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Auschwitz

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Page 1: Auschwitz

AUSCHWITZ – Cidade tranquila (Primo Levi)

Pode surpreender que, num campo de concentração, um dos sentimentos mais

frequentes seja a curiosidade. E porém sentíamo-nos não só assustados, humilhados

e desesperados, mas também curiosos: com fome de pão, mas também de

entendimento. O mundo à nossa volta parecia virado do avesso, e por isso alguém

devia tê-lo virado do avesso, alguém que por sua vez também devia estar virado do

avesso: um, mil, um milhão de seres anti-humanos, criados para torcer o direito, para

sujar o limpo. Era uma simplificação ilegítima, mas naquele tempo e naquele lugar não

tínhamos capacidade para ideias complexas.

Em relação aos senhores do mal, esta curiosidade, que admito conservar ainda e que

não se limita aos chefes nazis, ficou suspensa. Saíram centenas de livros sobre a

psicologia de Hitler, Stalin, Himmler, Goebbels, e li dezenas deles sem que nenhum

me satisfizesse. É provável que se trate de uma insuficiência de base da página

documental, que não tem nunca o poder de nos devolver o âmago de um ser humano.

Para isso, mais do que o historiador ou o psicólogo, estão aptos o dramaturgo ou o

poeta.

No entanto, a minha pesquisa não foi completamente falhada: um destino estranho,

provocatório até, pôs-me há anos na senda de “um do outro lado”, não certamente um

grande mal, talvez nem sequer um ser cruel de pleno direito, mas ainda assim uma

amostra e uma testemunha. Uma testemunha contra a sua vontade, que não o

desejava ser, mas que depôs sem querer e talvez até sem saber que o fazia. Aqueles

que testemunham com o seu comportamento são as testemunhas mais valiosas,

porque verídicas.

Era um quase-eu, um outro eu virado ao contrário. Éramos da mesma idade, não

tínhamos muita diferença nos estudos, e nem sequer diferença de carácter. Ele,

Mertens, jovem químico, alemão e católico, e eu, jovem químico, italiano e judeu.

Éramos potencialmente colegas: de facto, trabalhávamos na mesma fábrica, e eu

estava do lado de dentro do arame farpado, enquanto ele ficava do lado de fora. Mas

trabalhavam quarenta mil pessoas no estaleiro da fábrica Buna-Werke de Auschwitz, e

é improvável – e de qualquer modo impossível confirmar hoje – que nós os dois, ele

Oberingenieur e eu químico-escravo, nos tenhamos encontrado. Depois disso também

nunca nos cruzámos.

O que sei sobre ele chegou-me através de cartas de amigos comuns: o mundo às

vezes revela-se ridiculamente pequeno, a ponto de permitir que dois químicos de

países diferentes possam estar ligados por uma corrente de conhecidos, e que estes

se prestem a tecer uma rede de notícias trocadas entre si que é um pobre substituto

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do encontro direto, e no entanto é melhor do que a recíproca ignorância. Por este

caminho aprendi que Mertens tinha lido os meus livros sobre o Campo de

Concentração, e provavelmente também outros, porque não era cínico nem insensível:

tinha tendência para recusar um certo segmento do seu passado, mas era

suficientemente evoluído para se abster de mentir a si próprio. Não oferecia a si

próprio mentiras, e sim lacunas e espaços em branco.

A primeira notícia que tenho dele vem do final de 1941, época de reflexão para todos

os alemães ainda capazes de pensar e de resistir á propaganda: os japoneses

espalham-se vitoriosos por todo o sudoeste asiático, os alemães atacam Leninegrado

e estão às portas de Moscovo, mas a era dos Blitz acabou, o colapso da Rússia não

aconteceu, e começaram, pelo contrário, os bombardeamentos aéreos das cidades

alemãs. Agora a guerra é um assunto que diz respeito a todos, em todas as famílias

há pelo menos um homem na frente de batalha, e nenhum homem na frente de

batalha pode estar certo de que a sua família está incólume: dentro de casa a retórica

belicista já não vigora.

Mertens é químico numa fábrica metropolitana de borracha, e a direcção da fábrica

faz-lhe uma proposta que é quase uma ordem: terá vantagens na sua carreira, e

também vantagens políticas, se aceitar transferir-se para a fábrica Buna-Werke de

Auschwitz. A zona é tranquila, distante da frente de batalha e fora do raio dos

bombardeiros, o trabalho é o mesmo, o salário é melhor, nenhuma dificuldade para o

alojamento: muitas casas polacas estão vazias…Mertens discute com os colegas; a

maior parte desaconselha-o, não se troca o certo pelo incerto, e além disso a fábrica

Buna-Werke fica numa região feia, pantanosa e insalubre. Insalubre também do ponto

de vista histórico, a Alta Silésia é um daqueles lugares da Europa que mudaram de

dono várias vezes, e que estão habitados por pessoas misturadas e inimigas entre si.

Mas perante o nome de Auschwitz ninguém tem objecções: é ainda um nome vazio,

que não faz eco; uma das muitas cidades polacas que depois da ocupação alemã

mudaram de nome. Oswiecim tornou-se Auschwitz, como se bastasse isso para tornar

alemães os polacos que vivem ali há séculos. É uma cidade como muitas outras.

Mertens pensa no assunto: está noivo, e instalar-se na Alemanha, debaixo dos

bombardeamentos, é imprudente. Pede uma licença e vai lá ver. Do que terá visto

nesta primeira exploração, nada se sabe: o homem voltou, casou, não falou com

ninguém, e foi de novo para Auschwitz com a mulher e os móveis para se estabelecer

por lá. Os amigos – os que, como dizia, me contaram em cartas esta história –

convidaram-no a falar, mas ele não falou.

Nem falou durante o seu regresso á pátria, no verão de 1943, para férias (porque

mesmo na Alemanha nazi em guerra, em agosto as pessoas iam de férias). Agora o

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cenário mudou. O fascismo italiano, vencido em todas as frentes, desfez-se, e os

aliados sobem a península; a batalha aérea contra os ingleses está perdida, e nenhum

canto da Alemanha está a salvo das impiedosas represálias aliadas; os russos não só

não caíram, mas em Estalinegrado infligiram a mais devastadora das derrotas aos

alemães e ao próprio Hitler que dirigiu as operações com a obstinação dos loucos.

O casal Mertens é alvo de uma curiosidade extremamente prudente, porque chegados

a este ponto, e apesar de todas as precauções, Auschwitz já não é um nome vazio.

Alguns boatos circularam, imprecisos mas sinistros: deve ser posta ao lado de Dachau

e Buchenwald, diz-se aliás que talvez seja pior. É um daqueles lugares sobre os quais

é arriscado fazer perguntas, mas estamos entre amigos íntimos, de longa data:

Mertens vem de lá, tem de saber alguma coisa, e se sabe tem de contar.

Enquanto se cruzam as conversas de todas as salas, as mulheres falando de

evacuações e do mercado negro, e os homens do seu trabalho, alguém conta em voz

baixa a última história antinazi e Mertens afasta-se. Na sala do lado há um piano, ele

toca e bebe, volta de vez em quando à sala só para encher mais um copo. À meia-

noite está bêbado, mas o dono da casa não o perdeu de vista; arrasta-o para a mesa e

diz-lhe com todas as letras: - Agora sentas-te aqui e diz-nos o que raio se passa lá

para os teus lados, e porque é que tens de te embebedar em vez de falar connosco.

Mertens sente-se dividido entre a embriaguez, a prudência e uma certa necessidade

de se confessar. – Auschwitz é um Campo, - diz- aliás uma rede de Campos. Um é

mesmo contíguo à fábrica. Há homens e mulheres sujos, esfarrapados, não falam

alemão. Fazem os trabalhos mais cansativos. Nós não podemos falar com eles. –

Quem é que vos proibiu? – A Direção. Quando chegámos disseram-nos que são

pessoas perigosas, bandidos e subversivos. – E tu nunca falaste com eles? –

perguntou o dono da casa. – Não – respondeu Mertens enchendo outro copo. Aqui

interveio a jovem senhora Mertens: - eu encontrei uma mulher que limpava a casa do

Diretor. Disse-me só “Frau, Brot”: ‘Senhora, pão’, mas eu… - Mertens não devia estar

assim tão bêbado, porque disse secamente à mulher: - Para com isso – e, dirigindo-se

aos outros, - não querem mudar de assunto?

Não sei muito sobre o comportamento de Mertens depois da queda da Alemanha. Sei

que ele e a mulher, como muitos alemães das regiões orientais, fugiram perante os

soviéticos ao longo das intermináveis estradas da derrota, cheias de neve, de

destroços e mortos; e que em seguida ele retomou o seu emprego de técnico, mas

recusando contactos e fechando-se cada vez mais.

Falou um pouco mais muitos anos após o fim da guerra, quando já não havia a

Gestapo para lhe meter medo. A interroga-lo, desta vez, era um ‘especialista’, um ex-

prisioneiro que hoje é um famoso historiador dos Campos, Herman Langbein. A

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perguntas precisas, respondeu que tinha aceitado mudar-se para Auschwitz para

evitar que em vez dele fosse um nazi; que com os presos nunca tinha falado por medo

de represálias, mas que tinha sempre tentado aliviar as suas condições de trabalho;

que das câmaras de gás naquele tempo não sabia nada porque não tinha perguntado

nada a ninguém. Não percebia que a sua obediência era uma ajuda concreta ao

regime de Hitler? Sim, hoje sim, mas não naquela altura. Nunca lhe ocorrera.

Nunca tentei encontrar-me com Mertens. Sentia um retraimento complexo, de que a

aversão era apenas uma de várias componentes. Há alguns anos, escrevi-lhe uma

carta. Dizia-lhe que se Hitler ganhou o poder, devastou a europa e levou a Alemanha á

ruína, foi porque muitos bons cidadãos alemães se comportaram como ele,

procurando não ver e calando tudo o que viam. Mertens não me respondeu, e morreu

poucos anos mais tarde.

8 de março de 1984.

in ‘O último Natal de guerra’ (Primo Levi)

Primo Levi (1919-1987) – Oriundo de uma família italiana judia liberal cedo conviveu

com o anti-semitismo. Em 1938, pouco depois de entrar na Universidade de Turim

para cursar Química, o governo fascista proibia os judeus de frequentar as escolas

públicas. Apesar das dificuldades em encontrar orientador para a sua tese, Primo Levi

terminou os seus estudos com mérito; no entanto o seu diploma tem impressa a

designação “raça judia”. Em 1943 participa no movimento de resistência italiano, foi

feito prisioneiro pela milícia fascista e a sua origem judia leva a que seja transportado

para um campo de prisioneiros em Fossoli (Modena). Os prisioneiros desse campo

são transportados para Auschwitz; Levi permaneceu aí durante 10 meses, até ser

libertado pelo Exército Vermelho. Dos 650 judeus italianos naquele campo de morte,

sobreviveram apenas 20.

Levi dedicou grande parte da sua vida à divulgação do seu testemunho como

prisioneiro.