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AMOR FORA DE SÉRIE Prof. PAULINO GIL

Amor fora de série - Paulino Gil

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AMOR FORA

DE SÉRIE

Prof. PAULINO GIL

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AMOR FORA DE SÉRIE

( Prof. PAULINO GIL )

Esta história foi concebida por ocasião da recente festividade comemorativa do Dia de

nossa Padroeira. (Festa da padroeira de Jambeiro de 1990)

Como se viu, apesar do mau tempo ocorrido na véspera, que coibiu a vinda de muita

gente, a festa esteve bonita e agradou bem.

Aliás, no ano passado – 1989 – aquela multidão que aqui compareceu, pode-se dizer

que foi mesmo quase demais. Nunca se tinha visto tanta gente assim em Jambeiro ! A

cidade ficou superlotada (a fila dos “necessitados”, certa hora, chegou a ir do mercado

até quase o coreto ...). Foi fogo ! Os automóveis tiveram de estacionar desde a ponte

do Capivari e desde o bambual do Edu.

Mas também, pudera! Jambeiro é tida como a cidade de ar mais puro ou limpo do Vale

do Paraíba. E que é uma gracinha de cidade, que agrada e cativa toda gente que tem o

prazer de conhecê-la, o que por si só já é uma atração. Acrescente-se a isso a presença

dos velhos conterrâneos e dos numerosos devotos que costumam vir homenagear a

querida Virgem das Dores. E ainda mais: na ocasião, aqui estava presente o virtuoso

Sacerdote, Pe. José Sazami Kumagawa. Ora, como tem acontecido em outros lugares,

onde suas bênçãos de cura dadas em nome de Jesus têm realizado coisas maravilhosas,

a presença do caro Pe. José costuma atrair multidões.

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Neste ano, porém, tudo foi mais calmo e aprazível. As tradicionais barraquinhas, com os

mais variados artigos, ocupara toda a Rua Nova e outros espaços. A Praça fervilhou de

moças bonitas, que deixavam a rapaziada de boa aberta e olhos parados. E enquanto a

criançada brincava pelo jardim e as famílias se confraternizavam, no coreto uma banda

bem afinada executava alegres melodias. Destoando de tudo, apenas um casalzinho

estranho, parecendo drogado, desavergonhadamente trocava carícias impróprias para

lugares públicos. Junto ao barracão dos festeiros, à sombra daquela frondoso tipuana,

ali plantada no tempo do prefeito Joãozinho Bellotti, vários grupos barulhentos discutiam

política, enquanto sorviam louros chopes gelados.

Vagando por ali e dando voltas ao barracão dos festeiros, nosso estimado Jaburu

apregoava os lances feitos às prendas que leiloava em benefício da festa.

Numa mesa isolada, também eu enxugava distraidamente um delicioso copo de chope,

enquanto curtia toda aquela movimentação. De repente, alguém parou ao meu lado e

deu três pancadinhas na mesa. Meio espantado, encarei o cara. Era um senhor de meia

idade, bem vestido e de óculos escuros, que me fitava sorridente. Surpreso, também

sorri, tentando identificar quem era. Então ele tirou os óculos e me perguntou :

– Você não é o ... ? E disse o meu nome.

Num relance reconheci quem havia dito meu nome. E foi tão grande a demonstração de

alegria que ambos sentimos, que até chamou atenção Pois ouvi duas mulheres

cochicharem :

– Óia, Chica, Mode que esses dois veio ficaro loco !

– É caduquice, comadre ! Mas não era para menos.

Acontecia ali o inesperado e agradabilíssimo reencontro de dois antigos conterrâneos

que não se viam fazia mais de cinqüenta anos ! Dois amigos e companheiros desde os

tempos da meninice, juventude e mocidade, que juntos passaram em Jambeiro.

Antes de me abraçar, meu conterrâneo rápido recolocara os óculos.

– Desejava permanecer incógnito, explicou.

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Sentia o coração angustiado ao rever aqueles lugares que lhe traziam muitas

recordações. E se via sem coragem de falar ou abraçar os raros conhecidos antigos que

deviam estar por ali.

Conversamos naquela mesinha durante vários e saboroso chopes (por duas vezes o

Jaburu chegou até nós. Primeiro ofereceu um belo bolo majestoso. Depois trouxe duas

galinhas carijós amarradas pelas pernas e pererecando. Mas vendo que os dois “home”

não eram de leilão, não voltou mais ...)

Conversamos muito. Relatamos fatos dos nossos passados desconhecidos e

relembramos casos dos nossos tempos passados. E foi um desses casos, referente a um

amor seu, que eu achei fora de série. Contarei mais à frente. Após algum silêncio,

meu amigo falou :

– Eu não devia estar assim tão sentimental. Mas é que me sinto como naquele pungente

soneto que você conhece e que diz assim : ...

Eu logo pressenti. Nem os louros chopes conseguiram alegrar a alma do meu caro

conterrâneo. Pois ele, fitando as bolhas de espuma que se desfaziam no copo, recitou

baixinho, comovidamente, aquele célebre e centenário soneto do poeta Luiz Guimarães

Júnior :

Visita à casa paterna

Como a ave que volta ao ninho antigo,

depois de um longo e tenebroso inverno,

eu quis também rever o lar paterno,

o meu primeiro e virginal abrigo.

Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,

o fantasma talvez do amor materno,

tomou-me pelas mãos, olhou-me grave e terno,

e, passo a passo, caminhou comigo.

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Era esta a sala ... (Oh! Se me lembro ! E quanto !)

em que da luz noturna à claridade

minhas irmãs e minha mãe ... O pranto

jorrou-me em ondas ... Resistir quem há de ?

Uma ilusão gemia em cada canto,

chorava em cada canto uma saudade ...

Foi sempre assim o meu companheiro. Retraído, sensível, romântico. Na sua juventude

fora até meio poeta.

Certa hora ele disse :

– Quando aqui cheguei hoje pela manhã, apreciando de passagem as modificações da

cidade, fui direto à igreja. Estava havendo Missa. Orei ao Santíssimo Sacramento e

agradeci a Deus o estar ali, após tantos anos, forte e feliz. E, ao mesmo tempo em que

acompanhava o culto, não pude deixar de ir observando aquelas partes que tantos fatos

me recordavam ... Fixei a velha e venerável Imagem de Nossa Senhora das Dores, de

origem portuguesa, que há mais de cento e vinte anos fora trazida de Caçapava, nos

braços de um grupo de cavaleiros jambeirenses dirigidos pelo Capitão Jesuíno Batista.

Admirei o velho altar, doado à matriz por um rico fazendeiro que residia em Caçapava, o

major José de Almeida Telles, e que foi entregue depois de sua morte. O belíssimo altar

parece estar novo ainda.

– Parece novo mesmo, mas é que acaba de ser restaurado neste ano, graças aos

esforços do atual Pároco, Padre Clair de Castro.

– Muito bem ! Voltei-me para o coro e me parece ouvir longínquos sons de instrumentos

musicais e dos cantos maviosos daquelas moças, que enchiam a igreja com as lindas e

saudosas melodias sagradas daqueles tempos. Nos bancos, repletos de assistentes, não

vejo a Pia União das Filhas de Maria à qual pertenciam quase todas as moças solteiras.

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E então me lembrei da Isabel, a Belinha, que era uma delas. Foi minha primeira

namorada e a única que tive aqui. Mas veja você : entre toda aquela gente, a não ser

três senhoras, não reconheci mais ninguém ! Apenas lá, junto do altar, tomando parte

na celebração, notei um senhor idoso, atarracado, que me pareceu ser o Elias, filho do

Chiquinho Sacristão. Como está mudado ! Na hora da elevação, repicaram os sinos. Mas

eu não ouvir soar o velho sino grande, que em companhia do João Fubá (João Zenatti),

tantas vezes eu tangi à hora das ave-marias ... Diziam que sua boa sonoridade era

devida a meio quilo de ouro que nele haviam fundido. Certa vez quiseram levá-lo de

Jambeiro, mas o povo não consentiu. Fui um dos últimos a sair da igreja. Da porta

divisei a linda paisagem tão minha conhecida. Lá embaixo ainda estava, firme, a antiga

casa que o Capitão Jesuíno Batista comprou quando veio residir no povoado de Nossa

Senhora do Capivari. No nosso tempo, ali era a chácara do João Bento de Moura e lá

nos fundos o ribeirão formava aqueles grandes poços nos quais íamos nadar, nus.

Lembra-se ?

– Se me lembro ! Às vezes tomávamos pegas de algum vizinho e tínhamos de sair

correndo, pelados, pelo pasto afora ... Um dia pegaram as roupas do Zé Martinzinho e o

coitado teve de descer se arrastando pelo rio até o quintal de sua casa, que era ali onde

hoje está a farmácia, vizinha do bangalô.

Meu amigo soltou uma gargalhada gostosa e eu fiquei alegre, achando que ele tinha

perdido a tristeza. Então ele continuou a contar à descida da igreja :

Fui descendo. Ao chegar à esquina onde foi a sede integralista, lembrei-me da festa de

Natal que ali realizamos em 25 de dezembro de 1937. O salão, enfeitado, estava repleto

de senhoras que com suas crianças aguardavam a distribuição de presentes. De repente,

o recinto foi invadido por soldados armados, a mando de um daqueles indignos oficiais

da Força que, reformados por desdouro, para cá eram remetidos com funções de

Delegado de Polícia. Aconteceu então um pandemônio indescritível. E a comemoração,

já fracassada, só foi terminar tarde, graças à proteção de um comando enviado pelo

glorioso VI Regimento de Caçapava.

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Veio-me então a lembrança de alguns companheiros : o “chefe” José Anísio Cunha e

seu primo José Clóvis Cunha; Adgemir Telles de Siqueira (Sinhô Coletor);

Joaquim Tiago dos Santos e seus irmãos; Sílvio Zuim, Chico Sennes, Zé

Martinzinho, Vítor Pereira Barros, José Gil, Milton Bernardes de Almeida, Ary

Lopes, Siqueira do Caxias, a turma do Eugênio Durão e outros, de cujos nomes não

me recordo.

– Como vão eles?

– Esses que você citou não “vão” mais, porque todos eles já se foram há bastante

tempo.

O Luiz – Luiz Mota, esse era o nome do meu amigo – balançou a cabeça com um sorriso

tristonho.

– Aqui é assim, falei. O tempo passa gostoso e despercebido. Mas, quando vai chegando

a chamada de sua “classe”, o “sorteado” costuma bater as botas ... E assim a macacada

velha vai sumindo. Entretanto, a propósito, você sabe que a atual média de vida dos

jambeirenses, daqueles que antes não se matam com algum vício, é a mais alta do

Brasil? Pois é de oitenta anos ! Mas muitos não respeitam essa tabela. E em vez de

irem preparando uma boa “partida” para ser bem recebidos no outro lado, são

renitentes e vão dando um jeitinho de ficar mais tempo por aqui ... Olhe ali atrás,

naquela cadeira : é o Dito Dias, nosso velho companheiro dos animados “rastapés” no

salão do Hilário. Tá firme ainda. Aqueles dois láa na esquina : um é o João Pedreiro,

que já passou dos 87, mas parece que só tem sessenta. O outro é o Joaquim Leandro,

filho do Dito Leandro, aquele esperto e risonho breganhista de cavalos que tanto

admirávamos. E lá na janela está o Urbano do Leopoldo. Tem mais de 86. E seu

romântico nome – Urbano Paixão de Almeida – faz lembrar a clássica canção “Luar do

sertão”, do Catulo da Paixão Cearense ... Naquele grupo, ao lado do coreto, estão dois

dos meus irmãos: o mais alto é o Tito Gil, marido da professora Maria Jurema de

Siqueira, que residem em São José. O mais baixo é o Nenzinho Gil, viúvo da Tivica

Moura. Já passou dos 86. Sempre alegre e conversador, costuma vir de Taubaté,

dando, no seu fusquinha, cento e vinte na Dutra ... Aquele altão que está com eles é o

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filho do Antonio Italiano, o Valentim Vanzella, também residente em Taubaté. Você

se lembra do seu sogro, o bom Dante Pazzini, que morreu de uma picada de cobra

cascavel? E aquele último, de óculos, é o Pedrinho, filho do Pedro Rocha. É

farmacêutico em São José. Se irmão, já falecido – o Euclides – foi um dos nossos

grandes companheiros de reinações aqui na terra ...

Fui continuando a identificar para o meu amigo todos os velhos jambeirenses do nosso

tempo de infância e mocidade que apareciam na Praça. Ele demonstrava satisfação e

também revelava casos interessantes que havia tido com eles.

O Luiz continuou a narrar na descida da Rua de Cima : ao deixar minha saudosa

esquina, reconheci, numa casa em frente, a figura sempre simpática de D. Florinha,

viúva do Alberto José da Silva Ramos. Bem disposta e sorridente, nem parece ter os

89 anos que lhe atribuem. E então me lembrei que os Silva Ramos são uma grande

família que sempre dignificou Jambeiro.

Passando pela Casa Paroquial, lembrei-me do José Pinto da Cunha, que a construiu e

nela morou com sua digna família. Zezinho Cunha e sua esposa, D. Horminda

Angélica Cunha, foram os pais do nosso caro Pe. Ernesto Cunha, das religiosas

Maria Bernadete (Clementina), Angélica (Jovina) e Maria Helena, e de entre outras,

da Maria Eugênia (Eugeninha) e dos nossos companheiros de infância, Luiz e

Norberto.

Ao passar pelo solar dos Gurgel, senti não ir abraçar aqueles três conterrâneos da velha

guarda que ali estavam: Leonor, já nos seus 86 anos, viúva do ex-prefeito Octavio

Enéas de Almeida; a Clarice, com 84 e aquele seu sorrisinho simpático de sempre; e

o nosso amigão Olavo, apreciado ator das representações artísticas que seu pai,

quando prefeito, proporcionava à população jambeirense. Está comigo na idade, pois

ambos temos 80 anos. Também, pudera! Eles têm por quem puxar: seus pais – o

Major Gurgel viveu 89 anos; e sua mãe, D. Zoraide Pires Gurgel, passou dos 95

anos ! Por sua vez, o sempre lembrado poeta jambeirense, João Gurgel Júnior, irmão

desses meus amigos, achegou aos 85 !

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Talvez para sempre, despedi-me daquela sólida e aprazível residência que já completou

118 anos. Mandou construí-la o Coronel Luiz Bernardo, como presente de núpcias ao

seu amigo e cunhado, Major João do Amaral Gurgel, pelo seu primeiro casamento

com Maria Caetana de Almeida Gil. Ali terminava o loteamento feito pelo Capitão

Jesuíno Batista e cujo último lote, onde está a casa, fora adquirido pelo Major

Gurgel. A outra casa, na esquina de baixo, onde hoje residem duas filhas do saudoso

Agenor Guedes, foi construída por Francisco Rebello Sennes (Chico Sennes).

A Prefeitura e o Correio são construções mais recentes, da década de 50. Ali onde está

a Prefeitura, há muitos anos, antes de o povoadinho do Capivari se transformar na

cidade de Jambeiro, existiu a casa de morada do coronel Joaquim Bernardo de

Almeida Gil. Defronte à “Casa Grande”, última relíquia do nosso passado, parei.

Aquele casarão já tem 118 anos. Foi construído com prazo estabelecido para entrega, a

aafim de que nela seu proprietário, sr. Durão, pudesse realizar a sua Festa do Divino de

1872, ficando essa data como a de sua construção. A inscrição que lá está chegou com

quatro anos de atraso. Esse sr. Durão, pelo visto, deve ter sido pessoa de relevo em

nossa cidade. Entretanto, sua história como que desapareceu do conhecimento de

nossa gente. Vocês, que moram aqui, devem fazer pesquisas para elucidar o caso.

O que eu guardei, desde jovem, é que o sr. Durão era irmão de D. Felisbella Botto,

que era mãe de dois benfazejos médicos que aqui residiram por muitos anos : os irmãos

Luiz Augusto Botto (o Centro de Saúde de Jambeiro tem o seu nome, forma de

homenagem de gratidão a quem, por 18 anos, tanto serviu nosso povo, até 1906) e

Carlos Botto. Esta minha passagem pela “Casa Grande” me trouxe a lembrança de um

fato que ali aconteceu comigo e mais três colegas de “reinação”. Isso se passou há mais

de 65 anos, pelo que dois daqueles coleguinhas já não mais existem. Eu vou contar

agora para você:

(Não interrompi o Luizinho, pois ele logo se lembrou de que o fato que estava me

contando já era do meu conhecimento, porque eu também tomei parte nele. Mas

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aproveito o parêntese com umas considerações sobre o café em Jambeiro, naquele

tempo).

De fato, com os altos preços do produto, a fazendeirada andava com os bolsos cheios de

dinheiro. Quase todos possuíam automóveis. E como hoje acontece com as pastagens,

quase toda a área do município era coberta por cafezais. No auge de sua pujança

econômica, Jambeiro – que então contava com uns dez mil habitantes – chegou a ter

dois milhões e quinhentos mil cafeeiros, conforme um registro da Municipalidade, de

1930. E produzia quarenta e cinco mil arrobas. Mas, com a grande crise de 1929, a

quebradeira foi geral. Muitos dispuseram de suas propriedades e se mudaram daqui.

Foi então que começaram a chegar os mineiros e se iniciou a produção do leite.

Nessa época os maiores cafeicultores do município foram: Joaquim Franco de Almeida

(Sinhô Bernardo) (Fazenda Bom Jardim), com 200.000 pés; Pantaleão & Almeida

(Fazenda da Laje), com 200.000 pés; Leopoldo Franco de Almeida, com 150.000;

Antonio Castilho Marcondes (Fazenda do Banco), com 100.000; Benedito Pinto da Cunha

(Fazenda Santo Ângelo), com 100.000; Hilário Fermino, com 80.000.

Agora, volto à história que o Luizinho contou sobre a “Casa Grande” : – Em 1920, disse

ele, com os altos preços do café, a fazendeirada gastava à vontade. Por isso, naquele

ano, o primeiro baile de Carnaval realizado na “Casa Grande” foi animadíssimo. Houve

fartura de tudo, principalmente, é claro, de confete, serpentina e lança-perfume. Os

foliões, vestidos a caráter, se divertiam a valer. Alegre e decentemente. Aliás, naquele

tempo ainda não havia a licença e a depravação de agora, que transformaram a grande

festa popular num desagradável “bumbunval”. O piso do salão ficou com uma tão

grossa camada de confete que nem se podia dançar. Só pular. E foi então que nós dois

– lembra-se? – mais o Zé Batalha, o Edu e parece que o Luiz Pinto da Cunha,

apesar de garotos, conseguimos penetrar no salão, graças ao Edu, “dono da casa”, e

tivemos uma “luminosa” idéia. E tudo combinado, voltamos na manhã seguinte e cada

um encheu um saco de estopa com aquele confete do salão. Escondemos os sacos

naquele porão onde o Sinhô Bernardo guardava arreios etc.. E à noite, quando a folia

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tomou conta da cidade, nossa farra começou. Saímos para o meio da multidão, a atirar

com fartura, mãos cheias de confete pelas cabeças, pescoços e bocas de quantas moças

e meninas encontrávamos. No começo elas até gostaram e pediam mais. Mas quando

começaram a sentir ardume e comichão por todo o corpo, nossa farra terminou.

Botaram a boca no mundo. A reclamação foi geral. Chegaram a nos perseguir para

desforra. Largamos os sacos por ali mesmo e sumimos para escapar da sanha

vingadora das folionas enraivecidas. Foi um escarcéu danado. Entretanto, tudo isso

aconteceu porque não havíamos tido outra idéia, que teria sido luminosíssima, de ao

menos peneirar a areia e demais sujeiras daquele confete imundo.

– Que saudades ! exclamou o Luizinho. E terminou:

– Depois que a inépcia político-administrativa destruiu nossa maior relíquia do passado

– que era a antiga e histórica sede da fazenda do Capivari (ali onde agora está o Grupo

Escolar), hoje só nos resta a querida “Casa Grande” !

– Com um saudoso olhar, dei adeus à “Casa Grande”. Passei pelo atual Correio e

admirei uma pitoresca vivenda, com uma placa : “Alameda Vô Orôncio”. Em sua frente,

um animado grupo de pessoas, do qual sobressaía a figura simpática de um ancião de

respeitáveis cãs, assistia à passagem do povo que descia da igreja. Entre as senhoras,

reconheci logo suas três irmãs: a Ana Luíza, a Florentina e a Flora.

– Sim, eram elas mesmas. Ali é a residência de festas e férias do meu primo e

cunhado, o Orôncio Geraldo Rebello, o de cabelos brancos, marido da Flora.

– Passei devagar, sentindo não ir abraçá-las. Na ponte, parei. Há cinqüenta anos, era

mais baixa, com piso de terra e grades de madeira. E logo me lembrei de um fato, um

tanto grotesco e gozado, que ali me aconteceu e do qual nunca mais me esqueci. E que

também nunca revelei a ninguém. Foi num sábado, em que eu e Belinha, descendo da

reza, paramos para namoricar. Eu, como disse um poeta, permaneci ali.

“Tolhido pelos raios sedutores / do seu olhar inebriante. E enquanto / sorvia, estático e

ditoso, / o cálido sorriso de seus lábios, / quedei-me extasiado diante dela, / como um

sapo, muito humilde e feio, / fitando a lua, tão radiosa e bela !

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E ali ficamos, trocando afetos, ao som do coro maravilhoso dos batráquios e do plácido

marulhar do córrego sob a ponte. Mas o tempo, traidor, passou depressa e silencioso.

E nós, naquele idílio entorpecente, até nos esquecemos dele ... De repente,

despertamos assustados, com os gritos do irmãozinho da Belinha, que chegou correndo

e esbaforido:

– Linda ! Linda ! O pai não encontrou você em casa e vem vindo buscá-la. Corri na

frente para avisar !

– Nossa ! E agora ?! Fuja, Luiz, esconda-se, suma ! exclamou a Belinha. E pegando

na mão do irmão, desandou para sua casa.

E eu ? Diante daquele súbito escarcéu, não mantive a calma e até me desorientei. E

sem calcular nada, com um salto transpus a guarda da ponte e fui cair bem no meio do

córrego. Um dos sapatos (era até um par novo que eu estava estreando naquele dia ...)

ficou atolado no lodo. Nem liguei. Varei o alto capinzal que naquele tempo cobria o

córrego e me enfiei numa espessa moita de mamona, lá do outro lado. Graças à pouca

iluminação que havia, ali era bem escuro. O pai superzeloso logo chegou. Olhou de um

lado e doutro da ponte. Espiou atrás daquele velho muro que ia desde o ribeirão até

onde hoje é a Prefeitura. Soltou uma gargalhada e resmungou :

– Safado ! Sumiu, hem ?

E foi logo embora. Deixei o esconderijo só depois da meia-noite. Nunca tinha

suportando tanto pernilongo a zumbir e me picar, que foi uma barbaridade ! Recuperei

o sapato, saí para a rua deserta, fui pegar o coitado do cavalo e toquei para a fazenda.

A caminho, lamentei o azar daquela noite e a minha grande “burricidade”. Sim ! Pois

eu, como adulto, devia ter esperado a “fera”, que certamente não ia me comer vivo.

Conversaríamos e pronto ! Parece que tudo aconteceu devido à minha solidariedade ao

desespero da minha amada. E me senti feliz pelo sacrifício feito por amor ao meu amor

...

– Gostei da história, seu ! De fato, até hoje ninguém sabia dessa sua aventura com os

pernilongos. Inda bem que você continua poetando ...

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Já fazia tempo que eu e o Luizinho ocupávamos aquela mesa junto à Barraca da Festa.

Notamos então que outras pessoas ansiosas desejavam também se deliciar com uns

chopes, desocupamos lugar e saímos em direção à Rua do Colégio. O Luiz, mais

desequilibrado do que eu, segurava no meu braço. Logo avistamos, na calçada à nossa

direita, o Setembrino de Moraes, o querido Bino, negociando suas bijuterias.

Conversando com ele estava sua irmã, a sempre risonha e alegre Zuleika. Ambos

residem em Taubaté e são os últimos remanescentes dos quatorze filhos do prestantes

casal Júlio e Silvina de Moraes. Logo adiante encontramos nosso conterrâneo

Agostinho Ribeiro do Prado. Residentes em Mogi das Cruzes, o Agostinho e sua

bondosa esposa Mariinha sempre estão presentes em Jambeiro, quase todos os

domingos, na Missa do Pe. José Kumagawa, devotos que são de Nossa Senhora

Rosa Mística, e nunca faltam na Festa da Padroeira de nossa terra. E assim íamos

revendo e abraçando velhos amigos e antigos ex-colegas. E para maior satisfação

estava entre eles justamente nossa ex-diretora do saudoso Grupo Escolar, a caríssima

Maria Olímpia Vieira, atualmente residente em Águas de São Pedro. Com ela estava

sua irmã paterna, nossa estimada amiga, Profª Maria Iracema Vieira Silva,

acompanhada de seu marido, Antonio Fernandes Silva, residentes em São Paulo. E mais

a prima de ambas, a Zélia Franco Bastos, filha do Cel. João Franco de Camargo e

Mariquinha Vieira. E ainda o nosso ex-colega, Prof. Edison de Freitas Ramalho,

com sua esposa, a sempre amável Zélia Lara Ramalho, residentes em Caçapava.

Até então o Luiz ainda não havia sido reconhecido. Mas naquele instante de nada

adiantaram seus disfarces. Pois quando eu ia apresentá-lo como um amigo meu, foi

justamente o Édison quem, abrindo os braços, bradou :

– Ah ! Essa não ! Você por aqui, Luizinho ?! Como vai, nego ? E abraçou-o

efusivamente.

O mesmo fizeram todos os que o conheciam, com grandes demonstrações de amizade.

E ali permanecemos na mais cordial e animada palestra, recordando gentes, coisas e

fatos do nosso longínquo passado, quando éramos tão diferentes ... E não era para

menos. Da parte do Édison, a nossa grande amizade vem desde quando ele, eu, o

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Luizinho, o Edu e outros jambeirenses fomos colegas no Ginásio São Joaquim, em

Lorena. Depois, compartilhamos a mesma pensão, quando estudamos em São Paulo.

E ainda nós quatro exercemos o magistério aqui no Grupo Escolar de Jambeiro.

Uma feliz e cordial coincidência ! E da minha parte, além da amizade provinda da

naturalidade e do convívio que tivemos desde a infância, também me ligo às caras

“parentes Vieiras” – Maria Olímpia, Iracema e Zélia Franco – pelo nosso sangue

comum, que herdei desde minha bisavó Ana Luíza Gomes Vieira de Almeida Gil.

Mas aconteceu que com todo aquele “comício” ali na Praça, o Luiz acabou se

transformando. Guardou os óculos pretos e pôs-se a rir, quase chorando de alegria, por

todos os cantos da boca.

Estávamos naquela “boa”, quando ...

Estávamos naquela alegre reunião ali na Praça, quando a nós se juntou um elemento de

grande valia para toda a nossa comunidade. Abstraindo-se de qualquer política

partidária, sua atividade em nosso meio como que representa o cérebro e o coração –

conhecimentos e sentimentos – que congregam toda a gente jambeirense, daqui e

de fora. Pelo seu ingente trabalho, ele colhe e recolhe; interpreta, reproduz e torna

públicos os mais variados assuntos, informações e notícias de alguma maneira ligados a

nossa terra. Esse dedicado jambeirense e nosso grande amigo (que não estou elogiando,

mas apenas qualificando) é o restaurador, editor e diretor do nosso velho “O

JAMBEIRENSE”, em sua fase atual. Ele vinha acompanhado de seu primo Irineu

Serafim (que ele considera como se fora outro irmão, posto que amigo e fiel

companheiro desde menino), também diretor do nosso jornal, há quase seis anos.

A agradável presença de ambos foi motivo para mais uma rodada de abraços e

cumprimentos. E o Luizinho assim falou aos nossos antigos alunos do querido Grupo

Escolar :

– Como a maioria dos alunos daquele tempo, eu também considerei e estimei seus pais,

os saudosos Edgard de Souza Moraes e Antonio Serafim. E prezo muito o que vocês e

seus irmãos sabem honrar plenamente a memória de um e de outro. E é ainda com

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grande prazer que lhes dou meus parabéns pela pertinácia e galhardia com que vocês

vêm publicando “O JAMBEIRENSE”.

Atraídas pelos aplausos, várias pessoas acorreram ao local para saber o que havia

acontecido. Uma delas era outro nosso ex-aluno, por sinal muito distinto, o Julinho

Serafim, irmão mais velho do Irineu, que contou alguns casos engraçados do tempo

de escola, que provocaram gostosas gargalhadas de nossa ex-diretora, Maria Olímpia

Vieira. Logo mais o diretor do jornal se retirou e lá foi ao encontro de nossas

conterrâneas, antigas alunas do Grupo, filhas do divertido João Fubá e da Mulata :

Zilda, Áurea e Jandyra, que se achavam no meio de um grupo da Família Braz : o

Dito Bento e seus primos (filhos da saudosa Brazília) : João Batista, Aloísio, Dita,

Arlinda e Noêmia. Depois, toda a turma se dispersou, entre abraços. O Luizinho e eu

continuamos pela Rua Major Gurgel (Rua do Colégio dos velhos tempos).

Antes, porém, de chegarmos à ponte, tivemos mais um apreciado encontro: foi com as

duas irmãs, Esther e Nancy Ivo, filhas do ex-prefeito Benedicto Ivo e da Palmyra.

Residentes em São José dos Campos, elas por aqui raramente aparecem para nos darem

o ar de suas graças. A Nancy, mais jovem, ainda nos lembra as feições amáveis

daquela garotinha bonita que também foi nossa aluna.

Na ponte paramos para contemplar o velho ribeirão que costumávamos percorrer de

ponta a ponta, enfrentando os inúmeros cacos de vidro que às vezes nos feriam

dolorosamente. Como se fosse ontem, ele continua indiferente, marulhento e calmo, a

correr como nos longínquos tempos da nossa infância descuidada ...

Ficamos ali na ponte bom tempo, vendo passar velhos e novos conhecidos. Dos antigos,

pudemos abraçar o Waldemar “da Farmácia”, nosso antigo companheiro. Por ele

recordamos o sempre alegre e brincalhão João de Oliveira, nosso saudoso

farmacêutico dos velhos tempos, e o Adgemir Telles de Siqueira, o “Sinhô Coletor”,

grande amigo e companheiro que eu considerava um verdadeiro irmão. Dos novos, tive

o prazer de apresentar ao Luizinho dois amigos, gente boa que veio de Minas Gerais,

os irmãos Jonas e Antoninho Santiago. Este último foi um bom prefeito que

Jambeiro teve. E ainda abraçamos o Dr. João Leite Vilhena e sua digna esposa, d.

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Márcia Prado Vilhena. São os atuais proprietários da fazenda “Rancho Alegre”, onde

tive o prazer de nascer, já faz oitenta anos.

Certa hora, o Luizinho me perguntou o que era aquela construção nova, ali ao lado.

Expliquei-lhe que era a nova casa de cultos dos membros da “Assembléia de Deus”.

Como ele se mostrasse admirado, eu esclareci que Jambeiro havia mudado muito em

matéria de religião. Havia também a Igreja Presbiteriana, a Congregação Cristã do Brasil

e as “Testemunhas de Jeová”. E todas se respeitam entre si, no mais singular

ecumenismo. O que ainda não existe por aqui, pelo menos por enquanto, é mesquita,

sinagoga, centro espírita, terreiro de macumba ou algumas dessas seitas moderninhas,

oriental ou americana, que fazem tanto sucesso entre a gente de televisão... Então o

Luizinho comentou :

– Pois acho esquisito! Em 1934 houve um recenseamento geral no Estado. Eu e o

Valentim Vanzella fomos escolhidos para recenseadores. Dividimos o município em

duas partes e durante um mês visitamos casa por casa e entrevistamos adulto por

adulto. Engraçado ! No final dos trabalhos não havíamos encontrado nenhum

recenseado que se declarasse não católico ! Agora sei que na maioria aqueles católicos

só iam à igreja para serem batizados, para casamento e, às vezes ... quando morriam ...

– Isso mesmo ! São os intrincados problemas dos tempos contemporâneos que só

mesmo Deus irá resolver, no final.

– Tá certo ! Mas por que, então, existe na Bíblia aquela passagem de Mateus (XVI, 18 e

19), que parece tão clara ?! – Olhe, nego : “Não cai a folha de uma árvore sem Deus

querer”. Sejamos honestos, rezemos, que no final certamente Ele nos escolherá. E

amém!

Procurei logo mudar de assunto, antes que o Luizinho, instruído e religioso como é,

começasse um sermão que era capaz de ir acabar no inferno.

Eu estava curioso mas era pela história da Belinha, após aquela noite em que ele saltou

da ponte, caiu no brejo e foi chupado pela pernilongada.

Com muito jeito toquei no assunto. Ele respondeu :

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– Você é mesmo especula! Por que recordar coisas que se deram há tanto tempo e que

só a mim dizem respeito?

– Curiosidade apenas, pois sempre me encafifou esse caso de você namorar uma

lindíssima e fina mocinha, namoro difícil, fora de série mesmo, e de repente tudo dá

em nada. Você era invejado por todos nós. No entanto, passados mais de cinco anos,

quando vocês chegaram ao ponto bem quente de se casarem, puf !, tudo estoura como

uma bolha de sabão e cada um vai para seu lado e logo se casam com novos amores ...

Com cara de gozação, Luizinho me fita e diz :

– Olha, seu ! Se for alguma novela que você pretende escrever, eu quero parte nos

lucros ... E você bem sabe que só mesmo um cara boboca é capaz de contar.

– E você sabe que só mesmo uma cara boboca é capaz de revelar a outro, mais boboca

ainda, intimidades de seu namoro. Mas, ‘por serdes vós quem sois’, e sem macular a

memória da Belinha, vou lhe falar do meu inditoso amor. Aliás, primeiros amores,

meu e dela ... Dizem os entendidos que ‘a tendência natural do homem da mulher é

procura o companheiro ideal para a constituição de um lar baseado no amor. Ora, o

namoro é o ponto de partida dessa procura recíproca, da descoberta de um pelo outro.

Assim o rapaz descobre como é e como sente uma mulher: por que ela chora, do que

gosta, por que grita ou ataca. A mulher descobre o que é um homem, como age ou

reage, o que pensa, o que exige. E ao se encontrarem e se conhecerem pelo namoro, e

ao se afirmarem um diante do outro, ele se sente mais homem e ela, mais mulher’.

Conosco não houve nada disso. Você deve lembrar-se. Aos sábados e domingos, pouco

antes da reza nos encontrávamos na ponte e subíamos até a igreja. Após a reza

fazíamos uma parada rápida naquela esquina saudosa. Nem dava para eu me ofuscar

ante seus olhos rutilantes ou para sorver o meigo e melífluo sorriso que surgia de seus

lábios de rubi, sorriso capaz de despetalar botões de rosa desabrochando ...

Atento, eu ouvia meu amigo espargir suas jóias poéticas, como se estivesse com o

coração pulsando no passado. E ele continuou :

– Logo descíamos. Ao nosso lado passavam casais de jovens alegres, mãos ou ombros

dados, rindo ou cochichando coisas. Logo iriam dar voltas na praça ou se encorujar

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nalgum cantinho estratégico, até a hora de ir terminar a noite no salão do Hilário. E

nós dois ? Mal chegávamos à ponte, Belinha já se despedia, dizendo: – Adeus, meu

bem ! Até o próximo sábado ...

Às vezes era noite de lua, delícia dos amantes. Pois nós nunca fruímos juntos, uma vez

sequer, uma daquelas românticas noites que, como até hoje, banhavam de prata nossa

cidade, no fantástico luzir da lua cheia, quando surge, esplendorosa e bela, por trás do

morro do Cruzeiro!... E assim envelhecemos cinco anos naquele romance, que pareceu

fora de série, mas que foi simplesmente idiota ! Dessa forma, quando ou como eu iria

saber afinal quem era a Belinha, o que sentia, do que gostava, por que chorava, ou

gritava, ou brigava, ou plantava bananeira, sei lá o quê !

Fiquei com pena do Luizinho, mas o critiquei :

– Puxa vida, seu ! Você então ainda não era homem?! Por que não pediu mais um

pouco de condescendência ao pai da moça, por sinal um dos homens dignos da cidade

?! Ou por que não forçou a Belinha a ser mais determinada?!”

– Chi !... Aí é que a vaca iria pro brejo ! Quando eu reclamava, a pobrezinha respondia :

‘Case logo comigo e pronto !’ Papai disse que, se você ficar noivo, ele nos deixa ir aonde

quisermos. Até sugeriu que eu podia lhe preparar um jantar com um prato de minha

especialidade, o ‘bife de peito de pato’, que é uma gostosura ! ‘Mas se você me

desobedecer ou der muita confiança para aquele pilantra (foi assim que ele falou), não a

deixarei mais sair de casa !’

Veja você ! Era aquilo : queriam me amarrar logo num casório, que eu desejava muito,

mas para o qual ainda não estava em condições.

– É ! Você estava atrapalhado ! Mas o que aconteceu depois daquele pulo no brejo?

Enfrentou o velho ?

No sábado seguinte, depois daquele pernilongado pulo no brejo, Belinha chegou, linda

e risonha como sempre, e foi logo perguntando : – ‘Como é que você se arranjou

naquela noite do pega do papai ?’ Quando lhe contei tudo o que me havia acontecido,

ela quase deu uma gargalhada, mas logo tapou a boca com a mão, deixando

transparecer um muxoxo e dizendo : ‘Coitadinho do meu bem ! Tudo por minha causa !

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Sinto muito, desculpe o papai.’ E me apertou a mão (só por esse aperto de mão, coisa

raríssima entre nós, perdoei a família inteira ...) Mas enquanto íamos subindo a rua, eu

notava em seu rosto um risinho cínico de gozação. Ela continuou naquela vozinha de

‘mel com açúcar’ : – ‘Isso tudo, meu bem, faz aumentar ainda mais meu amor por você.

Um dia iremos rir juntos de todas essas coisas que nos acontecem. Você sabe que ‘o

coração é um tesouro que se abre com um beijo’. E meu coração é todo seu. Um dia

você o abrirá ... Mas eu vou ter uma conversa com a mamãe e depois com papai.

Afinal, já tenho dezessete anos, não sou nenhuma boba e eles têm de permitir que ao

menos possamos dar umas voltinhas na praça ...’ Era assim nossa prosa : ingênua,

quase infantil, como aliás eram os pensamentos e sentimentos de dois jovens

namorados sem malícia. Após a reza ela disse : ‘Rezei por nós para logo sermos muito

felizes. Para compensar o que você passou, no próximo sábado vou lhe trazer, bem

quentinhas ...’

Nesse instante o Luiz interrompeu sua narração, porque fui cumprimentar no meio da

rua uma estimada conterrânea que eu não via há muitos anos, a Olivinha Batalha, e

seu digno esposo, o farmacêutico Adhemar Pinto de Siqueira, que residem em

Caçapava. E ainda abracei duas amiguinhas, a Marina Cunha e a Nair do saudoso Zé

Ivo, esta última nossa ex-aluna aqui no antigo Grupo Escolar.

Deixando a ponte e seguindo pela Rua Major Gurgel (a “rua do Colégio”), paramos na

esquina do armazém do Hélio Almeida e do seu sobrinho Domingos, e o Luiz pôs-se

a recordar:

– Foi aqui a loja de fazendas do nosso amigo Jorge José (o Jorge Turco), sírio de fina

raça que aqui residiu muitos anos.

E esquecendo de continuar o caso da Belinha, ele passou a contar um caso político

acontecido ali naquela rua com ele e outros companheiros e no qual o Jorge Turco

também teve a sua parte, ainda que fora de qualquer política. E assim começou : –

Você se lembra bem de como foi a política aqui em nossa terra nos anos de trinta e três

a trinta e sete. Havia a política dos velhos partidos tradicionais daquele tempo,

sustentados por elementos um tanto idosos da nossa melhor sociedade. Apareceu então

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o Integralismo, com idéias e ideais novos que empolgaram a mocidade da época por

todo o Brasil. E aqui em nossa terra aconteceu o mesmo. Fundou-se um “núcleo” e a

maioria de nossa rapaziada aderiu, juntamente com muitas moças. E havia

companheiros cujos pais pertenciam aos diretórios tradicionais. Foi um alvoroço !

“Blusas verdes” encontrando-se com “camisas verdes” e saudando-se com o ritual, braço

erguido e o brado “Anauê !”, que era um sarro ! Os “verdes” chegaram a ter até três

vereadores numa Câmara de sete membros. Mas logo vieram as animosidades

políticas...

Luizinho continuou:

– Sentindo que o Integralismo tomava conta do município, os chefes políticos da Capital

vieram em auxílio dos seus correligionários daqui, remetendo, como Delegados de Polícia

de nossa cidade, oficiais da Força Pública, em geral reformados por escassa distinção. E

eles cumpriam sua missão de maneira muito arbitrária. Agora, ao me lembrar do Jorge

Turco, ocorre-me um dos casos acontecidos com o companheiro Eugênio Corrêa

Durão, pessoa digna, por sinal pai de dois sacerdotes conterrâneos, o Pe. Hygino e o

Pe. José Luiz Corrêa (o primeiro foi vigário de Natividade da Serra durante quase 50

anos e o segundo, vigário de Redenção da Serra; aquele faleceu em 25 de maio de 1975

e este, em 21 de dezembro de 1953, em acidente automobilístico). O Eugênio Durão

tinha um armazém lá no “Jambeirinho”, onde os fregueses tardios ou amigos do bairro

costumavam ficar até nove horas da noite, batendo um papo descontraído. Pois o

Delegado, um capitão nessa época, proibiu que o estabelecimento ficasse aberto depois

das 18 horas. Motivo: alegação de que lá se faziam “reuniões subversivas” ... (!)

Ora, a nossa turma não suportava, sem mais nem menos, arbitrariedades muito tolas. E

então, o Zé Anízio Cunha (irmão da Marina, da Edith, do Tito e do Walther) e eu

fomos atrevidamente pedir satisfações ao velho capitão-delegado. Nossa sorte foi que o

cabo e um dos soldados do Destacamento estavam ausentes na ocasião ...

– Dá licença, senhor capitão ! bradamos da porta e fomos entrando, indo ficar na

frente do Delegado.

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Exposto o assunto, iniciou-se uma desagradável discussão, que logo se azedou,

esquentou e até pegou fogo, quando o Zé Anísio, sacudindo o indicador em riste diante

do nariz do Delegado, exclamou :

– O senhor é um energúmeno!

O Delegado bufou. Eu, que apesar da tensão em que estávamos, mantinha a calma,

achei graça na expressão um tanto exótica do companheiro e sorri. O Delegado então

me encarou e, também sacudindo o dedo diante do meu nariz, bradou furioso :

– O senhor é o responsável por todas essas confusões que se dão aqui na cidade ! O

senhor está preso ! (!)

– ‘Preso uma ova !’, respondi.

E sem mais aquela, saí correndo da cadeia. Vendo que eu já havia sumido, o capitão

gritou :

– Prenda esse outro mesmo !’

Era o Zé Anísio, que já estava na rua e murmurou:

– ‘Prender-me ?! A isso, quique !’ E desabalou rua afora, indo se abrigar na casa de

sua avó, d. Ditinha, que morava perto da ponte onde está hoje o templo da

“Assembléia de Deus”. (Soubemos depois que o soldado, aliás nosso amigo, não pôde

cumprir logo a ordem ... porque estava lá nos fundos, sem botas e cortando as unhas

dos pés ...) Quanto a mim, quando chegamos à esquina da loja do Jorge Turco, ele

estava na porta e vendo-me correndo daquele jeito, perguntou :

– Professor Luizinho, o que aconteceu ?

– Depois lhe explico, seu Jorge. Agora, faça o favor de ir esperar-me lá nas

gabirobeiras, para irmos a Caçapava.

E continuei correndo, ganhei a Rua Nova, passei pela chácara do Alencar, varei todo o

“bairrinho” e entrei por uma trilha que ia dar no ponto combinado, na fazenda do Sinhô

Bernardo.

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Quando cheguei nas gabirobeiras, o seu Jorge já me esperava, em companhia do

saudoso companheiro Adgemir Telles de Siqueira, o Sinhô Coletor. Em Caçapava,

fomos falar com o doutor juiz de Direito que, graças ao conhecimento do Adgemir, nos

recebeu complacentemente. Ciente do caso, o íntegro magistrado naquela ocasião nos

fez compreender que o país se achava sob uma violenta ditadura que não respeitava

nenhuma lei, recomendando-nos, por isso, muita prudência. E escreveu uma carta para

levarmos ao Delegado. Voltamos logo a Jambeiro. Ali, na chegada ao bambual, um

decidido grupo de companheiros me esperava para irmos enfrentar a polícia que,

segundo disseram, estava de prontidão para me prender. Acalmei-os e segui direto para

a Delegacia, na qual fui logo entrando na sala do Delegado (os soldados até se

espantaram).

– Senhor Delegado, disse eu. O senhor doutor juiz de Direito me mandou trazer-lhe

esta carta, dizendo que muito confia no seu reconhecimento para solucionar nosso caso.

O capitão colocou os óculos, pigarreou e leu a carta, devagar. Depois, soltando outro

pigarro, falou :

– Está bem ! Fica encerrado o caso. O armazém está desobrigado de fechar as portas.

Mas o senhor ... tome cuidado ! disse-me com o dedo em riste apontando meu nariz ...

Coitado do velho capitão ! Tinha de fazer papel de boneco para atender os políticos da

situação, os quais, depois que se encheram dele, o enxotaram daqui. Tempos depois,

um amigo me revelou que, quando o capitão se foi (eu já não estava mais aqui), ele me

deixou um abraço, dizendo que, apesar de tudo, eu tinha sido a única pessoa que o

considerava aqui ... Certamente ele esqueceu aquela rapariga, pobre e bonita, que com

ele se amasiou e com a qual saía de braço dado a dar voltas pelas ruas da cidade ...

Gostei muito da narração resumida que o Luizinho fez daquele episódio acontecido na

época em que fazíamos política. Ele me fez lembrar, comovido e saudoso, aqueles

passados e agitados tempos da nossa romântica e amalucada mocidade. E foi por isso

mesmo que logo lhe pedi que continuasse a história da Belinha, que ele havia

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interrompido justamente quando ela dizia que “no próximo sábado vou lhe trazer, bem

quentinhas ...”.

Luizinho sorriu abando a cabeça e disse:

– Você está curioso pela história ou está com o apetite aguçado pelos quitutes que ela

me trouxe ?

– Por ambas as coisas, respondi.

Então ele continuou :

– Como você viu, nosso amor, puro e sincero, estava esquentando mesmo. Eu já

estava querendo estourar, pois fazia mais de quatro anos que vivíamos aquela agonia de

só nos encontrarmos durante meia hora por semana. Ela também já estava ficando

nervosinha, prometendo enfrentar o pai, em busca da liberdade.

Quando o Luizinho acabou de narrar suas peripécias com o capitão-delegado, logo lhe

perguntei : – Mas o que foi de tão gostoso que a Belinha lhe prometeu trazer ?

Trouxe? – Se trouxe! Você se recorda das festas da Padroeira ou do Divino, quando o

maestro Júlio de Moraes, com sua bandinha afinada, acordava toda a cidade com a

alvorada ? Nós, garotos, pulávamos cedo da cama para seguir a banda pelas ruas.

Depois a alvorada terminava, com seus músicos e acompanhantes chegando à casa do

festeiro. Ali então era servido para todos o gostoso café com “bolos de arroz”

quentinhos, que a gente lambuzava com manteiga !... Pois foi isso que a Belinha

trouxe, embrulhadinho num guardanapo cor de rosa : meia dúzia daquelas rodelas

cheirosas e ainda quentinhas de “bolos de arroz” ! Comi todos os bolos ali mesmo na

ponte, pois estavam saborosíssimos e eu, em verdade, nem havia jantado ainda. Disse

que nem sabia como agradecer aquela delícia e a sua gentileza. Ela respondeu :

– Um dia você vai saborear muito disso e de outras coisas gostosas que ainda lhe farei

quando estivermos em nossa casinha. Case logo comigo e você verá, meu bem ! Eu já

estou achando a vida insípida, não sei, ando até perdendo o gosto de muita coisa.

Quando começamos a namorar eu tinha apenas treze anos e agora já vou fazer

dezoito...

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Fingi que não havia entendido a indireta, consolei-a e prometi que no próximo sábado

iríamos fazer nossos planos. Devia mesmo ser verdadeiro aquele seu sofrimento, pois

eu curtia as mesmas angústias que ela. Seria a falta de um amor mais próximo e

constante, com esperança certa de uma vida linda e feliz ? Ânsia de ser uma esposa

amada ou um marido querido? Certamente que sim! Pois não foi o próprio Criador que,

vendo Adão num paraíso maravilhoso, mas sozinho, refletiu : ‘Não é bom que o homem

esteja só’ e fez Eva para sua companheira ? Era isso mesmo ! Eu e a Belinha

estávamos sentindo o mesmo suplício da solidão amorosa. Sem dúvida que nós

precisávamos nos encontrar no amor, para formar um só corpo na vida ... Naquela

tarde conversamos apenas na ponte. Belinha alegou que nem ia à reza, porque seu

irmão (o nosso amigo Donato) havia chegado de São Paulo com um colega e ela

precisava ajudar a mãe a hospedá-los. Conversamos mais um pouco e, depois de se

desvencilhar do meu agarrado aperto de mão, sempre com aquele melífluo sorriso de

despetalar flores, disse :

– Até sábado, meu amor ! Sonhe comigo!

E se foi. Lá adiante, já na Praça, virou-se para me ver e, passando a mão nos cabemos,

tremeu os dedos como último sinal de adeus ... Subi a rua sozinho e fui rezar por nós

dois. À noite, em casa ...

Luizinho continuou :

– Em casa, já deitado, comecei a maturar : ‘Papai vai vender a fazenda e distribuir parte

da herança aos filhos. Com minha parte, compro e construo uma casa naquele terreno

que fica bem em frente da “nossa esquina”, lá na ruía de cima (esse terreno atualmente

está ocupado com a residência do conterrâneo e amigo Tarcisio, filho do Alberto Ramos

e de d. Florinha). E como estou substituindo uma professora por um ano no Grupo

Escolar, já vou economizando dinheiro e ainda conto pontos para o ingresso no

Magistério. Depois escolherei uma escolinha aqui mesmo no município e ... pronto !

Daqui a seis meses descerei a escadaria da igreja, de braço dado com minha amada

Belinha ! E assim, unidos para sempre, começaremos nossa vida, que haverá de ser

muito longa e feliz !... Adormeci sonhando com o lindo vestido branco que ela vestiria

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... Entretanto, no outro dia, vi que o meu sonho de felicidade não era assim tão fácil de

se realizar. Pois, ao chegar ao Grupo Escolar, soube que iríamos ter a visita do inspetor

escolar. Tivemos. Mas, para mim, quem esteve ali na figura antipática do tal inspetor,

foi o diabo ! Sim ! Simplesmente o diabo, ainda que sem chifres, sem rabo, sem pêlos

e sem vomitar fogo pelas ventas. Porque, dias depois, o “Diário Oficial” publicava minha

substituição por outra professora. Ora, isso, naquela ocasião, considerando minhas

intenções para com a Belinha, era uma coisa infernalmente diabólica ! Havia

acontecido uma reunião entre os maiorais da situação política, nossos adversários, em

que, após muitos ‘comes e bebes’, o chifrudo sem chifres se comprometeu a fazer a

substituição do ‘substituto efetivo’, que era eu ... Então fiquei sem receber o dinheiro

que iria me ajudar no casamento e sem contar os pontos para meu ingresso no

magistério. Quando contei isso à Belinha, a pobrezinha até chorou. Consolei-a,

prometendo que, de qualquer jeito, nos casaríamos antes de ela fazer dezenove anos ...

A propósito do malfadado acontecimento que tanto me prejudicou, não me esqueço da

solidariedade que tive de todos os meus colegas e, principalmente, da querida Diretora,

minha sempre estimada Maria Olímpia Vieira, que tudo fez, mas inutilmente, para me

defender.

Nesse momento, eu e o Luizinho havíamos chegado ao Ginásio. Então ele criticou

acerbamente a demolição do antigo prédio onde funcionou nosso antigo Grupo Escolar.

Aquela casa fora a antiga sede da fazenda do Capivari, núcleo em cujos arredores se

formou o povoado que hoje é Jambeiro. Enquanto em outros lugares se preservam

com carinho suas antigas construções, como relíquias do passado, aqui a inépcia

administrativa destruiu uma das poucas que tínhamos. E para que ?! Só para usar seu

terreno. Entretanto, bem em frente, no outro lado da rua, existia uma ampla área

desocupada, que o fundador da cidade, o coronel Almeida Gil, havia separado de sua

fazenda e reservado para futuras construções de edifícios públicos, como ali hoje estão a

Cadeia e o Centro de Saúde.

Debatendo ainda o caso da destruição da velha sede da fazenda do Capivari, Luizinho

se admirou de que, na ocasião. Não houvesse ninguém mais esclarecido capaz de evitar

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tal descalabro. Contei-lhe então que houve uma pessoa, a saudosa Adélia Moraes, a

única que protestou contra a demolição (v. N. da R.). – Aquela casa, continuou o

Luizinho, tinha história: fora construída no começo do século passado, para substituir

outra bem menor que existia no lugar. Amigos de Taubaté, que costumavam pernoitar

no lugar em suas viagens ao Litoral, ajudaram na construção. Antes de ser modificada,

possuía oito quartos – incluindo as alcovas –, sala de visita, salão de refeições, grande

copa-cozinha e outras dependências. Existia, ainda, uma sala-oratório, onde de vez em

quando se celebravam missas, batizados e casamentos. Quando sua proprietária, Ana

Luíza Gomes Vieira de Almeida Gil, faleceu, a casa coube por herança à sua filha

Maria Caetana, primeira esposa do Major João do Amaral Gurgel. Este a reformou

e a vendeu ao Governo do Estado por vinte contos de réis. No velho casarão, além do

nosso saudoso Grupo Escolar, chegou a funcionar um hospital e até um colégio, que

ainda hoje dá o apelido à rua (“Rua do Colégio”). Esse colégio foi fundado e dirigido pela

conceituada educadora Amélia Franco, que hoje tem sua memória homenageada com

seu nome dado a um orfanato situado na Rua Ana Dias, em Santos.

E o Luizinho concluiu :

– Foi mesmo uma barbaridade a destruição do velho edifício !

Já entardecia e eu estava ansioso e curioso para que o meu amigo terminasse a sua

íntima novela com a Belinha. E também me parecia que ele estava como que gostando

de narrá-la. Seria, por acaso, o desabafo de uma mágoa profunda e antiga que o estava

atormentando ? Ou seria o sofrimento de certos amores irrealizados, que costumam

deixar “uma ferida viva dentro do peito” por toda a vida ? Quem sabe ? Ele então

continuou :

– Como de costume, num sábado à tarde, vim à cidade e logo recebi um recado da

Belinha, de que naquela tarde ela não poderia vir falar comigo. Viria no dia seguinte,

pois o irmão havia chegado com aquele amigo estudante, e ela tinha de ajudar a mãe a

hospedá-los. Enfim, a mesma xaropada de outras vezes, pensei. No domingo nos

encontramos. Logo de chegada, ela começou a falar do tal estudante. ‘O rapaz é muito

fino’, disse. ‘Educado e atencioso. E muito divertido. Gosta de contar piadas que até o

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papai acha gozadas.’ Ela recebera de presente finos bombons, dos quais me trouxe

dois. Eram finos, mesmo, mas, não sei por que, achei-os um tanto amargos ... Seria

meu primeiro ciúme ? Mas não dei nenhuma demonstração. Então ela me contou um

sonho que tivera : íamos os dois, de mãos dadas, caminhando alegres por uma longa

estrada margeada de flores. De repente, sua mão se desprendeu da minha. E,

enquanto eu ia caminhando mais depressa para a frente, ela foi ficando para trás. Disse

que queria me chamar, gritar, mas sua voz não saía. E enquanto eu ia desaparecendo

na estrada, ela ficou só e desesperada. Acordou chorando, com sua mãe a sacudi-la

para despertar do pesadelo ...

E o Luizinho continuou :

– Sonhos! Eu não acredito em sonhos. Mas às vezes acontece que algum se transforma

em verdadeiro prenúncio de acontecimento que depois se dá. O sonho da Belinha foi

um deles : realizou-se bem dolorosamente como ela havia sonhado. Mas deixe isso pra

lá. Nos outros encontros semanais que tivemos, ela se mostrava cada vez mais gentil e

doce. Contou, sorrindo, que já começara a fazer algumas pecinhas do seu futuro

enxoval. Mas escondido até da mãe. Com jeitinho encantador, me perguntava dos

meus gostos, das cores que eu apreciava e de outras coisinhas assim. Os casados

costumam dizer que o noivado é o melhor tempo do namoro. Muito certo ! Pois como

foi maravilhosa aquela época em que nós dois, como que usufruindo da familiaridade

pura do nosso amor, parecíamos um casal de pombinhos que iniciava a construção do

seu futuro ninho ... Certa noite, lá na solitária esquina, caí das nuvens quando ela,

repentinamente, me disse : ‘Beije minhas mãos !’ E me apresentou suas mãos, que eu

cobri de beijos e ainda fiz acariciar meu rosto. Depois disso, ficou ruborizada e toda

trêmula por aquela tão simples intimidade. Como já lhe expliquei e você certamente

sabia ou sabe, o puro, difícil e já longo namoro com a Belinha constituía o primeiro

amor de cada um de nós. E pelo meu gênio um tanto acanhado e as suas maneiras

recatadas, nunca houve nada demais entre nós dois. Daí, a reação que ela tivera com

aquela prova de carinho. Depois continuamos nosso doce papinho. Ela já havia contado

à mãe nossos planos futuros. Mas quando novamente pediu licença para dar uma

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voltinha na praça comigo, a mãe negou e outra vez aconselhou: ‘Não faça isso ! Seu

pai é capaz de castigar você e nem a deixar sair de casa.’ ‘Paciência’, pensei comigo.

Esse sogro feroz deve ter lá suas razões, mas um dia ele me pagará ! (Ah! Matutei

comigo muitos anos depois: ‘Por que a Belinha não enfrentou o pai, a mãe, a família

inteira e não fez o meu gosto, como eu tanto desejava ? Certamente isso iria evitar que

um fato semelhante, acontecido depois, viesse mudar nosso destino ...’) Na verdade, o

“perigo” em dar um passeio na praça com a Belinha, para fazer meus amigos babarem

de inveja, afinal havia só para mim. Pois quando o futuro sogro feroz me visse

passeando ali com sua prendada filhinha, certamente viria conversar comigo, para

marcarmos o casamento o mais rápido possível, Coisa que infelizmente ainda não

estava dentro de minhas possibilidades ... No domingo seguinte (era uma das nossas

grandes festas), a Belinha apareceu ainda mais bonita : usava um vestido novo,

penteara melhor ainda seus belos cabelos cor de jabuticaba madura e passara na face

uma leve camada de ruge. E seus olhos inolvidáveis brilhavam ainda mais ! Estava

linda mesmo ! Lindíssima ! E para mais expandir todo aquele encantamento, surgiu de

trás do morro do Cruzeiro, radiosa e fulgurante como sempre, nossa velha amiga, a lua,

a banhar de prata aquela adorável figura por mim tão amada !

– O momento era de um verdadeiro encantamento. Olhos nos olhos, nós dois como

que nos magnetizávamos mutuamente. O Largo da Igreja estava deserto e lá embaixo a

banda no coreto tocava uma daquelas lindas valsas antigas. Estávamos frente a frente e

eu peguei em suas mãos. Ela gracejou dizendo: ‘Está querendo acostumar, hem ?

Aquilo que aconteceu naquela noite foi uma loucurinha que eu fiz sem pensar ...’ Mas

não retirou as suas mãos.

E eu disse : ‘Mas você, afinal, não é toda minha ?’ E ela respondeu : ‘Em sonho, em

pensamento e de coração, sou ! Mas agora nem aliança nós temos ainda.’ Engoli quieto

a indireta. Aproximamo-nos mais um pouco. Ambos tremíamos. Eu, mais do que ela.

E notei que seu peito começou a arfar lentamente.

Ela ainda falou : ‘Você vai ser meu, mesmo ?’ Respondi-lhe : ‘Sim, meu bem, todo seu !’

Eu estava como que estático, o coração pulsando forte e o sangue subindo ao rosto.

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AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil

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Não sei como é que não tive uma vertigem ... Seu peito tornou-se ofegante. Olhos nos

olhos, olhos nos lábios, de repente aconteceu uma coisa que eu nunca esperava que

acontecesse e que me deixou meio aturdido.

Belinha espalmou suas mãos sobre minhas orelhas e me puxou para si. Senti então

seus lábios macios e quentes sugarem os meus violentamente. Correspondi rápido.

Deve ter durado uns quatro segundos o nosso primeiro beijo.

Que maravilha ! Belinha afastou-se logo, com as mãos no peito, exclamando : ‘Nossa!

O que é que eu fiz ?! Que loucura ! Mas também você ficou aí parado sem resolver

nada e eu não agüentei ...’ Eu só disse : ‘Não fique assim ! Esta foi a coisa mais

maravilhosa que, graças a você, aconteceu na minha vida ! E nem houve malícia, pois

nós nem nos abraçamos ...’ E ficamos nos olhando sem nem ter o que dizer.

Mas logo, ela, ainda com um sorrisinho nervoso, convidou-me para irmos embora.

E, de mãos dadas se balançando os braços, descemos a rua que também estava

deserta. Na ponte paramos um pouco, pois ela logo se despediu e disse:

‘Bobo ! Para mim também foi a coisa mais gostosa que já me aconteceu na vida !’

E se foi, sorridente e apressada ...

Ah! Pensei muitos anos depois : ‘Por que a Belinha naquela hora não me convidou

para dar uma voltinha na praça ?’

Voltei alegre para casa, relembrando tudo o que havia acontecido naquela noite. A lua

ainda clareava a estrada. E, às vezes, uma estrela cadente riscava o céu estrelado. Lá

longe cantavam alguns galos e cães alegres latiam nas residências. Vagalumes brilhavam

por toda parte. E ao passar pela lagoa que margeava a estrada, até parei para ouvir a

orquestra encantadora da saparia. Como eu estava feliz !

Depois de ouvir o caso do beijo da Belinha, que, pelo seu romantismo, até me deixou

com inveja, perguntei ao Luizinho :

– Mas como é que com todo esse encantamento amoroso no qual vocês viviam, estando

já em ponto de casamento, por que, afinal, vocês não se casaram, mas acabaram indo

cada qual para o seu lado ?! Como é que você deixou aquela prendada moça, que nós

todos cobiçávamos, inutilmente, pois ela não dava bola pra ninguém e só gostava de

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você ?! Como pôde desprezar o seu amor ?! Eu acho que você ficou louco ! Desprezar

uma lindeza daquela, que, como você mesmo disse, ‘tinha sorriso que o magnetizava a

cada instante e cujo mágico olhar até despetalava recém abertas e cuja formosura de

todo o corpo causava arrepios aos que a contemplavam ?! E cuja voz, límpida e doce,

evolando daqueles lábios de rubi e dentes de luz, era como uma melodia acariciante

embalando um sonho maravilhoso ?! Como é que você rejeitou tudo isso, se aquela flor

rara estava ali, ansiosa ao seu dispor ?! Era só colhê-la ! Você ficou doido mesmo ! O

que aconteceu, homem?

Luizinho, num suspiro, respondeu :

– Pois é ! ‘Quando o diabo torce o rabo, o homem apanha’ ... Eu levei uma tunda por

me deixar vencer pelo demônio do ciúme ...

– Mas você possuía amigos. Lamentamos o rompimento entre vocês dois, mas você

nunca nos procurou. Talvez tivéssemos podido ajuda ...

– Qual ! O que tem de acontecer, acontece ... ão há remédio para um coração

envenenado ...

Nessa hora, o Luizinho e eu havíamos dado a volta pela Rua do Colégio e chegado a

um bairro de Jambeiro, formado próximo ao antigo campo de futebol.

Luizinho admirou as novas ruas que ali foram abertas, no bairro novo do Jardim

Centenário, situado na antiga “horta” do Luiz Bernardo, que depois foi do Joaquim

Ivo e, mais tarde, do Hilário Fermino. E nos lembramos das antigas jabuticabeiras

que ali existiram e que encheram de alegria a nossa meninice. Com o povo que tinha

vindo à Festa, todas as ruas estavam tomadas por centenas de ônibus e outros carros

dos romeiros.

Já estava quase na hora da procissão. Paramos perto da igreja de São Benedito,

construída no inicio dos anos 60. Depois de observar tudo por ali, o Luizinho continuou

a narrar sua história do namoro com a Belinha.

– Hoje eu nem acredito que tive um namoro assim, que durou cinco anos e terminou de

uma maneira tão pueril ... Eu já me havia esquecido de muita coisa, mas esta vida à

querida terra natal me fez recordar muitas passagens da minha vida naquele tempo. O

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antigo Jambeiro era bem menor e muito mais sossegado. Havia poucos moços e

moças. E, quando cada um formava seu par ainda bem jovem, o namoro geralmente ia

até o casamento. Só comigo e a Belinha não aconteceu assim ...

Luizinho continuou:

– Dizem que ‘a paixão é como uma medalha : de um lado é o amor e do outro é o

ódio’. E que, às vezes, por um acontecimento infausto, a medalha vira e a face do amor

é substituída pela face do ódio. Pois foi o que aconteceu comigo. Por um motivo até

ridículo, um forte rancor tomou conta de mim contra a Belinha. Depois eu pensei como

fui covarde em me deixar vencer assim pelo lado maldito da paixão : destino inesperado

e cruel, ao qual sucumbi sem lutar, como um moço imaturo dominado pelo ciúme.

Eu havia passado uma semana felicíssima na roça. Vim à cidade ansioso por me

encontrar com minha amada. Mas a primeira notícia que tive dela foi um aviso de que

ela não poderia vir encontrar-se comigo, porque havia chegado visita ...

Isso foi como uma baciada de gelo sobre meu entusiasmo amoroso ... À noitinha, eu

estava conversando com uns amigos no canto da praça que dá para a rua de baixo.

Em frente era o salão do Hilário, que existia onde hoje está a bomba de gasolina.

O salão era a sede do nosso clube. E, a propósito, naquela hora, nossas queridas Déa

Lopes e Rosinha Almeida (onde e como estarão elas hoje ?) estavam tocando a

vitrola, em preparação do nosso domingueiro bailinho “arrasta-pé”.

De repente aconteceu a desgraça, que virou a face do amor na medalha da nossa

paixão.

Vindo da rua de baixo, surgem quatro jovens passeando: de um lado estava o Cláudio,

irmão da Belinha, conversando com sua prima Araci. Ao lado da Araci estava a

Belinha que bonita e risonha, proseava com o amigo do Cláudio, ao seu lado.

A vista daquela cena foi para mim pior do que um terremoto ! Caí das nuvens :

arregalei os olhos, abri a boca e derrubei o queixo ... Quase gritei. Senti o sangue

ferver e o coração pular.

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E, por cargas d’água, bem naquele instante, a vitrola do Clube começou a tocar aquela

marchinha antiga que dizia assim : ‘Por causa dela, oi, por causa dela, / meu coração

bateu tanto, / quase quebrou minha costela ...’

E como que para me torturar ainda mais, um dos companheiros exclamou: ‘Ih !

Luizinho ! Olha lá a Belinha, rindo e feliz com aquele cara amigo do Cláudio!’

(Quase esmurrei o imbecil companheiro).

Belinha, quando me viu, virou o rosto, dissimulando. Eu também virei a cara, zunindo

de raiva ! O grupo subiu e desceu a rua de cima. Foi em seguida à Rua do Colégio.

Deu três voltas na Praça e foi embora.

Eu, que nunca tinha sentido tanto ciúme, fiquei arrasado ! Nem esperei o “arrasta-pé”.

Fui logo para minha casa. Na estrada até senti tonturas. Enxuguei os olhos várias

vezes. E fui pensando. E fui xingando. E fui sofrendo como nunca sofrera antes por

causa de uma mulher ...

Que diferença daquela outra noite que me foi tão feliz ! Esta, ao contrário, estava

tenebrosa e feia. Ao longe uivavam os cães esfaimados. E uma coruja suindara, em

vôos rasantes, rasgava mortalha sobre minha cabeça ... Como eu estava infeliz !

Passei um mês sem vir à cidade. Distraí-me na roça, curtindo a minha amargura

amorosa. Quando vim, recebi um recado da Belinha para ir falar com ela. Não atendi.

Respondi, enviando-lhe uma carta por intermédio da Araci, que era o nosso “correio”.

Eu continuava terrivelmente frustrado e detestando a Belinha.

Na carta, disse que não a queria mais, pois, além de me trair, ainda me ofendera ao

passear com aquele moço, coisa que comigo sempre recusara fazer. /e para que

soubesse quais eram meus novos sentimentos para com ela, junto à carta enviei-lhe uns

versos que decorara de um jornal da época.

Diziam assim : ‘Eu te odeio, / sabes ? / Muito ! / Com prazer e com rancor. / Desejo-te /

tudo o que te leve ao desespero : / que não tenhas fé / nem esperança / e que a vida te

atormente, / a cada passo. / Quero que sofras, / muito, sempre ... / Em dias longos, /

em noites sem fim. / Que desejes a morte, / mas que tu vivas muito ! / Que não tenhas

lágrimas, / para que teus olhos não chorem / e a dor te sufoque ! / Quero que me ames

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/ a mim que te odeio ! / Que me queiras / como eu te quis, / para que sintas tudo / e

sofras tudo / o que senti / e sofri, / quando me traíste ...’

Ao ler minha declaração de ódio, Belinha, primeiro deve ter ficado magoada e furiosa.

Mas depois, conhecendo meu caráter, pelo qual eu não seria capaz de odiar a ninguém,

e muito menos a ela, julgou que eu estava bancando o “machão” ... para me vingar ...

Acertou ! E, por isso, continuou fazendo o que pôde para reatarmos nosso namoro.

Eu fugia sempre, mas depois que a Araci me contou certas coisas, resolvi falar com a

Belinha.

Luizinho continuou :

– Em atenção aos seus veementes pedidos, resolvi encontrar-me com a Belinha.

Esperei-a na ‘nossa’ esquina, logo que terminou a reza. Trocamos secos cumprimentos.

Achei-a com as feições abatidas.

Ela começou a falar : ‘Por que você fez isso comigo ?! Eu já lhe mandei pedir

desculpas. Até perdão eu implorei pelo que fiz ! Por que continua me evitando e

desprezando desse modo ?!’ E disse outras coisas comoventes, que me arderam dentro

do peito.

Mas eu a ouvia como que distante, indiferente, maldoso. Apenas respondi que ela havia

me traído e ofendido muito.

Tempos depois foi que eu percebi o quanto fui bruto e perverso ao humilhar a

pobrezinha daquele jeito !... Mas o ciúme violento e a afronta sofrida haviam

empedernido de tal modo meus sentimentos, que eu não sentia nenhuma piedade.

E o que até hoje me faz lembrar minha vileza foi o que em seguida aconteceu.

Pois de repente, Belinha chegou bem perto de mim, com lágrimas nos olhos, encarou-

me e disse : ‘Meu bem, meu amor ! Abrace-me, beije-me ! Faça o que quiser comigo !

Pois sou toda sua !’

Assustei-me, até ! Senti um tremor e o coração bateu forte. E já ia abrindo os braços

para estreitá-la em meu peito, quando me contive. E falei : ‘Não, moça ! Você não é

disso ! Eu sei o que isso significa para você e eu a respeito muito ! Para mim a situação

também está horrível ! Vamos esperar um pouco, quem sabe ...’ Irritada pela

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humilhação recebida, Belinha interrompeu-me e respondeu, exaltada : ‘Você é mau !

Malvado ! Pois eu também não quero mais saber de você !’ E, enxugando as lágrimas

no dorso da mão, saiu rápida, deixando-me sozinho ... E foi descendo a rua, só e

apressada ...

Acompanhei-a com o olhar, até que desapareceu lá em baixo, na Praça ... E assim,

naquela hora, pelo meu orgulho, nascido de um ciúme diabólico, terminava, como num

sonho maravilhoso que acabasse em pesadelo, nosso lindo “amor fora de série” ... E

eu perdia a Belinha para sempre ...

Luizinho deu um suspiro e ficou quieto por uns instantes. Depois, continuou :

– O resto você sabe. Fui logo embora daqui e comecei a lecionar no Grupo Escolar de

uma cidade do Oeste. E seis meses depois me casava com uma linda e amável colega,

com a qual fui muito feliz. Tempos depois eu soube que a Belinha também havia se

casado. E justamente com aquele moço, amigo de seu irmão, que aqui vinha passear e

lhe trazia bombons ... E que, por sinal, deu um ótimo marido, pelo que certamente

foram muito felizes também ...

Os sinos da igreja começaram a repicar, chamando os romeiros para a procissão ...

Os sinos da igreja repicaram festivos, chamando os romeiros para o inicio da procissão.

O Luizinho e eu, que acabávamos de dar a volta pelo Jardim Centenário – o bairro

novo da cidade – chegando à ponte da rua de baixo, também atendemos ao chamado

dos sinos e subimos até a igreja. Acompanhamos com o povo o tradicional desfile da

Imagem da Padroeira pelas ruas da cidade. De volta à igreja, Luizinho rezou um pouco

e logo saímos. Seu carro havia ficado lá para cima, à sombra da velha e solitária

paineira próxima à Vila Vicentina. Tomamos o carro e viemos descendo a rua

congestionada de ônibus e de carros das famílias que já se iam retirando da cidade. Ao

passar pela “sua” esquina, fez um sinal com o braço e murmurou :

– ‘Adeus, esquina saudosa !’

E assim foi dizendo adeus a todos os pontos que lhe recordavam alguma coisa da

meninice ou da juventude em sua terra natal : a “Casa Grande”, a ponte dos

pernilongos, o mercado, a cadeia e outros. A Praça continuava apinhada de veículos

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que partiam e do povo que vagava por entre as barraquinhas ou descansava nos bancos

do jardim. Seguimos pela Rua do Colégio (Major Gurgel) até o final e paramos lá na

chácara do Marciano. Despedimo-nos com um longo abraço e palavras cordiais de uma

separação que poderá ser para sempre.

O Luizinho ainda fez um gesto de saudação para o Santo Cruzeiro lá no alto, e

embarcou. Antes de desaparecer na curva do bambual, pôs o braço para fora e fez um

último sinal de adeus. Para quem seria ? Para mim, seu velho amigo ? Para a cidade

natal que ficava talvez para sempre ? Ou como lembrança do antigo amor que teve com

sua amada Belinha ?

Voltei para a Praça comovido, pensando no Luizinho e em outras coisas, como se

estivesse vivendo há sessenta anos ... Como estava tudo tão diferente ! A mocidade do

nosso tempo, entusiasta e descontraída, há muito já não existia ... Como única exceção,

apenas via o Dito Dias, tranqüilamente acomodado lá à porta de sua casa ...

A visita do Luizinho à terra natal e nossas recordações foram mesmo comoventes !

E agora estava eu ali sozinho, no meio daquele povaréu ...

E então me veio à mente a lembrança daquele antigo e romântico poeta, que,

versejando uma visita à velha casa paterna, assim termina seu dolorido soneto :

‘... resistir, quem há de ?

Uma ilusão gemia em cada canto,

chorava em cada canto uma saudade !...’

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N. da R. : Exatamente na edição de 19/09/1993 “O Jambeirense” noticiou o

falecimento, no Rio de Janeiro, da “Belinha”, que foi protagonista, ao lado do “Luizinho”,

desta série “Amor fora de série”...

N. da R.: “sr. Durão” – trata-se de Innocencio Corrêa Durão, “natural de Miranda

do Corvo, província da Beira Baixa ou Coimbra, no reino de Portugal, residente nesta

Villa, capitalista”, que faleceu em Jambeiro, às 5 horas da madrugada, na “rua do

Comércio”, aos 70 anos. Deixou os filhos : Maria da Conceição Durão (casada com o

Cel. Antonio Baptista de Oliveira Costa (Cel. Batista); Benedicto, José, João e Eugênio

(este se casou com D. Maria Antonia da Conceição, com quem teve os seguintes filhos :

Pe. Hygino Corrêa da Conceição Apparecida, Francisco, Philomena, Pedro, Elvira, Pe.

José Luiz Corrêa, Olívia, Vicente, Eugênia, João e Geraldo).

N. da R.: Na ocasião da demolição da velha sede da fazenda do Capivari – onde

funcionaram as Escolas Reunidas e, depois, o antigo Grupo Escolar – uma sobrinha do

prof. Júlio de Paula Moraes, Adélia de Souza Moraes (a querida “tia Adélia”), ao ouvir

o estocar de foguetes em regozijo pelo início do destelhamento do velho prédio, assim

manifestou seu repúdio pela demolição :

– Burros ! A gente solta foguete quando se cobre uma nova casa, e não quando ela é

demolida !