos Alberto Della Paschoa, da Biblioteca do Instituto Cervantes do Rio de Janeiro, pelos artigos localizados a tempo, sempre tão dedicado.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 13
2 CAPÍTULO 1: BACCINO E SEU TEMPO 23
2.1 A ARTE DE PERDER 23
2.2 TEMPOS DE DITADURA 28
3CAPÍTULO 2: MALUCO E AS TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS 45
3.1 LITERATURA E HISTÓRIA 45
a) O processo literário latino-americano dos anos 60 aos 80 45
b) A influência da disciplina da História 59
c) O romance histórico e o novo romance histórico latino-americano 66
3.2 A REPRESENTAÇÃO DO TRAUMA EM TEMPOS DE DITADURA 85
4 CAPÍTULO 3: O INTELECTUAL E O BUFÃO 101
4.1 BACCINO EOS INTELECTUAIS DE SEU TEMPO 101
4.2 O NARRADOR-BUFÃO 113
5 CONCLUSÃO 137
REFERÊNCIAS 141
ANEXO 152
Se algum outro pudesse ter escrito
minhas histórias, eu não as teria escrito.
Elie Wiesel, “The loneless of God”, 1984
13
1 INTRODUÇÃO
Maluco. La novela de los descubridores, de Napoleón Baccino Ponce de León, foi
escrito no fim do período ditatorial no Uruguai, que perdurou de 1973 a 1984. Ganhador do
Prêmio Casa de las Américas de 1989 e publicado pela primeira vez em 1990, o romance, de
certa forma, devolveu ao autor a possibilidade de expressar-se, uma vez que ele “había sido
silenciado por la dictadura”1.
Em linhas muito gerais, o romance narra a primeira viagem de circunavegação,
realizada por Fernão de Magalhães no século XVI. Em Maluco2 quem conta o evento é o
bufão da tropa, Juanillo Ponce de León, em uma longa carta datada de décadas após a viagem
ao ex-monarca Carlos V. Seu o objetivo de provar sua participação na expedição, para que
este interceda junto a seu filho e atual rei, Felipe II, para restituir-lhe a pensão, que lhe fora
suspensa.
De acordo com Malva Filer, na introdução de sua edição para Maluco,
la expedición de Hernando de Magallanes a las islas Molucas, como eje temático, y la España de Carlos V que le sirve de trasfondo, se transforman en un texto imaginativo, rebelde y anticonvencional que trasmite, con deliberado anacronismo, la perspectiva del autor. (FILER, 2006, p. vii, grifo nosso)
Pensando no que propõe Malva Filer a respeito da utilização de uma temática histórica
para transmitir certa perspectiva do autor, deve-se levar em conta o contexto em que foi
escrito o romance. Assim, não consideraremos Maluco somente em seu nível literal da trama,
pois existe algo que se costura a partir da construção narrativa do romance que localiza-se
além dos fatos contados.
Esta pesquisa se propõe a analisar alguns aspectos do que se pode interpretar e
entender a partir do jogo de duplicidade existente entre o plano da escrita do romance pelo
autor, e o plano dos fatos narrados na obra pelo bufão. Relacionando estes dois âmbitos, e 1 Palavras do próprio Baccino, em entrevista citada por Cynthia Vich, “El diálogo intertextual en Maluco”, in: 2 Utilizaremos ao longo de todo o texto apenas Maluco como notação para o título do romance em questão.
14
partindo do romance em si, aprofundaremos o entendimento da amplitude desta obra. Assim
sendo, os discursos de Napoleón Baccino Ponce de León e Juanillo serão analisados no
sentido de entender a relação existente entre ambos como uma espécie de correspondência
ficcional, conforme a possibilidade resultante do tempo vivido pelo autor. Pensar em quem
escreve, será nesta análise um ponto crucial: tanto o autor escrevendo seu primeiro romance,
quanto o narrador escrevendo sua carta, são considerados como vozes constituintes da
realidade do relato, sendo essa ambiguidade o eixo deste romance (TACCA, 1973, p. 69).
Já no primeiro capítulo de Maluco, quando antes de mais nada o narrador revela-se no
que concerne à trama literal, percebe-se a relevância desta autoria. Introduzindo o texto, o
narrador se apresenta expondo o motivo pelo qual decide contar a sua versão da história
(tantos anos depois) em formato de carta, ao ex-monarca espanhol Carlos V. Sem muitos
rodeios, nas primeiras páginas, permeadas da linguagem das cartas de serviço e das crônicas
oficias, as principais chaves de leitura deste romance oferecem-se ao leitor.
A ironia e o diálogo com importantes obras literárias aparecem já nas primeiras linhas,
entremeadas por fatos históricos e certo rigor formal característico de crônicas de navegação.
Para um leitor experiente, desde o princípio esclarece-se que o texto que vem pela frente nada
mais é que ficção. Apesar da trama aparentemente (re)contar um fato histórico, desde o título
há uma advertência: trata-se de um romance (“la novela de los descubridores”), e não de um
texto histórico. Nas palavras de Baccino3, “apesar de seguir a história de perto, Maluco é mera
ficção.”4 Porém, aproveitando-se das tendências contemporâneas tanto da disciplina da
história, quanto da ficção, Baccino constrói seu discurso de tal forma, que muitas vezes pode-
se pensar ao longo da leitura que realmente muito daquilo aconteceu.
3 Usaremos comumente daqui em diante o sobrenome Baccino para nos referirmos ao autor. 4 Palavras de Baccino na entrevista de Marie-Lise Gazarian-Gautier. “A Coastal Sailor in Search of Freedom”.World and I archive. Book World. 1994, p. 302. Disponível em <http://www.worldandi.com>. Tradução nossa.
15
Um aspecto muito marcado em Maluco é a referência a diversas obras literárias. Ainda
no primeiro parágrafo, Lazarrillo de Tormes é indiretamente citado, quando o narrador conta
sua origem e como foi chegar a integrar a expedição de Fernão de Magalhães. Juanillo, sob
determinado ponto de vista, reúne várias características picarescas. O objetivo da carta que
escreve a Carlos V é a obtenção de uma pensão, com a qual possa sobreviver. Possuir meios
para alimentar-se é um de seus problemas centrais, e ele faz referência a esta necessidade
diversas vezes ao longo do texto. Há estudos de Maluco que o consideram um romance
picaresco5. No entanto, apesar de reconhecermos que há um viés representativo deste gênero
no romance (e sobre alguns até falaremos brevemente adiante), este não será o foco da
presente análise, até mesmo porque muitas outras grandes obras atravessam em determinado
momento Maluco, como A Divina Comédia e Don Quijote, além de tantas crônicas e relatos
de viagens de descobrimento, para citar apenas alguns dos mais explícitos.
Este narrador, que logo no princípio se revela uma amálgama de significados, é um
bufão. Este fato não deve ser entendido como uma arbitrariedade. Neste caso, a figura do
bufão tem um rol bastante especial no interior da obra.
Juanillo Ponce apresenta-se como o bufão da frota de Magalhães na primeira viagem
de volta ao mundo. Apesar de sua estereotipada condição social – judeu convertido, filho de
uma prostituta de pai desconhecido, anão, pobre, feio, deformado como se pode conferir
abaixo –
Os juro Alteza que con ser mi madre judía y mi padre desconocido y yo algo enano y bastante contrahecho, y llevar en mis partes la seña del converso, y ser tenido por comunero a causa de mi señor don Juan, y no tener otro oficio que el de truhán y chocarrero, ni otra riqueza que vuestra generosidad (1992: 74)6
5 Ver FILER, Malva E., 1992. 6 Todas as citações de trechos de Maluco realizadas nesta dissertação aparecerão com uma notação do número da página onde se encontra o trecho entre parênteses e são referentes a seguinte edição: BACCINO PONCE DE LEÓN, Napoleón. Maluco. La novela de los descubridores. Barcelona: Seix Barral, 1992.
16
– Juanillo ocupa na frota um papel tão importante, que possibilita a sua aproximação às mais
altas esferas da hierarquia, durante e após a expedição. Esta importância deve-se ao seu
ofício: o bufão é uma figura que goza de direitos e privilégios especiais. Ele é um contador de
histórias, ou seja, um narrador nato; e é através de sua força narrativa que o bufão cria uma
maneira peculiar de exteriorizar as situações vividas pelos homens, podendo inclusive
denunciar a sociedade que o cerca. Sua narrativa é acessível, de forma que o conteúdo adquire
um tom paródico.
Mais uma vez e além do próprio título, ainda no princípio do texto o leitor é alertado
de que a narrativa que segue deve ser lida como ficção: sendo seu narrador um bufão, não se
pode levar a sério tudo o que ele fala. Como ele próprio diz a Carlos V, a respeito de
determinada conversa de Juanillo com o comandante Fernão de Magalhães: “No recuerdo
exactamente el orden de los parlamentos ni tengo ganas de inventártelo, como hice y haré
otras veces que sea menester” (1992: 105). Ou seja, o leitor (do romance, assim como o
destinatário primeiro Carlos V quem lê a carta enviada pelo bufão) é informado de que sua
narração é uma mistura de fatos que supostamente teriam acontecido, com outros puramente
inventados sempre e quando ele tenha querido fazê-lo.
É preciso que fique claro, portanto, que não se pretende com esta análise fazer uma
verificação dos fatos históricos, e nem tampouco contrastar este relato com outros, acatados
pela história oficial como verdadeiros. Alguns destes relatos, como o de Pedro Martyr de
Anglería e de Francesco Antonio Pigaffeta, são duramente criticados ao longo do romance.
Não se pode, porém, afirmar que a intenção de Baccino tenha sido a de reescrever a história
“oficial” como ela realmente aconteceu, e nem mesmo a de trazer à tona uma versão antes
silenciada deste fato histórico. Entende-se as críticas feitas ao discurso oficial em Maluco
através de Juanillo, como uma crítica ao discurso legitimado pelo poder, inclusive no
momento da escrita do romance, em relação à sociedade latino-americana em geral.
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Uma vez que se esclareça que Maluco é uma ficção, e será analisado como tal, é
interessante ressaltar que a tessitura narrativa constrói-se com base num terreno nada sólido,
numa suspensão. Nas palavras de Roberto Ferro,
a leitura fica instalada num entre. [...] O leitor navega entre a literatura e a história, entre o sentido que se configura no tramado interminável de citações e o sentido como correspondência de uma marca referencial direta no discurso, entre a loucura e a razão, entre a palavra do bufão e a escuta do rei; entre uns e outros, o jogo de espelhos da alusão posterga a segurança de atingir a verdade em última instância, o que não implica que o narrado seja definitivamente falso, errado, ilusório, ou tão somente imaginativo. (FERRO, 2010, p.303).
Ao ganhar o prêmio Casa de las Américas, o juri aclamou Maluco por seu
tratamiento de un tema universal resuelto con notable profesionalismo en el que destaca la estilización del lenguaje de las crónicas del descubrimiento, el agudo sentido de humor, el alto vuelo imaginativo, con los que logra trascender la recreación de una época para convertirse en un texto de hondasignificación contemporánea(HERNÁNDEZ, 2001, p. 3, grifos nossos)
Esta significação contemporânea através de um tema universal destacada assim que Maluco
foi publicado, pode ser considerada o principal entre do romance, que possibilita a análise
aqui tecida. O lugar do entre é o ponto de partida da narrativa e escrita de Maluco, no período
de transição entre ditadura e redemocratização. Neste entre, o intelectual busca entender seu
papel e lugar na sociedade que está atravessando mudanças severas.
Se na superfície o romance narra a primeira viagem de circunavegação, realizada por
Fernão de Magalhães no século XVI, por outro lado, há uma mudança significativa de foco
narrativo, uma vez que, como já foi dito, o narrador em Maluco é o suposto bufão da tropa.
Um importante questionamento diz respeito ao porquê do deslocamento do olhar da
narrativa, que passa a enfocar as experiências dos homens comuns no episódio da primeira
viagem de circunavegação, em detrimento da versão oficial. Esta pergunta, por sua vez, leva
ao pensamento de qual seria a relação deste episódio, narrado a partir da perspectiva de um
bufão, com o momento de construção de uma história recente de diferentes nações latino-
americanas que há pouco passaram por um período ditatorial. De que forma uma narrativa
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como Maluco permite pensar o campo intelectual, em especial do campo literário, em países
que, como o Uruguai, passaram pela traumática experiência de uma ditadura? Nesta
dimensão, é importante que se analise como esta narrativa remete a uma situação
contemporânea, de países em que, até muito recentemente, a historiografia se voltava de
forma mais efetiva para os fatos narrados sob o ponto de vista oficial.
Sem perder de vista que se trata de uma ficção, ao recontar a primeira viagem de
circunavegação no século XVI, Maluco propõe uma nova perspectiva de um fato histórico já
consagrado pela história oficial agora a partir de um narrador subalterno –porém privilegiado–
que vê os acontecimentos de “debajo de una mesa observando los pies de los comensales y
siguiendo su conversasión” (1992: 129). A narrativa é feita através de uma carta, objetivando
a legitimação de sua identidade, enquanto um participante ativo da expedição.
Pode-se dizer que a escolha de Baccino Ponce de León por este fato histórico, assim
como a do seu narrador, não é aleatória. Como um palimpsesto, o texto ficcional é tecido
sobre um fato histórico que, no entanto, mesmo em relação à história oficial, apresenta
controvérsias, o que abre uma brecha para novas versões (ainda que sem intenção de
autenticidade e verdade), aumentando ainda mais seu tom irônico. Esta brecha foi descrita
pelo autor em uma entrevista, na qual disse que
la libertad, para un escritor que cultiva el género histórico [...] está justamente en aquellas lacunas, en aquellos silencios de la historia, que uno puede llenar con verosimilitud, con seriedad, con rigor intelectual pero que le dejan el margen. (BACCINO apud GOBBI, 1998)
Este narrador-bufão pode ser pensado como construtor de uma versão da realidade e,
valendo-se de uma perspectiva distinta da oficial – e inclusive, opondo-se a ela – fundamenta
a projeção de novas vozes na literatura, particularmente se pensarmos no universo do novo
romance histórico latino-americano (MENTON, 1993).
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O deslocamento do foco da narrativa será a chave de leitura no desenvolver desta
dissertação, sendo o elemento que possibilita a transmissão da “perspectiva do autor” a
respeito da “profunda significação contemporânea” (de acordo aos supracitados Malva Filer e
crítica quando da vitória no Casa de las Américas respectivamente). Como mencionado
anteriormente, este narrador-bufão é o fio condutor que atravessará todo o texto,
possibilitando a análise aqui proposta e permitindo que se chegue às conclusões almejadas.
Este estudo se propõe a analisar o desdobramento que existe entre o narrador-bufão e
o escritor do romance, com base na pergunta quem escreve? Ambos narradores apresentam
uma série de características comuns que nos permitem pensar numa espécie de jogo de
espelhos, no qual a perspectiva do autor sobre o mundo objetivo contemporâneo em que vive
reflete-se no mundo criado imaginativa e alegoricamente no romance.
A estrutura deste estudo desenvolve-se em torno de três eixos principais: o tempo
histórico de Baccino; as tendências literárias e históricas contemporâneas à escrita de Maluco;
e a relação entre o narrador-bufão e o intelectual contemporâneo. Tendo a consciência de que
os três eixos citados estão intimamente relacionados, proporcionando através da tripla
articulação um mais profundo entendimento da obra, para fins metodológicos de análise,
separou-se cada um deles em um capítulo para que se pudesse aprofundar seu estudo.
No primeiro capítulo intitulado “Baccino e seu tempo”, o qual, dividido em duas
seções, abarcará o primeiro dos eixos acima mencionados, tratará do contexto histórico na
ocasião da escrita do romance. Primeiramente, na seção “A arte de perder”, faremos algumas
exposições sobre Baccino, com base em entrevistas dadas pelo autor e principalmente em sua
autobiografia El arte de perder. O principal objetivo é posicionar o autor em seu tempo e
espaço (fim do período ditatorial no Uruguai, na transição para a redemocratização) e
entender sua prática literária, através de algumas características de seu estilo.
20
Em seguida, na segunda parte do primeiro capítulo “Tempos de ditadura”, expõe-se
um panorama da ditadura cívico-militar no Uruguai. Apesar de esta não ser uma pesquisa na
área de História, entender os principais passos e manobras políticas deste período permite que
se entenda muito do que ocorreu também em outros setores sociais, como o cultural (e mais
especificamente, o literário). Neste ponto, as principais fontes de apoio foram: a obra La
dictadura Cívico-Militar: Uruguay 1973-1985 (Damasi, Marchesi, Markarian, Rico e Yaffé,
2009); o artigo de Julio Marenales (2005), intitulado Breve historia del Movimiento de
Liberación Nacional – Tupamaros; e a obra Breve historia de la dictadura (1973-1985), de
Gerardo Caetano e José Rilla (2005).
No capítulo seguinte, chamado “Maluco e as tendências contemporâneas”,
primeiramente traça-se um panorama das disciplinas da Literatura e da História, o qual
articulado com o contexto histórico explicitado no capítulo anterior, nos permite pensar mais
especificamente na representação em períodos ditatoriais.
Na primeira etapa deste capítulo, com o título de “Literatura e História”, traça-se um
quadro geral da evolução literária latino-americana dos anos 60 aos 80, principalmente sob a
luz das ideias de Jorge Ruffinelli (1995) em seu artigo Después de la ruptura: la ficción. Em
seguida, comentamos sobre a influência da disciplina da História na literatura, tendo por base
os ensaios trazidos por Peter Burke (1992) em A escrita da história. Ainda nesta seção, trata-
se de um terceiro tópico: estuda-se o romance histórico e sua vertente chamada de novo
romance histórico latino-americano. Para isto, nosso marco teórico teve como base: La novela
histórica (Georg Luckáks, 1977); La nueva novela histórica de la América Latina: 1979-1992
(Seymour Menton, 1993); La nueva novela histórica hispano-americana (Carlos Fuentes,
1972); e Historia e imaginación literaria (Noé Jitrik, 1995).
Na segunda etapa deste capítulo, “A representação do trauma em tempos de ditadura”,
defendemos que a forma mais produtiva de representação do conteúdo traumático em tempos
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de crise (como é o caso da ditadura) é a alegoria, tal qual a define Walter Benjamin em
Origem do drama trágico alemão (1996), sem perder de vista os conceitos freudianos de Luto
e Trauma (expostos em “Luto e Melancolia”). A este respeito, estamos de acordo com as
ideias expostas por Idelber Avelarem Alegorías de la derrota: la ficción postdictatorial y el
trabajo del duelo (2000), e na obra organizada por Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-
Silva, em Catástrofe e representação (2000).
No terceiro e último capítulo chamado “O intelectual e o bufão”, buscaremos
primeiramente analisar a figura do intelectual latino-americano contemporâneo, através de um
panorama intitulado “Baccino e os intelectuais de seu tempo”. Procuraremos traçar um
panorama das mudanças de papel e postura enfrentadas pela classe chamada ou considerada
intelectual (especialmente latino-americano), em relação a seu rol na sociedade. Devido à
vastidão do tema, usamos ampla fonte de pesquisa. As principais ideias aqui articuladas
partem de: Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação (Beatriz Sarlo,
2005); Os intelectuais (Jean-François Sirinelli, 1996); Os intelectuais e o poder (Norberto
Bobbio, 1997); Representaciones del intelectual (Edward Said, 1996); La ciudad letrada
(Ángel Rama, 1998). Destacaremos a relevância da Casa de las Américas, em Cuba, como um
forte articulador intelectual da época, principalmente devido ao fato de Baccino inserir-se
neste contexto. Para tanto, nos apoiamos na tese Intelectuais, política e literatura na América
Latina, de Adriane Vidal Costa (2009). Também ressaltaremos a importância da produção
literária dentro das cadeias ditatoriais, entrando mais especificamente no universo intelectual
uruguaio da época ditatorial com base na obra Trincheras de Papel, de Alfredo Alzugarat
(2007).
A seção “O narrador-bufão” expõe as especificidades do bufão, enquanto escolha para
narrador de Maluco, e temos a oportunidade de aprofundar e justificar nossa hipótese de que
este narrador é uma representação alegórica do próprio Baccino, intelectual de sua época,
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expressando seu conteúdo traumático, escrevendo para realizar seu trabalho de luto. Neste
apartado, caracterizamos o bufão propriamente dito, analisamos muitas passagens de Maluco
e de grande valia foram os trabalhos específicos sobre o nosso romance, especialmente: La
verdad es patrimonio de los locos (de Perla Elsa García Ramírez, 2003); Maluco: re-escritura
de los relatos de la expedición de Magallanes e La historia apócrifa en las novelas de la
postmodernidad rioplatense (Malva Filer, 1994-a e 1994-b respectivamente); Maluco. O
romance dos descobridores de Napoleón Baccino Ponce de León (Roberto Ferro, 2010); El
testimonio como elaboración del trauma en ‘Maluco: la novela de los descobridores’ (Paula
Chiara, 2006); e as entrevistas com o autor de Catarina Gobbi (1998) e Cynthia Vich (El
diálogo intertextual en Maluco, 1997).
Finalmente, a conclusão desta pesquisa será apresentada, como uma articulação dos
pontos centrais de cada um dos eixos de estudo propostos em cada um dos capítulos da
dissertação. A presente análise de Maluco: la novela de los descubridores considera que o
cotejamento entre história e literatura que se pode propor em um primeiro momento, como
uma releitura de um importante fato histórico, deve ir além da superfície da trama, buscando
uma representação alegórica mais profunda no deslocamento do narrador desta expedição
para um bufão. Acreditamos que este bufão seja a representação deste intelectual latino-
americano na pós-ditadura, momento no qual a alegoria ocupa um lugar privilegiado como
possibilidade ficcional.
23
2 CAPÍTULO 1: BACCINO E SEU TEMPO
2.1 A ARTE DE PERDER
Napoleón Baccino Ponce de León nasceu em Montevidéu em 1947. Antes dos trinta
anos, começou a ensinar literatura no Instituto de Profesores Artigas7. Publicou muitos
trabalhos sobre narradores uruguaios, em especial sobre Horacio Quiroga, autor que estudou a
fundo por mais de uma década. Durante os anos da ditadura no Uruguai (1973 a 1984),
abandonou a atividade docente e se mudou com a mulher e os três filhos pequenos para uma
aldeia de pescadores, onde se dedicou a outras funções alheias à sua vocação. No entanto, este
difícil tempo de isolamento e afastamento foram os anos nos quais Baccino escreveu Maluco,
o primeiro romance que publicaria e com o qual foi premiado diversas vezes, incluindo o
prestigioso Premio Casa de Las Américas de 1989, que acabou acarretando na publicação de
Maluco pela Seix Barral no ano seguinte.8 Sobre Maluco, Baccino afirmou que:
[e]ste livro foi escrito durante a ditadura uruguaia […]. Nós tínhamos uma forte tradição democrática. Tenho um mestrado em literatura, era professor, mas a ditadura não permitiu que eu ensinasse. Fui forçado a fazer outros tipos de trabalhos para viver. Trabalhei na indústria de comida congelada, trabalhei no campo, fiz tudo o que pude. Terminei meu romance em 1987. Levei pelo menos cinco anos para escrevê-lo; eu estava trabalhando em outras coisas ao mesmo tempo. (BACCINO apud GAZARIAN-GAUTIER, 1994. Tradução nossa)
Analisaremos alguns pontos de El arte de perder(BACCINO, 1995), outra obra do
autor, no sentido de buscarmos caracterizar Baccino como um intelectual de sua época, e mais
especificamente, como escritor de Maluco. El arte de perder é uma seleção de relatos cujas
7 O Instituto de Profesores Artigas foi criado em 1949 e teve seu funcionamento extremamente alterado durante o processo que acarretou no golpe militar. Teve suas atividades interrompidas pelo governo em 1977, voltando a funcionar plenamente somente após a ditadura. Ver artigo sobre a instituição disponível em <http://www.dfpd.edu.uy/ipa/institucional/historia_2.pdf>. 8A obra de Napoleón Baccino Ponce de León publicada, se resume em: Horacio Quiroga: Itinerarios (1979), Maluco. La novela de los descubridores (1990), Horacio Quiroga/Todos los cuentos/Edición crítica (1993), Un amor en Bankok (1997), El arte de perder (1995), Aarón de Anchorena/Una vida privilegiada (1999), Bolsa de valores. Montevideo 1867-2000/Una visión de la historia económica del Uruguay (2000), e El regreso de Martín Aquino (2003). Para maiores informações, consultar FILER, 2006, p. xxi.
24
primeiras versões foram publicadas no Suplemento Dominical do jornal El País entre 1992
(quando Baccino foi convidado a escrever a coluna dominical) e 1995 (quando da publicação
de El arte de perder). Baccino ressalta que
al trasladar a este otro soporte [do meio jornalístico ao livro] he introducido toda clase de modificaciones, – ni el lector memorioso reconocerá algunas de ellas –, a los efectos de adaptarlas a las reglas y códigos no escritos que rigen un libro y darle la cohesión y la unidad que me estaba vedada en principio. (BACCINO, 1995, p. 12)
Esta obra, que o próprio autor definiu como “una suerte de autobiografía apócrifa” ou
“novela familiar”, é “inevitablemente fragmentaria” e segundo Baccino, sua “propia
sensación de pérdida les confiere [aos relatos] su unidad” (BACCINO, 1995, p. 12). Os textos
agrupados tentam recuperar as origens de um passado marcado pela história familiar: desde as
memórias dos medos e fantasias que povoam a imaginação infantil e as lembranças de seu
pai, até narrativas do jovem escritor que – com sua mulher (bióloga marinha) e seus filhos
pequenos – vive cara a cara com o mar, em Punta del Diablo, uma pequena aldeia de
pescadores no litoral uruguaio.
O poema “One Art” de Elizabeth Bishop9 que abre El arte de perder anuncia, que para
Baccino, “dominar a arte de perder” é a maneira de não se deixar levar pelo “desastre”. Esta
concepção constitui-se em um ponto chave desta pesquisa, uma vez que, como veremos
adiante, interpretamos Maluco como uma representação de uma experiência traumática que
permite uma reflexão sobre a mesma.
Entendemos que para Baccino, perder relaciona-se com o enfrentamento de
dificuldades pessoais e com a consequente necessidade de tomar decisões para que estas
difíceis situações se viabilizem enquanto vivência.
9 A tradução para o espanhol apresentada no próprio livro para o poema é: No es difícil dominar el arte de perder; / tantas cosas parecen destinadas / a ser perdidas, que su pérdida no es un desastre. // Pierde algo cada día. Acepta el sofoco / de las llaves extraviadas, de la hora mal empleada. / No es difícil dominar el arte de perder. // Luego practica pérdidas mayores, más rápidas: / lugares y nombres, y el destino hacia el cual pretendías / viajar. Ninguna de ellas te llevará al desastre.
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Em El arte de perder, Baccino se pergunta: “con cuál de las dos máscaras representar
mi vida; ¿la máscara de la tragedia o la máscara de la comedia? Ante la imposibilidad real de
un balance, ¿qué hacer? ¿dar prioridad a las pérdidas o a las ganancias?” (BACCINO, 1995,
p. 10). Diante da dúvida, o autor prefere representar sua vida através da "perda", e justifica
sua escolha dizendo que “las pérdidas” guiam “la memoria por los laberintos del pasado” e
acrescenta que
[d]esde el nacer, que entraña una pérdida, pasando por el reino perdido de la infancia, los sueños que se tornan sutilmente quebradizos sobre nuestros huesos adolescentes, el amor, duro aprendizaje de la realidad, los hijos que se nos parecen, los trabajos y los días que se nos parecen, la vida que pudo haber sido y que no fue, la muerte de seres queridos, ‘las caídas hondas de los Cristos del alma’ o ‘las crepitaciones de algún pan que en la puerta del horno se nos quema’, al decir de Vallejo [...]Cómo lo dice el título, este libro trata sobre todas esas cosas que la vida nos va enseñando a perder. [...] Es sólo una lectura posible. Un lado de la moneda de hierro. La faz oscura de la luna. Una interpretación a la luz enceguecedora de las pérdidas. La necesidad animal de lamerse las heridas para que sanen. Un gesto de autocompasión [...] (BACCINO, 1995, p. 11)
Vemos Baccino referindo-se à representação das perdas como uma “necesidad animal
de lamerse las heridas para que sanen” e esta é a via pela qual fazemos a leitura de Maluco:
uma necessidade de assimilação para que as feridas causadas pelas perdas (neste caso,
trabalharemos com as causadas pelo contexto histórico da ditadura no Uruguai) se curem, ou
melhor, sejam assimiladas, para que possa seguir convivendo com as cicatrizes.
Se refletirmos sobre o que escreveu Baccino a respeito de dar prioridade a uma faceta,
nota-se a consciência no que concerne à pluralidade de representações da dimensão do real.
Baccino deixa claro no prólogo de El arte de perder que o ponto de vista escolhido para ser
registrado é apenas uma das possibilidades – “un lado de la moneda”, que não reflete a
totalidade do que foi vivido. Sobre isso, o autor confessa que em sua “tarea de reconstruir las
vivencias, revivir las emociones o evocar las sensaciones del pasado, los datos objetivos no
existen”, e cita Mario Vargas Llosa, em La verdad de las mentiras:
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Para casi todos los escritores, la memoria es el punto de partida de la fantasía, el trampolín que dispara la imaginación, en su vuelo impredecible hacia la ficción. Recuerdos e invenciones se mezclan […] de manera a menudo inextricable para el propio autor, quién, aunque pretenda lo contrario, sabe que la recuperación del tiempo perdido que puede llevar a cabo la literatura es siempre un simulacro, una ficción en la que lo recordado se disuelva en lo soñado y viceversa. La fidelidad a los hechos de la propia historia personal, es por lo tanto, relativa; es decir, inevitablemente subjetiva. Un hecho en sí mismo no es nada; sólo existen las distintas versiones que sobre ese hecho tenemos. […] La verdad no existe, sólo existen verdades. Por eso la literatura es el reino por excelencia de la ambigüedad. Sus verdades son siempre subjetivas, verdades a medias, relativas, verdades literarias, que con frecuencia constituyen inexactitudes flagrantes o mentiras históricas. (VARGAS LLOSA apud BACCINO, 1995, p. 10)
E agrega ainda três versos de Antonio Machado, que dizem: “Se dicen muchas mentiras / por
falta de fantasía, / la verdad también se inventa.” (MACHADO apud BACCINO, 1995, p. 10)
Desta forma, Baccino traça as coordenadas de sua maneira de escrever, delineando um
possível estilo, que será fundamental para entender Maluco. Aparecem sinalizadas como
características da escrita de Baccino em Maluco, de forma a também situá-lo como intelectual
em sua época: a pluralidade de pontos de vista versus uma versão escolhida para a escrita, a
ambiguidade, a superação da perda, e em suas próprias palavras, o “humor”, a “parodia”, “la
mirada tierna, no nostálgica”, a memória como trampolim para a fantasia em direção à ficção,
finalizando com sua noção de que “la memoria es un acto de amor. Y la ficción también”.
(BACCINO, 1995, pp. 11-12)
Na parte IX de El arte de perder, intitulada “Los paraísos perdidos”, Baccino relata
sua experiência de auto-confinamento em Punta del Diablo, ressaltando a importância do mar
em sua vida e da impressão de estar vivendo em um barco, desertando do mundo real:
En ciertas noches de verano, cuando los insectos revoloteaban entorno a los faroles y no soplaba ni la más leve brisa, las olas mansas rompían tan cerca de nuestra ventana que teníamos la ilusión de estar a bordo de un gran barco que se alejaba para siempre de aquella costa hostil. […] Habíamos llegado a Punta del Diablo huyendo, de todo y de nada en especial, como se llega siempre, como llegan todos, porque Punta del Diablo es eso, un refugio para desertores.[…]Atrás, a nuestras espaldas quedaba el mundo real. Un país inhóspito, inseguro, difícil. Un régimen autoritario. Una vida sin mucho espacio para un aprendiz de escritor, una bióloga con vocación de naturalista y tres hijos pequeños, educados en ciertos valores que por entonces parecían haber desaparecido de la faz de la tierra.(BACCINO, 1995, pp. 236-237)
Ainda sobre o mar, em sua entrevista a Garzarian-Gautier, Baccino afirma:
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Eu fantasio sobre o mar. Sou um navegante da imaginação, um marinheiro da costa. Eu acho o mar fascinante: está em constante mudança. Eu aprendi a conhecê-lo com minha mulher ao meu lado. (BACCINO, apud GARZARIAN-GAUTIER, 1994. Tradução nossa)
A autoimagem de Baccino visto como um desertor refugiado, marinheiro em terra-
firme, tripulando uma casa-barco que se afasta da hostilidade do mundo real onde um regime
autoritário não deixa lugar para sua existência é fundamental na análise aqui proposta. No
período da ditadura uruguaia, Baccino não pôde deixar o país, pois “não tinha passaporte, e
como um intelectual seria muito suspeito [para conseguir um]” (BACCINO in GARZARIAN-
GAUTIER, 1994. Tradução nossa), portanto, optou por ir junto com sua família para a aldeia
de pescadores, numa espécie de insílio, onde se isolariam da dura realidade vivida em
Montevidéu.
Em relação a esta posição suspeita mencionada por Baccino enquanto intelectual,
Jorge Castañeda afirma que os intelectuais ocuparam por muito tempo um papel de destaque
no campo social e político latino-americano. Através de seus escritos e outras atividades,
substituíram muitas instituições e atores sociais, desempenhando papel fundamental em
reformas, oposição a golpes militares e ditaduras, na educação e nos meios de comunicação.
Para Castañeda, a explicação para esta substituição recorrente é que as sociedades latino-
americanas
evoluíram sem que se desenvolvessem muitos dos seus setores fortes da sociedade civil que, em outros países, surgiram junto com as instituições representativas, pelo menos formalmente. Em parte, isto ocorreu porque, em quase todo o continente, o Estado surgiu antes que as nações estivessem de fato constituídas como tal, e uma vez criada a nação, o Estado acabou tornando-se demasiado poderoso em relação à sociedade civil. Embora o Estado [...] não fosse particularmente forte em termos absolutos, em termos relativos ele sobrepujava a sociedade civil. (CASTAÑEDA, 1994, p. 157)
Assim, na América Latina o papel dos intelectuais ganhou importância na enorme brecha que
então havia entre o Estado e a sociedade civil, entre estados tradicionalmente fortes e
sociedades civis cronicamente fracas, e Castañeda cita Carlos Fuentes:
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Num continente como a América Latina, com países caracterizados por uma sociedade civil frágil, o intelectual acaba sendo alvo de responsabilidade exageradas que o transformam em tribuno, em membro do Parlamento, em dirigente sindical, em jornalista, em redentor de sua sociedade, devido à inexistência das funções que deveriam ser cumpridas pela sociedade civil. À medida que esta se fortalece, o papel do intelectual diminui. Mas, por enquanto, o intelectual é importante porque representa a outra elite. A América Latina foi um continente governado por elites, por uma elite do poder e por uma elite da crítica, com uma espécie de diálogo entre as duas. (FUENTES apud CASTAÑEDA, 1994, p. 158)
Este diálogo entre a elite do poder e a elite da crítica dá-se em um contexto histórico
específico, o qual deve ser entendido, para que se possa compreender então o papel (ou
papéis) cumprido por este grupo ao qual Carlos Fuentes chamou de “outra elite”. Assim,
considerando-se a importância do contexto histórico em relação ao autor e à obra, passaremos
a um panorama do contexto histórico aqui em questão: a ditadura cívico-militar no Uruguai.
2.2 TEMPOS DE DITADURA
De acordo com Alvaro Rico em “Sobre el autoritarismo y el golpe de Estado. La
dictadura y el dictador”,
[e]l proceso de imposición de relaciones autoritarias de poder en el Uruguay es uno de los rasgos salientes de la crisis institucional por la que transitó el país en años 60 y principios de los 70, que finalmente desembocó en el golpe de Estado y la dictadura. Por eso mismo, las causas o el origen de la dictadura no pueden ser explicados “al margen” o en “forma paralela” al mismo proceso de crisis que recorre las institucuines democráticas y el Estado de derecho en la época, máxime cuando esas instituciones no pudieron absorver su crisis interna conservando el marco constitucional y legal vigentes, sino todo lo contrario. (RICO, 2009, p. 181)
Portanto, para entendermos a viabilização da implantação de um regime ditatorial no Uruguai,
voltemos às origens da crise institucional.
O Uruguai tornou-se independente do Brasil e da Argentina em 1828. Durante o
processo de independência, caudilhos do interior lutam sangrentamente contra os liberais
urbanos pelo controle político do novo país. Após estas guerras, na segunda metade do século
29
XIX constituem-se seus partidos tradicionais –Blanco e Colorado – os quais se fortalecem nos
anos que se seguem. Esta polarização entre Blancos e Colorados, marcou intensamente tanto
a sociedade quanto a política uruguaias ao longo de sua história, até a década de 60, quando a
população começou a sofrer uma opressão generalizada e teve suas liberdades restringidas.
Os governos de José Batlle y Ordoñez (1903-1907 e 1911-1915) lançaram as bases
para o estabelecimento de um regime democrático e conseguinte estabilidade política.
Durante seus dois mandatos José Batlle y Ordóñez transformou o Uruguai em um país no qual
a economia e a sociedade se expandiam, mesmo diante do grande contraste entre as
sociedades rural e urbana. Com uma emenda à constituição garantindo maior poder ao
executivo, José Batlle estabeleceu a democracia no Uruguai através de um programa de bem-
estar social e de industrialização. Entre suas medidas, destacam-se uma maior preocupação
com a crescente população de Montevidéu, a aprovação de leis para separar o Estado e a
Igreja, a legalização do divórcio, o estabelecimento do seguro-desemprego e a suspensão do
ensino religioso das escolas públicas. Outra faceta de sua herança é o estabelecimento de
muitas entidades autônomas. Batlle acreditava que os principais serviços públicos deveriam
estar nas mãos do Estado para aumentar o investimento de capital e evitar o desequilíbrio nas
divisas que poderia criar debilidades nas contas públicas.
Há vários fatores históricos que colocam o Uruguai na direção de uma ditadura. Os
fracassos da economia aumentaram depois da guerra da Coréia e acabaram por acarretar na
eleição dos Blancos. Estes passaram a fomentar a agricultura e a exportação, tornando a
economia uruguaia cada vez mais dependente, a qual continuava a enfrentar problemas.
Jorge Pacheco Areco foi eleito em 1968, deixando uma mancha indelével na história
democrática do Uruguai. Havia censura contínua no campo das artes, dos meios de
comunicação, do jornal Ahora e da revista semanal Marcha, atingindo também o cinema, o
30
teatro, a atuação dos grupos musicais e a tradição do Carnaval. Pouco a pouco, o governo
estava tomando o controle dos aspectos políticos, sociais e culturais no país.
Este processo de deterioração política, social e econômica na década de 60 acarretou
num notável aumento de conflitos, o que inclui a luta armada através da guerra de guerrilhas
protagonizada por grupos extremistas, entre os quais se destacou o Movimiento de Liberación
Nacional-Tupamaros (MLN-T). Também contribuíram para o aumento das tensões e da
fragilidade institucional outras organizações como a Convención Nacional de Trabajadores
(CNT) e grupos de extrema direita, como o Escuadrón de la Muerte e a Juventud Uruguaya de
Pie. As Forças Armadas foram assumindo um crescente protagonismo político até que, com o
apoio do então presidente constitucional Juan María Bordaberry, optou-se por um golpe de
Estado.
Segundo Julio Marenales10, havia vários motivos para que o Uruguai fosse
considerado como a “Suíça da América”. Era um país com menos de 3 milhões de habitantes,
com baixa densidade demográfica (dezesseis por quilômetro quadrado), com a maioria da
população formada por descendentes de imigrantes europeus. Este fato proporcionou uma
grande importância aos elementos culturais europeizantes, o que acarretou uma grande
diferença em relação a boa parte do restante da América Latina com grandes influências afro-
indígenas, já que no Uruguai a população indígena foi praticamente exterminada no século
XIX.
A economia do Uruguai tinha suas bases no campo. Naquele momento, não havia
indícios de minérios em quantidades exploráveis, nem de petróleo. Portanto, a única fonte de
riqueza estava relacionada à terra, sendo que a principal atividade econômica era a criação
extensiva de gado em pastos naturais. Desde os tempos coloniais até aproximadamente 1930,
10 Julio Marenales foi um dos fundadores do Movimiento de Liberación Nacional – Tupamaros, juntamente com Raúl Sendic. As ideias de Marenales aqui expostas estão em seu artigo “Breve historia del Movimiento de Liberación Nacional – Tupamaros”, disponível em <http://www.archivochile.com/America_latina/JCR/MLN_T/tupa_sobre/tupasobre0002.pdf>.
31
o gado desenvolveu-se de maneira sustentável. Mas a partir daí estagnou-se de tal forma que
só seria possível sair de tal situação se houvesse uma mudança profunda na maneira de fazê-
lo. Houve então, uma drástica redução da entrada de capital no país, o que trouxe graves
consequências a longo prazo, as quais no entanto, não foram notadas de imediato por conta da
Segunda Guerra Mundial que, por um lado permitiu que toda a carne produzida no país fosse
vendida, e por outro, reduziu drasticamente todos os tipos de importações, devido ao fato de
que as grandes potências voltaram toda sua capacidade produtiva ao esforço da guerra. Assim,
ocorreu uma espécie de economia forçada. Isto acarretou também no desenvolvimento de sua
indústria (para suprir as necessidades que antes eram resolvidas a partir das importações), o
que gerou muitos empregos e acabou por dinamizar o mercado interno.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os efeitos de certa forma benéficos para o
Uruguai escassearam, e deu-se início a um processo inflacionário que passou a afetar
seriamente o poder aquisitivo da população. A classe operária que havia crescido e se
fortalecido bastante com o relativo desenvolvimento industrial, passou a resistir às medidas
restritivas salariais, defendendo o poder de compra dos salários conseguido em anos de luta.
Paralelamente, a classe operária também briga por uma organização e por pisos salariais
dignos. As classes dirigentes do país acusam os trabalhadores organizados de serem os
responsáveis pela inflação, pelos contínuos aumentos salariais que exigiam. Inicia-se aí uma
escalada repressiva contra os grupos de trabalhadores organizados.
Dentro deste marco econômico e social, no começo da década de 60 organizaram-se
os trabalhadores da cana-de-açúcar do norte do país, que trabalhavam e viviam em condições
sub-humanas. Eles organizaram marchas percorrendo todo o país, cruzando povoados e
cidades do interior para denunciar sua situação. Primeiramente, estes trabalhadores pediam o
cumprimento das leis que já existiam regulamentando a atividade dos trabalhadores rurais,
que apesar de não serem totalmente favoráveis, eram bastante ignoradas. Depois, pediram a
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desapropriação de um latifúndio improdutivo, para que pudessem trabalhar. Foram quatro
marchas em direção à capital Montevidéu, às quais receberam o apoio de muita gente:
militantes provenientes tanto dos partidos de esquerda quanto dos sindicatos, juntamente com
militantes independentes resolveram apoiar fortemente os trabalhadores da cana-de-açúcar.
Neste processo de trabalho solidário, uma série de constatações vieram à tona, entre elas a de
que o governo, diante das demandas de pessoal que queria trabalhar, respondia com dura
repressão, inclusive violando a lei (a qual o próprio governo deveria ser o primeiro a
respeitar). Por outro lado, esta repressão aos trabalhadores era generalizada: começaram a
organizar-se grupos nazifascistas, foram realizados atentados às sedes dos partidos políticos
de esquerda, assim como a pessoas relacionadas a estes partidos e aos trabalhadores; a
Universidad de la República foi atacada por grupos fascistas com a cumplicidade do chefe da
Polícia de Montevidéu. Dentro deste contexto, no ambiente político cogitava-se a
possibilidade de um golpe militar, a tal ponto que a CNT (Convención Nacional de
Trabajadores, única central sindical) aprovava um plano de resistência ao golpe de Estado em
1964.
O apoio militante ao movimento dos trabalhadores da cana-de-açúcar se agrupou em
um movimento que se chamou Coordinador, que precisamente coordenava a ação das
distintas pessoas que estavam realizando o trabalho solidário. Diante do clima de violência, e
reiteradas violações da legislação por parte dos grupos fascistas com apoio da própria polícia,
os militantes do Coordinador decidiram atuar, admitindo inclusive desrespeitar as leis e usar
da violência, caso fosse necessário. Tentou-se atribuir a Raúl Sendic (acessor letrado do
sindicato dos trabalhadores da cana) a responsabilidade pela morte de um trabalhador durante
um confronto armado com a polícia, obrigando-o a passar à clandestinidade. Depois de passar
por um período de sérias discussões e reestruturação interna, o Coordinador resultou no
Movimiento de Liberación Nacional – Tupamaros (MLN-T), em 1966.
33
Com a morte do General Gestido, novo presidente eleito em 1967, assumiu seu vice-
presidente Pacheco Areco, quem atuou duramente. Governou com medidas permanentes de
“Pronta Seguridad”, ou seja, estado de sítio. Segundo Julio Marenales, “fue una dictadura
disfrazada. Tuvo la habilidad de no disolver el Parlamento, pero lo desconoció por completo y
gobernó por decreto.” (MARENALES, 1997, p. 5)
O crescimento acelerado do MNL-T não permitiu a formação adequada dos militantes
clandestinos e começaram a surgir os CAT (Comités de Apoyo a los Tupamaros), dos quais
apenas alguns tinham contato com a Organização, sendo que a maioria atuava
autonomamente, integrando-se intuitivamente às diretrizes estratégicas do MLN.
A ação clandestina em território dominado pelo inimigo foi muito cara aos
Tupamaros, não somente em termos financeiros, mas também houve muita perda humana e
material. Diante da necessidade de resgatar das cadeias a experiência acumulada dos
militantes presos, a direção optou por organizar fugas de prisioneiros. Houve fugas em março
de 1970, em julho e setembro de 1971. As fugas, de certo modo, resgataram uma organização
clandestina dos integrantes, dos quais a maioria não estava na clandestinidade, apesar de
fazerem parte da Organização ilegal.
Diante da intensa atividade da Organização, o governo com o apoio do Parlamento,
decretou Estado de Guerra Civil. Além disso, uniram-se as forças repressivas: o Exército, a
Marinha e a Força Aérea foram acionadas conjuntamente (recebendo a denominação de Las
Fuerzas Conjuntas), integrando-se com a polícia, de modo a ampliar fortemente o poder da
repressão. A tortura generalizada passou a ser um meio corriqueiro de obtenção de
informações, havendo graves violações dos direitos humanos. Graças a este mecanismo, a
repressão conseguiu informação suficiente para desarticular a MLN. Grande parte dos
integrantes e colaboradores foram presos, de forma que o conjunto perdeu sua capacidade
operativa. Em 1972, as Fuerzas Conjuntas prenderam os principais dirigentes Tupamaros:
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Raúl Sendic, Eleuterio Fernández Huidobro, Mauricio Rosencof, José Mujica, Adolfo
Wasem, Henry Engler, Jorge Zabalza e o próprio Julio Marenales, os quais permaneceram na
cadeia desde este momento até o fim da ditadura. Eles foram recluídos praticamente
incomunicáveis e sofreram torturas físicas e psicológicas (como ficou posteriormente
comprovado). Com a maioria dos dirigentes presa ou morta, perdeu-se a capacidade de
regeneração, uma vez que logo após esta derrota instaurou-se a ditadura militar, que acabou
com o movimento popular, partidos políticos de esquerda e sindicatos. Mesmo os militantes
que conseguiram exilar-se, apesar de terem contribuído muito, não foram capazes de
reorganizar o MLN.
Segundo Geraldo Caetano e José Rilla em Breve historia de la dictadura, tem-se que
[h]acia comienzos de la década del 70, resultaba evidente que la evolución de la política gubernamental, así como el sostenimiento de una situación que presentaba serios desequilibrios, no podía sino tener el correlato político de la progresiva implantación del autoritarismo. Aun cuando la crisis económico-social antecedió en casi dos décadas a la quiebra final de las instituciones en 1973, ya a partir de 1968 podía perfilarse con nitidez la perspectiva dictatorial en el sistema político uruguayo. La trilogía de crisis económica, social y política se terminó de operar como corolario de un extenso período de deterioro en las condiciones generales del país. (CAETANO & RILLA, 2005, p. 19)
Nas eleições de novembro de 1971, assumiu um novo governo presidido por Juan
María Bordaberry, e o papel das Forças Armadas na vida política do Uruguai foi
intensificando-se.
Segundo Alvaro Rico (2009, p. 181), a adoção permanente por parte dos governos
eleitos de medidas de exceção para restabelecer a ordem é um exemplo que ilustra a crise
institucional mencionada. As medidas de exceção estavam previstas na Constituição e,
portanto, sua adoção constituiu um procedimento legal das autoridades legítimas. Porém, sua
aplicação sistemática foi de fato alterando a divisão de poderes no interior do Estado,
debilitando a eficácia dos controles sobre a legalidade da administração e, sobretudo,
legitimando a institucionalização da repressão em larga escala, independentemente da
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realização das eleições nacionais em 1971, e antes mesmo do golpe de Estado. Inclusive, por
conta disto, Alvaro Rico acredita que o golpe pode ser considerado como um momento dentro
do contínuo institucional Estado de direito - Estado ditadura, não representando integralmente
uma quebra da legalidade precedente.
Em 12 de fevereiro, Bordaberry reuniu-se com os militares e aceitou todas as
exigências de seus líderes, fazendo com eles um pacto de continuidade ao seu governo na
presidência. O Pacto de Boisso Lanza, como ficou conhecido, dava às Forças Armadas “la
misión de brindar seguridad al desarrollo nacional” e estabelecia a participação dos militares
na atividade político-administrativa. O Consejo de Seguridad Nacional (COSENA) foi fruto
deste acordo, constituindo-se no órgão acessor do Poder Executivo, criado posteriormente, em
23 de fevereiro de 1973. No dia seguinte, novos Ministros do Interior e da Defesa foram
designados, e com isto se completou o deslocamento em direção a um governo cívico-militar,
no qual formalmente governavam os civis, enquanto que o centro do poder havia se
transferido ao âmbito militar.
A respeito dos meses que antecederam o golpe, Caetano & Rilla (2005) afirmam que
[l]os meses que separan febrero y junio de 1973 no hicieron más que confirmar los pronósticos agoreros sobre la inminencia de la caída final de las instituciones. El sistema político todo presenció impotente un descaecimiento de sus más elementales normas de funcionamiento democrático. El intervencionismo de las FF.AA. en múltiples escenarios políticos se volvió cada vez más desembozado y prepotente, contando para ello con la defección de Bordaberry, pero también con el reconocimiento y aun la aceptación formales de otras fuerzas políticas y sociales. (CAETANO & RILLA, 2005, p. 21)
Dentro do exército era perceptível uma “derechización” dos comandantes e também
no governo acontecia uma progressão militarista em suas ações. A justiça militar mostrava-se
cada vez mais ativa, e as Forças Armadas replicaram praticamente todas as declarações
políticas feitas na ocasião.
O panorama político encontrava-se dividido, confuso e dilacerado. A maioria dos
partidos declarava que estava prevenida diante da possibilidade de um golpe militar, mas suas
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atitudes demonstravam que não sabiam como proceder neste caso, de forma que não houve
efetivamente uma iniciativa no sentido da unificação para enfrentar a crise institucional.
A tensão política e social aumentava vertiginosamente, com o aumento rápido de
denúncias de torturas e procedimentos ilegais por parte de integrantes das Forças Armadas,
com o fechamento temporário de meios de comunicação de imprensa nacional e com a
retirada de circulação de edições de jornais argentinos.
Alvaro Rico assinala uma particularidade do caso uruguaio: o golpe de Estado foi
dado pelo próprio presidente constitucional (um civil, diga-se de passagem), que passou a ser
o ditador. No princípio poderia afirmar-se que no caso uruguaio não se tratou de um típico
golpe militar que deslocou a autoridade civil para usurpar o governo, como aconteceu nos
demais países da região (Brasil, Argentina, Chile). Não obstante, no plano mais conceitual, a
participação das Forças Armadas no golpe e na ditadura torna mais complexa a caracterização
do processo autoritário no Uruguai, sobretudo no que concerne aos alcances do fenômeno da
personificação do poder na figura única de um ditador, um traço inerente à instituição
ditatorial.
Em 27 de junho de 1973, o presidente Juan María Bordaberry dissolve o Parlamento
por decreto e cria em seu lugar um Consejo de Estado, com funções legislativas,
administrativas e com a missão de planejar uma reforma constitucional que reafirmasse os
princípios republicano-democráticos. A liberdade de pensamento foi restringida e às Forças
Armadas e Policiais foi assegurada a prestação ininterrupta de serviços públicos. No decreto
presidencial de Bordaberry, constavam
as seguintes justificativas para o golpe de estado:
la realidad político-institucional del país demuestra un paulatino, aunque cierto y grave, desconocimiento de las normas constitucionales (…) [sendo] cierto que la acción delictiva de la conspiración contra la Patria, coaligada con la complacencia de grupos políticos sin sentido nacional se halla inserta en las propias instituciones para así presentarse encubierta como una actividad formalmente legal. (Decreto presidencial de Bordaberry, 1973)
37
E, estabelecia censura dos meios de comunicação, afirmando que estaria restrita
la divulgación por la prensa oral, escrita o televisada de todo tipo de información, comentario o grabación que, directa o indirectamente, mencione o se refiera a lo dispuesto por el decreto atribuyendo propósitos dictatoriales al Poder Ejecutivo o pueda perturbar la tranquilidad y el orden público.(Decreto presidencial de Bordaberry, 1973)
Três dias depois, ainda durante uma greve geral como resposta ao golpe de Estado, a
CNT foi dissolvida, seus postos foram fechados, seus bens foram confiscados e seus
dirigentes presos.
Ainda havia uma grande dificuldade em constituir-se uma frente de forças anti-
ditatoriais11. O fato político-partidário de maior importância na luta inicial contra a ditadura
foi o documento elaborado conjuntamente pelo Frente Amplio e Partido Nacional, de 5 de
julho de 1973, intitulado “Bases para la salida de la actual situación”, no qual se levantava
uma plataforma de seis pontos:
restablecimiento de libertades y derechos; restablecimiento de la actividad de los partidos y las asociaciones gremiales; recuperación de salarios y pasividades y contención de la carestía; compromiso en la promoción de un programa mínimo de transformaciones económicas y sociales; cese de Bordaberry y estabecimiento de un gobierno provisional; y, por último, instalación de una Asamblea Nacional Constituyente y Legislativa y convocatoria inmediata de elecciones. (CAETANO & RILLA, 2005, p. 25)
Nos meses seguintes ao golpe, uma série de medidas mostraram claramente qual seria
o cunho do regime instaurado. Interferiu-se violentamente nos partidos políticos, na educação,
na economia, na relação com os sindicatos, na forma de lidar com a oposição, nos meios de
comunicação, nas decisões políticas em si e até mesmo na política externa.
11No Partido Colorado, o grupo político Unión Nacional Reeleccionista, representado por Jorge Pacheco Areco, apoia Bordaberry. O setor de Unidad y Reforma Lista 15, era sabidamente contra o processo iniciado em 27 de junho, porém negava estar vinculado ao plano de resistência ditatorial do Frente Amplio. O Partido Nacional se dividia: parte apoiava Bordaberry e os movimentos Por la Patria e de Rocha, ratificavam seu repúdio pela ditadura e convergiam para as ações de resitência.
38
Os partidos políticos tiveram suas atividades imediatamente suspensas, passando para
a ilegalidade, sendo dissolvidos além dos partidos, outros movimentos políticos (Partido
Comunista, Partido Socialista, Unión Popular, Grupos de Acción Unificadora, Movimiento 26
de Marzo). Na educação, foram combinadas medidas extremamente repressivas com
tentativas falidas de obter o controle por outras vias menos brutais (suspensão dos recreios e
intervalos nas escolas, o fechamento do Instituto Normal e do Instituto de Profesores Artigas
– onde ensinava Baccino –e diversas destituições de cargos). Na economia, a execução do
Plan Nacional de Desarrollo 1973-1977 (formulado em 1972) foi postergada, iniciando-se de
certa forma, de acordo com Caetano & Rilla, a experiência neo-liberal uruguaia. A oposição
viu-se obrigada a atuar cada vez mais na clandestinidade e seus dirigentes foram quase todos
presos ou optaram pelo exílio. Progressivamente, as definições políticas adquiriram um cunho
mais autoritário, diminuindo a expectativa em relação a uma possível abertura. Em 9 de
dezembro, as eleições de 1976 foram suspensas e o Consejo de Estado foi oficialmente
instalado em 19 de dezembro, deixando transparecer o endurecimento da posição do novo
regime. Também na política externa as medidas tornaram-se mais duras, sendo o Uruguai um
dos primeiros países a reconhecer formalmente a junta militar chilena presidida por Pinochet.
Uma ofensiva publicitária evidenciava a preocupação do regime por melhorar sua imagem
pública: campanhas antipornográficas, lançamento da chamada “Operación Aseo” que proibia
qualquer inscrição em muros e paredes, publicação na imprensa de propaganda pró-
governamental (com os dizeres “Ahora es diferente” e “Póngale el hombro al Uruguay”).
Durante 1974, o endurecimento do regime consolidou-se e a participação das Forças
Armadas intensificou-se. Além disso, começaram a ser postos em prática outros mecanismos
de controle autoritário sobre a sociedade civil.
Diante de uma movimentação no sentido da discussão sobre o tema da reforma
constitucional que estava prevista para novembro de 1976, e em especial, sobre o destino dos
39
partidos políticos dentro deste novo marco a se criado, Bordaberry sentenciou: “Estamos en el
tiempo de la Nación y no en el de los partidos políticos [...]Por eso todos los que invocan el
plazo constitucional de noviembre de 1976, soñando con volver a la caza de los votos, […]
que hoy, esta noche, pierdan toda esperanza.”(BORDABERRY apud CAETANO & RILLA,
2005, p. 31)
Em 1975, as práticas repressivas do governo endureceram em relação aos anos
anteriores. Houve um absoluto desmantelamento do Partido Comunista, seguido de uma
violenta campanha anticomunista que alcançou todas as esferas da sociedade. A ofensiva
propagandística se intensificou com a criação da Dirección Nacional de Relaciones Públicas
(DINARP) com o objetivo de ser o “organismo coordinador y rector de las relaciones públicas
del Estado” (BORDABERRY apud CAETANO & RILLA, 2005, p. 35), que nada mais era do
que um novo centro para o controle autoritário da sociedade civil.
Na periodização proposta por Luis Eduardo González12, o período que se estende de
1973 a 1976 é chamado de “dictadura comisarial”. Esta etapa caracteriza-se por uma carência
de projeto político próprio do regime, e por uma intenção de “colocar a casa em ordem” para
que se construísse posteriormente uma vida política mais “limpa”, mais ou menos
democrática. Pensando-se nesta divisão do tempo, 1976 foi um ano crucial. Seria um “ano
eleitoral”, o que por si só já forçava a definição de posições. A isto somava-se o avanço do
projeto bordaberrista, que inclusive foi adquirindo ressonâncias públicas. No plano 12Em relação à periodização da ditadura no Uruguai, o eixo orientador aqui será o mesmo adotado por Caetano & Rilla (2005), ou seja, aquele proposto pelo estudioso político uruguaio Luis Eduardo González, que acredita que os doze anos do regime autoritário reconheceriam três etapas claramente distinguíveis. São elas: “1) la etapa de la ‘dictadura comisarial’, que se extendería entre 1973 y 1976; 2) una segunda etapa que dicho autor denomina del ‘ensayo fundacional’, que se prolongaría hasta 1980; 3) y finalmente la última, denominada por la ‘transición democrática’ y que incluiría ‘formalmente’ – aunque no en muchos aspectos sustantivos – con la asunción de las autoridades legítimas en 1985. El registro de estas tres etapas sucesivas permite a nuestro juicio una aproximación valedera a lo que constituyó la trama y el itinerario fundamentales del régimen militar, al tiempo que también refiere a la evolución en las respuestas de la sociedad civil ante los desafíos supervivientes de los cambios de contexto. A su vez, cada una de esas tres etapas se identifican con ‘momentos’ y ‘proyectos’ especialmente significativos del período de la dictadura.” (CAETANO & RILLA, 2005, p. 13). Ver também Luis Eduardo González, “Transición y restauración democrática”. In: GILLESPIE, Charlie; GOODMAN, Louis; RIAL, Juan; WINN, Peter. Uruguay y la democracia. Tomo III. Montevidéu: The Wilson Center – Ediciones de la Banda Oriental, 1985.
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internacional, alguns acontecimentos repercutiam no sentido de respaldar projetos
“fundacionais” e de longo prazo. A própria evolução do regime obrigava a uma mudança,
pois em 1976 pouco restava para ser feito por uma “dictadura comisarial”, sendo necessário
que se fizesse uma escolha entre um enfoque mais ou menos centrado na abertura ou na
fundação de algo novo.
A abertura estava descartada pelo governo, pelas Forças Armadas, e até mesmo pela
oposição, que não podia abrigar esta expectativa. Se a questão era fundar algo novo, era
preciso saber o que fundar e justificá-lo, porém ficou evidente que não havia consenso entre o
presidente e os militares. A repressão, longe de perder intensidade, agravou-se novamente,
gerando nas palavras de Caetano & Rilla “una serie de episodios que además de su efecto
‘terrorista’ sobre la población, alimentaban también las tendencias ‘fundacionales’”. A
ditadura tinha entrado numa dinâmica de permanência, principalmente após os Atos
Institucionais 1 e 2, através dos quais se suspendia a convocação de eleições gerais até novo
pronunciamento, e se criava o Consejo de la Nación.
Esta mudança qualitativa do regime autoritário a partir de 1976abre a etapa seguinte,
de acordo com a periodização de González já mencionada, chamada de “ensayo fundacional”,
que se estende de 1976 a 1980, na qual se buscou estabelecer as bases da nova ordem política.
Diferentemente do que ocorreu em outros países latino-americanos, no caso uruguaio a
ditadura nunca chegou a configurar um verdadeiro projeto fundacional, e é por isso que
González empregou a palavra “ensayo” para definir esta fase.
O ponto-chave para os militares era superar este ano eleitoral de 1976 sem eleições e
com um plano político de médio prazo que apontasse para a fundação de uma nova ordem.
Sem partidos políticos, se reconhecia no entanto a necessidade de institucionalizar a nova
situação através da criação do Consejo de la Nación, o qual designaria o presidente da
República, o Consejo de Estado, a Suprema Corte de Justicia, o Tribunal de lo Contencioso
41
Administrativo e a Corte Electoral. O Consejo de Estado desempenharia a atividade
legislativa, e as Forças Armadas se ocupariam da segurança nacional e das pautas da futura
Constituição. A Asemblea Constituyente finalmente se integraria com o Consejo de la Nación
e o pleno Poder Ejecutivo.
Novos Atos Institucionais e mais fatos repressivos marcaram o novo ciclo ditatorial.
No plano das relações internacionais residiram as maiores dificuldades para a fundação desta
nova ordem. Os Estados Unidos suspenderam a ajuda militar ao Uruguai em setembro de
1976 e os laços com as ditaduras no Cone Sul se estreitaram, tornando ainda mais difícil as
relações internacionais. A versão oficial em relação à violação dos direitos humanos era: “El
Uruguay no tortura, no veja, no maltrata ni al más abyecto de los criminales” (MÉNDEZ apud
CAETANO & RILLA, 2005, p. 66).
Entre 1978 e novembro de 1980, o governo se mostrou decidido a legitimar sua
atuação mediante a convocatória dos cidadãos às urnas, processo que culminaria com o
plebiscito constitucional. O plano político de “prudente abertura” supunha alguma reativação
dos partidos tradicionais, uma vez que tivessem “limpado” seus quadros numa fase de ajuste
em seus aspectos estruturais.
Durante o ano de 1979, a Junta de Oficiales Generales deliberou intensamente sobre o
novo texto constitucional que deveria ser submetido à vontade da população. O governo
militar tolerou que o jornal El día usasse o aniversário de morte de José Batlle y Ordóñez para
transformar a lembrança em uma série de atos de claro conteúdo político e partidário.
O caminho do projeto constitucional esteve marcado durante 1980 por três fatos que,
segundo Caetano & Rilla, podem-se considerar decisivos: “un primer diálogo con algunos
políticos, una nueva misión del Departamento de Estado norteamericano y la aprobación final
del texto [da constituição] con algunas modificaciones de importancia respecto al
originalmente presentado.” (CAETANO & RILLA, 2005, p. 71)
42
O projeto militar de constituição mesclava raízes tradicionais por um lado e uma
doutrina de segurança nacional por outro. Em princípios de novembro de 1980, o rádio e a
televisão começaram uma campanha publicitária a favor do sim, enquanto um espaço muito
restrito foi aberto a uma oposição controlada. E dessa forma,
el país, y sobretodo Montevideo, pareció politizarseaceleradamente en los veinte días previos al plebiscito. La familia, la calle y el trabajo […] volvían a ser, fugaz y sigilosamente, el escenario de lo político. (CAETANO & RILLA, 2005, p. 74)
Os uruguaios compareceram massivamente às urnas. Mais de 85% dos eleitores votou, dos
quais 57,9% contra o projeto de reforma e 42% a favor.
A terceira e última etapa dos 12 anos de regime ditatorial no Uruguai foi chamada por
González de “transición democrática” e vai até 1985, ano a partir do qual autoridades
legítimas assumem o poder.
Entre dezembro de 1980 e julho de 1981, o governo processou um grande reajuste
interno e elaborou outro plano político, cujo primeiro passo para a abertura foi o
reconhecimento implícito de alguns dos motivos para o fracasso militar. Na verdade, este
plano propunha um processo que novamente apontava para o consenso da sociedade civil.
Porém, neste sentido, o governo buscaria a mediação dos partidos políticos. Daí em diante
[l]a marcha de los acontecimientos comenzó a depender, en buena medida, no sólo de las definiciones de los militares sino también del juego de tensiones entre éstos y la sociedad civil, rearticulada en torno a sus elites partidarias y sociales. De la mano del fracaso, quedaba demostrado para los militares uruguayos que no era posible tarea política alguna sin la mediación civil encarnada en los partidos políticos. En este marco, las proscripciones cada vez más parecían una pésima inversión. (CAETANO & RILLA, 2005, p. 94)
No fim de julho, o governo aprova o Ato Institucional 11, no qual se confirmava uma
transição de três anos, se definia um novo presidente e se ampliava as competências do
Consejo de Estado.
Em 1982 uma boa parte da oposição política foi legalizada e começa-se a discutir a
situação econômica e financeira. Nas urnas, em fins de 1982, os resultados foram ainda mais
43
adversos para os militares do que em 1980. As eleições partidárias repolitizaram intensamente
a sociedade uruguaia e tornaram o rumo da ditadura no país ainda mais complexo, uma vez
que a oposição política tinha ganho espaço para ser um interlocutor privilegiado e legítimo.
Os anos seguintes foram de conflito e negociação, emoldurados pela contradição básica que
surgira nas eleições internas de 1982: os partidos com representação mas sem espaço no
governo, e o governo, uma vez mais, sem a legitimidade da representação.
Na dialética de radicalização e confrontação entre partidos e militares, a mobilização
popular passou a ocupar um importante papel, principalmente em 1983, quando houve muitas
manifestações, o que marcou fortemente o rumo dos acontecimentos. Também neste ano se
consolidou a frustração das tentativas com sentido fundacional por parte do regime. Na
Argentina, a volta à democracia respaldou os esforços neste sentido no Uruguai.
Enquanto os militares seguem com seu projeto político, os partidos terminam de
idealizar os seus próprios planos. Colorados, Blancos e também a esquerda (que até então não
estava incluída no processo, que desempenhava um papel protagônico nas manifestações
populares) tinham ideias distintas a respeito da volta à democracia e organizavam-se cada um
a seu modo para a concretização de seus planos. A apreensão nos partidos habilitados
aumentava diante do crescente protagonismo dos movimentos sindicais e das organizações
sociais, imprimindo à dinâmica política rumo e ritmo imprevisíveis. A liberação em 3 de
março de 1984 de importantes figuras do Frente Amplio confirmavam sua volta à cena
política. Em agosto foi decretado o Ato Institucional 19 que previa um conjunto de normas
constitucionais transitórias, que seriam submetidas a plebiscito em 1985, uma vez que
ratificavam a convocatória eleitoral para 25 de novembro.
Saiu triunfante o Partido Colorado. Em 1º de março de 1985 o governo retornou aos
civis com a chegada ao poder de um presidente legitimamente eleito pela população, Julio
María Sanguinetti. Os presos políticos no Uruguai foram libertados. Em dezembro de 1983 foi
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decretada a “ley de la Caducidad de la Pretensión Punitiva de Estado”, que consagra a
impunidade dos delitos de violação dos direitos humanos e de terrorismo de Estado durante
toda a ditadura. A lei de caducidade foi à plebiscito em 1989 e depois em 2009, tendo saído
legitimada pelo voto popular nas duas circunstâncias.
Foi durante a última etapa da ditadura, os anos da “transición democrática”, nos quais
já era possível sonhar com uma mudança no que concerne à repressão sofrida ao longo da
última década, que Baccino, desertor refugiado desta dura realidade, escreveu Maluco.
Baccino disse em entrevista à Gazarian-Gautier (1994, p. 1): “eu quis que este livro fosse uma
ode à liberdade” (tradução nossa). Apesar de suas particularidades, Maluco segue as
tendências literárias de sua época, muito influenciadas pelo contexto histórico apresentado.
45
3 CAPÍTULO 2: MALUCO E AS TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS
3.1 LITERATURA E HISTÓRIA
Apesar do isolamento no qual Baccino encontrava-se durante o tempo em que
escreveu seu romance – “escrevi o livro inteiro de frente para uma parede, nem mesmo uma
janela, enclausurado em minha casa”, diz na entrevista a Gazarian Gautier (1994, tradução
nossa) – Maluco não foi uma obra isolada dentro de um panorama literário de sua época.
Muito pelo contrário, este é um romance que acompanha as tendências contemporâneas tanto
da literatura, quanto da disciplina da História.
a) O processo literário latino-americano dos anos 60 aos 80
É importante fazer uma retomada do que foi a literatura um pouco anterior à da época
da escrita de Maluco, pois as décadas de 60, 70 e 80 modificaram em grande medida a
produção da literatura latino-americana. Usaremos como guia para fazer este panorama o
artigo de Jorge Ruffinelli (1995), que afirma que nem a produção de romances, nem a
mudança na literatura hispano-americana se limitaram apenas a ser uma etapa na evolução de
um estilo, tampouco foram a expressão de uma geração literária. Segundo Ruffinelli, isto não
pode ser entendido como um problema especificamente estético e em consequência, não se
pode olhar para este processo sem destacar e reconhecer seu forte vínculo com a totalidade da
vida latino-americana. Por outro lado, é preciso dizer que a nova literatura e a nova
perspectiva tampouco foram fenômenos que refletiram as mudanças econômicas, sociais e
políticas do continente, as quais tiveram suas próprias maneiras de articular-se e manifestar-
se. É justo assinalar que as relações entre o particular literário e a totalidade chamada América
46
Latina são tão estreitas e mutuamente dependentes que seria um “esfuerzo estéril” tentar
explicar a mudança literária à margem das outras mudanças que a acompanharam (divergente
ou convergentemente) e que estabeleceram a complexa trama de sua relação cultural.
(RUFFINELLI, 1995, p. 369, passim)
Ruffinelli chama a atenção para a influência das tendências mais atuais do pós-
estruturalismo13, as quais confirmam-se em traços do chamado “novo romance”, cujas
características observadas são: a ambivalência diante do histórico e a substituição do mesmo
por um discurso sujeito à relatividade do ideológico; a recusa dos centralismos e da própria
noção de centro; o repúdio concomitante aos absolutos, com claras consequências ideológicas
sobre a ação política; o abandono da dimensão moral pela dimensão da eficácia, ou a
insistência no desencanto diante dos “grandes relatos” que explicam a vida na modernidade.
A introdução destes pressupostos teóricos de origem europeia (e vinculados às
sociedades pós-industriais) no pensamento latino-americano pode gerar controvérsias, porém
é indiscutível que influenciaram a literatura, a qual os incorporou nos processos de sua
modernização. Esta é uma época caracterizada pela “globalidade” da “aldeia”, quando o
próprio romance latino-americano busca sua “internacionalização” e sua universalidade para
converter-se em “contemporânea”.
A nova narrativa latino-americana tenta situar-se desde o começo no cruzamento dos
eixos de tempo e espaço, ao buscar sua dupla validação transcontinental ao mesmo tempo que
histórica. Mario Vargas Llosa considera que “la novela de creación” acaba por desembaraçar-
se da sua condição latino-americana. Afirma que Juan Carlos Onetti é
quizá, cronológicamente, el primer novelista de América Latina que en una serie de obras [...] crea un mundo riguroso y coherente, que importa por sí mismo y no por el material informativo que contiene, asequible a lectores de cualquier lugar y de cualquier lengua, porque los asuntos que expresa han adquirido, en virtud de un
13 Para Linda Hutcheon (Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991), vários escritores latino-americanos são exemplos da “poética” da pós-modernindade. Ela menciona Carpentier, Cortázar, Fuentes, Vargas Llosa, Puig e García Márquez.
47
lenguaje y una técnica funcionales, una dimensión universal. (VARGAS LLOSA apud RUFFINELLI, 1995, p. 371)
A partir de Onetti, Vargas Llosa percebe que “la novela deja de ser ‘latinoamericana’,
se liberta de esa servidumbre”. Esta conquista da dimensão universal traz emparelhada uma
contemporaneidade: o que é válido para todo mundo coloca a América Latina no mesmo nível
temporal que o mundo todo.
Estas definições de Vargas Llosa são importantes, não para concordar ou discordar
delas, mas porque mostram a aspiração e percepção de uma “nova” literatura, conceitualizada
com a agudeza polêmica de um grande escritor e porque estas ideias representam bem tanto o
projeto, quanto a nova percepção de literatura nos anos 60.
Esta atualização com a contemporaneidade é um dos esforços centrais do romance
latino-americano tal como este começou a perceber-se a si mesmo nos anos 60. A renovação
formal, de recursos estilísticos e estruturais –área na qual a apropriação, transformação e
invenção sobre a base dos variados modelos metropolitanos14– superou-se e converteu a
literatura latino-americana em pioneira da renovação do romance mundial. Além disso, a
atitude dos escritores unidos pelo reconhecimento do projeto modernizador fizeram de
Barcelona, Havana e México sedes culturais e mantiveram o espírito de grupo para além da
diversidade individual, vinculando-se em projetos diversos (e dentro de certa oscilação
ideológica), sentiram-se também vinculados por determinadas editoras (por exemplo, Seix
Barral na Espanha, Sudamericana em Buenos Aires), e pelas revistas que atendiam
criticamente seus novos livros, enquanto aproveitavam a tribuna a seu alcance para enfatizar a
unidade de sua literatura. Assim, então, esta prática literária não consistiu somente em
escrever romances, mas sim estabeleceu o recorte das fronteiras de seu projeto, incluindo
14Processo de transformação criativa que Ángel Rama chama de “transculturación”, tomando o termo da antropologia (Cf. RAMA, Angel. Transculturación narrativa en América Latina. Buenos Aires: El Andariego, 2007).
48
nesta atitude a valorização de seus pares15, o resgate e a incorporação de outros escritores
anteriores ou contemporâneos a eles, como José Lezama Lima, Felisberto Hernández, Roberto
Arlt e Macedônio Fernández.
Nos anos 60, Carlos Fuentes deu um sentido particular ao projeto literário e ao
conceito de modernização. Em La nueva novela latino-americana (1972), Fuentes mostra que
o papel histórico do romance é construir uma nova linguagem, uma nova mitologia. A
modernização está no âmbito dos recursos literários estilísticos e estruturais. No entanto, esta
modernidade nos meios expressivos entrava em conflito com a ideia de modernidade social,
pela excentricidade da cultura hispano-americana – “moderna” no pessoal, mas em profundo
conflito ideológico com os modelos norte-americanos dessa modernidade. Jorge Ruffinelli
opina que
La nueva novela hispano-americana es un excelente ejemplo de la percepción que hacia mediados y fines de los años sesenta se tenía de las relaciones atribuladas del escritor, en tanto agente cultural, con el mundo en que le tocaba vivir y al que se sentía llamado a transformar por medio de la palabra. (RUFFINELLI, 1995, p. 373)
Carlos Fuentes considerou em seu livro que “hasta muy poco tiempo” o escritor
hispano-americano oscilava entre duas irreconciliáveis “visiones en conflicto”: a “del artista
con aspiración universal” e a do “escritor nacional”. Para Fuentes, esta situação era a que a
“moderna novela hispano-americana” começou a superar. Porém, a modernidade na qual o
escritor se viu inserido era uma “modernidad enajenada”, e sua situação conflituosa passou a
ser o resultado de “una guerra entre el atraso feudal y la modernidad propuesta por los países
anglosajones y Francia” (FUENTES, 1972, pp. 23-28, passim). Esta modernidade
paradigmática anglossaxã e europeia não podia simplesmente transferir-se para a América
Latina. A realidade socio-econômica era radicalmente diferente. Por isso, quando pareceu
transferir-se, só gerou uma “fachada capitalista y urbana” debaixo da qual continuava
15Ver, por exemplo, Historia de un deicidio, o estudo de Vargas Llosa sobre García Márquez; ensaios de Carlos Fuentes sobre Octavio Paz; ensaios de Octavio Paz sobre Carlos Fuentes.
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pulsando uma realidade sem acesso à modernidade – cheia de pobreza e exploração.
Ironicamente, Fuentes afirma que “la modernidad había llegado a Latinoamérica” com as
novas classes médias nesta fachada que criou-se vivendo uma superficial aculturação
mediante os produtos da modernidade tecnológica (o cinema e a televisão). Fuentes coincide
com Vargas Llosa ao situar o início do novo romance como reação a uma modernidade
falsificada na obra de Juan Carlos Onetti, afirmando que uma literatura moderna e ao mesmo
tempo desencantada era a única resposta autêntica.
La modernidad había llegado a Latinoamérica. Y el escritor, si podía felicitarse de ganar con ello un número creciente de lectores, sólo admitiría con azoro que, expulsado de la élite y sumergido en la pequeña burguesía, confrontado con la proliferación de la masa urbana, su posibilidad de actuar inmediatamente sobre la realidad era menos fácil que en los tiempos bucólicos de civilización contra barbarie. Pero había algo más: esa “civilización”, lejos de procurar la felicidad o el sentimiento de identidad o el encuentro con valores comunes, era una nueva enajenación, una atomización más profunda, una soledad más grave. Nadie supo ver esto mejor o antes que el gran novelista uruguayo Juan Carlos Onetti, cuyas obras tristes, misteriosas, entrañables […] son las piedras de fundación de nuestra modernidad enajenada y el más fiel espejo de nuestros hombres “groseros o tímidos o urgentes”, para los cuales “el desinterés, la dicha sin causa, la acepción de la soledad” son como el conocimiento de “ciudades inalcanzables” (FUENTES, 1972, p. 28)
Aí aparece uma grande nostalgia em relação ao tempo perdido, traduzido em um
sentimento de que tanto o escritor latino-americano quanto a América Latina em sua
totalidade devem correr para alcançar a modernidade. “Habituados al desencuadre temporal, a
la acronía y a la anacronía permanentes, cuando la alcanzan al fin es cuando ya la modernidad
misma ha acabado en Europa.” (RUFFINELLI, 1995, p. 374) O escritor, segundo Fuentes,
não traz um pessimismo absoluto, mas sim uma mistura de afirmação de identidade com a
confiança na criatividade latino-americana. Simultaneamente com esta nostalgia, Fuentes
reivindica para o romance hispano-americano contemporâneo (que nestes anos ganhou a
denominação de “novo romance”) um papel de mostrar como se realiza “la ruptura de la
insularidad tradicional de nuestra novela” (FUENTES, 1972, p. 97), o que equivale a dizer
que se alcançou a modernidade na representação da realidade. Paralelamente, a respeito da
50
universalidade que também é alcançada, esta se dá através de uma irônica inversão
característica do que hoje claramente se define por “pós-modernidade”:
[e]l fin del regionalismo latino-americano coincide con el fin del universalismo europeo: todos somos centrales en la medida en que todos somos excéntricos. (FUENTES, 1972, p. 97)
Segundo Jorge Ruffinelli a visão de mundo fundada por Onetti e uma prática literária
como a dele inspiraram muitos escritores dos anos 60. Porém, não se pode atribuir somente a
Onetti o fenômeno do romance hispano-americano que ocorreu nesta década, cujas mudanças
se focam nos meios de produção, reprodução e distribuição da literatura. Pensando nos
motivos econômicos, sociais e culturais que fundaram estas mudanças, pode-se buscar uma
resposta para a pergunta crucial: o que tornou possível a eclosão do romance na década de 60?
Até os anos 60, os maiores e quase exclusivos centros de produção e irradiação
editorial eram Madri16, México e Buenos Aires (dos quais estes dois últimos foram
beneficiados com o deslocamento de exilados republicanos depois da queda da República
Espanhola em 1939).17
As grandes tiragens, a difusão em massa e a recepção pública do romance desde o
começo dos anos 60, mas especialmente desde a publicação de Cien años de soledad de
Gabriel García Márquez em 1967, exigiam uma infraestrutura básica e uma preparação
técnico-intelectual que estivesse a altura do novo desenvolvimento sem igual na América
Latina. Esta bipolaridade editorial España/América Latina e o fato de ter havido uma proteção
deste mercado por parte de decretos nacionais e com amparo de mecanismos internacionais
(como a UNESCO), tornaram possível que o livro encarnasse naturalmente um papel de 16 Madri foi no século XIX, e até começos do século XX, não apenas um importante centro editorial de obras literárias, mas também no que diz respeito à legitimização cultural, até que os modernistas diversificaram esta relação, dando maior importância a Paris e fundando o mito da “viagem a Paris” como um ritual de consagração literária. Para mais informações, ver: David Viñas, em Literatura argentina y realidad política (1964) e Karl Kohut em Escribir en París (1983). 17 Segundo Jorge Ruffinelli, os republicanos encontraram refúgio no México e sua participação foi fundamental no desenvolvimento de estudos de nível superior (El Colegio de México) e no mercado editorial, elevando-o a um alto nível universitário (Fondo de Cultura Económico). Já em Buenos Aires, fundaram e impulsionaram os estudos de filologia hispânica.
51
mercadoria não tradicional nem sujeita a complexos controles burocráticos, e pesadas
regulamentações e em consequência disso, encontrou certa fluência de intercâmbio para
responder à demanda internacional que começava a existir. Não apenas o intercâmbio, mas
também a nova demanda gerou o desenvolvimento do que então chamou-se “indústria
editorial”, a qual apresentava as seguintes características: era dependente da tecnologia
europeia, flexível diante das necessidades nacionais e demonstrou também ser desarticulável
quando depois do enorme aumento produtivo do anos 60 e parte dos 70, teve uma igualmente
drástica queda dos mercados nacionais com a crise editorial a partir de meados dos anos 70 e
durante os anos 80. Enquanto durou o “milagre editorial” criaram-se e ampliaram-se os
mercados nacionais, apareceram outros polos de produção além de México e Buenos Aires
(Caracas, Santiago, Montevidéu, Bogotá, Panamá, etc.) e pareceu que tanto o estigma de sub-
metrópole quanto seus correspondentes centralismos e autoritarismos culturais estavam se
superando. Esta possibilidade de uma verdadeira integração cultural latino-americana caiu por
terra quando deu-se o fracasso econômico.
Este fenômeno literário dos anos 60 e 70 não constitui-se apenas de escritores, mas
envolveu também um movimento de leitores. Ángel Rama (1982, p. 243) argumentou sobre a
importância de considerar este novo público. Tratava-se de leitores reais, que viram uma série
de expectativas alcançadas na nova narrativa, assim como de uma série de “demandas” que
começaram a se estabelecer sobre o que se estava escrevendo.
En términos sociológicos, Rama vio la aparición de este público como resultado o producto de “fuerzas transformadoras” de la sociedad: el aumento demográfico, el desarrollo urbano, la educación primaria y secundaria, la industrialización de la posguerra. (RUFFINELLI, 1995, p. 377)
Ainda segundo Ruffinelli, pensar nesta categoria de leitor através de dados
demográficos é importante porque comprova o fortalecimento objetivo dos paradigmas da
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cultura urbana e indica como se debilitaram e gradualmente desapareceram os paradigmas
rurais. Desde o início, a perspectiva de “modernização” implicou nesta hegemonia urbana:
no otra cosa fue desde el siglo XIX la acuñación ideológica de la oposición civilización/barbarie, los fundamentos (también ideológicos) de la inmigración fomentada (gobernar es poblar) y la confianza humanista […] en las virtudes de la educación como panacea de los males sociales. (RUFFINELLI, 1995, p. 378)
A dinâmica deste contexto mostra como o novo romance hispano-americano nutriu o
projeto da modernidade e como uma das razões de seu sucesso foi a adequada resposta à
demanda cultural que não se esgotava no romance como gênero. Jorge Ruffinelli afirma que
del mismo modo que la ruptura no consistió simplemente en una opción interna de la historia literaria, ella fue respuesta a cuestionamientos más profundos, que la excedían pero a los cuales aportó un espacio importante en la producción de mensajes simbólicos. La novelística a una misma vez interpretó y ayudó a dar forma al imaginario social, ayudó a conformarlo haciendo de sus textos el humus o el caldo de cultivo de los nuevos mitos. (RUFFINELLI, 1995, p. 378)
A sociedade hispano-americana foi por muito tempo “estancada, expoliada y
despreciada por las metrópolis. También descentrada o excéntrica, y por ende regional, no
universal” (RUFFINELI, 1995, p. 378). Neste sentido, a função da literatura chegou a ser de
denúncia social e política. Não foi à toa que nos anos 40 tanto o indigenismo quanto a
narrativa rural foram fortes expressões literárias, muito voltadas para a denúncia e para o
protesto social.18Não se trata de realizar um julgamento, e sim de perceber que toda esta
literatura não era mais que o exemplo da frustração do escritor como agente de mudança
social. Um cenário muito diferente foi aquele em que a possibilidade de uma ruptura literária,
política e social era requisitada em termos reais e históricos, permitindo uma tangibilidade e
significando uma ruptura total: a ruptura da Revolução.
José Donoso reconhece a importância da Revolução Cubana para os escritores dos
anos 60, assinalando Carlos Fuentes como o que encarnou o paradigma:
18 Para citar alguns exemplos, veja-se: o indigenismo mexicano (La negra Angustias, de Rojas González); o indigenismo equatoriano (Huasipungo, de Jorge Icaza); o padecimento mineiro (Meta del diablo, de Céspedes); o autoritarismo político (Elseñor presidente, Asturias).
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después de la Revolución Cubana, él ya no consentía hablar en público más que de política, jamás de literatura; que en Latinoamérica ambas eran inseparables y que ahora Latinoamérica sólo podía mirar hacia Cuba. Su entusiasmo por la figura de Fidel Castro en esa primera etapa, su fe en la revolución, enardeció a todo el Congreso de Intelectuales, que a raíz de su presencia quedó fuertemente politizado. (DONOSO, 1972, pp. 56-57)
A Revolução Cubana influenciou muito a ação intelectual dos escritores e sua escrita
literária durante toda a década de 60. Segundo Ruffinelli, “fue el eje ideológico de una
literatura que se reconocía en su imagen progresista, comprometida con el pueblo y
decididamente antiimperialista respecto a los Estados Unidos” (RUFFINELLI, 1995, p. 380),
sendo influenciados também pelo modelo de compromisso político como opção ética
colocado em prática por Jean-Paul Sartre na Europa.
Uma importante reflexão na literatura causada pela influência da Revolução foi a
tomada de consciência e uma discussão sobre a função da escrita literária, sua participação
social, sua significação histórica. A revolução atravessou toda a literatura do período e deu
sentido às polêmicas mais ou menos centrais ou periféricas ao tema19, até que no princípio da
década de 70 a prisão e a confissão pública de Heberto Padilla20 provocou a crítica e o
afastamento de vários escritores em relação à Revolução Cubana.
O processo histórico deste período é tão importante para entender a função social do
escritor neste momento porque marca a construção da mudança de sua imagem, de sua
percepção sobre o papel histórico que lhe cabia representar. O traço político é muito
importante na cultura hispano-americana da década de 60.
A década de 70 modificou esta situação: em termos políticos e culturais, os anos 60
tinham sido de esperança e de modernização, e a literatura alcançou como nunca dantes (nem
19 Cortázar e Arguedas; Benedetti e Traba; Neruda; Parra; o Calibán de Roberto Fernández Retamar ; Rama e Vargas Llosa; Viñas e Cortázar; a ruptura entre Vargas Llosa e García Márquez; e posterirormente a ruptura de Krauze-Paz e Fuentes. Ver também COLLAZOS, O., CORTÁZAR, J. e VARGAS LLOSA, M. Literatura en la revolución y revolución en la literatura. México: Siglo XXI, 1970. 20 Sobre o Caso Padilla, ver MARQUES, R. L. “O papel dos intelectuais na Revolução Cubana – o Caso Padilla”. In: Em Tempo de Histórias, Publicação do Programa de Pós-Graduação em História PPG/HIS UnB, n. 13, Brasília, 2008, pp. 105-123.
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depois) a legitimação universal a que tanto se aspirava21. Os anos que separam os prêmios
Nobel de Neruda (1973) e García Márquez (1983) fecham o arco dos anos 70: as ditaduras
sul-americanas no meio de uma generalizada repressão política na América Latina,
implicando no aumento da dívida externa. Os anos 80 confirmaram esta decaída na vida
econômica, política e cultural, caracaterizando-se pelo assédio e fustigação norte-americano à
Nicarágua, a presença agressiva do neo-conservadorismo nos Estados Unidos, a crise
econômica no continente e a transferência dos bens culturais surgidos nos anos 60 e 70 para a
Espanha (que passou a ser o centro editorial quase exclusivo dos escritores mais conhecidos,
fato que pode ter sido interessante economicamente para os escritores, mas muito dificultou o
acesso aos leitores).
Os anos 60 deixaram para as décadas seguintes um legado fundamental, relacionado
com a mudança na função social do escritor, com uma nova definição de seu papel como
agente social, que tendeu a “responder” na América Latina a uma pergunta que persegue os
escritores e leitores: para que serve a literatura? E ao mesmo tempo foi capaz de constituir-se
no fundamento de um novo gênero, aparentemente um híbrido de literatura e jornalismo: o
testemunho. Não significa que nos anos 60 se construiu apenas uma imagem do escritor,
muito pelo contrário: as imagens são variadas e distintas, e ainda assim mostram-se
compatíveis22.
La apelación a la Revolución (como proyecto intelectual y como praxis) hizo del escritor latino-americano, en algunos casos, algo más allá que un activista: lo hizo un revolucionario, conflictuado [...] por la imagen de la opción tal como la emblematizó Che Guevara en Relatos de la guerra revolucionaria. En este sentido, el legado llega a nuestros días y encarna en el género testimonial, con libros como La montaña es algo más que una inmensa estepa verde (1982) de Omar Cabezas,pasando por testimonios de prisión (Tejas verdes, de Hernán Valdés,
21 Neste sentido, símbolos da percepção europeia sobre a literatura latino-americana foram os prêmiso Nobel a Miguel Ángel Asturias (1967), a Pablo Neruda (1973) e a Gabriel García Márquez (1983). 22Estas imagens transitam entre “narrador-intelectual”, de Ángel Rama (El boom en perspectiva. In: ____. Más allá del “boom”. Literatura y mercado. México: Marcha, 1981; e em La novela latino-americana. Panoramas 1920-1980. Bogotá: Colcultura, 1982), e o “escritor super-star” de Juan Franco (cf. FRANCO, J. Narrador, autor, superestrella: la narrativa latino-americana de la época de la cultura de masas. In: ____. La cultura moderna en América Latina. 2a ed. México: Grijalbo, 1985.)
55
Memorias del calabozo, de Mauricio Rosencof y E. Fernández Huidobro), o los ejemplos del periodismo de compromiso político (Rodolfo Walsh, Eduardo Galeano) que no por azar es asumido en estas tres últimas décadas por escritores que, más que alternar el periodismo y la literatura como discursos autónomos, los funden en una nueva forma narrativa. (RUFFINELLI, 1995, pp. 382-383)
Ángel Rama percebeu como nos anos 60 e 70 “el narrador-artista se vio sustituido o
contrabalanceado por el narrador-intelectual” ao mesmo tempo em que se dissolveram
ciertas dicotomías tajantes que se habían constituído en lugares comunes de la vida literaria: así, la que oponía el escritor al crítico, visto a veces como el “enemigo”, o considerando que se trataba de oficios que no podían convivir en una misma persona y dañaban seriamente a la frescura del creador. (RAMA, 1981, pp. 281-282)
Mais ainda, Rama distinguiu, no retrato do escritor-intelectual da época, como graças à sua
formação cultural, havia ocorrido de forma crescente a institucionalização da “autonomia
intelectual” (traço de sua profissionalização, mas também da função que imaginaram para si
mesmos e começaram a cumprir), a assunção de um discurso crítico de interpretação social e
um certo protagonismo como “grandes mediadores entre su público literario y la problemática
global de la época”:
Por estas dotes tuvieron acceso a puestos culturales donde cumplieron tareas educativas, como la cátedra universitaria o la conferencia pública, pero es aún más interesante ver cómo eso contribuyó a una suerte de autonomía intelectual. Fueron los primeros analistas de sus obras, pesquisaron la evolución que para ellos seguía el mundo contemporáneo, aspiraron a ser guías del movimiento intelectual. Fueron, sobre todo, teorizadores de la cultura, con similar pasión a la que habían puesto Sarmiento, González Prada o Vasconcelos en la misma tarea. Reanudaron por lo tanto una tradición latino-americana situándola dentro de los marcos de la modernidad de la que fueron obsesivos cultores. El ensayismo que se prevale del suntuoso patrocinio de Montaigne tuvo en ellos ejercitantes diestros, lo que junto a sugestivas proposiciones y a brillos literarios arrastró también la cuota de institucionismo generalizador que justificó la desconfianza [em direção] a los especialistas que trabajan en los niveles tecnificados del estudio actual. Pero raramente fue su intuición actuar como investigadores, sino más bien como intérpretes, grandes mediadores entre su público y la problemática global de la época. (RAMA, 1981, p. 284)
Este enfoque tem importância para o estudo da história intelectual da América Latina,
mas também para o estudo da ficção, dos temas, do estilo, da atitude ideológica da literatura,
passando-se da história intelectual à práxis literária em si, uma vez que a função do escritor
foi sendo constituída e desenvolvendo-se através de suas obras.
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Segundo Ruffinelli (1995, pp. 284-285, passim), o exemplo de Cortázar23 pode
generalizar-se e a partir daí, é possível afirmar que o romance hispano-americano foi
realmente polifônico desde os anos 60. De um lado, a literatura perdeu o caráter “escrito”, que
mantinha como uma de suas características ao longo de diversas épocas e movimentos; por
outro lado, flexibilizou-se mais e tornou-se mais coloquial, como se a linguagem do autor e a
fala dos seus personagens tivessem se fundido no fim das contas com a fala popular.
Este é um traço central da ficção nos anos 60, 70 e 80. Nestas três décadas a
linguagem da ficção se libertou do conceito acadêmico de escrita literária, inspirando-se nas
falas populares e desta forma, ganhou expressividade e espontaneidade. Não se tratava apenas
de uma representação mimética, de um novo realismo linguístico ou fonético, a tal ponto que
esta inspiração popular não se limitou apenas à linguagem, atingindo um sentido mais amplo.
O romance não recorreu apenas à linguagem e aos recursos retóricos, mas também aos temas
e às atitudes ideológicas, provenientes do imaginário social popular. Assim gerou-se um laço
entre a escrita central prestigiada da literatura, e as expressões culturais periféricas e sem
prestígio, transformando estas últimas em catalisador de uma nova cultura “letrada”.24
O romance latino-americano havia pertencido desde suas origens às classes médias –
sendo a expressão da “ciudad letrada” – mas com esta incorporação do popular, se estendeu às 23 O exemplo de Júlio Cortázar pode ser considerado paradigmático neste sentido, pois com ele as linhas sócio-política e estética se cruzaram, como duas esferas autônomas, que pretendiam fundir-se em uma (Libro de Manuel, 1973). O ponto de partida foi cultivar um individualismo estético que foi ao encontro de uma dimensão coletiva. Em Cortázar esta abertura do individual ao social e coletivo ilustra-se, através de obras como por exemplo Rayuela (1963), e tem-se que nos anos de maior dedicação ao compromisso político (pro-Cuba desde os anos 60 e pro-Nicarágua nos anos 70), foi quando ele ganhou maior legitimidade como interlocutor (“mediador” nos termos de Ángel Rama) da problemática do continente. Uma das maiores consequências deste processo literário (paralelo ou consequênte ao processo ideológico) foi o descobrimento da pluralidade da fala, a partir do momento em que se descobriu a pluralidade dos falantes. 24Segundo Jorge Ruffinelli “prácticamente no hubo aspectos censurados o autocensurados. Fueron usados los mitos, los motivos y también los vehículos como el folletín, la radio, la televisión.”. E mais adiante afirma que “[e]l mejor ejemplo de transculturación artística de muchos – si no de todos – los elementos de la cultura popular siguió siendo la ficción de García Márquez.” (RUFFINELLI, 1995, p. 285). Outros exemplos citados são: Fantomas contra los vampiros multinacionales, Cortázar (1975); Batman en Chile, Enrique Lihn (1973); La traición de Rita Hayworth, Manuel Puig (1978); Zona sagrada, Carlos Fuentes (1966); Queremos tanto a Glenda, Julio Cortázar (1980); La tía Julia y el escribidor, Vargas Llosa (1977); Tres tristes tigres, Guillermo Cabrera Infante (1964); Oscuro, solitario y final, Osvaldo Soriano (1973); Qué solos se quedan los muertos, Mempo Giardinelli (1986); Charles Atlas también muere, Sergio Ramírez (1976); El rugido de Tarzán, conto de Cristina Peri Rossi (1983); Tiempo al tiempo, Isaac Goldemberg (1984); La casa de los espíritus e Eva Luna, Isabel Allende (1982 e 1986).
57
culturas marginais, as quais “han sido siempre mayoritarias aunque no hegemónicas en
América Latina” (RUFINNELLI, 1995, p. 385). Veja-se o exemplo de José María Arguedas
abordando a cultura quechua em seus romances, operação que se estendeu aos demais
escritores hispano-americanos nos anos 60 e que vem neutralizando desde então o possível
“autoritarismo” da escrita literária, além de possibilitar que os escritores do continente
alcançassem a legitimidade histórica de “mediador”, ou intérprete da sua cultura.
Este encontro com as raízes do popular é outro traço característico da ficção hispano-
americana desde os anos 60, além da busca pela história, que foi uma tendência crescente,
especialmente a partir dos anos 70. Esta última característica abre precedente a uma série de
questionamentos cujas respostas possivelmente estão no cruzamento entre as próprias
perguntas:
¿A qué obedece este rasgo? ¿A una crisis de identidad y su consiguiente búsqueda de los orígenes? ¿A una nostalgia del pasado por profunda insatisfacción con el presente? ¿O es una crisis radical de la “historia oficial”, que a su vez representa al poder de los sectores dominantes, de los “conquistadores”? ¿Responde a una investigación simbólica del “imaginario colectivo” sobre los motivos que han frustrado los proyectos nacionales y el proyecto de América Latina? ¿O bien a una crisis interna de la historia, del concepto de historia, de nuestra percepción del tiempo propio? (RUFFINELLI, 1995, pp. 385-386)
A insistência da ficção na história acabou por produzir um discurso no qual a “la
ficción y el espíritu documental positivista, contrarios en apariencia, se fusionaron para lograr
un resultado peculiar, diferente, original y atractivo.” (RUFFINELLI, 1995, p. 386). O
resultado desta espécie de obsessão pela história não resultou em romances históricos dentro
da concepção clássica25. Ao invés disso, nos anos 70 e 80, o discurso literário alterou
profundamente o histórico, reproduzindo-o, parodiando-o, e modificando-o intencionalmente,
para destruí-lo e construir com seus próprios destroços e sobre eles um novo discurso. Nesta
25 Tal e qual a estudou Lukács na obra de Scott, e que na literatura hispano-americana do século XIX havia alguns exemplos, como os romances de Eduardo Acevedo Díaz (1851-1921).
58
atitude incluem-se as “novelas de dictador”26, e romances em torno da conquista, da colônia e
do século XIX.27
No cenário dos anos 80, a paródia ganhou muito em força representativa: paródia da
história oficial, dos discursos políticos, das classes hegemônicas, da cultura pop, da visão
burguesa de mundo, e inclusive a paródia da própria literatura. Porém, a paródia aparece
predominantemente contra o discurso autoritário.
Então, a paródia, a literatura metahistoriográfica, a intertextualidade, assim como
muitos traços que hoje parecem caracterizar a literatura hispano-americana, fazem parte deste
novo contrato de leitura, os quais “responden a la actitud de la apertura progresiva del
discurso literario del individualismo al encuentro con el sujeto colectivo.” (RUFFINELLI,
1995, p. 388). Transformar o leitor em personagem através da linguagem é uma das
características mais originais da ficção latino-americana, gerando um melhor diálogo entre
romance e leitores, os quais por sua vez também encontraram no romance
una eficaz y legítima representación de sus preocupaciones y angustias colectivas, de sus contradicciones y aspiraciones, en fin, de todos los mitos de su imaginario social. Cuando al frenesí de la fiesta sucedió el dolor de la represión y el exilio, la ficción encontró una nueva perspectiva igualmente social y colectiva: la mirada “cómplice” de la parodia. La ficción de los años ochenta necesita al lector, sin cuya participación la intención paródica no tendría eco, resonancia ni sentido; es, pues, una ficción que ha mantenido la misma base popular de antes pero con nuevos recursos, y que se ha popularizado más en la medida en que ha ido perdiendo los gestos extremos del experimentalismo que en algunas instancias – de la obra de Vargas Llosa, Fuentes, Lezama, Sarduy y Néstor Sánchez, por ejemplo – peligraron convertirse en manierismo, en pirotecnia verbal. (RUFFINELLI, 1995, p. 388)
Em linhas gerais, a ficção dos anos 80 recuperou a antiga fruição do contar a partir da
tradição oral. Além disso, incluiu o humor, juntamente com a citação intertextual que
intensificava o sentimento de comunidade verbal de um universo linguístico coletivo e
criativamente assumido.
26 Veja-se os exemplos: Yo el Supremo, Roa Bastos (1974); El recurso del método, Alejo Carpentier (1974); El otoño del patriarca, García Márquez (1975); Daimón, Abel Posse (1978); Lope de Aguirre, Miguel Otero Silva (1982); El general en su laberinto, García Márquez (1989). 27 Exemplos são: El entenado, Juan José Saer (1983); Notícias del Imperio, Fernando del Paso (1988); e Terra nostra, Carlos Fuentes (1975).
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Culturalmente, a nova relação com o leitor e, até mesmo a criação de um novo público
leitor, conferiu à literatura latino-americana destas três décadas uma identidade que não
possuía anteriormente. A partir dos anos 60, a literatura latino-americana passou a fornecer
paradigmas e modelos, e deslocou o olhar de produtores e leitores (antes voltados para Europa
e Estados Unidos).
b) A influência da disciplina da História
Maluco funda-se em uma dupla vertente histórica. A primeira, mais superficial, trata
de recontar um fato histórico de grande importância – a primeira viagem de circunavegação.
A segunda traz o momento presente (em relação à sua escrita), a pós-ditadura, para a obra
literária, a partir da alegoria criada pela primeira vertente histórica.
Na trama do romance, ao longo de toda obra, o discurso histórico oficial é
questionado, em detrimento de uma versão repleta de elementos julgados a priori como não-
históricos. O narrador é um contador de histórias, e não um historiador. Uma vez que Maluco
finca suas bases estruturais a partir desta relação entre História e literatura, entre o contar
histórias e validar a História, parece importante que se faça um breve recorrido sobre o que se
pensa sobre esta relação história e literatura.
Sobre a representação, pode-se dizer que esta envolve uma relação ambígua entre
“ausência” e “presença”, de modo que
é a presentificação de um ausente, que é dada a ver por uma imagem mental ou visual, que, por sua vez, suporta uma imagem discursiva. A representação, pois, enuncia um “outro” distante no espaço e no tempo, estabelecendo uma relação de correspondência entre ser ausente e ser presente que se distancia do mimetismo puro e simples. Ou seja, as representações do mundo social não são o reflexo do real nem a ele se opõem de forma antitética, numa contraposição vulgar entre imaginário e realidade concreta. Há, no ato de tornar presente o ausente, a construção de um sentido ou de uma cadeia de significações que permite a identificação. Representar, portanto, tem o caráter de anunciar, “pôr-se no lugar de”, estabelecendo uma semelhança que permita a identificação e reconhecimento do representante com o presente. (PESAVENTO, 1998, p.19)
60
Por outro lado, as representações do mundo social não se medem por critérios de
veracidade ou autenticidade, mas sim através da capacidade de mobilizar que proporcionam,
ou pela credibilidade que oferecem:
História e literatura apresentam caminhos diversos, mas convergentes, na construção de uma identidade, uma vez que se apresentam como representações do mundo social ou como práticas discursivas significativas que atuam com métodos e fins diferentes. (PESAVENTO, 1998, p.22)
Isto aponta para a presença da ficcionalidade no domínio do discurso histórico, assim como a
da imaginação na tarefa do historiador. Apesar, é claro, de que o critério de veracidade não
tenha sido jamais descartado, o olhar do historiador recai sobre as possíveis leituras a serem
realizadas de uma certa época. Neste contexto, a tarefa do histioriador contemporâneo seria
constituir uma representação plausível a partir das representações feitas, compondo assim, a
sua versão. Pode-se, então, afirmar, que o critério da “veracidade” é substituído pelo da
“verossimilhança”.
Por outro lado, o discurso literário situado num campo preferencialmente ligado à
realização do imaginário também apresenta preocupação com a verossimilhança. Dentro desta
análise, a ficção não pode ser entendida a partir da dicotomia simplista dominante no senso
comum, em que esta se opõe radicalmente ao real. Pelo contrário, a ficção é tida como outra
forma de captar o real, capaz de ampliar os limites permitidos pelo historiador, pois neste
campo, a criação e a fantasia são vistas como aliadas, e não como inimigas a evitar-se a todo
custo. Dessa forma, história e literatura dão voz ao passado e assim, trazem à tona o ontem e
hoje, pois há um empenho, tanto por parte da literatura quanto por parte da História, em
compor uma construção do real de forma a torná-lo crível, desejável e aceito.
Então, a História articula uma fala autorizada sobre o passado, recriando a memória
social através de um processo de seleções e exclusões, havendo assim um componente
ficcional no discurso histórico. Na mesma medida, também na narrativa literária encontra-se
61
um empenho de dar veracidade à ficção literária na qual, ainda que não se tenha a intenção de
provar que os fatos narrados aconteceram daquela forma, permite-se que uma explicação do
real traduza uma sensibilidade diante do mundo recuperado pelo autor.
O que é então a verdade? Uma multiplicidade incessante de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, em síntese, uma soma de relações humanas que foram poética retoricamente elevadas, transpostas, ornamentadas, e que, após um longo uso, parecem a um povo firmes, regulares e constrangedoras: as verdades são ilusões cuja origem está esquecida, metáforas que foram usadas e que perderam a sua força sensível, moedas nas quais se apagou a impressão e que desde agora não são mais consideradas como moedas de valor, mas como metal. (Nietzsche, 2001, p. 68)
Sobre a História oficial, sua escrita, de um modo geral, é um grave instrumento de
poder: quem a escreve, registra. E tal registro não será neutro, representando um ponto de
vista através das escolhas realizadas por quem o faz. Assim sendo, um grupo hegemônico –
detentor do poder político, econômico e social– modela a História de acordo com os seus
interesses. Através da escrita, são criados tanto os “documentos” quanto os “monumentos”,
para usar a expressão de Le Goff (1996), que são incorporados de forma inconsciente até o
ponto do esquecimento de que se tratava originalmente de um constructo.
É importante perceber que se há um grupo predominante que detém o poder e escreve
a História, há um determinado ponto de vista em questão. Para que esta perspectiva seja
acolhida, outras foram deixadas de lado. Em outras palavras, para que um fato seja narrado,
certos aspectos serão privilegiados em detrimento de outros. O que se quer ressaltar é que o
simples deslocamento de foco de um personagem participante de um fato, a outro igualmente
participante (porém com menos prestígio social, por exemplo), já resultará em um relato
completamente distinto. Esta visão está de acordo com o estilo já mencionado de Baccino,
consciente da impossibilidade da representação da totalidade de um fato, sendo sempre
necessário escolher um ponto de vista para retratar.
62
Peter Burke, em A escrita da história (1992), reúne diversos ensaios que apontam para
novas formas de fazer e escrever a História28. O autor define a nova história em contraste com
a história tradicional, pela via negativa. Em primeiro lugar, a história tradicional é
essencialmente política, enquanto a nova história diz respeito a toda atividade humana, o que
é possível a partir do relativismo cultural. Além disso, historiadores tradicionais basicamente
narram acontecimentos; já a nova história, preocupa-se mais com a análise das estruturas. A
história tradicional dá uma visão “de cima”, que se concentra nos grandes feitos e nos grandes
homens; ao passo que os novos historiadores optam pela “visão de baixo”, valorizando as
opiniões e experiências das pessoas comuns. A nova história se desloca da voz única da
História em direção a uma polifonia de vozes variadas e opostas.
Um dos ensaios reunidos por Burke, intitula-se A história vista de baixo, de Jim
Sharpe, que expõe a possibilidade de se narrar um feito histórico a partir de um ponto de vista
não mais focado nos grandes homens registrados pela história oficial, mas sim fazê-lo através
do deslocamento do olhar para um participante anônimo e comum.
Esta tendência da História, acaba se refletindo como uma operação ficcional de
representação que objetiva presentificar uma ausência através da narrativa. Dessa forma,
observa-se que, principalmente em países que estiveram sob o comando de regimes
ditatoriais, a literatura desempenha um papel primordial no que diz respeito ao preenchimento
de lacunas deixadas pela História.
Trazendo a questão para o contexto latino-americano, durante os períodos ditatoriais, a
História, que representava a palavra do poder, tornou-se sinônimo da História oficial. Em
contrapartida, pode-se dizer que a literatura ganha legitimidade na saída destes períodos por
conta do poder da palavra de que o discurso literário é dotado. Através dos efeitos da leitura,
isto é, da mediação entre o mundo fictício do texto e o mundo efetivo do leitor, é possível 28 Denominaremos História (com agá maiúsculo) para a disciplina da História com enfoque tradicional ou oficial, para diferenciar da palavra história (com agá minúsculo) que será empregada para determinar certas vertentes da disciplina da História (sempre que especificadas) ou a sucessão de fatos narrados.
63
interpretar os momentos desvelados e transformados pela ficção e reconstruir assim o tempo
histórico nela contido.
Desta forma, tem-se no momento de saída dos períodos ditatoriais, uma aproximação
das áreas da literatura e da história, que não se sobrepõem nem se substituem, mas dialogam
complementando-se. Assim, tanto a literatura entra na dimensão da representação objetiva,
documental e supostamente científica, quanto a história bebe na dimensão ficcional da
literatura, atenuando a dicotomia que antes existia entre os dois campos.
Hugo Achugar em “Leones, cazadores e historiadores, a propósito de las políticas de
la memoria y del conocimineto” (1996), afirma que América Latina é como um campo de
batalha no qual distintos sujeitos lutam pela construção de seu projeto em função das suas
memórias particulares, é um lugar onde diversas memórias competem pelo poder. Toda
memória, assim como toda a recuperação e representação da memória implica numa avaliação
do passado, e a literatura é um dos grandes responsáveis por esta tarefa, possibilitando uma
experiência de alteridade. Segundo Wolfgang Iser, na escrita ficcional predomina a instância
imaginária, ocorrendo um tipo especial de pacto comunicacional entre leitor e texto. Esse
imaginário ficcional produz um duplo irreal, provocando um jogo em que a semelhança
desdobra a diferença. Em outras palavras, a ficção cria imaginariamente formas alternativas
de ser e assim, irrealiza o real para realizar o imaginário (ISER, 1985, pp. 385-416, passim).
A palavra palimpsesto significa manuscrito antigo que conserva pistas de uma
escritura anterior, que foi apagada. Neste sentido, faz-se fundamental a noção de palimpsesto
usada por Jesús Martín-Barbero (1997) como recurso de linguagem para designar as
temporalidades sociais presentes nos processos culturais latino-americanos, especialmente a
partir da hegemonia dos meios de comunicação na construção dos processos simbólicos
dessas sociedades.
64
Sem nenhuma intenção classificatória, pode-se dizer, neste sentido, que a literatura
adquire um caráter do pós-moderno, o qual Linda Hutcheon, em Poética do pós-modernismo
(1991), define como “fundamentalmente contraditório, deliberadamente histórico e
inevitavelmente político” (HUTCHEON, 1991, p. 20). As contradições deste fenômeno são o
resultado da contestação dos princípios da ideologia dominante nas práticas sociais e culturais
vigentes. Especificamente na arte, o pós-modernismo deixa visíveis as contradições entre a
auto-reflexividade e sua fundamentação histórica. O que caracteriza a pós-modernidade na
ficção, ainda segundo a autora canadense, é a metaficção historiográfica. Sua estratégia é a da
subversão da História através da ironia, e não da rejeição. “A problematização substitui a
demolição”, diz Hutcheon (1991, p.15). Na metaficção historiográfica, o retorno da história
não é nostálgico: “é uma reavaliação crítica, um diálogo irônico com o passado da arte e da
sociedade.” (Id., p. 20).Assim, a autoconsciência teórica é incorporada à história e à ficção,
sendo estas consideradas como criações humanas e esta é a base para o seu repensar e sua
reelaboração das formas e os conteúdos do passado. Ela atua dentro das convenções, mas o
faz para subvertê-las. Para Linda Hutcheon, esta não pode ser considerada apenas como mais
uma versão do romance histórico. Pode-se dizer que a “metaficção historiográfica" traz uma
incômoda ambiguidade, pois esta propõe ao mesmo tempo, um suplemento à história e um
deslocamento radical da mesma.
Isto implica simultaneamente em significados contraditórios, cuja classificação não
pode dar-se separadamente. Uma destas indefinições é o suplemento29, que tanto adiciona – já
29 Segundo Derrida (2008), o suplemento é entendido como um excedente externo, vindo de fora, mas acrescenta algo que acaba por compor uma totalidade integrada a um conjunto completo pre-existente, cujas partes formam um todo, e, fora deste conjunto há um suplemento que poderia adicionar a ele. Porém, trata-se de uma totalidade que já está completa, não necessitando de coisa alguma, e o suplemento perde sua razão de ser, reduzindo-se a nada. Um suplemento só tem existência e razão de ser se falta algo ao conjunto ao qual se refere. O todo, nestes termos, acusa alguma carência em seu interior. Por um lado, o suplemento se soma, sendo um excesso, uma plenitude enriquecendo outra plenitude; por outro lado, ele intervem insinuando-se em-lugar-de. Externo à totalidade, o suplemento responde consequentemente a uma ausência na totalidade a que diz respeito. É por isso que está lógica exige que o fora seja dentro, que o outro e a falta acrescentem-se como um mais que substitui um menos, que o que se acrescenta a algo ocupe o lugar da falta disso, que a falta como fora do dentro já esteja dentro do dentro, e assim por diante.
65
que é algo extra, acima e além do que já está inteiramente presente –, quanto substitui – na
medida em que superpõe-se ao ausente ou incompleto e, portanto, requer complementação ou
integralidade. Neste sentido, tomem-se como exemplo alguns romancistas que contam
histórias de grandes fatos históricos, como por exemplo conflitos ou guerra civis, os quais
podem torná-los mais inteligíveis para os leitores, partindo de um outro ponto de vista que
permita uma interpretação deste conflito como sendo uma batalha de interpretações, cujas
vozes variadas e opostas podem ser ouvidas (BURKE, 1992, p. 336) e assim, acabam por
funcionar como o suplemento proposto por Derrida, que adiciona e substitui aquilo que era
lacunar.
Em Maluco toda a narrativa funciona como um suplemento não só em relação à
História da viagem de circunavegação, mas também em relação ao presente vivenciado pelo
autor. É como se Maluco fosse a sua possibilidade de suplementar o presente, acrescentando
algo que se posiciona em-lugar-de. Graças a seu caráter alegórico, a partir do deslocamento
do foco da narrativa, que sai de uma dimensão dos grandes homens, dotada da autoridade
investida na voz do poder, passando a outra dimensão do homem comum que, por sua vez,
tem o poder da voz como seu único argumento de autoridade. A capacidade de contar
histórias e de imaginar passa a ser o grande instrumento legitimador de Juanillo Ponce de
León, o bufão-narrador de Maluco, contrapondo-se e suplementando o suposto domínio do
conhecimento factual e científico-documental da História. O artifício imaginativo permite que
muitas vezes seu relato seja extremamente verossímil, em certa medida até mais que o
contado pelo cronista oficial da frota, devido à humanização expressa em seu relato.
A partir do momento em que a literatura faz um movimento em direção ao passado,
não para resgatá-lo como já havia sido contado, mas para de fato reconstruí-lo de outra forma,
o autor o faz desde seu momento atual, ou seja, fala de e sobre o presente em que vive. Sendo
este romance escrito num Uruguai em processo de abertura de um regime ditatorial, pode-se
66
nele reconhecer um novo romance histórico latino-americano que reescreve através de
procedimentos ficcionais possíveis na metaficção historiográfica, camada por cima de camada
como em um palimpsesto, de modo a reescrever passado e presente representando
alegoricamente a figura daquele intelectual da pós-ditadura.
c) O “romance histórico” e o “novo romance histórico latino-americano”
Dentro desta evolução do “novo romance”, que culminou nos anos 80, pensemos mais
detidamente sobre o universo do “novo romance histórico”, dentro do qual se insere Maluco.
Para isso, será interessante revisitar as diferentes definições existentes dentro da crítica
literária, primeiro de romance histórico e posteriormente de sua nova vertente. A análise das
características deste subgênero ajudará a esclarecer as razões pelas quais aí se pode localizar
nosso romance.
A obra de referencia para definir romance histórico é La novela histórica30 de Georg
Lukács, na qual são fixados os parâmetros que definem o romance histórico e o diferenciam
de romances com tema histórico. Nas palavras de Lukács,
[l]a novela histórica nace a principios del siglo XIX, desde luego que hay novelas de tema histórico ya en los siglos XVII y XVIII y quien así lo desee puede considerar "precursoras" dela novela histórica las elaboraciones de historia antigua y de mitos en la Edad Media, yremontarse aún hasta China o la India. Pero en este recorrido no encontrará nada quepudiese aclarar en algo fundamental el fenómeno de la novela histórica. (LUKÁCS, 1977, p. 15)
A diferença entre o romance histórico e o romance de tema histórico pode ser definida
observando-se o eixo central ao redor do qual gira a trama, isto é, um romance de tema
histórico pode ter como cenário algum evento histórico, pode estar ambientada com aparatos
30A edição aqui referida é a mexicana de 1977 (LUKÁCS, Georg. La novela histórica. Trad. Jasmin Reuter. 3ª ed. Era, Ciudad de México, 1977). Esta obra acaba de ser traduzida ao português (em setembro de 2011), pela editora Boitempo, sob o título de “O romance histórico”. No entanto, como ao longo de toda a pesquisa já havíamos nos baseado na edição mexicana, mantivemos esta como referência.
67
de época, mas seu tema central é um caso que pouco ou nada se relaciona com os processos
ou personagens históricos, ou se isto acontece, é apenas de maneira superficial.
Para Lukács, na primeira metade do século XIX, com as obras de Walter Scott,
começa o romance histórico. Lukács define a noção de romance histórico a partir da análise
destes romances e da própria crítica de Scott às obras de seus antecessores, dos quais se
destaca, criando uma nova maneira de conceber e representar a História31.
Lukács explica isto acompanhando as distintas fases pelas quais passou a visão
narrativa daqueles autores interessados em localizar seus relatos dentro de um contexto
histórico. Nesta revisão, Lukács não encontra nada digno de resgate até a aparição do
movimento alemão denominado Sturm und Drang, no qual os autores passam a adquirir plena
consciência do problema do domínio poético da história. Entre as obras nas quais já é possível
perceber esta característica ele cita Goethe (em Götzvon Berlichingen – obra que vai além da
representação do renascimento do drama histórico e exerce uma poderosa influência na
literatura contemporânea posterior, inclusive a de Walter Scott).
Para Lukács o grande feito de Scott deve-se ao fato de que ele não faz críticas nem
oposição direta às condições socio-econômicas nas quais a Inglaterra está desenvolvendo-se
neste momento, graças ao florescimento do capitalismo. Porém, sua preocupação por esta
circunstância leva-o a questionar sua origem e a representar em sua obra as principais etapas
da história de seu país para tentar responder de alguma forma aos questionamentos que seu
presente histórico lhe oferecia. A maneira escolhida para fazê-lo é através de “un 'héroe'
mediocre, correcto, perono propiamente heroico” (LUCKÁCS, 1977, p. 33), que, justamente
por seu caráter não heróico, pode entrar em contato com as forças sociais contrárias que
31Marcaremos História iniciando com letra maiúscula para designar aquela disciplina chamada por Peter Burke (1992) de história tradicional, ou seja, o conjunto de acontecimentos ou fatos políticos, sociais, econômicos, culturais, etc., de um povo ou de uma nação, para diferenciar esta nomenclatura da palavra história, que representará de um modo os acontecimentos ou fatos contados em um romance, ou mais adiante neste texto, também poderá designar outras vertentes da disciplina da história, que se oponham à tradicional (sempre acompnhada de seu adjetivo).
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desejam destruir-se mutuamente. Este protagonista é medíocre, pois não se identifica com
nenhuma das facções e portanto encontra-se “no meio” dos dois bandos, situação que lhe
permite representar grandes crises da vida histórica de uma forma panorâmica. Segundo
Lukács, as grandes personalidades da História não podem ser representadas “a partir del
sentimiento de un romántico y decorativo culto al héroe” (LUKÁCS, 1977, p. 38),o qual seria
um elemento que tiraria o foco do que efetivamente provoca uma mudança histórica: as forças
sociais. O herói medíocre do romance histórico é capaz de representar adequadamente os
traços humanos, decentes e atrativos e as limitações da própria classe a que pertence como
modelo histórico de sua sociedade e de sua época, conseguindo com esta exposição, a
totalidade histórica de certos momentos capitais da História. No romance histórico clássico,
como o chama Lukács, o importante é o desenvolvimento dos acontecimentos apresentados
em torno do protagonista, este não é mais que um “pretexto” literário para retratar fielmente
um período histórico com todas as suas minúcias e em uma dimensão fundamentalmente
humana, o que o diferencia da historiografia, e que se alcança precisamente através da
perspectiva que o herói medíocre permite que se alcance.
Outra característica fundamental que Lukács assinala é o fato de que Walter Scott
introduz na literatura a extensa descrição de costumes e das circunstâncias que estão em torno
dos acontecimentos, o caráter dramático da ação e, consequentemente, o novo e importante
papel do diálogo no romance (LUKÁCS, 1977, p. 30). Sobre o caráter dramático32 dos
acontecimentos e o papel do diálogo, sabe-se que não são determinantes somente do romance
histórico, mas que serão determinantes da condição do romance moderno. No entanto, é
importante para o romance histórico o fato de que se aborde com amplitude a construção das
situações e os ambientes necessários para caracterizar um período histórico concreto, de
32 Caráter dramático no sentido dialógico do gênero.
69
forma que implicarão numa maior compreensão dos acontecimentos que sofrem ou provocam
os personagens e também de sua forma de pensar e reagir diante deles.
Retomando rapidamente o que Lukács assinala sobre a forma e o estilo do romance
histórico, tem-se que para a literatura (na verdade para qualquer forma de representação), é
impossível descrever os fatos além de uma determinada extensão. Um exemplo disso é que
grandes escritores consideraram inútil a tarefa de descrever a geografia onde aconteceu uma
batalha com seus grandes exércitos, narrando suas estratégias e movimentos, pois lhes parecia
suficiente mostrar através de pequenos esforços o espírito das duas forças em tensão. Lukács
afirma que um bom romance histórico, um bom escritor "es vigoroso y auténtico justamente
en los detalles, pero nunca en el sentido anticuado y exótico de algunos escritores posteriores.
[...] [L]os detalles no son más que medios para alcanzar verdaderamente la mencionada
fidelidad histórica" (LUKÁCS, 1977, p. 66), quando estes detalhes são verdadeiramente
significativos, e não mero adereço.
Finalmente, é conveniente lembrar que Scott se focava no trabalho que não interessava
aos historiadores e se dirigia aos documentos e às versões de testemunhas para poder registrar
aquilo que a historiografia esqueceu, o que dá à sua obra um certo caráter didático e
sobretudo, de complemento da historiografia.
Partindo dos estudos críticos de Lukács, outros autores participaram na concepção do
romance histórico, pois ao complementar ou criticar o trabalho de Lukács, acabaram por
contribuir no processo de construção da definição do que hoje aceitamos como romance
histórico.
Por exemplo, o crítico argentino Noé Jitrik (1995) aponta uma característica
fundamental do romance histórico, afirmando que ao contrário de outras manifestações
literárias que concedem um grande peso à tensão narrativa gerada em torno de um conflito
que terá que se resolver de uma maneira original, surpreendente ou pelo menos inesperada, no
70
caso do romance histórico, não se pode pensar em um final deste tipo, e daí vem o caráter
trágico de seus protagonistas, no sentido de que já se conhece o final de antemão (JITRIK
apud GARCÍA RAMÍREZ, 2003, p. 12)33.
Pode-se trabalhar a História em termos literários a partir de dois pontos de referência:
o primeiro aproxima-se ao que deseja Lukács, considerando as tensões sociais e políticas de
um período; o segundo é aquele no qual se dá maior peso a determinadas figuras históricas. É
preciso ter em mente que quem escreve um romance histórico, e o mesmo vale para quem
escreve a História, está tomando deliberadamente uma postura política e, consequentemente
está assumindo uma posição ideológica e em geral, a defende. Neste sentido, é perfeitamente
explicável que Scott escolha como seus protagonistas personagens extraídos da camada social
que representava a baixa nobreza, à qual ele mesmo pertencia. Justamente por este fato
inegável, é que o autor escolhe um momento histórico e não outro, para inserir as ações de seu
relato, onde é mais eficaz estabelecer e defender o seu posicionamento. Esta mesma escolha
evidencia a perspectiva a partir da qual pretende-se reinterpretar a História, perspectiva esta
que é definitivamente ideológica.
Um subgênero como o do romance histórico é especialmente posto em prática nos
períodos de conflito, de repressão, de crise de qualquer tipo ou em anos imediatamente
seguintes a períodos desta natureza. Uma possível explicação é que uma vez que um processo
que implica alguma forma de domínio de uns sobre os outros tenha cessado, é necessário
redefinir as posições dos atores deste processo, tanto dos que sobrevivem quanto dos que
caíram durante o transcurso do fato. Em muitas ocasiões, pode-se entender um romance 33Segundo García Ramírez (2003), o anterior é justamente um dos pressupostos nos quais se apoia o romance histórico: o conhecimento do passado, ou ao menos de certa parte dele, de onde se inicia a leitura do texto. Mas, a partir de quando é passado? Por um lado, María Cristina Pons considera que para poder falar de passado, em termos de romance histórico, os acontecimentos narrados devem pertencer a uma época desde a qual “deben haber transcurrido dos generaciones entre el presente del escritor y el pasado presentado en la novela” (PONS, 1996, p. 51). Por outro lado, Anderson Imbert (citado por Seymour Menton) amplia a ideia de passado, ao definir romance histórico como aquele “cuya acción ubica total o por lo menos predominantemente en el pasado, es decir, un pasado no experimentado directamente por el autor” (IMBERT apud MENTON, 1993, p. 32). Finalmente, ambas definições são compatíveis e refletem certamente o passado que retomam a maioria dos escritores de romances históricos.
71
histórico como uma releitura do passado em busca de explicações e portanto, de compreensão
e de identidade. Esta identidade perdida no processo faz com que as percepções do autor e do
grupo ao que pertence se transformem, e passa a haver uma tentativa de reconstruir a
identidade ou de defendê-la diante dos questionamentos que o devir histórico pode implicar.
Noé Jitrik explica que a produção do romance histórico responde a duas
pulsiones o tendencias. La primera canaliza un deseo dereconocerse en un proceso cuya racionalidad no es clara; la segunda persigue unadefinición de identidad que, a causa de ciertos acontecimientos políticos, estabafuertemente cuestionada (JITRIK, 1995, p. 17)
Da mesma forma, Jorge Ruffinelli afirma que depois deste tipo de eventos (referindo-
se especificamente à ditadura Uruguaia) parece que é
como si se hubiese decidido hurgar en las raíces de la nacionalidad. En busca de ¿qué? Probablemente de una identidad histórica. ¿Qué se ha buscado habitualmente en losorígenes, sino las explicaciones míticas o los momentos fundacionales sobre los cualesconstruir otros mitos fundadores del ser nacional o latinoamericano? (RUFFINELLI, 1990, p. 15)
Em outras palavras, pode-se dizer que ao construir, redefinir ou defender sua identidade, o
autor de qualquer texto literário e, neste caso, o autor do romance histórico, ao fazer a seleção
do momento que sustentará sua narração, escolhe uma análise de certas forças históricas e não
outras, escolhe dotar um protagonista de identidade que pertence a uma classe determinada e
que dá suporte a uma história, inserido em um determinado contexto e atuando e sofrendo os
fatos de um processo específico, e ao fazê-lo, define e assume uma série de posicionamentos
que o retratam dentro de um universo plural. Tais posicionamentos são necessariamente
político-ideológicos, e se refletem a partir da atitude do narrador diante dos acontecimentos
mostrados de maneira oficial pela História, ou seja, a História oficial, aceita por um sistema
determinado. Esta atitude pode expresar-se em dois sentidos: assumindo-a para enaltecê-la ou
maldizê-la, ou então questionando-a, polemizando suas premissas, preenchendo suas lacunas
de forma que a posição do autor defenda a identidade da corrente ideológica que representa.
72
No caso do romance histórico, o autor não é ator nem testemunha dos fatos que
reconstrói, interpreta e romanceia, e portanto, deve recorrer ao passado documentado para
elaborar a estrutura de sua ficção, ou seja, quem escreve um romance histórico depende de
acervos históricos para conhecer o tempo ao qual vai se referir: mesmo quando o
desenvolvimento de um romance histórico faz a crítica mais feroz a um determinado sistema,
o autor depende dos recursos desse mesmo sistema. Por outro lado, apesar de que o autor
depende do corpus admitido formalmente pelos historiadores, também é certo que este corpus
pode ser complementado, distorcido, parodiado ou até mesmo negado para que o romance
histórico não tenha um apego exagerado aos dados e fatos, afastando-se de sua natureza.
Sem pretender aprofundar a discussão sobre a competência do leitor e sobre a Teoria
da Recepção34, cabe ressaltar que se um autor se envereda pelos caminhos da História para daí
criar seu romance, ele o faz acreditando que seus leitores serão informados, ao menos com a
competência suficiente para que seja possível recontar a eles a História que aprenderam,
esperando que estes leitores possam vê-la à luz deste novo ponto de vista, sendo capazes de
decodificar e apreender suas mínimas intenções, captando as propostas ideológicas, formais,
políticas e estéticas que o autor se esforçou por expressar. O leitor só poderá contrastar o texto
histórico com o texto literário dentro desta dinâmica, notando a proposta do autor em termos
de um equilíbrio variável e lúdico entre a parte narrativa resgatada da História e a parte
fictícia, produto da imaginação e do autor.
Agora que exploramos o universo do romance histórico, façamos um recorrido no que
diz respeito ao conceito de novo romance histórico, partindo da noção que surge na América
Latina na segunda metade do século XX sobre a aparição de uma “nova narrativa” e
particularmente sobre o nascimento de um “novo romance”. No fim do século XX, o romance
histórico escrito na América Latina é apenas uma pequena porção do enorme corpus de
34Ver Stuart Hall (2005).
73
literatura dentro de um fenômeno reconhecido pela diversidade artística (e literária), cuja
inspiração primeira e ponto de partida encontram-se na vanguarda europeia e nas criações
literárias de autores como Borges. Aparece aí, uma geração inteira de excelentes escritores de
diversos gêneros, cujo denominador comum era a tentativa de afastar sua escrita dos modelos
tradicionais (considerados decadentes) de herança modernista e romântica. Para isto, a norma
foi a exceção: cada obra se pretendia excepcional, de modo que não havia experiência que
fosse demasiadamente arriscada para eles, e para isso acessavam todos os recursos literários
inovadores usados pelas vanguardas europeias e inclusive criavam alguns novos. No âmbito
narrativo, basta assinalar alguns deles: o fluxo de consciência, das quais são representativas
obras como El pozo, de Onetti e El túnel, de Sábato; a pluralidade de vozes narrativas como
em La señorita Cora, de Cortázar; o desdobramento de identidades e jogos especulares, como
em Continuidad de los parques, também de Cortázar; o uso da paródia, da ironia e do
burlesco, como em Galaor, de Hugo Hiriart; a justaposição e o entrecruzamento de linhas
temporais, o tempo que corre em sentido inverso em Viaje a la semilla, de Carpentier, entre
muitos outros exemplos. O novo romance histórico incorpora todas estas inovações que são
próprias das “estrategias y prácticas narrativas de la novela de su tiempo” (ou seja, final do
século XX).E agrega que
lainnovación del género, que podría estar representando la novela histórica de fines del sigloXX, no necesariamente implica un cambio o ruptura con la tradición literaria en general yen todos sus niveles, es más bien, una discontinuidad dentro de la continuidad, es decir, con respecto a ciertas tendencias dominantes, ya sean de la novela en general o de la novela histórica en particular.(PONS, 1996, p. 82)
Então, a escrita do romance histórico muitas vezes coincide com a resposta a um
período de crise, e sabe-se que a História recente da América Latina está repleta destas crises.
É neste contexto que se gera a literatura latino-americana do século XX, a partir do qual surge
o que os críticos chamam de novo romance, cuja aparição se dá a partir dos anos 60,
74
justamente depois do processo conjuntural que acarretou no triunfo da Revolução Cubana em
1959.
Os autores do novo romance histórico são conscientes, ao manejar os dados históricos,
de que a partir da História canonizada estão realizando um trabalho intertextual e que a
História não é mais verossímil do que a ficção que estão criando, sendo assim, outra forma de
romancear que não é necessariamente portadora de verdades absolutas e herméticas, mas sim,
uma tentativa de estruturar um relato ao redor de uma interpretação que acaba mostrando
apenas um re-significado da História. Em geral, pode-se afirmar que o narrador do século XX
já não percebe o historiador nem como uma testemunha onisciente, nem possuidor de uma
visão absoluta. Isto obviamente não desqualifica o discurso histórico aos olhos do leitor
contemporâneo, mas implica uma leitura mais crítica, que permite uma reavaliação de sua
dimensão.
Muito se escreveu sobre a tênue e polêmica fronteira que há, neste aspecto, entre a
História e a Literatura, apontando sobre as diferenças entre os dois discursos com seus
recursos estilísticos, e as semelhanças no trabalho de construção narrativa que podem existir
entre ambos (cuja delimitação fica ainda mais sutil quando se trata de novo romance histórico,
assim como a intenção de que os fatos narrados sejam tomados como verdadeiros ou não),
como se verá mais adiante. Neste sentido, qualquer autor esbarra no delicado problema
ontológico da categoria da verdade, ou em todo caso, da específica noção de verdade
histórica. Noé Jitrik se questiona:
Pero ¿de qué verdad se trata para la novela histórica? Pues de la que la historia, comodisciplina que tiende a reconstruir los hechos, ofrece para respaldar la novela. O sea que noes cualquier verdad, la científica, por ejemplo, sino una pertinente y fundante, […] una reunión orgánica del pasado.(JITRIK, 1995, p. 11)
Esta visão crítica da História parte do interior da própria disciplina e da filosofia da
ciência, cuja discussão sobre se é possível ou não ser objetivo data da década de 40 e está
75
intimamente ligada com a discussão sobre sua dependência ou não do discurso narrativo. Paul
Ricœur tenta esclarecer que o discurso narrativo é usado tanto para contar acontecimentos
históricos quanto para as histórias de ficção, isto é, “a pesar de las diferencias evidentes que
existen entre el relato histórico y el de ficción, ambos poseen una estructura narrativa común”
(RICŒUR, 1992, p. 83), ambos contam uma série de acontecimentos que se relacionam entre
si. O que narram pode ter natureza diversa, mas a compreensão histórica do devir da
humanidade deve-se precisamente à capacidade narrativa. Pode-se pensar que os fatos têm um
significado fixo e objetivo, mas a sua compreensão ocorre em relação a outro posterior no
tempo, ou seja, é em relação a eventos temporalmente posteriores que se pode reconhecer a
importância de determinados fatos. Tem-se então, uma narrativa elaborada a respeito de um
fato histórico concreto com os dados que o historiador conhece, ou seja, uma frase narrativa35.
O problema desta frase narrativa é que constitui-se uma descrição possível mas não é única, o
que abre uma brecha para interpretações subjetivas dos fatos, pois quando torna o
encadeamento de ações coerentes e legíveis para chegar a uma determinada conclusão, o
historiador pode usar alguns dados e omitir outros, e a partir da sua época, lugar e ideologia
outro historiador usará outros dados que lhe pareçam mais convenientes para decifrar a
História.
Así, pues, la historia se produce, losdiscursos le dan forma, la historiografía los reúne e intenta, de este modo, otorgarinteligibilidad, sino racionalidad, al poder que se sustenta en todo el ciclo. (JITRIK, 1995, p. 82)
Ou ainda, nas palavras de Juan José Saer, ao referir-se ao romance histórico:
no se reconstruye ningún pasado sino que se construyeuna visión del pasado, cierta imagen del pasado que es propia del observador y que nocorresponde a ningún hecho histórico preciso. (SAER apud AÍNSA, 1991, p. 29)
35Uma frase narrativa é “una de las descripciones posibles de una acción en función de aquellos acontecimientos posteriores que desconocían los agentes y que, en la actualidad, conoce el historiador.” (DANTO apud RICŒUR, 1992, p. 90).
76
Uma vez que não se pretende neste trabalho estabelecer as diferenças entre os
discursos historiográfico e literário, basta ressaltar que o primeiro oferece a possibilidade de
verificação documental dos fatos narrados e aparece em menor escala a preocupação com a
linguagem empregada. Já na narração do discurso literário, e pensando mais especificamente
no universo romance histórico, segundo Noé Jitrik a aparente contradição que poderia existir
entre as palavras “romance” e “histórico” proporciona que “estos dos turnos encarnen
dimensiones propias de la lengua misma o de la palabra entendidas como relaciones de
apropiación del mundo". O discurso linguístico do romance histórico se converte em “un
particular conjunto de procedimientos determinados y precisos para resolver un problema de
necesidad estética [...] una articulación que se designa como 'discurso poético’'', ou seja, há a
intenção estética da linguagem no discurso narrativo de ficção. (JITRIK, 1995, pp. 12-13,
passim)
Outro aspecto interessante em relação ao discurso histórico é que os silêncios da
História são provenientes do discurso oficial, o qual geralmente traz a tona a voz do
dominador ou vencedor. No caso de Baccino, uma vez que havia sido calado por uma
ditadura, acabou por construir um texto que aponta para a desconstrução de qualquer História
oficial. Maluco “conviveu” com ele durante todo o tempo de seu aparente silêncio no seu
auto-insílio, e é nesta circunstância que a re-interpretação da história, através do novo
romance histórico, acaba por tomar dois caminhos: a tentativa de perpetuar um modelo, ou
então de convertê-la num instrumento de crítica que se desmistifique a si própria. Assim,
[l]a reescritura de la historia hispanoamericana [...] está marcada por dos fuerzas: la primera[...] es la que lleva a la novela preservar el modelo estructurador/totalizador de un discursohomogéneo (realista o mítico) refuncionalizándolo con el objetivo de "contestar a la verdadcon mentiras". La segunda fuerza [...] convierte a la novela en "un objeto irreverente de supropia teleología" (JITRIK, 1995, p. 29)
77
Neste sentido, a crítica que realiza Maluco é constante: seu narrador Juanillo critica
severamente os cronistas oficiais da viagem, principalmente aquele que esteve presente na
frota, Antonio Pigafetta, como pode-se ver a seguir:
Supe después por aquelPigurina o Pigafeta o cómo se llamase, y que se pasaba los días de brazos cruzadosobservándolo todo sin jamás ensuciarse en nada las manos, como no fuera con la tinta conla que tomaba sus notas, que ése era todo su trabajo, si trabajo puede llamársele a eso (1992: 77)
¿Es tan grave pecado la verdad que así se me castiga? Después de haber sufrido loshorrores sin cuento de aquel viaje, ¿debería aceptar yo sin más, las paparruchas y embustes de vuestros cronistas? (1992: 65).
Seymour Menton em seu livro La nueva novela histórica en América Latina (1993)
demarca este universo do novo romance histórico, considerando que seu surgimento deu-se
em 1979, com El arpa y la sombra, de Alejo Carpentier e El mar de las lentejas, de Antonio
Benítez. Para Menton, os autores do novo romance histórico têm consciência da oportunidade
que têm de fazer revisões críticas do passado histórico até ali sabido e assumido. Assim,
através da exploração crítica da História de seu continente, os autores do novo romance
histórico percorrem as lacunas e encontram os temas ideais para sanar as carências, de forma
a alcançar uma certa distância crítica que tende à ironia, à paródia e até mesmo à sátira,
porque
es justo esa amarga sonrisa la que le permite problematizar y, enla medida de sus alcances, subsanar las imposiciones despóticas de la historia oficial,contradiciendo así los principios de la novela histórica tradicional que ha planteado Lukácsdentro del referido análisis de la novelística de Walter Scott. (GARCÍA RAMÍREZ, 2003, p. 22)
Em relação a isto, Napoleón Baccino Ponce de León afirmou que:
[l]o que pasa es que la libertad, para un escritor que cultiva el género histórico, [...] estájustamente en aquellas lagunas, en aquellos silencios de la historia, que uno puede llenarcon verosimilitud, con seriedad, con rigor intelectual pero que le dejan el margen. Cuandoaparece la documentación es que se recorta el margen de libertad, que es lo que hace elescritor, que le permite desarrollar su propio lenguaje, y se tiene que replegar. (BACCINO apud GOBBI, 1998)
78
Para Menton, o contexto que privou a expressão na América Latina entre os anos 60 e
90 foi também o responsável pelo ressurgimento do romance histórico como uma
interpretação da difícil situação dos países da América Latina. Apesar de não termos
intenções classificatórias, é interessante observar que Maluco pertence ao universo chamado
por Menton de “novo romance histórico latino-americano”, para o qual propõe 6
características, que não necessariamente aparecem de forma simultânea em todas as obras: a
subordinação da reprodução mimética de certo período histórico à apresentação de algumas
ideias filosóficas; a distorção consciente da história mediante omissões, exageros e
anacronismos; a ficcionalização de personagens históricos; a metaficção ou os comentários do
narrador sobre o processo de criação; a intertextualidade; e os conceitos bakhtinianos do
dialógico, do carnavalesco, da paródia e da polifonia (MENTON, 1993, pp.42-46, passim).
Sobre a subordinação do recontar de fatos históricos à apresentação de algumas ideias
filosóficas sobre a história, tem-se uma mudança no enfoque de orientação linguística do
estudo da História: o homem só pode conhecer o mundo através da linguagem. Assim, a
História é vista como um tipo de discurso e não como um suceder de acontecimentos.36A
partir do momento em que o discurso está em grande medida determinado pela “distorção” do
mundo real, também o discurso histórico perde sua objetividade (característica tão cara à
modernidade). Anacronicamente, nosso narrador Juanillo é porta-voz destas ideias. Ele se diz
“gran amigo de la ciencia y enemigo de la magia”, mas ele não acredita na ciência da
História: a questiona constantemente, criticando os grandes cronistas oficiais através de sua
experiência; assim impõe a visão vivenciada pelos que ali estiveram em detrimento da oficial:
Pero a Juanillo toda esa algarabía le resultaba patética. Porque nadie parece ser consciente de lo que festejan. Porque habíamos pasado el límite más allá del cual no habría retorno. Porque el Capitán había vencido, y su victoria era la derrota definitiva del mundo que habíamos dejado allá. El que nos arrancó el viento. (1992: 87).
36Ver WHITE, Hayden. El contenido de la forma: narrativa, discurso y representación histórica. Barcelona: Paidós, 1992.
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Segundo Paul Ricœur (1991), os acontecimentos históricos se reduzem a uma possibilidade de
haver-sido, comprovável por meio de testemunhas do passado, as quais também são um
haver-sido. Nesta medida a história e a ficção se igualam por serem possibilidades de ser ou
de acontecer: ambas são escritas que se podem ler, delas se fazem leituras que envolvem
obrigatoriamente processos de interpretação. Juanillo não apenas expõe a sua leitura dos fatos,
como também se queixa da acomodação da História oficial, ele diz:
Y si el relato puntual y verdadero de nuestras miserias, relato que en un modo falseó vuestro cronista Pedro Mártyr de Anglería para mayor gloria de Su Alteza, así como de las muchas cosas que aquel sagaz caballero vicentino don Antonio Pigafetta calló y enmendó por la misma razón. (1992: 8)
Además, Pedro Mártyr, y el otro, Pigateta o como se llamase, ¿no despacharon ellos en dos párrafos todo este asunto que me lleva a mí tantas páginas? ¿No bastaba acaso con decir que nos atrapó una calma de meses y que se nos acabaron por completo los bastimentos, y pasamos gran hambrura; y luego meter a los vientos de nuevo la flota en marcha hacia su destino?(1992: 205-206)
Além disso, o discurso historiográfico não se desqualifica por completo, se toma como
uma possibilidade, entre muitas. Não é que não haja realidade, mas ela está constituída por
múltiplas perspectivas. A desmitificação da história oficial não se realiza anulando-a
completamente, mas chamando a atenção para as perspectivas individuais.
Conforme exposto anteriormente, as ideias de Peter Burke (1992) são muito
produtivas no que diz respeito a esta análise. A perspectiva escolhida para esta leitura é a do
subalterno, é a história contada por quem a vê de baixo. Em Maluco isto está claramente
representado na cena em que o bufão entra debaixo da mesa da reunião da esfera máxima da
hierarquia dentro da frota, e é capaz não apenas de ouvir o que ali é dito, como de presenciar
uma perspectiva-outra desta situação vivenciada pelos poderosos apenas com a visão de cima.
Em relação a esta significativa imagem, Juanillo interpela diretamente seu destinatário,
dizendo:
Dime, Majestad Cesárea, ¿habéis estado alguna vez en tu vida debajo de una mesa observando los pies de los comensales y siguiendo su conversación? Pues habéis
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hecho muy mal, que no es bueno para un príncipe ver el mundo desde el trono solamente, y a la caterva de aduladores de tu corte a la cara, empolvada y compuesta para la hipocresía. En cambio, debajo de una mesa las cosas se ven de manera diferente. (1992: 129).
A distorção da realidade mediante omissões, exageros e anacronismos é outra das
características citadas por Menton. Por exemplo, em Maluco, Juanillo exerce direitos
totalmente inexistentes em sua época, como por exemplo, muito provavelmente um bufão não
dominaria a arte da escrita a ponto de estar apto a escrever tal relato, e, ao mesmo tempo,
dificilmente um bufão conseguiria fazer chegar às mãos do monarca já aposentado uma carta
de tamanha extensão.
No que concerne à trama, o que é relevante para a História se (re)conta. Alguns
detalhes são alterados, mas sem maiores prejuízos aos fatos narrados pela História oficial. O
particular é que há uma certa indiferença pelos grandes acontecimentos, já que a perspectiva
da narrativa é outra. O tempo é aparentemente linear e retrospectivo, contado desde um
momento presente, muitas décadas depois dos fatos narrados. Porém, há muitas quebras no
relato, no que diz respeito a linearidade do tempo de escrita (inclusive com marcas gráficas ao
longo do texto para indicar esta pausa). E são inseridas seções características da epístola, em
que uma pausa nos fatos narrados serve para estabelecer contato direto com o destinatário
final do texto. A circularidade do tempo aparece no início e no fim do romance, quando os
sobreviventes regressam: tudo se repete, tudo segue igual, apesar de que neste tempo em que
estiveram fora, para eles tudo mudou: as páginas 10-12 / 302-304 são praticamente idênticas.
Os escritores latino-americanos do novo romance histórico não retomam grandes
figuras históricas tal como são no discurso historiográfico tradicional. Ao contrário, aparecem
suas qualidades e também seus defeitos. O Magalhães de Baccino é tão sonhador, ingênuo e
frágil que dificilmente pode-se identificá-lo com o Magalhães que a História oficial nos
passou. Quando Menton fala sobre a postura do novo romance histórico diante da
historiografia e do romance histórico tradicional, é a isto que se refere: evita-se
81
intencionalmente a representação oficial das figuras históricas, ficcionalizando-as. A intenção
é a de humanizar os estereótipos manejados pela História oficial. Esta característica marca
uma diferença importante em relação ao romance histórico tradicional, visto que para Lukács
os protagonistas são personagens comuns: no caso do novo romance histórico latino-
americano, comumente aparecem personagens historicamente relevantes, mesmo que
ficcionalizados.
Os principais personagens que aparecem em Maluco são Fernão de Magalhães, Carlos
V a família real de uma forma geral, além dos demais componentes da alta esfera hierárquica
da tripulação. Alguns dos que aparecem ao longo da narrativa sugerem personagens históricos
anacrônicos, ou pelo menos não pertencentes a esta viagem (por exemplo Colombo, Lope de
Vega, Bolívar, Perón e Evita). Como sua perspectiva é a do bufão, Juanillo pode narrar os
episódios menores em lugar dos grandes eventos, a vida privada em lugar da vida pública. No
romance, essa ficcionalização se dá de duas formas. A primeira, vê-se no caso por exemplo,
de Magalhães, o grande homem histórico não é passado como o grande navegador: ele é
problematizado por meio de diferentes vozes no discurso (a do bufão principalmente, mas
também a dos outros personagens e tripulantes). No início a figura de Don Hernando é “igual
a un dios. Sus armas que reverberan y la capa de terciopelo que cubre sus espaldas y las ancas
de su cabalgadura le dan un aspecto sobrenatural, inhumano” (1992: 19). O que lhe assegura o
ar imortal é armadura, quando a tira, se torna humano e morre (1992: 259-260). Assim, não
apresentado nem como santo, nem como demônio, mas sim uma pessoa de carne e osso. A
segunda, é a desconstrução de hierarquias através do diálogo constante que há no texto entre o
bufão e Carlos V, em que se alternam depreciações e enaltecimentos. Aí evidencia-se a
separação enorme que há entre eles, através do que se vai construindo a imagem do soberano,
mas ao mesmo tempo, uma aproximação entre eles vai surgindo e intensificando-se. Esse
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diálogo, por vezes chega ao ponto de inverter a hierarquia, colocando o bufão num patamar
mais alto que o próprio rei:
Incluso me he llegado a preguntar si vosotros los reyes cagáis, si con toda vuestra majestad os ponéis en cuclillas sobre un cubo y hacéis fuerza, si os quitáis la capa de armiños y las sedas y terciopelos por vosotros mismos, o si un paje tiene tal cometido y el honor adicional de limpiaros el culo, y si hay en los palacios un lugar destinado a tales menesteres, todo oro y esencias. (1992: 103)
E, em seguida, recomenda:
Yo por ejemplo, cuando voy a la latrina quedo tan en paz conmigo mismo como si hubiera asistido a una misa. Pero como todo en la vida, hay que saber hacer las cosas para sacar de ellas el mayor provecho. Yo, para seguir con el mismo ejemplo, cuando mis tripas comienzan a cantar, sé lo que vendrá, pero no me apuro por hacer más intensa la sensación de alivio luego. Si por el contrario, eres constipado de vientre, mejor para los negocios de estado y para tus gobernados, porque en cuclillas o sentado en el cubo, mientras aguardas el desenlace, verás las cosas muy claras y tomarás decisiones que fuera de la latrina jamás podrías tomar. (1992: 104)
Nesta passagem, com muita ironia e tratando Calos V de “tú”, Juanillo inverte a hierarquia,
igualando-se a ele e em certo ponto superando-o, já que está apto (por ser bufão) a lhe
aconselhar sobre algo que julga que o rei não tenha conhecimento. Além disso, trata-se de um
assunto escatológico, porém, o bufão julga-se em condições hierárquicas de falar sobre isso
com o rei.
Mais uma passagem na qual Juanillo põe em cheque o poder do rei é “En fin, don
Carlos-Carlitos; ya nada se puede hacer. Ni tú con todo el poder que tienes puedes volver el
tiempo astrás, así que ya ves, ¿de qué sirve ser rey?” (1992: 266) É interessante notar que o
narrador se utiliza de uma mudança constante na forma de tratamento ao rei, variando da
formalidade irônica à informalidade íntima, dependendo de sua intenção no momento. Nesta
última passagem, pode-se considerar que ao chamar Carlos V de don Carlos-Carlitos, há uma
alusão anacrônica ao personagem Carlitos, de Charles Chaplin, visto como um palhaço
atrapalhado, sem poderes naquele momento, mesmo depois de ter sido “O grande ditador”.
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No novo romance histórico, não se deixa de lado a História nem se desprezam seus
postulados, o processo é de relativizar esta verdade, levando-se em conta que a própria
História é o resultado de um trabalho de escrita que está muito distante de ser a verdade em
termos absolutos. O historiador constrói sua visão do passado a partir dos documentos que
possui sobre este momento histórico, e acaba preenchendo certas lacunas com teorias do que
possivelmente poderia ter ocorrido. Estas teorias constituem-se em verdades relativas e os
autores do “novo romance histórico” aproveitam-se desta “brecha” para fazer lembrar que a
ficçãopode não ser menos verossímil.
Como já mencionado, para Linda Hutcheon (1991), uma das formas que caracterizam
a pós-modernidade na ficção é a metaficção historiográfica. A estratégia de subversão da
história através da ironia e não da rejeição, permite um retorno da história não nostálgico,
sendo uma reavaliação crítica, um diálogo irônico com o passado da arte e da sociedade,
atuando dentro das convenções, mas para subvertê-las. Em Maluco tem-se um narrador que é
um contador de histórias, o que proporciona o surgimento de histórias dentro da história, e
assim, a História da expedição se insere na história da escrita da crônica e por sua vez, do
romance.
São muitas as relações intertextuais que esta obra apresenta tanto com o corpus
literário anterior, quanto com os escritos da História, no qual joga-se não apenas com outras
obras literárias, mas também com gêneros literários e com as fontes historiográficas. Em
Maluco, o maior desses diálogos sem dúvida é com a obra de Pigafetta, é “uma espécie de
contra-diário de Pigafetta” (COUTINHO, 1992, p. 7). Porém, há muitos outros, como por
exemplo, referências bíblicas, referência à mitologia greco-romana, à novela picaresca, à
Divina Comédia, Dom Quixote (com o personagem chamado Alonsito Quijano). Toda esta
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intertextualidade colabora para trazer à tona diferentes concepções de mundo, que nunca se
descartam ou se aceitam por completo37.
Os conceitos bakhtinianos do dialogismo, do carnavalesco, da paródia e da polifonia
constituintes da última característica do “novo romance histórico latino-americano” proposto
por Menton, aparecem como consequências da mudança do foco da narrativa, possibilitando a
emergência de uma série de outras vozes no texto, que adquirem o poder de contar as suas
experiências através do bufão. Os conceitos de paródia e de carnavalesco relacionam-se
diretamente com as ideias de Linda Hutcheon: a autora propõe que é através da ironia e da
paródia que a desconstrução da história oficial ocorre na metaficção historiográfica. Tal
característica se potencializa com a carnavalização que, em grande medida está representada
pela figura do bufão, narrador e protagonista de Maluco. Segundo Bakhtin, as figuras do
trapaceiro, do bufão e do bobo vêm da literatura medieval para o romance contemporâneo,
assumindo aí uma função bastante especial.38
Em Maluco pode-se considerar o dialogismo em muitas instâncias: todo o texto é um
diálogo, uma vez que trata-se de uma epístola que considera ativamente as reações do seu
receptor; o relacionamento de Juanillo com o capitão Magalhães está sempre marcado pelo
dialógico; as muitas vozes que se sobrepõem igualmente marcam o caráter dialógico.
O carnavalesco atravessa toda a obra, considerando-se a ênfase que é posta nas
funções do corpo, escatologicamente passando do sexo ao intestinal, pois “el conde del
Maluco inventa historias, licenciosas las más” (1992: 34), nas quais aparecem tetas, nádegas,
e relações sexuais que causam enorme entusiasmo entre os marinheiros da frota, de tal forma
“las gracias de tu Juanillo hicieron más por la empresa que la elocuencia y la pasión de los
capitanes” (1992: 33). Juanillo atribui um poderoso papel ao ato de evacuar ao longo de toda
sua narrativa, sendo esta uma temática bastante constante em Maluco. No momento em que 37 Sobre a intertextualidade, principalmente com a Picaresca, veja-se mais adiante, no capítulo “O intelectual e o bufão”. Ver também FILER (1994-a e 1994-b). 38 Idem nota 36.
85
Juanillo ouvia secretamente os planos dos capitães, é arrebatado por uma incontrolável dor de
barriga que o obriga a retirar-se: “Enterarme de los planes y empezarme los retortijones fue
todo uno. Oír que el capitán consultaba a Andrés como adivino y no como cosmógrafo, y no
poder contenerme fue todo otro.” (1992: 104). Ainda sobre o assunto, repetimos a passagem
já citada na qual Juanillo afirma: “Yo por ejemplo, cuando voy a la letrina quedo tan en paz
conmigo mismocomo si hubiera asistido a una misa” (1992: 104). Estes são apenas alguns
exemplos, sendo que o escatológico aparece constantemente, assim como todas as menções às
necessidades do corpo, incluindo a fome e as doenças contraídas ao longo da viagem.
3.2 A REPRESENTAÇÃO DO TRAUMA EM TEMPOS DE DITADURA
Feito um apanhado das tendências literárias contemporâneas, assim como da
influência da história na literatura, resultando num tipo de romance que particularmente nos
interessa chamado de novo romance histórico latino-americano, passemos à análise de como
estas tendências se refletiram durante o período ditatorial (e pós-ditatorial), no que concerne à
representação do conteúdo traumático, o qual vem a ser o caso de Maluco.
Entende-se o trauma como a “resposta a um evento ou eventos violentos inesperados
ou arrebatadores, que não são inteiramente compreendidos quando acontecem, mas retornam
mais tarde em flashbacks, pesadelos e outros fenômenos repetitivos.” (CARUTH in
NESTROVSKI & SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 111) A partir do contexto pós-ditatorial,
em que apesar do fim do regime autoritário, houve uma mudança socio-cultural que passaria a
fazer parte constitutiva do sujeito latino-americano, pode-se pensar que a arte e a literatura
correspondem a um estatuto privilegiado no que diz respeito à manifestação do conteúdo
traumático. Bernardo Carvalho (in NESTROVSKI & SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 237)
afirma que a catástrofe costuma trazer em si um problema de representação, pois “quanto
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mais ostensiva e direta tenta ser esta última, menos parece dar e render conta do horror que
pretende representar”, como se “a representação do horror o anulasse ao insistir na tentativa
inútil de reproduzi-lo.”
Neste sentido, a inscrição escrita alegórica é uma estratégia representativa
fundamental na América Latina no que concerne à expressão de tal conteúdo traumático. A
escrita alegórica caracteriza-se pelo grande leque de possibilidades significativas do luto39 e
da ruina. Segundo Walter Benjamin, tem-se que
[a]s alegorias são, no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas. [...] O que jaz em ruínas, o fragmento altamente significativo, a ruína: é esta a mais nobre matéria da criação barroca. O que é comum [...] é acumular incessantemente fragmentos, sem um objetivo preciso, e, na expectativa de um milagre, tomar os estereótipos por uma potenciação da criatividade. (BENJAMIN, 2004, p. 193)
De acordo com Idelber Avelar40 (2000, p. 8), “el duelo es la madre de la alegoría” e
daí vem o vínculo “no simplemente accidental, sino constitutivo, entre lo alegórico y las
ruinas y destrozos: la alegoría vive siempre en tiempo póstumo”. Assim, uma importante
chave para entender a alegoria é conceito de luto. Freud em “Luto e melancolia” afirma que
[o] luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante. (FREUD, 1976, p. 275)
Em Maluco pode-se pensar em um luto duplo, um no plano literal e outro no plano
real. No âmbito literário, o narrador perde seu direito de narrar como profissão e por isso sua
participação na viagem é anulada, invalidando assim sua identidade, da qual de certa forma
depende sua sobrevivência. Na esfera objetiva da realidade, após o período ditatorial, Baccino
(assim como outros intelectuais de seu tempo) começa a recuperar seu espaço de trabalho
39 Em espanhol, a palavra usada é duelo, a qual se refere a um estado de luto ou agonia profunda, e talvezsua carga semântica seja mais completa. Porém, na edição brasileira, a palavra é traduzida como luto, de acordo com a tradução do conceito freudiano em “Luto e Melancolia”, e esta também será nossa opção ao longo desta dissertação. 40 A edição usada como referência é a chilena, de 2000. Há também uma edição brasileira desta obra: Alegorias da derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho do luto na América Latina. Trad. Saulo Gouveia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
87
perdido, assim como o de Juanillo, mas não ocupa mais o mesmo lugar que antes, uma vez
que este foi alterado pelo processo político e pelo crescente papel do mercado em todos os
níveis sociais, inclusive o da produção literário-intelectual41.
No luto, precursor da alegoria, a inscrição escrita (cripta) apresenta-se em destaque:
designa a persistência fantasmagórica de um luto irresoluto. Em um contexto pós-ditatorial, a
cripta é muito comum sendo a chave de uma teoria do alegórico, uma vez que possibilita a
materialização espectral da palavra traumática(AVELAR, 2000, p. 9). De acordo com Arthur
Nestrowski e Márcio Seligman-Silva (2000, p. 7), a contradição que define uma das questões
mais centrais da literatura atualmente é que “a representação depende de uma catástrofe (sem
catástrofe não há o que representar), mas a catástrofe dificulta, ou impede a representação”.
A explicação mais comum para a proliferação de tantos textos alegóricos durante as
ditaduras é que sob condições de medo e censura, os escritores viam-se forçados a usar
metáforas, formas indiretas e alegorias. No entanto, esta é uma explicação extremamente
redutora e simplista. Segundo Idelber Avelar,
la postdictadura pone en escena un devenir-alegoría del símbolo. En tanto imagen arrancada del pasado, mónada que retiene en sí la sobrevida del mundo que evoca, la alegoría remite antiguos símbolos a totalidades ahora quebradas, datadas, los reinscribe en la transitoriedad del tiempo histórico. Los lee como cadáveres. (AVELAR, 2000, p. 10)
As ditaduras podem ser consideradas como mediadoras da transição de um período de
predominância estatal a outro, no qual o mercado prevalece. Em termos de produção literária
na América Latina, as ditaduras representaram um corte na singular situação da representação
política pela literatura do boom dos anos 60, produtor de grandes símbolos identitários.
Ricardo Piglia em La ciudad ausente (1993) postula uma teoria do esquecimento pós-
ditatorial, na qual o papel da ficção seria o de recuperar a narrabilidade que pudesse
reconstruir e restituir a memória. Assim, a possibilidade de contar histórias poderia restaurar a
41 A situação de trabalho de luto vivida pela intelectualidade latino-americana será explorada mais adiante.
88
memória porque a experiência pode tornar-se apócrifa, quer dizer, ser relatada falseadamente,
como se pertencesse a outros.
Neste processo apresentam-se, segundo Piglia, duas forças contrárias: a movimentação
do passado para o projeto de um presente (recrutamento que traz o passado na direção do
presente) versus o impulso do presente para trás, de modo que transforma o passado não
realizado na alegoria mesma de um presente em crise e que portanto, "retro-traz" o presente,
fazendo-o reconhecer-se no rosto do passado falido.
A chave de interpretação proposta por Idelber Avelar (2000, pp. 16-17, passim) para
En estado de memoria42, de Tununa Mercado(1990), será a mesma que seguiremos em nossa
interpretação de Maluco. Avelar afirma que este texto fundamental da pós-ditadura latino-
americana tenta processar a experiência do exílio, reativando um compromisso intenso (ainda
que problemático)de refletir sobre o estatuto abismal da escrita durante o luto. O resultado
deste esforço de compensação da patologia pós-ditatorial, que não aceita mecanismos de
substituição, é que esta literatura
se arma de una elaborada red alegórica en la cual se piensa el duelo como condición de la escritura y, que a la vez, la escritura como condición de una virtual resolución – siempre utópica, siempre aplazada, no más que vislumbrada – del trabajo postdictatorial del duelo. (AVELAR, 2000, p. 17)
Neste caso, a irredutibilidade da derrota é o fundamento da escrita literária: o luto e a narração
são coextensivos, de forma que “llevar a cabo el trabajo del duelo presupone, sobre todo, la
capacidad de contar una historia sobre el pasado” e, por outro lado
sólo ignorando la necesidad del duelo, sólo reprimiéndola en un olvido neurótico, puede uno contentarse con narrar, armar un relato más, sin confrontar la decadencia epocal del arte de narrar, la crisis de la transmitibilidad de experiencia.43 (AVELAR, 2000, p. 17))
42 Obra recém traduzida pelo próprio Idelber Avelar. MERCADO, Tununa. Em estado de memória. Rio de Janeiro: Record, 2011. 43 Vale a pena relembrar a ideia de perda para a qual se chamou atenção anteriormente.
89
Avelar define o pós-ditatorial como um tempo de euforia do mercado editorial em que
o que havia de popular é domesticado, converte-se em instrumento de implantação do
neoliberalismo,
en que pactos y concentraciones congregan la extrema derecha y socialistas “renovados” alrededor de una indistinguible alabanza de las virtudes de la sustentabilidad monetarista y de la potestad del mercado, (AVELAR, 2000, p. 18)
de modo que estes tempos preferem não serem designados de “pós-ditatoriais” mas sim,
optam por denominações que não sinalizem sua procedência e sim sua atualidade, sua mera
presença – tempos de “democracia”, tempos de “governabilidade”, tempos de “estabilidade”.
Um estudo da produção simbólica do presente desde o ponto de vista de sua condição pós-
ditatorial traz a marca do intempestivo44, o qual aspira ver no presente o que excede a este
presente – o suplemento que o presente optou por silenciar. Este olhar busca vislumbrar no
que concerne ao presente, o que a ele, presente, lhe falta. Atualmente, a chave desta disjunção
– a sobra suplementar apontando na direção do que se sente falta – seria sua condição pós-
ditatorial, seu fantasmagórico luto irresoluto.
Num contexto em que a lógica de mercado absorve inclusive a documentação dos
desaparecimentos e torturas políticas como mais um artigo do passado a venda, não se deve
acreditar em lugares da enunciação não cooptáveis. Porém, é possível pensar em certa
experiência literária própria do imaginário das transições democráticas.
Se o objetivo é interrogar sobre o lugar do literário na era das ditaduras, seria preciso
começar por uma reavaliação do legado estético, cultural e político do boom hispano-
americano, hegemônico durante os anos 60 e parte dos 7045. A leitura das condições de
44 O intempestivo nietzscheano, designa aquilo que se move contra o tecido do presente, “actuando contra nuestro tiempo y por tanto sobre nuestro tiempo y, se espera, en benefício de un tiempo venidero” (NIETZSCHE apud AVELAR, 2000, p. 17) 45 Segundo Idelber Avelar (2000, p. 21), através de uma leitura de textos de Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, Mario Vargas Llosa,Julio Cortázar e Emir Rodríguez Monegal, pode-se estabelecer na literatura do boom algumas conexões entre uma série de recorrências retóricas: 1) sistematicamente posicionar sua própria literatura como uma consequência definitiva da modernidade estética da América Latina, em uma narrativa evolucionista
90
possibilidade do boom encontram-se na modernização do campo intelectual e literário, sujeito
a uma secularização e mecanização que põem em crise a aura46 religiosa do latino-americano
letrado. O boom realizou uma tentativa de reestabelecer a aura dentro de um contexto pós-
aurático, no qual a própria modernização que havia demolido mitos, compôs uma nova,
sedutora e fetichista mitologia47. Esta euforia reforçou a certeza de que velhos problemas e
dicotomias haviam sido resolvidos. Emir Rodríguez Monegal, em Narradores de esta
América (1969) afirma que mais do que uma mudança temático-quantitativa na literatura do
rural ao urbano, havia uma associação sistemática do rural ao simplismo e ao primitivismo
pré-artístico. A reação do boom contra o romance da terra se elaborou através de uma
identificação entre o artístico e o urbano, por oposição a uma ruralidade que “pocas veces
consigue alzar su creación al plano puramente literario” (MONEGAL, 1969, p. 41).
Idelber Avelar sustenta que esta associação está pouco relacionada às preferências de
cenário, caracterização, ou qualquer outro assunto de natureza estritamente narrativa. No
imaginário discursivo do boom, o urbano tornou-se sinônimo do universal.
Al identificar la literatura rural con el pasado, uno se convencía de que el pasado se había muerto, de que éramos todos parte de la misma aldea global y de que la dolorosa distinción entre centro y periferia por fin se había borrado. (AVELAR, 2000, p. 22)
na qual o presente surge como a inevitável superação do passado falido; 2) o estabelecimento de uma genealogia seletiva da produção literária anterior da América Latina que culmina, teleologicamente, na incorporação do tradicional ao cânon estético ocidental; 3) a repetida associação do rural ao passado primitivo, pré-artístico e, em termos mais literários, naturalista; 4) a combinação de uma retórica “adânica” (a retórica do “pela primeira vez”), com uma vontade edípica, segundo a qual o pai europeu estaria superado, rendido ao fato de que seus filhos hispano-americanos se tornaram donos de sua coroa literária. 46 Para Walter Benjamin em “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, a aura define-se como “única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que ela possa estar” (2000, p. 229), sendo característica de um valor residual de culto da obra de arte, extinto apenas com a chegada das formas modernas de reprodução técnica. 47 As primeiras e mais consistentes formulações desta nova mitologia estão em La nueva novela hispano-americana, de Carlos Fuentes, no qual o boom aparece como a culminância de um processo de amadurecimento da literatura hispano-americana. A estratégia discursiva assinalada por Fuentes como fundamental é a construção de uma genealogia na qual o presente invariavelmente toma a forma de um triunfo sobre o passado fracassado: o presente triunfante contra a barbárie passada. Fuentes postula uma complexidade progressivamente alcançada e a superação gradual de erros prévios, como a retórica modernizante, desenvolvimentista, que anuncia uma grandiosa atualização. Ver AVELAR, 2000, pp. 18-30, passim e FUENTES, 1972, pp. 13-36, passim.
91
Ou seja, recorrendo novamente às palavras de Monegal tem-se que “cada gran ciudad de la
América Latina [...] aspira tener su Balzac, su Galdós, su Proust, su Joyce, su Dos Passos, su
Moravia, su Sartre” (MONEGAL, 1969, p. 11).Assim, dentro das condições discursivas
oferecidas pelo boom, era possível que Buenos Aires ou Montevidéu pudessem ter seu
Balzac, mas o mesmo não era válido para cidades menores e mais rurais.
Dessa forma, pode-se falar do boom como formação discursiva48 de uma cultura
universal que vinha de uma suposta “universalidade linguística”, indo além das diferenças
sociais e econômicas. Mario Vargas Llosa também aponta para a concepção de modernização
cultural, entendida como universalidade finalmente conquistada:
[…] cuando tenían a Proust y a Joice, los europeos se interesaban apenas o nada por Santos Chocano o Eustasio Rivera. Pero ahora que sólo tienen a Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute o Giorgio Bassani, ¿cómo no volverán los ojos fuera de sus fronteras en busca de escritores más interesantes, menos letárgicos y más vivos? Busquen ustedes, en la literatura europea de los últimos años, un autor comparable a Julio Cortázar, una novela de la calidad de El siglo de las luces, un poeta de voz tan profunda y subversiva como la del peruano Carlos Germán Belli; no aparecerán por ninguna parte. (VARGAS LLOSA apud MORENO, 1972, p. 71).
Segundo Avelar, assim expressa-se o “impulso edípico do boom” que complementa o seu
caráter originário:
[m]atamos al padre europeo al vencerlo bajo sus propias reglas; le señalamos su cuerpo moribundo mientras él reconoce que la corona tiene un nuevo dueño. La victoriosa narrativa edípica cuenta la historia de un padre muerto leyendo los libros escritos por su hijo. Como sucede con todo Édipo triunfante, sin embargo, no todas las cuentas están saldadas; el padre nunca muere tal irreversiblemente como se cree. Siempre hay un momento restitutivo en que regresa el fantasma del padre, el espectro que se creía conjurado. (AVELAR, 2000, pp. 23-24)
É importante observar a operação retórica através da qual o diagnóstico de uma
disparidade entre o social e o literário engendra uma operação substitutiva, mediante a qual o
segundo supostamente compensaria o primeiro. O boom representa o momento crucial na
48 Pode-se pensar em formação discursiva, uma vez que tal premissa de universalidade permeou a gama discursiva do boom em sua totalidade: desde a direita (E. Rodríguez Monegal e O. Paz), até a extrema esquerda (A. Carpentier e J. Cortázar), de forma que certas condições necessárias remontam ao arquivo de enunciados possíveis, indo além das polêmicas entre seus membros. Sobre o conceito de formação discursiva, ver FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. São Paulo: Forense Universitari, 2008.
92
profissionalização do escritor latino-americano (RAMA, 1985, pp. 293-296, passim).
Segundo Idelber Avelar (2000, p. 24), pela primeira vez na América Latina uma geração
inteira de escritores têm como seu meio de sobrevivência a escrita literária. Esta
autonomização – assim como a consolidação institucional e discursiva acarretada por ela – é o
momento dos triunfos ideológicos a respeito do poder concientizador da literatura49. Beatriz
Sarlo (1988, p. 96) menciona uma continuidade ilusória entre estética e política, que se
configura paradoxalmente: o progresso e a liberação – a atualização – encarnam em egos
livres, pré-kantianos, pré-modernos, leitores que escolhem por livre arbítrio o que querem ou
não querem ler.
Por mais que já houvesse algum indício de autonomização estética na América Latina,
o conceito de livro como mercadoria desauratizada (reduzida a puro valor de troca) não era
inevitável para a produção literária anterior ao boom. A desauratização foi contemporânea à
autonomização completa do campo literário. Ao tornar-se autônomo, o escritor latino-
americano sofre um deslocamento: já não é primordialmente um funcionário estatal, carreira
que muitos destes escritores haviam encontrado como forma de sobrevivência desde as
independências nacionais. Esta profissionalização indicava uma separação de esferas sociais a
partir do qual o estético passava a ser um campo socialmente autônomo, e ao mesmo tempo
passava a sujeitar-se às pressões e leis do mercado. Neste contexto, não se pode imaginar a
literatura como algo que não fosse trabalho. O êxito do escritor latino-americano implicou em
uma perda – o preço a se pagar pela autonomia social foi o desaparecimento da aura:
En medio de la dramática necesidad de arreglárselas en una modernización galopante, yacía la pérdida de la cualidad aurática de lo literario. [...] El boom percibe la decadencia del aura religiosa de lo estético y responde con una estetización de la política o, más concretamente, con una sustitución de la política por la estética.(AVELAR, 2000, pp. 25-26)
49 Ángel Rama (1985, p. 273) cita Julio Cortázar: “¿qué es el boom sino la más extraordinaria toma de conciencia por parte del pueblo latino-americano de una parte de su propia identidad? […] Todos los que [...] califican el boom de maniobra editorial, olvidan que el boom no lo hicieron los escritores, sino los lectores, y ¿quiénes son los lectores, sino el pueblo de América Latina?”
93
A dissolução da aura concretizada pelo desenvolvimento das forças de mercado e da
profissionalização deu origem a um paradoxo: o mesmo momento em que a literatura fez-se
independente como instituição, quando realiza-se por completo em sua autonomia, coincide
com o colapso irreversível de sua tradicional razão de ser no continente. Enquanto a literatura
historicamente havia se desenvolvido à sombra de um precário aparato estatal, agora um
Estado cada vez mais tecnocrático dispensava seus serviços. Se esta literatura sempre havia
sido um instrumento central na formação de uma elite letrada e humanista, agora esta elite a
deixava de lado por teorias econômicas mais eficientes (e importadas). As faculdades de
literatura e filosofia tinham sido meios de reprodução ideológica, mas agora a ideologia tinha
a máscara neutralizadora da tecnologia moderna. Neste sentido, o boom tentou dar conta da
impossibilidade das elites, por causa da própria modernização, de instrumentalizar a literatura
para o controle social, uma vez que a produtividade disciplinadora da literatura havia sido
perdida. Segundo Idelber Avelar (2000, p. 26), “el boom no es otra cosa que luto por esa
imposibilidad, es decir, luto por lo aurático”, que funciona como um processo incompleto de
luto, que por razões estruturais não pode ir além do que Freud chamou de “trabalho de
luto”(FREUD, 1974, pp. 275-291, passim).A maturidade da ficção latino-americana em meio
a um continente economicamente atrasado só era possível justamente porque estava atrasada;
era precoce porque era anacrônica em relação à corrida tecnológica do continente:
El tono celebratorio del periodo sutura entonces esa fractura a través de una operación sustutiva que intenta compensar no sólo el subdesarrollo social, sino también la pérdida del estatuto aurático del objeto literario. Duelo en triunfo, imaginariamente enmascarando la degeneración: de ahí el tono retumbante, apoteósico, de la escritura del boom. (AVELAR, 2000, p. 27)
Em outras palavras, a estrutura da compensação está emoldurada pela relação da literatura
com a modernização. Esta ânsia compensatória é visível tanto nos textos crítico-teóricos do
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boom, quanto em sua ficção50, e acaba por (re)inventar, mais do que uma novidade radical,
tentando recuperar o momento primeiro em que a escrita inaugura a história, em que nomear
as coisas equivale a (re)criá-las. Usando a expressão de Enrique Pupo-Walker (1982), esta
“vocação literária” fez com que a nova narrativa latino-americana declarasse que
su propia imagen parte de un todo representado por sí misma a través de un acto de con-fusión. La “nueva narrativa” logró [...] con-fundirse con una tradición que ella misma inventó.(AGUILAR MORA, in RAMA, 1981, p. 241)
A insistente tematização da escrita nos romances do boom, mais que mero jogo
linguístico, tem o papel de concretizar uma operação retórico-política: um escritor-demiurgo,
ao fundar a polis através de sua escrita, escapa do ciclo latino-americano de repetições socio-
políticas. E a literatura se converte no terreno privilegiado desta substituição.
De acordo a Idelber Avelar (2000, pp. 25-27, passim), o boom hispano-americano
lutou para restaurar o aurático na contra-mão de um mundo secular e modernizado. A
impossibilidade de tal recuperação ativou aquilo que Idelber Avelar chama de economia do
luto, a qual encontra-se num cenário em que há cada vez mais integração com o mercado
mundial, ao mesmo tempo em que se instaura definitivamente a profissionalização e
autonomização da literatura, e a aura letrado-religiosa da qual eram dotados os escritores
parecia fadada ao fim. Porém, a necessidade da aura foi mantida viva devido ao caráter
desigual e paradoxical da modernização e da autonomização no continente, já que o próprio
projeto de modernização narrativa era paradoxalmente dependente de uma relação religiosa
50Cien años de soledad, de Gabriel García Márquez, Los pasos perdidos, de Alejo Carpentier e La casa verde, de Mario Vragas Llosa convergem ao apresentar alegorias de um fundador demiurgizado, operando para além do sistema de determinações sociais, fundando a polis através da sua escrita. Esta talvez seja a alegoria mais apropriada para o boom, emblematizada repetidamente na ficção do período, desde Melquíades, o escriba de Cien años de soledad, ao narrador protagonista de Los pasos perdidos – são imagens de escritores-fundadores que oferecem um contraponto ficcional às auto-representações canonizadas nos escritores críticos do boom.
95
com a escrita. A aura já não era possível, mas estruturalmente não podia desaparecer. A
literatura passa a ser postulada como o depósito desta aura fantasmagórica.51
Pode-se dizer que não há incompatibilidade entre o boom como discurso de identidade
latino-americana e o boom como entrada desta literatura no mercado global. A mitologia do
boom em um mundo pós-aurático havia feito da literatura o lugar privilegiado da identidade,
pois o luto pela aura em um mundo pós-aurático fez da literatura o espaço no qual podiam
coexistir e reconciliar-se as fábulas de identidade e as teleologias da modernização. Nenhum
modelo econômico disponível podia harmonizá-las, mas sim o podia esta literatura, que era
irredutivelmente hispano-americana e ao mesmo tempo moderna. Segundo Idelber Avelar,
[e]l boom, más que el momento en que la literatura latino-americana“alcanzó madurez” o “encontró su identidad” […] puede definirse como el momento en que la literatura latino-americana, al incorporarse al canon occidental, formula una compensación imaginaria por una identidad perdida, identidad que, desde luego, sólo se construye retrospectivamente, es decir, sólo tiene existencia en tanto identidad perdida. Como en el Nachträglichkeit freudiano, la memoria del trauma es el verdadero trauma, no hay otro proceso primario sino la ficción producida retrospectivamente por el secundario. La literatura ofrecía esa ficción retrospectiva, narrando modernamente una esfera premoderna, prelapsaria. (AVELAR, 2000, p. 29)
A possibilidade desta compensação – de reinscrever a identidade perdida, o luto pela
aura dentro de uma teleologia modernizadora – recebeu seu fechamento histórico com as
ditaduras militares dos anos 60, e este é o motivo pelo qual o boom começa a sua decadência
de forma coincidente à chegada dos regimes militares.
Os paradoxos abordados não desapareceram, mas foram obrigados a “resolver-se “de
maneira extremamente violenta. Ao confrontar uma crescente pressão popular, as elites latino-
americanas, em vários momentos e em diferentes ritmos, foram abandonando os projetos de
desenvolvimento nacional auto-suficiente para aderir de uma vez por todas como sócios
menores ao capital multinacional. A vitória dos militares aqui no Brasil em 1964 inaugurou
51 Esta pode ser a explicação pela tamanha irritação manifestada pelos escritores do boom diante da menção do seu sucesso mercantil: entre outras coisas, o mercado representa o anacronismo da aura, a dissolução da unicidade imaculada da arte, o elo entre a produção industrial e a produção estética.
96
este período histórico, abrindo uma transação continental que não se concretizaria até 1976,
com o golpe de Estado na Argentina. A queda de Salvador Allende em 11 de setembro de
1973 emblematiza, alegoricamente, a morte do boom, porque sua vocação histórica, ou seja, a
tensa reconciliação entre modernização e identidade, passou a ser irrealizável. Depois dos
militares já não há modernização que não implique necessariamente na integração ao mercado
global capitalista.
Por conta daquilo que José Joaquín Brunner (apud AVELAR, 2000, p. 46) chama de
“cultura democrática”, a única possibilidade imaginada para a pós-ditadura é a transição
democrática, ou seja, a experiência simbólica da democracia é convertida no eixo central de
uma memória coletiva que resiste a desaparecer, de forma que segue sendo almejada, mesmo
quando o autoritarismo se instaura. Então, a literatura após os golpes militares seguiu outro
caminho que incorpora a (des)esperança da cultura democrática. Além disso, ao mesmo
tempo, tanto a necessidade imperativa do luto causado pela experiência traumática em curso
quanto a necessidade de representar o irrepresentável, produzem uma profunda crise na
estrutura da própria representação (REATI apud AVELAR, 2000, p. 42, passim).
Idelber Avelar (2000, pp. 51-65, passim) faz um levantamento desta mudança de rumo
da representação ao longo do período ditatorial no Brasil, no Chile e na Argentina. Este
panorama traçado a partir da experiência destes três países, exemplifica o que, em maior ou
menor medida, aconteceu no restante do Cone Sul, inclusive no Uruguai, para falar mais
especificamente de nosso lócus de interesse nesta pesquisa. Avelar fala de um “giro
naturalista” e de um “imperativo confesional” no que diz respeito à literatura deste momento.
Por exemplo, no Brasil, o romance-reportagem dos anos 70 encheu imaginariamente o
vazio de informação na sociedade brasileira durante um período em que os meios de
comunicação foram fortemente censurados. Segundo Flora Süssekind (apud AVELAR, 2000,
p. 52), sua função era oferecer uma compensação simbólica, proporcionando também uma
97
dimensão afetiva. Numa sociedade civil que enfrentava uma derrota desmoralizante, a
literatura se encarregava de garantir que a verdade estivesse do “nosso” lado. Ao inscrever-se
na retórica maniqueísta da ditadura, o naturalismo não apenas abriu mão de converter-se em
espaço de reflexão sobre os erros da resistência ou as concepções míticas do nacional-popular
no campo da oposição, mas também assumiu sua principal fraqueza, que residia na
incapacidade de lidar com a perda.
A proliferação de narrativas confessionais fez-se evidente em todo o Cone Sul. Este
gesto, tão necessário quanto insuficiente, facilita o não esquecimento da verdade factual, a
qual no entanto, não corresponde à verdade da derrota, pois esta não pode surgir de uma
linguagem que já tenha incorporado a experiência que narra uma reflexão sobre a própria
derrota. Segundo Avelar, a verdade da derrota, que corresponde à experiência latino-
americana das últimas décadas (e até séculos), exige uma narrativa que não se limite ao
convite à solidariedade – tropologia retórica na qual predominantemente o texto testemonial
da época transformou-se (MOREIRAS apud AVELAR, 2000, p. 57).
Além do retorno ao naturalismo e aos testemunhos, a narrativa da ditadura apresentou
uma proliferação de
grandiosas máquinas alegóricas que intentaban elaborar mecanismos de representación de una catástrofe que parecía irrepresentable. [...] Estas novelas son microcosmos textuales de una totalidad que ahora sólo se podía evocar de forma alegórica: en general, retratan un cierto intervalo, un período circuscrito en que la historia se suspende, y el tiempo secular, progresivo, da lugar a experiencias que parecen eternizadas, desprovistas de progresión, como si el orden reinante no fuera otro que el de la naturaleza. (AVELAR, 2000, p. 57)
De acordo com Walter Benjamin, a alegoria seria este estranho entrecruzamento de
natureza52 e história, na qual esta se representa como paisagem primordial petrificada, ou seja,
como história natural, contemplada como a cristalização de suas ruínas (BENJAMIN, 2004, p.
52 O termo “natureza” para Benjamin representa um processo imanente de putrefação. “A palavra ‘história’ está gravada no rosto da natureza com os caracteres da transitoriedade. A fisionomia alegórica da história natural [...] está realmente presente sob a forma de ruína. [...] Assim configurada, a história não se revela como processo de uma vida eterna, mas antes como o progredir de um inevitável declínio.” (2004, pp. 192-193)
98
192-201, passim). A alegoria é uma forma desesperada de expressão estética própria da
desesperança. O florescimento da alegoria nos tempos de reação política, segundo Idelber
Avelar (2000, p. 58), nada teria a ver com a difundida explicação de que para escapar da
censura, a literatura construiria formas alegóricas de dizer coisas que em outras condições
poderiam ser “diretamente” expressas. Avelar afirma que a alegoria é a face estética da
derrota política, não graças a algum agente externo, mas sim porque as imagens petrificadas
das ruinas, em sua imanência, acarretam na única possibilidade de narrar a derrota. As ruínas
seriam a única matéria-prima que a alegoria tem a sua disposição.
Diferentemente dos modos de representação anteriores, baseados em efeitos
“mágicos”, “fantásticos” ou “maravilhosos”, a alegoria concretiza-se justamente quando o
sinistro, o insólito, o elemento unheimlich (para usar o termo freudiano) transformou-se em
heimlich: familiar, previsível, e até mesmo inevitável.53
Nas alegorias que se produzem sob as ditaduras, o próprio lugar da enunciação a partir
do qual se conta a história cai na imanência do material narrado, de tal forma que a aterradora
totalidade permanece indecifrável ao longo do romance, irredutível a um princípio
explicativo, tanto para o narrador, quanto para o leitor. Estas alegorias apresentam então,
un mundo desprovisto de todo afuera, donde el fundamento último se ha hecho invisible. No por casualidad, todas ellas tienen lugar dentro de un espacio circunscrito: una casa, un pueblo o una república imaginaria, imágenes de la petrificación de la historia característica de toda alegoría. Más allá de los muros alegóricos, puede existir un dominio o una lógica alternativa, pero ese espacio se ha vuelto inenarrable. El lenguaje de la derrota sólo puede narrar la radical inmanencia de la derrota. (AVELAR, 2000, p. 63)
Em Maluco, o espaço circunscrito onde a alegoria da derrota está presa é o interior de
cinco embarcações em viagem ao redor do mundo, nas quais se encerra uma realidade
conhecida por poucos, e que traz em si um desdobramento sem-número de derrotas
irredutíveis, desafiando qualquer interpretação: segundo Fredric Jameson (1997),a
53 Ver “O estranho” (FREUD, 1976, pp. 273-314) e CESAROTTO, Oscar. O que era sinistro para Freud. In: No olho do outro. São Paulo: Iluminuras, 1996, pp. 109-126.
99
interpretação alegórica é fundamentalmente uma operação interpretativa que começa pelo
reconhecimento da impossibilidade de representação no sentido antigo e por incluir essa
impossibilidade em seus próprios movimentos.
A alegoria se move na imanência. Por um lado tem-se a chegada das ditaduras e a
consequente transição do Estado ao Mercado como coextensivas à decadência do boom (o fim
da possibilidade de uma situação compensatória da política pela estética); por outro, a
emergência das alegorias que tentam elaborar a catástrofe ditatorial são congruentes à
decadência definitiva das poéticas mágico-realistas e fantástico-realista na América Latina. As
últimas fizeram do símbolo seu princípio de unificação através do qual a dispersão dos fatos
poderia ser recolhida e alçada por uma chave-mestra (daí todas as metáforas de identidade
nacional ou continental no boom).Paralelamente, tem-se que o fim da possibilidade de um
capitalismo independente, auto-sustentável, a passagem ao Mercado com as ditaduras e a
submissão de todos os entraves modernos à lógica do capital global criam um cenário que
coincide com a predominância do alegórico. Então, ao mesmo tempo em que o princípio
fundamental tornou-se invisível, a totalidade do símbolo dá lugar à hesitação fragmentária da
alegoria. Enquanto o boom
narraba el singular de la literatura para presentar una síntesis nacional o continental, las alegorías de la dictadura no narran otra cosa que su impotencia en leer su objeto. Dicha impotencia no está [...] desprovista de sentido, y debe ser ella misma alegorizada, (AVELAR, 2000, pp. 63-64)
ou seja, deve ser lida como ruína de uma perda, como uma impossibilidade total. O contraste
entre o mágico e o alegórico faz-se irredutível na sua relação com o outro e o externo.54 O
54 Segundo Avelar (2000, pp. 64-65, passim), apesar de sua longa história de apelo a uma originalidade latino-americana, o realismo mágico tem raízes firmes na virada etnográfica das vanguardas européias, especialmente no surrealismo. Os dois nomes centrais da formulação estética maravilhosa/mágica, Miguel Angel Asturias e Alejo Carpentier, produziram suas primeiras obras em diálogo com a vanguarda francesa, durante e depois de longas estadias em Paris. Não se trata de questionar até que ponto o realismo mágico seria um fenômeno genuinamente latino-americano, mas de observar o quanto compartilhou das condições de possibilidade que James Clifford (2002, p. 120) chamou de “atitude de surrealismo etnográfico”, ou seja, as “sociedades ‘primitivas’ do planeta tornaram-se disponíveis como recurso estético, cosmológico ou científico.” Como alteridade em relação ao que a vanguarda percebia como a “razão ocidental”, estas sociedades se transformaram
100
realismo mágico se definia a partir de um externo, sem o qual não há realismo mágico, mas tal
exterioridade deveria necessariamente ser incorporada, demonizada, apropriada e conjurada.
Nesta dialética entre incorporação e alteridade está a especificidade histórica do realismo-
mágico. Por outro lado, para as alegorias (pós)ditatoriais este externo ficou inenarrável.
Qualquer alteridade, qualquer princípio alternativo ou opositor, tornou-se previsível a tal
ponto que transformou-se em um momento de desapego da própria ordem tirânica. Tal tirania
histórica acaba surgindo como história natural, no já mencionado sentido benjaminiano. Com
o efeito mágico esvaziado, o acontecimento alegórico precisa mover-se na imanência de sua
própria fatalidade, irremissível a um externo que pudesse conferir um princípio semântico
organizador e final. Diante da impossibilidade do texto de incorporar qualquer outro princípio
de verossimilhança, a leitura transmite a sensação de fracasso, que é outra marca da alegoria:
a verdadeira história não foi narrada, o outro ao qual a alegoria faz alusão permanece inefável.
Na alegoria, aquilo que é externo não é incorporado, domesticado e conjurado (como no
realismo mágico), mas sim, é mantido em sua exterioridade radical, inominável.
Paradoxicalmente, ao circunscrever um mundo desprovido de qualquer alteridade, o texto
alegórico preserva o externo à margem, pois é impossível nomeá-lo.
em material ficcionável exatamente como signos do externo. O realismo mágico encarregava-se de narrar este externo e extrair dele seu efeito mágico. Este projeto acarretava num duplo movimento: as cosmogonias pre-capitalistas tinham que ser suficientemente alterizáveis para garantir tal efeito, mas também suficientemente familiares para que fossem narráveis na linguagem da vanguarda ocidental.
101
4 CAPÍTULO 3: O INTELECTUAL E O BUFÃO
Nos capítulos anteriores, localizamos Baccino em seu contexto histórico e expusemos
as tendências contemporâneas da literatura e da História de seu tempo. Indicamos a alegoria
como sendo a forma predominante de representação do contexto traumático em um momento
(pós)ditatorial e inserimos Maluco neste enquadramento literário. Neste capítulo, trataremos
de explorar a relação da duplicidade alegórica existente entre o intelectual inserido em sua
contemporaneidade histórica e social e Juanillo, narrador-bufão de Maluco.
4.1 BACCINO E OS INTELECTUAIS DE SEU TEMPO
Com o objetivo de pensar sobre a figura do intelectual no momento pós-ditatorial no
Uruguai, figura que representa um grupo no qual se insere Baccino, convém que façamos um
breve apanhado sobre algumas questões referentes ao grupo constituído por aqueles que são
denominados de intelectuais.
De acordo com as críticas de Jean-François Sirinelli a respeito do “campo intelectual”
proposto por Pierre Bourdieu55, o qual segundo tais críticas, priorizaria a determinação e a
55 Para “campo” e mais especificamente “campo intelectual” em Pierre Bourdieu, ver BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. De acordo com Adriane Vidal Costa, em sua tese de doutorado “Intelectuais, política e literatura na América Latina”, a noção de "campo", seja ele intelectual, religioso, literário, político, filosófico, artístico, etc., pressupõe um espaço social dotado de dominação, conflitos, estratégias, relações de força, poder e capital simbólico. O campo tem uma autonomia relativa em relação à economia, à política e à religião, que quase sempre corresponde à sua situação histórica. Cada campo possui suas próprias regras de organização e de hierarquia social, onde os agentes sociais ocupam posições bem determinadas que correspondem à sua situação social e ao seu capital social. No interior de um campo intelectual (de uma sociedade intelectual) as relações de poder têm uma existência dual, pois ao mesmo tempo em que se supõem relações de força, constituem um fenômeno que implica a construção de legitimidade. Por isso, relações de poder são realizadas através de um processo que se realiza concreta e simbolicamente. O conceito de "campo" deve ser operacionalizado juntamente com o conceito de "habitus", compreendido como um sistema de disposições socialmente adquiridas e constituídas de um grupo de agentes. A grosso modo, "habitus" é concebido como um sistema socialmente constituído de disposições estruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes), adquirido nas e pelas experiências práticas (em condições sociais específicas de existência), constantemente orientado para funções e ações do agir cotidiano.
102
estratégia, e acabando por não deixar espaço para a contingência, o inesperado e o fortuito.
Nas próprias palavras de Sirinelli, temos
[d]uas objeções, pelo menos, [que] se impõem. De um lado, e trata-se de um problema de fundo que ultrapassa os intelectuais apenas, não se poderia, entre as chaves legitimamente diversas utilizadas pelos pesquisadores, deixar espaço para a contingência, para o inesperado, o fortuito? De outro, as engrenagens complexas do meio intelectual são redutíveis a um simples mecanismo, cuja mola seria a “estratégia”? Todo grupo de intelectuais organiza-se também em torno de uma sensibilidade ideológica ou cultural comum e de afinidades mais difusas igualmente determinantes, que fundam uma vontade e um gosto de conviver. São estruturas de sociabilidade difíceis de apreender, mas que o historiador não pode ignorar ou subestimar. (SIRINELLI, 1996, p. 248)
Para pensar uma história intelectual, deve-se privilegiar “as características de um
momento histórico e conjuntural que impõem visões de mundo, esquemas de percepção e
apreciação”, isto é, “modalidades específicas de pensar e agir por parte dos intelectuais”
(SILVA, 2002, p. 12). Neste caso, trabalharemos com o momento pós-ditatorial no Uruguai, o
que pressupõe uma não-assimilação do vivenciado durante a ditadura neste país, e também
que o efeito que isto segue provocando em sua sociedade é duradouro e age diretamente sobre
as representações culturais contemporâneas a partir deste período. Assim, há uma necessidade
de privilegiar a leitura de um texto em relação a seu contexto, articulando a obra com a
formação social e cultural de seu autor e com a conjuntura histórica em que ela foi produzida.
Para além de uma abordagem que prima pela relação entre a análise dos
acontecimentos históricos, políticos e sociais e a análise interna da obra, considera-se ao
mesmo tempo, a “dimensão diacrônica (histórica) e sincrônica (‘os aspectos diferentes de um
mesmo conjunto em um mesmo momento de evolução’)”. Dessa forma, é preciso reconhecer
que a articulação do texto com seu contexto gera tensões que podem ser identificadas quando
a isto se somam os paradigmas intelectuais que interferem direta ou indiretamente nas
representações que condicionam os sistemas de percepção (SILVA, 2003, 19).
Assim, quando se analisa um texto buscando perceber o rol do intelectual que o
escreve, aí haverá articulações gerais com as problemáticas do momento vivido, e também
103
uma tendência ao deslocamento das questões parciais para as perspectivas globais, instalando-
se na esfera pública e ali construindo a sua interlocução, que não se dá apenas no âmbito de
seus pares, mas sim, nas palavras de Beatriz Sarlo, é interessante que se pense no
interlocutor imaginário dos discursos intelectuais: o povo, o proletário, o país, o partido, conforme as linhas de fratura política e programática. Esse interlocutor tensionava o discurso para que ocupasse um lugar público e desempenhasse uma função ativa justamente nesse espaço. (SARLO, 2005, p. 146)
No caso de Baccino, seu “interlocutor imaginário” também possui uma representação
alegórica muito forte em Maluco: Carlos V é o destinatário com quem o narrador conversa, e
a quem se dirige diretamente, prevendo inclusive suas reações ao longo da leitura de seu
texto. A escolha da modalidade textual epístola facilita a presença deste “interlocutor
imaginário” no âmbito do próprio romance. No entanto, para além das fronteiras do
estritamente escrito, e pensando-se no contexto da escrita do romance, pode-se dizer que este
monarca representa não apenas toda uma esfera do poder oficial no âmbito do real, mas que
esta carta também dirige-se à sociedade que busca, como seu narrador, entender seu novo
papel após as mudanças ocorridas devido à experiência traumática da ditadura.
Segundo Adriane Vidal Costa, os intelectuais constituem um grupo social no qual
elaboram-se interpretações sobre a realidade sempre que se julgue conveniente e necessário.
Ao compartilharem experiências coletivas, como por exemplo as experiências e uma vida sob
ditadura, os intelectuais sofrem os efeitos diretos ou indiretos dos acontecimentos
contemporâneos, podem adquirir uma versão semelhante de mundo e uma vivência com
denominadores comuns. Isto no entanto, não implica em uma unidade de ideias e de
comportamentos, pois os diferentes indivíduos podem viver e responder aos acontecimentos
de diversas formas, dependendo dos interesses e da ideologia de cada um dos grupos.
Jean-François Sirinelli destaca o caráter múltiplo do termo intelectual e propõe duas
definições: a primeira, sociológica e cultural, que engloba os criadores e mediadores culturais,
104
como jornalistas, escritores, professores; a segunda, uma definição política com base no
engajamento, direto ou indireto, na vida pública, como ator, testemunha ou consciência
(SIRINELLI, 1996, pp. 242-243). O intelectual é aquele que intervém com seu discurso e sua
ação no espaço público, assumindo a defesa dos valores universais (como a justiça, verdade,
liberdade) e ao mesmo tempo, uma transgressão à ordem vigente (CHAUI, 2006, p. 61).
Segundo Norberto Bobbio (1997) e Edward Said (1996), também espera-se quase sempre que
o intelectual, que pode ser um escritor, historiador, filósofo, cineasta, artista ou político, seja
ouvido e que na prática, deva gerar um debate, desde que ele represente e articule uma
mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para (e também por) um
público.
Pensemos então, no intelectual da forma que sugere Edward Said, como
una figura representativa que importa: alguien que representa visiblemente un determinado punto de vista, y alguien que ofrece representaciones articuladas a su público superando todo tipo de barreras. Lo que yo defiendo es que los intelectuales son individuos con vocación para el arte de representar, ya sea hablando, escribiendo, enseñando o apareciendo en televisión. Esa vocación es importante en la medida en que resulta reconocible públicamente e implica a la vez entrega y riesgo, audacia y vulnerabilidad. (SAID, 1996, p. 31)
Ainda segundo Said, cada região do mundo produz seus intelectuais, o que confirma
de certa forma o que já havia sido dito: o intelectual está inserido em uma realidade sócio-
cultural específica e está relacionado ao seu contexto histórico, ou seja,
hablar hoy de los intelectuales significa hablar especificamente de las variaciones nacionales, religiosas e incluso continentales del tema, porque cada una de dichas variaciones parece requerir una consideración independiente.(SAID, 1996, p. 41)
Assim, as representações do intelectual ou o que ele representa, e a maneira como estas ideias
são apresentadas ao público estão intrinsecamente ligadas à realidade sócio-cultural a que este
intelectual pertence.
Então, voltando um pouco na linha do tempo, assinalemos alguns pontos relevantes
para esta pesquisa sobre a geração intelectual latino-americana de esquerda, que se formou na
105
década de 60, sendo em boa medida ligada à Revolução Cubana. Foi neste contexto que se
fortaleceu na América Latina a percepção de que intelectual engajado era sinônimo de
intelectual de esquerda.56 “No seu sentido próprio, engajar-se significa tomar uma direção”.
De modo figurado, é “praticar uma ação, voluntária e efetiva, que manifesta e materializa a
escolha efetuada conscientemente” (DENIS apud COSTA, 2009, p. 30). Então, o engajamento
pode estar vinculado a distintos princípios políticos. Por exemplo: Vargas Llosa rompeu com
a Revolução Cubana e com os ideias socialistas abraçando concepções políticas liberais, mas
não deixou de ser um intelectual engajado por isso.
Uma vez que acreditamos que o intelectual latino-americano no momento pós-
ditatorial está alegoricamente representado em Maluco, convém que se entenda o rol que este
grupo tinha antes da ditadura. Diante de tão extensa literatura a este respeito, escolhemos (por
razões metodológicas) voltar o olhar para a instituição Casa de las Américas, uma vez que o
romance foi vencedor deste prêmio.57
A instituição Casa de las Américas foi estruturada em 1959. Sua diretora até 1980 foi
Haydée Santamaría, que deu à instituição grande peso político devido a seu acesso ao centro
do poder guerrilheiro.58 Sua presença garantiu a intervenção da esfera política na cultura,
reforçando a imagem da instituição como “filha” da revolução. A Casa de las Américas
congregava a seu redor uma ampla estrutura com biblioteca, prêmio literário anual, editora,
revista, departamentos dedicados à pesquisa literária, e promovia a música, o teatro e as artes
plásticas.
56O compromisso politico dos intelectuais na América Latina situa-se em períodos anteriores à Revolução Cubana, como, por exemplo, na década de 1920 em relação a temas como revolução, socialismo, comunismo, e antiimperialismo. Ver: FUNES, Patricia. Salvar la nación: intelectuales, cultura y política en los años veite latino-americanos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006. 57Sobre Casa de las Américas ver: MOREJÓN ARNAIZ, Idalia. Política e polémica na América Latina: Casa de las Américas e Mundo Nuevo. 326 f. Tese. Programa de Integração da América Latina, USP, São Paulo, 2004. 58Haydée Santamaría dirigiu a Casa de las Américas até seu suicídio em 1980. Ela participou do assalto ao quartel Moncada em 1953, em Santiago de Cuba e foi considerado na época a segunda maior fortaleza do exército cubano em número de homens e arsenal bélico e foi alvo do assalto em 26 de julho de 1953 por um grupo de revolucionários liderados por Fidel Castro. O assalto foi um fracasso, sendo que alguns guerrilheiros foram torturados até a morte, inclusive o irmão de Haydée Santamaría.
106
Agrupar os intelectuais latino-americanos em torno da Revista Casa de las Américas
obedecia a uma política de Estado de Cuba, usando mecanismos diversos para articular esta
rede intelectual. Os escritores estrangeiros eram convidados para ir à Havana participar de
conferências, diálogos em mesas-redondas com escritores cubanos e jurados do prêmio. Dessa
forma foram a Cuba Miguel Ángel Asturias, Ezequiel Martínez Estrada, Carlos Fuentes,
Pablo Neruda, Julio Cortázar, Ángel Rama, Mario Vargas Llosa, os quais eram recebidos por
grandes escritores cubanos como Alejo Carpentier, Roberto Fernández Retamar, José Lezama
Lima e Guillermo Cabrera Infante (antes do exílio em 1965). Outro mecanismo foi promover
encontros de escritores articulados em torno de congressos, simpósios e assembleias. Alguns
escritores passaram a viver em Cuba, como Mario Benedetti. No início dos anos 60, Havana
foi a sede de uma intensa sociabilidade intelectual.
Outro forte componente para a formação de uma rede intelectual latino-americana de
esquerda foram as revistas culturais. Em julho de 1960 foi publicado o primeiro número da
revista Casa de las Américas, de forte cunho político, de acordo com a sua auto-definição no
sentido de ser uma instituição cultural organizada para servir a todos os povos do continente
em sua luta pela liberdade. Roberto Fernández Retamar assumiu a direção da revista de 1965
a 1989, e retomou-a em 1991. Entre seus grandes colaboradores estão José Lezama Lima,
Juan Gelman, Carlos Drummond de Andrade, Ernesto Cardenal, Ítalo Calvino e José María
Arguedas. No Conselho de Redação, que se reunia periodicamente para a discussão de temas
atuais, participaram Mario Benedetti, Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar, Ángel Rama, entre
outros.
Participar do concurso literário promovido pela Casa de las Américas era mais uma
razão político-cultural para viajar a Cuba, consolidando a formação desta rede. Ser jurado ou
agraciado no concurso fortalecia o vínculo desta comunidade.
107
Muitos intelectuais já renomados faziam questão de ter seus nomes vinculados à
revista da Casa, como forma de expressar sua posição política. Por exemplo, entre outros,
assinaram o manifesto contra a invasão na Baía dos Porcos em maio de 1961: Jorge Icaza,
Ernesto Sábato, Juan Carlos Onetti, Arturo Ardao e Ángel Rama.
A Casa de las Américas viabilizou um amplo debate sobre o papel do intelectual
latino-americano. Entre 1965 e 1968 a discussão focou-se em “intelectual como consciência
crítica da sociedade” e “intelectual como organizador da sociedade” (LIE apud COSTA,
2009, p. 56) e no caso da América Latina, pode-se dizer que estes foram os eixos que guiaram
o pensamento intelectual pelo menos até a última década do século XX, quando a economia
de mercado consolidou-se de forma a transformar novamente o papel do intelectual na
sociedade.
Voltando à realidade do Uruguai ditatorial e pensando-se em seus intelectuais neste
período, houve principalmente duas situações: os que foram para o exílio (ou insílio) e os que
foram presos. Segundo Alfredo Alzugarat em Trincheras de Papel (2007), tanto o exílio
quanto o insílio foram extremamente produtivos em termos literários. As prisões da ditadura
foram sistemas pensados para a destruição do indivíduo, porém, a resistência cultural existiu.
Sobre a literatura “surgida en la cárcel y como resultado de la cárcel, en el interior de ella y
después de ella”, Alzugarat afirma que
[s]i las cárceles de la dictadura fueron uno de los mayores emblemas de la peor época de este país, también es posible afirmar que en ellas la dignidad humana libró una dura batalla que, entre sus múltiples consecuencias, dejó obras artísticas y literarias de inapreciable valor. (ALZUGARAT, 2007, p. 5)
E segue dizendo que
la escritura de la cárcel fue un universo de valiosos matices que […] [g]eneró escritores que jamás pensaron serlo. Maduró a otros en ciernes, donde solo había una aparición a largo plazo lejos de ser practicada. Modificó sustantivamente a quienes ya habían iniciado su vida literaria, madurando y enriqueciendo su expresión. En total más de setenta escritores: cuarenta y cuatro obras editadas elaboradas con escritos realizados en el interior de la cárcel y más de un centenar realizadas a
108
posteriori por autores que conocieron e integraron a sus trayectorias esa intransferible realidad. [...]Tengo la convicción de que esa resistencia cultural librada en las prisiones de la dictadura permitió a estos autores definirse o redefinirse como miembros de una generación de capacidad transformadora, mutante, con los anticuerpos necesarios para sobrevivir y avanzar. (ALZUGARAT, 2007, p. 5-7)
Destacam-se em Trincheras de Papel muitos autores que produziram dentro das
cadeias no período ditatorial, ou já na pós-ditadura, mas como um efeito de continuidade do
que foi vivenciado dentro da prisão. Entre participantes diretos do MLN-T podemos citar
Mauricio Rosencof, Eleuterio Fernández Huidobro e Samuel Blixen. Entre outros, estão
Carlos Liscano, Hiber Conteris, Carlos María Gutiérrez, Raúl Orestes Gaeda, Lucía Fabbri,
Ángel Turudí Cawen, Iris Sclavo, Ariel Poloni, Ademar Alves, Nelson Marra, Gladys
Castelvechi.
Em relação ao exílio, Edward Said acredita que o exilado
existe, pues, en un estado intermedio, ni completamente integrado en el nuevo ambiente, ni plenamente desembarazado del antiguo, acosado con complicaciones a medias y con desprendimientos a medias, nostálgico y sentimental en cierto plano, mímico efectivo y paria secreto en otro. Aprender a sobrevivir se convierte en el principal imperativo, con el peligro de que instalarse en el confort y la seguridad excesivos constituye una amenaza frente a la cual hay que mantenerse en constante guardia. (SAID, 1996, p. 60)
Nesta situação encontraram-se grandes intelectuais uruguaios. Ángel Rama, por
exemplo, deixou o Uruguai em 1974 e até sua morte em 1983 não voltou a viver em seu país.
Eduardo Galeano foi preso em 1973 e obrigado a sair do Uruguai, para onde só voltou em
1985. Emir Rodríguez Monegal passa a trabalhar permanentemente para a Universidade de
Yale nos Estados Unidos em 1969, e com a prisão de sua filha em 1972, envolvida com o
MLN-T, não pode voltar ao Uruguai até o fim da ditadura em 1985, onde de toda forma
jamais voltou a viver. Alzugarat também destaca como desterrados Sergio Altesor, Graciela
Taddey, Ana Luisa Valdés, Leo Harari, Aníbal Sampayo, Juan Baladán e José Alanís.
Baccino não foi exilado para o exterior, mas optou por um auto-insílio em Punta del
Diablo, uma colônia de pescadores dentro do próprio país, onde viveu os últimos anos da
109
ditadura junto de sua mulher e seus três filhos pequenos. Foi nestas circunstâncias que
Baccino escreveu Maluco, como vimos anteriormente.
Neste contexto, o fato de Baccino ter escrito Maluco em seu insílio durante os últimos
anos da ditadura no Uruguai e tê-lo submetido ao concurso Casa de las Américas em Cuba é
de relevância significativa no que diz respeito à alegoria central que aqui se discute. De
acordo com o panorama traçado, acredita-se que o autor tinha o desejo de inserir-se neste
círculo intelectual de esquerda consolidado a partir da década de 60, buscando afirmar seu
papel como intelectual não apenas em seu próprio país, mas de forma mais ampla, na
sociedade latino-americana. Maluco é publicado pela Seix-Barral (Barcelona) por conta da
vitória no Casa de las Américas, deslocando o professor universitário para dentro da rede
intelectual latino-americana, como alguém que está pensando criticamente a sociedade
contemporânea. É desta forma que lemos e interpretamos Maluco: como uma obra que
representa alegoricamente a tomada de consciência crítica a respeito do lugar que ocupa o
intelectual na sociedade latino-americana no momento em que a ditadura está recém
terminada, porém deve assimilar seus afeitos para seguir adiante.
Retomando a análise do “novo romance latino-americano”, direcionemos nosso estudo
para a literatura do continente nas últimas décadas do século XX. Para Eduardo Galeano
(1986) neste período apareceu uma literatura que se estende como uma "nueva conciencia de
la realidad" e cujos principais expoentes são os escritores jovens de uma classe média
participativa tanto do âmbito cultural quanto do político. Ainda que grande parte da crítica
continue insistindo na chamada “revolução da linguagem”, para Galeano, são os críticos que
privilegiam estes aspectos da narrativa contemporânea latino-americana, pois os verdadeiros
protagonistas desta nova narrativa "no son los pronombres y los adjetivos, sino hombres y
mujeres de carne y hueso". Ele também chama a atenção para que a literatura atual da
América Latina é necessariamente política e social pelas simples razões de que tudo o que é
110
humano é social e que toda letra impressa implica uma certa participação na vida política do
mundo, ou seja, a identificação política e ideológica estará presente e manifestada dentro da
maioria destas expressões. Seria impossível falar da literatura latino-americana atual sem
lembrar do contexto histórico, social e político da América do Sul nos últimos anos do século
XX: por terem sofrido todo o tipo de vexames, os narradores rio-platenses projetam um
cenário permeado pelas agitações revolucionárias, represálias, torturas, exílios e crises
econômicas(GALEANO, 1986, pp. 42-43, passim).
Quien haya creído que la literatura argentina había llegado a su apogeo y término finalcon Borges y Cortázar, la uruguaya con Onetti y la paraguaya con Roa Bastos, se haperdido de obras interesantes, pues la generación nacida después de 1940 está dotada degrandes y poderosos talentos, un impresionante bagaje de recursos expresivos, y una fuerzaavasalladora para dramatizar muchos y muy diferentes aspectos de la conciencia actual latino-americana. Conciencia, como podrá suponerse, altamente política que comienzahaciendo un discurso dialéctico y termina haciendo literatura, como ya suponía HéctorLibertella, escritor y crítico que declara haberse formado en "un país violento y en un climaque llamaré de semiótica urbana [...] donde si el militar constituye nuestra nación violenta,entonces la militancia será la que constituya nuestra literatura nacional" (GARCÍA RAMÍREZ, 2003, p. 29)
Hector Libertella59 caracterizou a "Argentina del salón literario", fortemente
influenciada por diversas literaturas estrangeiras (principalmente francesa) e contaminada por
leituras sobre psicanálise e semiologia criolla, tão diferente das últimas gerações, nascida em
uma confusão entre militância e comércio que determinou seus particulares "compromisos de
la forma nacional" que mantém seus escritores na sombra, pouco difundidos ainda que os
mais velhos se aproximem aos sessenta anos, reduzindo-os a “best-sellers de barrio” apesar da
frequência e extraordinária capacidade literária destes autores, que acabam por viver “leyendo
al jefe Lezama Lima bajo un árbol, tranquilamente perdidos en esos descifraderos de la
literatura". (LIBERTELLA, 1985, p. 14)
59Héctor Libertella, no prólogo de: FLORES, Ángel (ant.). Narrativa hispano-americana 1816-1881, historia y antología,la generación de 1939 adelante, Argentina, Paraguay y Uruguay. Ciudad de México: Siglo XXI, 1985. Vale observar que Libertella também escreveu um relato baseado na mesma viagem de Magalhães que Maluco, chamado “La historia de historias de Antonio Pigaffeta” (1985).
111
Nesta geração cresceu Napoleón Baccino Ponce de León, escritor uruguaio, que da
mesma forma que seus colegas argentinos foi pouco difundido apesar dos prêmios
internacionais que obteve graças a Maluco, e igualmente pouco estudado, mas que de acordo
com a interpretação que fazemos de sua obra, pode ver-se refletido em seus escritos certo
compromisso e crítica para com a situação de seu país e das ditaduras em geral. Sua obra é
uma crítica ao poder, marcando a importância dos sonhos de liberdade, como afirma Cinthya
Vich em seus comentários à entrevista com Baccino:
[l]a riqueza de la novela no está en desmitificar una historia heroica para dejar al lector en elvacío de la ausencia histórica, sino en otorgarle valor a las “historias individuales” con unhumanismo que la visión posmoderna parece siempre negar. Finalmente, la reflexión que sobreel desamparo inherente al ser humano pone sobre el tapete Maluco, deja su conclusión abierta ala voluntad del lector, a pesar de que el mismo Baccino señalara la voluntad de transmitir unavaloración positiva de ese “derecho de soñar” que, según él, todos tenemos vivo en nuestro ser más íntimo. (VICH, 1997, p. 410)
Maluco “conviveu” com seu autor durante os anos da ditadura no Uruguai:
[d]urante doce años, y con la excepción del “canto popular” que entró en auge hacia los añosochenta, el Uruguay sufrió un “apagón” cultural. Ese apagón cultural se llamó también insilio,una forma de resistencia que consistió en el hecho de no escribir, en no hablar, y también en nocolaborar con el régimen. (RUFFINELLI, 1990, p 42)
De acordo com o que afirma Ruffinelli, neste insílio (oposto de certa forma ao exílio),
os que ficaram tiveram poucas oportunidades de expressão, como muitos dos intelectuais que
viveram nesta situação apontaram depois de terminado este período da história de seu país.
Perla Elsa García Ramírez cita o exemplo de María Rosa Olivera-Williams (1990), que diz
em seu artigo “La literatura uruguaya del Proceso. Exilio, insilio, continuismo e invención”:
Hubo un hecho que fue sentido por toda lacultura uruguaya durante los años de autoritarismo militar: el miedo, la censura, el silencio,la represión [...] Los hacedores culturales fueron silenciados, o se les intentó silenciar, pormedio del exilio, la cárcel, y la censura. Se podría decir que la literatura uruguaya del“proceso” es una literatura de exilio. (OLIVERA-WILLIAMS apud GARCÍA RAMÍREZ, 2003, p. 30)
112
Um caso “exemplar” que serviu para calar os intelectuais que ainda continuavam com
certa liberdade de expressão um ano depois do início do “processo”, foi o chamado por alguns
de “el caso Onetti”: com o pretexto de que a revista Marcha havia publicado um conto
pornográfico, inclusive vencedor do concurso por ela promovido, no qual Onetti, Mercedes
Rein e Ruffinelli foram jurados, e cuja temática girava ao redor do relacionamento de um
militar com um general uruguaio, houve a invasão policial de Marcha, a prisão de seus
editores, jurados e o próprio autor do conto. Tudo isto serviu para que ficasse claro que não
seria tolerado nenhum texto crítico à situação política do país, nem que fosse de forma
meramente alusiva. O recado foi bem compreendido e até 1985 pouco se expressaram os
intelectuais e escritores.
Porém, curiosamente, parece que os escritores no exílio também estavam
incapacitados, de outra forma, para dar seu testemunho do que estava acontecendo ou havia
acontecido no Uruguai. Uma exceção foi Carlos Martínez Moreno, em cujas obras sempre
apareceu clara referência política, inclusive dentro do Uruguai da ditadura, de onde teve que
sair exilado por conta das ameaças sofridas. Ele escreveu no México o romance chamado El
color que el infierno me escondiera (1981) com a intenção de abrir a discussão sobre o tema
da política uruguaia e falar do movimento Tupamaro e sua crise final. Este romance gerou
grande polêmica entre seus compatriotas também exilados.
Com o fim da ditadura, aparecem obras “sobre el período de gestación de la
nacionalidad [...], como Noche de espadas de Saúl Ibargoyen Islas, Los papeles de los Ayerza
de Juan Carlos Legido, Bernabé! Bernabé! de Tomás Mattos, El archivo de Soto de Mercedes
Rein, El príncipe de lamuerte de Fernando Buttazoni eArtigas blues band deAhmir Ahmed60,
e de seu “insílio”, Napoleón Baccino Ponce de León escreveu Maluco, inserindo-se de certa
forma neste grupo. 60Ver: AINSA, Fernando. “La reescritura de la historia en la nueva narrativa latino-americana”, México, Cuadernos americanos nueva época, 4, no. 28, 1991, p. 19. y LARRE BORGES, Ana Inés. “Nuevos caminos para la literatura uruguaya”, acesso em [http://www.rodelu.org/literatu.htm].
113
Como anteriormente foi comentado, o novo romance latino-americano veio como
resposta a épocas de crises. Segundo Ruffinelli, desde fins do século XX há uma tendência na
literatura uruguaia de reconstrução do passado: “Creo que ésta es una de las tendencias más
interesantes de la actual literatura uruguaya. Localizada sobre el eje del tiempo, investiga en
el pasado heroico y anti-heroico con espíritu desmitificador pero también re-mitificador.”
(RUFFINELLI, 1990, p. 53) Pode-se exemplificar isto com a obra do uruguaio Alejandro
Paternain, que publicou em 1980 Crónica del descubrimiento no qual alguns indígenas viajam
em 1492 até o outro lado do Atlântico, onde encontram um Novo Mundo decadente, em
comparação ao velho mundo que deixaram para trás.
Para resumir o que foi dito até agora sobre romance histórico e principalmente para
amarrar à circunstância específica do Uruguai onde se originou Maluco, vale retomar a
afirmação de Fernando Aínsa (1991, p. 53) de que o mais importante que faz o novo romance
histórico é derrubar os livros de História e os personagens de mármore e descobrir os
personagens humanos na dimensão mais ampla do termo, ainda que diante da historiografia
pareça inventado (ou mesmo que o seja), e que no caso da literatura uruguaia gerida durante a
ditadura, isto se converte em algo ainda mais urgente.
4.2 O NARRADOR-BUFÃO
Em Maluco, há uma trama sutil costurada de acordo a uma intenção narrativa,
proporcionando que a sua própria convenção seja transgredida. Por trás das habilidosas
manobras do narrador, existe uma intenção muito específica que se integra ao projeto estético
do romance.
114
A partir deste entendimento, passe-se a conhecer um pouco dos antecedentes
históricos e literários do personagem que é responsável por narrar a história e que parece
sustentar e justificar as transgressões narrativas.
Segundo Oscar Tacca, “la voz del narrador constituye la única realidad del relato. Es
el eje de la novela, [...] sin narrador no hay novela” (TACCA, 1973, p. 69). Esta parece ser a
lógica encontrada em Maluco, uma vez que tudo o que os leitores sabem da história foi
vivenciado pelo narrador, ainda que algumas vezes possa parecer que outros personagens
tomam a palavra para narrar o que chega ao leitor.
Em uma obra típica narrada em primeira pessoa, o que o narrador seleciona para
contar é facilmente entendido: tudo aquilo que não passou pela percepção sensorial do “eu”
narrativo ficará de fora, de modo que a narração convence o leitor da veracidade de seu relato,
do qual foi testemunha e/ou protagonista das ações. Quando o narrador faz parte das ações
que descreve, aquilo que é narrado tem um grande valor subjetivo. Em uma obra típica, o
autor se adianta às perguntas sobre como e por quê o personagem estava presente nas
situações contadas e, se quer manter a verossimilhança, vai explicá-las de antemão.
Assim, pode-se pensar que em muitos aspectos Maluco não é uma obra típica, pois em
diversas ocasiões o texto não responde à convenção narrativa em primeira pessoa: Juanillo
Ponce é capaz de não apenas narrar o que seus sentidos perceberam, mas muitas vezes, ele
realiza seus relatos em um nível mais completo. Em termos gerais, a voz do romance é a de
um Juanillo velho, escrevendo a um imperador também em ruínas; mas em certos momentos,
essa voz é a do Juanillo “anterior”, que se dirige a seu capitão, Fernão de Magalhães. Nestes
fragmentos, porém, não se limita a narrar o que está dentro de seu âmbito de percepção
sensorial, mas ele também é capaz de relatar coisas que aconteceram fora de seu limite de
alcance de percepção comum.
115
Pode-se dizer que este narrador tem uma certa filiação com a tradição do romance
picaresco, ou seja, ele é um personagem-testemunho, que tenta deixar marcada a sua presença
na primeira viagem de circunavegação ao redor da Terra. Este personagem não tem (apesar de
que em muitos momentos tente nos fazer acreditar que sim) um papel central no desenrolar
dos fatos, mas é uma testemunha desta.
Partindo dos termos de Gèrard Genette (1998), pode-se dizer sobre um narrador como
o de Maluco que “toda narración homodiegética testimonial da pie a un fenómeno interesante:
una inestabilidad vocal que la hace oscilar entre lo heterodiegético y homodiegético”61
(PIMENTEL, apud GARCÍA RAMÍREZ, 2003, p. 4), uma vez que neste tipo de narrativa, o
narrador costuma apresentar histórias que contaram a ele. No entanto, já foi mencionado que
Juanillo não conta simplesmente o que lhe contaram, mas abre espaço para o que ele não
poderia conhecer. Genette se refere a isto da seguinte forma:
En la focalización interna, el foco coincide con un personaje que se convierte en el “sujeto” ficticio de todas las percepciones, incluidas las que le afectan como objeto: el relato puede decirnos, entonces, todo lo que percibe y piensa ese personaje (no lo hace nunca); en principio, no debe decir nada más; si lo hace es de nuevo, una alteración (paralepsis) esdecir, una infracción, deliberada o no, de la posición modal del momento […]. (GENETTE, 1998, p. 51-52)
Em outras palavras, as paralepsis anteriormente referidas, ou seja, infrações, são o tipo de
transgressão mais “grave” do narrador no romance. Mais interessante do que este aspecto
formal, é que o narrador constantemente assinala a si próprio apresentando conceitos e pré-
conceitos, o que confere ao leitor um alto grau de subjetividade, marcando uma postura diante
dos fatos que narra e do mundo em que vive. Aqui, é necessário observar que o narrador em
questão é um bufão, o qual “intrínsecamente conlleva algo de poeta y loco, de cínico y de
mentiroso, de juglar y de payaso” (GARCÍA RAMÍREZ, 2003, p. 4). Por isto faz-se
necessário conhecer o simbolismo do bufão por um lado, e por outro analisar de que forma se
61Vale lembrar que um narrador homodiegético é aquele que forma parte da história como personagem; enquanto que um narrador heterodiegético não participou da história que conta.
116
comporta especificamente este bufão como um personagem-narrador, o que ele narra e como
o faz.
A escolha por um narrador-bufão carrega em si um forte simbolismo.
Independentemente da função que ele cumpre dentro da trama de Maluco, é importante ter em
conta este simbolismo, porque a escolha por um personagem tão marginal e ao mesmo tempo
tão próximo ao poder, não deve ser inocente. O comprometimento do autor diante da obra
gera a necessidade de uma máscara que possa assumir o posicionamento deste em relação à
vida que ele evoca, aos leitores e ao público. Esta máscara, no entanto, deve ser bastante
consistente, para que seu discurso seja levado a sério. O bufão vem para socorrer o
romancista, assumindo esta máscara, pois ele participa da vida sem tomar parte nela, é seu
observador e utiliza-se de maneiras específicas para refletir as revelações ao público, também
a respeito da vida privada do próprio público.
Em Maluco, a máscara deixa rastros do que o bufão pode representar, a começar pelo
próprio nome do personagem: Juanillo Ponce, nascido na região de León, e portanto, chamado
de Juanillo Ponce de León. Há uma dupla coincidência, nada inocente: com o nome do
descobridor Juan Ponce de León, e ao mesmo tempo, com o nome do autor do romance,
Napoleón Baccino Ponce de León.
É fundamental assinalar que, podendo escolher entre tantos personagens aceitáveis
historicamente, Baccino decide criar um personagem que trai, intencionalmente, a fidelidade
dos fatos históricos. O autor não reinventou o caráter de um dos marinheiros praticamente
anônimos que intervieram na empreitada, mas criou um ser completamente alheio ao
ambiente no qual a trama do relato se desenvolve, um elemento evidentemente infrator do
contexto da narração, um pícaro que a princípio nada teria para fazer nesta frota e que, no
entanto, fará as vezes de olhos e ouvidos que permitem ao leitor seguir os acontecimentos da
travessia. Note-se que no romance em questão o bufão é a entidade menor dentro da
117
hierarquia da tripulação dos barcos (com a exceção de Enrique, escravo de Magalhães).
Baccino brinca com as possibilidades simbólicas deste personagem, desde que o bufão
encerra em si mesmo uma forte carga significativa que respalda sua transcendência em uma
antiga tradição cultural.
No primeiro parágrafo, sabe-se que o narrador é “Juanillo Ponce, natural de Bustillo
del Páramo, en el reino de León”. A partir daí, este narrador quase sempre se refere a si
mesmo como Juanillo Ponce de León, o que por si só já constitui um recurso discursivo
fundamental para a análise que aqui se tece.
Assim como em português, também em espanhol usa-se o nome Juanillo (Joãozinho)
para designar pessoas comuns, que misturam-se às demais sem muito destaque, não
precisando assim de um nome que a diferencie. O Joãozinho, ou Juanillo, é um “zé-ninguém”
ou “um qualquer”. Porém, ao mesmo tempo, ele pode ter um significado mais generalizante,
pois o fato deste nome ser tão comum, acaba por reunir em um só personagem a muitos.
Além disso, seu sobrenome – Ponce de León – o caracteriza por duas vias. Juan Ponce
de León foi um conquistador espanhol, que viajou à América antes da expedição de Fernão de
Magalhães contada em Maluco. Ganhou notoriedade a partir de sua enorme vontade de
encontrar o mito do El Dorado, sendo conhecido por ser movido por seus sonhos e ilusões,
uma vez que jamais obteve sucesso em sua empreitada. Sendo um homônimo do
conquistador, de certa forma o narrador se equipara a ele, diferenciando-se pelo diminutivo de
seu nome: ao invés de Juan, trata-se de um Juanillo. Pode-se entender este diminutivo como
uma depreciação irônica do conquistador, atribuindo ao narrador o status de
“conquistadorzinho”, um conquistador “de segunda categoria”. Também em relação ao nome
do descobridor, pode-se pensar em uma identificação com o fato de Juanillo buscar legitimar
através de seu relato a sua participação na importante frota, como descobridora de uma nova
rota para as especiarias.
118
Além disso, ao chamar-se Juanillo Ponce de León, o narrador do romance confunde-se
com o próprio escritor, Napoleón Baccino Ponce de León. No contexto em que este romance
foi escrito (segunda metade da década de 80 do século XX, quando o Uruguai encontrava-se
em processo de redemocratização), pode-se pensar neste jogo de nomes e sobrenomes como
uma forma de o próprio escritor colocar-se em posição de conquistador do seu lugar/espaço
dentro da sociedade na qual vivia, principalmente se consideramos que este jornalista escrevia
seu primeiro romance (que viria a ser premiado pela Casa de Las Américas, o que nos leva a
crer que de certa forma este narrador/autor foi bem sucedido em sua “expedição”).
Então, põe-se em jogo uma relação entre generalização e identificação: a coincidência
do sobrenome do autor com o do personagem gera entre eles uma identificação imediata.
Porém, ao mesmo tempo, a escolha do primeiro nome Juanillo (em português Joãozinho)
generaliza este personagem, uma vez que, por ser um nome extremamente comum, pode
representar de forma impessoal a qualquer participante anônimo da história (tanto no que diz
respeito ao narrador/bufão quanto ao autor do romance).
O bufão tem traços particulares em relação a outros tipos de bobos-da-corte. A palavra
vem do italiano buffone, que em uma tradução literal quer dizer piadista; este é exatamente o
seu ofício primordial: o de fazer rir. Erroneamente, tende-se a pensar que sua origem remonta
das cortes da Idade Média Europeia. No entanto, este é um personagem mais antigo e parece
ter surgido na Ásia, entre os persas. Em diversas cidades do Egito, muito antes de nossa era, já
aparecem nos murais que decoram as paredes fúnebres indivíduos grotescos e malfeitos que
acompanham os grandes senhores. Parece que este costume passou do Oriente à Grécia, onde
se estabelece nada menos que no plano mítico do Olimpo, onde Sileno, um deus ou semideus
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bêbado, obsceno e atrevido atua junto a Dionísio. Dali, o costume se estendeu à Roma, e do
grande império as cortes medievais herdaram o hábito do bufão.62
A função do bufão é divertir seu bem-feitor. Historicamente, seu trabalho não era dos
mais fáceis (nem agradáveis) pois ele precisava ter grande habilidade mental e discursiva para
ter sempre respostas rápidas e agudas para quem o questionasse e a mesma coisa era válida
para o acervo de versos e canções, histórias e adivinhas sempre prontos para entreter a quem
fosse necessário, mesmo sem aviso prévio. Tudo isso não apenas divertia, apesar de que esta
era sua tarefa principal, mas também complementava informações que chegavam incompletas
aos ouvidos do monarca: o bufão contava sobre piadas de mau-gosto que faziam sobre a corte
ou então, falava sobre as queixas do povo, porque funcionava como uma voxpopuli, e graças a
sua “imunidade de louco”, era verdadeiramente livre para estas ações.
O bufão ou louco, deixava seu bom humor agir livremente e sua graça divertia os
senhores e seus convidados. Era um artigo pomposo nas grandes cortes e apenas os poderosos
podiam dar-se ao luxo de manter um ou mais bufões. Os preferidos eram os que apresentavam
maiores monstruosidades físicas: anões, gigantes, hermafroditas, corcundas, etc. O bufão é
então, por definição, um deformado que se esforça por fazer rir ao senhor que lhe paga e lhe
mantém, permitindo-se diversas licenças que não se concediam a nenhum outro cortesão.
Muito frequentemente, o engenho e o descaramento de um bufão o fazia ascender na corte,
chegando a fazer parte de festas e de conspirações, e a conhecer segredos e confidências
ignorados pelos demais.
O bufão histórico, segundo contam os registros, respondia rapidamente a qualquer
pergunta que lhe faziam e sempre tinha um conto pronto, uma história, uma brincadeira ou um
62Ver Enciclopedia universal ilustrada, Europeoamericana, Espasa-Calpe, Madrid-Barcelona, tomo IX, 1910, pp. 1325-1326. e LOPEZ, Carlos &GUARNIZO, Luis. La historia de los payasos. Universidad Pontificia Bolivariana de Medellín. 2008. Acesso em [http://www.monografias.com/trabajos11/hispay/hispay.shtml]
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enigma para que o público decifrasse. Alguns bufões chegaram a ter condições de fidalgos e
até títulos de nobreza, elevando-se ao cargo oficial. Um exemplo disso é o de Geoffroy, o
bufão de Felipe V de Navarra, ainda que o mais célebre seja Triboulet, o bufão de Luis VII,
chamado por Rabelais de “o louco prudente” e imortalizado por Victor Hugo no seu drama O
rei se diverte. Também alguns bufões são lembrados pela fidelidade a seus senhores, como o
modelo de Shakespeare para seu bufão do Rei Lear.
A sorte de um bufão nunca estava assegurada, uma vez que era tolerado se era
eficiente, isto é, divertido; do contrário, ele seria castigado por aquele que o sustentava e por
aqueles de quem ele caçoava.
Pensando no significado do bufão, tem-se que ele é a outra face da realidade, aquela
que a sobriedade adquirida com os anos faz esquecer e que, no entanto, reclama nossa
atenção. Este personagem é capaz de expressar em tom grave coisas tolas e em tom de piada
as coisas mais graves, de maneira que encarna a consciência irônica. Além de sua aparência
cômica, o bufão é interpretado como uma consciência desgarrada, assumido como um duplo
de si mesmo. É um fator de equilíbrio quando desconcerta os outros, à medida em que os
obriga a procurar a verdade que nasce da desenvoltura com que critica tudo e todos, inclusive
a si mesmo, de forma que, mais que um mero personagem cômico, mais que um engraçado
comediante em tom de comparsa, é a expressão da multiplicidade íntima da pessoa e suas
ocultas discordâncias.
Na tradição oral (e comumente também na literária), o bufão terminava sendo
executado ou sacrificado para fazer as vezes de um bode-expiatório. Dessa forma evidencia-se
que assim ele era considerado, pois o indivíduo e a sociedade não costumam ser capazes de
assumir-se com todos os defeitos assinalados pelo bufão e incapazes de resolver estas
contradições, optavam por eliminar sua imagem desconfortável e inquietante..
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Os bufões que na antiguidade acompanhavam as tropas, também se permitiam caçoar
dos generais. No caso de Juanillo, uma das ações dessacralizadoras é voltar-se para afigura do
Capitão, criticando-o duramente, mas articulado a um profundo respeito por ele, o que não
acontece com a figura do rei a quem se dirige. Podemos então, ler este personagem-narrador
em muitos níveis: o primeiro e mais imediato, é que talvez ele tenha realizado a viagem, e
talvez não, mas não importa pois o que conta é o entretenimento, como o personagem-cronista
oficial de Carlos V Juan Ginés Sepúlveda bem aponta no apêndice de Maluco (sobre o qual se
falará mais detidamente adiante). A segunda opção neste nível, é que sim ele esteve na
viagem, mas merece o castigo de desaparecer dos registros por dizer duras verdades sobre o
rei e sua família, além de que, pertencendo ao último escalão social, isto não importa a
ninguém. Em outro nível, pode-se ver que representa o outro lado das crônicas, a outra face da
realidade e do Capitão; a máxima autoridade da viagem e o mais insignificante integrante da
frota formam duas faces da mesma moeda. Tanto é assim que quando Juanillo conta suas
“visões” a Magalhães, consegue dizer exatamente o que ele quer ouvir. Acontece a Juanillo a
mesma sorte que a Magalhães: ficar sem glória e sem reconhecimento pela viagem. Nas
palavras de Juanillo,
Lo peor de estaprofesión de nos que es la de ser fabricantes de ilusión y creadores de folganza, es quenadie nos toma en serio cuando hablamos en serio, ni se cuidan de nuestras prevenciones yavisos por atinados que ellos sean, que venimos en esto a parecernos a aquella señoraCasandra.” (1992: 80)
Apesar disso, cumpre o melhor que pode a sua missão de mostrar à pessoa com máximo poder
(rei ou capitão) suas extravagâncias, erros, e as consequências dos quais pode orgulhar-se.
Nas primeiras linhas do romance, este bufão, que é narrador-personagem do romance
de Baccino, se apresenta como “Juanillo Ponce” (1992: 7) e define sua profissão dizendo
“¿qué cosa hay en este mundo más necesaria que los Francesillos, y los Pericos63, y este
63 Francesillo de Zúñiga foi um famoso bufão da corte da época de Carlos V. De origem judaica, assemelha-se muito a nosso protagonista. Perico Ayala foi bufão do Marquês de Villena, menos conhecido que Francesillo,
122
Juanillo de profesión bufón?” (1992: 9). Estabelece-se aí um referencial-padrão, reconhecível
aos leitores, já que sabe-se de modo geral que o bufão era o personagem deformado que
acompanhava os reis, encarregado de divertir. Juanillo está próximo do Capitão geral Fernão
de Magalhães grande parte do tempo na narrativa, mas nunca o chama pelo nome (sempre o
chama de “señor” ou “Capitán”) apesar de que o trata de “tú”, como corresponde a seu ofício,
e através desta condição e falando diretamente a Magalhães, repreende e assinala seus
disparates: “¡Déjanos en paz! ¡Eres un loco!” (1992: 175); dá conselhos, embora estes não
sejam seguidos: “Convoca a los jefes y pilotos, diles que nos vamos a casa” (1992: 111); e
ampara e anima quando necessário: “sé que del otro lado de esta línea que llaman horizonte
está el Maluco –digo, aparentando una gran confianza” (1992: 213). No entanto, apesar de
toda a confiança que lhe é permitida, e de que em diversas situações Juanillo faça as vezes de
um amigo do Capitão, a relação hierárquica parece ser respeitada, inclusive havendo no texto
alusão a um comportamento algumas vezes semelhante ao de Enrique, escravo de Magalhães,
como se vê na passagem a seguir: “[El Capitán] estaba tendido en la litera con la armadura
puesta y a su lado, sentado en el suelo y con las piernas cruzadas, su esclavo Enrique.”, e
Juanillo, ao chegar no recinto, adota a mesma postura: “Me senté, pues, cual madre amorosa a
sus pies” (1992: 44).
Foi dito que Juanillo não nomeia Magalhães, porém o bufão se auto-nomeia com
muita frequência, numa espécie de necessidade de auto-afirmação constante, para que fique
claro quem está no comando desta narrativa. Ao dirigir-se a Carlos V, denomina-se de
diversas formas, sendo simplesmente “Juanillo” ou “tu Juanillo” as mais comuns. Denominar-
se “conde de Maluco” (1992: 33) pode ser bastante ofensivo à autoridade real e inclusive, é
motivo de que a Inquisição o questione “por qué me hacía llamar conde del Maluco” (1992:
41), e sua resposta fala sobre o título que Magalhães o prometeu em nome de sua amizade,
mas eram amigos. Ver artigo de José Sánchez Paso: “Don Francés de Zúñiga”, disponível em,<http://bib.cervantesvirtual.com/historia/CarlosV/8_3_sanchez.shtml.> Acesso em dezembro de 2011.
123
tornando-se assim “conde del Maluco, por la gracia de don Hernando, mi señor” (1992: 42).
Outra expressão de Juanillo para referir-se a si mesmo é “el primer bufón del orbe todo”
(1992: 65), entre tantas outras.
Todas estas expressões são assumidas depois da viagem, na ocasião da escritura de seu
relato. Juanillo o faz lançando mão das suas prerrogativas de bufão, porém, ao fazê-lo toma a
decisão consciente de passar por cima das restrições a ele impostas pelas máximas autoridades
(no caso, o então rei Felipe II), uma vez que sua condição de conde lhe foi negada, assim
como sua participação na viagem foi apagada dos registros. O objetivo deste intenso processo
de auto-afirmação é dizer à máxima autoridade (para ele, neste momento, Carlos V e não
Felipe II) que sim, ele é conde, e deve referir-se ao dinheiro que lhe foi tirado, pois já que lhe
tiraram seu título, que ao menos lhe paguem a pensão, sua de direito. O que Juanillo precisa é
voltar a existir já que “le parece que su vida toda quedó en ese viaje, y que al desaparecer de
las listas se convirtió en un fantasmano sólo porque su nombre no aparezca, sino porque ello
va acompañado de la falta de dinero” (GARCÍA RAMÍREZ, 2003, p. 43) em outras palavras,
“me vi privado de mi pensión y de mi identidad. Juanillo era un fantasma” (1992: 42).
Estas duas passagens refletem com precisão a alegoria central aqui proposta para
Maluco, representativa do alçamento da atualidade de Baccino para o universo do texto. Já foi
visto que durante a ditadura, ele teve que se dedicar a funções alheias à sua vocação,
sujeitando-se a diversos tipos de trabalhos, os quais possivelmente não lhe rendiam o
suficiente para sustentar sua família. É como se toda sua vida tivesse ficado para trás, na
capital, ao empreender sua viagem de insílio, a qual o tirou da circulação acadêmica, que
coincidia com seu meio de sobrevivência, fazendo sua existência converter-se em uma
fantasmagórica sombra do passado, inexistente por ter fugido e por ter perdido sua identidade.
No final das contas, Juanillo escreve na esperança de voltar à vida, assim como Baccino.
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Em relação à descrição física de Juanillo, esta aparece pela primeira vez na página 74,
mas confirma as expectativas do leitor no que diz respeito ao bufão.
Os juro Alteza que con ser mi madre judía y mi padre desconocido y yo algoenano y bastante contrahecho, y llevar en mis partes la seña del converso, y ser tenido por comunero a causa de mi señor Juan, y no tener otro oficio que el de truhán y chocarrero, ni otra riqueza que vuestra generosidad. (1992: 74)
A pesar de sua deformidade física, Juanillo descreve seu caráter como “pessoa” (e não como a
figura-personagem do bufão) na cena em que decide batizar os macacos que encontra,
seguindo o exemplo das autoridades da expedição que batizam os índios encontrados.
Segundo suas próprias palavras, ao macaco mais parecido a ele próprio (a tal ponto que o
batiza com seu próprio nome), diz: “se destacaba de los otros porque nunca se daba por
vencido y a pesar de los golpes volvía, una y otra vez, al ataque, y colocándole sobre los
hombros una capa de terciopelo que había hecho con un retazo, le llamé Juancito” (1992: 88).
No entanto, também aparece sua descrição como bufão:
Un bufón debe saber guardar secretos. Porque un bufón es como un amigo alquilado, ¿comprendes? Con nosotros puede la gente solazarse y sincerarse sin consecuencias, porque ¿quién toma en serio lo que dice un bufón? A nosotros pueden decirnos cosas que no dirían a sus mejores amigos, y tratarnos como no tratarían a sus enemigos; sin problemas de conciencia, que para eso nos pagan. Por eso digo que el nuestro es, junto con el de las putas, el más antiguo y necesario de los oficios (1992: 211).
Sempre consciente de que, como já foi mencionado, a forma como o bufão é tratado e
compreendido varia, ele se esforça em realizar sua tarefa: “En vano se esforzó entonces tu
Juanillo por mantener la cordura con sus canciones y bromas y mil trucos.” (1992: 18) Nestes
dois novos trechos apresentados, também podemos apreciar a alegoria viva no texto: o bufão
(assim como Baccino) reflete sobre seu seu papel na sociedade. Ambos são narradores natos,
contadores de histórias, são pagos para entreter com suas histórias. Por outro lado, ao
comparar a antiguidade e necessidade da profissão com a “de las putas”, a desauratização do
escritor contemporâneo é conscientemente trazida à pauta.
125
Em língua antiga, a palavra que designava “druida” e “bufão” partiam do mesmo
radical e guardavam entre si uma semelhança semântica. Neste caso, da mesma forma, pode-
se pensar que o fato de que os bufões têm uma proximidade semântica com os sábios aplica-
se a Juanillo, uma vez que ele não apenas se esforça para manter a sensatez como parece
muitas vezes ser o único que se dá conta das lutas de poder que ocorrem ao longo da viagem,
como se fossem as brigas entre seus macacos:
Y su suerte dependía de mí, quien a mi vez, dependía de don Hernando, quien dependía de Vos, quien...Pero aquellos tontos animales no lo sabían y se destrozaban luchando por un espacio que nada significaba, prisioneros de una nave sobre la que jamás ejercerían algún dominio. (1992: 87)
Seguindo este raciocínio, mais adiante, Juanillo afirma que
para el mar, para las selvas, para el viento, no éramos nada, menos que un puñado de hormigas flotando sobre un trocito de madera en la inmensidad del mar [...]. Pero nadie parecía tener conciencia de ello. (1992: 100)
Esta proximidade semântica também pode ser pensada do outro lado do “espelho” alegórico,
em relação ao intelectual contemporâneo, ocupando um papel de sábio, se considerarmos a já
mencionada importância que o intelectual latino-americano acabou por adquirir dentro de sua
sociedade.
Pensemos mais detidamente nesta relação de duplicidade que existe entre Baccino e
Juanillo. Ao começar a leitura de Maluco, já no primeiro parágrafo sabe-se que o narrador é
um bufão. Desta forma, é possível formar alguma ideia do que se pode esperar dele (a qual se
pode confirmar ou não ao longo da leitura). Ele mesmo se apresenta nas primeiras linhas –
“yo Juanillo Ponce, natural de Bustillo del Páramo, en el reino de León” (1992: 7) – e estas
palavras dão lugar “al juego que esta novela [...] establece para diluir las líneas que separan la
realidad de la realidad de la ficción” (GARCÍA RAMÍREZ, 2003, p. 57). O nome do narrador
sugere uma espécie de parentesco entre ele e o próprio autor (da mesma forma que acontece
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em auto-biografias, onde há uma identidade entre autor, narrador e personagem), pois o
sobrenome materno de Napoleón Baccino Ponce de León coincide com o do narrador.
De acordo com a análise realizada por Perla Elsa García Ramírez (2003), pode-se
pensar que a ilusão deste laço sanguíneo entre autor e narrador do romance corrobora a ideia
de que tudo o que será contado a seguir é mentira, pois quem escreve (o autor) poderia ser um
descendente de um mentiroso profissional (o bufão-narrador), ou seja, é um mentiroso que
escreve sobre um mentiroso, ou ainda, que o narrador é invenção do autor a quem cede seu
poder de invenção para narrar o romance (GARCÍA RAMÍREZ, 2003, pp. 57-64, passim)
Estas mesmas palavras iniciais de apresentação do narrador estabelecem outro laço,
desta vez intertextual, com a literatura da época na qual se desenvolve a trama: o romance
picaresco64. Esta relação é verificada, não apenas neste início em comum, com estruturas
coincidentes, mas também no fato de que em ambos relata-se uma história, cujo objetivo é a
leitura por um destinatário que forme uma opinião justa sobre o relatado. Além disso, pode-se
dizer que ambos são narrados em primeira pessoa e o protagonista é um personagem
marginal. Oscar Tacca afirma que o encanto destes romances é que desloca-se
su realización [do narrador] del héroe al antihéroe, al héroe sin “dignidad”[…], a ese desprovisto de todo miramiento que cuentaorgullosa y descaradamente su historia. De la acentuación (por medio de unnarrador completamente inusitado) de un punto de vista inferior y restringido, peroabsolutamente auténtico y legítimo nace buena parte del encanto de la picaresca. (TACCA apud GARCÍA RAMÍEREZ, 2003, p. 58)
Esta afirmação reflete parte do que pretende Baccino ao escolher um bufão para narrador: que
seu discurso se faça perceber como legítimo e autêntico. Retomando o espírito literário do
tempo da narrativa65, faz-se notar que um bufão poderia ser um personagem tão marginal
quanto os protagonistas dos romances picarescos, já que ambos conhecem igualmente a pior
64Vejam-se algumas palavras do romance que inaugura o gênero picaresco: “Pues sepa Vuestra Merced, ante todas las cosas, que a mí me llaman Lázaro de Tormes, hijo de Tomé González y Antona Pérez, naturales de Tejares”. La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades. Madrid: Alianza, 1998. 65 Isto pode indicar que tanto quanto Baccino estava inteirado e atualizado das tendências literárias da época da escritura do romance, e que também a escrita de Juanillo está atualizada em seu tempo.
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natureza humana e que, ao mesmo tempo, encontram-se mais próximos do poder do que
outros. Apesar de que Juanillo não reconta sua vida desde o princípio como fazem os
protagonistas da picaresca, ele tem uma sorte muito parecida a de seus contemporâneos
pícaros, fazendo menção de sua origem: uma mãe que nunca o apresentou ao pai, uma irmã
que morreu na pobreza em que viviam, sua marginalidade herdada de sua origem judaica
numa Espanha radicalmente católica, sua passagem pelos serviços prestados a um clérigo, sua
forçada e constante mudança de senhores.
Assim como Lázaro, antes de iniciar o relato dos feitos que o levaram a sua situação
atual, Juanillo se apresenta saudando a Vossa Alteza, a quem endereça sua narração e
explicita o motivo que o leva a escrever e de que assunto tratará:
determiné antes demorir, dar cuenta a Vuestra Alteza de los muchos prodigios y privaciones que en aquelviaje vimos y pasamos, y el mucho dolor y la gran hambre que sufrimos, junto a las muchas maravillas y placeres que tuvimos.(1992: 8)
Do mesmo modo que no relato da vida de Lázaro, onde “Vuestra Merced, en última
instancia, explicaba la existencia y la estructura de la autobiografía” (RICO, 1970, p. 123), em
Maluco, a figura do rei Carlos V é o centro da narração, figura em torno da qual tudo gira, a
quem constantemente o narrador se dirige, tendo um papel de narratário primeiro dentro da
qual estão muitas outras. Há constantes referências a este destinatário, que condicionam o
discurso66.
As palavras já mencionadas da primeira página de Maluco “yo Juanillo Ponce, natural
de Bustillo de Páramo, en el reino de León” (1992: 8), também revelam que este será um
relato em primeira pessoa, e mais adiante, no também supracitado trecho – “determiné, antes
de morir, dar cuenta a Vuestra Alteza de los muchos prodigios y privaciones que en aquel
viaje vimos y pasamos, y el mucho dolor y la gran hambre que sufrimos, junto a las muchas
66Veja-se alguns poucos exemplos desta referência: “En verdad os digo, Altísima Majestad” (1992; 100); “Y a Vos, Alteza, ¿qué os ha parecido mi juego?”(1992: 125); “Cierre Vuestra Majestad don Carlos los ojos a los empolvados secretarios y las rosadas damas que pueblan sus palacios” (1992: 25), entre muitos outros exemplos.
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maravillas y placeres que tuvimos” [grifos nossos] – os verbos conjugados na primeira pessoa
do plural nos indicam que ele foi participante ativo da expedição da qual falará, e além disso,
indica que este relato tem um destinatário explícito (“Vuestra Alteza”). Ainda neste primeiro
momento, a profissão do narrador é revelada: “haría además justicia a esta noble profesión de
nos, que esla de hacer reír olvidando nuestros propios dolores para mitigar las penas ajenas;
porque¿qué cosa hay en este mundo más necesaria que los Francesillos, y los Pericos, y
esteJuanillo de profesión bufón?” (8-9). Baccino, alegoricamente, mais do que reivindica,
esclarece sua participação na História, ao empregar os verbos no plural, e afirma a
importância de sua profissão, ou posição intelectual, como a de outros pares seus.
No que concerne ao relato em primeira pessoa, pode-se dizer que nas crônicas de
descobrimento, como as Cartas de relación de Hernán Cortés, e a Historia verdadera de la
conquista de la Nueva España, de Bernal Díaz del Castillo, apresentam a mesma
característica. Em relação especificamente com a crônica de Bernal Díaz de Castillo, há uma
forte semelhança no que diz respeito ao tempo do relato, uma vez que tanto Juanillo quanto
Bernal Díaz de Castillo escrevem seus relatos já velhos, com a intenção de conseguir o
reconhecimento Real de sua participação nas proezas narradas e esperam com isso conseguir
um retorno financeiro. Outra similaridade é que em ambos os casos, há uma intenção clara de
desmentir os cronistas oficiais (ou pelo menos, oferecer uma nova versão). No caso de
Maluco, foram Francesco Antonio Pigaffeta e Pedro Mártir de Anglería67, os responsáveis por
tentar dar uma versão objetiva dos fatos. Juanillo apresenta-os da seguinte forma:
Y si el relato puntual y verdadero de nuestras miserias, relato que en todo falseóvuestro cronista Pedro Mártyr de Anglería para mayor gloria de Su Alteza
67Através da História oficial, sabe-se que Pigaffeta chegou em 1518 à Espanha, e inscreveu-se em 1519 para participar da expedição de Magalhães, na qual de fato tomou parte. Foi ferido em Mactán, mas foi um dos poucos sobreviventes que voltaram à Espanha. Em 1524 escreveu uma crônica, publicada em italiano por volta de 1800 intitulada “Relazione in torno al primo viaggio di circumnavegazione, notizia del Mondo Nuovo con la figure del paesi scorpeti”, encontrada em português com o título de A primeira viagem ao redor do mundo: o diário da expedição de Fernão de Magalhães.Pedro Mártir recolheu notícias sobre o Novo Mundo entre 1494 e 1526 (ano de sua morte), tendo compilado toda esta informação sobre as viagens em De Orbe novo decades, trabalho praticamente jornalístico.
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Imperial,así como de las muchas cosas que aquel sagaz caballero vicentino don Antonio dePigaffeta calló y enmendó por la misma razón” (1992: 8)
Então, dessa forma Juanillo assume uma posição autorizada para narrar os acontecimentos da
viagem. No entanto, o que Juanillo pretende fazer é o oposto do que tentaram fazer Mártyr e
Pigaffeta, pois em muitas de suas digressões faz referência a ele mesmo, ao que ele sentia e a
sua situação atual (no presente histórico da narração), e crê que acaba por refletir o que muitos
marinheiros sentiram durante a expedição, e inclusive atreve-se a sugerir que também sabe o
que sentia Magalhães, o que contribui a marcar sua filiação com o novo romance histórico.
Esta abrangência pode ser entendida como uma tentativa de processamento dos fatos
referentes ao período ditatorial atravessado por Baccino, através da alegoria literária, a qual,
como já foi mencionado, é uma forma de representação do conteúdo traumático muito
produtiva.
Sendo a narração de Maluco em primeira pessoa, é marcada pela subjetividade do
personagem, o que se reflete na acentuação de alguns dados e omissão de outros. A finalidade
do relato de Maluco está expressa logo a princípio, com a finalidade de garantir sua
sobrevivência, comprovando que esteve nesta viagem, colocando-se no trecho que segue à
mesma altura do Capitão Geral (o que deve ser entendido como um exagero bufonesco, uma
vez que ao longo da narrativa vê-se que não é exatamente assim):
llegare al corazón de Vuestra Merced, tenga él en cuenta que en Bustillodel Páramo, mi pueblo natal, sufre grande pobreza este Juanillo, bufón de la armada,que hizo con sus gracias tanto por la empresa como el mismo Capitán General con suobstinación (8).
Recapitulando alguns pontos importantes expostos até aqui, em Maluco um dos
personagens toma a voz e começa a relatar a história da viagem, e este narrador é Juanillo
Ponce, o bufão da tropa. Neste caso, usar um personagem-narrador aporta certo grau de
verossimilhança, pois apesar de que o narrado não coincide completamente com o que contam
as crônicas oficiais, quem narra se afirma como parte integrante da tripulação, e mais
130
especificamente do seleto grupo de sobreviventes que conseguiu completar a primeira viagem
de circunavegação, e fornece tamanha quantidade de detalhes que somente um participante
poderia dominar. O narrador tem um destinatário específico (nada mais, nada menos que o
imperador Carlos V), porém diferentemente da picaresca, este destinatário é descaradamente
exibido, já que isto corresponde ao ofício do bufão. Nas palavras de Juanillo:
Es que hay oficios, como el tuyo y el mío, que no se aprenden; se nace con ellosdentro. Aunque vos, Alteza, no sé..., que os he visto ejecutar bromas y cabriolasdesde vuestro augusto trono, con un donaire y una desfachatez que serían la envidiade cualquier loco o bufón, incluido el mismísimo Francesillo. (52-53)
Baccino gerou um personagem, o narrador, que não fala a um leitor hipotético, mas
sim dirige-se a um leitor específico dentro da própria obra, o que o converte também em um
personagem. O discurso deste narrador foi elaborado para regular as reações deste leitor-
personagem. Assim, a narração fica emoldurada, esclarecendo o ciclo comunicativo e
reduzindo-o a um processo diegético entre o narrador Juanillo Ponce e o leitor de seu relato,
Carlos V, deixando os demais leitores “aparentemente” fora da cena. Porém, diferentemente
das Cartas de relación escritas por Hernán Cortés ao mesmo Carlos V, as quais constituem
uma correspondência de cuja apreciação que se faz hoje somos apenas espectadores (em
termos de análise histórica ou literária), em Maluco, tem-se que narrador e destinatário são
personagens, sendo parte fundamental da estratégia linguístico-narrativa de Baccino para a
constituição desta ficção. Nas palavras de García Ramírez,
sabemos de ciertoque ni Cortés, ni ninguno de los que pretendieran el favor de Carlos V (o de cualquierotra autoridad) hubiera usado jamás (por muy bufón que fuera) el tono impertinente queemplea Juanillo en algunas partes de su obra. (GARCÍA RAMÍREZ, 2003, p. 62)
Por outro lado, o fato de que a voz narrativa de Maluco seja predominantemente a de um
personagem-testemunha, há certas particularidades como por exemplo o fato de em muitos
momentos Juanillo apresente sem aparentemente compreender a informação que narra,
131
proporcionando aos leitores uma visão incompleta. Porém, sua perspectiva, a partir do lugar
de onde se dirige ao rei, permite-lhe compreender o que não entendeu no momento em que as
coisas aconteceram. É como se
un “yo”habla[ra] de otro “yo”, aunque se trate de la misma persona, o como lo dice Genette: “el “yo”que narra, en tanto sujeto de la enunciación narrativa, toma su “yo” narrado como objetode su narración. No obstante, la libertad de desplazamiento temporal entre los dos “yo” lepermite a un narrador homodiegético asumir la perspectiva de su “yo” narrado, o bien, unacto de reflexividad, la del “yo” que narra”; en muchas ocasiones se desdobla paracumplir la doble función de narrador y personaje, se parte en dos entidades diversas, cadauna con su propio presente y su propia conciencia. (GARCÍA RAMÍREZ, 2003, p. 63)
Exemplos desta consciência mencionada por García Ramírez são corriqueiros ao longo da
obra. Veja-se estes três exemplos: “¿Cómo podía yo imaginar, Alteza, la negra suerte que nos
estaba reservada?” (1992: 7); “Con el tiempo yo mismo he llegado a pensar que en verdad era
el nuestro un viaje sin retorno” (1992: 25); “Tuviera o no la razón – nada sabíamos entonces y
nada puedo adelantarte ahora” (1992: 236). Outro recurso muito corrente em Maluco (que
acaba por diferenciar a função de voz narrativa do personagem) é o tratamento em terceira
pessoa por parte do próprio narrador, como pode-se ver nas seguintes passagens, nas quais
Juanillo se refere a si mesmo: “Impresionado, Juanillo estaba a punto de retroceder ante
aquella legión de ángeles enloquecidos” (1992:158); “Atravesando aquellos pasillos, Juanillo
se sentía como cuando niño” (1992: 179).
Neste ponto, vale tomar emprestadas as ideias de Michel Foucault em As palavras e as
coisas (2000) para interpretar o quadro de Diego Velásquez, Las Meninas68. O quadro,
pintado no século XVII, retrata um sujeito que olha fixamente, prestes a (ou em processo de)
pintar. Este pintor aparece na esquerda do quadro. Podemos vê-lo inteiro por trás de sua tela
de costas para nós, e ao seu lado estão no centro uma menina e sua aia, dois anões (um
certamente bufão), um cão e mais três criadas um passo atrás. Muitos destes personagens
olham fixamente para o mesmo ponto que o pintor retratado. Segundo Foucault, o pintor
68 Uma imagem do quadro Las Meninas encontra-se em anexo nesta pesquisa, na página 152.
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fixa um ponto invisível, mas que nós espectadores, podemos facilmente determinar, pois esse ponto somos nós mesmos. [...] O espetáculo que ele observa é, portanto, duas vezes invisível: uma vez que não é representado no espaço do quadro e uma vez que se situa precisamente nesse ponto cego, nesse esconderijo essencial onde nosso olhar se furta a nós mesmos no momento em que olhamos. E, no entanto, como poderíamos deixar de ver essa invisibilidade, que está aí sob nossos olhos, já que ela tem no próprio quadro seu sensível equivalente, sua figura selada? (FOUCAULT, 2000, p. 3)
A invisibilidade daquilo que o artista contempla torna-se tangível a partir da linha
traçada pelo seu olhar até aqueles que olham o quadro. Este “pontilhado nos atinge
infalivelmente e nos liga à representação do quadro” (FOUCAULT, 2000, p. 4), gerando a
dúvida se somos vistos ou estamos vendo.
Ao fundo do quadro, aparece uma moldura na parede ao fundo da sala, que na verdade
é um espelho que fornece a imagem de duas figuras, um homem e uma mulher, e que no
entanto, nada mostra do que já foi mostrado. Sua posição é central e não faz ver nada do que o
quadro representa, captando algo que está fora do olhar. O que nele se reflete é o que todas as
pessoas da sala olham fixamente, pois são na verdade, os retratados pelo pintor. “Este jogo de
representação consiste em conduzir essas duas formas de invisibilidade uma ao lugar da outra,
numa superposição instável”, de modo que “o espelho assegura uma metátese da visibilidade
que incide ao mesmo tempo sobre o espaço representado no quadro e sua natureza de
representação; faz ver no centro da tela, aquilo que do quadro, é duas vezes necessariamente
invisível” (FOUCAULT, 2000, pp. 9-10).
No quadro de Velásquez, estão representados ele mesmo em seu ateliê (ou num salão
do Escorial), pintando o rei Felipe IV e sua esposa Mariana, para quem a infanta Margarida
olha fixamente, rodeada de aias, damas da corte, cortesãos, um bufão e outro anão. Porém, a
relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita”, de modo que
por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aqueles que as sucessões da sintaxe definem (FOUCAULT, 2000, p. 11)
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Para além da sintaxe do que se pode dizer sobre a representação, as personagens no fundo do
espelho deixam margem para um imprevisto em sua contemplação: o rosto que o espelho
reflete é igualmente aquele que contempla. “Pura reciprocidade que manifesta o espelho que
olha e é olhado” (FOUCAULT, 2000, p. 16). O “espetáculo-de-olhares” do quadro, centra-se
nos soberanos, porém Foucault nos indica que eles são também as figuras mais frágeis da
cena, pois presentificam-se através do pálido reflexo no espelho, o qual todos desprezam.
Estão distantes do restante da realidade e ao mesmo tempo, é diante delas as coisas e demais
pessoas estão.
Esse centro é simbolicamente soberano na sua particularidade histórica, já que é ocupado pelo rei Felipe IV e sua esposa. Mas, sobretudo, ele o é pela tríplice função que ocupa em relação ao quadro. Nele vêm superpor-se exatamente o olhar do modelo no momento em que é pintado, o do espectador que contempla a cena e o do pintor no momento em que compõe seu quadro (não o que é representado, mas o que está diante de nós e do qual falamos). Essas três funções “olhantes” confundem-se em um ponto exterior ao quadro: isto é, ideal em relação ao que é representado, mas perfeitamente real, porquanto é a partir dele que se torna possível a representação; nessa realidade mesma, ele não pode deixar de ser invisível. (FOUCAULT, 2000, pp. 18-19)
Sobre o reflexo no espelho, Foucault afirma que a generosidade do pintor em retratar
aquilo que todos olham em primeiro plano pode na verdade ser uma simulação, pois talvez
“esconda tanto ou mais do que manifesta”. Ele segue, afirmando que
O lugar de onde impera o rei com sua esposa é também o do artista e do espectador: no fundo do espelho poderiam aparecer – deveriam aparecer – o rosto anônimo do transeunte e o do Velásquez. Pois a função deste reflexo é atrair para o interior do quadro o que lhe é intimamente estranho: o olhar que o organizou e aquele para o qual ele se desdobra. (FOUCAULT, 2000, p. 19)
Em Maluco, o diálogo dirigido a Carlos V pode ser interpretado à luz destas ideias de
Foucault sobre o quadro de Velásquez, como uma forma de expor alegoricamente que
Baccino, como intelectual de seu tempo, questiona ativamente as atitudes tomadas pelo
governo autoritário de forma arbitrária. Sua característica soberana é fragilizada através deste
diálogo, assim como o reflexo no espelho de Las Meninas. Além disso, o papel do artista
134
(intelectual, criador) é posto em alinhamento com o papel do espectador (leitor) e de seus
soberanos.
Na mesma medida, o questionamento da veracidade dos relatos dos historiadores
oficiais anteriormente mencionado, demonstra a resistência e a dúvida em relação às formas
oficias de registro do poder, onde a vivência da realidade é omitida em prol dos interesses do
governo. Tanto no caso do questionamento direto às atitudes do governo, quanto
indiretamente quando questiona suas formas de registro oficiais, a única saída encontrada,
forma de rebeldia ou protesto no sentido de encontrar uma solução, é escrever. Narrar é tudo
que lhes resta (tanto a Baccino quanto a Juanillo). Tudo isso leva a crer numa autorreflexão da
atualidade em que vive Baccino, espelhada na alegoria criada em Maluco.
Dentre tantas análises possíveis no vasto universo alegórico criado em Maluco, um
último episódio será ressaltado: o apêndice do romance. As últimas oito páginas constituem
um apêndice cujo autor deixa de ser nosso bufão Juanillo, passando a ser o “humilde y leal
servidor, Juan Ginés de Sepúlveda” quem toma a palavra em outra carta de “21 de septiembre
de 1558”. Este novo interlocutor está respondendo à uma carta do próprio Carlos e atende seu
pedido:
En respuesta a la suya de fecha 20 de agosto, donde Su Majestad requiere mi modesta opinión acerca de varios asuntos relacionados con la primera expedición al Maluco o islas de la Especiería y, con la tranquilidad de haber hecho cuanto a mi alcance estaba por satisfacer de un modo honrado la sana curiosidad de tan glorioso Príncepe, digo: (1992: 309)
A partir daí, Juan Ginés Sepúlveda enumera vinte e um pontos historicamente comprováveis
através de documentação, confirmando ao ex-monarca os fatos que permeiam o relato de
Juanillo.
Esta seção nos interessa pois, em primeiro lugar, demonstra que Juanillo conseguiu
fazer-se ler (o que se constitui no maior objetivo de qualquer escritor/narrador), de tal forma
que Carlos V chega a perguntar-se pela legitimidade dos fatos narrados.
135
Em segundo lugar, é interessante perceber na passagem acima a forma como Juan
Ginés Sepúlveda se dirige a Carlos V, extremamente formal e respeitoso, apesar de sua
relação de proximidade e extrema confiança com o imperador. Consta que verdadeiramente
Juan Ginés de Sepúlveda foi um humanista espanhol, defensor fervoroso do direito de
conquista da América pelos espanhóis. Em 1536 é sabido que Carlos V o nomeia seu cronista
oficial, passando inclusive a ser tutor de seu filho, o futuro Rei Felipe. Escreveu De rebus
gestis Caroli quinti imperiatoris et regis Hispaniae accurante Regia Historiae Academia
(traduzido para o espanhol sob o título de Historia de Carlos V).
Outro ponto que chama a atenção é a data de envio da carta de Ginés Sepúlveda a
Carlos V: 21 de setembro de 1558, justamente a data de morte de Carlos V. Isso significa que
por mais que tenha conseguido atingir seu objetivo de narrar ao ex-monarca sua participação
na viagem para que lhe concedesse novamente sua identidade e sua remuneração financeira,
por mais que ele tenha se sensibilizado a ponto de mobilizar seu cronista oficial para verificar
a legitimidade de tal relato, apesar disso tudo, não terá sido possível levar seus anseios a cabo,
pois seu salvador morreu antes de receber o aval (ou não) de Ginés Sepúlveda.
E para finalizar, ironicamente, é justamente este cronista oficial quem traz no último
parágrafo do romance a definição do papel do bufão, tão coincidente com a do escritor no
momento em que o campo literário conquista a sua autonomia: escrever, contar histórias para
entreter e se for eficiente, ser remunerado por seu trabalho:
En cualquier caso debo admitir, Majestad, que el autor cualquiera que sea, ha pasado grandes trabajos para escribir su crónica y, si me permite una opinión personal, grande placer me ha causado con ella y bien merece la pensión que solicita. (1992: 316)
Se por um lado, pensamos estritamente que de nada adiantou pois uma vez morto
Carlos V, não seria Felipe II (o próprio responsável pela penalidade imposta a Juanillo) aquele
que devolveria seus direitos, por outro, pode-se entender que a compreensão de seu papel, a
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legitimização dos trabalhos prestados só é possível quando morre a figura que ao longo do
romance foi representativa do poder.
E é por isso que ninguém além de Baccino poderia ter escrito essa história, lançando
mão do recurso da alegoria para representar seu trabalho de trauma, tentando recuperar
através de seu duplo Juanillo, o bufão, sua identidade e papel na sociedade uruguaia recém
saída de uma ditadura, esforçando-se por deixar de ser um fantasma do que ficou trás. E no
entanto, ao retornar depara-se com um mundo muito parecido com o que havia deixado, quase
circular, mas totalmente transformado pela viagem empreendida.
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5 CONCLUSÃO
De acordo ao que foi exposto na presente dissertação, o romance Maluco. La novela
de los descubridores, reconta em primeira instância a viagem inaugural de volta ao mundo,
realizada por Fernão de Magalhães e sua tropa saídos de Sevilla em agosto de 1519 com cinco
navios, com duzentos e trinta e sete homens, dos quais regressaram a Sevilla em setembro de
1522 apenas dezoito sobreviventes em uma única embarcação em tão mal estado, que acaba
por naufragar a pouca distância do porto onde deveria atracar e sem trazer de volta nem um
grama de especiarias.
Conforme nos mostra o próprio apêndice de Maluco, supostamente escrito por Juan
Ginés Sepúlveda (o cronista oficial de Carlos V até sua morte), os fatos históricos narrados ao
longo do romance conferem com os registrados pela História oficial. A diferença aqui é que
trata-se de um romance, sem intenção de verdade, narrado por um bufão que teria participado
da expedição.
Este bufão, Juanillo, relata suas experiências na viagem décadas depois, em uma carta
endereçada a Carlos V, já retirado em Yuste, quando seu filho Felipe II é o atual rei. Juanillo
dirige-se a ele e não a Felipe II, pois pretende com seu texto conseguir que Carlos V interceda
junto ao filho no sentido de restituir-lhe a pensão que lhe foi cassada no momento em que
seus serviços de bufão já não interessavam mais ao atual monarca.
Quem escreve este romance é Napoleón Baccino Ponce de León, professor de
literatura forçadamente afastado de seu cargo no Instituto de Profesores Artigas, em
Montevidéu, uma vez que este foi interditado por intervenção do governo durante a ditadura
cívico-militar no Uruguai. Baccino, se mudou para Punta del Diablo, numa espécie de
movimento de fuga (para usar os próprios termos de Baccino em entrevista), um insílio, já que
ele e sua família não possuíam passaporte para optar pelo exílio. Refugiado em Punta del
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Diablo, cercado de mar, Baccino sente-se num barco, afastando-se da costa, afastando-se da
dura realidade que deixou na capital, sem no entanto jamais perder a sensação de ser
participante ativo desta página da história de seu país.
Em seu trabalho de luto, para usar a expressão freudiana retomada por Idelber Avelar,
Baccino constrói um universo alegórico chamado Maluco, no qual ele mesmo, alegoricamente
espelhado no narrador-bufão Juanillo (que não por acaso é seu homônimo, tendo como
sobrenomes Ponce de León), protagoniza o esforço de escrever para lutar por uma identidade
perdida, que o transforma num fantasma, numa sombra do que realmente é, não apenas em
termos ideológicos, mas inclusive financeiros.
Este duplo de Baccino é possuidor de um caráter único, extremamente significativo.
Ele é um bufão, cujo ofício de certa forma remunerado é contar histórias para entreter. Além
disso, ele é um personagem que tem privilégios, como por exemplo, manter contato direto
com as mais altas esferas hierárquicas da frota e servir muitas vezes como seu confidente,
uma vez que como não se leva a sério nada que um bufão diz, ainda que seus segredos dali
vazem, não seriam levados a sério por seus ouvintes. O bufão tem então, o poder de falar sério
sem que seja tomado em consideração, e brincando tem o direito de falar o quiser. Este direito
no entanto, confere-lhe um certo risco, que no caso de Juanillo de fato se concretizou: caso
não esteja mais nas graças de seu senhor, será cortado de sua vida. Historicamente, o bufão
era algumas vezes sacrificado por este motivo, enquanto que no caso de nosso bufão, ele foi
apagado das listas de participação da viagem, o que acarreta a perda de sua identidade e da
pensão com a qual sobrevive. Coincidentemente, Baccino passa pelo mesmo processo
fantasmagórico de perder o direito de ser reconhecido pelo que é, e de continuar sendo.
O nome deste bufão nos remete a mais uma importante coincidência, a qual é
fundamental para a constituição da alegoria que analisamos, pois ao batizá-lo de Juanillo
Ponce de León, Baccino abre margem para que algumas interpretações pertinentes possam ser
139
realizadas. Quanto ao nome em si – Juanillo – trata-se de um dos nomes mais comuns em
língua espanhola, e assim como em português, representa o Joãozinho que ao mesmo tempo
que pode ser representativo de todos e qualquer um (por sua característica de ser tão comum),
também pode representar um indivíduo insignificante. Não fosse esta intenção ambígua, o
personagem poderia chamar-se Juan, o que lhe conferiria muito mais seriedade. O diminutivo
neste caso é fundamentalmente significativo, rebaixando a seriedade do personagem e
reunindo ambas características – a generalização representativa de todos e a insignificância
individual de um sujeito.
Este Juanillo, porém, leva os sobrenomes maternos do autor, o que confere a eles certo
parentesco ou identificação direta. Este personagem pode ser considerado um descendente da
mãe de Baccino, tendo este herdado de seu parente o dom da narração, assim como sua sina
fantasmagórica; ou ainda, pode ser entendido como um outro seu, que não apenas o
representa, mas também representa a todos os outros uruguaios, sofrendo como ele as
arbitrariedades do governo autoritário, o que os transforma todos em indivíduos
insignificantes e impotentes perante tal situação. A saída tanto para Juanillo quanto para
Baccino, foi escrever. Escrever para reivindicar sua identidade perdida, seu direito a trabalhar,
executando sua vocação e tendo condições de sobreviver disso. Contando sua história e
desafiando o poder buscam legitimar-se na sociedade em que vivem.
Este nome também coincide com o do conquistador Juan Ponce de León o qual, apesar
de ter alcançado certa notoriedade, é considerado um conquistador “de segunda categoria”,
uma vez que suas expedições eram movidas pelo seu fascínio em encontrar o mito do El
Dorado (o que jamais se concretizou). Era portanto, considerado um navegador menor,
movido por sonhos e ilusões, considerado por muitos como louco. Este é exatamente o caso
de nosso bufão. Porém, acredita-se que diferentemente do conquistador frustrado, Juanillo
logra algum sucesso em sua empreitada, uma vez que sua carta é lida por Carlos V e lhe atiça
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a curiosidade a ponto de acreditar na legitimidade do relato. Além disso, por mais que sua
pensão provavelmente não tenha sido restituída, um cronista oficial (ou seja, seu grande
“rival” narrativo, a quem tanto critica), valida seu intento e considera que sim deve ser
remunerado por tal relato, ainda que não importe se os fatos são ou não verdadeiros. Na
mesma medida, Baccino sai triunfante de sua empreitada, uma vez que vencendo o prêmio
Casa de las Américas com Maluco, volta a ganhar espaço no meio acadêmico ao qual sempre
pertenceu, mas dessa vez numa posição muito mais favorável, passando a fazer parte da
intelectualidade latino-americana que se articulava em torno da instituição.
Assim, acreditamos que Maluco, através de suas estratégias narrativas, e
especialmente por causa do narrador empregado, deve ser considerado como uma
representação alegórica da situação do intelectual do continente latino-americano no momento
de transição entre um período ditatorial e a redemocratização, especialmente dentro do
universo uruguaio aqui tratado. Este intelectual buscando suplementar seu trabalho de luto,
representa alegoricamente sua posição.
Ainda ficam em aberto muitas questões que poderiam ser abordadas, inclusive dentro
deste mesmo viés interpretativo, pois o universo criado por Baccino é vasto e de riqueza que
tende ao inesgotável.
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