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1 OS DIREITOS À EDUCAÇÃO E O STF Ana Paula de Barcellos 1 Professora Adjunta de Direito Constitucional da UERJ. Mestre e Doutora em Direito Público pela UERJ I. Introdução e plano de trabalho; II. A Constituição de 1988 e os direitos à educação; III. Direitos à educação e a jurisprudência do STF; III.1.O reconhecimento genérico da fundamentalidade da educação; III.2. Educação infantil; III.3. Ensino fundamental regular; III.4. Ensino médio; III.5. Direito dos educandos da educação básica a programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde; III.6. Direito dos portadores de deficiência de terem acesso a atendimento educacional especializado; III.7. Acesso ao ensino superior facultado a todos em função do mérito; IV. Direitos à educação: vazios da jurisprudência do STF. Algumas considerações; IV.1. O que os números dizem?; IV.2. Prioridades; V. Conclusão I. INTRODUÇÃO: PLANO DE TRABALHO Parece correto afirmar que existe um amplo consenso na sociedade brasileira teórico ao menos no sentido da importância central da educação para a dignidade e o desenvolvimento pessoal de cada indivíduo, para o desenvolvimento econômico e social do país e, igualmente, para a consolidação do regime democrático. Como se sabe, a Constituição de 1988 foi bastante analítica ao tratar do tema, posicionando a educação como serviço a ser prestado de forma prioritária pelo Estado 2 e dispondo acerca dele sob diferentes perspectivas, como se verá adiante. O objetivo deste pequeno estudo é identificar que controvérsias relacionadas com um assunto tão fundamental como o da educação têm sido submetidas ao Supremo Tribunal Federal bem como que outras controvérsias, a despeito de sua relevância, até o momento não lhe foram submetidas e de que forma a Corte tem 1 Colaborou de forma decisiva para a pesquisa e revisão deste artigo o acadêmico Felipe Terra, a quem agradeço de forma especial. 2 Sem prejuízo de os particulares também poderem desenvolver essa mesma atividade (art. 209, CF/88).

Artigo: OS DIREITOS A EDUCAÇÃO E O STF

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OS DIREITOS À EDUCAÇÃO E O STF

Ana Paula de Barcellos1

Professora Adjunta de Direito

Constitucional da UERJ. Mestre e

Doutora em Direito Público pela

UERJ

I. Introdução e plano de trabalho; II. A Constituição de 1988 e os direitos à educação;

III. Direitos à educação e a jurisprudência do STF; III.1.O reconhecimento genérico da

fundamentalidade da educação; III.2. Educação infantil; III.3. Ensino fundamental

regular; III.4. Ensino médio; III.5. Direito dos educandos da educação básica a

programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e

assistência à saúde; III.6. Direito dos portadores de deficiência de terem acesso a

atendimento educacional especializado; III.7. Acesso ao ensino superior facultado a

todos em função do mérito; IV. Direitos à educação: vazios da jurisprudência do STF.

Algumas considerações; IV.1. O que os números dizem?; IV.2. Prioridades; V.

Conclusão

I. INTRODUÇÃO: PLANO DE TRABALHO

Parece correto afirmar que existe um amplo consenso na

sociedade brasileira – teórico ao menos – no sentido da importância central da educação

para a dignidade e o desenvolvimento pessoal de cada indivíduo, para o

desenvolvimento econômico e social do país e, igualmente, para a consolidação do

regime democrático. Como se sabe, a Constituição de 1988 foi bastante analítica ao

tratar do tema, posicionando a educação como serviço a ser prestado de forma

prioritária pelo Estado2 e dispondo acerca dele sob diferentes perspectivas, como se verá

adiante.

O objetivo deste pequeno estudo é identificar que controvérsias

relacionadas com um assunto tão fundamental como o da educação têm sido submetidas

ao Supremo Tribunal Federal – bem como que outras controvérsias, a despeito de sua

relevância, até o momento não lhe foram submetidas – e de que forma a Corte tem

1 Colaborou de forma decisiva para a pesquisa e revisão deste artigo o acadêmico Felipe Terra,

a quem agradeço de forma especial.

2 Sem prejuízo de os particulares também poderem desenvolver essa mesma atividade (art. 209, CF/88).

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compreendido e decidido tais questões. Algumas informações apuradas ao longo do

exame já podem ser adiantadas.

Em primeiro lugar, é certo que o STF já proferiu importantes

decisões determinando ao Poder Público providências concretas no que diz respeito ao

oferecimento de ensino fundamental regular e de ensino infantil (creche e pré-escola). O

debate acerca de outros direitos à educação, porém, ainda não chegou ao STF. É o caso,

e.g., do ensino médio, do ensino fundamental e médio noturno para adultos e do ensino

para portadores de necessidades especiais. Igualmente, o tema da qualidade do serviço

educacional prestado pelo Poder Público jamais foi examinado pela Corte. Por fim,

muitas decisões que mencionam o tema da educação decidem, na realidade, disputas

entre os entes federativos, não chegando a examinar o assunto sob a perspectiva do

direito atribuído ao cidadão pelo texto constitucional. Que conclusões podem ser

extraídas de tais circunstâncias? O tema será retomado adiante. Antes do exame

propriamente das decisões do STF, porém, é preciso fazer uma breve nota sobre as

opções constitucionais acerca do tema da educação.

II. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OS DIREITOS À EDUCAÇÃO

A referência genérica a um direito à educação não é, a rigor,

precisa e dificulta um maior aprofundamento do tema. Embora faça referência geral ao

direito à educação – em seu artigo 6º, por exemplo3 –, a Constituição de 1988 o

desdobra em vários direitos mais específicos. A esses direitos correspondem serviços a

serem prestados pelo Poder Público cujos regimes jurídicos não são idênticos. Em

tentativa de sistematização, e já tendo em conta as alterações introduzidas pela Emenda

Constituição nº 59/2009, é possível identificar oito direitos à educação diversos, que

seguem identificados na sequência.

A Constituição prevê (i) o direito das crianças de até 5 anos de

idade de terem acesso ao ensino infantil em creche e pré-escola (art. 208, IV4). A

Emenda Constituição nº 59/2009 introduziu a figura da educação básica (art. 208, I e

3 CF/88: “Art. 6º. São direitos sociais a educação (...)”.

4 CF/88: “Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

(...) IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade”.

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VII5)6 obrigatória, que abrange o ensino ministrado dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete)

anos e, portanto, inclui a pré-escola (crianças de 4 a 6 anos)7, o ensino fundamental

(com duração de 9 anos e início aos 6 anos de idade)8 e o médio (com duração mínima

de 3 anos)9. O regime jurídico do ensino fundamental e do ensino médio, porém, ainda

não foi inteiramente equiparado, a despeito do avanço introduzido pela emenda. Com

efeito, (ii) o ensino fundamental regular era a continua a ser de oferecimento

obrigatório, havendo também previsão expressa do (iii) direito daqueles que não tiveram

acesso a ele na idade própria, e não possam acompanhar aulas diurnas (em geral

adultos), de ter acesso ao ensino fundamental noturno, adequado a suas necessidades

(art. 208, I e VI10

).

Quanto ao ensino médio, a EC nº 59/2009 manteve o dispositivo

5 CF/88: “Art. 208.: O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I

- educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; (...) VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didáticoescolar, transporte, alimentação e assistência à saúde”.

6 Essa já era a categoria utilizada pela Lei nº 9.394/96 (LDB): “Art. 21. A educação escolar compõe-se de: I - educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; II - educação superior”,

7 Lei nº 9.394/96 (LDB): “Art. 30. A educação infantil será oferecida em: I - creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade; II - pré-escolas, para as crianças de quatro a seis anos de idade”.

8 Lei nº 9.394/96 (LDB): “Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante: I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.” 9 Lei nº 9.394/96 (LDB): “Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades: I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina”.

10 CF/88: “Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I

- educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; (...) VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando”.

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que trata de sua progressiva universalização (art. 208, II11

), mas o incluiu no conceito de

educação básica (art. 208, I) e, mais importante, dispôs que até 2016 a universalização

em questão deverá estar concluída (EC nº 59/2009, art. 6º12

). É possível, portanto,

identificar dois direitos aqui, que demandam serviços diversos: (iv) o direito à

progressiva universalização do ensino médio para os educandos “na idade própria”, isto

é: adolescentes (art. 208, I, II e EC nº 59/2009, art. 6º) e (v) o direito à progressiva

universalização do ensino médio para aqueles que não tiveram acesso a ele na idade

própria – adultos – e que não podem acompanhar aulas diurnas, a ser oferecido de forma

adequada a suas necessidades (art. 208, I, II, VI e EC nº 59/2009, art. 6º).

A Constituição assegura ainda: (vi) o direito dos educandos da

educação básica como um todo – ou seja: pré-escola, ensino fundamental e médio – de

serem atendidos por programas suplementares de material didático-escolar, transporte,

alimentação e assistência à saúde (art. 208, VII13

); (vii) o direito dos portadores de

deficiência de terem acesso a atendimento educacional especializado (art. 208, III); e

(viii) o direito de qualquer indivíduo, de acordo com sua capacidade, de ter acesso a

níveis mais elevados de ensino (art. 208, V)

Do ponto de vista do regime jurídico aplicável a cada um dos

direitos identificados acima, algumas distinções merecem registro. As normas que

consagram o direito à creche e pré-escola para as crianças de até 5 anos e o direito de

acesso ao ensino fundamental (regular ou noturno) descrevem direitos subjetivos

determinados. Veja-se que a Constituição repetidamente se referia ao direito ao ensino

fundamental gratuito como obrigatório e como direito público subjetivo, a ser oferecido

a todos, inclusive àqueles que não tiveram acesso a ele na idade própria. Ao substituir a

expressão ensino fundamental por educação básica – conceito mais abrangente –, que

passa a ser descrita como obrigatória, a EC nº 59/2009 fez incidir as previsões

constitucionais, que já se aplicavam ao ensino fundamental, também sobre o ensino

médio e sobre a pré-escola, a saber: a que descreve o acesso a tais serviços como direito

11 CF/88: “Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

(...) II – progressiva universalização do ensino médio gratuito”.

12 EC nº 59/2009: “Art. 6º. O disposto no inciso I do art. 208 da Constituição Federal deverá ser

implementado progressivamente, até 2016, nos termos do Plano Nacional de Educação, com apoio técnico e financeiro da União”.

13 CF/88: “Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

(...) VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde”.

SAIMONLIMA
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SAIMONLIMA
Nota
DIREITO A EDUCAÇÃO BÁSICA EC Nº59/2009
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público subjetivo e a que prevê a responsabilização da autoridade competente que não

os ofereça de forma regular (art. 208, § 1º a 3º14

).

Ainda uma observação sobre o ensino médio, a ser oferecido em

horário regular, diurno, e também em horário noturno. Embora tenha passado a

identificá-lo como obrigatório, parte integrante da educação básica, a Constituição

continua a conter o dispositivo que trata de sua progressiva universalização, agora com

um prazo final: 2016. Já era possível sustentar, antes da EC nº 59/2009, que o enunciado

descrevia uma meta – a universalização do oferecimento do ensino médio de forma

gratuita –, e que o efeito por ela pretendido era o de que, ao longo do tempo, algum

avanço, um avanço razoável, deveria ser observado na direção dessa meta. Se já era

possível controlar a existência ou não desse avanço razoável antes da emenda, mais

ainda agora. Por meio de relações estatísticas será possível avaliar de forma muito mais

precisa quantas vagas de ensino médio regular e noturno precisam ser abertas para que

se atinja, em 2016, a universalização de que a Constituição trata (desde sua

promulgação em 1988, lembre-se), bem como que medidas concretas devem ser

implementadas a cada ano para que essa meta seja alcançada no prazo.

A Constituição se preocupa ainda em garantir condições reais de

aprendizado para os alunos da educação básica – já agora não apenas do ensino

fundamental –, daí a previsão de programas suplementares de material didático,

transporte, alimentação e assistência à saúde, no âmbito da própria escola. A referência

a “programas” transfere ao Legislativo e, sobretudo, ao Executivo, certo espaço de

discricionaridade para definir o formato particular dos programas a serem adotados,

uma vez que se garanta, naturalmente, o resultado pretendido pela Constituição. Isto é:

que os alunos tenham acesso ao material didático próprio, tenham condições de chegar

fisicamente à escola com regularidade (transporte), estejam razoavelmente alimentados

e contém com assistência à saúde. O objetivo de tais programas, não custa lembrar, é

garantir condições para um aprendizado adequado por parte dos alunos. Não há espaço

de discricionariedade administrativa para decidir não adotar tais programas, em face de

eventuais outras prioridades, por relevantes que elas possam ser. A decisão no sentido

de que tais programas devem ser implementados já foi tomada pelo poder constituinte,

14 CF/88: “Art. 208. (...) § 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público

subjetivo; § 2º - O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente; § 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola”.

SAIMONLIMA
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Nota
ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL ESCOLAR
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cabendo nesse particular aos poderes constituídos apenas executá-la. A

discricionariedade que resta envolve apenas a estrutura específica de cada programa.

O comentário que se acaba de fazer acerca do regime jurídico

aplicável ao direito de atendimento por programas suplementares de material didático,

transporte, alimentação e assistência à saúde, dirigidos aos alunos da educação básica,

aplica-se também ao direito dos portadores de deficiência de terem acesso a

atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino.

Isto é: o Poder Público tem o dever de oferecer atendimento educacional especializado,

cabendo-lhe apenas decidir o conteúdo específico desse atendimento em cada caso,

tendo em conta os fins gerais da educação (pleno desenvolvimento da pessoa, seu

preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho - art. 205) e a

especificação desses mesmos fins em relação às pessoas portadoras de deficiências:

pleno desenvolvimento, integração comunitária e treinamento para o trabalho (art. 203,

IV, e art. 227, § 1º, II15

).

Por fim, a Constituição prevê que o acesso aos níveis mais

elevados de ensino está franqueado a qualquer indivíduo, de acordo com sua

capacidade. Nada obstante sua importância fundamental para o desenvolvimento

científico do país, sob a perspectiva do direito à educação e do dever do Estado de

prestar os serviços necessários ao atendimento dos vários direitos referidos acima, o

acesso aos níveis mais elevados de ensino goza de prioridade inferior, sobretudo se

comparado ao acesso à educação básica obrigatória. Tanto assim que o art. 212, § 3°

prevê que a distribuição de recursos públicos deve assegurar prioridade ao atendimento

das necessidades do ensino obrigatório, no que se refere a universalização, garantia de

15 CF/88: “Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar,

independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: (...) IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária” e “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 1º - O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos: (...) II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos”.

SAIMONLIMA
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Nota
DIREITOS HUMANOS
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padrão de qualidade e equidade16

.

Ainda a fim de delinear o regime jurídico dos diferentes direitos à

educação, parece relevante fazer um registro acerca das competências atribuídas aos

diferentes entes da Federação brasileira na matéria. O ponto é especialmente importante

já que, como se verá na sequência, uma série de controvérsias federativas envolvendo o

tema da educação já foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal. Do ponto de vista

legislativo, compete à União legislar privativamente sobre diretrizes e bases da

educação nacional (art. 22, XXIV17

) e à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar

de forma concorrente sobre educação, cultura e ensino (art. 24, IX18

), cabendo ainda aos

Municípios, como se sabe, competência para suplementar a legislação federal e estadual

no que couber (art. 30, II19

).

No que diz respeito à prestação concreta do serviço, no entanto, é

competência comum de todos os entes – União, Estados, Distrito Federal e Municípios

– proporcionar os meios de acesso à educação (art. 23, V20

). O art. 30, VI21

, atribui aos

Municípios a competência de manter programas de educação infantil e de ensino

fundamental, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado. O art. 211,

§§ 2° e 3°, no mesmo sentido, define que os Municípios devem atuar prioritariamente

no ensino fundamental e na educação infantil22

e os Estados no ensino fundamental e

16 CF/88: “Art. 212, § 3º: A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao

atendimento das necessidades do ensino obrigatório, no que se refere a universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do plano nacional de educação”. E, caso ainda seja necessário priorizar investimentos no âmbito da educação básica, a prioridade será do atendimento a crianças e adolescentes, nos termos do art. 227 da Constituição (É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão).

17 CF/88: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) XXIV - diretrizes e bases

da educação nacional”.

18 CF/88: “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar

concorrentemente sobre: (...) IX - educação, cultura, ensino e desporto”.

19 CF/88: “Art. 30. Compete aos Municípios: (...) II - suplementar a legislação federal e a

estadual no que couber”.

20 CF/88: “Art. 23.: É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos

Municípios: (...) V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência”.

21 CF/88: “Art. 30. Compete aos Municípios: (...) VI - manter, com a cooperação técnica e

financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental”.

22 CF/88: “Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em

regime de colaboração seus sistemas de ensino. (...) § 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil”.

SAIMONLIMA
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SAIMONLIMA
Nota
COMPETÊNCIA
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médio23

. À União, por seu turno, cabe organizar o sistema federal de ensino e exercer

função redistributiva e supletiva, assistindo a Estados e Municípios de modo a equalizar

as oportunidades educacionais e garantir um padrão mínimo de qualidade do ensino (art.

211, § 1°)24

. A Constituição prevê ainda – o que seria, a rigor, evidente – que, ao

organizarem seus sistemas de ensino, os entes devem definir formas de colaboração, de

modo a promover a universalização do ensino obrigatório (art. 211, § 4º)25

.

III. DIREITOS À EDUCAÇÃO E A JURISPRUDÊNCIA DO STF

Feito esse breve resumo acerca dos direitos à educação garantidos

pelo texto constitucional e da distribuição de competências na matéria entre os entes

federativos, cabe agora examinar quais dos dispositivos constitucionais referidos já

foram apreciados pelo Supremo Tribunal Federal e em que termos.

III.1. O reconhecimento genérico da fundamentalidade da educação

Há farta evidência demonstrando o papel desempenhado pela

educação – aqui identificada de forma genérica, abarcando de forma ampla os vários

direitos identificados acima – no desenvolvimento da pessoa26

, no seu preparo para o

23 CF/88: “Art. 211, § 3º: Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino

fundamental e médio”.

24 CF/88: “Art. 211, § 1º: A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios,

financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios”.

25 CF/88: “Art. 211, § 4 º: Na organização de seus sistemas de ensino, a União, os Estados, o

Distrito Federal e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório”.

26 A educação, note-se, não se resume apenas à transmissão dos conhecimentos próprios de

cada disciplina. Marcos Augusto Maliska, O direito à educação e a Constituição, 2001, citando lição de Jean Piaget registrou, p. 157: “(...) o indivíduo não poderia adquirir suas estruturas mentais mais essenciais sem uma contribuição exterior, a exigir um certo meio social de formação, e que em todos os níveis (desde os mais elementares até os mais altos) o fator social ou educativo constitui uma condição do desenvolvimento”. E complementa: “[a educação deve garantir a todos] o pleno desenvolvimento de suas funções mentais e a aquisição dos conhecimentos, bem como dos valores morais que correspondam ao exercício dessas funções, até a adaptação à vida social atual”. A Lei nº 9.394/96 (LDB) dispõe nesse mesmo sentido: “Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu

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PAPEL DA UNIÃO
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exercício da cidadania e em sua qualificação para o trabalho27

. A decisão consciente a

respeito do voto em cada eleição, a informação acerca dos direitos mais elementares –

e.g., direitos do consumidor, e até mesmo o direito de ação –, o acesso ao mercado

produtivo, tudo isso depende hoje, em larga medida, da educação formal28

.

Antes, portanto, de tratar de qualquer dispositivo constitucional

em particular, vale a nota de que o Supremo Tribunal Federal não se furta, ao contrário,

a reconhecer a fundamentalidade29

do direito à educação de forma geral, ao menos do

ponto de vista teórico. Confira-se, dentre outros, o registro abaixo constante de decisão

que será examinada em tópico específico:

“1. A educação é um direito fundamental e indisponível dos

indivíduos. É dever do Estado propiciar meios que viabilizem o

seu exercício. Dever a ele imposto pelo preceito veiculado pelo

artigo 205 da Constituição do Brasil. A omissão da

Administração importa afronta à Constituição”30

.

Vale o registro de que a decisão transcrita não se limita a fazer

uma enunciação teórica da fundamentalidade do direito à educação, determinando ao

Poder Público providências concretas para a promoção do direito, como se verá adiante

ao tratar-se do direito à educação fundamental regular.

III.2. Ensino infantil

De todos os direitos à educação referidos acima, o direito ao

preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Veja-se ainda sobre o tema, Maria Garcia, A nova lei de diretrizes e bases da educação nacional, CDCCP – RT nº 23, p. 59 e ss.

27 Maria Cristina dos Santos Cruanhes, Cidadania: educação e exclusão social, 2000.

28 Konrad Hesse, Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, 1998,

p. 133: “Em tudo, democracia é, segundo seu princípio fundamental, um assunto de cidadãos emancipados, informados, não de uma massa ignorante, apática, dirigida apenas por emoções e desejos irracionais que, por governantes bem-intencionados ou mal-intencionados, sobre a questão do seu próprio destino, é deixada na obscuridade”; José Afonso da Silva, Poder constituinte e poder popular, 2000, p. 143; e Marcos Augusto Maliska, O direito à educação e a Constituição, 2001, p. 161.

29 Sobre a ideia de fundamentalidade dos direitos, v. Ricardo Lobo Torres (Org.), Legitimação

dos direitos humanos, 2007.

30 STF, DJ 07.ago.2009, RE-AgR 594018/RJ, Rel. Min. Eros Grau.

SAIMONLIMA
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ensino infantil em creche e pré-escola é aquele que tem sido alvo de maior número de

decisões do STF. Em várias ocasiões a Corte tem reconhecido, a partir do próprio texto

constitucional, um direito subjetivo ao ensino infantil e determinado ao Poder Público –

em geral ao ente municipal – a prestação do serviço correspondente. A decisão abaixo

foi proferida pela Corte no âmbito de agravo interposto pelo Município de Santo André

contra decisão monocrática que conheceu e deu provimento a recurso extraordinário do

Ministério Público do Estado de São Paulo. O Parquet havia ajuizado ação civil pública

em face do Município exigindo a abertura de vagas no ensino infantil. O Tribunal de

Justiça estadual julgou improcedente o pedido formulado, daí o recurso extraordinário.

Em seu agravo, o Município alegava, em suma, a competência concorrente dos entes

federativos na matéria e a ingerência indevida do Judiciário nas atividades próprias do

Executivo, com as repercussões orçamentárias e financeiras correspondentes.

A decisão do STF refutou os argumentos do Município e,

portanto, acolheu a pretensão do Ministério Público no sentido de obrigar a autoridade

municipal a prestar o serviço até então omitido. Quanto à competência concorrente, a

Corte destacou que, nos termos constitucionais, a prestação da educação infantil foi

atribuída prioritariamente os Municípios. E, quanto à invasão do espaço do Poder

Executivo e as conseqüências orçamentárias e financeiras dessa “invasão”, o Ministro

Celso de Mello, relator, embora tenha observado o caráter excepcional da atuação do

Judiciário no particular, destacou que a Constituição garante o direito em questão

impondo, automaticamente, deveres aos Poderes Públicos e limitando-lhes, assim, a

discricionariedade31

. Confira-se:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ SEIS

ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-

ESCOLA - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO

PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV)

- COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL

À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE

IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO

MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - RECURSO IMPROVIDO. - A

educação infantil representa prerrogativa constitucional

indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para

efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do

processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso

31 Esse último tema já havia sido discutido de forma específica pelo Ministro Celso de Mello no

corpo da decisão por meio da qual determinou o arquivamento da ADPF 45.

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à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa jurídica, em

conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação

social de que se reveste a educação infantil, a obrigação

constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de

maneira concreta, em favor das "crianças de zero a seis anos de

idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em

creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se

inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente,

por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de

prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição

Federal. - A educação infantil, por qualificar-se como direito

fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de

concretização, a avaliações meramente discricionárias da

Administração Pública, nem se subordina a razões de puro

pragmatismo governamental. - Os Municípios - que atuarão,

prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil

(CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato

constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado

pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que

representa fator de limitação da discricionariedade político-

administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do

atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não

podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo

de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia

desse direito básico de índole social. - Embora resida,

primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a

prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se

possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que

em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas

públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas

implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão

- por importar em descumprimento dos encargos político-

jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-

se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos

sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A

questão pertinente à ‘reserva do possível’. Doutrina”32

.

III.3. Ensino fundamental regular

O ensino fundamental regular é aquele oferecido em horário

32 STF, DJ 03.fev.2006, RE-AgR 410.15/SP, Rel. Min. Celso de Mello e DJ 03.fev.2006, RE-

AgR 436.996/SP, Rel. Min. Celso de Mello. No mesmo sentido: STF, DJ 03.fev.2006, RE-AgR 463.210/SP, Rel. Min. Carlos Velloso; DJ 29.mai.2009, RE-AgR 595595/SP, Rel. Min. Eros Grau.

SAIMONLIMA
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diurno e dirigido a crianças e adolescentes, hoje parte da educação básica33

. Há apenas

um acórdão tratando do tema de forma específica, que segue transcrito abaixo. A

questão submetida ao Supremo Tribunal Federal na ocasião também teve origem em

ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público, agora do Estado do Rio de Janeiro.

O Parquet, tendo em conta a falta de corpo docente em escolas estaduais localizadas em

determinado município, e a existência de cerca de 10 mil professores aprovados em

concurso público estadual, pedia que o Estado fosse condenado a preencher o quadro de

professores. A sentença julgou procedente o pedido condenando o réu ao preenchimento

do quadro de professores sob pena de multa diária. O Tribunal de Justiça, por seu turno,

reformou a sentença, sob o argumento principal de que a matéria era afeta ao Executivo

e não ao Judiciário.

Interposto recurso extraordinário pelo Ministério Público

estadual, o Ministro Eros Grau deu-lhe provimento monocraticamente. O Estado do Rio

de Janeiro interpôs agravo regimental sustentando que os precedentes da Corte, que

autorizariam a decisão monocrática não seriam adequados ao caso. O agravo regimental

foi rejeitado por unanimidade pela 2ª Turma do STF decidindo-se que o entendimento

consolidado do STF era/é realmente no sentido de que a educação é um direito

fundamental e de que o Poder Judiciário pode determinar aos órgãos estatais omissos,

ainda que em bases excepcionais, sejam implementadas políticas públicas definidas pela

própria Constituição. Confira-se os termos da decisão:

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CARÊNCIA DE PROFESSORES.

UNIDADES DE ENSINO PÚBLICO. OMISSÃO DA

ADMINISTRAÇÃO. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL

INDISPONÍVEL. DEVER DO ESTADO. ARTS. 205, 208, IV E

211, PARÁGRAFO 2º, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A

educação é um direito fundamental e indisponível dos indivíduos.

É dever do Estado propiciar meios que viabilizem o seu exercício.

Dever a ele imposto pelo preceito veiculado pelo artigo 205 da

Constituição do Brasil. A omissão da Administração importa

afronta à Constituição. 2. O Supremo fixou entendimento no

sentido de que ‘[a] educação infantil, por qualificar-se como

direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu

33 CF/88: “Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I

- educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria”. Nos termos da LDB, o ensino fundamental tem início aos 6 anos de idade e duração de 9 anos.

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processo de concretização, a avaliações meramente

discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a

razões de puro pragmatismo governamental[...]. Embora resida,

primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a

prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se

possível, no entanto, ao Poder Judiciário determinar, ainda que

em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas

públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas

implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão

- por importar em descumprimento dos encargos políticos-

jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-

se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos

sociais impregnados de estatura constitucional’. Precedentes.

Agravo regimental a que se nega provimento”34

.

Algumas observações parecem relevantes. A maior parte dos

precedentes discutidos pelo acórdão tratava de forma específica da educação infantil,

como se viu acima (ainda que fizessem considerações sobre o direito à educação de

forma geral), e impunha obrigações a Municípios, tendo em conta sua competência

prioritária para a prestação da educação infantil. As razões dos precedentes citados

eram, de fato, aplicáveis no particular, mas o presente acórdão produz um avanço

prático da maior importância. Isso porque, os fatos subjacentes envolviam escolas

estaduais que oferecem ensino fundamental, não necessariamente infantil. É possível

concluir, portanto, que a Corte equiparou, no que diz respeito à eficácia jurídica, o

ensino fundamental ao ensino infantil e os deveres dos Estados-membros de oferecerem

o ensino fundamental aos deveres dos Municípios de oferecerem educação infantil. O

ensino médio não foi expressamente mencionado pela decisão embora, no caso

concreto, possa ter recebido alguma repercussão da decisão do STF, já que é freqüente

que escolas estaduais também o ofereçam.

Em outra decisão da Corte o tema do direito à educação

fundamental foi indiretamente discutido no contexto de um conflito federativo. A Lei

federal nº 11.738/200835

previu um piso salarial inicial nacional dos professores

34 STF, DJ 07.ago.2009, RE-AgR 594018/RJ, Rel. Min. Eros Grau.

35 Lei nº 11.738/2008: “Art. 1º. Esta Lei regulamenta o piso salarial profissional nacional para

os profissionais do magistério público da educação básica a que se refere a alínea “e” do inciso III do caput do art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Art. 2º. O piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica será de R$ 950,00 (novecentos e cinqüenta reais) mensais, para a formação em nível médio, na modalidade Normal, prevista no art. 62 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. § 1º O piso salarial profissional nacional é o valor abaixo do qual a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não

SAIMONLIMA
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Nota
PISO SALARIAL
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públicos de ensino fundamental, associou ao valor por ela previsto uma jornada de no

máximo 40 horas semanais e previu que no máximo 2/3 da carga horária poderia ser

destinada a atividades de interação com os educandos36

.

Foi ajuizada ação direta de inconstitucionalidade contra a lei

referida que resultou, após interessantes discussões entre os Ministros da Corte, na

suspensão cautelar e na fixação de interpretação conforme de alguns dispositivos. Os

argumentos que conduziram a essa conclusão foram, de forma simplificada, a violação

do pacto federativo – na medida em que a União teria invadido o espaço de

autoorganização dos demais entes bem como usurpado a competência dos Chefes dos

Executivos locais para dispor sobre o regime jurídico dos servidores. As possíveis

repercussões financeiras e orçamentárias que a lei teria sobre Estados e Municípios

também foram consideradas relevantes na hipótese. Confira-se a ementa, ainda que

longa:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA

CAUTELAR (ART. 10 E § 1º DA LEI 9.868/1999).

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PISO SALARIAL

NACIONAL DOS PROFESSORES PÚBLICOS DE ENSINO

FUNDAMENTAL. LEI FEDERAL 11.738/2008. DISCUSSÃO

ACERCA DO ALCANCE DA EXPRESSÃO "PISO" (ART. 2º,

caput e §1º). LIMITAÇÃO AO VALOR PAGO COMO

VENCIMENTO BÁSICO INICIAL DA CARREIRA OU

EXTENSÃO AO VENCIMENTO GLOBAL. FIXAÇÃO DA CARGA

poderão fixar o vencimento inicial das Carreiras do magistério público da educação básica, para a jornada de, no máximo, 40 (quarenta) horas semanais. § 2º Por profissionais do magistério público da educação básica entendem-se aqueles que desempenham as atividades de docência ou as de suporte pedagógico à docência, isto é, direção ou administração, planejamento, inspeção, supervisão, orientação e coordenação educacionais, exercidas no âmbito das unidades escolares de educação básica, em suas diversas etapas e modalidades, com a formação mínima determinada pela legislação federal de diretrizes e bases da educação nacional. § 3º Os vencimentos iniciais referentes às demais jornadas de trabalho serão, no mínimo, proporcionais ao valor mencionado no caput deste artigo. § 4º Na composição da jornada de trabalho, observar-se-á o limite máximo de 2/3 (dois terços) da carga horária para o desempenho das atividades de interação com os educandos. § 5º As disposições relativas ao piso salarial de que trata esta Lei serão aplicadas a todas as aposentadorias e pensões dos profissionais do magistério público da educação básica alcançadas pelo art. 7º da Emenda Constitucional no 41, de 19 de dezembro de 2003, e pela Emenda Constitucional no 47, de 5 de julho de 2005”.

36 Do ponto de vista constitucional, os dispositivos específicos mais relevantes seriam os

seguintes: “Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...) V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; (...) VIII - piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal”.

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HORÁRIA DE TRABALHO. ALEGADA VIOLAÇÃO DA

RESERVA DE LEI DE INICIATIVA DO CHEFE DO

EXECUTIVO PARA DISPOR SOBRE O REGIME JURÍDICO DO

SERVIDOR PÚBLICO (ART. 61, § 1º, II, C DA

CONSTITUIÇÃO). CONTRARIEDADE AO PACTO

FEDERATIVO (ART. 60, § 4º E I, DA CONSTITUIÇÃO).

INOBSERVÂNCIA DA REGRA DA PROPORCIONALIDADE. 1.

Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de medida

cautelar, ajuizada contra o art. 2º, caput e § 1º da Lei

11.738/2008, que estabelecem que o piso salarial nacional para

os profissionais de magistério público da educação básica se

refere à jornada de, no máximo, quarenta horas semanais, e

corresponde à quantia abaixo da qual os entes federados não

poderão fixar o vencimento inicial das carreiras do magistério

público da educação básica. 2. Alegada violação da reserva de lei

de iniciativa do Chefe do Executivo local para dispor sobre o

regime jurídico do servidor público, que se estende a todos os

entes federados e aos municípios em razão da regra de simetria

(aplicação obrigatória do art. 61, § 1º, II, c da Constituição).

Suposta contrariedade ao pacto federativo, na medida em que a

organização dos sistemas de ensino pertinentes a cada ente

federado deve seguir regime de colaboração, sem imposições

postas pela União aos entes federados que não se revelem simples

diretrizes (arts. 60, § 4º, I e 211, § 4º da Constituição.

Inobservância da regra de proporcionalidade, pois a fixação da

carga horária implicaria aumento imprevisto e exagerado de

gastos públicos. Ausência de plausibilidade da argumentação

quanto à expressão "para a jornada de, no máximo, 40 (quarenta

horas)", prevista no art. 2º, § 1º. A expressão "de quarenta horas

semanais" tem por função compor o cálculo do valor devido a

título de piso, juntamente com o parâmetro monetário de R$

950,00. A ausência de parâmetro de carga horária para

condicionar a obrigatoriedade da adoção do valor do piso

poderia levar a distorções regionais e potencializar o conflito

judicial, na medida em que permitiria a escolha de cargas

horárias desproporcionais ou inexeqüíveis. Medida cautelar

deferida, por maioria, para, até o julgamento final da ação, dar

interpretação conforme ao art. 2º da Lei 11.738/2008, no sentido

de que a referência ao piso salarial é a remuneração e não, tão-

somente, o vencimento básico inicial da carreira. Ressalva

pessoal do ministro-relator acerca do periculum in mora, em

razão da existência de mecanismo de calibração, que postergava

a vinculação do piso ao vencimento inicial (art. 2º, § 2º).

Proposta não acolhida pela maioria do Colegiado.

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. FIXAÇÃO DA CARGA

HORÁRIA DE TRABALHO. COMPOSIÇÃO. LIMITAÇÃO DE

DOIS TERÇOS DA CARGA HORÁRIA À INTERAÇÃO COM

EDUCANDOS (ART. 2º, § 4º DA LEI 11.738/2008). ALEGADA

VIOLAÇÃO DO PACTO FEDERATIVO. INVASÃO DO CAMPO

ATRIBUÍDO AOS ENTES FEDERADOS E AOS MUNICÍPIOS

Page 16: Artigo: OS DIREITOS A EDUCAÇÃO E O STF

16

PARA ESTABELECER A CARGA HORÁRIA DOS ALUNOS E

DOS DOCENTES. SUPOSTA CONTRARIEDADE ÀS REGRAS

ORÇAMENTÁRIAS (ART. 169 DA CONSTITUIÇÃO). AUMENTO

DESPROPORCIONAL E IMPREVISÍVEL DOS GASTOS

PÚBLICOS COM FOLHA DE SALÁRIOS. IMPOSSIBILIDADE

DE ACOMODAÇÃO DAS DESPESAS NO CICLO

ORÇAMENTÁRIO CORRENTE. 3. Plausibilidade da alegada

violação das regras orçamentárias e da proporcionalidade, na

medida em que a redução do tempo de interação dos professores

com os alunos, de forma planificada, implicaria a necessidade de

contratação de novos docentes, de modo a aumentar as despesas

de pessoal. Plausibilidade, ainda, da pretensa invasão da

competência do ente federado para estabelecer o regime didático

local, observadas as diretrizes educacionais estabelecidas pela

União. Ressalva pessoal do ministro-relator, no sentido de que o

próprio texto legal já conteria mecanismo de calibração, que

obrigaria a adoção da nova composição da carga horária

somente ao final da aplicação escalonada do piso salarial.

Proposta não acolhida pela maioria do Colegiado. Medida

cautelar deferida, por maioria, para suspender a aplicabilidade

do art. 2º, § 4º da Lei 11.738/2008. CONSTITUCIONAL.

ADMINISTRATIVO. PISO SALARIAL. DATA DE INÍCIO DA

APLICAÇÃO. APARENTE CONTRARIEDADE ENTRE O

DISPOSTO NA CLÁUSULA DE VIGÊNCIA EXISTENTE NO

CAPUT DO ART. 3º DA LEI 11.738/2008 E O VETO APOSTO

AO ART. 3º, I DO MESMO TEXTO LEGAL. 4. Em razão do veto

parcial aposto ao art. 3º, I da Lei 11.738/2008, que previa a

aplicação escalonada do piso salarial já em 1º de janeiro de

2008, à razão de um terço, aliado à manutenção da norma de

vigência geral inscrita no art. 8º (vigência na data de publicação,

isto é, 17.07.2008), a expressão "o valor de que trata o art. 2º

desta Lei passará a vigorar a partir de 1º de janeiro de 2008",

mantida, poderia ser interpretada de forma a obrigar o cálculo do

valor do piso com base já em 2008, para ser pago somente a

partir de 2009. Para manter a unicidade de sentido do texto legal

e do veto, interpreta-se o art. 3º para estabelecer que o cálculo

das obrigações relativas ao piso salarial se dará a partir de 1º de

janeiro de 2009. Medida cautelar em ação direta de in

constitucionalidade concedida em parte”37

.

É interessante observar que, paralelamente à discussão federativa,

que acabou por assumir relevância central para a decisão proferida, alguns Ministros

fizeram questão de destacar a importância do conteúdo da lei para a valorização do

professor e a importância do professor para que se possa obter uma educação pública de

37 STF, DJ 30.mar.2009, ADIn-MC 4167/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa.

Page 17: Artigo: OS DIREITOS A EDUCAÇÃO E O STF

17

qualidade. Confiram-se, respectivamente, os registros dos Ministros Menezes Direito e

Carmen Lúcia sobre o ponto:

“Concluo, Senhor Presidente, não sem antes fazer um registro especial,

porque entendo que a edição desta lei é uma conquista extremamente

relevante para o Estado brasileiro. É a primeira vez em que se põe numa

lei um dispositivo o qual assegura a qualificação do professor pelo

reconhecimento do seu valor no que concerne à remuneração. Isso,

tenho absoluta certeza, vai representar uma grande avenida para que o

Brasil possa retomar ao seu primórdio no sentido da valorização dos

professores. Nós todos que tivemos, naqueles tempos áureos, professores

de grande qualificação no ensino público, sabemos hoje como é difícil a

um professor do ensino público manter a sua própria subsistência. Isso

precisa ser modificado e estou absolutamente convencido. Daí a defesa

intransigente que faço da constitucionalidade da lei no sentido de que

ela é um avanço extraordinário para a valorização da educação

brasileira”.

“Também faço questão de registrar, tal como fez o eminente Ministro

Menezes Direito, a importância dessa lei. Eu até dizia ainda ontem,

numa das audiências, exatamente que aqui havia a questão não apenas

da federação, mas que, antes dela, a Constituição fala em República. E

não há República sem repúblicos; os repúblicos são os cidadãos dotados

de capacidade de livremente exercer seus direitos, para o que é

imprescindível a educação. Portanto, considero esta uma lei realmente

que permite o Brasil se tornar o que não conseguimos ainda ser

completamente: uma República a depender da educação dos professores,

para a melhor qualidade de todos os cidadãos, a fim de que as

liberdades sejam exercidas”.

III.4. Ensino médio

Não foi possível localizar qualquer decisão do Supremo Tribunal

Federal que tratasse do direito ao ensino médio (regular ou noturno) ou discutindo

qualquer aspecto do direito à sua progressiva universalização. A Corte já mencionou o

tema de forma indireta, ao examinar lei distrital que dispunha sobre a emissão de

certificado de conclusão de Ensino Médio em favor de alunos que comprovassem

aprovação em vestibular, independentemente do número de aulas freqüentadas. A

norma foi suspensa por invadir a competência legislativa privativa da União para dispor

sobre normas gerais sobre educação. Confira-se o registro do Ministro Relator Celso de

Mello:

SAIMONLIMA
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“Cumpre enfatizar que a Lei Distrital ora questionada fez

instaurar, no âmbito do Distrito Federal, uma situação anômala

que desconhece o significado das diretrizes básicas em tema de

ensino – como a obrigatoriedade de currículos e de conteúdos

mínimos e a necessidade de observância da carga horária mínima

anual de 800 horas, distribuídas por um mínimo de 200 dias de

efetivo trabalho escolar – e que introduz, em claro desrespeito ao

postulado da isonomia, um inaceitável tratamento discriminatório

entre cidadãos brasileiros das diferentes unidades da Federação,

pois, nestas, estão eles sujeitos às normas fundamentais sobre

ensino e educação legitimamente editadas e concebidas, pela

União federal, para viger, no plano nacional, com o objetivo de

assegurar a todos - independentemente de sua localização

espacial no território brasileiro – uma formação básica

comum”38

.

III.5. Direito dos educandos da educação básica a programas suplementares de

material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde

O art. 208, VII, da Constituição, como se viu, prevê que os

educandos, em todas as etapas da educação básica, deverão ser atendidos por programas

suplementares de material didático, transporte, alimentação e assistência à saúde. O

tema dos programas suplementares, porém, não foi apreciado pelo STF até o momento,

salvo em uma ocasião em que, mais uma vez, o direito é mencionado – exclusivamente

em relação ao tema do transporte – no contexto de um conflito federativo. No caso, a

Constituição do Estado do Ceará impunha aos Municípios o dever de transportar da

zona rural para a sede do Município, ou Distrito mais próximo, alunos carentes

matriculados a partir da 5ª série do ensino fundamental. O dispositivo foi impugnado,

dentre outros, e a Corte entendeu, por unanimidade, que teria havido indevida

ingerência na prestação do serviço municipal.

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 20,

INCISO V; ARTIGO 30, CAPUT; ARTIGO 33, §§ 1º E 2º;

ARTIGO 35, CAPUT E § 3º; ARTIGO 37, §§ 6º A 9º; ARTIGO 38,

§§ 2º E 3º; ARTIGO 42, CAPUT E § 1º, TODOS DA

CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO CEARÁ. ARTIGO 25 DO

38 STF, DJ 12.mar.2004, ADIn-MC 2667/DF, Rel. Min. Celso de Mello.

SAIMONLIMA
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ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS.

PRINCÍPIO DA AUTONOMIA MUNICIPAL. VIOLAÇÃO DO

DISPOSTO NOS ARTIGOS 38, INCISO III, E 29, INCISO V, DA

CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. (...)4. O artigo 30 da Constituição

cearense impõe aos Municípios o encargo de transportar da zona

rural para a sede do Município, ou Distrito mais próximo, alunos

carentes matriculados a partir da 5ª série do ensino fundamental.

Indevida ingerência na prestação de serviço público municipal. O

preceito afronta a autonomia municipal. 5. Inconstitucionalidade

do § 3º do artigo 35 da Constituição estadual em razão de afronta

à autonomia municipal”39

.

A decisão foi tomada sem debate específico e apenas o Ministro

Carlos Britto destacou que o Estado estaria transferindo exclusivamente para o

Município o dever para com o educando de que trata o art. 208, VII, da Constituição,

dever esse que seria comum a todos os entes federativos. O eventual papel da

Constituição estadual na organização interna dos serviços comuns ao Estado e aos

Municípios não foi objeto de debate. Também não houve qualquer discussão sobre

aspectos de fato que, eventualmente, poderiam ser relevantes. Talvez a solução pudesse

ser uma para os municípios que oferecem, apenas em sua sede, ensino fundamental

completo – e especificamente para além da 5ª série – e outra para aqueles que, ao

contrário, oferecem o serviço de forma melhor distribuída por seu território, atendendo

também às zonas rurais. O ponto, entretanto, não foi suscitado.

III.6. Direito dos portadores de deficiência de terem acesso a atendimento

educacional especializado

O direito a atendimento educacional especializado, conferido pela

Constituição aos portadores de deficiência, foi examinado uma vez pelo Supremo

Tribunal Federal em contexto bastante específico. A Associação de Deficientes

Auditivos do Maranhão (ADAMA) ajuizou mandado de segurança em face do

Município de São Luís alegando que o Município não garante aos portadores de

deficiência em questão o direito à educação na rede pública e requerendo: (i) que o

Poder Judiciário determinasse à Prefeitura de São Luís que, num prazo de cinco dias,

39 STF, DJ 13.fev.2008, ADIn 307/CE, Rel. Min. Eros Grau.

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abrisse vagas na rede pública para os 373 alunos deficientes que atende; ou, (ii) não

tendo o Município condições de atender à ordem judicial, fosse ele obrigado a repassar

mensalmente verbas à impetrante para o atendimento dos referidos alunos.

A ADAMA não foi bem sucedida em seu pleito no âmbito do

Judiciário do Estado do Maranhão e interpôs recurso extraordinário. Embora

reconhecendo a pertinência ao caso de várias normas constitucionais (em particular, os

artigos 211, § 2º e 30, VI), o STF entendeu que tais dispositivos não permitiam a

extração de qualquer efeito concreto no sentido de obrigar o Município a abrir vagas na

rede pública para deficientes. Quanto ao direito ao repasse, a Corte entendeu que não

haveria direito líquido e certo na hipótese já que a própria entidade havia reconhecido a

necessidade de celebração de convênio com o Poder Público para esse fim.

“AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO. EXTRAORDINÁRIO.

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ENTIDADE PRIVADA

DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. PRESTAÇÃO DE ENSINO

ESPECIALIZADO. REPASSE DE VERBAS DESTINADAS À

EDUCAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE CONVÊNIO.

IMPOSSIBILIDADE. ENSINO FUNDAMENTAL A

PORTADORES DE DEFICIÊNCIA. NÃO-OFERECIMENTO

PELO PODER PÚBLICO. CONSEQÜÊNCIA. PAGAMENTO

DAS DESPESAS REALIZADAS PELA IMPETRANTE.

PRETENSÃO INCABÍVEL. SÚMULA 269-STF.1. Os recursos

públicos, por disposição constitucional, serão repassados às

escolas públicas, podendo ser dirigidos às comunitárias,

confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que comprovem

finalidade não lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros

em eduçação e, ainda, que assegurem a destinação de seu

patrimônio a outras instituições de idêntica natureza, ou ao poder

público, no caso de encerramento de suas atividades. 2. Entidade

privada declarada de utilidade pública pelo Governo Federal e

reconhecida como de assistência social sem fins lucrativos.

Repasse de verbas destinadas à educação. Necessidade de se

observar as condições impostas pela Carta da República e de

estabelecer convênio com o poder público. 2.1. Repasse de

recursos financeiros por decisão judicial. Impossibilidade de o

Poder Judiciário imiscuir-se na liberdade do ente público de

celebrar contratos administrativos. Direito líquido e certo.

Inexistência. 3. Ensino obrigatório a portadores de deficiência.

Não- oferecimento pelo poder público. Conseqüência: imputação

de responsabilidade à autoridade competente. Apuração.

Necessidade de produção de provas. Mandado de Segurança.

Inadequação da via eleita. 4. Comprometimento do poder público

com o pagamento de dívida contraída por entidade privada na

realização de trabalho social, de competência estatal. Pretensão

incabível. O mandado de segurança não é sucedâneo de ação de

Page 21: Artigo: OS DIREITOS A EDUCAÇÃO E O STF

21

cobrança. Incidência da Súmula 269/STF. Agravo regimental

não-provido”40

.

Vale, porém, o registro do voto vencido proferido pelo Ministro

Marco Aurélio. Para S.Exa., o artigo 208, inciso III da Constituição Federal, ao atribuir

ao Estado o dever de proporcionar ensino gratuito especializado aos portadores de

deficiência, é auto-aplicável e, portanto, na omissão do Poder Público, teria eficácia

suficiente para impor que outra pessoa jurídica receba as verbas correspondentes para a

prestação do serviço. Segue transcrição de trecho do voto sobre o ponto:

“Há o direito líquido e certo dos deficientes físicos a essa educação,

porque previsto na lei da República, na Constituição Federal. Senhor

Presidente, esses dispositivos não foram relegados, no tocante à eficácia,

a uma regulamentação futura, porquanto se menciona a fonte da receita

necessária a fazer frente às despesas advindas dessa educação. O que

ocorre? Esses deficientes não podem ser matriculados nas escolas

normais de ensino. Por outro lado, não se têm escolas especiais, e as

famílias não podem arcar com os custos das escolas particulares. Fica-

se nesse estado de coisas? Será que é esse o alcance da Constituição

Federal, no que consigna – com clareza, a meu ver solar – que é dever

do Estado o atendimento educacional especializado aos portadores de

deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino? (...)”.

III.7. Acesso ao ensino superior facultado a todos em função do mérito

Há várias decisões do Supremo Tribunal Federal cuidando de

aspectos variados da educação superior, valendo apenas registrar algumas delas. A

Corte expediu a Súmula Vinculante nº 12, de 13 de agosto de 2008, que dispõe: “a

cobrança de taxa de matrícula nas universidades públicas viola o disposto no art. 206,

IV, da Constituição Federal”41

. O caso que desencadeou a edição da súmula envolvia a

cobrança de valores dos alunos – valores que, segundo alegado pela Universidade, os

alunos poderiam se negar a pagar sem quaisquer conseqüências – a ser revertido para

fundo de apoio aos alunos originários do sistema de cotas. Há ainda um conjunto de

decisões da Corte tratando da transferência de alunos entre universidades congêneres42

.

40 STF, DJ 24.abr.2001, RE-AgR 241757/MA, Rel. Min. Maurício Corrêa.

41 STF, DJ 24.out.2008, RE 500171/GO, Rel. Min. Ricardo Lewandowski.

42 STF, DJ 22.abr.2006, RE-AgR 362074/RN, Rel. Min. Eros Grau.

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Por fim, em decisão proferida em 2002, o STF considerou

inconstitucional, por violação à autonomia universitária, lei estadual do Rio Grande do

Sul que previa a obrigatoriedade de as instituições de ensino se adequarem aos dias de

guarda das diferentes religiões professadas naquele Estado. Essa a ementa do acórdão:

“LEI N.º 11.830, DE 16 DE SETEMBRO DE 2002, DO ESTADO

DO RIO GRANDE DO SUL. ADEQUAÇÃO DAS ATIVIDADES

DO SERVIÇO PÚBLICO ESTADUAL E DOS

ESTABELECIMENTOS DE ENSINO PÚBLICOS E PRIVADOS

AOS DIAS DE GUARDA DAS DIFERENTES RELIGIÕES

PROFESSADAS NO ESTADO. CONTRARIEDADE AOS ARTS.

22, XXIV; 61, § 1.º, II, C; 84, VI, A; E 207 DA CONSTITUIÇÃO

FEDERAL. No que toca à Administração Pública estadual, o

diploma impugnado padece de vício formal, uma vez que proposto

por membro da Assembléia Legislativa gaúcha, não observando a

iniciativa privativa do Chefe do Executivo, corolário do princípio

da separação de poderes. Já, ao estabelecer diretrizes para as

entidades de ensino de primeiro e segundo graus, a lei atacada

revela-se contrária ao poder de disposição do Governador do

Estado, mediante decreto, sobre a organização e funcionamento

de órgãos administrativos, no caso das escolas públicas; bem

como, no caso das particulares, invade competência legislativa

privativa da União. Por fim, em relação às universidades, a Lei

estadual n.º 11.830/2002 viola a autonomia constitucionalmente

garantida a tais organismos educacionais. Ação julgada

procedente”43

(negrito acrescentado).

IV. DIREITOS À EDUCAÇÃO: VAZIOS DA JURISPRUDÊNCIA DO STF. ALGUMAS

CONSIDERAÇÕES

Até aqui se procurou descrever, de forma objetiva, as principais

decisões do STF sobre o tema da educação. Nada obstante, confrontando as previsões

constitucionais com as decisões mencionadas, é fácil perceber que vários dos direitos à

educação jamais foram objeto de exame por parte da Corte. Em especial, chama a

atenção o vazio da jurisprudência da Corte em relação (i) ao direito de acesso à

educação obrigatória noturna de forma geral (ensino fundamental e médio) (art. 208, I e

43 STF, DJ 27.jun.2003, ADIn 2806/RS, Rel. Min. Ilmar Galvão.

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VI); (ii) ao direito ao ensino médio regular (isto é: diurno) (art. 208, II e VI); (iii) ao

direito dos portadores de deficiências de terem acesso a atendimento educacional

especializado (art. 208, III); e (iv) ao direito a programas suplementares de material

didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde (art. 208, VII), referido,

como se viu, apenas sob a perspectiva dos entes federativos, suas competências e seu

espaço de autonomia, mas não sob a ótica dos cidadãos44

.

Talvez o vazio da jurisprudência do STF pudesse ser imputado ao

fato de que os entes federativos já prestam de forma amplamente adequada os serviços

necessários ao atendimento dos direitos referidos acima. Assim, inexistentes disputas

envolvendo tais temas – ou havendo apenas disputas sem maior repercussão –, não

haveria fundamento para que eles fossem examinados pelo Supremo Tribunal Federal.

Lamentavelmente, porém, a descrição acima não parece corresponder à realidade que os

números disponíveis descrevem.

IV.1. O que os números dizem?

A despeito do silêncio da jurisprudência do STF, as pesquisas

disponíveis acerca da educação revelam dados pouco animadores justamente acerca de

temas tratados pela Constituição, mas jamais examinados pelo Supremo Tribunal

Federal. De acordo com o Censo 2000, apenas 31,4% da população brasileira estava

estudando em 2000. Segundo o relatório do Censo, em média são necessários 11 anos

de estudo para que a educação fundamental seja completada e apenas 18% da população

brasileira teve esse tempo de estudo. Um terço da população frequentou a escola por

apenas quatro a sete anos. E apenas 4% da população teve 15 anos de educação formal,

tempo médio necessário para completar-se também o ensino médio45

.

44 Outro tema da maior relevância, também não examinado pelo STF até o momento, envolve

os resultados produzidos pelo serviço educacional efetivamente fornecido pelo Poder Público. Não é o caso de discutir o tema aqui, mas apenas de enunciá-lo. O art. 205 da Constituição prevê que a educação visa “ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Após os 9 anos de ensino fundamental, que percentual dos alunos de escolas públicas adquiriu (nos termos do art. 32 da Lei nº 9.394/96 - LDB) a capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo?

45 O relatório completo do Censo 2000, no que toca à educação, está disponível em:

<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/educacao/censo2000_educ.pdf>. Acesso em: 01.dez.2009.

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A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD,

realizada anualmente pelo IBGE, também fornece alguns dados importantes. De acordo

com o PNAD 200846

, 10% da população brasileira acima de 15 anos é completamente

analfabeta e cerca de 21% dos indivíduos maiores de 15 anos é analfabeto funcional47

.

Estudo recente realizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) analisou

a situação do jovem brasileiro com base nos dados do Pnad 200848

. A conclusão foi a de

que a frequência ao ensino médio na idade adequada (15 a 17 anos) abrange apenas a

metade dos jovens dessa idade (50,4%), sendo que cerca de 44% dos jovens não

concluíram o ensino fundamental.

Os que os números acima revelam? Que de 5 brasileiros adultos

um é analfabeto funcional o que apenas metade dos jovens frequenta o ensino médio,

hoje integrante, nos termos constitucionais, da educação obrigatória. Não há dados que

permitam afirmar que esse quadro resulta exclusivamente da inexistência (ou

ineficiência) da prestação dos serviços educacionais correspondentes pelos entes

públicos. É possível imaginar que, mesmo existindo escolas públicas oferecendo ensino

médio regular e ensino noturno para adultos, alguns indivíduos decidirão não utilizar

tais serviços, por razões as mais variadas. É bem de ver que os programas suplementares

46 Disponível em:

<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2008/comentarios2008.pdf>. Acesso em: 02.dez.2009.

47 Segundo definição da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a

Cultura (UNESCO), funcionalmente alfabetizada é a pessoa que pode participar de todas as atividades em que a alfabetização é necessária para o funcionamento efetivo do seu grupo e comunidade e também para lhe permitir continuar a utilizar a leitura, a escrita e o cálculo para seu próprio desenvolvimento e da comunidade. Sobre o tema, cf. Ricardo Henriques, Alfabetização e inclusão social: contexto e desafios do Programa Brasil Alfabetizado. In: Ricardo Henriques, Ricardo Paes de Barros, João Pedro Azevedo (Orgs.), Brasil alfabetizado: caminhos da avaliação, 2006, p. 21-2 (disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001545/154571por.pdf>): “Até por volta da década de 1950, era considerada alfabetizada a pessoa que tivesse a habilidade de ler e escrever um texto simples e que dominasse o código alfabético. Essa concepção foi se tornando mais complexa, passando a incorporar o domínio da língua falada e escrita em um contexto social, assim como a dimensão cultural, política e de conquista dos direitos de cidadania. Alguns especialistas brasileiros utilizam a palavra letramento (do inglês literacy) para nomear esse conceito. A partir da década de 1970, a Unesco passou a utilizar o termo analfabetismo funcional, que corresponderia ao fenômeno no qual a pessoa sabe ler e escrever, mas não alcança o domínio social da leitura e da escrita, alertando para a necessidade de se estender a todos o acesso à escolarização básica, a fim de se garantir tal domínio. Desde então, vêm sendo adotados diversos acordos e planos internacionais que aprofundaram esse entendimento relacionando-o à diversidade e à educação ao longo de toda a vida”

48 Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/pdf/091203_ComuPres36.pdf>, acesso

em: 03.dez.2009.

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de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde visam a,

justamente, minimizar eventuais dificuldades práticas que o indivíduo possa ter para

freqüentar a escola. Assim, se o indivíduo decide não cursar o ensino noturno porque

não tem dinheiro para o transporte e inexiste programa suplementar de transporte, sua

decisão, no caso, deve ser imputada à inexistência do serviço a cargo do Poder Público,

e não, propriamente, ao desinteresse do cidadão.

Seja como for, parece pouco provável que a livre decisão das

pessoas de não fruir dos serviços educacionais adequadamente prestados pelo poder

público seja a causa principal do incrível índice de analfabetismo funcional no país e do

reduzido percentual de jovens no ensino médio. Sem prejuízo de outras causas

específicas de menor repercussão, parece correto supor que o quadro que os números

referidos acima descrevem tem como causa principal, realmente, a omissão ou a

ineficiência da ação estatal na prestação dos serviços que os direitos garantidos pela

Constituição demandam.

O Censo Escolar de 200949

traz algumas informações acerca do

atendimento educacional especializado a que tem direito os portadores de deficiências.

O relatório informa que, em 2009, havia 639.718 alunos com deficiência matriculados

em instituições públicas ou privadas na educação básica. De acordo com documento

elaborado por Grupo de Trabalho sobre educação especial, criado no âmbito do

Ministério da Educação, em 2006, as escolas públicas concentravam 63% das

matrículas dos alunos portadores de deficiências, ficando o restante com escolas

privadas (sobretudo instituições especializadas filantrópicas)50

. Retornando ao Censo

Escolar de 2009, apenas um registro adicional: o relatório informa que apenas 65,3%

dos alunos portadores de deficiências têm acesso, na escola, a banheiros adaptados a

suas necessidades51

.

49 Trata-se de levantamento realizado anualmente pelo MEC e pelo INEP (Instituto Nacional de

Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) acerca da educação básica no Brasil. O Censo Escolar 2009 foi publicado no Diário Oficial da União de 30 de novembro de 2009.

50 MEC-SEESP, Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva,

Cláudia Pereira Dutra e Cláudia Maffini Griboski (documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria Ministerial n. 555, de 5 de junho de 2007, prorrogada pela Portaria n. 948, de 9 de outubro de 2007).

51 Para informações detalhadas do aqui exposto, cf. Relatório Técnico do Censo da Educação

Básica 2009, disponível em:

<http://www.inep.gov.br/download/censo/2009/TEXTO_DIVULGACAO_EDUCACENSO_20092.pdf>.

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Pois bem. De acordo com os dados do Censo IBGE de 2000,

cerca de 24,6 milhões de brasileiros são portadores de algum tipo de deficiência (14,5%

da população). Também segundo o Censo, estima-se que, desse total, 8% sejam de

crianças e adolescentes entre zero e 17 anos, o que corresponde a 1.968.000 de crianças

e adolescentes portadores de deficiência. Considerando que os 639.718 alunos

matriculados em instituições públicas ou privadas de ensino (dados de 2009, note-se, e

não de 2000) estejam todos na faixa etária de zero a 17 anos (e que, portanto, os adultos

portadores de deficiência não contam com qualquer tipo de atendimento educacional),

tem-se que apenas 32% das crianças e adolescentes portadores de deficiência recebem

algum tipo de atendimento educacional. Afora todos os adultos.

Uma observação parece pertinente quando se trata de educação

especial. No caso do ensino médio regular e noturno para adultos que não apresentam

qualquer necessidade especial específica, a decisão individual de não freqüentar o curso

oferecido pelo Poder Público é uma hipótese que não pode ser ignorada no exame do

problema. No caso do atendimento educacional especializado para portadores de

deficiências, porém, parece muito pouco provável que os pais ou responsáveis de uma

criança ou adolescente portadora de deficiência, dispondo de um serviço educacional

adequado gratuito, deixe de utilizá-los.

Diante dos dados acima, a conclusão a que se chega, e da qual já

se suspeitava, é a de que o silêncio da jurisprudência do STF não resulta do fato de os

direitos à educação referidos acima estarem sendo adequadamente atendidos. Muito ao

revés. Os dados revelam que há uma quantidade enorme de pessoas que deveria estar

fruindo serviços educacionais de ensino médio, ensino para adultos e atendimento

específico para portadores de deficiências, mas que, por alguma razão, não está. Embora

não haja dados que possam sustentar a afirmação de que a inexistência dos serviços

educacionais pertinentes, ou a ineficiência no seu oferecimento, seja a única causa para

esse quadro, é muito razoável supor que essa seja a causa principal. A pergunta, de todo

modo, continua sem resposta. A que imputar o vazio da jurisprudência do STF sobre

tais direitos previstos constitucionalmente?

IV.2. Prioridades

No sistema brasileiro, como se sabe, as questões que chegam ao

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Supremo Tribunal Federal são submetidas à Corte pelas partes, no contexto de seus

processos, ou por substitutos processuais ou por legitimados ativos, por meio de ações

de natureza objetiva. Parece pouco realista imaginar, no entanto, que um indivíduo,

isoladamente, tenha condições de conduzir uma demanda até o Supremo Tribunal

Federal discutindo o seu direito de ter acesso a ensino médio público e gratuito, a ensino

noturno ou a atendimento educacional especializado, por se tratar de um portador de

deficiência.

Vislumbrando as dificuldades do acesso a justiça nesse contexto,

a própria Constituição já atribuiu a outras instituições, com destaque para o Ministério

Público, legitimação para zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos

serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição,

promovendo as medidas necessárias a sua garantia (art. 129, II), bem como para

promover a ação civil pública para a proteção de interesses difusos e coletivos (art.

129, III). O Procurador Geral da República, igualmente, é legitimado ativo para o

ajuizamento de ações objetivas de controle de constitucionalidade perante o Supremo

Tribunal Federal (art. 103, VI e Lei n° 9.882/99, art. 2°). A legislação

infraconstitucional confere ainda à Defensoria legitimação ativa para a defesa de

interesses coletivos, bem como a associações que atendam a determinadas exigências52

.

Com efeito, e como se viu da jurisprudência coletada, boa parte das decisões proferidas

pelo STF em matéria de educação infantil e fundamental resultou justamente de ações

civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público no âmbito dos Estados.

Parece razoável supor, então, que a circunstância de o STF não

haver, até o momento, se pronunciado sobre determinadas questões envolvendo direitos

à educação (e.g., ensino médio, ensino noturno, programas suplementares de transporte,

material escolar, alimentação e saúde e atendimento específico a portadores de

deficiências) decorre do fato de que aqueles que poderiam levar tais assuntos à sua

apreciação não o fizeram53

. Há aqui, portanto, uma questão de fixação de prioridades no

âmbito de instituições como o Ministério Público.

52 Lei nº 7.347/85 (Lei da ACP), art. 5º.

53 Não se ignora que também o STF pode haver empregado algum dos vários filtros de que se

vale para não conhecer de feitos que lhe são dirigidos e, assim, ter deixado de examinar processos ou ações objetivas que pretendiam discutir questões relacionadas com a educação. Ou ainda os Tribunais dos Estados, ou os Tribunais Regionais Federais, podem ter inviabilizado iniciativas do Ministério Público ou da Defensoria Pública. Cada um, é claro, apenas pode fazer o seu papel, mas é certo que há variados remédios processuais capazes de lidar com todo tipo de decisão judicial.

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A autonomia dos membros dos Ministérios Públicos estaduais e

do Ministério Público Federal é uma conquista importante e é, ademais, compreensível

que haja necessidades praticamente ilimitadas aguardando atendimento por parte dessas

instituições. Nada obstante, assim como a discricionaridade dos Poderes Públicos está,

como visto acima, limitada pelas previsões constitucionais em matéria de educação,

parece consistente concluir que também a liberdade de eleição de prioridades no âmbito

do Ministério Público deve sofrer o impacto das mesmas normas constitucionais. Com

efeito, se o equilíbrio contratual e das cláusulas no âmbito de contratos de leasing de

veículos54

, de planos de saúde55

e de financiamento de imóveis56

são direitos relevantes

a serem tutelados pelo Ministério Público, com maior razão, sobretudo tendo em conta

as prioridades constitucionais, os direitos à educação referidos acima haverão de ser.

V. CONCLUSÕES

De tudo o que se expôs até aqui é possível extrair algumas

conclusões objetivas.

A – O STF já proferiu decisões reconhecendo ao direito à

educação infantil e ao direito à educação fundamental o status de direitos subjetivos e

determinando ao Poder Público (respectivamente, municipal e estadual) a execução de

54 Em fevereiro de 2009, o MP-SP ajuizou ação civil pública contra instituição financeira para

impedir a imposição aos consumidores de contratos de leasing, forma de financiamento em que se utiliza o próprio bem como garantia. Informações disponíveis em: <http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/noticias/publicacao_noticias/2009/mar09/MP%20pede%20anula%C3%A7%C3%A3o%20de%20cl%C3%A1usulas%20abusivas%20em%20contrato%20de%20lea>. Acesso em: 10.fev.2010.

55 V.g., em agosto de 2009, o MPF/MG ajuizou ação civil pública contra a União e a Agência

Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para impedir reajustes abusivos dos planos de saúde em virtude da mudança de faixa etária do idoso – de 59 para 60 anos, haveria um reajuste de 123,77% no valor do plano de saúde. Informações disponíveis em: <http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias-do-site/consumidor-e-ordem-economica/mg-justica-obriga-ans-a-mudar-resolucao-para-impedir-reajuste-abusivo-de-planos-de-saude/>. Acesso em: 10.fev.2010

56 Nesse sentido, v.g., o MPF/MA propôs ação civil pública contra o Banco do Nordeste do

Brasil (BNB) para anular duas cláusulas do contrato de financiamento de imóveis, por entender serem abusivas e ferirem o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Informações disponíveis em: <http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias-do-site/consumidor-e-ordem-economica/mpf-ma-banco-do-nordeste-deve-anular-clausulas-de-contrato-de-financiamento-de-imovel/>. Acesso em: 10.fev.2010.

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providências concretas para a prestação dos serviços correspondentes a esses direitos.

B – Boa parte das decisões do STF que menciona direitos à

educação enfrenta, na realidade, conflitos federativos, não abordando o direito sob a

perspectiva do cidadão. Frequentemente, porém, a competência comum atribuída aos

entes federativos em matéria de educação, ao invés de multiplicar os responsáveis pelo

serviço perante o cidadão, acaba por tornar mais difícil a exigibilidade do direito perante

qualquer deles.

C – Observa-se silêncio na jurisprudência do STF acerca dos

seguintes direitos à educação: (i) direito de acesso à educação obrigatória noturna de

forma geral (ensino fundamental e médio) (art. 208, I e VI); (ii) direito ao ensino médio

regular (isto é: diurno) (art. 208, II e VI); (iii) direito dos portadores de deficiências de

terem acesso a atendimento educacional especializado (art. 208, III); e (iv) direito a

programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e

assistência à saúde (art. 208, VII).

D – O silêncio do STF sobre os direitos referidos acima não

decorre do seu atendimento ótimo pelo Poder Público. Os números, embora poucos e

desorganizados, permitem apurar que mais de 20% da população adulta é analfabeta

funcional, que apenas metade dos jovens frequenta o ensino médio e que apenas 32%

das crianças e adolescentes portadores de deficiência recebem algum tipo de

atendimento educacional (aqui já incluído o atendimento por instituições privadas).

Nesse contexto, o silêncio do STF provavelmente significa que aqueles que poderiam

levar tais assuntos à sua apreciação – em particular o Ministério Público e a Defensoria

Pública – não o fizeram.

SAIMONLIMA
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