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MARX 2014| Seminário Nacional de Teoria Marxista – Uberlândia, 12 a 15 de maio de 2014 1 Capitalismo e renda da terra: estudo sobre o processo de formação da propriedade capitalista da terra Carlos Alberto Vieira Borba 1 Resumo No presente artigo buscamos fazer uma reflexão teórica acerca do processo de formação da propriedade capitalista da terra embasada na teoria da renda fundiária. Acreditamos que a renda da terra é a forma que se realiza e que se valoriza a propriedade fundiária. Para compreender o processo de formação da propriedade capitalista da terra é preciso ter em mente a dificuldade de definir no capitalismo uma lógica de transformação da propriedade territorial em sua forma tipicamente capitalista, inclusive, o próprio Marx em seus estudos, não se sentiu demasiadamente seguro com sua descrição da propriedade territorial capitalista. Posteriormente ele disse que havia apenas traçado o caminho no qual a Europa Ocidental, surgiu o sistema capitalista do ventre do sistema econômico feudal e atacou os que fizeram dela um caminho geral do desenvolvimento de todas as nações. Nesse sentido, buscamos compreender o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, para observar as suas diferentes configurações com ênfase especialmente no papel da terra na acumulação capitalista. Para tanto, faremos uma breve comparação ente o modelo capitalista clássico elaborado por Marx, que tinha a Inglaterra como principal referência, e no Brasil país onde o desenvolvimento desse sistema processou-se de forma mais tardia. Palavras-chave: Renda da Terra; Capitalismo; Propriedade Fundiária. Caracterizar a propriedade fundiária em sua forma tipicamente capitalista, não é tarefa fácil, muitos buscaram através da teoria da renda da terra, formulada pelos economistas ingleses e complementada pelo pensador alemão Karl Marx o arsenal teórico para buscar compreender o processo de mercantilização e de formação da propriedade territorial. Isso 1 Doutorando em história econômica (USP), mestre em história social (UFU) e graduado em história UFG. E- mail: [email protected]

Analise Capitalismo e renda da terra david harvey

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Capitalismo e renda da terra: estudo sobre o processo de

formação da propriedade capitalista da terra

Carlos Alberto Vieira Borba1

Resumo

No presente artigo buscamos fazer uma reflexão teórica acerca do processo de formação da

propriedade capitalista da terra embasada na teoria da renda fundiária. Acreditamos que a

renda da terra é a forma que se realiza e que se valoriza a propriedade fundiária. Para

compreender o processo de formação da propriedade capitalista da terra é preciso ter em

mente a dificuldade de definir no capitalismo uma lógica de transformação da propriedade

territorial em sua forma tipicamente capitalista, inclusive, o próprio Marx em seus estudos,

não se sentiu demasiadamente seguro com sua descrição da propriedade territorial capitalista.

Posteriormente ele disse que havia apenas traçado o caminho no qual a Europa Ocidental,

surgiu o sistema capitalista do ventre do sistema econômico feudal e atacou os que fizeram

dela um caminho geral do desenvolvimento de todas as nações. Nesse sentido, buscamos

compreender o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, para observar as suas

diferentes configurações com ênfase especialmente no papel da terra na acumulação

capitalista. Para tanto, faremos uma breve comparação ente o modelo capitalista clássico

elaborado por Marx, que tinha a Inglaterra como principal referência, e no Brasil – país onde

o desenvolvimento desse sistema processou-se de forma mais tardia.

Palavras-chave: Renda da Terra; Capitalismo; Propriedade Fundiária.

Caracterizar a propriedade fundiária em sua forma tipicamente capitalista, não é tarefa

fácil, muitos buscaram através da teoria da renda da terra, formulada pelos economistas

ingleses e complementada pelo pensador alemão – Karl Marx – o arsenal teórico para buscar

compreender o processo de mercantilização e de formação da propriedade territorial. Isso

1 Doutorando em história econômica (USP), mestre em história social (UFU) e graduado em história UFG. E-

mail: [email protected]

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porque essa categoria de análise buscou solucionar um dilema: como mensurar o preço da

terra na vigência da teoria do valor, onde tudo que constitui valor é produzido pelo trabalho

humano, pelo trabalho socialmente necessário. Destarte, a renda da terra foi um esforço

realizado por esses pensadores, para entender, como a terra não sendo capital está passível de

valorizar-se e obter um preço.

É importante destacar conforme elencou Martins (1990), que em muitas análises,

sobretudo na expansão do capitalismo no Brasil, a terra é considerada erroneamente como

capital.

A apropriação da terra não se dá num processo de trabalho, de exploração do

trabalho pelo capital. (...) A terra é, pois, um instrumento de trabalho

qualitativamente diferente dos outros meios de produção. Quando alguém trabalha

na terra, não é para produzir a terra, mas para produzir o fruto da terra. O fruto da

terra pode ser produto do trabalho, mas a própria terra não o é (MARTINS, 1990, p.

159-160).

Nesse sentido, David Harvey adverte que a terra é um meio de produção não

produzido. Mas sublinha que as melhorias feitas nela são frutos do trabalho humano, as casa,

fábricas, estradas, interferem na produção de mercadorias e nos valores de circulação.

Comunga também dessa visão Samir Amin (1977) quando argumenta que embora a natureza

não seja produzida pelo homem, ela pode ser alterada, tornando-se, um meio de produção

fruto do trabalho humano.

Contudo, a renda da terra refere-se ao pagamento puro da terra independente das

melhorias que se tem nela (HARVEY, 1990, p. 333), o que explica o fato de uma terra sem

condição de uso ter um preço. Todavia as melhorias realizadas na terra representam apenas

um componente adicional da renda fundiária.

Antes de tudo, é preciso conceituar o que é renda fundiária. A renda é o pagamento

feito aos proprietários de terras pelo direito de usar a terra e seus acessórios (os recursos

incrustados em seu interior, como os recursos naturais, e os edifícios colocados sobre ela, etc).

Para Harvey:

La renta es el concepto teórico por medio de cual há economia política (de

culaquier afiliación) tradicionalmente confronta el problema de la

organización espacial. La renta, (...) proporciona uma base para diversas

formas de control social sobre la organización espacial e el desarrollo del

capitalismo. Esto es así porque La tierra sirve no solo como um médio de

producción sino também como uma “base, como sitio, como centro local de

operacionaes”; el espacio és um elemento necesario em toda producción y

atividad humana (HARVEY, apud MARX, 1990, p. 340).

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A renda da terra capitalista2 se manifesta em diferentes formas. Renda de Monopólio –

que se caracteriza quando um proprietário de terra cobra altos valores para o uso de uma

determinada terra com determinadas qualidades para determinados produtos. Renda absoluta,

que é a barreira que os proprietários de terra erguem sobre a livre circulação do capital,

obrigando a uma redistribuição da mais-valia total produzida. Ademais, temos a renda

diferencial, a qual é dividida em duas: a renda diferencial um (RDI), assentada na ideia de que

o valor do produto agrícola é fixado pelos preços das piores terras, combinado ainda, com a

fertilidade e localização. Neste caso, as terras de melhores qualidades obteriam um ganho

extraordinário permanente ao lucro médio, o que seria a renda diferencial. Entretanto, no

sistema capitalista a tendência é que a RDI seja incorporada a outra forma de renda,

decorrente do investimento do capital em máquinas e técnicas de produção para o aumento de

fertilidade das terras e da sua localização relativa, alterada de acordo com os investimentos

em transportes e das mudanças geográficas do mercado. Esta denominada de renda diferencial

dois (RD2) seria resultado não das qualidades naturais da terra, mas do investimento

diferenciado em terras de uma mesma qualidade. Um investimento maior nessas terras

permitiria um ganho proporcional ao capital investido, interferindo diretamente na redução

dos custos da produção, tornando-se mais baixo que o valor de mercado fixado pela aplicação

“normal” de capital. Com efeito, esse ganho é apropriado como RD2.

Entretanto, a renda fundiária ao mesmo tempo em que representa um alicerce para

entender a expansão do capitalismo no campo e a forma pela qual esse modo de produção

sujeita a agricultura, também apresenta algumas questões controvérsias e alguns limites. Isso

porque, a renda fundiária é uma das “categorias mais polêmicas na história do pensamento

econômico” (LENZ, 1996, p. 431) pelas distintas interpretações do seu papel no

desenvolvimento do capitalismo e no processo de produção e distribuição da mais-valia

social. No mais, depois de alcançar o centro de grandes discussões na economia clássica ela

foi deixada em segundo plano, sobretudo com o aparecimento do marginalismo por volta de

1870 que “introduziu uma nova metodologia de análise, baseada em uma teoria do valor e

distribuição de caráter subjetivo, onde as classes sociais desapareceriam como atores na

2 A renda da terra em sua forma pré-capitalista assume três formas: a renda da terra em trabalho, renda da terra

em produto e renda da terra em dinheiro. A primeira consiste na troca de dias de trabalho (semanal, mensal ou

anual) pelo direito a concessão de terras. A segunda, caracteriza-se pela troca de parte da produção (o excedente)

pelo direito de cultivar a terra. Por fim, a terceira, “é a renda em dinheiro que se origina da conversão, da simples

metamorfose da renda em produto em renda em dinheiro” (OLIVEIRA, 2007, p. 44)

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determinação do excedente econômico, e entravam em cena o fator de produção” (LENZ,

1996, p. 431).

Mesmo Marx que avançou consideravelmente nas reflexões sobre a renda da terra,

deixou algumas lacunas, pois como observou Harvey suas formulações foram quase todas

publicadas postumamente, inviabilizando qualquer esclarecimento posterior sobre o tema.

Com efeito, grande parte dos pensadores que se dedicaram a análise da renda fundiária

encontraram dificuldades para estudá-la. Além disso, as reflexões de Marx sobre o assunto

variou muito em seus estudos, se levarmos em consideração as reflexões elaboradas em seu

livro Teoria da mais-valia e em sua obra de maior envergadura – O Capital –, elas

apresentam grandes diferenças. (HARVEY, 1990, p. 33)

Sobre essas questões, o sociólogo José de Souza Martins, acrescenta que, a análise da

renda fundiária pensada por Marx “tem poucas referências históricas, ao contrário do que

ocorre com outras passagens do livro3; é uma análise altamente abstrata, baseada em muitas

formulações hipotéticas, motivo aliás da dificuldade com que geralmente é lida” (MARTINS,

1990, p. 161).

Buscaremos agora, apresentar algumas questões entre renda fundiária, propriedade da

terra e capitalismo, de forma que possamos ampliar nosso leque de análise através do diálogo

com autores contemporâneo, como José de Souza Martins e David Harvey, que refletiram e

que avançaram em alguns pontos nas formulações de Marx. Esse exercício cumprirá,

outrossim, a função de esclarecer algumas erros teóricos que alguns estudiosos incorrem nas

análises sobre a relação da terra e capitalismo, para facilitar a compreensão do papel da terra

no processo de transição e reprodução do capital e argumentar que longe de representar um

obstáculo ao capital, a renda da terra faz parte do processo de expansão capitalista.

Propriedade da terra e transição para o capitalismo: uma análise comparativa entre o

modelo clássico e o brasileiro

A terra representa um importante papel no processo de transição e expansão do

capitalismo, apesar de manifestar uma contradição com o capital e em determinados

momentos erigir como obstáculo para sua livre circulação, ela cumpre um importante papel

para sua expansão.

3 O livro o qual o autor se refere é O Capital.

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Essa contradição se manifesta como já discutimos, pelo fato da terra não ser capital

(trabalho humano acumulado sobre os meios de produção), que é a prerrogativa que

fundamenta o direito do capitalista sobre a propriedade privada dos meios de produção.

Assim, toda a riqueza criada pelo trabalhado assalariado no processo de produção aparece

como produto do capital, simplesmente pelo fato do capitalista ser dono dos meios de

produção, matéria-prima e comprar a força de trabalho do trabalhador (MARTINS, 1990, p.

159).

Nesse sentido, o processo que fundamenta ao capitalista o direito sobre a propriedade

privada dos meios de produção – a exploração do trabalho pelo capital – não se dá com a

terra, pois ela não é a materialização do trabalho humano e, por isso, não pode ter um

processo de legitimação igual ao da produção capitalista dos meios de produção.

Então como entender o processo em que a terra torna-se uma mercadoria, uma

propriedade, um objeto de relações mercantis? Para Martins a terra passa por um processo

semelhante ao do trabalho – que também não é produto do próprio trabalho, não contém valor

– mas também é apropriado pelo capital. O capital cria condições para apropriar do trabalho

quando separa os trabalhadores dos meios de produção, deixando como única opção aos

trabalhadores vender sua força de trabalho.

Mas, assim como o capitalista precisa pagar um salário para se apropriar da

força de trabalho do trabalhador, também precisa pagar uma renda para se

apropriar da terra. Assim como a força de trabalho se transforma em

mercadoria no capitalismo, também a terra se transforma em mercadoria.

Assim como o trabalhador cobra um salário para que a sua força de trabalho

seja empregada na reprodução do capital, o proprietário da terra cobra uma

renda para que ela possa ser utilizada pelo capital ou pelo trabalhador.

(MARTINS, 1990, p. 160).

Portanto o resultado da contradição entre terra e capital é a renda fundiária, que é a

forma que o capital encontra para apropria-se da terra e legitimar o direito de explorá-la.

Entretanto para compreender como a renda da terra em sua forma pré-capitalista é convertida

a renda capitalista, devemos entender melhor a dinâmica do capitalismo.

O economista – Samir Amin – traça um panorama do desenvolvimento do capitalismo

desde sua gênese na Europa e sua expansão global integrando os países periféricos desse

sistema, como os países coloniais e ex-colônias, buscando identificar como a agricultura e a

terra é subordinada ao capital.

Ele distingue, em três etapas o desenvolvimento do capitalismo:

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1) a que qualificamos como etapa do mercantilismo, do século XV ao século

XIX, caracterizada por uma primeira transformação na agricultura, sua

mercantilização e a desagregação das relações de produção feudais; 2) a do

século XIX, caracterizada pela realização do modo de produção na indústria;

3) a do século XX, caracterizada pela “industrialização” da agricultura

(AMIN, 1977, p. 21).

A partir dessa divisão do capitalismo em três fases, o autor defende a seguinte tese, pela qual

corroboramos:

(...) as relações de produção capitalistas aparecem inicialmente na vida rural,

mas limitadas pela resistência do modo de produção feudal; em seguida,

estas relações se transportam para o campo de atividades novas, a indústria

urbana, onde assumem forma definitiva e abandonam a agricultura; enfim,

apropriam-se de toda a vida social e integram a agricultura de forma tal e

muito mais profunda. Este movimento oscilante caracteriza a história das

relações do capitalismo com a agricultura nas formações capitalistas centrais

(AMIN, 1977, p. 21).

A primeira fase do mercantilismo é marcada pela acumulação primitiva e pela

constituição de dois polos necessários para a realização do capitalismo: o capital e o

proletariado, que só vão entrar em embates diretos a partir da revolução industrial. O

mercantilismo é responsável pela desagregação das relações feudais. Tal fato é de suma

importância para o capitalismo, pois é através dele que ocorre a separação dos camponeses

dos seus meios de produção (a terra), engrossando, portanto, as fileiras de trabalhadores

disponíveis para a indústria emergente. Acarretando também a mercantilização da agricultura

e o surgimento da terra como produto de transação mercantil.

Nesse período de transição de aproximadamente três séculos do capitalismo,

decorrente da desintegração do feudalismo, o que ocorre é a apropriação da terra por senhores

feudais e em raras as situações, pelos camponeses, transformando-se assim, em proprietários

absolutos da terra. Com efeito, é extinto a superposição do direito a terra por parte dos

senhores feudais e camponeses, emergindo desse processo, a propriedade absoluta fruto do

direito romano do jus usiet abutendi, reinterpretado do direito mercantil (AMIN, 1977, p. 22).

Harvey em diálogo com Marx, aponta duas fases da formação da propriedade

territorial capitalista:

Em la primera, las rentas feudales pagadas com trabajo se transforman en

rentas del miesmo tipo y finalmente em rentas de dinero (...) La

monetización de las rentas feudales abre la possibilidade de arrendar la

tierra, a tierra a cambio de pago em dinero y, finalmente, a la compra y la

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venta de la tierra como uma mercancia (HARVEY, apud MARX, 1990, p.

347).

A segunda fase trata-se da expropriação violenta com ou sem a participação do Estado.

Esses novos proprietários absolutos do solo que são potencialmente burgueses

agrários, proprietários capitalistas e camponeses, começam a investir em melhorias da terra e

venderem parte de sua produção (AMIN 1977, p. 22), transformando assim, a renda-produto

em renda-dinheiro e, por fim, elevando à terra a condição de mercadoria passível de compra e

venda.

Contudo, inicialmente o desenvolvimento do capital no campo é limitado pela escassa

demanda do mercado urbano. No entanto, a medida que aumenta esse demanda, mormente

pela revolução industrial (segunda etapa do desenvolvimento do capitalismo) e a concentração

da vida cada vez mais na cidade, a agricultura e a terra passam a ser requisitadas a uma maior

produção para atender essa procura.

Dessa maneira, a agricultura é incorporada pelo capitalismo, se industrializando ao

mesmo tempo em que a terra passa a ser um obstáculo para o desenvolvimento desse sistema

quando não produz de acordo com sua lógica. Amin conclui então que, “depois de ter

aparecido embrionariamente no mundo rural, as relações capitalistas surgem, se completam e

se desenvolvem na indústria. O dinheiro, que pode ser transformado em capital, está lá: o

proletariado também já existe” (AMIN, 1977, p. 24) depois retorna a agricultura, promovendo

sua industrialização, possibilitando aferir uma renda capitalista da terra (AMIN, 1977, p. 24).

Como vimos, a tendência do capital é subordinar todos os setores e ramos de

produção. Com efeito, a terra por meio do seu proprietário se ergue como um obstáculo para a

livre circulação do capital ao cobrar um preço para sua utilização. Nesse sentido, a terra

apresenta duas contradições com o capital. A primeira como falamos, é o fato de que ela não é

capital. Segundo, é que:

quando o capitalista paga pela utilização da terra, está, na verdade,

convertendo uma parte do seu capital em renda. Está imobilizando

improdutivamente essa parte do capital, unicamente porque esse é o preço

para remover o obstáculo que a propriedade fundiária representa, no

capitalismo, à reprodução do capital na agricultura. Essa imobilização é

improdutiva porque ela sozinha não é suficiente para promover a extração de

riqueza da terra, para efetivar a produção agrícola. O capitalista precisará,

ainda, empregar ferramentas, adubos, inseticidas, combinados com força de

trabalho, para que a terra dê os seus frutos. Os instrumentos e os objetos de

trabalho, além da própria força de trabalho, é que são o verdadeiro capital

capaz de fazer a terra produzir sob o seu controle e domínio. (...) A

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subordinação da propriedade fundiária ao capital ocorre justamente para que

ela produza sob o domínino e conforme os pressupostos do capital. A

apropriação capitalista da terra permite justamente que o trabalho que nela se

dá, o trabalho agrícola, se torne subordinado ao capital. A terra assim

apropriada opera como se fosse capital, ela se torna equivalente de capital e,

para o capitalista, obedece a critérios que ele basicamente leva em conta em

relação aos outros instrumentos possuídos pelo capital. Ainda assim o fato

de que a terra pareça, socialmente, capital não faz dela, efetivamente,

capital”. (MARTINS, 1990, p. 161-162).

O que a terra produz do ponto de vista capitalista é diferente do que produz o capital,

pois este produz o lucro (a apropriação do trabalho excedente), o trabalho produz salário, e a

terra, produz a renda.

Vale mencionar que “esta revolução industrial opera-se pela aliança da nova burguesia

com a propriedade fundiária”. Essas alianças apresentam diferenças em distintos lugares. Na

Inglaterra a burguesia alia-se a grande propriedade capitalista da terra fundindo-se em uma

única classe. Na França, diferentemente, a burguesia se junta com camponeses e promovem

uma mudança agrária radical, da qual resulta uma nova classe rural do tipo koulak (AMIN,

1997, p. 24).

O importante nestas alianças é perceber, que através dela se paga pela extração de uma

parte da mais-valia em benefício da propriedade fundiária para romper os obstáculos que a

terra representa para a livre circulação do capital. Com efeito, “pode-se falar agora de renda

capitalista em sentido pleno, já que é obtida da mais-valia” (AMIN, 1977, p. 24), dos

excedentes de capitais acumulados na indústria e que precisam ser transferidos para a

agricultura e para uma maior racionalização da terra. Nestes termos, podemos falar que a

propriedade territorial assume sua forma capitalista, pois a apropriação da renda capitalista é a

forma econômica como se realiza a propriedade territorial no capitalismo (Harvey, 1990, p.

346).

Convém destacar que esse processo que origina a propriedade fundiária de origem

capitalista, varia muito de lugar para lugar. A Inglaterra, por exemplo, apresenta um processo

peculiar, porque a transformação em propriedade pré-capitalista para a capitalista ocorreu de

modo mais acelerado do que em outros lugares. Uma explicação para isso está no fato de que

“Como la separación entre el trabajo y la tierra como medio de producción

há sido y sigue siendo uma precondición essencial para la formación del

trabajo assalariado, la forma de la propriedade territorial precapitalista

desempeño un papel igualmente importante em la acumulación de capital em

la creación de la forma moderna de la propriedade territorial” (HARVEY,

1990, p. 346-347).

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Assim, a Inglaterra foi indiscutivelmente o país onde mais se desenvolveu a forma

clássica do capitalismo na sociedade moderna, tornando-se o berço do desenvolvimento do

capitalismo. Por isso, teve uma transformação mais rápida de sua estrutura agrária com o

processo de cercamento dos campos que acarretou na expropriação do camponês de sua terra.

Levando em consideração essa questões, é difícil definir no capitalismo uma lógica de

transformação da propriedade territorial em sua forma tipicamente capitalista, inclusive,

segundo Harvey (1990, p. 347), o próprio Marx em seus estudos, não se sentiu

demasiadamente seguro com sua descrição da propriedade territorial capitalista.

Posteriormente ele disse que havia apenas traçado o caminho no qual a Europa Ocidental,

surgiu o sistema capitalista do ventre do sistema econômico feudal e atacou os que fizeram

dela um caminho geral do desenvolvimento de todas as nações.

A caracterização da propriedade territorial no capitalismo torna-se ainda mais difícil

em países periféricos do sistema capitalista, como os países que foram alvos da colonização

do capital mercantil europeu - a exemplo do Brasil, nesses lugares como enfatizou Amin

(1977), o capitalismo desenvolveu de forma diferente do capitalismo europeu locus de análise

de Marx, o que dificulta qualquer análise que busque transpor o modelo elaborado daquela

realidade para a realidade dos países latino-americanos.

No Brasil o capitalismo não foi resultado da evolução interna de um processo de

transição de um modo de produção para outro a partir da dinâmica da luta de classes e do

desenvolvimento natural das forças produtivas e relações de produção. Ele foi desde o início

produto da ingerência do capital mercantil europeu, explorados segundo as necessidades desse

comércio, aos moldes de uma empresa colonial como sublinhou Caio Prado Jr.

Portanto, não tivemos no Brasil nenhum sistema feudal ou semifeudal, nem relações

feudais ou resquícios do feudalismo, como acreditavam muitos marxistas em meados do

século XX. Esses autores brasileiros munidos de um marxismo aplicado de forma mecânica

na realidade social brasileira, via na terra e no grande proprietário uma semelhança com o

senhor feudal e com o modo de produção feudal, ou no produtor familiar, um camponês e um

modo de produção camponês. Esses autores enxergavam o campesinato e latifundiário como

“evidências da permanência de relações feudais de produção” (OLIVEIRA, 2007, p. 10),

consequentemente, suas análises giravam em torno da dualidade que há “um setor urbano

industrial capitalista nas cidades e um setor feudal, semifeudal, pré-capitalista, atrasado no

campo” (OLIVEIRA, 2007, p. 10). Para eles “a penetração do capitalismo ocorre a partir do

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rompimento com as estruturas políticas tradicionais de dominação” (OLIVEIRA, 2007, p.

10).

Martins destaca que a contradição que a terra representa no capitalismo não é porque

ele seja um elemento estranho ou fora desse sistema, pelo contrário, é uma contradição

interna, constitutiva do próprio modelo capitalista de produção. E embora a renda da terra

tenha origem pré-capitalista, colocando-se como contradição e obstáculo à expansão do

capital, ela perde “esse caráter à medida que é absorvida pelo processo de capital e se

transforma em renda territorial capitalizada. (...) A determinação histórica do capital não

destrói a renda da terra nem preserva o seu caráter pré-capitalista – transforma-a,

incorporando-a, em capitalizada” (MARTINS, 2010, p. 22). Assim, longe de ser um entrave a

reprodução capitalista, a terra cumpre uma função importante na acumulação do capital.

Seguindo esse raciocínio, Harvey em diálogo com Marx argumenta que “la propriedade

territorial privada, como el capital mercantil y la usura, (es a la vez prerrequisito y produto del

modo de producción capitalista” (HARVEY, 1990, p. 347).

Logo, a contradição existente entre terra e capital e a presença de relações não-

capitalistas são produto do desenvolvimento desigual e contraditório do capitalismo que

“além de redefinir antigas relações subordinando-as à sua produção, engendra relações não-

capitalistas igual e contraditoriamente necessárias à sua reprodução” (OLIVEIRA, 2007, p.

40).

Por isso, incorre ao erro aqueles que analisam separadamente os elementos do

processo social sem observá-los em sua totalidade, enxergando nas relações não-capitalistas,

na perpetuação do latifúndio e do campesinato, resquícios do feudalismo ou elementos

integrantes a outros modos de produção. Sobre essa questão, Martins esclarece “se eu separo

cada um dos elementos do processo social, se não vejo a terra como relação social que é parte

desse processo que é processo social, a minha tendência será ver aí modos de produção

diferentes e serão tantos os modos de produção quantas forem as diferenças”. (MARTINS,

1990, p. 172). Desse modo, muitos autores enxergam nessas contradições que compõem a

expansão do capitalismo, uma diversidade de modos de produções.

Por fim, só é possível entender que a terra é de grande importância para a acumulação

capitalista e apropriação de sua renda acarreta na formação da propriedade fundiária.

No Brasil a terra também cumpriu um papel essencial no processo de transição para o

capitalismo com a promulgação da Lei de Terras de 1850. Esta lei marca o processo de

“absolutização” ou formalização da propriedade fundiária, à medida que proibia qualquer

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forma de aquisição de terras que não fosse feita através da compra, extinguindo assim, as

formas tradicionais de aquisição de terras, como o apossamento e doações sesmarias

concedidas pela Coroa Portuguesa. Entretanto, o governo imperial permitia a regularização

das propriedades que foram adquiridas anteriores a Lei de Terras, através da posse e das

doações de sesmarias na qual os títulos não haviam sido regularizados.

Para Emilia Viotti da Costa (1998), a política de terra e a regularização da propriedade

territorial estão associadas ao estágio de desenvolvimento econômico no Brasil. Segundo a

autora:

A caótica situação da propriedade rural e os problemas da força de trabalho

impeliram os setores dinâmicos da elite a reavaliar as políticas de terras e do

trabalho. A Lei de Terras de 1850 expressou os interesses desses grupos e

representou uma tentativa de regularizar a propriedade rural e o fornecimento de

trabalho, de acordo com as novas necessidades e possibilidades da época (COSTA,

1998, p. 176).

Outros autores, como Roberto Smith (2008), corrobora dessa ideia quando argumenta

que a elaboração e a aprovação da Lei de Terras de1850 foi responsável pela formação da

propriedade privada da terra e para a transição para o capitalismo no Brasil. Ademais esse

instrumento jurídico era necessário para atender as exigências da acumulação do capital

mercantil, que era basicamente promover a transição entre o trabalho escravo para o trabalho

livre. Um indicativo disso é que a Lei de Terras e a lei que decretou o fim do tráfico de

escravos foram aprovadas num prazo de duas semanas entre uma e outra. Smith chama

atenção ainda para a necessidade de entender a promulgação da Lei de Terras de forma

conectada a dinâmica do capitalismo mundial:

A inter-relação com o processo de amplo crescimento capitalista industrial, após a

crise europeia do início do século XIX, contudo, projeta desde o Exterior, e

especificamente da Inglaterra, a conjunção de interesses mercantis que abalaria

internamente as relações entre a terra e o trabalho no país. Evidentemente,

encontrava-se no Brasil permeado por um processo econâmico (sic) e político de

caráter capitalista internacional. O que era mais específico ao Brasil, no âmbito onde

projetos de leis de terra foram aparecendo, era o teor da importância assumido pelo

escravismo e a complexidade que envolvia o processo de sua substituição (SMITH,

2008, p. 327-328).

Ligia Osório Silva (2008) e Marcia Motta (1998), outrossim, destacam que a referida

lei buscou substituir o trabalho escravo pelo trabalho livre, atendendo assim, as necessidades

das classes dominantes em um estágio determinado da acumulação do capital mercantil no

Brasil.

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Esse processo marca a passagem da terra como um domínio da Coroa para o domínio

público e também na mudança na relação de exploração da propriedade fundiária, a terra

como uma doação de si mesma passa a ser uma mercadoria, e a terra como prestígio social

deu lugar a terra como poder econômico, que também culminava em prestígio social

(COSTA, 1998, p. 172).

Dessa maneira, “durante a crise do trabalho servil, o objeto da renda capitalizada passa

do escravo para a terra, do predomínio num para a outra, da atividade produtiva do

trabalhador para o objeto do trabalho, a terra” (MARTINS, 1996, p. 40). Assim, a Lei de

Terras caracteriza o início da transição da propriedade individual da terra para a propriedade

privada capitalista e lança as bases para o surgimento do capitalismo no Brasil que na visão de

Muller (1989, p. 29) data de 1870.

Para Moreira (1986, p. 8) “até os anos 30 o capitalismo evolui internamente no Brasil

sob os parâmetros semelhantes aos de subsunção formal clássica”. Já a partir de 1930 inicia

um novo ciclo na economia brasileira, que pode ser notado através das mudanças na

composição de força das classes dominantes que conduzem o Estado, como o papel desta

instituição no sentido de estimular e apoiar as atividades industriais e um novo padrão de

acumulação capitalista.

Muitos são os estudiosos que apontam o período de 1930 como um marco de uma

nova etapa do capitalismo no Brasil. Para o sociólogo, Francisco de Oliveira:

a revolução de 1930 marca o fim de um ciclo e o início de outro na economia

brasileira: o fim da hegemonia agrário-exportadora e o início da predominância da

estrutura produtiva de base urbano-industrial. (...) o processo mediante o qual a

posição hegemônica se concretizará é crucial: a nova correlação de forças sociais, a

reformulação do aparelho e da ação estatal, a regulamentação dos fatores, entre os

quais o trabalho ou preço do trabalho, têm o significado, de um lado, de destruição

das regras do jogo segundo as quais a economia se inclinava para as atividades

agrário exportadoras e, de outro, de criação das condições institucionais para a

expansão das atividades ligadas ao mercado interno. (OLIVEIRA, 2006, p. 35).

Corroboram também dessa visão, Ruy Moreira (1986) e Geraldo Muller (1989),

ambos são unânimes em afirmar que 1930 representa um marco na economia brasileira, pois

caracteriza a passagem para uma economia industrial. Esse processo de transição para uma

economia industrial consolida-se em meados da década de 1950 e na década de 1960, quando

na compreensão de Muller, configura-se “um sistema econômico dominado pelo capital

industrial, tanto em termos de acumulação como de contribuição para o crescimento do PIB”

(MÜLLER, 1989, p. 29). Vale acrescentar que o ano de 1956 marca o momento em que pela

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primeira vez na história econômica do Brasil, a indústria representa uma maior porcentagem

do PIB do país (OLIVEIRA, 2006).

Ruy Moreira (1986, p. 8) traduz esse período que marca a consolidação de um novo

ciclo da economia brasileira como a passagem da fase de subsunção formal para a subsunção

real do capitalismo no Brasil, perceptíveis a partir das seguintes evidências: nesse momento o

“bloco histórico” tem como padrão de acumulação valores de troca que passam a serem cada

vez mais valores de usos industriais, e que a esfera econômica passa a se concentrar

predominantemente através da relação capital-trabalho, tanto no setor primário como no setor

secundário, assim como nas esferas de produção e de circulação.

Para a consolidação de uma economia centrada no modelo urbano-industrial, a

agricultura desempenhou um papel importante. Para Francisco de Oliveira (2006, p. 43), o

papel da agricultura nesse processo caracteriza-se como um elemento de acumulação

primitiva, com algumas peculiaridades se comparada com o “modelo clássico”. Isto porque no

Brasil trata-se de um processo que não se expropria a propriedade, embora isso também

ocorresse na passagem da agricultura de subsistência para a agricultura comercial de

exportação - mas aqui se apropria do excedente formado pela posse transitória da terra. Ainda

conforme o referido autor:

A agricultura, nesse modelo, cumpre um papel vital para as virtualidades de

expansão do sistema: seja fornecendo os contingentes de força de trabalho, seja

fornecendo os alimentos no esquema já descrito, ela tem uma contribuição

importante na compatibilização do processo de acumulação global da economia. De

outra parte, esta, no seu crescimento, redefine as condições estruturais daquela,

introduzindo novas relações de produção no campo, que torna viável a agricultura

comercial de consumo interno e externo pela formação de um proletariado rural.

Longe de um crescente e acumulativo isolamento, há relações estruturais entre os

dois setores que estão na lógica do tipo de expansão capitalista dos últimos trintas

anos no Brasil (OLIVEIRA, 2006, pp. 47-48).

Dessa maneira, a partir de meados do século XX a agricultura não é um setor ligado

aos demais setores econômicos, mas integrado a dinâmica do capital (MÜLLER, 1989, p. 57).

Os limites de produzir no campo foram superados pelos interesses da tríplice aliança que foi à

fusão de interesses do capital estrangeiro, do capital nacional e do capital Estatal, como nos

mostra Müller em seu diálogo com Peter Evans:

Data dos anos 50 a Tríplice Aliança. Para Peter Evans, “o resultado final da

incorporação da periferia ao sistema capitalista internacional, no que concerne à

elite, é criar uma aliança complexa entre o capital nacional da elite, o capital

internacional e o capital estatal, a que dei o nome de ‘tríplice aliança”. Esta aliança,

portanto, nada mais é do que a forma nacional da expansão do capitalismo

oligopólico do pós-guerra num país atrasado da periferia. E se ela fez com que o

Brasil passasse de vez para uma economia industrial, implicou também uma

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aderência significativa, na verdade e em boa medida, numa fusão entre os interesses

internos e externos, com ganhos extraordinários de poder econômico e político por

parte do Estado (MÜLLER, 1989, p. 31).

Essa nova configuração da economia brasileira precipita algumas mudanças na

racionalização da terra e consequentemente nas prerrogativas sobre a propriedade privada da

terra, pois como chamou atenção Harvey (ano, p. 351) “Cuanto más capital excedente haya (a

corto plazo a través de la acumulación excessiva y a largo plazo), más probable será que la

tierra sea absorbida al interior de la estrutura de circulación de capital em general”.

No Brasil o projeto Brasília que na visão de Francisco Oliveira marca o auge da

acumulação capitalista no país, possibilita inserir à terra de uma forma mais geral a circulação

capitalista, ao criar possibilidade de exploração de uma renda capitalista da terra, em regiões

onde não apresentavam grandes atrativos para uma exploração de uma agropecuária em larga

escala, devido a sua posição desfavorável com o mercado. Ademais, grande parte dessa região

que foi cortada por estradas para promover a interface do sertão brasileiro com as regiões

mais dinâmicas economicamente, eram marcadas em grande parte por sua situação indefinida

no que tange a propriedade privada da terra, já que prevaleceu nestas áreas a criação do gado,

que exigia sempre a incorporação de novas terras, criando obstáculos para a regularização da

propriedade. Ao mesmo temo o monopólio fundiário gera alguns obstáculos para o

desenvolvimento do capitalismo e para a livre circulação do capital. Primeiro, porque estes

por não contarem com a concorrência, a exemplo dos setores industriais, tem a condição de

manter os preços dos produtos de subsistência em alto valor. Segundo, porque a autonomia do

mundo rural culmina em obstáculo para o desenvolvimento do capitalismo, sem entretanto,

retardar a sua expansão.

Como mostra Vania Moreira (2003) a construção de Brasília e seus apêndices foi um

modelo de ocupação territorial oligárquico, pois o Estado não regulou os procedimentos para

a sua ocupação. O que, claro, favoreceu a apropriação das terras pelas classes dominantes e,

sobretudo por uma elite rural. Diferentemente da Marcha para o Oeste criado por Vargas, que

tinha como objetivo ocupar os “vazios demográficos” através de projetos de colonização

assentados na pequena propriedade fundiária, a opção de Juscelino Kubitschek foi bastante

diferente, como mostra, Vânia Moreira (2003, p. 185), quando diz que ele:

(...) apoiou de forma muito efetiva a expansão do modelo oligárquico de apropriação

territorial. Construiu Brasília e o gigantesco cruzeiro rodoviário, sem disciplinar a

ocupação, posse e formação de propriedades rurais nas frentes de expansão da

sociedade nacional. Na prática, isso viabilizou o controle e o domínio da elite rural

sobre os novos territórios ocupados.

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Portanto, a acumulação do capital industrial implicou uma nova forma de exploração

sobre a terra (re) definindo a propriedade fundiária, marcando assim a transição de formas

intermediárias de propriedade individual para a propriedade capitalista da terra, pois como

bem observou Marx, em cada época histórica a propriedade evoluiu de forma diferente dentro

de relações sociais totalmente diferentes. Isso significa dizer que o desenvolvimento do

capitalismo provoca dissoluções das antigas relações econômicas da propriedade territorial e

sua conversão, a uma forma que foi compatível com a acumulação surgida (HARVEY, 1990,

p. 346).

Com efeito, a propriedade capitalista da terra se forma quando é possível apropriar-se

de um renda capitalista. Ora como podemos definir a renda como capitalista? Qual a sua

diferença com a renda pré-capitalista? A renda pré-capitalista em suas diferentes formas

(renda em trabalho, renda em produto e renda em dinheiro) nasce da produção e é o

trabalhador quem paga a renda ao proprietário da terra para a sua utilização. Nesses termos, a

renda pré-capitalista nasce diretamente da produção sem a necessidade de intermediários, do

excedente produzido pelo trabalhador entregue diretamente para o dono das terras como uma

forma de tributo pessoal deste para aquele.

Já a renda capitalista nasce da distribuição da mais-valia social que se contretiza na

circulação. Isso porque:

no processo de produção o trabalhador produz o seu salário e o capitalista

extrai o seu lucro. A conversa com o proprietário da terra vem depois, em

separado, não obstante a sua renda também tenha que sair da produção. Só

que nesta parte da riqueza que excede o necessário ao pagamento do salário

do trabalhador é apropriada pelo capitalista, porque ele é o proprietário do

capital, e mais ninguém. Portanto, a renda que toca ao proprietário da terra

terá que chegar num segundo momento. Isto ocorrerá quando o capital lhe

pagar pelo direito de utilização da terra. Ora, o trabalhador produziu mais-

valia, incrementou a riqueza, para o capitalista. Quando este paga a renda ao

proprietário, não está produzindo nada; está distribuindo uma parte da mais-

valia que extraíra dos seus trabalhadores. Por isso, a renda capitalista da terra

não nasce na produção, mas sim na distribuição da mais valia (MARTINS,

1990, p. 162-163).

Ademais, a renda capitalista é um tributo social, porque ele é paga pelo conjunto da

sociedade.

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As contribuições de David Harvey para o processo em que a terra assume sua forma

tipicamente capitalista

Apesar de toda dificuldade de definir na história uma lógica da transformação

necessária da propriedade territorial em sua forma capitalista, devido as diferentes

caracterizações que assume o capitalismo em vários lugares, corroboramos da tese de David

Harvey: a chave da transição da propriedade individual da terra para propriedade capitalista

da terra é o seu caráter de bem financeiro. No entanto, compreender a terra como bem

financeiro implica também pensar algumas questões que ficaram em segundo plano nas

formulações de Marx sobre renda da terra – os valores de uso do espaço e compreender a terra

como ativo financeiro. Vejamos.

Harvey avançou em alguns pontos sobre a análise da RD2 a partir do diálogo com as

formulações de Marx sobre o assunto. Harvey (2000, p. 341) percebeu que Marx não elaborou

de forma sistemática e mais profunda sobre o valor de uso do espaço e argumentou que assim

como os antagonismos de classes são de suma importância para pensar o valor de uso e de

troca, também o são as categorias espaciais. A boa localização com o mercado é um fator

essencial para aferir uma renda diferencial.

Nesse sentido, a produção do espaço é um fator de grande importância para

compreender a RD2. Especialmente o papel que as estradas exercem na configuração desta

renda, pois a localização relativa da terra diante o mercado é fundamental para a aferição da

RD2. No entanto, não basta essas terras estarem numa boa localização em relação ao mercado

consumidor. É preciso também, que haja uma rede de transportes eficientes para diminuir o

tempo de circulação de mercadorias, e assim reduzir os custos com as despesas de transporte e

consequentemente, nos gastos totais com a produção. “En La medida em que el intercamibo

se vuelve general y se perfecciona, así La circulación de marcancías rompi con todas las

restriciones em cuanto al tiempo, lugar e indivíduos” (HARVEY, 1990, p. 341).

Para um melhor entendimento dos custos e ganhos com transportes para a produção do

valor da terra, é importante observar o mercado de terras, que na compreensão de Harvey não

é contemplado em toda sua complexidade apenas pela teoria da renda fundiária.

Dessa maneira, para Harvey todo o processo de circulação do capital através do uso da

terra e a organização social das atividades está diretamente ligada ao funcionamento dos

mercados de terras, que por sua vez repousam na capacidade de apropriar-se da renda da terra.

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De acordo com Harvey (1990), o mercado de terras é regulado por fatores altamente

especulativos associados à expectativa de ganhos futuros, os quais estariam assentados diante

a capacidade que determinadas terras teriam de gerar ganhos maiores, por sua fertilidade e

localização com mercado. O mercado de terras a exemplo do mercado especulativo é regulado

basicamente por dois fatores, a taxa de lucro e os ganhos futuros previstos através da renda da

terra. O fator especulativo explica porque terras sem condição de uso apresentam um valor, o

que levou Harvey (1990, p. 370) a concluir que o elemento especulativo exerce uma

influencia considerável no preço da terra. Compreender o mercado de terras desta maneira

implica refletir que a tendência da terra no capitalismo é assumir a condição de capital

fictício, já que, da mesma forma que os títulos de dívidas do estado, que é regulada pela

possibilidade que estes títulos têm de produzir ganhos futuros, assim também é a terra. O que

se busca com a compra da terra é um título que autoriza o comprador a receber uma renda

anual.

Bajo esas condiciones se trata a la tierra como um bien financeiro que se

compra y se vende según la renta que produce. Como todas las demás

formas de capital fictício, lo que se compra y se vende és um derecho a um

ingresso futuro, lo cual significa um derecho sobre utilidades futuras por el

uso de la tierra o, más directamente, um derecho al trabajo futuro

(HARVEY, 1990, p. 350).

Nesse sentido, o investimento em terras não é direcionado na produção direta, mas

pela possibilidade de retornos financeiros no mercado de terras. Dessa maneira, a dinâmica de

funcionamento do mercado de terras tem papel importante na circulação de capital através do

meio-ambiente construído.

Segundo Harvey (1990), quando a terra torna-se um capital fictício é o que a

caracteriza em sua forma capitalista. “Cuando el comercio com tierras se há reducido a uma

rama especial de la circulácion del capital a interes, entonces yo argumentaria que la

propriedade territorial há logrado su forma verdaderamente capitalista” (HARVEY, 1990, p.

350). Ele acrescenta que embora Marx não conclua que a terra seja um capital fictício, diz que

o comércio de terras pode ser tratado como uma forma de capital fictício.

Para Harvey, a crescente tendência da terra atuar na economia como um ativo

financeiro seria a chave para a transição da propriedade privada da terra em sua forma

tipicamente capitalista, pois apesar de toda a heterogeneidade dos interesses relacionados a

terra, a partir do momento em que ela assume o caráter de ativo financeiro, é capaz de unificar

os interesses de diversos grupos sobre a terra. Isso permite entender porque duas classes

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antagônicas – os proprietários de terras e os capitalistas, podem ter objetivos em comum e se

fundirem numa mesma pessoa.

Portanto, se o capitalista e o proprietário estão objetivamente separados e

contrapostos, isso não quer dizer que ambos não possam estar juntos, unidos

pelo interesse comum na apropriação da mais-valia produzida pelos

trabalhadores. Essa é a razão, também histórica, que faz com que ambos

possam surgir unificados numa única figura, a do proprietário de terra que

também é proprietário de capital (MARTINS, 1990, p. 166).

É por isso que quando capitalista compra a terra, ele não está interessado diretamente

na terra em si, pois o que ele compra é a renda da terra que é o direito de reter uma parte da

mais-valia social, de receber pelos ganhos que a terra possivelmente pode lhe garantir.

No entanto, para que a terra alcance esta condição de ativo financeiro é necessário um

sistema sofisticado de crédito para dar conta dos problemas que a circulação do capital fixo

pode impor. Para tanto, essa condição só é possível ser alcançada com um capitalismo mais

maduro e desenvolvido. Em resumo, “en al análises final, probablemente es la necesidad de

revolucionar las fuerzas productivas sobre la tierra, de abrir la tierra a la libre corriente de

capital, lo que obliga a que se reduza la propriedade territorial a la tenencia de um bien

financeiro puro” (HARVEY, 1990, p. 351).

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