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58 CARTA FUNDAMENTAL REPORTAGEM N a quadra da Escola Municipal Mauro Faccio Gonçalves, mais conhecida como Zacaria, na zona sul de São Paulo, cerca de cem alunos do 9º ano aguar- dam a vez para assinar um dos documentos exigidos para a formatura. O diretor, Rober- to Wagner Carbonari, chama aluno por aluno em ordem alfabética. Os formandos já estão impacientes, quando professoras fantasiadas surgem na quadra ao som de Dancin’ Days. Em seguida, os professores e o diretor dan- çam uma coreografia de Village People, gru- po norte-americano dos fortões fantasiados, conhecidos pelos hits Macho Man e Y.M.C.A. Espantados, os alunos entendem o que está acontecendo: as assinaturas eram um pretex- to para reunir todos em uma festa-surpresa. No pátio, um DJ aguarda os adolescentes com comidas, bebidas não alcoólicas, luzes e música eletrônica. Alunos, professores e fun- cionários se juntam e arriscam passos na pis- ta de dança improvisada no local onde usu- almente é montado o refeitório. O clima é de alegria entre a equipe e os alunos que estão dando adeus à escola. Denilson Oliveira Al- ves Filho, 16 anos, confessa que derramou al- gumas lágrimas no momento em que se de- parou com a festa: “Chorei porque vou sentir saudades da Zacaria. Aprendi muito aqui”. Há 16 anos, a situação era diferente. A es- cola fica no entroncamento de três bairros periféricos da zona sul: Parque Santo Antô- nio, São Luiz e Chácara Santana. O primei- ro começou a ser ocupado na década de 1970 e abriga cerca de 270 mil moradores. Hoje, carrega também a marca de o mais violen- to da capital. Dados do 92º DP, responsável por atender o bairro, já contabilizava 52 ho- micídios dolosos até outubro de 2012, o maior contingente da cidade. Levando em conta as estatísticas dos DPs do Capão Redondo e Campo Limpo, também localizados na re- gião sul da capital, o número salta para 137, por volta de 12% de todos os homicídios re- gistrados na capital no ano passado. Rebatizada pela comunidade em 1991 de Zacaria em homenagem ao comediante de Os Trapalhões, a escola e seus alunos tinham poucos motivos para sorrir. O espaço era de- gradado, cheio de pichações e marcado pe- la violência. “No meu primeiro mês como A escola que é uma festa Localizada em um dos bairros mais violentos de São Paulo, a Escola Municipal Zacaria consegue melhorar o ambiente, envolver a comunidade e se reinventar POR ISABELA MORAIS E TORY OLIVEIRA ••CFReportagemZacaria45.indd 58 16/01/13 15:23

A escola que é uma festa

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Na quadra da Escola Municipal Mauro Faccio Gonçalves, mais conhecida como Zacaria, na zona sul de São Paulo, cerca de cem alunos do 9º ano aguar-

dam a vez para assinar um dos documentos exigidos para a formatura. O diretor, Rober-to Wagner Carbonari, chama aluno por aluno em ordem alfabética. Os formandos já estão impacientes, quando professoras fantasiadas surgem na quadra ao som de Dancin’ Days. Em seguida, os professores e o diretor dan-çam uma coreografia de Village People, gru-po norte-americano dos fortões fantasiados, conhecidos pelos hits Macho Man e Y.M.C.A. Espantados, os alunos entendem o que está acontecendo: as assinaturas eram um pretex-to para reunir todos em uma festa-surpresa.

No pátio, um DJ aguarda os adolescentes com comidas, bebidas não alcoólicas, luzes e música eletrônica. Alunos, professores e fun-cionários se juntam e arriscam passos na pis-ta de dança improvisada no local onde usu-almente é montado o refeitório. O clima é de alegria entre a equipe e os alunos que estão dando adeus à escola. Denilson Oliveira Al-

ves Filho, 16 anos, confessa que derramou al-gumas lágrimas no momento em que se de-parou com a festa: “Chorei porque vou sentir saudades da Zacaria. Aprendi muito aqui”.

Há 16 anos, a situação era diferente. A es-cola fica no entroncamento de três bairros periféricos da zona sul: Parque Santo Antô-nio, São Luiz e Chácara Santana. O primei-ro começou a ser ocupado na década de 1970 e abriga cerca de 270 mil moradores. Hoje, carrega também a marca de o mais violen-to da capital. Dados do 92º DP, responsável por atender o bairro, já contabilizava 52 ho-micídios dolosos até outubro de 2012, o maior contingente da cidade. Levando em conta as estatísticas dos DPs do Capão Redondo e Campo Limpo, também localizados na re-gião sul da capital, o número salta para 137, por volta de 12% de todos os homicídios re-gistrados na capital no ano passado.

Rebatizada pela comunidade em 1991 de Zacaria em homenagem ao comediante de Os Trapalhões, a escola e seus alunos tinham poucos motivos para sorrir. O espaço era de-gradado, cheio de pichações e marcado pe-la violência. “No meu primeiro mês como

ves Filho, 16 anos, confessa que derramou al-

A escola que é uma festa Localizada em um dos bairros mais violentos de São Paulo, a Escola Municipal Zacaria consegue melhorar o ambiente, envolver a comunidade e se reinventarPOR I SAB E L A M O R AI S E TO RY O LIVE I R A

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GESTÃO DEMOCRÁTICAPara engajar a comunidade, escola apostou em medidas como diálogo aberto e promoção de eventos

diretor, estourou uma bomba na entrada da escola, em seguida explodiu um hidrante e, segundos depois, outra bomba no banheiro que destruiu todas as lâmpadas”, lembra Car-bonari. O diretor filmou tudo e passou de sa-la em sala mostrando para os alunos e expli-cando que o objetivo dele não era atuar como policial, mas que era necessário descobrir o responsável. Uma aluna contou ao educador que suspeitava do irmão, aluno da oitava sé-rie na escola. Carbonari foi até a casa do ra-paz e afirmou que não faria boletim de ocor-rência se o menino concordasse em conver-sar com ele. “Nunca mais teve bomba, por-que isso pegou entre as pessoas.”

Olgair Garcia, ex-coordenadora pedagógi-ca da escola, também se recorda de casos de vandalismo. A antiga diretora, que mantinha uma relação conflituosa com os alunos, ex-pulsou seis deles, considerados problemáti-cos. A situação era, nas palavras da coordena-dora, terrível. “Quando entrei, principalmen-te à noite, tinha umas brigas horríveis”, diz a educadora, ex-aluna de Paulo Freire, que saiu de uma universidade privada porque queria trabalhar na rede pública. Na época, o pessi-

mismo da diretora encontrava coro entre os professores. Dispensa de aulas, faltas e expul-sões de alunos da sala eram comuns.

Além da violência, a falta de professores era outro problema. O bairro, até hoje, não é de fácil acesso e era comum que a escola servis-se apenas como local de passagem para os do-centes que esperavam por uma oportunidade de trabalho melhor. “Já tive de dar aulas pa-ra duas turmas por quase um ano inteiro. Eu não tinha quem desse as aulas nem ha-via previsões para a chegada de alguém”, afir-ma o diretor. Assim, a escola tinha dificulda-des de envolver alunos e comunidade.

O quadro começou a mudar com uma de-cisão da equipe gestora. Ao lado da ex-coor-denadora pedagógica Olgair, Wagner Carbo-nari decidiu permanecer. Ele disse: “Eu sou diretor e vim para ficar, mas a escola não é minha”, lembra a professora Maria do Socor-ro Lacerda, há 17 anos na Zacaria. A sala do diretor, antes inacessível aos alunos, passou a ficar aberta a todos. Aos poucos, espalhou--se, entre os estudantes, a noção de que esta-vam abertos ao diálogo. Mais democrática, a escola deu início aos projetos que existem até hoje e passou a lutar por melhorias.

Pequenos gestosA primeira grande mudança foi democrati-zar as decisões no Conselho Escolar: da gra-de curricular até o gasto do dinheiro prove-niente da Associação de Pais e Mestres, tu-do era decidido em conjunto. Outra inovação foi o Programa de Valorização do Educador (Prove), idealizado por Olgair em 1998, que passou a oferecer, todos os meses, cursos de formação. A cada fim de ano é realizado um seminário e os professores publicam seus re-latos em uma revista editada por eles. Com o tempo, o programa foi incorporado por ou-tras escolas da região.

Após se aproximar da comunidade, a esco-la também conseguiu resolver o problema da falta de professores. Direção e moradores se mobilizaram e levaram cerca de 700 pais e responsáveis até a prefeitura, no centro da ci-dade, para cobrar a contratação de docentes. “No dia seguinte, o Diário Oficial publicou a inscrição para professores”, afirma Wagner.

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De acordo com o diretor, a falta de profes-sores diminuiu: “Em vista do cenário de 15 anos atrás, hoje é uma maravilha. Temos até professor substituto”, conta. Segundo dados da Secretaria Municipal de Educação, hoje a escola Zacaria abriga 911 alunos do 1º ao 9º ano do Fundamental. Há também turmas de Educação de Jovens e Adultos.

A estrutura física da escola também mu-dou. A primeira alteração começou com o ba-nheiro. A reforma levou em conta as reivindi-cações dos alunos, como a instalação de sa-bonete líquido e do suporte para o papel hi-giênico nos boxes. Um espelho foi fixado na parede, assim como ar quente para enxugar as mãos e uma cantoneira para apoiar o ma-terial escolar. O local foi arrumado, as picha-ções apagadas e assim permanece até hoje. “As pessoas entenderam que têm o direito de possuir uma escola limpa”, explica Socorro.

Os alunos também foram atendidos em ou-tra solicitação, aparentemente banal. A pedi-do dos estudantes, mudou-se a maneira de

ALUNOS TÊM VOZ

Escola mudou a pedido dos

estudantes, e agora merenda é servida como self-service

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De acordo com o diretor, a falta de profes-ALUNOS

Embora as melhorias na Zacaria sejam notáveis, a escola não apresenta um grande avanço em avaliações externas, como o Prova Brasil. O desempenho da instituição no Ideb é igual (4,8) ao da média das escolas

da rede pública paulistana, no caso do 5º ano, e inferior (3,7), entre os alunos do 9º (4,3). O diretor, Wagner Carbonari, afirma que, apesar da insatisfação com os resultados atingidos, muitos elementos acabam

não sendo captados pelas avaliações externas. “Houve uma melhora nas relações de convivência da comunidade com a escola que dificilmente se traduz numa nota”, defende. Segundo o diretor, que cita

ainda os alunos aprovados em universidades públicas ou ganhadores de bolsas nas privadas, o assunto é debatido entre os professores, que cogitam criar um indicador próprio da escola.

Incompatibilidade com as avaliações

servir a merenda: os pratos de plástico foram trocados por outros de vidro, com garfo e faca no lugar da colher, e os alimentos, antes ser-vidos pelas cozinheiras, passaram a ser ofere-cidos em um esquema de self-service. As mu-danças tornaram o refeitório um lugar mais limpo e menos barulhento.

Outra ação que agregou identidade à esco-la e aproximou a instituição dos alunos foi o Projeto Aniversário, criado em 2000. A ideia é simples: realizar, a cada três meses, uma festa coletiva para todos os estudantes que fa-çam aniversário naquele período. Antes, to-dos os professores trabalham com um deter-minado tema em sala. No dia da comemo-ração é servido um cardápio especial e são apresentados os resultados do trabalho de-senvolvido ao longo dos meses. Como as fes-tividades são frequentes, a escola adquiriu, com o dinheiro da Associação de Pais e Mes-tres, máquinas de algodão-doce, sorvete, cre-pe, pipoqueira e um forno para pizza.

A formatura do 9º ano também foi rein-ventada. Antes, os alunos pagavam por ceri-mônias fora da escola. A maioria não tinha condições financeiras para bancar e a festa acabava restrita a poucos. Hoje, todos parti-cipam da formatura com suas famílias e nin-guém paga nada. A festa acontece no pátio da escola e é financiada com o dinheiro arreca-dado nos eventos realizados durante o ano.

Há ainda um balanço avaliativo com pro-fessores, alunos e gestores. Em uma espé-cie de assembleia, todos se reúnem no pátio da escola para definir, juntos, quais serão as normas vigentes no próximo ano. “Isso cria uma consciência de que você está num espa-ço público, mas que é seu, que é você quem o constrói”, analisa Olgair.

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