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A Origem do Zumbi no Rádio e no Cinema Norte-Americanos: Filmes de Horror B, Império e Políticas de Negação

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A Origem do Zumbi no Rádio e no Cinema Norte-Americanos: Filmes deHorror B, Império e Políticas de Negação.

Chris Vials*

Tradução: Rodrigo Belinaso Guimarães

Lançado em 1943, o filme I Walked with a Zombie de Jacques Tournier carrega uma

mensagem sobre o Caribe que era onipresente nas narrativas de horror B das décadas de 1930 e

1940, esta mensagem ainda está presente nas representações sobre o Haiti no imaginário cultural do

Ocidente. O filme, cujo cenário é a plantação de açúcar de um fazendeiro branco na ilha ficcional

de Saint Sebastian, narra a história de uma enfermeira canadense chamada Betsy Connell. A jovem

enfermeira é trazida para a ilha para cuidar da esposa do fazendeiro, Jessica Holland, que havia

participado de rituais vodus e, como consequência, fora transformada em um zumbi. O que chama a

atenção no filme é que, apesar de usar o vodu e zumbis para contar uma história sobre o Caribe, há

um curioso reconhecimento da exploração e da injustiça social na região. I Walked with a Zombie

repetidamente relembra aos seus espectadores a história de escravidão em Saint Sebastian: o mastro

de um navio negreiro está encravado numa clareira na plantação de Holland e, ao longo do filme,

recapitula-se a cena do busto esculpido no mastro. Trata-se de uma escultura de madeira do mártir

religioso Saint Sebastian que sucumbia ferido por flechadas. Como a ilha carrega o nome do navio

negreiro (batizado, por acaso, depois de uma peste negra), a imagem daquele busto é a cena final do

filme e a escravidão emerge como uma parte central e inseparável de seu exótico cenário.

Mesmo que o filme reconheça esta história, ele não retira nenhuma lição explícita deste fato

e, paradoxalmente, pode ser esta encenação vazia a mais esclarecedora para esta análise. Quando

Betsy chega à ilha, o fazendeiro Paul Holland aponta para o mastro e tenta explicar para ela: “As

pessoas vêm da miséria e da dor da escravidão. Por gerações, elas enxergam a vida como uma

carga. Isto é o motivo porque eles choram quando uma criança nasce e comemoram em seu

funeral.” Ele acrescenta: “Eu direi a você … este é um lugar triste.”

A mensagem social explícita do filme - “este é um lugar triste” - poderia ser familiar para

qualquer um que acompanhasse a cobertura do recente terremoto no Haiti. É uma mensagem que

toca no sofrimento colonial e que reconhece as feridas históricas e profundas, mas recusa-se a

qualquer introspecção e responsabilidade. Se um único discurso do Império brota por todos os

lados, então a visão norte-americana sobre o Caribe pode ter raízes originárias nos filmes B de

horror. Além disso, este discurso funciona para obscurecer e negar a verdadeira natureza do

* Professor assistente da University of Connecticut-Storrs e autor de Realism for The Masses: Aesthetics, PopularFront Pluralism, and U.S. Culture, 1935-1947 (2009). Suas pesquisas também foram publicadas em Criticism eThe Journal of Asian American Studies. Os projetos do autor pesquisam o legado, na cultura dos U.S.A, daesquerda liberal antifascista dos anos 1930. Suas contribuições também oferecem uma leitura da direita políticaNorte-Americana.

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relacionamento político entre o Norte global e o Sul global. Assim, acompanhando a cobertura do

trágico terremoto de 2010 no Haiti – um desastre que deixou ao menos 230 mil mortos e mais de

um milhão de desabrigados – o exemplo mais reprovável foi dado pelo jornal inglês Daily Mail, que

relatou a catástrofe com a manchete - “Haiti: estupro, assassinato e vodu na ilha da perdição” (eu

retornarei a este artigo na minha conclusão). Muito mais típica, entretanto, foi a cobertura da

afiliada da NBC em Nova Iorque, cujo artigo “A Triste História do Haiti,” com um tom

compreensivo, apresentava o passado do país como um trágico pesadelo sem fim, mas apenas

minimamente interligado com a história dos Estados Unidos.1

A monstruosidade zumbi – que nos últimos dez anos se tornou mais uma vez o maior

fenômeno da cultura de massa global – desempenhou um papel central na criação dos discursos

imperiais sobre o Caribe. Para audiências contemporâneas, o roteiro zumbi mais familiar apresenta

uma epidemia dentro dos Estados Unidos (ou dentro do Ocidente) e esta linha narrativa tem uma

genealogia própria que começa com o diretor George Romero no filme de 1968 Night of the Living

Dead. Por causa da influência singular de Romero – cuja produção é característica do final dos anos

1960 – os filmes contemporâneos são veículos que expressam, em geral, políticas progressistas (isto

também é encontrado em alguns jogos de videogame de zumbis).2 Entretanto, as primeiras histórias

de zumbis na cultura popular dos Estados Unidos eram geralmente encenadas no Haiti ou em outro

lugar da região. Nestas histórias mais antigas, os mortos-vivos não surgiam das mordidas de bocas

apodrecidas, mas através de um “mestre” que usava uma erva local ou ritual vodu para criar

escravos para um propósito particular, normalmente para o trabalho na lavoura. Romero

desenvolveu uma inclinação mais progressista para o gênero quando produziu as histórias no

próprio território dos espectadores e eliminou o vodu como a causa do surto, despojando o gênero

de seu exotismo e dissociando o zumbi do Haiti.

No início, o zumbi entrou na cultura popular como um resultado direto da ocupação dos

Estados Unidos no Haiti entre 1915 e 1934, um acontecimento que não tem sido explorado

adequadamente até agora. Em meados da década de 1920, fuzileiros navais atracados no Haiti

escoltaram um repórter e escritor chamado de William Seabrook em um giro pelo país e esta

viagem, sob os cuidados dos fuzileiros, o inspirou a escrever um relato: The Magic Island (1929).

1 Gabe Pressman, “The Sad History of Haiti,” NBC New York, Janeiro 14, 2010, http://www.nbcnewyork.com/news/local-beat/The-Sad-History-of-Haiti-81353577.html; Andrew Malone, “Haiti: Rape, Murder and Voodoo on theIsland of the Dammed,” Daily Mail Online, Janeiro 14, 2010, http://www.dailymail.co.uk/news/article-124316/ANDREW-MALONE-Rape-murder-voodoo-island-dammed.html.

2 Eu incluo aqui os filmes de Romero: The Crazies (1973), Dawn of the Dead (1978) e Land of the Dead (2005); osde Danny Boyle: 28 Days Later (2002), como também sua sequência 28 Weeks Later (2007); no universo dosvideogames eu incluo Dead Rising (2006) e os mais recentes jogos da série Resident Evil, todos produzidos pelaCAPCOM localizada em Osaka. Dead Rising, na verdade, expande a crítica implícita ao consumismo de Dawn ofDead, usando o zumbi como uma metáfora para a devastação humana e ambiental ao redor do mundo em razão doconsumismo norte-americano. Assim, na raiz de todo o mal em Resident Evil está a gigantesca corporaçãofarmacêutica chamada Umbrella, cujo “T-virus” que causa o fenômeno zumbi só se espalhou devido a sua inegávelinfluência junto ao governo local.

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Tratava-se da primeira narrativa de fôlego contendo zumbis que surgia na cultura popular norte-

americana. Como a historiadora Mary Renda notou, esse livro ajudou a inflar a fascinação popular

em relação ao Haiti e inspirou histórias similares de magia vodu no rádio, nos quadrinhos e em

filmes dos anos 1930. Renda argumenta que tais histórias aproximaram os cidadãos comuns norte-

americanos do projeto de expansão imperial e eles foram cooptados através da lógica do exotismo.

Como é próprio do imperialismo, que incorpora outro país sem permitir que ele se torne parte

constituinte de sua própria cultura, o exotismo injetou o Haiti dentro da sociedade norte-americana

enquanto o manteve como estranho e presumivelmente inferior. Isto, conforme Renda, justificou a

presença norte-americana e sua “tutelagem” paternalística.3

Porém, talvez o que mais surpreenda seja a forma como as narrativas de zumbis, presentes

na cultura de massa norte-americana nas décadas de 1930 e 1940, expressavam um incômodo com a

miséria do trabalhador colonial e com a exploração imperial. Um incômodo que ainda ressoa nas

narrativas populares do Ocidente sobre o terceiro mundo, em que haja zumbis ou qualquer outra

criatura. Os antigos zumbis eram quase sempre trabalhadores em plantações do Caribe, negros e

brancos, empregados por um vil fazendeiro branco para satisfazer seus desejos nefastos. Nesse

artigo, eu argumento que estas antigas histórias de zumbis presentes na cultura de massas dos E.U.A

– circulando em filmes, na literatura e, mais frequentemente, no rádio – não refletiam nem

diretamente reforçavam uma lógica imperial que culminaria em um apelo pela “tutelagem,” tal

como sugere Renda. Dessa forma, ao se mudar o foco de análise do tema trabalho, pode-se revelar a

utilização do exótico em função de um conhecido isolamento: um isolamento baseado na

ambivalência em relação ao colonialismo, assentado na cultura popular dos Estados Unidos durante

os anos de 1930 e 1940. Este isolamento, ao fim, é utilizado pelo Império, porém não ignorando a

injustiça nem justificando um paternalismo implícito, mas sim, para a negação da humanidade de

suas vítimas racializadas e, desse modo, para a negação de uma política de solidariedade.

Durante as décadas de 1930, de 1940 e nos primeiros anos de 1950, o zumbi esteve em

filmes tais como White Zombie (1932), Revolt of the Zombies (1936) e I Walked with a Zombie,

assim como em programas de rádio que abrangeram The Shadow, The Clyde Beatty Show, Five

Minute Mysteries, Adventures by Morse, Unsolved Mysteries, Strange Adventure e Screen

Director's Assignment. Estas produções no geral apresentavam o mundo colonial (normalmente o

Caribe) como um lugar de grande sofrimento, seja por conta de seu passado escravista ou pelos

projetos de exploração de fazendeiros brancos contemporâneos. Estas representações foram

possíveis em parte pela Política de Boa Vizinhança de Franklin Roosevelt, que colocou o Haiti nas

manchetes enquanto as tropas norte-americanas se retiravam do país em 1934. Esta mudança na

política externa necessitava de um novo discurso de cooperação que rompesse com as imagens do

3 Mary Renda, Taking Haiti: Military Occupation and the Culture of U.S. Imperialism, 1915-1940 (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2001), 6, 21-22.

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primitivismo vodu. Mas como eu argumento, a imagem de uma força de trabalho caribenha

oprimida fora também divulgada pela vigilância implacável da imprensa afro-americana, pelo

ativismo da esquerda norte-americana dos anos 1930 e pelos protestos dos próprios haitianos. Tal

agitação não transformou somente o Haiti em um espaço de crítica anti Império, mas colocou

também a exploração geral do trabalho no centro do debate público norte-americano.

Entretanto, enquanto estas narrativas de horror muitas vezes registravam um desconforto

em relação ao trabalho colonial, elas também usavam a figura do zumbi para degradar a

humanidade do sujeito colonial, não oferecendo às audiências nenhuma base para se identificarem

com suas péssimas condições. Mesmo que os discursos progressistas anti Império dos anos 1930 e

1940 estivessem inscritos nas narrativas de zumbis de meados do século, o gênero, ao final, ajudou

a neutralizar as vozes e o ativismo que se dirigia a uma solidariedade transcultural que marcou

aquelas décadas. Aquelas histórias de horror de meados do século partiam de leituras multiculturais

do Sul global, ao mesmo tempo em que estas culturas eram geralmente interpretadas em termos da

diferença absoluta e da inferioridade, porém o que marcaria o principal legado delas ao presente

seria a política de negação. A este respeito, as antigas histórias de zumbis ilustram como o

conhecido isolacionismo, paradoxalmente, serve como base para o Império. O isolacionismo tem

como premissa básica a ideia de que a nação funcionará melhor, tanto quanto possível, se ela

permanecer fora dos acontecimentos do mundo – uma ideia que parece impedir a expansão

imperialista. Mas um isolacionismo que não reconhece a vívida realidade estrutural do imperialismo

norte-americano – não questiona os discursos raciais que ele necessariamente cria – rapidamente

degenera em uma apatia por suas vítimas. Tal é a lógica da negação.

Meu exame dos primeiros passos do gênero zumbi na cultura de massa dos Estados Unidos

é talvez o primeiro a considerar a mídia rádio. O crescimento do acesso às transmissões comerciais

de rádio de meados do século XX tem disponibilizado novos arquivos para pesquisadores da cultura

popular. Estes arquivos revelam a frequência com que foram usadas histórias de zumbi para colocar

em circulação narrativas sobre o Haiti e o Sul global para as audiências dos E.U.A, particularmente

nos anos 1940. Em áreas urbanas na década de 1930, menos do que 1 em cada 10 domicílios não

tinham um rádio; por volta dos anos de 1940, 83 por cento de todos os domicílios norte-americanos,

rurais e urbanos, possuíam um rádio.4 De fato, os norte-americanos tinham um maior contato diário

com o rádio nos anos 1930 do que com qualquer outra forma de cultura de massa, com a possível

exceção dos jornais. Enquanto meio de comunicação, as transmissões de rádio estavam assim bem

posicionadas para fazer o trabalho cultural de negação. Usando vozes e dialetos, eles promulgavam

dramaticamente e cruamente a separação hierárquica entre a população branca e negra que tinha

dependido, primeiramente, dos códigos visuais do gênero cinematográfico.

4 Barbara Dianne Savage, Broadcasting Freedom: Radio, War, and Politics of Race, 1938-1948 (Chapel Hill:University of North Carolina Press, 1999), 6.

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Antes de se discutir as narrativas zumbis das décadas de 1930 e 1940, deve-se brevemente

contextualizar o evento histórico que levou à disseminação desta criatura na cultura norte-

americana: a ocupação do Haiti de 1915 até 1934. Os fuzileiros navais ocuparam a ilha em nome

dos interesses comerciais norte-americanos e para sempre alteraram sua estrutura política. Eles

dissolveram a mão armada o legislativo haitiano e instalaram um governo fantoche. Os norte-

americanos suprimiram a liberdade de expressão para forçar uma nova constituição para o país que

permitisse maior investimento estrangeiro. Nos dias atuais se estima que por volta de 10 mil

haitianos foram mortos ao mesmo tempo que crescia sua revolta. Porém, em longo prazo, as

consequências foram mais terríveis. Desde que o país se tornou independente em 1804, os

camponeses haitianos conseguiam manter suas propriedades contrariando os projetos de suas

lideranças; eles construíram um sistema viável de pequenas propriedades contra os desejos da elite

haitiana, que desejava uma economia baseada em plantações agrícolas de larga escala. As reformas

administrativas e os projetos de infraestrutura da ocupação norte-americana, efetivamente,

centralizaram os aparatos militares e policiais do país, permitindo finalmente às elites estrangeiras e

do país imporem seu modelo econômico e seu poder político sobre as pessoas comuns.5

Na verdade, o povo do Haiti nunca deixaria de estar às voltas com esta recomposição de sua

estrutura de classe. Desde então, os interesses comerciais norte-americanos e os líderes políticos

locais têm continuamente expandido as desigualdades nascidas da ocupação. Durante a Guerra Fria,

o governo dos E.U.A assegurou a sobrevivência política dos ditadores Francois (“Papa Doc”)

Duvalier e Jean-Claude (“Baby Doc”) Duvalier ao dotar seus regimes de assistência militar e

econômica em troca da venda das manufaturas norte-americanas para a aterrorizada força de

trabalho do país.6 Na década de 1990, os Estados Unidos trabalharam com as elites haitianas para

reduzir as reformas populares do presidente Jean-Bertrand Aristide, um esforço que culminou no

golpe de estado apoiado por Washington contra este líder democraticamente eleito em 2004. O Haiti

se tornou um Estado próximo da anarquia desde então.

Nos anos do entreguerras, a ocupação colocaria o Haiti de forma permanente nas manchetes

dos jornais norte-americanos. Isto fez da nação insular um objeto de interesse para escritores e

leitores. Assim, uma série de autores, incluindo Eugene O'Neill, John Vandercook, Zora Neale

Hurston e Langston Hughes criaram imagens que incendiaram a imaginação das audiências norte-

americanas. Indubitavelmente, nenhum trabalho rivalizou com o impacto do livro de viagens de

William Seabrook, The Magic Island, publicado em 1929. Este livro compôs o modelo para a

maioria das histórias norte-americanas de zumbis e vodu que foram publicadas nas duas décadas

seguintes. A narrativa da aventura pessoal de Seabrook alcançou um público leitor amplo nos anos

5 Renda, 29-36, 47-53.6 Noam Chomsky, “Introduction to Paul Farmer,” The Uses of Haiti (Monroe, ME: Common Courage Press, 2003),

19-24.

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seguintes ao seu lançamento e, até mesmo, conquistou um status de best-seller no de sua

publicação.7

The Magic Island não está focada exclusivamente nos mortos-vivos, mas no completo meio

social de crenças exóticas e superstições atribuídas ao Haiti, nos quais o vodu e o zumbi receberam

proeminência. Na verdade, a história foi baseada em reportagens de Marine Faustin Wirkis.

Seabrook, como narrador, conduz o leitor através do mundo primitivo de “superstições” do Haiti,

como se ele tivesse testemunhado tudo de primeira mão. Entretanto, mais elaborada é a sua

descrição da cerimônia vodu na qual ele, aparentemente, parece ter observado. Seu detalhamento do

ritual, que inclui descrições dos tambores, das danças selvagens, do sacrifício de animais, de uma

procissão com mantos brancos – tudo isto cercado pelo ar da noite da floresta e iluminado pela lua e

por tochas – forneceriam as bases para uma estética de horror utilizada por uma geração de

cenógrafos e roteiristas. Ele até mesmo incluiu esboços sobre a superfície dos altares cerimoniais

que ilustravam a exata disposição de cruzes, velas e cobras.

Mas além do mise-en-scène dos rituais vodus, The Magic Island legaria os dois principais

elementos narrativos que seriam posteriormente fundidos nas histórias de zumbi no cinema e no

rádio dos anos 1930 e 1940. O primeiro é a ideia de que a inocência feminina – e a feminilidade ela

mesma – é consumida nos rituais vodus, um ritual que cria “autômatos” assexuados. Seabrook

descreve o ritual como sendo extremamente carregado de sensualidade, com homens e mulheres

entregando-se a um “êxtase” cujo ápice é atingido com sexo no interior da mata.8 Em seu relato, o

ritual necessitava do “sacrifício” de uma jovem garota negra chamada de Catherine, cuja alma é

transferida para o corpo de uma cabra durante a cerimônia; o animal é então destroçado no lugar

dela em um ritual de substituição. Durante o ritual, a garota e a cabra são efetivamente

zumbificadas; o autor as descreve como “dóceis e encantadas … como autômatas.”9 Da mesma

forma, Seabrook posteriormente reconta seu encontro com uma “garota camponesa” chamada

Classinia, a quem ele retrata como uma “negra de pele clara … serena e infantil,” “voz suave,” e

“amável.”10 Mas quando participa dos rituais da necromancia haitiana, ela rapidamente passa por

uma horrível transformação. Enfim, ele percebe que “ela não era mais uma mulher, mas Papa Nebo,

o macho-fêmea hermafrodita, oráculo da morte.”11 Seabrook nota com horror que “no canto de sua

boca, com se preso nos lábios de um ventríloquo, estava um cigarro apagado.”12

Na verdade, Seabrook teve uma atitude ambivalente sobre a ocupação dos U.S.A e via seu

trabalho como promovendo a valorização da cultura haitiana. Como tem sido notado por críticos,

7 Renda, 246.8 William Seabrook, The Magic Island (Hamburg, Germany: The Albatross, 1932), 40.9 Ibid., 58.10 Ibid., 74.11 Ibid., 76.12 Ibid.

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The Magic Island foi lançado nos anos 1920 no mesmo impulso que abarcou Nigger Heaven (1926)

de Carl Van Vechten e Emperor Jones (1920) de Eugene O'Neil.13 Como tal, trata-se de um

exercício de “negrofilia” que exalta a inocência primitiva dos negros como um antídoto válido para

a sexualidade reprimida da cultura branca altamente civilizada. Como Seabrook escreve do ritual

vodu, “suas práticas … são racionalmente defensáveis. Que importância teria qualquer vida sem

momentos de excitação ou de êxtase?”14 Contudo, como podemos observar nos exemplos acima, um

tom pesado de puritanismo acompanha o livro de viagem de Seabrook. Como os casos de Catherine

e Classinia revelam, deve haver um preço terrível a ser pago num mundo onde tamanha paixão

sexual é desencadeada. Estas garotas, de fato, exibem um alto custo ao tornarem-se “assexuadas” e,

assim, catalisarem a energia sexual do coletivo.

Embora não esteja relacionado à primeira vista na narrativa de Seabrook, a castração

feminina ritualizada tem sua contrapartida masculina, o zumbi trabalhador na lavoura. O capítulo

dois de The Magic Island intitulado “… Dead Men Working in the Canefields,” pode ser destacado

como aquele que introduziu o zumbi no universo da língua inglesa.15 Em sua definição bastante

influente sobre o mostro global da atualidade, o zumbi é “um corpo humano sem alma, ainda morto,

mas retirado do túmulo e dotado por magia de um mecânico semblante de vida.” Em geral, é criado

por um “mestre” com o propósito de trabalhar, tornando-se “um servo ou escravo, ocasionalmente

exigido para cometer algum crime, mas na maioria das vezes tratado como um simples burro de

carga deixado ao redor da fazenda, posto em tarefas pesadas e entediantes, as quais executa

lentamente como se fosse um besta idiota.”16 Enquanto o zumbi é um símbolo do trabalho

explorado, ele não seria, no sentido dado por Seabrook, de modo algum um veículo para se criticar

o colonialismo.

Em particular, o informante nativo de Seabrook, Constant Polynice, conta-lhe a história do

“capataz negro” chamado Ti Joseph, que possuiria zumbis para trabalharem nas plantações de

propriedade da Haitian-American Sugar Company (Hasco), uma firma norte-americana. De forma

velada da companhia, que paga “baixos salários” para “trabalho árduo,” Joseph registrou seus

zumbis para trabalharem para a Hasco, assim ele retem estes salários para si mesmo. Seu esquema

vai por água abaixo quando sua tenra esposa tem pena das criaturas e as alimenta com frutos secos e

pistache. Os zumbis “como todo mundo sabe … nunca devem provar sal ou carne,” ao tornarem-se

conscientes de si mesmos após comerem os frutos secos, ou seja, perceberem que estão mortos, eles

13 Michael J Dash, Haiti and the United States: National Steriotypes and the Literary Imagination (New York: St.Martin's Press, 1997), 31-34.

14 Seabrook, 40.15 Esta alegação necessita de uma rápida ressalva. O dicionário de inglês Oxford registra o aparecimento esporádico

da palavra “zumbi” no universo da língua inglesa durante o século XIX, começando em 1819. Porém, nenhumadestas fontes teve o impacto da história de Seabrook. O uso do termo no século XIX não apresenta nenhumaconsistência, o que sugere que este personagem não tinha ainda adquirido um formato definitivo no imaginárioanglo-americano.

16 Seabrook, 84.

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retornam para seus túmulos, privando Joseph de sua mão de obra. Quando o autor, por fim,

conhece em primeira mão alguns “homens mortos-vivos” (que eram empregados por um cruel

capataz nativo em uma pequena fazenda), ele os considera como “autômatos,” a mesma palavra que

usou para Classinia e Catherine. Da mesma forma como os trabalhadores zumbis de Joseph, que

Polynice descreve: “olhos vagos como gado,” estas criaturas se dirigem ao seu labor servil

“arrastando-se como brutos.”17 Os aspectos da castração continuam também neste exemplo, embora

aqui mais fortemente ligados à animalização.

Como nas narrativas subsequentes de meados do século, a figura do zumbi revela ainda uma

ativa associação entre o Caribe e a história da escravidão dentro da imaginação branca. Mas em The

Magic Island, a culpa pelas práticas de escravidão e de crueldade no trabalho colonial são

deslocadas para os próprios haitianos, que cruelmente arrebanham os corpos de seus vizinhos

falecidos para trabalharem nas bem-intencionadas companhias norte-americanas. Os zumbis de

Seabrook não estão localizados em qualquer lugar do Caribe, mas no Haiti – o lugar da primeira,

bem-sucedida, revolta de escravos (Michael Denning chamou a revolução no Haiti “como a

primeira, global, revolta anticolonial”).18 Neste contexto, o livro revelava uma necessidade

psicológica em conter o potencial subversivo desta memória, assim apresentava o Haiti como o

único lugar do mundo em que ainda restavam escravos dóceis. De fato, a figura do zumbi

funcionava simbolicamente como uma forma de recolar as correntes nos haitianos, não como

objetos necessitados da imaginação paternalística, mas como objetos castrados, dignos de pena. Em

suma, o Haiti com sua misteriosa cultura se torna, em Magic Island, um lugar para práticas de

extrema exploração do trabalho – purgadas da culpabilidade branca – com uma energia erótica que

ameaçava destruir a sexualidade de todos aqueles que nele se aventurassem. Talvez seja nesse

sentido que Seabrook escreveu que: ao estar na ilha se produz “um terror de algo mais negro e mais

implacável do que [seus habitantes] – um terror de um abrangente ventre escuro.”19

Nos filmes e nas transmissões de rádio envolvendo zumbis nas duas décadas seguintes, esta

dinâmica básica permaneceu inalterada, mas com uma série de modificações importantes. Assim,

para traçar o desenvolvimento da narrativa, estou me baseado naquilo que acontece nos filmes

White Zombie; Revolt of Zombies e I Walked with a Zombie; além de episódios de rádio que

apresentaram mortos-vivos nos programas The Shadow (1940), Adventures by Morse (1944),

Strange Adventure (1945), Five Minutes Mysteries, Unsolved Mysteries (1949), Screen Directors'

Assignment (1949) e The Clyde Beatty Show (1950-51). As duas linhas narrativas de The Magic

Island descritas acima – a primeira envolvendo o sacrifício ritual da feminilidade, a segunda

envolvendo o emprego de zumbis nas plantações – emergem unidas nas estruturas narrativas dos

17 Ibid., 85, 86, 91.18 Michael Denning, Culture in the Age of Three Worlds (London: Verso, 2004), 26.19 Seabrook, 35.

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anos 1930 e 1940. De história em história, projetos nefastos concebidos em meio a uma plantação

(em geral pelo fazendeiro) de algum modo ludibriavam um jovem casal visitante, ameaçando seu

casamento pela castração do homem ou da mulher através da zumbificação.20 Em The Magic Island,

o ritual vodu em céu aberto e a criação de trabalhadores zumbis são eventos separados, cada qual

com seu lugar distinto e cada qual gerado distintamente. Nas histórias subsequentes sobre mortos-

vivos, estes dois motivos se tornam, em absoluto, inseparáveis.

Com a passagem do tempo, os cenários das histórias de zumbi transpassam as fronteiras do

Haiti. Embora permanecendo, em geral, em plantações de açúcar, várias produções trocaram de

cenário para outro lugar do Caribe, particularmente Cuba, enquanto em outros enredos as ações

ocorrem em fictícias ilhas das Índias Ocidentais. Poucas histórias foram para além das Índias

Ocidentais, como exemplos, cenários asiáticos tal como o Camboja (no filme Revolt of the Zombies)

e para locais na América do Sul como o Chile (a série de rádio Adventures by Morse).21 Além deles,

vários restaurantes e bares que foram decorados com zumbis se espalharam pelos E.U.A nas

décadas de 1930 e 1940, apresentando uma iconografia que queria lembrar o Pacífico Sul. Renda

explica que: “Enquanto os discursos dos brancos começavam a unificar diversas ‘outras’ raças em

um mesmo objeto mutante, genérico e exótico; os horrores específicos que tinham sido atribuídos

ao Haiti desde o início da ocupação eram, em geral, menos enfatizados.”22 Seja como for, o zumbi

raramente foi levado para muito longe de “casa,” como se estivesse, em geral, permanecido no

Caribe. A escolha dos roteiristas por outras locações tais como ilhas adjacentes ao Haiti revela

adequadamente a tendência norte-americana de confundir regiões inteiras. Além disso, as locações e

a estrutura narrativa do gênero zumbi permaneceram excepcionalmente constantes e permearam a

Depressão, a Segunda Guerra Mundial e os primeiros anos da Guerra Fria, apesar das

impressionantes mudanças na política estrangeira dos E.U.A via-à-vis o Haiti e o Caribe durante

aqueles anos. Mais do que qualquer outra coisa, isto demonstra que a cultura pop não mantém,

particularmente nos gêneros B, uma rígida e mecânica correspondência com as mudanças na

política oficial. Como veremos, eles algumas vezes até se contradizem.

Nota-se nas histórias de zumbi posteriores à Seabrook, uma importante mudança em relação

ao tema da feminilidade. A perda da condição feminina ou da inocência feminina – experimentada

pelas garotas nativas Classinia e Catherine em The Magic Island – passa a ocorrer com mulheres

20 É possível perceber que a castração feminina não é um traço universal dentro do gênero. No filme The WhiteZombie, a personagem feminina principal é transformada em um zumbi para servir ao seu mestre como uma espéciede escrava sexual. Entretanto, esta linha narrativa é uma exceção à regra.

21 Posteriormente, Camboja e Chile se tornariam lugares, com a cumplicidade dos E.U.A, de ocorrência deassassinatos em massa. No Camboja do início dos anos 1970, bombardeiros norte-americanos mataram 300 milpessoas e ajudaram diretamente no avanço de Khmer Rouge. Por sua vez, em 1973 no Chile, o golpe apoiado porWashington que destituiu o governo de Salvador Allende, conduziu ao poder o brutal regime de Augusto Pinochet.Ao introduzir estas nações à audiência norte-americana, as antigas histórias de zumbis ajudaram, indubitavelmente,a preparar o terreno para sua posterior desumanização.

22 Renda, 225.

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brancas nos filmes e nas histórias de rádio posteriores. Assim, o sofrimento físico e espiritual das

mulheres haitianas é deslocado para os corpos femininos brancos. No programa de rádio “The

Zombie” (da série Five Minute Mysteries) e “Isle of the Living Dead” (de The Shadow), a perda da

feminilidade de mulheres brancas manifesta-se sob o disfarce de proprietárias das fazendas, que se

tornam, assim, vilãs brancas. Entretanto, a perda mais comum da inocência feminina (branca)

assume a forma da zumbificação. Em White Zombie, por exemplo, um jovem casal formado por

Madeleine e Neil visitam a plantação haitiana do Monsieur Beaumont; Beaumont se apaixona por

Madeleine e contrata um homem para transformá-la em zumbi e, dessa forma, tirá-la de Neil. O

título do filme demonstra como a ideia de uma “zumbi branca” era uma novidade em 1932 (mas

logo se tornaria um clichê dentro do gênero). Nos programas de rádio posteriores, “The Mysteries

of the Zombie” transmitido em Unsolved Mysteries, uma empregada negra e ciumenta chamada de

Claríssima (uma leve alteração da Classinia de Seabrook) se apaixona perdidamente pelo

proprietário branco que a emprega. Quando ele rejeita as investidas dela, ela se vinga e dá vazão ao

seu ciúme transformando Helen, sua noiva, em um zumbi. O narrador mais tarde descobre o

resultado da vendetta de Claríssima. Um dia, em uma plantação de cana-de-açúcar, uma nativa diz

ao narrador que todo o tipo de pessoa trabalha como zumbi. Ele responde de forma indignada,

“Porém não mulheres brancas!” A nativa, que não ganhou um nome na história, prova que ele está

errado ao mostrar-lhe aquela a quem o narrador reconhece como a anteriormente delicada Helen,

agora trabalhando como uma cortadora comum de cana, zumbificada. Incapaz de aceitar a visão de

uma mulher branca tão decaída em status, ele gentilmente a retira de sua desgraça servindo-lhe sal.

Em geral, a plantação caribenha é um lugar que acaba com os laços matrimoniais brancos.

Porém, nota-se um aspecto ainda mais específico. A narrativa de Seabrook sobre a perda da

feminilidade é transferida para as narrativas do cinema e do rádio, porém atingindo agora os corpos

brancos que se tornam assexuados através da zumbificação. Nas histórias mencionadas acima, os

autores não fazem nenhuma relação direta entre a castração da mulher e a energia sexual das massas

racializadas, tal como faz Seabrook. Entretanto, esta conexão é implícita. De história em história,

um meio ambiente repleto de toques de tambores na selva e incontroláveis paixões do Outro

ameaçam transformar a mulher branca, o pináculo da civilização ocidental, em uma desfeminizada

autômata. O excesso sexual da ilha é incompatível com o delicado aspecto da mulher branca, que se

torna estéril através da zumbificação. Como um zumbi, ela não pode reproduzir nem sua raça nem

sua nação.

A função discursiva da dessexualização feminina está estreitamente conectada com o

segundo tema principal das narrativas dos anos 1930 e 1940: o tema da exploração do trabalho.

Outra importante mudança dentro do gênero, pós Seabrook, é a reapresentação do “mestre” zumbi,

o arquivilão da história, como um fazendeiro branco. Em The Magic Island, a crueldade do trabalho

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colonial tem sua causa nos próprios haitianos, mas histórias posteriores enviam uma mensagem um

pouco diferente sobre trabalho e capital. Quando Bela Legosi, o vilão caracterizado como branco,

em White Zombie cria homens mortos-vivos para trabalharem em seu engenho de açúcar, ele

explica para um observador, “Eles trabalham fielmente. Eles não estão preocupados com longas

jornadas.”23 Este filme de 1932 iniciou uma convenção discursiva que logo se tornaria uma

característica básica para o gênero: uma força de trabalho multirracial e zumbificada. Uma série de

cenas do funcionamento do engenho de açúcar em White Zombie revelam os não mortos – brancos e

negros – carregando cestos em suas cabeças, movimentando lentamente uma roda gigantesca e

arrastando-se em suas várias tarefas.

O personagem do fazendeiro branco do Caribe, seja este homem ou mulher, nestas histórias

de rádio e de cinema, em geral, transformam qualquer pessoa em zumbi conforme os seus

propósitos, sejam eles trabalhadores nativos ou visitantes brancos que são ludibriados em suas teias.

No episódio de Strange Adventure entitulado “Zombie” para pegar outro exemplo, um homem

branco escapa por um triz das garras de um fazendeiro Francês que lhe quer acrescentar como

zumbi às fileiras de sua mão de obra predominantemente negra. Da mesma maneira, no final de

“Isle of the Living Dead,” transmitido no programa The Shadow, uma particularmente diabólica

fazendeira chamada Mrs. Nesbith revela que alguns de seus trabalhadores zumbis são “nativos,”

enquanto outros são “homens brancos que eu deixei no lugar destes.” Assim, não importa sua raça,

eles todos recebem dela o mesmo tratamento degradante. Do topo da escadaria, na entrada do porão,

ela grita para seus escravos zumbis: “Vocês não são mais homens, mas porcos acorrentados, tal

como gado, que trabalham nas plantações de cana sobre o meu comando … Eu somente mantenho

vocês vivos porque eu economizo meu dinheiro ocupando vocês nas plantações em vez de contratar

nativos.”24

Claramente, parte do “horror” destas histórias é o medo da equiparação racial. Negros e

brancos são intercambiáveis neste mercado de trabalho insular, no qual os fazendeiros podem

escolher contratar nativos ou selecionar homens brancos “no lugar deles.” Porém, em vez de criar

uma utopia de igualdade racial, a recusa dos autores em oferecer aos seus personagens negros

qualquer humanidade real, elabora um mundo de pesadelos e de degradação comum. O homem

branco se insere no espaço da plantação e, no final do dia, é reduzido ao status de negro. Os nativos

nunca são elevados para o “nível” dos brancos, nem a força de trabalho multirracial ascende em

conjunto. Implicitamente, a mensagem isolacionista é a de que todo o espaço deve ser simplesmente

evitado, pois seu degradante sistema de trabalho não pode ser reformado, além disso, seus efeitos

podem ser contagiosos. Tão penetrante é o nivelamento que mesmo as mulheres brancas – as

detentoras do futuro da civilização – estão impedidas de gerar uma descendência viável neste

23 White Zombie, dirigido por Victor Halperin (RKO Studios, 1932).24 “Isle of the Living Dead,” The Shadow, Outubro 13, 1940.

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espaço. Seus corpos castrados não podem reproduzir a mão de obra dos trabalhadores homens,

então o sistema não é apenas incapaz de sofrer qualquer reforma, metaforicamente, ele não

apresenta nenhum futuro.

O rádio foi particularmente um meio de comunicação efetivo. Nos anos 1930, a nova

tecnologia do rádio assumiu o projeto nacional de criar uma cultura compartilhada e isso teve

nítidos efeitos homogeneizadores. Ao mesmo tempo, seus produtores trabalharam para preservar

hierarquias e diferenças que existiam antes de sua institucionalização. Segundo a historiadora do

rádio Michelle Hilmes, essa mídia “estabeleceu uma estrutura social central que poderia ajudar a

controlar os principais aspectos ameaçadores da diversidade local e manter separações regionais.”25

Transmissões mais antigas de rádio acentuaram obsessivamente distinções de raça, classe e gênero,

porém isto teve que ser feito em um meio que prescinde de estímulos visuais, assim o gênero

dependeu de comediantes brancos que já imitavam negros. O rádio manteve algumas hierarquias e

expandiu outras assentadas em diferenças linguísticas, através da acentuação de dialetos

estereotipados que foram criados em espetáculos circenses e em shows de comediantes.26

Indubitavelmente, esta dinâmica esteve presente também em outros países. O rádio ajudou a

criar categorias de inferioridade assim como apresentou pessoas relativamente desconhecidas às

salas de estar norte-americanas. O que impressiona qualquer um que escute estes programas de

horror no rádio é que era difícil distinguir os zumbis das pessoas comuns das Índias Ocidentais: até

os haitianos não zumbificados e os cubanos falam com lentidão, de forma arrastada e com vozes

servis. Por exemplo, na história “The Isle of the Dead,” transmitida por The Shadow, o primeiro

nativo apresentado para a audiência é “Mungo,” o empregado da Senhora Nesbith, cuja fala

arrastada, vagarosa, como em transe, surpreendentemente contrasta com a pronúncia eloquente,

escolarizada, da sua senhora norte-americana, falante de inglês. Neste contexto, as qualidades da

fala dentro do gênero eram perfeitamente adequadas para salientar os horrores do nível social

representado pelo zumbi. Na cultura das transmissões de rádio, cujos autores exageravam nos

dialetos para fazerem seus personagens claramente legíveis como sendo brancos ou negros, o zumbi

era o único personagem cuja voz – no geral um gemido gutural – não era racialmente distinta.

Como em The Magic Island, nas histórias do cinema e do rádio, os trabalhadores coloniais

zumbificados eram debilitados objetos de pena, mas a reapresentação do vilão nestas histórias

subsequentes representam, ao menos, as linhas gerais de uma crítica ao colonialismo e uma

consciência crítica da história da escravidão. De modo que a problemática das plantações

caribenhas é reproduzida com seu sistema de trabalho explorador e opressivo. Com certeza, há

estranhos ecos de Uncle Tom's Cabin e de discursos abolicionistas da época da Guerra Civil nestas

25 Michele Hilmes, Radio Voices: American Broadcasting, 1922-1952 (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997), 16.

26 Ibid., 20-21.

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representações da vida nas plantações. Quase todo roteirista de meados do século vinte ainda estava

familiarizado com o famoso romance de 1850 de Harriet Beecher Stowe e seu retrato do Sul: um

mundo onde escravos debilitados são tratados como bestas em plantações, tal fato coroe os laços

afetivos necessários para manter uma moral forte e famílias saudáveis, principalmente entre os

Senhores. Porém a questão permanece: porque os roteiristas incorporam estes discursos

abolicionistas nas décadas de 1930 e 1940 dado que eles estavam ausentes do modelo de Seabrook?

A resposta pode ser encontrada nas políticas oficiais e dos oposicionistas dos anos 1930, que

foram incorporadas (e, em parte, negadas) no inconsciente político destes filmes de horror B e nas

narrativas de rádio. Sem dúvida, devido em grande parte aos estragos da Grande Depressão, os anos

1930 foram o momento em que a política de esquerda teve sua maior influência na cultura norte-

americana. Trabalhando através de organizações como o Congresso das Organizações Industriais

(CIO), o Partido Comunista dos E.U.A, o Congresso Nacional dos Negros e A Liga Norte-

Americana contra a Guerra e o Fascismo, a esquerda expôs a exploração do trabalho – e a injustiça

de raça – no centro do debate público.27 Ela também assumiu o tema do anti-imperialismo como

parte de seu discurso político. Mais relevante para esta análise, ela colocou a exploração dos U.S.A

sobre Cuba e o trabalho nas plantações cubanas no interior do debate público. Como Ben Balthaser

tem mostrado, artistas influentes e escritores tal como Josephine Herbst, Clifford Odets, Langston

Hughes e o jornalista Carelton Beals lutaram para expor as práticas imperiais dos U.S.A na nação

insular. As atividades de Odets na Comissão Norte-Americana para Investigar as Condições Sociais

em Cuba levaram a uma divulgação ampla de sua prisão em Havana no ano de 1935.28

Além disso, as mudanças demográficas resultantes da Grande Migração – o êxodo de afro

norte-americanos do Sul para o Norte – criou pela primeira vez um considerável e influente bloco

de eleitores negros nas cidades do Norte.29 Dessa forma, em meados da década de 1930, afro norte-

americanos atuando nesta nova esfera pública, juntos com seus aliados de esquerda, levaram adiante

novas narrativas sobre o Haiti, agora representado como uma nação vibrante e com um rico espírito

de independência. Enquanto alguns escritores afro norte-americanos tal como Claude McKay e

Zora Neale Hurston falharam em romper com o tropo do exotismo nas interpretações sobre seu

povo, Langston Hughes, Arna Bontemps e CLR James criticamente chamaram a atenção para as

iniquidades de classe do Haiti e sua dinâmica histórica de resistência. Além disso, o Harlem Unit of

the Federal Theater Project produziu uma série de peças de teatro amplamente concorridas sobre a

nação insular que rompiam com as mais antigas narrativas do exótico, incluindo a encenação de

Orson Wells de Macbeth, cujo cenário era o Haiti do século dezenove, além da peça de 1938 Haiti,

27 Para uma análise mais compreensiva da influência da esquerda dos anos de 1930 na cultura dos U.S.A., ver MichaelDenning, The Cultural Front: the laboring of American culture in the Twentieth Century (London: Verso, 1997).

28 Benjamin Balthaser, I See Foundations Shaking: transnational modernism from Great Depression to the Cold War(PhD diss., University of California, San Diego, 2010), 128-77.

29 Savage, 8.

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dirigida por Maurice Clark, que foi assistida por 72 mil pessoas somente na cidade de Nova

Iorque.30 Tais interpretações progressistas do Haiti alcançaram também as ondas do rádio. Mais

notável foi a adaptação para o rádio de Babouk, um romance sobre o heroísmo revolucionário

haitiano, escrito pelo comunista Guy Endore. Em 1937, esta adaptação foi transmitida pela

Columbia Radio Workshop, um dos programas mais populares de rádio daquela época.31

Por fim, novas imagens do Haiti foram geradas pelos próprios haitianos, cujas ações

ajudaram a transformar a política dos U.S.A para a região. Em dezembro de 1929, seus protestos

contra a ocupação foram reprimidos com violência pelos fuzileiros navais norte-americanos, que

abriram fogo contra a multidão, matando doze e ferindo vinte e três manifestantes. Ao final, a

cobertura da imprensa sobre a repressão provocou protestos internacionais que conduziram à

retirada das tropas dos U.S.A, completadas em 1934.32 A retirada das forças de ocupação dos U.S.A

ocorreu na época de implantação da Política de Boa Vizinhança de Franklin Roosevelt, cujos

responsáveis anunciavam como uma clara ruptura com a diplomacia dos canhões. A nova agenda

envolveria negociação bilateral e não força bruta nas relações com as outras nações das Américas.

A Política de Boa Vizinhança necessitava de um novo discurso sobre o Haiti que rompesse

com as antigas narrativas do exotismo e da diferença absoluta, um que enfatizasse a visão das coisas

“através do ponto de vista dos nativos.” Uma onda de estudos científicos, inspirados pela

antropologia de Franz Boas, tentaram reduzir a percepção do atraso cultural do Haiti aos olhos do

Ocidente. Enquanto isso, uma nova onda de reconhecimento da arte haitiana nos anos 1940 na

Europa e nos Estados Unidos rompeu com o espesso exotismo dos tambores vodu e dos zumbis

para enfatizar a criatividade e o dinamismo do povo haitiano.33 Do lado haitiano, atitudes mais

positivas em relação aos E.U.A eram palpáveis nos escritos de literatos e intelectuais haitianos.

Entretanto, esta nova cordialidade teve uma mudança brusca durante a Segunda Guerra Mundial,

quando latifundiários expropriaram terras de camponeses en masse com a intenção de incrementar a

lucrativa produção de borracha dirigida ao esforço de guerra dos E.U.A. Em resposta, um

movimento popular anti norte-americano emergiu e finalmente derrubou o governo aliado aos

E.U.A do presidente Élie Lescot em 1946.34

Estas novas forças políticas nos anos 1930 e 1940 foram inscritas nas narrativas populares

sobre os zumbis do período através da temática do fazendeiro branco do mal e na representação,

geral para o gênero, do trabalho nas plantações caribenhas como um problema. Porém a utilização

dos zumbis no cinema e no rádio, no fim, trabalhou para conter e mesmo negar os discursos

30 Dash, 53-54; Renda, 283–287.31 Chris Vials, Realism for the Masses: Aesthetics, Popular Front Pluralism, and U.S. Culture, 1935-1947 (Jackson:

University Press of Mississippi, 2009), 198.32 Renda, 34.33 Dash, 74-80.34 Ibid., 86-91.

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progressistas daquela época sobre o Caribe. No interior da indústria cultural norte-americana, o

zumbi simbolizava um mundo de trabalho explorado, mas também um misterioso submundo

colonial que ameaçava reduzir os brancos desafortunados às mesmas condições castradas e

assexuadas dos nativos. Não poderia haver base para uma identificação multirracial em tal espaço –

somente contaminação. A pouca atenção dispensada à indústria cultural responsável pelos filmes B

de horror não a vinculava às demandas por mudanças na política estrangeira nos E.U.A, mas

somente à imediata necessidade de receber um lucro rápido através de um entretenimento de baixo

custo. Suas representações, aliás, se sustentavam em dinâmicas interculturais de mais longo prazo.

De todo modo, esta indústria ajudou a afastar a cultura norte-americana das narrativas

paternalísticas de “tutelagem” nascidas da ocupação haitiana, mas ao custo de uma negação

fundamental de toda a região.

Inquietantemente, as narrativas mais persistentes sobre o Caribe na cultura de massa dos

Estados Unidos antes de 1945 nunca superaram o nível dos filmes B de horror (embora o filme de

Tournier de 1943, I Walked with a Zombie, produzido por Val Lewton, tenha momentaneamente

pressionado os limites do gênero). Além disso, por volta de 1949, já estava claro que as histórias de

zumbi tinham sido tão exaustivamente domesticadas que elas poderiam ser parodiadas nas ondas de

rádio, transformando-as em uma comédia casual. Naquele ano, a CBS apresentou a história “The

Ghost Breakers,” que foi ao ar no programa Screen Director's Assignment. O programa foi baseado

em um filme de 1940 de mesmo nome que, embora apresentasse cenas cômicas, não poderia ser

considerado integralmente uma comédia. Em contraste, o programa de rádio de 1949 foi anunciado

como “uma comédia de terror,” estrelado por Bob Hope e que tinha como cenário uma ilha na costa

de Cuba grosseiramente chamada de “Ilha Negra.” Quando o protagonista Larry Lawrence (Bob

Hope) desembarca em seu litoral, o resultado não é nada ameaçador. Tão logo pisa na ilha, uma

mulher local o alerta “O zumbi caminha!” para o qual ele suavemente responde: “Nós podemos lhe

oferecer uma assinatura da revista Weird Stories?” “The Ghost Breakers” ilustra que por mais

assustador que o zumbi possa ter sido nos anos de 1930, em 1949 os códigos do gênero pre Romero

estavam tão internalizados pelas audiências dos E.U.A que o monstro e seu contexto caribenho não

eram mais exóticos nem inquietantes.

O fato do Haiti ter ingressado no domínio do imaginário dos Estados Unidos do século vinte

através dos filmes B de horror prestou um desserviço para que o país fosse levado a sério. Filmes B

de horror não constituem um gênero sério; eles podem ter tocado em questões culturais

profundamente enraizadas e que geravam ansiedades, mas, no fundo, as transformaram em emoções

baratas. A cobertura padrão do Ocidente do terremoto de 2010 no Haiti salientou as consequências

persistentes de ler um país através das lentes dos filmes B de horror. Como mencionado na

introdução, o jornal inglês The Daily Mail cobriu a catástrofe com a seguinte manchete, “Haiti:

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estupro, assassinato e vodu na ilha da perdição.” O jornal fundiu a narrativa usual da desesperança

em relação à violência política do terceiro mundo com o fascínio particular das imagens elaboradas

nos filmes B de horror. No Haiti, nós somos informados pelo Mail, “Papa Doc” Duvalier governou

o país como Baron Semedi, o espírito vodu da morte, e arrancou o coração de algumas de suas

vítimas enquanto colecionava os crânios de outras. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, o tele

evangelista norte-americano Pat Robertson revelava uma imaginação similarmente estruturada por

histórias baratas sobre o Haiti, uma terra de terror sobrenatural. Ele de forma infame afirmou que o

terremoto foi uma vingança divina contra os escravos haitianos, que tinham estabelecido um pacto

com o demônio para destituir seus senhores dois séculos atrás. A maior parte dos jornalistas

Ocidentais e comentaristas, se distanciaram conscientemente de tais representações retrógradas, mas

mesmo aqueles que condenaram Robertson e seus adeptos revelaram sua inabilidade para

verdadeiramente perceber a permanência cultural e as praticas institucionalizadas que fazem tais

afirmações possíveis.

Por exemplo, a National Geographic consultou o popular antropólogo Wade Davis para

explicar aos leitores norte-americanos como o vodu não era de nenhuma forma uma superstição

demoníaca, mas, ao invés, um conjunto de crenças com um lugar válido no panteon das religiões

mundiais. Davis chamou os comentários de Pat Robertson de “cruéis, ignorantes, imperdoáveis

delírios de um lunático,” passando a apresentar o Haiti como tendo uma cultura dinâmica e vibrante

– embora com uma trágica história – cuja revolução inspirada no vodu representava o desejo por

liberdade humana semelhante às revoltas coloniais de 1776. Davis até reconhece que a indissociável

relação entre o Haiti e os filmes B de horror na imaginação popular é um produto direto do

imperialismo norte-americano. Ele afirma que:

Na década de 1920, os fuzileiros navais norte-americanos ocuparam o Haiti. Isto foi durante a época desegregação e a maioria dos fuzileiros navais no Haiti eram sulistas. Além disso, cada um deles parecia ter lidoo mesmo livro resumido, e … eles estavam todos cheios com alfinetes e agulhas e zumbis que não existem.Eles deram vazão aos filmes de Hollywood … tal como Night of the Living/ Dead e Zombies on Broadway eassim por diante.35

Apesar de seus gestos tolerantes, David é cúmplice das lógicas culturais e políticas que

tornaram possíveis a fala de Robertson e o sensacionalismo do Daily. Em uma análise mais

detalhada, nota-se que ele condena a produção cultural que emergiu da ocupação (que ele

erroneamente localiza como sulista), mas não a invasão ela mesma. David uma vez expressou a

crença de que a ocupação norte-americana foi uma dádiva para o país, considerando-a em conjunto.

Até mesmo, nos anos de 1980, ele foi um apologista do regime de Duvalier. O seu livro The Serpent

and the Rainbow (1985) repopularizou a imagem do zumbi haitiano – acompanhado de sua

35 Ker Than, “Haiti Earthquake and Voodoo: Myths, Ritual, and Robertson,” National Geographic, Janeiro 25, 2010, http://news.nationalgeographic.com/news/2010/01/100125-haiti-earthquake-voodoo-pat-robertson-pact-devil-wade-davis/.

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narrativa do Haiti como uma terra assombrada por superstições primitivas – no momento preciso

onde os haitianos estavam fazendo sacrifícios enormes para destruir o Estado de Durvalier. 36 Em

grande medida, emblemática da cobertura geral do desastre, Davis continua a política de negação,

embora com uma inflexão multicultural, que falha em verdadeiramente reconhecer a permanência

do passado no presente e, então, se torna cúmplice da lógica do Império. Tal como o

multiculturalismo mais abrangente, sua entrevista na National Geographic celebra a diferença

cultural enquanto reafirma a essência da igualdade humana, porém sem reconhecer (ou questionar)

as histórias de conflito que continuam a criar hierarquias e iniquidades.

Dessa forma, os antigos programas de rádio e filmes deixaram uma cultura residual do

imperialismo que apresentam uma espantosa tenacidade. As narrativas de zumbis pre Romero tem

sido revisitadas nos anos recentes. A revista Men's Journal, por exemplo, há pouco tempo, conduziu

seus leitores através do interior do Haiti em uma caçada por zumbis no artigo intitulado “Into the

Zombie Underworld.”37 Um exemplo mais significativo é Resident Evil 5, lançado pela companhia

Capcom sediada em Osaka, que se tornou um dos principais produtos da crescente indústria do

videogame, vendendo mais de 5 milhões de cópias ao redor do mundo desde seu lançamento em

2009.38 O game situa o jogador como uma protagonista norte-americano branco que dizima hordas

de criaturas negras parecidas com zumbis na África, alguns em favelas urbanas, outros com

vestimentas de capim, máscaras tribais e lanças parecidas com os filmes de aventura dos anos

1930. Como um crítico da Eurogamer afirmou, “O jogo apresenta tão descaradamente os velhos

clichés do perigoso ‘continente negro’ e da luxúria primitiva de seus habitantes que você juraria que

o game foi escrito nos anos 1920.”39 Tal como seus predecessores anteriores à II Guerra Mundial, o

enredo de Resident Evil 5 contem uma consciência da exploração imperial que se insere com

dificuldade dentro de sua inegável moldura racista, então o game replica plenamente o gênero mais

antigo também neste sentido.40 Se, como Fredric Jameson sugere em seu clássico estudo sobre a

pós-modernidade, o capitalismo tardio é marcado por sua habilidade de resgatar as mais antigas

estéticas, retirando-as de seus contextos originais e reelaborando-as conforme seus desejos na forma

de um pastiche, então, a reemergência das mais antigas narrativas zumbi do século vinte não deveria

36 Dash, 142-143.37 Mischa Berlinski, “Into the Zombie Underworld,” Mens's Journal, Setembro 2009, 108-113.38 Aqueles que são familiares com filmes em sequência seriam tentados a descartarem um que tivesse “5” em seu

título, como se tratasse de um lixo inútil, apenas visto por seus mais persistentes fãs. Entretanto, a mesma lógica deconsumo não funciona com videogames, um mercado onde cada adição em uma série é geralmente mais aguardadado que a anterior. Na verdade, Resident Evil 5 foi o jogo mais vendido da série.

39 Dan Whihead, Review of Resident Evil 5, Eurogamer, Fevereiro 5, 2009, http://www.eurogamer.net/articles/resident-evil-5-hands-on-chapter1to3?page=2.

40 Na metade do jogo, o jogador aprende que os zumbis africanos foram criados por uma diabólica companhiafarmacêutica Ocidental chamada Tricell, que transformou um povo indígena (chamado de Ndipaya) em mortos-vivos para mais facilmente explorar suas terras. Na sequência, as cenas em favelas urbanas implicitamente tornamas companhias Ocidentais responsáveis não apenas pelo primitivismo da região, mas também por sua incompletamodernidade pós-colonial.

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nos surpreender.41

Resident Evil 5 da Capcom, The Serpent and the Rainbow de Wade Davis e a cobertura da

mídia do recente terremoto no Haiti, tudo ilustra a longa persistência das primeiras narrativas de

zumbi que foram produzidas nos anos 1930 e 1940. Para tornar visível o sofrimento colonial e pós-

colonial forjado pelo império norte-americano, um novo movimento anti imperial transnacional

precisa emergir. Isso criaria um espaço para um gênero narrativo sobre a região completamente

novo e popular. Idealmente, este gênero seria sem exotismos, sem compaixão por seus temas, sem

apagar o vínculo fundamental do domínio econômico no passado e no presente. Talvez o primeiro

passo para quebrar o encanto da negação seja analisar de forma ampla os filmes de horror B em seu

completo e histórico contexto de desenvolvimento e, finalmente, enterrar os mortos.

41 Conforme o Capítulo 1 de Fredric Jameson, Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism (Durham: Duke University Press, 1994), 1-54.