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ARTIGO: FINANCIAMENTO DE PARTIDOS POLÍTICOS NAS ELEIÇÕES DE 2008 E 2012: ANÁLISE DAS EMPRESAS DOADORAS

ISSN 2236-5710 Cadernos Gestão Pública e Cidadania, São Paulo, v. 21, n. 68, Jan./Abr. 2016

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FINANCIAMENTO DE PARTIDOS POLÍTICOS NAS ELEIÇÕES DE 2008 E 2012:

ANÁLISE DAS EMPRESAS DOADORASFINANCING POLITICAL PARTIES IN THE 2008 AND 2012 ELECTIONS: AN ANALYSIS OF DONOR COMPANIES

LA FINANCIACIÓN DE LOS PARTIDOS POLÍTICOS EN LAS ELECCIONES DE 2008 Y 2012: ANÁLISIS DE LAS EMPRESAS DONANTES

Resumo: A motivação deste trabalho foi a observação do processo eleitoral sob o ponto de vista do usuário externo das informações contábeis. Para tanto, buscou-se investigar como se dá a divulgação de dados sobre o processo eleitoral pelas empresas listadas na BM&FBovespa, que fizeram doações a partidos políticos nas eleições municipais de 2008 e 2012. Por meio do sistema de Divul-gação Externa, foram obtidas as Informações Anuais e os Demonstrativos Financeiros Padronizados de 11 empresas selecionadas, analisando-se os dados referentes ao controle sobre outras entidades, além da DR, DFC, Nota Explicativa e Relatório da Administração das empresas em busca de referência a doações efetuadas a partidos políticos. Concluiu-se que apenas uma das 11 empresas sele-cionadas evidenciou a realização de doações a partidos políticos por meio dos demonstrativos e apenas no ano de 2008, não sendo possível identificar os valores doados nem os critérios adotados para escolha dos partidos contemplados.

Palavras-chave: evidenciação; partidos políticos; informação contábil; eleições; transparência.

Jardson Edson Guedes da Silva Almeida - [email protected] do Centro Universitário Tiradentes, Assistente I, Maceió, AL, Brasil.

Luiz Antônio Félix Júnior - [email protected] Internacional da Paraíba, Escola de Negócios, João Pessoa, PB, Brasil.

Umbelina Cravo Teixeira Lagioia - [email protected] Universidade Federal de Pernambuco, Doutora no Programa de Pós-Graduação em Ciências Contábeis, Recife, PE, Brasil.

Juliana Araújo - [email protected] em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.

João Gabriel Nascimento Araújo - [email protected] em Ciências Contábeis pela Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.

Artigo submetido no dia 15-04-2015 e aprovado em 19-01-2016.

DOI: http://dx.doi.org/10.12660/cgpc.v21n68.48758

Esta obra está submetida a uma licença Creative Commons

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AbstractThe motivation of this study was to observe the electoral process from the point of view of the external user of accounting information. Therefore, we sought to investigate how information about the electoral process is disclosed by the companies involved in companies listed on the BM & FBOVESPA and that made donations to political parties in the municipal elections of 2008 and 2012. Annual Information and the Standardized Financial Statements of eleven selected companies were obtained from the External Disclosure system and an analysis was made of the data for controlling companies, in addition to the DR, DFC, Explanatory Note and Management Report of the companies, in a search for reference to donations made to political parties. The conclusion was that only one of the eleven companies selected produced evidence of making donations to political parties by way of their statements and only in 2008; it was impossible to identify what amounts were donated or the criteria used in selecting the parties that benefited.Keywords: disclosure; political parties; accounting information; elections; transparency.

ResumenLa motivación de este estudio fue la observación del proceso electoral desde el punto de vista del usuario externo de la información contable. Por lo tanto, tratamos de investigar cómo se obtuvo la difusión de información sobre el proceso electoral por las empresas que participan en empresas que cotizan en el mercado BM&FBOVESPA que hicieron donaciones a los partidos políticos en las elec-ciones municipales de 2008 y 2012. A través del Sistema de difusión externa de la Información Anual y los Estados Financieros Estandarizados de once empresas seleccionadas, analizamos los datos para el control de las empresas distintas de la DR, DFC, Note y el informe de gestión de las empresas que buscan referencia a las donaciones a los partidos políticos. Se concluyó que sólo una de las once empresas seleccionadas destacó la realización de donaciones a los partidos políticos a través de los estados contables y sólo en 2008, no siendo posible identificar que donó los valores o los criterios utilizados para seleccionar las partes cubiertas.Palabras clave: divulgación; partidos políticas; información contable; elecciones; transparencia.

1 INTRODUÇÃO

A receita dos partidos políticos tem sua ori-gem em doações e contribuições de recur-sos financeiros de pessoas físicas e jurídi-cas, além das cotas do Fundo Especial de Assistência aos Partidos Políticos (Fundo Partidário), constituído por multas e penali-dades eleitorais, recursos financeiros legais, doações espontâneas privadas e dotações orçamentárias públicas. De acordo com os artigos 32 e 33 da Lei dos partidos políti-cos, em suas prestações de contas à Jus-tiça Eleitoral, os partidos devem apresentar a discriminação e a destinação dos valores recebidos do Fundo Partidário, além do va-lor e da origem das contribuições e doações recebidas.

A divulgação das pessoas físicas e jurídicas que realizaram essas doações é um grande

instrumento de controle social do processo eleitoral, trazendo a possibilidade de acom-panhamento pela população da movimenta-ção financeira dos partidos políticos. Porém, esse é apenas um lado da questão, visto que por si só a divulgação das empresas que con-tribuíram para as campanhas não é suficien-te para garantir a transparência do processo eleitoral. Para isso é preciso observar essa questão sob outro ponto de vista e analisar as informações das empresas que partici-pam do processo eleitoral como doadoras de recursos a candidatos ou a partidos políticos.Nem todas as empresas sofrem a imposi-ção legal de divulgação de informações ao público, entretanto as companhias de ca-pital aberto que negociam suas ações na BM&FBovespa devem cumprir algumas exi-gências no que diz respeito à divulgação de informações econômico-financeiras e ad-ministrativas sobre a entidade. Essas infor-

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mações ficam disponíveis na internet para acesso tanto pelos acionistas como pela po-pulação em geral interessada.

Schultz, Marques e Hofer (2010) comen-tam que os maiores níveis de evidenciação compulsória são registrados junto às com-panhias de capital aberto, com o objetivo de proteger interesses dos usuários externos (acionistas, associados, fornecedores, cre-dores, bancos, governo, sociedade etc.) e dar estabilidade e transparência ao mercado de capitais como um todo. Nas demais em-presas, existem diferentes níveis de eviden-ciação compulsória, geralmente bem mais modestos e, até mesmo, a desobrigação da publicação de informações a respeito da en-tidade.

Pereira (2008) comenta que a teoria contábil contemporânea se preocupa com as ques-tões sobre a quantidade e a qualidade das informações fornecidas aos usuários exter-nos à entidade empresarial. A motivação deste trabalho surge a partir desse ponto, com o propósito de observar o processo eleitoral sob o ponto de vista do usuário ex-terno das informações contábeis e investi-gar de que maneira se dá a divulgação de informações relativas ao processo eleitoral por parte das empresas nele envolvido.

Por esse motivo, o estudo objetivou analisar se as empresas listadas na BM&FBovespa que fizeram doações a partidos políticos nas eleições de 2008 e 2012 evidenciaram esse fato em seus demonstrativos financeiros.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 Segmentos especiais de listagem na BM&FBovespa

A abordagem de Governança Corporativa no Brasil está intimamente ligada ao merca-do de capitais. Lagioia (2007, p. 107) define Governança Corporativa como “conjunto de regras, normas, e práticas de conduta de-finidas pela BM&FBovespa e destinadas a oferecer maior transparência aos investido-res e melhor preço/custo de captação para as empresas.” A BM&FBovespa (2005) defi-ne que as práticas diferenciadas de gover-nança corporativa formam “um conjunto de normas de conduta para empresas, admi-nistradores e controladores, considerados importantes para a valorização das ações e outros ativos emitidos pelas companhias”.

Em 2000, foram criados os segmentos de governança corporativa para determinar às empresas já listadas na BM&FBovespa uma série de práticas e comportamentos relevantes a serem contemplados por seus gestores. Diante do elevado rigor e da ex-pectativa do não atendimento por muitas empresas quanto ao segmento Novo Mer-cado, a BM&FBovespa decidiu pela cria-ção de dois novos níveis de governança corporativa: o nível 1 e o nível 2, os quais distinguem as empresas de acordo com o grau de compromisso assumido com a prá-tica de boa governança. O Novo Mercado foi criado para constituir-se no segmento da BM&FBovespa, destinado às empresas que se comprometem com práticas e regras societárias mais rígidas do que as exigidas pela legislação brasileira. Aderindo ao Novo Mercado, as organizações deveriam expan-dir os direitos dos acionistas e divulgar suas informações de maneira ordenada e mais transparente aos usuários, otimizando a li-quidez e a valorização das ações.

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As empresas contempladas no nível 1 se comprometem, principalmente, com a re-alização de melhorias na prestação de in-formações ao mercado e com a dispersão acionária. O principal ponto a ser observado por elas se refere à qualidade e à quantida-de das informações de suas responsabili-dades quanto às Demonstrações Contábeis Trimestrais, às Demonstrações Financeiras Padronizadas e aos Informes Anuais. Tais relatórios já eram obrigatórios às empresas antes do surgimento dos níveis diferencia-dos de governança, assim, a mudança está na profundidade da evidência de tais infor-mações. Isso pode explicar o porquê de algumas empresas terem aderido ao Nível 1 no primeiro mês de existência, junho de 2001.

Outra vertente a ser analisada nas normas iniciais, em relação ao primeiro estágio de transição para o Novo Mercado, refere-se ao percentual de ações emitidas que deve-ria permanecer em circulação, que era de, no mínimo, 25%. Tal percentual nem sempre era possível de ser atendido de imediato, o que provocou a reformulação do critério e o percentual passou a ser contemplado como meta a ser atingida em um prazo negociado entre a BM&FBovespa e a própria empresa.No nível 2, além da aceitação das obriga-ções contidas no nível 1, a empresa e seus gestores devem utilizar um conjunto bem mais amplo de práticas de governança e de direitos adicionais para os acionistas mino-ritários, uma vez que, além de cumprirem as exigências do Nível I, precisam divulgar suas informações contábeis anuais segun-do os padrões estabelecidos pelo Interna-tional Accounting Standards Board (IASB) ou pelo Financial Accounting Standards Bo-ard (FASB). Ademais, há a exigência de ex-

tensão das mesmas condições obtidas pelos gestores quando da venda da companhia para todos os acionistas detentores de ações ordinárias e de, no mínimo, 70% desse valor para os detentores de ações preferenciais.

A criação do Novo Mercado marcou uma nova fase do mercado de capitais no Brasil, onde o setor privado assumiu a liderança na condução das reformas. Essa iniciativa foi bem recebida por investidores, empre-sas, órgãos reguladores e governo e mar-cou também uma mudança de postura da BM&FBovespa, que, como o contrato de adesão é administrado por ela, passa a ser a guardiã das práticas de governança corpora-tiva. Isso sugere a adoção da prática da au-torregulação e que a promoção do mercado de capitais pode ser feita sem as amarras do Estado. Deve-se notar que o Novo Mercado não requer um sistema operacional diferen-ciado do mercado tradicional. Ele funciona como um selo de qualidade, cujo valor reside nas obrigações contratuais assumidas pela empresa e de acordo como a BM&FBovespa administra tais contratos. As companhias que aderirem ao Novo Mercado devem seguir re-gulamentações mais rígidas que as do Nível 2, porém, tendo como principal diferença o fato de ficarem restritas à emissão de ações ordinárias.

Inserida nesse contexto e para resolver os conflitos que surgirem entre acionistas e companhias que aderirem ao Nível 2 ou ao Novo Mercado, a BM&FBovespa criou a Câ-mara de Arbitragem, objetivando determi-nar a solução adequada de cada caso com tempestividade, propiciando melhor eficiên-cia na resolução de controvérsias, já que os processos tendem a ser concluídos mais ra-pidamente, pois são tratados na esfera pri-

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vada, por intermédio de árbitros. A seguir, apresenta-se de forma simplificada uma

comparação entre os segmentos especiais de listagem na BM&FBovespa.

A entrada em um desses segmentos significa para a empresa ingressante, a conquista de uma melhora de imagem para com a socie-dade e com o mercado, uma vez que passa a ser de conhecimento público a aderência de um exigente conjunto de regras societá-rias, conhecidas como “práticas diferencia-das de governança corporativa”. Inicialmen-te, a definição de governança corporativa era utilizada pelo prisma da transparência das práticas contábeis de empresa de capi-tal aberto. Atualmente, é vista como aspecto basilar para o sucesso das organizações.

2.2 Relatório da administração

Para Hendriksen e Van Breda (1999), a divul-

gação de informações financeiras tradicio-nalmente visa dar suporte à tomada de deci-sões dos investidores sobre a melhor forma de alocação de seus recursos. Entre as vá-rias formas de divulgação de informações, Iudícibus (2010) relaciona as seguintes: a) forma e apresentação das demonstrações contábeis; b) informações entre parênteses; c) notas explicativas; d) quadro e demons-trativos suplementares; e) comentários do auditor; f) relatório da administração.

Conforme explicam Iudícibus, Martins e Gel-bcke (2010), no Brasil, existe um conjunto de documentos apreciados pela Assembleia Geral que representam a “prestação de con-tas” das sociedades anônimas por ações. E

Tabela 1. Segmentos especiais de listagem na BM&FBovespa

Nível 1 Nível 2 Novo Mercado

Característica es-sencial Transparência. Transparência e mais poder

aos minoritáriosTransparência e poder igual para todos os acionistas

Características das ações emitidas

Permite a exis-tência de ações ordinárias e ações preferenciais

Permite a existência de ações ordinárias e ações preferenciais com direitos adicionais

Permite apenas a existência de ações ordi-nárias

Conselho de admi-nistração

Mínimo de três membros confor-me legislação

Mínimo de cinco membros, sendo pelo menos um independente

Demonstrações financeiras anuais em Padrão Interna-cional

Facultativo US GAAP ou IFRS

Adoção da câmara de arbitragem do mercado

Facultativo Obrigatório

Percentual mínimo de ações em circu-lação

No mínimo 25% de free float

Fonte: Elaboração do autor com base nas informações da BM&FBovespa

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entre eles está o Relatório da Administra-ção. Esse conjunto de documentos é de pu-blicação obrigatória segundo o art. 133 da Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, alterado pela Lei n. 10.303/01.

Yuthas, Rogers e Dillard (2002) conside-ram que o texto contido nos relatórios da administração é amplamente lido por uma variedade de stakeholders e analistas. Dis-torções significativas feitas pelos gestores podem trazer malefícios a longo prazo se for descoberto que essas distorções infor-macionais teriam afetado a percepção dos demonstrativos financeiros.

A prática de realizar relatos sobre opera-ções da companhia é realizada desde a dé-cada de 1960 nos Estados Unidos, por meio do ínterim e do segment reporting. O relató-rio de administração surgiu com várias em-presas que, por atuarem em diferentes seg-mentos econômicos, passaram a evidenciar voluntariamente essas informações com as demonstrações financeiras anuais.

Em 1970, esse relatório foi regulamentado pela SEC e passou a integrar os relatórios financeiros anuais das companhias. Apesar dos benefícios, como a apresentação de “dados escondidos” pelas demonstrações financeiras, Delaney et al. (1996) apresen-tam alguns argumentos usados nos Esta-dos Unidos contra a publicação das ope-rações da empresa, como a evidenciação de informações aos concorrentes, sindica-tos e governo, que podem trazer danos à empresa, e essa divulgação desencoraja a administração a tomar decisões com risco razoável em virtude da obrigação de repor-

tar resultados desfavoráveis.

No Brasil, o art. 133 da Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, alterado pela Lei n. 10.303/01, determina também que os ad-ministradores divulguem até um mês antes da assembleia geral ordinária o Relatório da Administração contendo informações sobre “os negócios sociais e os principais fatos administrativos do exercício findo”. No entan-to, uma regulamentação mais clara sobre o conteúdo do RAd só ocorreu em 1987 com o Parecer de Orientação n. 15/87 da Comis-são de Valores Mobiliários (CVM). Em 3 de outubro de 2005, a CVM, por meio da Deli-beração n. 488, aprovou o Pronunciamento Ibracon NPC n. 27, que comenta sobre o con-teúdo mínimo dos relatórios.

Outro ponto que deve ser observado na con-fecção dos relatórios diz respeito ao conte-údo, não sendo válida a simples apresenta-ção de percentuais que podem ser obtidos por qualquer leitor das demonstrações con-tábeis, visto que a informação relevante diz respeito ao comentário ou apreciação dos fatores endógenos e exógenos que influen-ciaram as variações incorridas.

O relatório da administração, como peça integrante das demonstrações financeiras, deverá complementar as peças contábeis e as notas explicativas, observada a devida coerência com a situação nelas espelhada, formando um quadro completo das posturas e do desempenho da administração na ges-tão e alocação dos recursos que estão a elas confiados. A seguir, apresenta-se uma tabela que contempla tais informações.

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Tabela 2. Informações obrigatórias contidas no relatório da administração

Elemento Descrições

Descrição dos negócios, produtos e servi-ços

Ramo da atividade da companhia

Principais produtos

Áreas de atuação

Dados físicos sobre vendas

Informações sobre o segmento de atuação

Comentários sobre a conjuntura econômica geral

Variáveis econômicas

Variáveis legais e fiscais

Variáveis governamentais

Variáveis políticas

Variáveis ambientais

Variáveis sociais

Outros fatores exógenos

Recursos Humanos

Quantidade de empregados

Divisão geográfica da mão de obra

Nível educacional

Investimentos em treinamento

Investimentos

Inversões de recursos em imobilizado

Aplicações no diferido

Outras inversões para futura imobilização

Pesquisa e desenvolvimento Atual estágio dos projetos, recursos alocados e montantes aplicados

Novos produtos e serviços Novos produtos e serviços colocados no mercado

Expectativas relativas a esses produtos e serviços

Proteção ao meio ambiente Inversões em projetos de proteção ecológica

Objetivos das inversões e valores envolvidos

Reformulação administrativa ou societária

Mudanças efetuadas

Reorganizações societárias

Programas de racionalização

Investimentos em controladas e coligadas Objetivos pretendidos com as inversões ou alienações realizadas nas controladas ou coligadas

Direitos dos acionistas e dados do mercado

Políticas relativas à distribuição de dividendos

Desdobramentos e grupamentos de ações

Valor patrimonial por ação

Volume negociado no período

Cotação das ações em bolsa de valores

Perspectivas e planos para o exercício em curso e futuros

Expectativas quanto aos exercícios correntes e futuros com base em premissas e fundamentos explicitamente colocados

Empresas investidoras Informações anteriormente recomendadas relativas a empresas investidas

Fonte: Adaptado de Iudicibus, Martins e Gelbcke apud Pereira (2008, p. 33)

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Para Hendriksen e Van Breda (1999) é muito forte a tendência de que as companhias di-vulgarão toda a informação necessária para o bom funcionamento do mercado. Embora não exista um consenso sobre quais seriam

as informações de natureza voluntária em relatórios anuais das companhias. A seguir, apresenta-se um quadro contemplando tais informações.

Tabela 3. Informações voluntárias contidas no relatório da administração

Elemento Descrições

Informações gerais e não financei-ras

Principais mercados e market share

Estratégia (metas e objetivos)

Ambiente de negócios e fatores críticos de acesso

Eventos importantes no ano

Estrutura organizacional

Relatório social ou demonstração do valor adicionado

Eficiência operacional

Informações financeiras adiciona-das

Unidades vendidas

Retorno sobre o patrimônio

Retorno sobre o ativo

Ebitda

Demonstração do fluxo de caixa

Análise de tendências e discussão e análise gerencial

Tendência da receita ao longo dos últimos anos

Vendas por região e/ou unidade de negócio

Tendência do lucro operacional ao longo dos últimos anos

Investimento por região e/ou unidade de negócio

Tendência de comportamento das ações e retorno total para o acionista

Discussão sobre mudanças no lucro operacional

Risco, criação de valor e projeções

Uso e implementação de gestão de risco

Exposição ao risco cambial

Medidas quantitativas de criação de valor para o acionista

Compensação gerencial

Perspectivas de novos projetos

Projeções de lucro, vendas e crescimento

Fonte: Adaptado de Lanzana apud Pereira (2008, p. 35)

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3. METODOLOGIA

Objetivando analisar se as empresas lista-das na BM&FBovespa que fizeram doações a partidos políticos nas eleições municipais de 2008 e 2012 evidenciaram esse fato em seus demonstrativos financeiros, o estudo utilizou-se de uma metodologia que seguiu uma estratégia exploratória e descritiva, ten-do em vista que o propósito desta pesquisa foi explorar uma realidade não conhecida.

A base inicial de dados foi composta pelos processos de prestação de contas anuais dos diretórios nacionais de cada partido po-lítico submetidos ao Tribunal Superior Eleito-ral (TSE), disponíveis em <www.tse.jus.br>, referentes aos anos de 2008 e 2012, ou seja, apenas de eleições municipais, não levando em consideração os dados corresponden-tes às eleições de 2010. Em cada processo consta uma listagem constituída dos valores recebidos por doação e os respectivos doa-dores, estando esses valores apresentados em ordem cronológica por dia do ano. Para se definir as empresas a serem pesquisa-das em relação às informações referentes ao ano de 2008, realizou-se uma separação entre pessoas físicas e jurídicas, por meio de uma reorganização dos dados de manei-ra a descobrir quanto cada uma delas doou aos partidos políticos. Obteve-se então uma planilha com mais de 300 linhas, contendo os nomes de cerca de 230 empresas.

Buscou-se então averiguar quais dessas em-presas estavam listadas na BM&FBovespa, além de informações a respeito do controle de cada uma, pois uma empresa não listada poderia ser controlada por outra que esti-vesse na lista. Foram excluídas da base de dados as empresas que não estavam elen-

cadas na BM&FBovespa, além daquelas que não eram controladas por alguma em-presa que fosse listada.

Estabeleceu-se então um recorte pelo crité-rio do valor total das doações, com intuito de obter as doações mais significativas. Foram excluídas da base de dados as empresas que realizaram doações menores que R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). Dessa forma obteve-se a planilha final, composta de 11 empresas. Para análise dos valores correspondentes às doações corresponden-tes às eleições de 2012, foram considera-das apenas as 11 empresas pesquisadas em 2008, conforme o critério antes exposto, a saber: Andrade Gutierrez Participações S/A, Banco Bradesco S/A, Banco Santan-der (Brasil) S/A, Camargo Correia Cimen-tos S/A, Companhia Siderúrgica Nacional, Contax Participações S/A, Gerdau S/A, JBS S/A, JHSF Participações, Suzano Papel e Celulose S/A e Vale S/A.

Por meio do sistema de Divulgação Externa (DivExt) da BM&FBovespa, foram obtidas as Informações Anuais (IAN) e os Demons-trativos Financeiros Padronizados (DFP) re-ferentes aos anos de 2008 e 2012 das 11 empresas selecionadas, analisando-se os dados das IAN referentes ao controle so-bre outras empresas e, quanto aos DFP, as Demonstrações do Resultado do Exercício, as Demonstrações do Fluxo de Caixa, as Notas Explicativas e os Relatórios da Admi-nistração em busca de alusões a doações efetuadas a partidos políticos.

4. ANÁLISE DE RESULTADOS

O valor total de doações recebidas pelos partidos políticos nas eleições do ano de

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2008 foi R$ 143.651.817,00, dos quais R$ 52.935.660,00 (36,85%) foram doados pe-las empresas listadas na BM&FBovespa, que foram selecionadas para as análises deste estudo, enquanto R$ 90.716.157,00 (63,15%) foram doados pelas demais em-presas.

Já em relação ao ano de 2012, as doações de pessoas jurídicas aos partidos políticos brasileiros totalizaram R$ 451.356.543,94; valor bastante superior àqueles arrecadados quatro anos antes. Desse montante, as 11 empresas pesquisadas foram responsáveis pela transferência de R$ 113.825.000,00, o

que representa 25,21% do total. Esse valor corresponde a mais que o dobro das doa-ções feitas por elas nas eleições municipais anteriores.

A seguir são apresentados os valores das doações efetuadas pelas 11 empresas aos partidos políticos. Os valores explicitados são o resultado da soma das doações efe-tuadas pelas empresas selecionadas e por suas controladas. Para melhor visualização dos dados, nesta tabela não foi considera-do o destino das doações efetuadas, sendo expostos apenas os valores doados em sua totalidade.

Tabela 4. Empresas e respectivas doações aos partidos políticos

Empresas 2008 2012 TotalAndrade Gutierrez Participações S/A

13.475.000,0056.785.000,00 70.260.000,00

Banco Bradesco S/A

9.050.000,002.575.000,00 11.625.000,00

Banco Santander (Brasil) S/A

4.730.000,004.550.000,00 9.280.000,00

Camargo Correa Cimento S/A

2.500.000,0013.340.000,00 15.840.000,00

Companhia Side-rúrgica Nacional

1.535.660,00- 1.535.660,00

Contax Participa-ções S/A

5.500.000,005.840.000,00 11.340.000,00

Gerdau S/A 3.400.000,00 1.180.000,00 4.580.000,00JBS S/A 1.500.000,00 11.660.000,00 13.160.000,00JHSF Participa-ções

1.200.000,001.400.000,00 2.600.000,00

Suzano Papel e Celulose S/A

2.515.000,00675.000,00 3.190.000,00

Vale S/A 7.530.000,00 15.820.000,00 23.350.000,00Total 52.935.660,00 113.825.000,00 166.760.660,00

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do site do TSE

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ISSN 2236-5710 Cadernos Gestão Pública e Cidadania, São Paulo, v. 21, n. 68, Jan./Abr. 2016

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Nas Eleições Municipais de 2008, das 11 empresas selecionadas para este trabalho de pesquisa, três fizeram doações a apenas um partido político: Camargo Correa Cimen-tos S/A, JBS S/A e JHSF Incorporações. As demais distribuíram suas doações a mais de um partido. Observou-se ainda que todas as oito empresas que diversificaram suas doações ofereceram quantias ao DEM e ao PT. Apenas a JBS S/A e a Camargo Correa Cimentos S/A não doaram valores ao DEM, assim como apenas a JHSF Incorporações S/A e a Camargo Correa Cimentos S/A não fizeram doações ao PT.

Dos oito partidos políticos contemplados com doações das empresas selecionadas, o PT foi o partido que recebeu mais doa-ções, somando R$ 24.300.000,00. Por ou-

tro lado, o PTB foi o partido que arrecadou menos doações, totalizando R$ 750.000,00. Percebeu-se certa centralização das quan-tias doadas, pois a soma dos recebimentos pelos cinco partidos com menores doações não alcança o montante adquirido pelo ter-ceiro partido com maiores valores doados. Em se tratando de valores doados em 2012, os partidos que menos receberam recursos foram o PEN e o PPL, com R$ 50.000,00 e 100.000,00 respectivamente. O partido que mais recebeu doações de empresas listadas na Bolsa foi o PMDB, somando R$ 33.390.000,00.

Os dados percentuais da distribuição dos valores recebidos por partido político podem ser visualizados nos Gráfico 1 e Gráfico 2:

Gráfico 1. Distribuição percentual das doações entre os partidos políticos em 2008

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do site do TSE

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Gráfico 2. Distribuição percentual das doações entre os partidos políticos em 2012

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do site do TSE

A seguir, são apresentados os dados em de-talhe sobre as doações, além do resultado das análises dos demonstrativos financeiros de cada empresa selecionada neste estudo.

Todas as doações da Andrade Gutierrez Participações S/A foram realizadas por meio de sua controlada Construtora Andra-de Gutierrez S/A, que também foi respon-sável pela maior soma doada a um partido político no ano de 2008, destinada ao PT, no valor de R$ 5.850.000,00. Além disso, foi a empresa que teve a maior soma doada, em comparação com as demais, totalizando o valor de R$ 13.475.000,00. Relativamen-te ao ano de 2012, a empresa continuou sendo a que proporcionou o maior volume de doações, atingindo R$ 56.785.000,00. O Partido que mais recebeu recursos vin-dos da referida empresa foi o PMDB (R$

15.875.000,00). A companhia não faz parte de nenhum segmento especial de listagem na BM&FBovespa. Na análise das demons-trações contábeis inseridas nos DFP publi-cados pela empresa, além do relatório da administração, não foi encontrada nenhuma referência a doações realizadas a partidos políticos em nenhum dos anos.

O Banco Bradesco S/A fez doações, no ano de 2008, por meio das controladas Banco Al-vorada S/A, responsável por 57% delas, e Alvorada Cartões Crédito e Financiamentos S/A, por 43%, um total de R$ 9.050.000,00. A companhia faz parte do Nível Diferencia-do de Governança Corporativa – Nível 1 na BM&FBovespa. Na análise das demonstra-ções contábeis inseridas nos DFP publica-dos pela empresa, além do relatório da ad-ministração, não foi encontrada nenhuma

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referência a doações realizadas a partidos políticos. No ano de 2012 o Banco foi res-ponsável pela doação de R$ 2.575.000,00 aos partidos políticos. As maiores doações foram realizadas ao DEM (R$ 1.450.000,00) e ao PMDB (R$ 625.000,00).

O Banco Santander S/A doou um to-tal de R$ 4.730.000,00 em 2008 e R$ 4.550.000,00 em 2012. A companhia faz parte do Nível Diferenciado de Governança Corporativa – Nível 2 na BM&FBovespa. Na análise das demonstrações contábeis in-seridas nos DFP publicados pela empresa, além do relatório da administração, não foi encontrada nenhuma referência a doações realizadas a partidos políticos.

As doações da Cia Siderúrgica Nacional somaram R$ 1.535.660,00 em 2008, dos quais R$ 1.235.660,00 foram doados pela sua controlada Galvasud S/A. A companhia não faz parte de nenhum segmento espe-cial de listagem na BM&FBovespa. Na aná-lise das demonstrações contábeis inseridas nos DFP publicados pela empresa, além do relatório da administração, não foi encontra-da nenhuma referência a doações realiza-das a partidos políticos.

A Contax Participações foi a empresa que fez doações à maior quantidade de parti-dos políticos nas eleições de 2008, num total de oito. Todas as doações foram fei-tas por meio de sua controlada TNL Con-tax S/A. Em 2012 as doações somaram R$ 5.840.000,00, divididos para apenas por quatro partidos: DEM, PMDB, PSB e PSD. Quem mais recebeu recursos foi o PSD (R$ 2.130.000,00). A companhia não faz parte de nenhum segmento especial de listagem na BM&FBovespa. Na análise das demons-

trações contábeis inseridas nos DFP publi-cados pela empresa, além do relatório da administração, não foi encontrada nenhuma referência a doações realizadas a partidos políticos.

Dos R$ 3.440.000,00 doados pela Gerdau S/A em 2008, R$ 2.440.000,00 foram por meio de suas controladas Gerdau Comer-cial de Aços S/A e Gerdau Aços Longos S/A. Entre as empresas pesquisadas e conforme os dados correspondentes às doações em 2012, a Gerdau é a que provavelmente tenha estabelecido algum critério para doações a partidos políticos, haja vista os valores se-rem equivalentes, R$ 100.000,00 (PMDB e PT), R$ 150.000,00 (PP), R$ 200.000,00 (DEM e PCdoB), muito embora o PSDB te-nha recebido R$ 430.000,00. A companhia faz parte do Nível Diferenciado de Governan-ça Corporativa – Nível 1 na BM&FBovespa. Na análise das demonstrações contábeis in-seridas nos DFP publicados pela empresa, além do relatório da administração, não foi encontrada nenhuma referência a doações realizadas a partidos políticos.

As doações da Vale S/A somaram R$ 7.530.000,00 em 2008. Todas as doações foram feitas por meio de suas controladas: Minerações Brasileiras Reunidas MBR S/A, Vale Manganês S/A e Rio Doce Manganês S/A. A companhia faz parte do Nível Dife-renciado de Governança Corporativa – Nível 1 na BM&FBovespa. Em 2012, as doações totalizaram R$ 15.820.000,00. Na análise das demonstrações contábeis inseridas nos DFP publicados pela empresa, além do re-latório da administração, não foi encontrada nenhuma referência a doações realizadas a partidos políticos.

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A JHSF Incorporações S/A doou R$ 1.200.000,00 ao DEM, a JBS S/A, R$ 1.500.000,00 ao PT e a Camargo Correa Cimentos S/A, R$ 2.500.000,00 ao PSDB, em 2008. A Suzano Papel e Celulose S/A doou R$ 2.515.000,00 a dois partidos, com uma notável discrepância nos valores doa-dos a cada um. As doações realizadas por essas empresas durante o ano de 2012 são: JHSF Incorporações S/A (R$ 1.400.000,00), JBS S/A (R$ 11.660.000,00), Camargo Cor-rea Cimentos S/A (R$ 13.340.000,00) e Su-zano Papel e Celulose S/A (R$ 675.000,00). A JHSF S/A e a JBS S/A fazem parte do segmento especial de listagem Novo Mer-cado, a Camargo Correa Cimentos S/A não integra nenhum segmento especial de lista-gem e a Suzano Papel e Celulose S/A se faz parte do Nível Diferenciado de Governança Corporativa – Nível 1 na BM&FBovespa. Na análise das demonstrações contábeis inse-

ridas nos DFP publicados pelas empresas JHSF S/A, JBS S/A e Camargo Correa Ci-mentos S/A, além dos respectivos relatórios da administração, não foi encontrada nenhu-ma referência a doações realizadas a parti-dos políticos.

A Suzano Papel e Celulose S/A foi a única empresa entre as selecionadas neste estudo que apresentou algum tipo de evidenciação referente à doação realizada a partidos po-líticos. No seu relatório da administração do ano de 2008 (e apenas neste ano), ela pu-blicou o trecho reproduzido no quadro a se-guir. Apesar de se destacar das demais enti-dades, a informação publicada pela Suzano é insuficiente, pois não discrimina a quais partidos as doações foram feitas e nem são expostos quais foram os critérios adotados para a determinação dos valores doados e dos destinatários.

Quadro 1. Trecho retirado do relatório da administração da Suzano Papel e Celulose S/A – 2008

Fonte: Divulgação Externa – BM&FBovespa

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Os resultados encontrados neste estudo confirmam o que outros autores observaram ao analisar os níveis de evidenciação da in-formação no ambiente empresarial. Dantas, Zendersky e Niyama (2004) comentam que as empresas limitam-se a evidenciar o que é exigido pela legislação ou normas dos ór-gãos reguladores e relutam em aumentar o nível de evidenciação com o intuito de pro-teger informações de natureza estratégica. Dias Filho e Nakagawa (2001) mostram que mais importante do que fornecer um eleva-do número de informação é informar o que é necessário e de forma compreensível, pos-sibilitando melhores resultados no processo decisório.

A falta de esclarecimentos a respeito das doações efetuadas para financiamento de campanhas eleitorais cria um ambiente de assimetria informacional no relacionamento entre a empresa e seus usuários externos, uma vez que os gastos não podem ser vi-sualizados nos demonstrativos publicados pelas companhias. Essa assimetria se mos-tra presente pelo fato de que não é possível identificar as pessoas responsáveis pela de-cisão de realizar as doações aos partidos e os valores a serem doados, nem tampouco saber os parâmetros adotados para a entre-ga dos recursos. Pela leitura dos DFP, não é possível visualizar a relação que há entre as empresas selecionadas neste estudo e os partidos políticos, nem a motivação para elas contribuírem voluntariamente para o fi-nanciamento das campanhas eleitorais de determinado partido em detrimento de ou-tro.

Como explicar, no ano de 2008, a decisão da Suzano Papel e Celulose S/A de doar R$ 2.500.000,00 ao PT e R$ 15.000,00 ao DEM? Ou a da Vale S/A de doar R$ 5.750.000,00 ao PT e R$ 50.000,00 ao PTB? Ou a da Ger-dau, que doou R$ 1.000.000,00 ao PSDB, ao PR e ao PT? Como explicar que a Contax Participações S/A fez doações a oito parti-dos diferentes e a JHSF Incorporações S/A a apenas um? Por que a JBS S/A só fez do-ações ao PT e a Camargo Correa Cimentos S/A somente ao PSDB? Os usuários exter-nos das empresas selecionadas para este estudo que fizeram esses questionamentos ao ler os DFP ficarão sem resposta.

Durante o ano de 2012, a falta de critério nas doações, bem como a não apresenta-ção de informações nos relatórios específi-cos das referidas empresas permanecem, assim como ocorrido em 2008. O Brades-co, por exemplo, fez doações que variaram de R$ 75.000,00 (PSDB) a R$ 1.450.000,00 (DEM). O PT recebeu apenas 2.000.000,00; valor muito baixo se comparado aos R$ 24.300.000,00 no ano de 2008.

Uma possível explicação para a ausência de evidenciação dessas informações pode-ria recair sobre o princípio da materialidade na elaboração dos demonstrativos. Porém, é possível perceber que esse aspecto se rende à conveniência e oportunidade de divulgar determinado fato, a depender dos possíveis benefícios que a divulgação trará à empresa. Isso fica claro ao se observar um trecho do relatório da administração do Ban-co Bradesco S/A:

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Distribuindo-se uniformemente os R$ 74.000.000,00 investidos em áreas rema-nescentes da Mata Atlântica no período de 20 anos citado, tem-se uma média de R$ 3.700.000,00 investidos por ano, bem abai-xo dos R$ 9.050.000,00 doados durante o ano de 2008, aos quais não foi feita nenhu-ma referência no relatório.

Ao tratar da temática da produção e utiliza-ção de informações, Kam (1986) apud Lima et al. (2010) ensina que a informação é rele-vante para uma decisão se ela pode reduzir a incerteza sobre as variáveis inseridas no processo decisório. A falta de divulgação de informações que respondam a alguns dos questionamentos propostos anteriormente fragiliza a relevância e a confiabilidade das peças contábeis produzidas e publicadas aos usuários externos das empresas sele-cionadas, o que aumenta as incertezas so-bre as variáveis envolvidas no processo de tomada de decisão.

A evidenciação não é uma convenção ou princípio contábil. Ela está relacionada ao objetivo da contabilidade de garantir infor-mações de acordo com as necessidades dos usuários de forma que as demonstra-ções não se tornem enganosas (Iudícibus,

2010).

A ciência contábil, por sua natureza social, está sujeita a inexatidões provocadas pelo aspecto comportamental e a níveis de subje-tividade inerentes ao processo de construção dos demonstrativos. O que deve ser obser-vado com cautela no momento da manipula-ção das informações é o limite entre a discri-cionariedade e a arbitrariedade de quem as detém. A influência de convicções políticas e a possível intenção de troca de interesses escusos camuflados sob o princípio da ma-terialidade – ou outra justificativa qualquer – na construção das demonstrações deturpam a essência e a finalidade da ciência, que é produzir informações relevantes e, acima de tudo, verdadeiras.

5. CONCLUSÃO

Em resposta ao objetivo proposto, conclui-se que apenas uma das 11 empresas selecio-nadas neste estudo evidenciou a realização de doações a partidos políticos na publica-ção dos Demonstrativos Financeiros Padro-nizados (DFP), somente no ano de 2008. Ainda assim, não foi possível identificar os valores doados nem os parâmetros e crité-rios adotados por ela para escolha dos par-

Quadro 2. Trecho retirado do relatório da administração do Banco Bradesco S/A – 2008

Fonte: Divulgação Externa – BM&FBovespa

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tidos contemplados, gerando um ambiente de assimetria informacional para os usuá-rios externos da entidade.

Os usuários externos à entidade têm nas in-formações contábeis um arcabouço teórico que os guiará no conhecimento da situação econômica, financeira e administrativa em que a empresa se encontra. A maior dispo-nibilidade de informações diminui o grau de incerteza desses usuários a respeito dos resultados futuros da empresa, o que os auxiliará no processo de tomada de deci-são. Para que seu objetivo seja alcançado, a contabilidade deve ser capaz de produzir informações relevantes sobre a entidade, visto que a comunicação delas se torna inó-cua se não houver utilidade para quem as recebe.

Nesse ambiente, a contabilidade deve atu-ar como o elo entre o meio corporativo e a sociedade, funcionando como agente de re-dução da assimetria informacional existente entre as vontades dos administradores e as necessidades dos usuários da informação (Lopes e Martins, 2005). REFERÊNCIAS

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ARTIGO: Democracia Deliberativa: uma Análise do Decreto nº 8.243

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Democracia Deliberativa:uma Análise do Decreto nº 8.243

Deliberative Democracy: An Analysis of Executive Order No. 8243

Democracia Deliberativa: Un análisis del Decreto n° 8.243

Resumo: O propósito deste artigo é identificar aproximações entre elementos da teoria da democracia deliberativa e o Decreto n. 8.243 da Presidência da República do Brasil, de maio de 2014, que institui a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS). Diversos autores consideram a democracia deliberativa adequada à contemporaneidade de valorizar e criar condições de uma participação direta do cidadão na definição de políticas públicas e de práticas de administração pública. Considerando os objetivos e as diretrizes de fortalecer e articular mecanismos e instâncias democráticas de diálogo e criar condições de atuação conjunta entre administração pública federal e sociedade civil, observaram-se nesse Decreto diversos elemen-tos democrático-deliberativos importantes para a consolidação da democracia brasileira. Observou-se também a coerência entre o Decreto e as perspectivas democráticas previstas na Constituição Federal de 1988, que prevê que o cidadão pode exercer seu poder democrático diretamente ou por meio de representantes eleitos.

Palavras-chave: democracia deliberativa, participação social, política nacional de participação social.

Jorge Sundermann - [email protected] da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

José Roberto Pereira - [email protected] da Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG, Brasil.

Claudemir Francisco Alves - [email protected] da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Departamento de Filosofia, Belo Horizonte, MG, Brasil.

Mozar José de Brito - [email protected] da Universidade Federal de Lavras, Departamento de Administração e Economia, Lavras, MG, Brasil.

Artigo submetido no dia 10-07-2015 e aprovado em 28-02-2016.

DOI: http://dx.doi.org/10.12660/cgpc.v21n68.52967

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Jorge Sundermann - José Roberto Pereira - Claudemir Francisco Alves - Mozar José de Brito

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AbstractThis article seeks to identify similarities between elements of the theory of deliberative democracy and Executive Order No. 8243 of the President’s Office of the Republic of Brazil, dated May 2014, which would institute a National Social Participation Policy and the National Social Participation Sys-tem. Several authors consider deliberative democracy to be appropriate to contemporaneity and a way of promoting and creating conditions for direct citizen participation in defining public policy and administration practices. Considering the objectives and guidelines for strengthening and promoting mechanisms and channels for democratic dialogue and creating conditions for joint action between the federal government and civil society, many important democratic-deliberative elements for the con-solidation of Brazilian democracy have been observed in the Executive Order. There is a coherence between the Executive Order and the democratic prospects provided for in the Federal Constitution of 1988, which establishes that citizens can exercise their democratic power directly or through elected representatives.

Keywords: Deliberative Democracy, Social Participation, Direct Participation, National Social Participa-tion Policy, Public Administration.

ResumenEste artículo intenta identificar las aproximaciones entre los elementos de la teoría de la Democracia Deliberativa y el decreto n° 8.243 de la Presidencia de la República de Brasil, de mayo de 2014, en que instituiría la Política Nacional de Participación Social y el Sistema Nacional de Participación. Diversos autores consideran la democracia deliberativa adecuada para la contemporaneidad y una forma de valorizar y crear condiciones de una participación directa del ciudadano en definición de políticas y prácticas de administración pública. Considerando los objetos y directrices de fortalecer y articular mecanismos e instancias democráticas del diálogo y crear condiciones de actuación con-junta entre administración pública federal y la sociedad civil, se observaron en el Decreto diversos elementos importantes para la consolidación de la democracia brasileña. Se observó la coherencia entre el Decreto y perspectiva democrática prevista en la Constitución Federal de 1988, que prevé que el ciudadano puede ejercer su poder democrático directamente o por medio de representantes electos.

Palabras clave: Democracia deliberativa, participación social, participación directa, Política Nacional de Participación Social, Administración pública.

Introdução

Ao tratarem da organização de socieda-des contemporâneas, Marques (2009b), Bohman (2009), Cohen (2009) e Johnson (2011) consideram a democracia delibera-tiva adequada à contemporaneidade. A de-liberação é entendida como um processo oriundo de debates, conversações cívicas e discussões políticas. Podem acontecer em ambientes formais ou informais e resultam em contribuições para a criação de espaços públicos que atendam às demandas ou aos interesses dos cidadãos (Marques, 2009b).

No entanto, a perspectiva de espaços pú-blicos instituídos ou que buscam instituir a participação efetiva dos cidadãos na cons-trução social, embora teoricamente adequa-da para a contemporaneidade, apresenta

desafios significativos para sua implementa-ção efetiva.

Em 23 de maio de 2014, a Presidência da República do Brasil, publicou o Decreto n. 8.243, instituindo a Política Nacional de Parti-cipação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), visando, prin-cipalmente, garantir instâncias democráticas de participação na definição das políticas e na administração pública federal. O objetivo da PNPS é “fortalecer e articular os mecanis-mos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil” (Brasil, 2014).

À primeira vista, o Decreto n. 8.243 parece direcionado a ser um instrumento formal e prático de implementação de processos que

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contribuam para a estruturação de uma so-ciedade em que a deliberação democrática se torne reconhecida. Tal decreto tem sido visto também como um elemento de defi-nição de cidadania, por propiciar, supos-tamente, maior participação dos cidadãos nas ações da administração pública federal. Essa forma de interpretação, porém, tem se tornado objeto de uma intensa polêmica – cujos contornos políticos são tanto pragmá-ticos como ideológicos – que levou à recusa do Decreto na votação realizada na Câmara dos Deputados em outubro de 2014.

Frente ao intenso debate que se instalou em torno da legitimidade e da pertinência do re-ferido decreto presidencial, surge o questio-namento: “A política de participação social, definida no Decreto n. 8.243, da Presidência da República do Brasil, constitui de fato uma política de democracia deliberativa?”.

Ao refletir sobre essa questão, considera--se fundamental conhecer e compreender o alcance de políticas públicas que visam à estruturação de uma sociedade democráti-ca. Devem-se avaliar também as perspec-tivas que ações governamentais apresen-tam para o fomento da participação social. Igualmente, é preciso que se tenha em con-ta também o papel que o despertar do en-gajamento social – que o senso comum e mesmo algumas análises críticas supõem estar ocorrendo na história recente do País – desempenha na definição do presente e do futuro da sociedade.

Uma consistente avaliação do Decreto – com sua concepção de Estado, de política e de participação social – não pode pres-cindir da avaliação da atual conjuntura so-cial e política. Tem sido praticamente um

consenso entre os analistas a constatação de que o Congresso Nacional, que saiu das urnas eleitorais em 2014, tem um perfil con-servador. No contexto das discussões deste artigo, entende-se por conservador aquele parlamentar ao qual interessa manter inalte-rados os mecanismos da democracia repre-sentativa. São conservadoras por se mos-trarem pouco permeáveis a medidas que demandariam deles uma transigência maior e uma abertura a formas participativas de deliberação. Parlamentares que exercem seu poder de representação dessa forma tendem a ser refratários a qualquer medida que implica alteração no status quo das re-lações de poder no espaço legislativo e em suas relações com a sociedade.

Sem ignorar este fator conjuntural, o obje-tivo geral perseguido neste trabalho é ana-lisar o Decreto n. 8.243 da Presidência da República do Brasil à luz da teoria da de-mocracia deliberativa.

Busca-se identificar a natureza do decreto e suas possíveis contribuições ao confrontá--lo com uma perspectiva teórica e prática de consolidação da participação social nas políticas e nas decisões gerenciais da admi-nistração pública brasileira.

Este estudo se inicia por esta introdução, que apresenta a proposta de estudo e os re-sultados pretendidos. A segunda seção traz a conceituação de democracia deliberativa, seus principais elementos teóricos e as di-ficuldades de sua implementação. A tercei-ra parte trata dos elementos principais do Decreto n. 8.243. Faz-se em seguida uma contraposição entre a teoria da democracia deliberativa e o decreto em questão. Por fim, nas considerações finais, apresenta-se uma

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análise sobre as possíveis contribuições desse decreto para a institucionalização de uma sociedade mais democrática e delibe-rativa no Brasil.

Democracia deliberativa

A reflexão que se pretende fazer aqui exige que se compreenda o que é a democracia deliberativa. Com esse intuito, apresentam--se, nesta seção, os elementos teóricos principais e alguns questionamentos e per-cepções sobre as possibilidades e os limi-tes da democracia deliberativa.

Avritzer (2009) reconhece que há uma di-versidade de abordagens quando se fala em democracia deliberativa, podendo ser divididas em duas fases. A primeira compre-endeu os anos de 1990 e teve como foco principal a discussão sobre o conceito de “deliberação”. A segunda, dos anos subse-quentes, concentrou-se na factibilidade em-pírica da democracia deliberativa.

Marques (2009b) considera que a temática da deliberação pública é fundamental para quem quer compreender as contribuições de uma esfera de discussão pública am-pliada na “construção de um sistema de-mocrático marcado pela aproximação entre instâncias formais do governo e espaços informais de discussão entre os cidadãos” (Marques, 2009b, p. 11). Destaca ainda que diversos trabalhos acadêmicos (Coelho & Nobre, 2004; Costa, 2002; Avritzer & Navar-ro, 2003; Dagnino, 2002) investigaram em-piricamente processos deliberativos e mos-traram que “a deliberação não se resume a um processo pontual e elitista de elabora-ção de decisões” (Marques, 2009b, p. 11).

Com a ampliação dos processos comunica-cionais, podem-se observar a demanda e a reivindicação, cada vez maior, por partici-pação social nas decisões dos governos e pela garantia de direitos. Essa participação e esse reconhecimento podem ter maior efe-tividade e resultados por meio de processos de deliberação democrática, que exigem ele-mentos básicos para que aconteçam de for-ma efetiva, com reconhecimento de minorias e grupos menos privilegiados.

Na perspectiva de Dryzek (2000), houve uma virada teórica e prática, no interior da teoria democrática, caracterizada pela incorpora-ção, pelos principais pensadores da demo-cracia, do conceito de deliberação. Avritzer (2009) afirma que se observa um consenso parcial, na perspectiva teórica, sobre demo-cracia deliberativa como ela é compreendida por James Fishkin, Joshua Cohen e James Bohman, e que o elemento prático da virada deliberativa pode ser observado em institui-ções políticas de democracias contemporâ-neas (Avritzer, 2002; Fung & Wright, 2003; Santos, 2002; Fishkin, 1995).

Segundo Marques (2009b), as democracias modernas contribuíram para a expansão do exercício da deliberação para diversos tipos de comunidade que consideram todas as pessoas como politicamente iguais, não im-portando a cultura, o credo, o status ou outros elementos que poderiam ser diferenciadores. Bohman (2009) destaca que as democracias constitucionais modernas geraram espaços para diferentes tipos de deliberação pública, uma vez que direitos como liberdade de fala, expressão, associação e investigação, por elas assegurados, criam condições para a deliberação bem-sucedida. Considera tam-bém que, para que possa acontecer na cole-

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tividade, a deliberação deve ser baseada no diálogo entre as pessoas. Ao mesmo tempo chama a atenção para a importância de se definir o que torna uma deliberação pública, seu alcance e as condições para ser bem--sucedida (Bohman, 1996, 2009).

Quanto à definição do termo:

a deliberação pode ser compreendida como uma atividade discursiva capaz de conectar esferas comunicativas formais e informais, nas quais diferentes atores e discursos estabelecem um diálogo, que tem por principal objetivo a avaliação e a compreensão de um problema coletivo ou de uma questão geral (Marques, 2009b, p. 13).

Embora diferentes definições de deliberação pública possam ser apresentadas, destaca--se seu “processo dialógico de troca de ra-zões com o propósito de solucionar situa-ções problemáticas” (Bohman, 2009, p. 36). Tal processo dialógico deve considerar a cooperação e a participação dos indivíduos que têm vínculos com a questão em pauta.Marques (2009b) destaca a importância das reflexões de Jürgen Habermas para a defini-ção de deliberação pública. Habermas bus-ca definir princípios de interação que asse-gurem a legitimidade de normas e garantam alternativas capazes de regular os conflitos oriundos do pluralismo social, representado por membros que apresentam diferentes ne-cessidades, demandas e identidades. Mar-ques (2009b, p. 12) chama a atenção para o fato de que “a teoria deliberativa haberma-siana encontrou grande aceitação entre os principais teóricos deliberativos” e credita essa aceitação ao fato de ela considerar que a deliberação deveria oferecer uma comu-

nicação legitimadora das políticas públicas, articulando “discurso institucional e a con-versação cívica entre os cidadãos”.

A criação das normas e políticas públicas por meio do procedimento proposto por Jür-gen Habermas não realiza qualquer restri-ção ao conteúdo normativo. Nesse sentido, pode-se dizer que sua teoria é formal e, portanto, universal. Isso não significa, então, que a moral seja descartada, pois ela será introduzida pelos dutos do próprio procedi-mento. A justiça substancial, em última aná-lise, é a imposição da visão de mundo de um grupo em relação à coletividade, por isso o procedimento descarta a predefinição dos conteúdos e investe em pressupostos de validade do discurso, permitindo que todos os atingidos pelo resultado das deliberações normativas também sejam responsáveis por sua elaboração.

Marques (2009b) destaca as contribuições que essa compreensão sobre o processo político pode oferecer para que a democra-cia aconteça, uma vez que indica possibili-dades de procedimentos que permitam ar-gumentações cooperativas e/ou conflitivas entre os cidadãos. Acentua ainda a impor-tância da capacidade de diálogo entre os cidadãos, incorporando de forma positiva as suas diferenças com vistas a clarear um problema e/ou sua solução. A deliberação deve permitir aos indivíduos a possibilidade de apresentar ao próximo os seus pontos de vista, suas percepções e interpretações, obtendo deles, em um processo de diálogo respeitoso, a validação das questões apre-sentadas.

A questão das premissas da formação de uma teoria procedimental que conferem le-

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gitimidade à atuação estatal e ao sistema jurídico parte de uma ideia de reconstrução1 de um modelo de democracia normativa. Essa teoria confia no fato de que a “força legitimadora estaria ancorada nas próprias premissas e condições formais de justifi-cação” (Diniz, 2006, p.163), apresentando--se como a única aposta possível após a derrocada de visões de mundo regidas por cosmovisões metafísicas (Ferreira, 2015, p.103).

Refletindo sobre o tema, Figueiredo afirma que:

as inquietações que atingiram Habermas residem no fato de ele ter percebido como várias indagações sobre os vínculos so-ciais estão no direito. Sob a influência da teoria do discurso, assim é que uma filo-sofia do direito procedimental passa a ser estrutura de fundamentação e legitima-ção do direito. Ela será também recons-trutiva do direito existente no sentido de que este venha a superar os estágios de validade assentado no jusnaturalismo e no positivismo (Figueiredo, 2014, p. 278).

A modernidade caracteriza-se, em relação à legitimidade, de modo a transferir o poder legítimo para um nível reflexivo de justifica-ção. Impõe-se, assim, uma carga de racio-nalidade para um mundo marcado por sua falta. Por isso, Habermas considera que:

o interesse é comum, porque o consenso livre de constrangimento permite apenas o que todos podem querer; é livre de de-cepção, porque até a interpretação das necessidades, na qual cada indivíduo precisa estar apto para reconhecer o que ele quer, torna-se o objeto de formação

discursiva da vontade. A vontade, formada discursivamente, pode ser chamada racio-nal, porque as propriedades formais do dis-curso e da situação deliberativa garantem suficientemente que um consenso só pode surgir através de interesses generalizáveis, interpretados apropriadamente, pelo que quero dizer necessidades que podem ser participadas comunicativamente (Haber-mas, 2002, p.137).

A legitimidade floresce, nesse sentido, da transposição de um consenso racional for-mado no mundo da vida para o sistema jurídi-co sob o manto de uma norma. Dessa forma, um sistema que não se pode fundamentar apenas em uma imposição (facticidade) exi-ge que o DNA de suas normas jurídicas seja oriundo de um procedimento democrático para que se possa falar em validade (legi-timidade). A vontade exercida pelos partici-pantes do procedimento não pode ser vicia-da. Logo, é necessário que se estabeleçam, como pressupostos de validade, condições que reduzam a influência dos imperativos sistêmicos da burocracia e da economia. Desde já, pode-se verificar que o projeto de dotar o Estado e o direito de legitimidade se insere em uma perspectiva contrafática.

Habermas é ciente de que esses influxos sis-têmicos ocorrem e, em momento algum de sua produção acadêmica, adotou uma postu-ra que negasse esses fatos. Contudo, como discípulo de uma teoria crítica marxista, não se contentou com o modo como as coisas estão dispostas, por isso prescreveu várias recomendações para que se possa vivenciar um procedimento realmente democrático. Por esse motivo, o filósofo alemão não es-taria negligenciando nenhuma possibilidade que a racionalidade humana permite. Assim,

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sem o intuito de descrever a realidade, Ha-bermas dirá que, para o bom funcionamento do procedimento, a racionalidade comunica-tiva não poderá ser cerceada por uma racio-nalidade instrumental. Isso quer dizer que, por meio da racionalidade comunicativa, podem-se estabelecer formas de contenção às investidas sistêmicas no mundo da vida para que elas não sejam capazes de detur-par a formação legítima do consenso.

Avritzer (2009, pp. 7-8) afirma que, na de-mocracia deliberativa, podem-se observar quatro elementos principais: 1) “superação de uma concepção agregativa de democra-cia centrada no voto”; 2) identificação da ra-cionalidade política com mudança e justifi-cação de preferências; 3) pressuposição de “princípio de inclusão” na democracia deli-berativa; 4) procura por instituições capazes de efetivar as “preferências dos indivíduos por formas amplas de discussão”. Avritzer (2009, p. 8) destaca que, para ele, o quarto elemento apresentado é “o centro do câno-ne democrático deliberativo”.

Considerando a construção teórica da de-mocracia deliberativa, Avritzer (2009) afir-ma que os principais teóricos da temática são James Bohman, Joshua Cohen, Sheyla Benhabib e Maeve Cooke, os quais se des-tacam no “processo de construção da teo-ria por meio de um amplo debate teórico” (Avritzer, 2009, p. 8). Quanto à contribuição teórica de cada um desses autores, pode-se observá-la pelos textos organizados e tra-duzidos por Ângela Cristina Salgueiro Mar-ques no livro A deliberação pública e suas dimensões sociais, políticas e comunicati-vas. Esses textos são a base do referencial aqui trabalhado e dos elementos considera-dos como necessários para que a perspec-

tiva deliberativa democrática possa aconte-cer em determinada sociedade.

Avritzer (2009) afirma que, para Bohman, a democracia deliberativa não deve ser defi-nida como procedimental, mas como um conjunto de acordos cooperativos eminente-mente pragmáticos. Bohman (2009) desta-ca que há diversas razões para defender a perspectiva deliberativa. Mesmos argumen-tos que aparentemente indicam problemas da deliberação costumam apresentar como contraposição benefícios que a justificam. Reconhece que a deliberação nem sempre levará à melhor decisão, pois decisões não públicas podem ser melhores do que de-cisões públicas. No entanto, a deliberação pública costuma melhorar a qualidade da justificação e da produção de decisões por submeter-se à maior amplitude de opiniões e possibilidades de alternativas: “defendo que a melhor defesa para a deliberação pú-blica é que ela parece ser o melhor meio de aperfeiçoar a qualidade epistêmica das jus-tificações para decisões políticas” (Bohman, 2009, p. 35). Destaca que deliberações em fóruns públicos abertos costumam aperfei-çoar a qualidade das razões.

Bohman (2009) considera importante a perspectiva procedimental da deliberação, citando as contribuições de Joshua Cohen e Robert Dahl, com suas listas sistemáticas de condições procedimentais. No entanto, con-sidera que elas, embora importantes, não são suficientes para elucidar o motivo de as decisões falharem em ser democraticamen-te legitimadas, talvez porque as regras e as condições devessem surgir no meio da deli-beração, entre aqueles que deliberam. Para Bohman (2009), a legitimidade democrática e o sucesso nas atividades deliberativas

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têm sua base no diálogo: “uma abordagem dialógica da deliberação captura melhor o processo de reinterpretação das normas e procedimentos à luz de novas experiências e situações problemáticas” (Bohman, 2009, p. 64). A deliberação pública é compreendi-da, dessa forma, como um diálogo que tem como objetivo a solução de um problema ou resolução de um conflito. Conclui sua análi-se afirmando que “talvez o principal desafio da democracia deliberativa seja solucionar os crescentes conflitos comuns sem abrir mão da igualdade política dos cidadãos, da não tirania dos resultados e da publicidade do diálogo” (Bohman, 2009, p. 81).

Em Cohen (2009), pode-se observar uma caracterização da democracia deliberativa de modo procedimentalista, como uma as-sociação democrática na qual os membros partilham seus princípios definidores e tam-bém os objetivos do grupo, considerando a pluralidade que o constitui.

As perspectivas de Bohman (2009) e Cohen (2009) apontam para uma democracia de-liberativa em que o debate e a cooperação operam considerando a pluralidade, carac-terística da condição humana e da agrega-ção dos seus indivíduos.

Benhabib (2009) destaca a importância da capacitação do sujeito para a participação dos processos democrático-deliberativos:

o engajamento na deliberação demanda que todos os participantes sejam capazes de formular questões próprias e passíveis de serem compreendidas e aceitas; de iniciar debates e interpretar suas necessi-dades de maneira reflexiva, expondo seus interesses sob uma perspectiva generali-

zante (Benhabib, 1996, p. 70.).

Avritzer (2009) destaca a diferença principal entre a abordagem de Bohman e Cohen e a abordagem de Benhabib. Enquanto os pri-meiros não consideram importante a ideia de consenso procedimental, mas valorizam a cooperação e a associação democrática, Benhabib considera o consenso racional mais importante.

Marques (2009b) considera que a legitimi-dade do processo de deliberação exige um acordo, entre os envolvidos, sobre as regras e princípios normativos que definirão a na-tureza do vínculo entre os participantes e como serão feitas as trocas argumentativas. Apresenta como princípios a serem obser-vados: a) igualdade, b) publicidade, c) reci-procidade, d) reflexividade, e) accountability (prestação de contas), f) autonomia, g) au-sência de coerção, h) respeito mútuo.

Considerando a complexidade ou amplitude dos princípios a serem observados para a constituição da democracia deliberativa, há questionamentos sobre a exequibilidade, ou a possibilidade da realização empírica, da deliberação. Quanto a isso, diversos autores se dedicaram a indicar a possibilidade de re-alização prática da deliberação. Para Avritzer (2009), questões empíricas no que se refere à facticidade da democracia deliberativa são tratadas por autores como Amy Gutmann e Dennis Thompson, Jane Mansbridge e Si-mone Chambers. Apresentaremos aqui as contribuições de estudos de Gutmann e Thompson (2009) e de Genevieve Fuji John-son (2011), que mostram resultados práticos obtidos em processos de democracia delibe-rativa.

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Gutmann e Thompson (2009, p. 177) distin-guem os principais enfoques que teóricos tomam na perspectiva de definir “termos justos de cooperação política em uma so-ciedade democrática”. Avritzer (2009) desta-ca a contribuição desses autores quanto à inserção de elementos não procedimentais ou substantivos na compreensão da demo-cracia, destacando a introdução da recipro-cidade, como capacidade mútua de acesso a determinados bens públicos, no “cânone deliberativo”.

Como afirmam Gutmann e Thompson (2009, p. 181), “a reciprocidade assegura que os ci-dadãos devem uns aos outros justificativas para as leis e as políticas públicas que os vinculam mutuamente e que eles coletiva-mente elaboraram”. Nesse sentido, é rele-vante a explicação fornecida por Habermas:

o entrelaçamento dos processos jurídicos com argumentações que se regulam a si mesmas, apoiando-se nos princípios da generalização e da adequação, explica a curiosa ambivalência da pretensão de va-lidade do direito positivo. É preciso distin-guir entre a validade do direito, garantida através de decisões competentes, e a vali-dade social do direito aceito ou implantan-do de fato. No entanto, no próprio sentido complexo da validade do direito, manifes-ta-se uma ambivalência que o direito mo-derno adquire devido à sua dupla base da validade, que repousa no princípio da fundamentação e no da normatização. (...) Ao passo que a pretensão de validade do direito positivo não consegue fugir da con-tingência que cerca a sua gênese, nem da facticidade da ameaça de sanção. Mesmo assim, as normas jurídicas positivadas, emitidas conforme o processo, pretendem

legitimidade. Pois o modo de validade do direito aponta não somente para a expec-tativa política de submissão à decisão e à coerção, mas também para a expectativa moral do reconhecimento racionalmente motivado de uma pretensão de validade normativa, a qual só pode ser resgatada através de argumentação. E os casos li-mites do direito da legítima defesa e da desobediência civil, por exemplo, revelam que tais argumentações podem romper a própria forma jurídica que as institucionali-za (Habermas, 2003, pp. 246-247).

A perspectiva da reciprocidade pode ajudar na definição de acordos políticos com base em princípios justificáveis a outros que com-partilham o objetivo de chegar a um enten-dimento. Para os autores, as decisões de-mocráticas exigem uma justificação mútua, “providenciar razões que constituem uma justificação pelo fato de impor leis vinculató-rias a outras pessoas” (Gutmann & Thomp-son, 2009, p. 181). Essa justificação mútua somente é possível tomando como referên-cia valores substantivos. Para os autores, o princípio da reciprocidade indica que há outros princípios que também precisam ser observados para que se obtenha um con-teúdo de democracia deliberativa, quais se-jam: publicidade, accountability, liberdade básica, oportunidade básica, oportunidade justa.

Alguns teóricos, denominados por Gutmann e Thompson (2009) como procedimentalis-tas puros, focam nos procedimentos, con-siderando-os como as leis são feitas e as condições para que os procedimentos acon-teçam de forma justa. No entanto, os auto-res apontam a necessidade de considera-ção, além dos procedimentos, de princípios

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substantivos como a liberdade individual ou igual oportunidade, entre outros, para que se obtenha um processo democrático justo. Para indicar a importância de incluir princí-pios procedimentais e substantivos na teo-ria democrática e deliberativa, Gutmann e Thompson (2009) fazem uso de um caso envolvendo deliberação sobre cuidados com a saúde no Reino Unido. Em 1999, o gover-no britânico criou um corpo deliberativo (Na-tional Institute for Health and Clinical Excel-lence – NICE), com especialistas e leigos, para definir acessos a tratamentos e diretri-zes clínicas a serem utilizados pelo Serviço Nacional de Saúde (National Health Service – NHS), pois não havia fundos para todas as necessidades da saúde. Tomando o caso como exemplo, os autores apontam que os procedimentos somente não justificam a ne-gação do NICE ao financiamento para uma nova droga antigripal (Anamivir). O fato de a decisão ter sido deliberativa também não é suficiente para considerá-la justificável.

A reciprocidade permite aos cidadãos o acesso às justificativas que levaram à ne-gação de uma política que pode afetar seu bem-estar. Os elementos que levaram à de-cisão do NICE foram expostos e ficou cla-ro que a questão não era econômica, pois havia necessidade de mais pesquisas para comprovar a relevância e a eficácia do me-dicamento e que resultados positivos pode-riam, no futuro, alterar a decisão tomada. Justificar a decisão pela observância dos procedimentos não seria suficiente nesse tipo de demanda, sendo necessária uma justificativa substantiva.

Outra questão significativa apontada pelos autores é o status provisório, moral e poli-ticamente, dos princípios substantivos na

democracia deliberativa. Considerar a pro-visoriedade é considerar a possibilidade de mudar uma decisão em outro momento. É aceitar uma perspectiva que, em determina-do momento, será rejeitada, ou vice-versa. As razões políticas e/ou morais podem ter suas razões modificadas pela razão comunicativa. No caso citado pelos autores, pode-se notar a clareza do grupo quanto à provisoriedade da decisão: “o NICE também recomendou que julgamentos adicionais fossem condu-zidos e dados posteriores fossem obtidos, para que sua decisão pudesse ser retomada na próxima temporada” (Gutmann & Thomp-son, 2009, p. 195). Ao concluir as relações observadas entre os princípios da democra-cia deliberativa e o NICE, os autores desta-cam que, no debate sobre o NICE, na Casa dos Comuns – instituição parlamentar que, no Reino Unido, corresponde aproximada-mente à Câmara dos Deputados no legisla-tivo federal brasileiro –, críticos e defensores dele usaram tanto princípios procedimentais, quanto substantivos para apresentar suas posições.

Avritzer (2009, p. 9) destaca a importância das observações de Gutmann e Thompson indicando que eles aproximam “a democra-cia deliberativa da democracia real, ao co-locarem a questão das oportunidades justas no campo das discussões democráticas e conectá-la com processos legislativos”.

Quanto à factibilidade da democracia delibe-rativa, Johnson (2011) apresenta três casos práticos – Gestão dos Resíduos Nucleares Canadenses (NWMO), Habitação Social em Toronto (TCHC) e Nova Scotia Política Ener-gética (NSP) –, que mostram elementos im-portantes para que a perspectiva teórica se efetive no dia a dia das organizações. John-

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son destaca fatores pertinentes a cada con-texto político que comprometem o alcance dos objetivos da democracia deliberativa: princípios normativos, pressão pública, re-quisitos políticos, interesse estratégico, in-teresse econômico. Esses fatores tendem a dar suporte à motivação das elites de dividir o poder de tomada de decisão com aqueles diretamente afetados por suas políticas. Os princípios normativos se referem às gran-des finalidades sociais e éticas que uma organização espera alcançar na prestação de seus serviços e gestão de seus bens. A pressão pública refere-se às exigências de mudança que um público afetado coloca para uma organização. Requisitos políticos são aqueles colocados à organização pelo seu regime regulatório global. Interesses estratégicos caracterizam imperativos orga-nizacionais considerados importantes para garantir programas eficazes e a perenidade da organização. Finalmente, interesses eco-nômicos se referem às condições necessá-rias para a manutenção ou melhora dos re-sultados financeiros da organização.

Os resultados dos três casos apresenta-dos por Johnson (2011) são interessantes e ajudam a esclarecer que elementos menos altruístas podem encorajar a adesão à de-mocracia deliberativa, pois a deliberação é uma forma de as organizações compreen-derem e obterem maior aceitação em suas relações com o ambiente onde se inserem. Segundo Johnson (2011), os processos consultivos da TCHC, NSP e NWMO são impressionantes em termos de seus proje-tos de tomadas de decisão com base em princípios democráticos deliberativos. Ele observou que em cada caso há fatores con-textuais que podem facilitar ou complicar as inclinações das elites e, portanto, as possi-

bilidades, para a realização do empodera-mento democrático deliberativo. O fator que mais chama atenção e diferencia os casos apresentados é o “interesse econômico”. Ao contrário do caso do TCHC, os interesses econômicos do NSP e do NWMO não fo-ram congruentes com o aumento do empo-deramento de seus públicos afetados. Seus interesses econômicos poderiam ter sido comprometidos pelo aumento da autonomia democrática. O descompasso no fator “inte-resses econômicos” talvez justifique em par-te que o empoderamento dos participantes nos processos de consulta foi reduzido nas duas últimas organizações. Johnson (2011) conclui que isso é potencialmente proble-mático para as perspectivas de realização dos objetivos teóricos da democracia deli-berativa em processos de políticas públicas estabelecidas em contextos de hierarquias de poder estabelecidas e interesses econô-micos dominantes.

Elementos da política deliberativa no âm-bito do Decreto n. 8.243

Em 23 de maio de 2014, a Presidência da República do Brasil, pelo Decreto n. 8.243, instituiu a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Par-ticipação Social (SNPS), com o objetivo de “fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atu-ação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil” (Brasil, 2014).

O Decreto destaca que os objetivos e as di-retrizes da PNPS devem ser considerados na formulação, na execução, no monitora-mento e na avaliação de programas e polí-ticas públicas, como também no aprimora-mento da gestão pública.

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O Decreto define como sociedade civil “o ci-dadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionaliza-dos, suas redes e suas organizações” (Bra-sil, 2014). Além da conceituação de socie-dade civil, são definidas as compreensões para conselho de políticas públicas, comis-são de políticas públicas, conferência nacio-nal, ouvidoria pública federal, mesa de diálo-go, fórum interconselhos, audiência pública, consulta pública e ambiente virtual de par-ticipação social. O decreto destaca que ele não implica na descontinuação ou alteração de nenhuma das instâncias apresentadas: “as definições previstas neste Decreto não implicam na descontinuação ou alteração de conselhos, comissões e demais instân-cias de participação social já instituídas no âmbito do governo federal” (Brasil, 2014).

Quanto às diretrizes gerais da PNPS, são apresentadas no art 3o:

I – reconhecimento da participação so-cial como direito do cidadão e expres-são de sua autonomia; II – complementariedade, transversali-dade e integração entre mecanismos e instâncias da democracia representati-va, participativa e direta;III – solidariedade, cooperação e res-peito à diversidade de etnia, raça; IV – direito à informação, à transparên-cia e ao controle social nas ações pú-blicas, com uso de linguagem simples e objetiva; V – valorização da educação para a ci-dadania ativa; VI – autonomia, livre funcionamento e independência das organizações da sociedade civil; VII – ampliação dos mecanismos de

controle social (Brasil, 2014).

Entre os objetivos da PNPS, podem-se ob-servar, no art. 4o:

I – consolidar a participação social como método de governo; II – promover a articulação das instân-cias e dos mecanismos de participação social;III – aprimorar a relação do governo fe-deral com a sociedade civil;IV – promover e consolidar a adoção de mecanismos de participação social nas políticas e programas de governo federal;V – desenvolver mecanismos de parti-cipação social nas etapas do ciclo de planejamento e orçamento;VIII – incentivar e promover ações e programas de apoio institucional, for-mação e qualificação em participação social para agentes públicos e socieda-de civil;IX – incentivar a participação social nos entes federados (Brasil, 2014).

O Decreto determina ainda que os órgãos e entidades da administração pública fede-ral direta e indireta considerem, ao formular e gerir programas e políticas públicas, as diversas instâncias de participação social e que apresentem relatórios anuais da imple-mentação da PNPS, cabendo à Secretaria Geral da Presidência da República publicar anualmente avaliação da implementação da PNPS.

O Art. 7º define que o SNPS será coordena-do pela Secretaria Geral da Presidência da República e integrado por: 1) conselho de políticas públicas, 2) comissão de políticas públicas, 3) conferência nacional e 4) ouvi-

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doria federal, “sem prejuízo da integração de outras formas de diálogo entre a admi-nistração pública federal e a sociedade civil” (Brasil, 2014). Além disso, o Decreto define outras atribuições da Secretaria Geral da Presidência da República quanto à orien-tação, à implementação, ao suporte, à ava-liação e ao fortalecimento da PNPS e do SNPS, bem como ao suporte que ela terá para realizar todas essas atribuições.

Entre as diretrizes mínimas a serem obser-vadas “na constituição de novos conselhos de política e na reorganização dos já cons-tituídos”, podem-se destacar a “garantia da diversidade entre os representantes da so-ciedade civil” e a “publicidade” dos atos, as quais compõem as diretrizes das comissões de políticas públicas e das conferências na-cionais (Brasil, 2014). É importante observar que “a participação dos membros no con-selho é considerada prestação de serviço público relevante” e, por essa razão, ela não é remunerada.

As ouvidorias devem observar as diretrizes da Ouvidoria-Geral da União e da Controla-doria Geral da União, que já foram definidas no Decreto n. 8.109, de setembro de 2013, e não são redefinidas neste momento.

Segundo o Decreto, as mesas de diálogo vi-sam ao “aperfeiçoamento das condições e relações de trabalho”, por isso deveriam pre-ferencialmente envolver representantes dos empregados, dos empregadores e do go-verno e ter prazo de funcionamento definido.O documento em questão também define diretrizes mínimas de funcionamento dos fóruns interconselhos, das audiências públi-cas, das consultas públicas e dos ambien-tes virtuais de participação social.

Institui-se, ainda, a Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais, “instância colegiada interministerial responsável pela coordena-ção e encaminhamento de pautas dos mo-vimentos sociais e pelo monitoramento de suas respostas” (Brasil, 2014).

Deve-se destacar que as instâncias de par-ticipação social de que trata o Decreto já fazem parte da vida política do País e algu-mas são utilizadas pela quase totalidade dos municípios brasileiros. Em suma, o Decreto organiza e estabelece diretrizes de funcio-namento de instâncias já existentes de parti-cipação social no Governo Federal. Estimula a observação dos objetivos e das diretrizes da PNPS na formulação, na execução, no monitoramento e na avaliação de programas e políticas públicas. Aumentando as possibi-lidades de participação da sociedade com plataformas virtuais na internet, é possível que a manifestação dos cidadãos sobre po-líticas públicas se torne mais efetiva.

Embora muitas vozes, representando prin-cipalmente instâncias políticas, tenham ex-pressado certa surpresa com o Decreto, deve-se observar que ele institucionaliza práticas políticas que foram assumidas pelo governo Lula com a Medida Provisória 103. Se considerado tal fato, pode-se afirmar que ele não constitui uma novidade nas estrutu-ras existentes no Poder Executivo. Já, nessa Medida Provisória, previam-se a articulação com as entidades da sociedade civil e a cria-ção e implementação de instrumentos de consulta e participação popular que pudes-sem influenciar na elaboração da agenda da Presidência da República. Além disso, pela Constituição de 1988, artigo 84, é compe-tência privativa do Presidente da República

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dispor sobre a “organização e funcionamen-to da administração federal” (Brasil, 2005), o que deve ser feito mediante decreto. Dessa forma, embora pudesse haver alguma sur-presa quanto ao Decreto, não se pode dizer que ele seja incoerente com as ações ante-riores do atual governo e do anterior, nem que seja um ato indevido ou autoritário por ser feito por decreto, pois é esse o procedi-mento definido pela Constituição Brasileira de 1988.

Manifestações contrárias e a favor do De-creto podem ser observadas na mídia e são coerentes com uma perspectiva deliberativa, uma vez que “diferentes atores e discursos estabelecem um diálogo, que tem por prin-cipal objetivo a avaliação e a compreensão de um problema coletivo ou de uma questão geral” (Marques, 2009, p. 13). Nessa pers-pectiva, observa-se o manifesto da UNE fa-vorável ao Decreto:

A União Nacional dos Estudantes acredita que mais participação popular não é sinô-nimo de ditadura, como alguns tentam ro-tular, mas sim de efetiva democracia e vai ao encontro do desejo dos brasileiros/as em participar mais da vida política e deci-sões do país (UNE, 2014).

Enquanto algumas manifestações, princi-palmente por parte de membros da classe política, buscam associar o Decreto a uma perspectiva ditatorial, outras querem mostrar que ele tem sua base em uma proposta de consolidação democrática.

O interessante é observar que algumas rea-ções posteriores à publicação do Decreto n. 8.243 encontram fundamento no caso NICE descrito por Gutmann e Thompson (2009)

neste estudo. Nesse caso, a instância de onde partiu a maioria das críticas também foi o Legislativo. No entanto, observamos uma diferença significativa. No caso do Brasil, an-tes de um debate amplo sobre a pertinência ou não da institucionalização das instâncias de participação, há membros do legislativo que pretendem votar, “em regime de urgên-cia, um decreto legislativo que anule os efei-tos do decreto presidencial” (Partidos, 2014).Referindo-se ao Decreto n. 8.243, o Senador Álvaro Dias, em vídeo disponível no Youtube, afirma: “ao assinar este decreto, a presidente da República decreta a falência do poder le-gislativo federal e o sucateamento total e ab-soluto do Congresso Nacional” (Dias, 2014).

Embora também taxado como “afronta ao Le-gislativo” (Dias, 2014), na realidade, o Decreto trata da participação direta, que está prevista no art. 1o, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988, onde se lê que “todo o po-der emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição” (Brasil, 2005). Ou seja, devem-se distinguir os processos pe-los quais o cidadão pode exercer seu poder. Segundo a Constituição de 1988, o cidadão pode exercê-lo através da delegação a po-líticos eleitos determinadas deliberações ou atuando diretamente em defesa dos seus interesses, incluindo aí diversas formas de organização. Quanto ao processo de delega-ção, o Decreto não altera nada, não fazendo nenhuma menção que implique mudanças.

Avritzer (2009, p. 7) afirma que, na demo-cracia deliberativa, podem-se observar qua-tro elementos principais, sendo o primeiro a “superação de uma concepção agregativa de democracia centrada no voto”. Perspectivas além da democracia representativa, a princí-

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pio, ajudam a consolidar a democracia em suas diversas possibilidades. O Decreto é Constitucional e apresenta como possibili-dade a superação da concepção de demo-cracia centrada no voto.

Considerando-se tanto a deliberação demo-crática quanto o Decreto n. 8.243, não se observam contradições. Tampouco parece haver incompatibilidades entre ambos. Pelo contrário, o Decreto está em consonância com a deliberação, uma vez que busca ins-titucionalizar espaços para o exercício da cidadania e da construção social. As instân-cias reconhecidas e institucionalizadas pelo Decreto permitem e garantem a perpetua-ção da deliberação, pois ela “se configura como um processo que se realiza, grande parte das vezes, como um processo conti-nuado ao longo do tempo, resultando de de-bates, de conversações cívicas e de discus-sões políticas [...] produzidas em múltiplos contextos [...], sejam eles formais, informais ou mediáticos” (Marques, 2009b, p. 22).

Nassif (2014) apresenta dados sobre a pre-sença das instâncias objeto do Decreto na nossa sociedade: “São 40 Conselhos e Co-missões de Políticas Públicas, formados por 668 representantes do governo e 818 repre-sentantes da sociedade civil”; “Já foram re-alizadas 128 Conferências Nacionais desde a promulgação da CF/88, sendo 97 delas entre 2003-2013”; “Existem 286 ouvidorias públicas federais”; “Cerca de 85% dos pro-gramas do Governo Federal possuem in-terfaces socioestatais (ouvidorias, mesas de diálogo, audiências públicas, consultas públicas, conselhos, conferências, platafor-mas virtuais)”; Além disso, destaca a parti-cipação social no planejamento estratégico da administração pública federal. “No último

PPA (Plano Plurianual), foram apresentadas 629 contribuições da sociedade civil, das quais 77% foram incorporadas integralmen-te”.

Por esse motivo, institucionalizar essas for-mas de participação e deliberação pelo De-creto pode ser considerada um modo de pro-cedimentalizar a perspectiva deliberativa, da mesma forma como foi feita nos casos apre-sentados por Gutmann e Thompson (2009) e Johnson (2011). Tanto no Decreto, quanto nos casos apresentados por esses autores, observamos a estruturação ou institucionali-zação de espaços deliberativos com vistas a gerar participação das pessoas implicadas pelos desdobramentos de processos deci-sórios.

A variedade de instâncias deliberativas e sua distribuição por diferentes entes federativos que a elas podem livremente aderir permite observar a perspectiva de que a deliberação não pode ficar restrita a alguns grupos, mas precisa estar aberta à ampla participação das pessoas nas decisões políticas. Quan-do consideramos princípios substantivos como a liberdade individual ou oportunida-des iguais (Gutmann & Thompson, 2009), torna-se fundamental que as instâncias de participação sejam ampliadas. Os espaços de participação democrática efetivamente disponíveis ao cidadão, na democracia foca-da na representação, são praticamente nu-los. Não há oportunidades iguais para que o indivíduo expresse suas demandas, nem espaço público disponível para isso.

Como o Decreto define diretrizes mínimas a serem observadas para a constituição de novos conselhos de política ou para a reor-ganização dos já constituídos, indica que,

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sob demanda social, novos espaços podem ser criados para, eventualmente permitir que cidadãos com novas demandas partici-pem da deliberação. Embora se referindo às decisões tomadas por instâncias deliberati-vas, Gutmann e Thompson (2009) apresen-tam o princípio da provisoriedade, ou seja, consideram a possibilidade de se mudar uma decisão em outro momento. No entan-to, talvez seja possível avançar ainda mais nessa questão indo além da provisoriedade das decisões tomadas. Sendo o mundo so-cial provisório e passível de se reorganizar a cada momento, pode-se falar da provisorie-dade das instâncias deliberativas. Isso pode levar à demanda por novas instâncias e o fechamento de outras para atender às de-mandas efetivas da cidadania.

Gutmann e Thompson (2009) apresentaram o caso britânico do NICE, que orientava o governo na definição de políticas e aloca-ção de recursos na área de saúde e deci-sões sobre investimentos ou não em deter-minadas alternativas. Pode-se observar que o Decreto aqui discutido também busca ga-rantir que diferentes instâncias de participa-ção institucionalizadas sejam consideradas para a definição da Agenda Presidencial e para a “formulação, execução, monitora-mento e avaliação de programas e políticas públicas” (Brasil, 2014). Além disso, essas instâncias devem ser consideradas para o aprimoramento da gestão pública, aproxi-mando governo e cidadãos.

Ao definir que o SNPS será coordenado pela Secretaria Geral da Presidência da Repúbli-ca e integrado por conselhos de políticas públicas, comissão de políticas públicas, conferência nacional e ouvidoria federal, o Decreto busca garantir a perenidade da pro-

posta de participação social, desvinculando--a de partidos políticos e vinculando-a ao poder executivo eleito pela democracia re-presentativa. Dessa forma, busca-se também a garantia de que a participação democrática possa acontecer de forma indireta pelos re-presentantes eleitos e diretamente pela parti-cipação em diversas instâncias deliberativas.Contrariamente ao alegado por alguns críti-cos, as instâncias políticas características da democracia representativa, expressas nos poderes Legislativo e Executivo, permane-cem intactas e com as mesmas atribuições que sempre tiveram. Acrescenta-se somente que as instâncias legislativas e executivas podem contar com instâncias de participa-ção social para melhorar a compreensão das demandas sociais e a vinculação efetiva das decisões às diferentes realidades sociais. Além disso, o cidadão poderá, pela participa-ção direta, em diversas instâncias, expressar seus argumentos e justificar suas demandas, submetendo-as a outros sujeitos em condi-ções de igualdade e de forma dialógica com vistas a alcançar uma decisão sobre deter-minada situação ou problema que o implica, de forma a estruturar uma deliberação inter-subjetivamente.

O Decreto da PNPS pretende uma aproxi-mação da política às diferentes instâncias de participação, o que pode ser visto como uma possibilidade de “providenciar razões que constituem uma justificação pelo fato de impor leis vinculatórias a outras pessoas” (Gutmann & Thompson, 2009, p. 181). A par-ticipação da sociedade civil na discussão de seus problemas parece permitir compreen-dê-los melhor e justificar eventuais decisões e legislações não populistas, porém neces-sárias.

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A criação de diferentes espaços, ou instân-cias de deliberação, também pode ser com-preendida como contemporânea. Bohman (2009) destaca que as democracias consti-tucionais modernas geraram espaços para diferentes tipos de deliberação pública, uma vez que direitos como liberdade de fala, ex-pressão, associação e investigação, por elas assegurados, criam condições para a deliberação bem-sucedida. O que parece necessário é que todos efetivamente te-nham garantidos os direitos de liberdade de fala, expressão e associação.

Em seu manifesto, a UNE considera o De-creto importante para a consolidação da democracia: “criar uma Política Nacional de Participação Popular, na qual o Estado brasileiro se abre para o povo, é um pas-so importante na consolidação de nossa democracia” (UNE, 2014). Acrescenta ain-da que estranha não haver manifestação contrária, por parte de quem o critica, em relação ao financiamento privado de cam-panha, que cria risco à representatividade no nosso sistema político. A abertura para instâncias de discussão com o povo é con-sonante com as práticas democráticas, que envolvem um “processo dialógico de troca de razões com o propósito de solucionar si-tuações problemáticas” (Bohman, 2009, p. 36). Avritzer (2014) indica que modelos de maior participação social estão presentes nas principais democracias do mundo. Cita como exemplos: “Os Estados Unidos têm o modelo de participação da sociedade civil no meio ambiente por meio dos chamados “Habitat Conservation Plannings”. A França tem o modelo de participação da sociedade civil nas políticas urbanas através de con-tratos de gestão nos chamados “Quartier Difficile”. A Espanha tem a participação da

sociedade civil no meio ambiente por meio de “juris cidadãos”. A Inglaterra instituiu mi-nipúblicos com participação da sociedade civil para determinar “prioridades políticas na área de saúde”. Dessa forma, pode-se afirmar que o Decreto está em consonância com movimentos mais recentes de diversas sociedades democráticas, que buscam na participação da sociedade civil uma demo-cracia que consiga atender melhor às de-mandas de seus cidadãos.

O Decreto define como diretrizes mínimas a serem observadas na constituição de novos conselhos de política e na reorganização dos já constituídos a “garantia da diversi-dade entre os representantes da sociedade civil e a publicidade de seus atos”, que são, entre outros elementos, necessários para a deliberação pública. Como afirma Bohman (2009, p. 65): “a deliberação pública tem que tomar muitas formas. Ainda assim, essas atividades são democráticas na medida em que são consistentes com os princípios de igualdade, não tirania e publicidade”. A pers-pectiva da igualdade somente é possível em decorrência de as pessoas terem espaço nos quais possam se inserir e ter seus di-reitos reconhecidos pelas possibilidades de diálogos que reconheçam suas razões. A ga-rantia da diversidade nas instâncias de parti-cipação parece favorecer o reconhecimento de cidadãos que muitas vezes não são re-presentados em suas demandas.

Entre as diretrizes gerais da PNPS, destaca--se o “reconhecimento da participação social como direito do cidadão e expressão de sua autonomia” e a “valorização da educação para a cidadania ativa”. Embora a participa-ção social seja fundamental, as decisões podem não atender às demandas sociais

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“se os participantes não forem capazes de coordenar todas as várias perspectivas em direção a uma perspectiva comum, através de um processo dialético de constante en-riquecimento e novas articulações” (Boh-man, 2009, p. 77). Dessa forma, “valoriza-ção da educação para a cidadania ativa” é elemento fundamental para a consolidação democrática e a ação social. Sua presença no Decreto indica a perspectiva de garantir que princípios fundamentais da democracia deliberativa possam se efetivar.

Entre os objetivos da PNPS, estão a conso-lidação da participação social como méto-do de governo e a promoção da articulação das instâncias e dos mecanismos de partici-pação social. Esta última, segundo Avritzer (2014), traz para a política um sistema de representação de interesses que os partidos não são mais capazes de exercer. “O que ele [o Decreto] faz é aprofundar a democra-cia da mesma maneira que as principais de-mocracias do mundo o fazem, ao conectar mais fortemente sociedade civil e Estado” (Avritzer, 2014).

O Decreto determina ainda que os órgãos e entidades da administração pública fede-ral direta e indireta considerem, ao formular e gerir programas e políticas públicas, as diversas instâncias de participação social. Essa perspectiva vai de encontro com ou-tro elemento que Avritzer (2009 p. 8) afirma ser fundamental na democracia deliberativa: a procura por instituições capazes de efeti-var as “preferências dos indivíduos por for-mas amplas de discussão”. O Decreto não só institucionaliza as diferentes instâncias de participação como determina que elas sejam consideradas nas decisões da ges-tão pública com vistas a atender melhor as

preferências dos indivíduos. Isso depende de discussão com a participação destes úl-timos, o que não acontece quando os espa-ços políticos ficam restritos aos grupos elei-tos e/ou pessoas que têm relação direta com eles. O Decreto aumenta a chance de efeti-vação das demandas da sociedade com a implantação da Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais, “instância colegiada in-terministerial responsável pela coordenação e encaminhamento de pautas dos movimen-tos sociais e pelo monitoramento de suas respostas” (Brasil, 2014).

Finalmente, a criação de ambientes virtuais de participação social (Decreto, n. 8.243) responde à demanda de ampliação dos pro-cessos comunicacionais e participação so-cial nas decisões dos governos (Marques, 2009b).

As análises aqui feitas consideram basica-mente elementos relacionados com os prin-cípios procedimentais que envolvem a consti-tuição de espaços adequados à deliberação, pois o Decreto é direcionado à institucionali-zação da participação social na democracia brasileira. No entanto, para que a democra-cia deliberativa aconteça efetivamente, além da garantia dos princípios procedimentais, é necessário observar princípios substantivos, os quais precisam que os primeiros ofere-çam a base para sua realização.

Uma nação que busca concretizar uma ideia de Estado Democrático de Direito não pode admitir que inserções legislativas que au-mentem a participação popular e introdu-zem uma carga maior de legitimidade nas deliberações políticas sejam descartadas. O consenso a ser perseguido é o formado por interações plurais, em que a opinião do des-

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tinatário da formação consensual não pode ser descartado. Desse modo, pode-se es-perar que a sociedade civil alcance posição de destaque, dada sua qualidade intrínseca como atriz principal em uma democracia deliberativa plural.

Considerações finais

As reações das pessoas, em grande par-te, demonstram limitações na compreensão do Decreto e das possibilidades de partici-pação oferecidas pela democracia. Em al-guns casos, apresentam argumentos que não esclarecem a opinião pública e criam analogias com outros países criando posi-cionamentos com base no medo e não no esclarecimento. Parece faltar um elemento fundamental para a legitimidade democráti-ca e o sucesso nas atividades deliberativas: o diálogo (Bohman, 2009).

É interessante observar que as manifesta-ções de junho de 2013 foram vistas por mui-tos estudiosos como direcionadas contra a falta de escuta e o distanciamento das ins-tâncias políticas em relação às efetivas de-mandas dos cidadãos, expressas por dife-rentes grupos sociais. Para Avritzer (2014), o Decreto, ao introduzir uma participação menos partidária e com menor defesa de interesses privados na política, busca re-constituir mais fortemente esse laço.

Johnson (2011) observou que a realização dos objetivos teóricos da democracia deli-berativa é complexa em contextos de hierar-quias de poder estabelecidas e interesses econômicos dominantes. Essa conclusão é significativa para o contexto brasileiro atual, pois, ao que parece, há instâncias e sujei-tos preocupados com possíveis mudanças

nas estruturas de poder e reflexos disso nos interesses econômicos dominantes no País. Deve-se considerar que o Decreto não fará milagre no sentido de habilitar, ou melhor, qualificar os cidadãos para uma efetiva de-liberação e exercício dos direitos públicos e civis.

A criação de instâncias e espaços de deli-beração exige, além da definição de proce-dimentos democrático-deliberativos, a capa-citação dos sujeitos, dos cidadãos, para a deliberação:

A política deliberativa é elaborada em uma rede complexa de discussões e discursos na qual os cidadãos aprendem a construir argumentos, a se expressarem e a assu-mirem uma posição, justificando-a sem-pre que for necessário para chegar a uma compreensão mútua acerca de um proble-ma público (Marques, 2009b, p. 20).

Por esse motivo, pode-se considerar o De-creto um passo importante na construção dos espaços e condições adequadas para o exercício da cidadania e na criação de uma sociedade mais democrática e ciente de suas possibilidades e limitações.

O Decreto assinala a importância da “valori-zação da educação para a cidadania ativa” (Brasil, 2014), o que parece um dos grandes gargalos para a constituição efetiva de uma democracia deliberativa. Ainda seria preciso avançar na educação geral e política para que se tenham ambientes efetivamente deli-berativos. Ao mesmo tempo, a prática da par-ticipação em instâncias deliberativas é opor-tunidade para que essa educação aconteça. Isso se faz necessário para que se avance em busca não só de espaços de democracia

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deliberativa, mas sobretudo da consolidação da democracia no país. Bohman (2009) des-taca que deliberações em fóruns públicos abertos costumam aperfeiçoar a qualidade das razões.

Quando se consideram os objetivos, as dire-trizes e as instâncias instituídas pelo Decre-to n. 8.243, pode-se afirmar que ele atende aos princípios da deliberação democrática e tem elementos que poderiam contribuir para a consolidação da democracia no Brasil. Aos que acreditam que a deliberação dire-ta é “perigosa” para a democracia, poder--se-iam recuperar dois questionamentos de Gutmann e Thompson (2009, p. 191): “Será que os corpos responsáveis pelo processo de tomada de decisão reúnem representan-tes de todas as pessoas que são mais afe-tadas pela decisão a ser tomada? Será que os representantes são accountable diante de todos os que os elegeram?”. No contexto em que a sociedade acusa o distanciamento das instâncias políticas das demandas efeti-vas da sociedade, o Decreto n. 8.243 surge como instrumento que busca a aproximação dos representantes eleitos com os cidadãos em suas diferentes instâncias de delibera-ção.

Esse ponto de vista é corroborado por Avrit-zer (2014), quando afirma que:

todas as principais democracias do mun-do procuram soluções para o problema da baixa capacidade do parlamento de apro-var políticas demandadas pela cidadania. A solução principal é o envolvimento da sociedade civil na determinação de políti-cas públicas.

Deve-se reconhecer que mesmo processos

democrático-deliberativos são vulneráveis a interesses diversos. Os resultados dos três casos apresentados por Johnson (2011) mostram que elementos menos altruístas encorajaram a adesão à democracia deli-berativa. Da mesma forma, a tentativa de manter o poder nas mãos de uma pequena classe política pode levar à rejeição de pro-postas que buscam ampliar a democracia através do reconhecimento de instituições de participação social.

Infelizmente, no Brasil, ocorrem muitos es-cândalos de corrupção povoando os espa-ços políticos, tanto no Executivo quanto no Legislativo. Esse fato atesta a importância de ampliar as instâncias de participação so-cial para que o atendimento aos direitos e interesses do povo não dependa somente da classe política, que, com freqüência, tem demonstrado não ouvir as vozes e os clamo-res de seus eleitores. Isso se torna ainda pior quando os políticos sucumbem a interesses econômicos e projetos pessoais de poder.

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Democracia Deliberativa: uma Análise do Decreto nº 8.243

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NOTA

1. A ideia de reconstrução empregada por Habermas pode ser definida pelo seguinte trecho da obra Para a reconstrução do mate-rialismo histórico: “uma teoria é desmontada e recomposta de modo novo, a fim de melhor atingir a meta que ela própria fixou: esse é o modo normal (...) de se comportar diante de uma teoria que, sob diversos aspectos, carece de revisão, mas cujo potencial de estímulo não chegou ainda a se esgotar” (Habermas, 1983, p. 11).

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ARTIGO: Novo Marco Regulatório para a realização de parcerias entre Estado e Organização da Sociedade Civil (OSC). Inovação ou peso do passado?

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Novo Marco Regulatório para a realização de parceriasentre Estado e Organização da Sociedade Civil (OSC).

Inovação ou peso do passado?New Regulatory Framework for the establishment of partnerships between the state and the CSOs- Civil Society

Organizations: innovation or a burden from the past?

Nuevo Marco Regulatorio para el establecimiento de alianzas entre el Estado y las Organizaciones de la Sociedad Civil OSCs: ¿la innovación o el peso del pasado?

Resumo: As parcerias entre Estado e Organização da Sociedade Civil (OSC) são um fenômeno observado em vários países. No Brasil, esse evento também tem tido uma relevância crescente para a disponibilização de serviços públicos. A regulação desses relaciona-mentos traz em si uma visão particular do Estado com relação à sociedade civil, tendo impactos na elaboração e execução de políticas públicas. Este trabalho discute as limitações e os avanços desse processo, com destaque de como foi a mobilização para se chegar ao novo marco regulatório e a realização da sistematização dos principais pontos de mudança. Argumenta-se que um novo marco jurídico não é suficiente para, sozinho, modificar a trajetória de uma política pública. O que se observa é uma bagagem cultural e um legado institucional e normativo que pendem excessivamente para o controle e que têm se exacerbado nos últimos anos por todas as esferas da Administração Pública.Apesar da articulação das OSC em torno da agenda do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC) e do retorno positivo a partir da aprovação da Lei 13.204/15, muitos desafios ainda se impõe para a continuidade desse processo, o que via permitir que o marco jurídico se torne uma inovação no âmbito da gestão pública.

Palavras-Chave: Organizações da Sociedade Civil; Estado; Parcerias; Regulação.

Patricia Mendonça - [email protected] Professora da Universidade de São Paulo, Escola de Artes Ciências e Humanidades, São Paulo, SP, Brasil.

Domenica Silva Falcão - [email protected] de graduação da Universidade de São Paulo, Escola de Artes, Ciências e Humanidades, São Paulo, SP, Brasil.

Artigo submetido no dia 22-09-2015 e aprovado em 28-02-2016.

DOI: http://dx.doi.org/10.12660/cgpc.v21n68.56484

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AbstractPartnerships between CSOs and the state are a phenomenon observed in other countries, and in Brazil they have also become increasingly relevant for the provision of public services. Regulation of these relationships brings about a particular view by the state of civil society, with impacts on the design and implementation of public policies. This paper discusses the limitations and advances of this process, highlights how mobilization occurred to get to the new regulatory framework of partnerships, and systematizes the main points of change in it. It is argued that a new legal framework alone is not enough to change the course of public policy, or the absence of it. What is observed is a cultural background and an institutional and normative legacy that lean excessively towards control and that have been exacerbated in recent years by all levels of public administration.Despite the articulation of CSOs around the MROSC agenda, and a positive result being reached with enactment of Law 13, 204/15, many challenges are still being imposed for the continuity of this process, which can really enable the new legal framework to produce innovation in public management.

Keywords: Civil Society Organizations; State; partnerships; regulation

ResumenLas alianzas entre las OSC y el Estado es un fenómeno que se observa en otros países, y Brasil tam-bién ha tenido una relevancia cada vez mayor a la prestación de servicios públicos. La regulación de estas relaciones trae consigo una visión particular desde el estado sobre la sociedad civil, con im-pactos en el diseño e implementación de políticas públicas. Este documento analiza las limitaciones y avances de este proceso, destacando cómo fue el proceso de movilización para llegar al nuevo marco regulatorio, y la realización de una sistematización de los principales puntos de cambio. Se argumenta que un nuevo marco legal por sí solo no es suficiente para cambiar la trayectoria de la política pública, o falta de ella. Lo que se observa es un bagaje cultural y un legado institucional y normativo excesi-vamente pendiente de control y que se han agravado en los últimos años por todos los niveles de la administración pública.A pesar de la articulación de las OSC en todo el MROSC el orden del día, y un retorno positivo de la promulgación de la Ley 13.204, muchos retos que aún imponen la continuidad de este proceso para que, de hecho, el nuevo marco legal se convierta en una innovación en el ámbito de administración pública.

Palabras clave: Organizaciones de la Sociedad Civil; Estado; Alianzas; regulación

1. Introdução

O papel e a relevância das Organizações da Sociedade Civil (OSC) no Brasil são amplamente discutidos na esfera política, social e jurídica. Podemos citar alguns as-pectos inseridos nessa discussão: definição das OSCs, seu regulamento jurídico, cer-tificações, acesso a recursos públicos, ce-lebração de parcerias com outros setores, formas de participação, organização institu-cional, formas de atuação e promoção da democracia e de direitos (Peci et al., 2011; Campos, 2008; Alves & Koga, 2006; Pan-nunzio, 2014).

As parcerias são um fenômeno observado em vários países. No Brasil, esse evento

também tem tido uma relevância crescente para a disponibilização de serviços públicos. Há uma grande diversidade de OSCs, assim como de formatos de parcerias em diferentes contextos (Brinkerhoff & Brinkerhoff, 2002).

De acordo com as Fundações e Associações Sem Fins Lucrativos – Fasfil – (IBGE, 2012), há no Brasil 290.692 mil OSCs. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) (ver capítulo de Lopes et al., 2014) identifica que aproximadamente 45% das OSCs do país mantêm algum tipo de relacionamento dire-to ou indireto com o governo federal e cer-ca de 5% das OSCs brasileiras envolvem-se com algum tipo de transferência de recursos (FGV Projetos, 2014).

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A regulação desses relacionamentos traz em si uma visão particular do Estado com relação à sociedade civil, tendo impactos na elaboração e execução de políticas públi-cas. Até 2014, não havia um marco regulató-rio unificado em nível nacional sobre as par-cerias. O resultado disso foi a consolidação de um ambiente de insegurança jurídica que trouxe consequências negativas tanto para o poder público, quanto para as entidades (Junqueira & Figueiredo, 2012; Mendonça & Segatto, 2012).

Em 2011, foi criado um grupo de discussão sobre o marco regulatório das OSCs, envol-vendo diversas entidades e redes dessas organizações, que se dispuseram em torno da Plataforma Marco Regulatório das OSCs (Plataforma OSCs, 2011). O resultado des-sa mobilização envolve muitas idas e vindas acerca de delicados pontos que vão culmi-nar na aprovação da Lei 13.019, de maio de 2014, e da Lei 13.240, de dezembro de 2015, modificando a norma anterior, então deno-minado pelos practioners de novo MROSC (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil).

Este estudo discute as limitações e os avan-ços desse processo, com destaque de como foi a mobilização para se chegar ao novo marco regulatório e a sistematização dos principais pontos de mudança. Para tanto, as autoras realizaram ampla revisão biblio-gráfica e análise de documentos jurídicos, bem como o acompanhamento, entre 2012 e 2015, de diversos eventos organizados pelo poder público, pelas OSCs e universidades, que puseram em discussão as propostas de mudança. Nesses eventos, que contaram com os principais especialistas da área, bem como atores chave no processo de mobiliza-

ção, também foi possível depreender como ocorreram as mobilização para a aprovação das Leis envolvidas no novo marco.

Argumenta-se aqui que um novo marco ju-rídico não é suficiente para modificar a tra-jetória de uma política pública. O que se observa é uma bagagem cultural e um le-gado institucional e normativo que pendem excessivamente para o controle e que têm se exacerbado nos últimos anos por todas as esferas da Administração Pública.

Apesar da articulação das OSCs em torno da agenda do MROSC e do retorno positivo a partir da aprovação da Lei 13.204, mui-tos desafios ainda se impõe na continuida-de desse processo para que de fato o novo marco jurídico se torne uma inovação no âmbito da gestão pública.

2. A regulação das relações entre Estado e OSC e o peso do passado

A regulação se constitui numa força institu-cional que delimita os comportamentos dos atores permitindo, prescrevendo ou proibin-do categorias de ações específicas (Os-trom, 1990). O Estado tem poder de interferir no funcionamento das OSCs, por meio da criação de barreiras na entrada e limitações para a atividade política e a aquisição de recursos econômicos dessas organizações, criando, por exemplo, medidas que aumen-tem seus custos operacionais e des/incen-tivem o acesso a recursos de públicos ou privados, bem como formas de autogeração de receitas.

Mudanças em contextos regulatórios sobre as OSCs em diferentes países demonstra-vam path dependence e predominância de

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mudanças apenas incrementais (Bloodgood et al., 2014).

A Mesa de Articulação da América Latina e do Caribe, uma coalizão de OSCs do conti-nente, num estudo de 2014, destacou que, na região, existe um ambiente regulatório favorável à ação dessas organizações, com claros casos tendendo para mais ou menos restrições a depender da área (Viveiros, 2014).

As tendências negativas observadas reca-em sobre o excesso de controle burocrático--administrativo e outras restrições, incluin-do a repressão a determinadas classes de OSCs. A visão do Estado presente em muitas dessas regulações e que deriva de pontos de vista específicos sobre modelos de desenvolvimento é a de que as OSCs se restringem a executores de políticas estatais à margem de deliberações efetivas, criando incentivos para que apenas um pequeno número de OSC ascendam a um espaço de “mercado” para acessar recursos públicos (Viveiros, 2014). No Brasil, em particular, a Constituição Federal (CF) 88 dá destaque ao possível papel complementar das OSCs em diversas políticas públicas, tais como saúde, educação, assistência, desporto, in-fância e juventude (Campos, 2008).

A Constituição Federal do Brasil reconhece, em seu art. 5o, a liberdade de reunião pa-cífica e a liberdade de associação para a realização de atividades lícitas, excluindo a ação armada, civil ou militar, como também assegura imunidades e isenções tributárias gerais, aplicadas a todas as OSCs (Storto, 2014).

Outro destaque da CF é a interação e par-

ticipação das OSCs nos processos decisó-rios governamentais, com destaque para as legislações específicas sobre conselhos de políticas públicas nas três esferas governa-mentais (Lopes & Abreu, 2014). Verifica-se a partir daí o incremento de espaços e arti-culações voltados à participação em temas ligados ao acesso à informação, à transpa-rência e também a propostas para os mode-los de desenvolvimento local (Storto, 2014).

Há uma série de regulações que se aplicam de forma seletiva a diferentes OSCs, de for-ma voluntária ou compulsória, como as que tratam de imunidades e isenções. E há, por fim, as regulações, como as aprofundadas neste estudo, que se aplicam apenas a um conjunto ainda menor de OSCs que rece-bem financiamento estatal.

No âmbito federal, Lopes e Abreu (2014) destacam a percepção dos gestores públi-cos sobre as parcerias com OSCs, desta-cando como incentivos para sua realização: internalizar o conhecimento especializado dessas organizações, fortalecer a rede de atuação de ONGs e aproveitar sua capilari-dade territorial e acesso a populações alvo específicas, além de ampliar a legitimidade da política pública e suprir a falta de quadros da burocracia para implementação e proxi-midade das demandas dos beneficiários di-retos da ação.

Como desvantagens dessas parcerias, Lo-pes e Abreu (2014) apontam que há instabili-dade nos quadros das OSCs, tendo em vista as dificuldades que encontram em angariar recursos para contratação e manutenção de funcionários. O Estado estaria em desvanta-gem também nos casos em que a totalidade ou grande parte de uma política fosse de-

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legada às OSCs, pois perderia expertise e correria o risco de descontinuidade.

Há também vantagens e desvantagens para as OSCs. Como principais vantagens estão a possibilidade de influenciar as políticas pú-blicas a partir de inovações que produzem, contribuindo para a causa e a visibilidade de sua atuação como um todo, além da possi-bilidade de acessar recursos.

Na realidade, o acesso a recursos públicos tem se mostrado uma “faca de dois gumes” para essas organizações, podendo se con-verter em uma imensa desvantagem. Este é um dos pontos que tem sido mais estu-dado por pesquisadores em diversos países (Anheier, Toepler & Sokolowski, 1997; Sali-nas, 2013; Gronbjerg, 1991, Lipskey & Smi-th, 1990).

3. Contexto recente e mobilizações por um Novo Marco Regulatório

Até o início da década de 1990, a Legislação que norteava as relações Estado/OSCs da-tava dos anos de 1930 e necessitava ajustes (Comunidade Solidária, 1997). De acordo com Oliveira e Haddad (2001), a legislação ultrapassada reunia diferentes normas cons-truídas a partir do Código Civil de 1916, não existia nenhuma tipologia de OSCs, apenas categorias frouxas, que, de acordo com os autores, privilegiavam certas categorias de organizações.

Foram iniciadas discussões por meio da Comunidade Solidária que buscavam rees-truturar as bases institucionais que perme-avam as relações governo/OSCs (Alves & Koga, 2001). Nessas discussões, começou a ficar clara a necessidade de instrumentos

legais distintos para a pluralidade de OSCs (Oliveira & Haddad, 2001).

Durante esse período, novos marcos institu-cionais foram criados: o modelo de Organi-zação Social (OS) – Lei 9.637/98 – e a Lei 9.790/99, que qualificou parte das pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrati-vos como uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Esta últi-ma, ainda, criou o Termo de Parceria, como proposta de melhoria em relação ao tradi-cional convênio (Ferrarezi, 2001, p. 16).

Apesar dessas inovações, não houve a substituição de uma legislação que já estava vigente, que era as dos convênios, apenas instituíram novos modelos que passaram a conviver com outros. Essa convivência de diferentes normas que vão se acomodando tem gerado insegurança jurídica, tanto para os gestores públicos, quanto para as OSCs (Junqueira & Figueiredo, 2012). O que se observa é que a falta de clareza deu mar-gem à que diferentes práticas de gestão por parte dos órgãos públicos contratantes fos-sem aceitas.

Houve inovações relevantes para as OS-CIPs em relação à transparência, sendo obrigadas a submeter anualmente a audito-rias internas e externas, e a tornarem públi-cas suas demonstrações financeiras e seus relatórios de atividades.

A adoção desse novo modelo institucio-nal, conforme demonstraram Alves e Koga (2006), foi objeto de muitas resistências por parte das OSCs. Ainda há um desconheci-mento dos modelos de Organização Social (OS) e OSCIP e de seus instrumentos jurí-dicos, formas de controle/acompanhamento

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e avaliação (Coutinho et. al. 2008), ou seja, a criação de outros instrumentos para par-cerias acarretou em problemas tanto para os gestores públicos como para as OSCs (Carvalho, 2007).

A qualificação de OSCIP obteve baixa adesão por parte das OSCs, que perma-neceram utilizando os convênios como instrumento jurídico para mediar as trans-ferências de recursos pelo Estado, em vez da possibilidade de utilizar o Termo de Par-ceria. Entre os motivos que levaram à baixa adesão das OSCs ao modelo de OSCIPs estão um movimento de resistência ideo-lógica por parte de muitas organizações, que identificam o modelo como um assalto neoliberal ao Estado e o risco de perda de autonomia das OSCs (Durão 2003; Oliveira & Haddad, 2001).

Outros motivos podem ser ainda aponta-dos, como ausência de maior detalhamento normativo, como existe nos convênios, mas, principalmente, a cultura e resistência dos gestores públicos, que ainda tem desconhe-cimento sobre o Termo de Parceria. Além disso, as procuradorias dos órgãos públicos que avaliam e acompanham a execução dos Termos de Parceria são os mesmos que analisam os convênios, tendendo-se a pautar-se pelos mesmos critérios, seguindo a instrução normativa aplicável aos convê-nios. (Barbosa, 2011, & Trezza, 2007).

Alguns dos motivos que levaram a legis-lação das OSCIPs a “não pegar” parecem estar também por trás das dificuldades já visualizadas com o MROSC. Conforme já colocado por Alves e Koga (2006), o peso do passado tem exercido considerável in-fluência na mudança regulatória das OSCs.

A inércia organizacional é um processo pelo qual as organizações mudam lentamente, quando confrontadas com mudanças não desejáveis (Stinchcombe, 1965). Uma vez que formatos e modelos já estão estabeleci-dos, eles tendem a seguir um curso de esta-bilidade, mesmo que as pressões ambientais indiquem que o modelo do passado não seja mais efetivo como costumava ser.

O que se aponta aqui neste estudo é que a inércia organizacional não está apenas atu-ando sobre as OSCs, que na primeira leva de mudanças na década de 1990 tiveram um papel forte de resistência à mudança, como apontado por Alves & Koga (2006), mas prin-cipalmente sobre o Estado e as práticas dos gestores públicos.

A diferença entre os dois momentos é jus-tamente o cenário político e a mudança de posição das OSCs, que passa de resistên-cia a um processo de mudança regulatória a apoiadoras centrais no novo processo.

Com relação ao cenário político das OSCs, conforme apontado por Mendonça, Alves & Nogueira (2013), destacam mudanças na arquitetura de financiamento dessas entida-des, com a diminuição e redirecionamento programático do apoio da cooperação inter-nacional para o desenvolvimento, na emer-gência de novos modelos e formatos de sus-tentabilidade financeira, em parte sustentada por doações de pessoas físicas e jurídicas; e pela crescente “mercantilização” nas rela-ções com o Estado, pela perda de quadros para trabalharem nas áreas sociais, cujas políticas públicas incorporaram as próprias agendas das OSCs, e pela recente onda de criminalização das parcerias. Por parte do Estado, aumentam as pressões por mais

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transparência, eficiência e efetividade na execução de políticas públicas, consequên-cias de uma maior vigilância da sociedade como um todo.

Entre 2007 e 2010, emergem denúncias en-volvendo a transferência de recursos do go-verno federal para as OSCs. Neste contexto e pressionada pela cobertura de mídia, a Presidente Dilma Rousseff chega a suspen-der todos os repasses de convênios federais com OSCs em 2010. Em 2007, é instalada a CPI das ONGs que encerra seus trabalhos em 2010 com uma série de recomendações para aperfeiçoar os mecanismos “pelos quais se materializam a relação de parceria entre Poder Público e ONGs” (Brasil, 2011). Estava instalado um cenário generalizado de desconfiança que culmina com a crimi-nalização das OSCs. Diante desse quadro, tanto o Governo Federal quanto as OSCs se mobilizam para aperfeiçoar os mecanismos que mediam suas relações.

Por parte do Governo Federal – o Sistema de Gerenciamento de Convênios (SICONV) – foi fortalecido e o Portal dos Convênios criado para dar maior transparência a esses instrumentos com a possibilidade de acesso público às informações. Novos procedimen-tos para a contratação de entidades foram criados, tornando obrigatória a realização de chamamento público (Figueiredo Lopes et al., 2013).

Diversas coalizões de OSCs, em particular entidades envolvidas com a agenda de de-fesa de direitos, como a ABONG, aproveita-ram as eleições presidenciais de 2010 para lançar uma carta aos presidenciáveis, na qual requeriam uma política efetiva, instru-mentos e mecanismos que garantissem se-

gurança jurídica, regime tributário apropria-do e autonomia das organizações (Ribeiro, 2013).

Um grupo de discussão sobre MROSC foi criado pelo Governo Federal em 2011, por iniciativa da Secretaria Geral da Presidência da República (SGPR), tendo feito diversas recomendações de mudança na legislação (Figueiredo Lopes et al., 2013). Parte das OSCs convidadas a participar desse grupo, especialmente as relacionadas às agendas de defesa de direitos, mas também com par-ticipação de outras redes como a do GIFE, lideram a criação da Plataforma do Marco Regulatório das OSCs, para continuar pres-sionando o Executivo e, em seguida, o Le-gislativo, para dar andamento às mudanças.

Essa mobilização foi longa e cheia de idas e vindas. O Executivo acaba não pautando o envio do projeto para o Congresso. Diante da falta de priorização da agenda pela pre-sidência da República, buscou uma solução que pudesse acomodar os diversos interes-ses. Existiam alguns Projetos de Lei trami-tando no Congresso sobre o marco regulató-rio das OSCs, motivo pelo qual se procurou viabilizar uma dessas propostas.

Em julho de 2014 foi aprovada a Lei 13.019, que regulamenta as parcerias entre Estado e Organizações da Sociedade Civil, com prazo inicial de 90 dias para entrar em vigor. Como resultado, nem todas as recomenda-ções do GT da SGPR foram acatadas e a Lei retrocede com relação a diversas demandas das OSCs, representando uma norma que enfatiza a lógica burocrática-procedimental, com muitas exigências de difícil cumprimen-to, tanto pelo poder público, quanto pelas OSCs.

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No segundo semestre de 2014, a Secretaria Geral da Presidência da República (SGRP) realiza uma consulta pública para regula-mentação colaborativa da Lei 13.019/14. Tal consulta ocorre em paralelo com a rea-lização de diversas oficinas e encontros em várias partes do país. Houve uma grande mobilização tanto da Administração Pública, especialmente no âmbito municipal, como também de OSCs, alegando prazo insufi-ciente para adequação necessária, tanto de infraestrutura como de familiarização com as novas regras.

Nas novas mobilizações, outras OSCs apor-tam seu apoio na agenda MROSC, com destaque para as religiosas. Diversos pedi-dos de adiamento de entrada em vigor da Lei 13.019 por parte de OSCs e municípios são enviados ao governo federal, e os re-sultados da consulta colaborativa (SGPR, 2014) também apontavam sérios obstáculos para sua operacionalização.

O engajamento surte efeito e é publicada, em 30 de outubro de 2014, a Medida Provi-sória n. 658, prorrogando o prazo de entra-da em vigor, e novamente em 21 de julho de 2015, a Medida Provisória (MP) de 684, com novo adiamento. Com isso a Lei 13.019 retorna à casa Legislativa, onde passa a receber diversas emendas. Finalmente, em 14 de dezembro de 2015, é publicada a Lei 13.204, com significativas alterações de mé-rito na Lei 13.019/14.

4. Principais mudanças no MROSC

A Lei 13.019/14 instituiu um novo regime ju-rídico de parcerias Estado/OSCs, em âmbito nacional a partir de dois objetivos gerais: a) Colaboração: execução de políticas públicas contínuas em parceria Estado/OSCs; b) Fo-mento: ações de incentivo ou financiamento pelo estado de ações desenvolvidas pelas OSCs (Lopez et. al. 2014).

A grande mudança observada foi a extinção do uso de Convênios para celebração de parcerias entre Poder público e OSCs, re-conhecendo que o instrumento do convênio não era compatível para esse tipo de par-ceria, pois ele foi concebido para parcerias entre entes federativos, ocasionando uma série problemas devido a falhas na legisla-ção e falta de fiscalização da administração pública.

Foram criados novos instrumentos de me-diação para substituir a utilização dos con-vênios: os termos fomento e colaboração. A Lei 13.204/15 mantém esse direcionamento, incluindo também o Termo de Cooperação, que formaliza relações de parceria que não envolvam a transferência de recursos finan-ceiros. O Quadro 1 esquematiza as princi-pais mudanças com relação aos instrumen-tos jurídicos para transferência de recursos.

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Quadro 1 – Termo de Colaboração e Termo de Fomento

Termo de Colaboração Termo de Fomento

Diferenças

O plano de trabalho proposto pela administração pública.

O plano de trabalho proposto pela organização da sociedade civil.

A organização da sociedade civil estará desenvolvendo atividades de interesse público proposta pela administração pública.

A administração pública estará fomentando atividades de interesse público proposta pela organização da sociedade civil.

Os Conselhos de Políticas Públicas podem apresentar propostas à Administração Pública para celebração de Termo de Colaboração

Semelhanças

Seleção através de Chamamento Público (“sempre que possível” procedimentos, critérios e indicadores padronizados)Plano de Trabalho com descrição do Projeto, objetivos, indicadores de resultado, plano de aplicação de recursos e prestação de contasExigência de 3 anos de existência da Organização no CNPJ

Comprovação de Capacidade técnica e experiência no objeto da parceria. Discussão sobre como será feita a comprovação da capacidade técnica das OCSs

ObservaçõesA padronização dos critérios do Chamamento Público e do Plano de Trabalho para o Termo de Fomento pode apresentar problemas, pois esse instrumento foi idealizado para promover iniciativas de OSCs.

Fonte: Elaboração própria a partir de informações da legislação: Brasil, Lei 13.019, de 31 de julho de 2014, e Lei 13.204, de 14 de dezembro de 2015

Uma das críticas feitas na Lei 13.019/14 foi a de que, apesar de criar dois instrumen-tos que priorizam demandas do setor pú-blico e as demandas das OSCs, a opera-cionalização de ambos era muito parecida, obedecendo às mesmas exigências, com excessiva ênfase na lógica burocrático-for-mal de controle (Panunzio, 2014). Ambos propunham a padronização de critérios e indicadores, entretanto isso, na Lei 13.2014, desaparece, tratando o texto não mais com indicadores quantitativos e qualitativos, mas com parâmetros de aferição de resultados.

A duas normas prezam pela transparência, tornando obrigatório o chamamento público, salvo casos justificáveis de dispensa ou ine-xigibilidade. Caem na nova norma exigên-cias de tempo mínimo de existência e com-

provação de capacidade técnica.

Na Lei 13.019, havia diversas exigências específicas no plano de trabalho, que foram simplificadas na Lei 13.204. Permanece, no entanto, um desafio para a gestão pública de articular a realização das parcerias com po-líticas, planos e programas governamentais, não apenas de realizar uma avaliação indi-vidual das parcerias. Para isso, é necessário que o poder público tenha clareza dos obje-tivos da parceria, o que nem sempre parece estar claro para os gestores públicos (Lopez & Abreu, 2014), evidenciando a ausência de visão estratégica sobre as parcerias.

O quadro 2 destaca as principais novidades do novo MROSC e compara as Leis 13.019 e 13.204.

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Quadro 2 – Destaques da Lei 13.019/14 e da Lei 13.204/15

Lei 13.019/14 Lei 13.204/15

Definição de OSCs -

Definição abrangente de OSCs que inclui as entidades religiosas e cooperativas com atuação em áreas de interesse público ou social.

ExclusõesOS – contratos de gestãoOSCIPS – termos de parceria

IdemExclui também convênios e contratos celebrados pelo SUS; Termos de compromisso cultural (Lei 13.018/14); transferências do FNDE para o PAED (escolas especiais) e Programa Dinheiro Direto na Escola – art. 3o

Extinção do uso de Convênios

Reconhecimento de que o instrumento do convênio não é compatível para esse tipo de parceria.

Mantido, porém excluindo os repasses do SUS, e transferências específicas na área de educação

Abrangência Nacional – artigo 1o

Evita distorções de implementação e gera estabilidade nas parcerias. Pode gerar dificuldades de adaptação, principalmente entre Estado e Municípios com realidades e capacidades diferentes.

Critérios de exigência de tempo de existência das OSCs diferente para União, Estados e Municípios para celebraçãoDificuldades de implementação devem permanecer

Obrigatoriedade do Chamamento Público

Nos artigos 23, 24 e 27 são descritas as diretrizes para realização do Chamamento Público.Possibilita a ampla publicidade e evita irregularidades.

Simplifica algumas exigências – retira exigência de tempo de existência mínimo da OSCs e comprovação de experiência

Contrapartidas e Certificações

Extinção da contrapartida financeira e não exigência de as OSCs apresentarem certificações ou títulos para celebração de parcerias.

IdemNa prática acaba com o título de Utilidade Pública ao ampliar para as OSCs, definidas na Lei, os benefícios antes atrelados com esta titulação – art. 84

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Plano de trabalho detalhado (Art. 22)

Maior detalhamento do plano de trabalho, com diagnósticos prévios e definição de indicadores de resultados.Desafio em articular a realização do diagnóstico da realidade com políticas, planos e programas governamentais.Adaptação de ordem administrativa e cultural ao modelo de foco em resultados.

Exigências simplificadas – não exige mais indicadores quantitativos e qualitativos, mas sim parâmetros mínimos de aferição, detalhamento de diversos valores em rubricas específicas

Prestação de contas e capacidade institucional do Estado e das OSCs (Art. 63 e 71)

Regras simplificadas para prestação de contas abaixo de R$ 600.000,00.

Prestação de contas simplificadas para todas as parcerias

Contratação de pessoal

Inclusão das despesas com remuneração do pessoal não superior à do teto do Executivo, e apenas os com carteira assinada. Inclusão de encargos trabalhista relacionados ao projeto no orçamento.

Idem

Regulamento de comprasSubmissão do regulamento de compras à administração pública

Elimina a necessidade de regulamento próprio de compras

Controles e responsabilização dos dirigentes

Os dirigentes são solidariamente responsáveis pelas parcerias firmadas com o poder público.

Cai a responsabilização solidária dos dirigentes atuando na gestão executiva de acordo com limites de mercado

Remuneração de dirigentes -Permitida a remuneração de dirigentes

Redes

As OSCs têm a oportunidade de atuar em rede para execução de projetos de interesse público, porém a responsabilidade recai sobre a organização que celebrar formalmente a parceria com a Administração Pública.

IdemAdiciona critério de existência mínima de 5 anos para celebrante com execução em rede e exige comprovação de capacidade de coordenação

Fonte: Elaboração própria a partir de informações da legislação: Brasil, Lei n. 13.019, de 31 de julho de 2014, e Lei 13.204, de 14 de dezembro de 2015

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5. O novo MROSC: inovação ou peso do passado?

Percebe-se que houve uma evolução en-tre as Leis 13.019 e 13.204 com relação a orientações menos formais desta última, e uma maior valorização das OSCs e sua diversidade. Alguns mecanismos que pode-riam estimular boas práticas de governança das OSCs, como a exigência de conselho fiscal e de regulamento próprio de compras, foram retirados e abrandados alguns meca-nismos de controle na prestação de contas.

No entanto, os ganhos obtidos pelas OSCs na nova Lei, bem como oportunidades para aperfeiçoamento, podem ser novamente ob-jeto de mudanças na sua regulamentação por meio dos decretos, o que mantém a ne-cessidade de que a mobilização das entida-des com o poder público continue.

Pensando o novo MROSC como processo de mobilização entre as OSCs e o poder pú-blico, não apenas como o reflexo de suas normas, é possível verificar um caráter ino-vador no próprio dialogo estabelecido entre gestores públicos, OSCs e órgãos de con-trole, que desnudam os desconhecimentos, preconceitos e dificuldades de entendimen-to presentes na atuação das entidades. Em termos de regulamentação, as inovações ficam por conta da possibilidade de atua-ção em rede das OSCs, da criação de um instrumento específico para propostas das OSCs e de outro que permita a cooperação para além da transferência de recursos e da preocupação com a transparência e com critérios mais claros para a realização dos chamamentos públicos, com ênfase no con-trole de resultados.

Há elementos que aprofundam ou comple-mentam os pressupostos contidos no ar-cabouço da Reforma Administrativa, como gestão por resultados e enfoque na eficiên-cia dos gastos públicos (Mare, 1995; Bresser Pereira, 1998). Esses são os pressupostos também encontrados na legislação sobre OS e OSCIPs. O Termo de Parceria contemplava a possibilidade de realização de chamamen-to público, com concursos de projetos, mas também deixava espaço para a discriciona-riedade do gestor público na escolha das entidades a apoiar, um ponto que mereceria aperfeiçoamento na Legislação. Nesse ins-trumento de mediação, também se previu a formalização de resultados a serem alcança-dos com a parceria.

No entanto, diversos estudos apontaram problemas na utilização dos Termos de Par-ceria, bem como na qualificação das OSCs como OSCIPs (Alves & Koga, 2006; Trezza, 2007; Barbosa, 2011; Lemos, 2006; Couti-nho, 2009), entre eles cultura da administra-ção pública e o desconhecimento dos ges-tores públicos acerca do modelo OSCIP no seu formato jurídico, como também na sua proposição de controle de resultados. Com isso muito órgãos preferiram, ao longo dos anos, não celebrar Termos de Parceria (Tre-zza, 2007; Lemos, 2006).

Coutinho (2009) em seu estudo sobre as OSIPCs em MG destacou que os servido-res, bem como suas assessorias jurídicas, se sentiam inseguros com relação a diver-sos pontos, como o fato de que uma OSCIP pode realizar compras sem licitação. Outra insegurança é de ordem cultural, relacionada ao fato de mudança de papéis estabelecidos ante a adoção do modelo de parcerias, que exige um olhar para além da lógica de fun-

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cionamento do poder público. Essa barreira cultural se depara com o fato de que o ges-tor público deve fortalecer sua capacidade de formulação e monitoramento para atuar com parceiros. Também exige a interação com as OSCs, que muitos gestores públicos desconhecem ou tem pouco contato.

As próprias OSCs também demonstraram desconhecimento e resistência à adoção do modelo de OSCIPs. A interação com o Es-tado é muitas vezes custosa e complicada para essas organizações. É necessário lidar com diversos requisitos administrativos e le-gais, tais como a prestação de contas dos recursos utilizados e dos resultados alcan-çados (Coutinho, 2009). Há também resis-tência de ordem ideológica por parte de al-gumas entidades, que veem no modelo uma forma de privatização ou de “patrulhamento” burocrático do Estado (Alves & Koga, 2006).

Por fim, o modelo de OSCIPs teve pouca disseminação entre os órgãos de controle, muitos auditores não dominavam completa-mente as especificidades do modelo. Tanto os órgãos de controle quanto os gestores públicos apresentaram dificuldade de traba-lhar com o modelo de gestão por resultados (Coutinho, 2009).

Ao observar que muitos elementos da Legis-lação das OSCIPs continuam presentes no MROSC de 2014, tais como controle de re-sultados, por meio de um plano de trabalho mais detalhado, publicização e regras para realização de chamamento público e regu-lamento de compras. Observa-se que mui-tas das barreiras culturais enfrentadas pela legislação das OSCIPs continuarão presen-tes no modelo proposto pelo MROSC.

A cultura da gestão pública e seu aparato administrativo-jurídico continuam voltados para o controle formal de meios. Por esse motivo, ainda permanecem sendo ampla-mente utilizados os convênios como ins-trumento de mediação jurídica dessas parcerias, por ser um modelo conhecido e praticado pelos gestores públicos em todos os níveis de atuação governamental, mes-mo quando as parcerias com as OSCs apre-sentam diversos problemas.

É observado no MROSC um movimento contraditório. Na primeira Lei, houve exces-siva ênfase na lógica burocrático-formal de controle (Pannunzio, 2014). Já na segunda Lei, o reconhecimento da diversidade das OSCs e a flexibilização de vários critérios se fazem presentes, destacando a autonomia das entidades.

Os problemas verificados nas OSCIPs e que se repetem no MRSC são ausência de coordenação e divisão de papéis e limites para a atuação das diversas instâncias de controle envolvidas (auditoria externa, con-selho fiscal, órgão público, comissão de mo-nitoramento e avaliação, CGU, TCU etc.). A questão da coordenação institucional ainda permanece em aberto, fazendo com que os atores que aplicam e interpretam a legisla-ção continuem tendo comportamentos con-traditórios, com base na leitura subjetiva de cada controlador. Esse último ponto fica re-forçado com as exclusões de várias modali-dades de parcerias do novo MROSC, o que mantém a sobreposição de várias normas.

6. Considerações finais

Após a análise das parcerias entre Estado/OSCs sob a perspectiva do MROSC, foram

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levantados alguns pontos em relação ao possível impacto e consequências da le-gislação quanto a solucionar problemas de insegurança jurídica e propiciar condições mais favoráveis para a mediação das rela-ções (Mendonça, Alves & Nogueira, 2013).

Não se negam os grandes avanços que o novo marco trouxe, como remuneração da equipe e de custos indiretos (despesas ad-ministrativas), obrigatoriedade do chama-mento público, atuação em rede e extinção da contrapartida financeira. Legislações an-teriores relacionadas às parcerias entre Es-tado e OSCs já traziam em suas premissas questões consideradas agora inovadoras, MORSC, como transparência e controle de resultados.

Os principais pontos negativos se referem às exclusões de várias modalidades de contra-tos de parceria, o que enfraquece o proces-so de coordenação institucional e não con-tribui para garantir a segurança jurídica das parcerias.

Diversas análises foram realizadas sobre as mudanças regulatórias na década de 1990, demonstrando que considerável inércia or-ganizacional recaia sobre as OSCs (Alves & Koga, 2006), mas também sobre o próprio Estado (Barbosa, 2011; Trezza, 2007; Lemos, 2006; Coutinho, 2009), destacando barreiras ideológicas, gerenciais (dificuldade em tra-balhar com a perspectiva de controle de re-sultados e de atuar de forma mais intensa na formulação de políticas) e culturais (falta de conhecimento sobre o ambiente regulatório, bem como conflitos interpretativos das legis-lações e falta de conhecimento e prática de relacionamento com as OSCs).

Dessa forma, o peso do passado atua in-fluenciando nas próprias mudanças regulató-rias, mas também nos efeitos que elas terão nos processos de implementação das políti-cas públicas.

Momentos críticos vivenciados ao longo da década de 2000 entre as OSCs e o Estado vieram a reforçar a trajetória de controle es-tatal para lidar com as dificuldades causa-das pela insegurança jurídica e os desvios encontrados nas relações Estado/OSCs. Em um primeiro momento de mobilização do novo MROSC, transparece a visão limitadora do Estado com relação às OSCs, personifi-cando-se na Lei 13.019/14, de caráter bas-tante restritivo para as entidades.

O caráter restritivo se impôs também ao po-der público, especialmente aos municípios que reforçam a mobilização das OSCs por simplificações, forçando não somente dois adiamentos para entrada em vigor da Lei, como também a produção de uma nova nor-ma, a Lei 13.204/15.

Essa foi uma mobilização positiva, pois apro-ximou gestores públicos, órgãos de controle e universidades para as discussões sobre a regulação, que extrapolaram para a compre-ensão mais ampla da diversidade das OSCs e seu importante papel como parceiras do Estado.

O resultado foi uma “virada de mesa” no MROSC, pois a Lei 13.204/15 trouxe uma visão positiva das OSCs, afastando-se do mero reforço do controle para a promoção das parcerias. No espírito do MROSC, per-maneceram ainda os esforços na promoção da transparência e do fortalecimento das OSCs, com a criação do Termo de Fomento.

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O que se percebe é que a tensão sobre a visão do Estado frente às OSCs ainda está presente. Entre os pedidos de vetos aos ar-tigos mais flexibilizantes da Lei 13.204/15, mais de 80 vieram da burocracia pública. A cultura de desconfiança permanece. Consi-deramos que o processo ainda terá desdo-bramentos no momento de regulamentação da Lei e da sua aplicação pelos diversos atores envolvidos.

Conforme discutido, o rompimento do pa-drão de controle burocrático ainda é um de-safio para a gestão pública como um todo, pois diversos elementos de inércia organiza-cional se combinam para que ele se mante-nha. Está em jogo também uma cultura em que a confiança nas relações precisa con-tinuar sendo construída e constantemente reforçada. Isso impõe desafios para que a mobilização que levou ao novo MROSC se amplie.

A cultura da gestão pública, bem como seu aparato administrativo-jurídico continua vol-tada para o controle formal de meios. O que se defende, segundo a linha de Modesto (1998) “é uma análise da gestão de parce-ria, uma compreensão para além da aplica-ção da legislação”. Ao se concentrar apenas nas questões legais, sem levar em conta ou-tras dimensões das relações entre Estado/OSCs, o poder público não articula uma vi-são estratégica acerca das parcerias, o que não ajuda a superar as barreiras institucio-nais, gerenciais e culturais aqui descritas.

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Novo Marco Regulatório para a realização de parcerias entre Estado e Organização da Sociedade Civil (OSC). Inovação ou peso do passado?

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ARTIGO: Modernização administrativa em contexto subnacional: estudo de caso do Detran-SP

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Modernização administrativa em contexto subnacional:estudo de caso do Detran-SP

Administrative Modernization in a Subnational Context: Case Study of Detran-SP

Modernización Administrativa en Contexto Subnacional: Estudio de Caso del Detran-SP

Resumo: Como em outras experiências anteriores de reforma do Estado, a implantação da Nova Administração Pública (NAP) no Brasil se deu de forma mais evidente em nível federal, sendo menos estudada no âmbito subnacional (estados e municípios). Ade-mais, em geral, a NAP costuma ser discutida por um ponto de vista macro, que considera a administração pública como um todo, sendo menos frequente seu estudo em nível organizacional. Assim, o objetivo deste artigo é analisar, por meio de um estudo de caso, a implantação de valores e práticas da NAP em uma organização estadual, historicamente associada às características e aos desvios da burocracia tradicional. A organização estudada é o Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP), que passou por um processo de restruturação e pode ser visto como um laboratório para entender as variáveis e desafios mais relevantes da NAP em nível subnacional, no Brasil.

Palavras-chave: Nova Administração Pública, métodos e técnicas de gestão, modernização administrativa

Dênis Alves Rodrigues - [email protected] de São Paulo, Escola de Artes Ciências e Humanidades, São Paulo, SP, Brasil.

Martin Jayo- [email protected] da Universidade de São Paulo, Escola de Artes Ciências e Humanidades, São Paulo, SP, Brasil.

Artigo submetido no dia 08-10-2015 e aprovado em 12-02-2016.

DOI: http://dx.doi.org/10.12660/cgpc.v21n68.56904

Esta obra está submetida a uma licença Creative Commons

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Abstract: Like other State reforms in Brazil, the advent of New Public Management (NPM) took place more clearly at the federal level, but is less often discussed at the subnational (states and municipalities) level. Moreover, NPM [?] is generally discussed from a macro point of view, taking into consideration public administration as a whole, and is less frequently studied at the organizational level of analysis. The aim of this paper is to study, by way of a case study, the introduction of the values and practices of New Public Management in a state-level Brazilian public agency, which is historically associated with traditional bureaucratic procedures and vices. The agency studied is the São Paulo State Traffic Department (Detran-SP), which, having recently undergone a restructuring process, can be seen as a laboratory for understanding the most relevant NPM variables and challenges at the Brazilian subnational level.

Keywords: New Public Management, management methods and techniques, administrative modernization

Resumen: Como en otras experiencias anteriores de reforma del Estado en Brasil, la implantación de la Nueva Administración Pública (NAP) se ha dado de forma más evidente a nivel federal, y es menos estudiada a nivel subnacional (estados y municipios). Además, suele ser discutida en general desde un punto de vista macro, que considera la administración pública en su totalidad, y menos frecuente su estudio a nivel organizacional. El objetivo de este artículo es analizar, a través de un estudio de caso, la implantación de valores y prácticas de la NAP en una organización de nivel estadual, históri-camente asociada a las características y desvíos de la burocracia tradicional. La organización estu-diada es el Departamento Estadual de Tránsito de São Paulo (Detran-SP), que pasó por un proceso de restructuración y puede verse como un laboratorio para entender las variables y retos más relevantes de la NAP en nivel subnacional, en Brasil.

Palabras clave: Nueva Administración Pública, métodos y técnicas de administración, modernización administrativa

1. Introdução

Ao longo dos últimos 80 anos, diversas foram as experiências de modernização administrativa empreendidas pelo Estado brasileiro, com destaque para a reforma burocrática da década de 1930, para o De-creto-lei 200, de 1967 e, finalmente, para a reforma gerencialista iniciada em 1995, que introduziu no Brasil os preceitos da chama-da Nova Administração Pública (NAP). Em-bora distintas e espaçadas no tempo, essas experiências tiveram como característica comum o fato de terem se dado com mais ênfase no plano federal e com influências mais limitadas, embora existentes, nas ad-ministrações públicas de nível subnacional. Estados e municípios foram menos privile-giados por esses projetos de modernização e, como consequência, costumam ser obje-to menos frequente de discussões ou estu-

dos sobre reforma do Estado no Brasil. Como contribuição a esse debate, este trabalho se propõe a estudar uma experiência recente de reforma administrativa em nível estadual.

Além disso, os estudos disponíveis sobre re-forma do Estado costumam adotar um nível de análise macro, ou seja, voltado à admi-nistração pública como um todo, conceden-do menos atenção ao plano interno das or-ganizações públicas. Este trabalho pretende adotar um foco intraorganizacional, voltado a analisar como o discurso, as teorias e as ações da modernização administrativa reper-cutem na gestão interna das organizações públicas.

O objetivo do trabalho é analisar, a partir de um caso concreto e relevante, como a agen-da de modernização administrativa da NAP, vigente no plano nacional desde a década

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de 1990, vem sendo assimilada, na prática, na gestão de organizações públicas de nível subnacional. A organização a ser estudada é o Departamento Estadual de Trânsito do Estado de São Paulo (Detran-SP), e a aná-lise se valerá do método de estudo de caso.

Para a consecução desse objetivo, este es-tudo se organiza como segue. A seção 2 fornece uma revisão de literatura sobre a agenda de reformas da Nova Administração Pública (NAP), identificando os mais rele-vantes princípios e instrumentos que fazem parte de sua agenda. A seção 3 trata dos procedimentos metodológicos, justificando a escolha do caso e detalhando os proce-dimentos de coleta e análise de dados. A análise propriamente dita, valendo-se das categorias (princípios e instrumentos) iden-tificadas na seção 2, é feita na seção 4. A quinta comenta os achados da pesquisa e encerra o trabalho com observações sobre as limitações do estudo e sugestões para pesquisa futura.

2. Revisão de literatura: modernização administrativa no Brasil e novos valores para as organizações públicas

Após a redemocratização da década de 1980, e com o aumento das atribuições so-ciais do Estado trazido pela Constituição Fe-deral de 1988, fortaleceu-se o entendimento de que o modelo burocrático, independente-mente de seu grau de implantação no Brasil, mostrava-se inadequado. Empreendeu-se assim uma experiência de reforma voltada a superar a estrutura burocrática. Tal restru-turação entra para a agenda pública com o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado – PDRAE (Brasil, 1995), que, entre seus principais objetivos, propunha sanear

as contas públicas e tornar o Estado ge-rencial, por meio de práticas que já vinham sendo discutidas e implementadas em âm-bito internacional. Essa reforma, conhecida como “Reforma Bresser”, representa a che-gada das práticas e valores da NAP para a gestão pública brasileira. Sua manifestação se deu inicialmente restrita ao nível federal, mas, com o tempo, iniciativas de moderniza-ção também se manifestaram, embora mais pontualmente, no plano subnacional (esta-dos e municípios).

Na transição entre as décadas de 1990 e 2000 – nos primeiros anos, portanto, de im-plementação da reforma gerencial no Bra-sil –, Farah (1997, 2000) chegou a analisar diversas experiências, então recentes, de inovação na gestão pública em estados e municípios. Para a autora, essas experiên-cias indicavam um cenário otimista, por se-rem vistas como tendência de evolução da gestão pública subnacional, em um contexto de crise do modelo burocrático e do Estado nacional-desenvolvimentista, com o poder local funcionando como espaço de inova-ção. Isso sugeria que haveria um processo incremental de modernização da gestão, que levaria à ampliação da cidadania com a democratização de processos decisórios e com melhoras no acesso a serviços pú-blicos.

Com o passar do tempo, contudo, e quando o foco recai de forma específica sobre as re-formas explicitamente baseadas nos princí-pios da NAP, esse otimismo inicial se vê di-minuído. Entre os estudos disponíveis sobre as iniciativas de modernização explicitamen-te fundamentadas na NAP em nível subna-cional, são frequentes os relatos de relativo malogro. Sano e Abrucio (2008), por exem-

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plo, ao analisarem o esforço de implantação de princípios da NAP no campo da saúde no estado de São Paulo, mostram que os resultados ficaram aquém do prometido, ao terem mantido inalterado o insulamento do poder executivo estadual e a baixa capaci-dade de controle institucional e social sobre ele. Queiroz e Ckagnazaroff (2010), por sua vez, ao analisarem a reforma denominada “Choque de Gestão” promovida a partir de 2003 pelo governo do estado de Minas Ge-rais, avaliam que ela conseguiu inovar em alguns aspectos importantes de mudança organizacional (estratégico, tecnológico, de controle), mas não logrou êxito em outros (humano, cultural e político).

Esses frequentes diagnósticos de insuces-so ou de sucesso apenas parcial, entre os quais poderíamos incluir também o de Pra-do e Chasin (2011), sobre a implantação do programa Poupatempo em São Paulo, o de Fernandes et al. (2015), sobre a moderniza-ção administrativa do estado do Piauí, ou ainda o de Bianco et al. (2014), sobre projeto de modernização da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social do Espírito Santo (SESP), indicam a importân-cia de se desenvolver conhecimentos sobre os avanços e, principalmente, sobre as di-ficuldades enfrentadas por experiências de modernização inspiradas pela NAP em or-ganizações públicas de nível subnacional.

A questão se articula com uma onda cres-cente de análises críticas – que não temos a pretensão de resenhar aqui –, que têm questionado os pressupostos e ferramentas da NAP de maneira geral. À medida que ex-periências de reforma amadurecem e seus efeitos sobre a sociedade se tornam mais claros, um número crescente de estudos

teóricos e empíricos tem apontado falhas nessa vertente administrativa e apresentado críticas a seu funcionamento (Hood e Peters, 2004; Dunleavy et al., 2006; Paes de Paula, 2005, Mongkol, 2011).

Nesse espírito, uma análise dos avanços conseguidos e dificuldades enfrentadas pela reforma baseada na NAP no Detran-SP, um caso ainda não estudado na literatura, pode ajudar a desenvolver conhecimento sobre a questão. Como ponto de partida para tanto, uma revisão de literatura sobre as propostas da NAP nos permite identificar três grandes princípios que, no âmbito dessa vertente ad-ministrativa, norteiam as ações das organiza-ções públicas. São eles: (a) foco no cidadão, (b) eficiência; (c) transparência. A tradução desses princípios em ações por parte das organizações públicas, por sua vez, passa pela mobilização de quatro instrumentos: (i) tecnologias de informação e comunicação (TIC), (ii) gestão de pessoas, (iii) novas es-truturas organizacionais, (iv) controle de re-sultados.

Essas sete categorias (três princípios e qua-tro instrumentos) são comentadas a seguir, para mais adiante servirem de lente concei-tual para a análise dos sucessos e falhas da sua implementação no caso Detran-SP.

2.1 Princípio 1: foco no cidadão

Um dos pontos centrais da NAP é o cidadão, especialmente no que diz respeito à forma como o Estado se apresenta a ele e procura atender a suas expectativas e necessidades como usuário de serviços públicos. Melhorar o relacionamento com o cidadão, entendido dessa forma, exige muitas vezes uma restru-turação da própria organização pública, que,

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em sua estrutura tradicional/burocrática, não consegue mais corresponder às necessida-des: “Em todo o mundo, os cidadãos recla-mam de filas intermináveis, de atendimento descortês, de regras arbitrárias, de papela-da, de questionários invasivos e até, ocasio-nalmente, de ter de subornar um funcionário para receber serviços aos quais têm pleno direito” (Kettl, 2006, p. 81).

O modelo burocrático de gestão costuma ser criticado por sua característica estado-cêntrica, ou seja, por seu modo de funcio-nar ser voltado para resolver os problemas do próprio Estado. À medida que o Estado passa a prestar cada vez mais serviços aos cidadãos, a burocracia voltada a si mesma torna-se um obstáculo. Num estado com ca-racterísticas gerenciais, “o foco da ativida-de das organizações governamentais deve ser atender às necessidades dos cidadãos, não à conveniência dos burocratas” (Kettl, 2006, p. 81). O estabelecimento de melhores vias de relacionamento entre Estado e cida-dãos não só permite o melhor acesso aos serviços prestados, como também sua evo-lução para accountability, ao permitir que reclamações, denúncias e sugestões sejam feitas pelos cidadãos, que são os que têm informações sobre a qualidade dos serviços prestados (Przeworski, 2006, p. 58). Sua im-plantação nas organizações públicas, contu-do, naturalmente demanda a criação de uma cultura que permeie os processos de traba-lho, permitindo que a sociedade não apenas seja bem atendida, mas também participe dos processos de decisão (Osborne e Ga-ebler, 1998).

2.2 Princípio 2: eficiência

A questão financeira e orçamentária foi um

dos principais focos de atenção do governo brasileiro durante a década de 1990. Com o objetivo de equilibrar as contas do Estado, procurou-se criar regras para a utilização de dinheiro público, a exemplo da lei de li-citações (Lei Federal 8.666/1993) ou da lei de responsabilidade fiscal (Lei Complemen-tar 101/2000), esta última já na vigência da Reforma do Estado iniciada em 1995. Além disso, os conceitos de eficiência, eficácia e efetividade se tornaram chaves para impul-sionar o Estado em busca de melhores re-sultados.

Embora alguns países tenham instituído controles direcionados ao resultado de pro-gramas e políticas (Pollitt e Bouckaert, 2011), no Brasil, o que se verificou foi a intensifica-ção do controle orçamentário e financeiro, materializado, por exemplo, na criação do Planejamento Plurianual (PPA): vinculou-se o orçamento a programas e projetos, o que garantiu maior controle dos gastos públicos. “Fazer mais por menos” tornou-se palavra de ordem para os administradores públicos, e medidas de eficiência e eficácia foram as-sociadas à racionalidade dos processos e à redução de custos.

2.3 Princípio 3: transparência

Preocupações com transparência e presta-ção de contas têm aumentado considera-velmente em diversos contextos nacionais de reforma administrativa, como destacam Pollitt e Bouckaert (2011, p. 110). No caso brasileiro, a questão está na pauta das trans-formações do setor púbico até mesmo por força de lei, haja vista a Lei 12.527/2011, co-nhecida como Lei de Acesso à Informação, que estabelece o princípio da transparência ativa: os órgãos públicos têm a obrigação

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de publicar um conjunto mínimo de infor-mações de interesse público, não bastando apenas responder a pedidos de informação.

A transparência, ademais, não envolve ape-nas disponibilizar informações ao cidadão, mas também evitar que ele se perca na bu-rocracia ao ter acesso a serviços e incorra em prejuízos financeiros ou de tempo. Um importante item relacionado à transparên-cia, por ambos esses ângulos, é a neces-sidade de investimentos em tecnologias de comunicação e informação (TIC), que permitam melhor interação entre cidadãos e Estado, o que levaria a uma melhora em termos democráticos (O’Donnell, 2011).

Outro ponto que merece atenção são as potencialidades, ainda não totalmente ex-ploradas, de utilização de ferramentas de Tecnologias da informação e comunicação (TIC), visando à ampliação de mecanismos de participação social. Abrucio (2007, p. 77) reforça que “o ponto em que houve menor avanço do governo eletrônico é exatamente na maior interatividade com os cidadãos”, em que pese a abundante oferta de novas ferramentas tecnológicas à disposição.

As novas ferramentas de TIC podem auxi-liar no maior controle da burocracia, a partir do fortalecimento das Ouvidorias e demais canais pelos quais o cidadão possa obter informações (transparência), bem como de reclamar e sugerir (accountability).

Um dos limites da utilização de TIC em fa-vor da transparência e governança demo-crática tem sido, conforme Colombo (2006), a estratificação digital (desigualdade no acesso à tecnologia por parte da popula-ção): embora as TIC possam ser uma forma

de impulsionar a transparência e governan-ça democráticas, ainda assim é necessário criar políticas públicas para que a maior par-te da população tenha acesso a elas.

2.4 Instrumento 1: tecnologias de informa-ção e comunicação (TIC)

As TIC constituem um instrumento importan-te, dentro da NAP, na decisão de ter, como foco, o cliente e a transparência. Comple-mentando essa visão, Kettl (2006, p. 84) re-força a importância de se fazer uso dessas tecnologias para um:

redesenho radical dos procedimentos de trabalho, com vistas a assegurar que usu-ários ou consumidores encontrem o que procuram. Muito frequentemente esse pro-cesso (redesenho dos processos de tra-balho) é complementado por mudanças profundas na estrutura organizacional (...) e por investimentos em novas tecnologias de informação.

Nesse contexto de restruturação administra-tiva, as TIC proporcionam automatização dos processos, com ganhos de tempo e eficiên-cia, o que também proporciona melhor apro-veitamento dos recursos humanos, liberan-do mão de obra para outras atividades. Não obstante, muitas vezes resulta difícil separar ações que são especificamente automatiza-ções de processo de ações que permitem, também, transparência e accountability. Cunha e Miranda (2013) chamam a atenção para o fato de a fronteira entre aplicações de TIC voltadas a e-administração, e-serviços e e-democracia (expressões usadas pelos autores para designar o uso de tecnologia em diferentes dimensões da gestão públi-ca) é difícil de delimitar. Alinhado com esse

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discurso, Abrucio (2007, p. 77) afirma que “a tecnologia de informação tem levado à re-dução dos custos, bem como ao aumento da transparência nas compras governamen-tais, reduzindo o potencial de corrupção”, o que sugere o potencial extremamente im-portante das TIC, ora como catalizadora de eficiência, ora como forma de atingir a transparência de um processo crítico.

Uma crítica que costuma ser feita, contu-do, aos primeiros investimentos em TIC na área pública é que foram pautados muitas vezes pela lógica burocrática, ou seja, bus-cavam maior eficiência e controle da buro-cracia. Com isso, os órgãos públicos brasi-leiros dispõem de um conjunto de sistemas “comprometidos com o usuário-burocrata, ao invés do usuário-cidadão” (Saur, 2001, p. 6). Nesse sentido, para cumprirem seu potencial dentro da NAP, as TIC precisam vir acompanhadas da reformulação admi-nistrativa dos órgãos e organizações públi-cas a fim de quebrar sua tradicional lógica estadocêntrica.

De outro lado, também verificamos experi-ências bem-sucedidas relacionando TIC e melhoras no atendimento ao cidadão, as-sociadas à restruturação administrativa e à revisão de processos. Como exemplo, é possível citar a experiência do programa Poupatempo, no estado de São Paulo. Te-mos aqui um caso em que, ampliando seu foco para além da eficiência, as TIC possi-bilitaram outras ações – voltadas ao bom atendimento e à integração de processos – com ampla aprovação popular. Nessa se-ara, podemos verificar que o emprego de TIC possibilitou que a administração públi-ca se modernizasse, permitindo melhoras de eficiência e de atendimento ao cidadão.

Trata-se de um uso de tecnologia coerente como preconizado por Fresneda (1998, p. 72), para quem “a Tecnologia da Informação é o suporte para o uso efetivo e eficiente do recurso informação, e adicionalmente, pode ser utilizada como um fator decisivo na pro-pulsão do processo de transformação de uma instituição pública”.

2.5 Instrumento 2: gestão de pessoas

Para que se possa praticar o princípio de melhorar o atendimento ao cidadão, um dos pontos principais a serem trabalhados é jus-tamente o funcionário que fará esse atendi-mento ou que, de alguma forma, participará desse processo. É de se esperar que orga-nizações afinadas com o princípio do foco no cidadão procurem atingir esse objetivo a partir do desenvolvimento e valorização de seus quadros. Como expressam Osborne e Gaebler (1998, p. 300), elas “pagam bem a seus funcionários e se esforçam no sentido de melhorar a qualidade de seus ambien-tes de trabalho. Além disso, investem em treinamento”. Nesse aspecto, não apenas a questão salarial está envolvida, mas a pre-ocupação com o ambiente de trabalho, trei-namento e participação dos funcionários, isto é, envolvimento desses nos processos decisórios. Por esse motivo, a organização se afasta de um modelo de gestão top down e procura melhorar o desenvolvimento orga-nizacional e investir em recursos humanos.

Para que a organização consiga motivar seus funcionários, os exemplos precisam vir dos dirigentes, aos quais cabem promover essa nova cultura, estimulando os valores desejados e o comportamento esperado dos funcionários (Osborne e Gaebler, 1998). Ainda, Denhardt (2012, p. 130), de forma ali-

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nhada com o humanismo organizacional, ressalta que:

estudos científicos sobre o comportamen-to do trabalhador e a organização informal levaram à conclusão de que estilos mais abertos e participativos de administração resultaram não só em trabalhadores mais satisfeitos, mas também em trabalhadores mais produtivos.

Bonificações por resultados, atrelando par-te da remuneração dos funcionários a seu desempenho, são medidas adotadas em diversos países que têm modernizado sua gestão pública a partir dos princípios da NAP (Pollitt e Boukaert, 2011). No caso es-pecífico do Brasil, é possível verificar algu-mas experiências que tentam se aproximar disso, com avaliações de desempenho e bo-nificação por resultado – caso, por exemplo do Estado de São Paulo, por meio da Lei Complementar 1079/2008. Apesar disso, o que tem preponderado são os aumentos sa-lariais focados em qualificação e antiguida-de (gratificações por quinquênio, sexta parte etc.).

2.6 Instrumento 3: novas estruturas organi-zacionais

A forma como são estruturadas as organiza-ções públicas não ficam ilesa às mudanças trazidas pela NAP. Fazem-se necessárias mudanças organizacionais que propiciem maior agilidade, bem como diminuição da complexidade burocrática na implementa-ção de ações estratégicas (Xavier e Dias, 2002).

Analisando o histórico de reformas no se-tor público brasileiro, entretanto, diversos

autores registram problemas na forma como a mudança organizacional costuma ser con-duzida. Wood Jr. et al. (1992), por exemplo, observa que as mudanças em cargos, ór-gãos e procedimentos costumam em geral ser promovidas com uma visão mecanicista, isto é, sem levar em conta aspectos compor-tamentais relacionados ao aspecto humano da mudança. Outro problema diz respeito a questões de continuidade e descontinuidade administrativa: cada governante se vê ten-tado a introduzir muitas dessas mudanças, “reinventando” o aparelho do Estado com o propósito de demarcar a nova administração, de acordo com propósitos políticos (Chaves & Marques, 2006; Beatriz & Machado-da--Silva, 1999).

Isso contrasta com a necessidade de mudan-ça organizacional defendida pelos teóricos da NAP. Para Pollitt e Boukaert (2011), as or-ganizações públicas têm seu funcionamento afetado pela NAP em diferentes dimensões: especialização, coordenação, centralização/descentralização e escala. Os autores ainda ressaltam que as organizações públicas têm se apropriado de práticas do mercado, apro-ximando suas práticas e estruturas organiza-cionais daquelas existentes no setor privado.

Quanto à especialização, os autores ressal-tam a importância de que organizações pú-blicas tenham uma atividade específica (es-pecializada), retirando funções que disputem entre si ou sejam conflitantes, todavia, isso pode resultar no aumento do número de or-ganizações públicas.

No que tange à coordenação, sublinham a necessidade de que orientações da cúpula da organização fluam com agilidade às de-mais diretorias e, quando cabível, às filiais

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ou unidades regionais, mantendo coerên-cia no trabalho e orientação única no órgão. Isso pode envolver, muitas vezes, uma sim-plificação do organograma, com redução do número de níveis hierárquicos.

A descentralização, desde que associada a mecanismos de coordenação, parece ser uma das formas de se obter melhor aten-dimento à população, uma vez que uma estrutura decisória centralizada com pouco conhecimento da realidade da população “na ponta” pode trazer distorções e erros nas decisões e orientações.

Finalmente, as características relacionadas à escala das organizações públicas são, para Pollitt e Boukaert (2011, p. 104), decor-rência das dimensões anteriores: a orga-nização pública ideal, no contexto da NAP, será em geral achatada (flat), flexível, espe-cializada e descentralizada, e, por conse-guinte, tenderá a ser também relativamente pequena. Isso configura um desafio para as organizações públicas brasileiras, já que:

na história brasileira registram-se mo-vimentos de reforma administrativa (...) [que] não evitaram a manutenção de es-truturas obsoletas, pesadas e hierarquiza-das, pouco dinâmicas e excessivamente caras, sobretudo devido à tendência à centralização e à superposição de órgãos e de funções (Brasil, 1995, p. 17).

2.7 Instrumento 4: controle de resultados

Embora isso fique mais evidente em deter-minadas áreas, como a financeira, os te-mas abordados anteriormente pressupõem monitoramento e medição de desempenho, fundamental, por exemplo, quando falamos

em controle de resultados. Neste sentido, “é claro que um controle maior de resultados tem sido um elemento central nas reformas da administração pública de diversos paí-ses” (Pollitt e Bouckaert, 2011, p. 106).

De fato, tem-se observado uma crescente melhora nas práticas de mensuração, que deixam de circunscrever-se a questões fi-nanceiras e de custos para evoluir para in-dicadores e análises mais completas de eficácia e efetividade, além de qualidade do atendimento. Com a NAP, há um desloca-mento da mentalidade tradicional de contro-le burocrático de procedimentos, em direção a um controle focado nos resultados. Ainda que não se abandonem completamente os controles procedimentais (até mesmo por-que em muitos países, como o Brasil, boa parte desses controles está prevista em lei), mas responde-se a uma das mais frequen-tes críticas ao modelo burocrático de ges-tão: “engessar” a máquina administrativa. Nos termos de Lima (2007, p. 90), “uma ges-tão pública voltada para resultados reduz ao mínimo o controle a priori e é abundante em monitoramento e avaliação”.

3. Aspectos metodológicos

Para estruturar a parte empírica do trabalho, apresentada na seção 4, optamos pela uti-lização do método do estudo de caso. Em particular, desenvolvemos um estudo de caso único, nos moldes propostos por Yin (1994). Esse autor argumenta que o método do estudo de caso pode ser utilizado sem maiores limitações metodológicas, sempre que (i) a questão de pesquisa seja do tipo “como” ou “por que”, isto é, voltada às rela-ções que precisam ser acompanhadas no tempo, mais do que meras frequências ou

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incidências; (ii) o pesquisador não detenha controle sobre o evento estudado, isto é, não possa manipulá-lo ou reproduzi-lo fora do seu contexto original; (iii) o evento estudado seja contemporâneo à pesquisa. Com rela-ção ao presente trabalho, podemos afirmar com segurança que as condições levanta-das por Yin são atendidas, uma vez que: (i) a questão de pesquisa se volta a entender “como” a agenda da NAP é internalizada nas organizações públicas e “como” ela impacta a gestão dessas organizações; (ii) o objeto de pesquisa – modernização do Detran-SP – não é reprodutível fora de seu contexto; (iii) configura-se um fenômeno contemporâ-neo à pesquisa: a incorporação da agenda de reformas da NAP à administração públi-ca brasileira está em curso, e os eventos es-tudados tiveram início em 2011.

Cumpridas essas condições de aplicabilida-de, a opção pelo estudo de caso único (em oposição ao estudo de casos múltiplos) se justifica, segundo Yin (1994, p. 38-41), quan-do:

(a) se está diante de um caso crítico para o teste (falseamento) de uma teoria; (b) trata-se de caso peculiar, difícil de ser ob-servado; ou (c) trata-se de um caso reve-lador de um fenômeno novo, previamente inacessível à investigação.

Neste estudo, o Detran-SP, por seus atribu-tos excepcionais (é o maior Departamento Estadual de Trânsito do país e por constitui rara experiência de um fenômeno novo), a implantação de princípios e valores da NAP numa grande organização pública de nível subnacional reúne características tanto de caso peculiar como de caso revelador, jus-tificando a opção pelo estudo de caso único.

Tanto Yin (1994) como outros autores que advogam a favor do estudo de caso único em pesquisas na área de Gestão, como Ma-riotto et al. (2014), ressaltam que, nesse tipo de pesquisa, é importante garantir a trian-gulação de dados, isto é, utilizar diferentes mecanismos de coleta, bem como uma aná-lise confrontada dos dados dessas diversas fontes, a fim de fortalecer as conclusões que serão extraídas do caso. Nesse espírito, a pesquisa se beneficiou de diferentes estra-tégias de coleta de dados junto ao Detran--SP: (i) observação participante, dado o pri-meiro autor ter atuado profissionalmente no início do projeto de restruturação do órgão; (ii) documentos públicos relacionados à le-gislação de trânsito federal e estadual, nor-matizações, portarias etc., além do conteúdo disponível publicamente no próprio website do Detran-SP; (iii) documentos internos da instituição estudada, tais como relatórios, comunicados e pesquisas de satisfação en-comendados pelo órgão, desde que não fos-sem confidenciais; (iv) entrevistas pessoais com dois gestores que tiveram papel chave na implementação do projeto de moderni-zação do Detran-SP e que, portanto, detêm uma visão abrangente sobre o projeto, rela-cionados no Quadro 1.

As entrevistas foram semiestruturadas, com base em um roteiro mínimo, a fim de dar li-berdade aos entrevistados para abordarem assuntos não antecipados e que, eventual-mente, não tivessem sido detectados pela revisão de literatura apresentada na seção 2 ou por meio das demais formas de coleta.

Como roteiro mínimo para as entrevistas, utilizou-se a lista dos três princípios (foco no cidadão, eficiência e transparência) e quatro

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instrumentos (TIC, gestão de pessoas, no-vas estruturas organizacionais e controle de resultados) identificados na revisão de litera-tura, a fim de verificar, a partir da visão dos entrevistados, de que forma cada um deles se materializou, ou não, no caso Detran-SP. As entrevistas foram feitas pessoalmente, com duração aproximada de duas horas cada uma delas. Por opção do pesquisador, elas não foram gravadas, preferindo-se fa-zer anotações detalhadas durante e imedia-tamente após as entrevistas, a fim de garan-

tir a espontaneidade dos relatos. A interação entre o pesquisador e os entrevistados, con-tudo, não se resumiu ao momento das en-trevistas, uma vez que novos contatos, tan-to telefônicos como por e-mail, foram feitos durante a fase de análise, a fim de checar dados, contrastar informações e esclarecer dúvidas. Tanto as entrevistas como os conta-tos posteriores com os entrevistados tiveram importância para a triangulação de dados, possibilitando a checagem e confirmação de informações obtidas nas demais fontes.

Quadro 1. Relação dos entrevistados

Nome* Cargo Data da entre-vista

Vinculado órgão na data da entrevista

Daniel Annenberg Diretor-Presidente do De-tran-SP até abril/2014

20/05/2014 Não

Vera Viviane Schmidt Coordenadora adjunta do Detran-SP até novem-bro/2012

19/07/2014 Não

*Os entrevistados consentiram a publicação explícita de seus nomes.

4. Caso

O início das análises e propostas para a re-forma do Detran-SP deu-se em 2010, em-bora não seja possível estabelecer uma data muito precisa. Registrada a questão na agenda pública, sua implementação passou a ocorrer de forma gradual (incremental), na velocidade que a administração pública paulista suportasse. Esse modelo de im-plantação é coerente com o que descreve Lindblom (2010, p. 175), para quem “não se decide uma política de uma vez por todas; ela é formulada e reformulada indefinida-mente”, e “as democracias modificam suas

políticas quase exclusivamente mediante ajustes incrementais” (p. 172). Sintoma dis-so é que o Detran-SP, originalmente um ór-gão da administração direta (coordenadoria vinculada à Secretaria da Segurança Públi-ca em um primeiro momento e, em seguida, à Secretaria da Gestão Pública), só depois de aproximadamente dois anos do início da reforma teve alterada sua configuração jurí-dica, tornando-se autarquia (órgão da admi-nistração indireta, o que lhe confere maior autonomia administrativa e financeira).

Esse modo incremental de implantar a re-forma – talvez também reflexo de uma fal-

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ta de conhecimento real do problema a ser enfrentado em uma instituição tão comple-xa, autorreferida e pouco permeável – pode ser visto a partir dos diversos decretos que se sucederam no tempo, prorrogando o tér-mino das mudanças. O primeiro deles foi o Decreto 56.843/2011, segundo o qual a transição deveria ser feita em um prazo de seis meses, mas depois vieram os Decre-tos 57.736/2012, 58.205/2012, 58.836/2013, 60.030/2014 e, finalmente, o 60.365, de 15/04/2014, que concedia mais 45 dias para a transição.

Há que se notar, também, que já se verifi-cava há algum tempo um esforço político e administrativo para melhorar o atendimento ao cidadão, com aumento de transparência e desburocratização, materializado no pro-grama Poupatempo, implantado no estado de São Paulo em 1996. Essa ligação é tão visível que a restruturação do Detran-SP costuma ser chamada de “implantação do modelo Poupatempo”, e o diretor-presidente que a levou a cabo foi o mesmo executivo que implantara esse programa anos antes.Apesar disso, para que o processo fosse le-vado adiante, de acordo com Vera Viviane Schmidt, entrevistada em 19/07/2014, foi im-portante:

a vontade do governo estadual de realizar essas transformações e a não ingerência política no projeto. Isto fez com que o pla-nejamento fosse realizado apenas visan-do aos objetivos maiores como o foco no cidadão/cliente, e a eficiência e transpa-rência da atuação estatal.

Isso nos permite um maior aprofundamento em cada um dos três princípios e quatro ins-trumentos selecionados na seção 2 como

categorias de análise para guiar o caso.

4.1 Princípio 1: foco no cidadão

Como observa Azoubel (2006, p. 51):

na área pública não basta dizer que se está priorizando o cidadão. É preciso que essa iniciativa fique muito clara para o público, através de decisões gerenciais que colo-quem a área de atendimento em um razo-ável nível de importância dentro da organi-zação.

Isso justifica que analisemos de que forma esse princípio foi contemplado na restrutura-ção administrativa do Detran-SP.

Ao menos no plano discursivo, o foco do ci-dadão foi uma das principais bases da refor-ma. “Este foi um dos focos balizadores do projeto: a questão de se ter o foco na pes-soa que recebe o serviço foi priorizada ao máximo ao longo dos últimos três anos”, ressaltou em entrevista Daniel Annenberg, diretor-presidente do órgão que coordenou o projeto em pauta. Ademais, de acordo com a Lei Complementar 1.195/2013 e Decreto 59.055/2013, na nova estrutura do Detran--SP, que se tornava uma autarquia, criou-se a Diretoria Setorial de Atendimento ao Cida-dão, o que reforça a preocupação, presente no discurso da reforma, de priorizar as ne-cessidades do cidadão.

No desdobramento desse foco em ações, isto é, na sua concretização, várias medidas foram tomadas, tais como a implementação de comunicação aos cidadãos (por meio de cartas e SMS) a fim de avisar eventos como a proximidade do vencimento da Carteira Na-cional de Habilitação (CNH) ou a permissão

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para dirigir, o atingimento de dez pontos por infrações de trânsito, entre outros – informa-ções até então disponíveis apenas no sítio eletrônico do órgão. Isso sugere a busca de um relacionamento mais proativo com o usuário, evitando que, por esquecimento ou desinformação, ele seja sujeito a transtor-nos como multa e apreensão de veículos ou tenha restrições no direito de dirigir. Adicio-nalmente, muitos dos serviços que se des-dobram da emissão dessas comunicações – como a solicitação de CNH definitiva, por exemplo – passaram a ser oferecidos pela internet. Criou-se um sítio eletrônico onde o cidadão pode ter acesso a vários serviços (segunda via de CNH, CNH definitiva, extra-to de pontuação, extrato de multas do veícu-lo etc.), sugerindo que a modernização do órgão foi pautada por uma preocupação que engloba orientar adequadamente o cidadão e oferecer-lhe canais de serviço mais rápi-dos e convenientes. Necessário salientar que isso aproxima o cidadão do órgão públi-co, evitando a necessidade de usar atraves-sadores, como os despachantes.

Outras medidas dignas de nota foram: (i) melhora dos locais de atendimento, insta-lando-se ou ampliando-se pontos de aten-ção ao público em estações de metrô; (ii) criação do “Disque-Detran” e do “Fale com o Detran-SP”, canais voltados a resolução de dúvidas e orientação de usuários, respec-tivamente por telefone e pela internet, (iii) criação de perfis da instituição em redes so-ciais (Twitter e Facebook), entre outras. Tais ações, voltadas ao cidadão, acabaram de-sencadeando a necessidade de outras que se relacionam com os demais princípios e instrumentos expostos na seção 2: revisão de processos, criação de serviços eletrôni-cos, aumento de transparência, criação de

Ouvidoria etc.

Em março de 2014, pesquisa realizada pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade, 2014) avaliou os resultados dessas medidas ao mensurar a percepção de qualidade por parte dos cidadãos aten-didos pelas chamadas “Ciretrans novas” e “Ciretrans antigas”. Ciretran é a sigla para Circunscrição Regional de Trânsito, que cor-responde à extensão do Detran nos municí-pios. As Ciretrans “novas” são aquelas em que, no momento da pesquisa, estavam no novo formato de atendimento, e as “antigas” ainda mantinham o modelo anterior à transi-ção. A pesquisa também mediu a percepção de qualidade dos cidadãos atendidos pelo Detran-SP por meio do programa Poupa-tempo.

O relatório, cujos resultados detalhados es-tão disponíveis na Seade (2014), conclui que a percepção de qualidade dos cidadãos me-lhorou, porém identifica oportunidades de melhora relacionadas sobretudo à quantida-de de vezes que o cidadão precisa dirigir-se a uma unidade do Detran-SP para solucio-nar um problema, à infraestrutura dos locais de atendimento e à postura dos funcioná-rios. Por último, um ponto não trabalhado na restruturação é a participação: a sociedade de forma geral manteve pouca participação nas decisões do órgão, não tendo sido fo-mentados canais participativos de consulta.

4.2 Princípio 2: eficiência

Como se vê na Tabela 1, a reformulação do Detran-SP não gerou diminuição de gastos; ao contrário, para dar cabo de todos os pro-jetos (remodelagem de locais de atendimen-to, implantação de canais eletrônicos etc.),

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foi necessário um incremento substancial do orçamento – situação que, à primeira vista, parece uma contradição em relação à lógi-ca da NAP, que preconiza a necessidade de racionalização e redução de gastos. A situ-

ação configura um trade off semelhante ao discutido por Pollitt e Bouckaert (2011): nem sempre é possível melhorar o desempenho de um órgão público e ao mesmo tempo di-minuir seus gastos.

Tabela 1. Evolução orçamentária do Detran-SP

Ano Orçamento (R$ milhões) Secretaria vinculada2008 123,1 Segurança Pública2009 214,9 Segurança Pública2010 274,8 Segurança Pública2011 303,4 Segurança Pública2012 570,6 Gestão Pública2013 549,3 Planejamento e Desenvolvimento Regional2014 686,6 Planejamento e Desenvolvimento Regional

Fonte: Leis Orçamentárias anuais

O entrevistado Daniel Annenberg sugere que o projeto de restruturação encontrou di-ficuldades em relação à eficiência, em pri-meiro lugar por não ser o objeto principal da reforma e, em segundo, pela ausência de relatórios gerenciais que permitissem tomar decisões nesse âmbito: “Não tínhamos rela-tórios gerenciais. Eles são essenciais e não é adequado, cada vez que você precisa de um relatório, ter de esperar alguns dias até que ele seja gerado”. Com isso, a falta informações gerencias que permitiriam en-contrar oportunidades de redução de custos atuou como entrave nessa questão.

Ainda de acordo com o entrevistado “con-versamos com quase todos os fornecedo-res do Detran-SP e, na maioria dos casos, conseguimos reduzir de 5 a 10% os custos”, porém o resultado dessa ação se manteve marginal pelo fato de muitos dos serviços contratados pelo órgão serem limitados a determinados fornecedores homologados pelo Departamento Nacional de Trânsito

(Denatran), como é o caso da emissão da CNH, restringindo a concorrência e a possi-bilidade de negociação.

É certo, por outro lado, que o investimento realizado em novos canais eletrônicos de atendimento, mencionado no item anterior, tende a resultar em ganhos futuros, difíceis de quantificar, de eficiência ao substituir o atendimento presencial por formas mais eco-nômicas de interação com o público. Com efeito oposto, vale salientar que os sistemas informatizados do Detran-SP carecem de in-tegração, exigindo retrabalho na entrada de dados em diferentes sistemas do mesmo ór-gão, o que diminui sua eficiência. Este último aspecto será retomado no item 4.4.

4.3 Princípio 3: transparência

O princípio da transparência apresenta, em grande medida, intersecções com o de foco no cidadão. A criação de uma Ouvidoria, ine-xistente até a restruturação, é exemplo de

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medida que se relaciona com ambos. Daniel Annenberg ressalta que a preocupação com a transparência pautou inclusive o projeto arquitetônico das unidades de atendimento ao público, que tiveram seu layout projeta-do “para dar transparência na relação com o cidadão e para que ele possa perceber que o Detran-SP está abrindo todas as in-formações para ele”.

Por outro lado, analisando o sítio eletrôni-co do órgão (http://www.detran.sp.gov.br), percebe-se, sem muita dificuldade, que seu conteúdo privilegia o acesso a serviços (agendamentos, solicitação de segunda via de CNH etc.) e a informações de cidadãos e veículos (prontuário, pesquisa de grava-me, pesquisa de multas etc.), em detrimen-to do acesso a dados referentes ao próprio órgão. Embora seja possível encontrar ali informações sobre DPVAT (seguro obriga-tório), frota de veículos e estatísticas de la-cração e outras informações – como valores arrecadados por taxas e multas, contratos firmados, empresas envolvidas, número de habilitados por categoria, quantidade de provas teóricas e práticas realizadas, bem como as respectivas porcentagens de apro-vados e reprovados etc. – estão ausentes. Assim, embora o sítio eletrônico seja muito bem explorado como canal de serviço, ele é subaproveitado como canal de transparên-cia. Concluímos que, se por um lado houve preocupação com maior acesso do cidadão às suas próprias informações e às de seu veículo, por outro o Detran-SP evoluiu muito pouco quanto à transparência de suas pres-tações de contas, contratos e estatísticas.

4.4 Instrumento 1: TIC

A importância das TIC em Departamentos

de Trânsito é ressaltada por Azoubel (2006, p. 37), para quem:

o volume de informações com que lidam estas instituições é enorme, e o ambiente operacional é considerado de missão críti-ca, pois dele depende também a operação de um número razoável de outras institui-ções.

Isso é válido uma vez que os órgãos munici-pais de trânsito, por exemplo, podem autuar condutores e, para tal, dependem dos ban-cos de dados dos departamentos estaduais de trânsito, em que constam os registros dos condutores e veículos.

Os esforços para tornar o atendimento me-nos burocratizado e mais focado no cidadão exigiram revisão de processos, e isso se deu com apoio de ferramentas de TIC, com o emprego de sistemas informatizados para gerenciar processos ou prestar serviços por meio de canais eletrônicos. Contudo, a in-fraestrutura de que o órgão dispunha para tanto era composta por sistemas ultrapas-sados, desenvolvidos há pelo menos duas décadas. Se, por um lado, novas aplicações foram desenvolvidas, por outro isso se fez sem alterar a infraestrutura legada, o que provoca ineficiências devido à ausência de integração entre sistemas.

Exemplo de um desses novos sistemas é o e-CNHsp, desenvolvido a partir de 2010 para uso em plataforma web, que hoje controla os processos de primeira habilitação, adição de categoria, renovação de CNH etc., e permite a fiscalização do cumprimento de aulas teó-ricas e práticas, bem como a consulta ao an-damento do processo do cidadão por meio do sítio eletrônico do Detran-SP. Os dados

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inseridos nesses sistemas – por exemplo, aqueles preenchidos pelo cidadão, e pelos credenciados como os centros de forma-ção de condutores (autoescolas), médicos e psicólogos –, precisam ser posteriormente transcritos para outro sistema estadual a fim de alimentar o Registro Nacional de Cartei-ras de Habilitação (Denatran-Renach) – tra-balho que precisa ser feito para cada novo dado inserido em todos os processos. Pela mesma lógica, porém com sentido inverso, há informações que estão nos sistemas do órgão, mas não podem ser consultadas pela internet por falta de integração com o e-CNHsp, como o histórico de renovações de CNH e os eventuais cumprimentos se suspensão do direito de dirigir. Vê-se que, embora o novo sistema seja uma plataforma moderna, que possibilitou o agendamento de serviços pela internet, sua utilização em paralelo com os sistemas legados gera re-trabalho e aumenta as dificuldades de admi-nistração das informações do órgão.

Um dos principais entraves para a supera-ção dessa situação, na avaliação de Daniel Annenberg, seria a dependência em relação à Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo (Prodesp), fornece-dora de tecnologia do órgão:

Infelizmente a Prodesp é um pouco lenta para responder à enorme demanda de mudanças que o Detran-SP tinha. Em de-terminado momento estávamos com mais de 200 demandas de melhorias de sis-temas, e o fornecedor não estava dando conta.

Uma forma de resolver essas pendências teria sido a contratação, por meio de licita-ção, de empresas capacitadas para tais ser-

viços, o que não chegou a acontecer. Uma interpretação para isso passa pela percep-ção da complexidade da relação comercial entre Detran-SP e Prodesp: várias das pes-soas da Diretoria de Sistemas do primeiro são originalmente funcionários da segunda, o que pode causar conflitos de interesses. Essa questão ainda precisa ser resolvida.

4.5 Instrumento 2: Gestão de pessoas

A restruturação do Detran-SP envolveu, em grande medida, mudanças nas políticas de gestão de recursos humanos do órgão. A ação mais evidente nesse sentido – embora não tenha sido a única – foi a elevação real dos salários. Por meio da Lei Complemen-tar 1.195/2013, os mais de 2.500 oficiais ad-ministrativos do órgão receberam aumentos médios de 56% em suas remunerações. A isso se somou à criação de um programa de bonificação por resultados.

Tão importante quanto isso foi a criação das carreiras permanentes de Agente Estadu-al de Trânsito, com 1.400 vagas e exigência nível superior, e Oficial Estadual de Trânsito (800 vagas, nível médio), e a subsequente abertura de um concurso público, em ju-nho/2013, para preenchimento de 1.200 des-sas vagas sendo 600 de Agente e 600 de Ofi-cial. Com isso, criou-se uma carreira própria para o Detran-SP e um corpo técnico da área de trânsito, que serão o apoio para o desen-volvimento futuro da autarquia, uma vez que, anteriormente, a mão de obra utilizada pelo órgão era composta essencialmente por po-liciais civis e oficiais administrativos, que não tinham atividades exclusivas de trânsito. De-legados, investigadores e demais policiais ci-vis, vinculados ao Detran-SP, aos poucos co-meçaram a retornar a suas atividades junto à

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secretaria estadual de Segurança Pública.

Outra ação importante, reforçada por Vera Viviane Schmidt, foi o estímulo dado a fun-cionários para que fizessem cursos de ca-pacitação e assumissem cargos de direção nas unidades de atendimento ou Ciretrans. Com isso, procurou-se aproveitar os recur-sos humanos e o conhecimento técnico já existentes no órgão, o que foi importante, segundo a entrevistada, para conseguir o apoio dos funcionários ao processo de res-truturação. Cursos de capacitação foram estendidos não só a funcionários do De-tran-SP, mas também aos de credenciados (como os Centros de Formação de condu-tores, médicos e psicólogos – CFCs) e aos terceirizados responsáveis por serviços de atendimento, recepção e orientação.

Por último, um ponto ressaltado na entrevis-ta com Daniel Annenberg, foi a preocupação com a regularização funcional dos colabo-radores que tinham pendências relaciona-das a estágio probatório, licença-prêmio e evolução funcional.

Contudo, percebemos que esses avanços demandaram tempo relativamente longo para materializar-se. Os novos funcionários (concursados) chegaram ao Detran-SP so-mente em 2014, cerca de três anos e meio depois do início da transição. Um dos fato-res a contribuir para essa demora foi certa-mente o processo para tornar o Detran-SP uma autarquia – desde a criação do projeto até sua aprovação pelo Legislativo estadual – etapa que constituía pré-requisito para a contratação mediante concurso.

4.6 Instrumento 3: novas estruturas organi-zacionais

Do ponto de vista organizacional, o Detran--SP passou por uma alteração na sua forma jurídico-administrativa em 2013, ao transfor-mar-se de órgão da administração direta (co-ordenadoria vinculada à Secretaria de Esta-do) em autarquia. Essa alteração lhe conferiu personalidade jurídica de direito público e autonomia administrativa, financeira e patri-monial. Optava-se por um formato com mais autonomia, visando conferir ao órgão maior agilidade na resolução de seus problemas.

Essa mesma agilidade foi buscada também na descentralização, com a criação de 20 Superintendências Regionais com o objeti-vo de acompanhar, monitorar e dar suporte técnico principalmente nas áreas de Habili-tação, Veículos e Administração, às Circuns-crições Regionais de Trânsito (Ciretrans), nos municípios. Entretanto, por sua criação ter-se dado recentemente e sua implantação não ter sido concluída, uma avaliação com-pleta dessas Superintendências fica prejudi-cada, sendo evidente apenas a orientação inicial escolhida e suas motivações. Concluir essa descentralização (regionalização) é um desafio importante. Entre outras questões, é importante obter maior uniformidade nos serviços e processos de trabalho, bem como na fiscalização dos serviços prestados.

Mudanças no organograma da instituição também se fizeram presentes, quando de sua transformação de coordenadoria em autarquia. A Lei Complementar 1.195/2013, que instituiu a autarquia, criou também uma presidência e uma vice-presidência, antes inexistentes (havia um coordenador e um coordenador adjunto). Juntamente com isso, foram instituídas seis diretorias setoriais: diretoria de habilitação, de veículos, de ad-

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ministração, de atendimento ao cidadão, de sistemas e de educação para o trânsito e fiscalização (cada uma delas por sua vez dividida em gerências, e estas em núcleos ou centros), além das 20 superintendências regionais já citadas.

Comparativamente à estrutura anterior à transformação em autarquia, que contava com oito diretorias (condutores, veículos, administração, educação para o trânsito, sistemas, sinalização e engenharia de trá-fego, fiscalização de veículos e condutores, credenciamento), as mudanças mostram que algumas áreas passaram a ter mais relevância, ao passo que outras perderam visibilidade: a antiga diretoria de sinaliza-ção e engenharia de tráfego foi suprimida, tornando-se gerência; a de educação para o trânsito e a de fiscalização de veículos e condutores se fundiram em uma só. E, final-mente, a diretoria de atendimento ao cida-dão, anteriormente inexistente, foi criada.

Outra questão que é importante destacar, ressaltada na entrevista com Daniel Annen-berg, diz respeito à necessidade enfrenta-da pelo órgão de manter unidades enxutas, operando com número reduzido de funcio-nários concursados. Um dado que ajuda a interpretar essa questão é a relação entre as vagas criadas pela Lei Complementar, que criou a autarquia (2.200 vagas), e as dis-ponibilizadas em concurso público (1.200), já abordada no item 4.5. Isso também teve efeitos sobre a nova estrutura organizacio-nal do órgão, que precisou terceirizar parte de seu quadro: não só a segurança predial e a limpeza, mas também parte das ativida-des de recepção e atendimento ao público, passaram a ser feitas por pessoal terceiri-zado.

4.7 Instrumento 4: controle de resultados

Neste aspecto, embora tenha sido mantida uma lógica burocrática de controle a priori, à qual toda a administração pública brasilei-ra está subordinada, a restruturação do De-tran-SP envolveu algum deslocamento em direção a controles a posteriori que, apesar de não previstos na legislação, revelam uma preocupação com retroalimentação e redire-cionamento de ações a partir da percepção da população atendida.

A implantação de um programa de bonifica-ção por resultados, já mencionada no item 4.5, mostra uma preocupação em monitorar as atividades e incentivar atingimento de metas – em geral relacionadas a quantida-des de serviços ou atendimentos realizados e tempos médios de espera por atendimento.

Por outro lado, como já citado no item 4.4, há também uma falta de informações geren-ciais. Relatórios de monitoramento são feitos pelas unidades, mas não há um sistema mais completo, que abarque dados das diferentes unidades e permita uma visão sistêmica, ge-rando informação para decisões gerenciais e estratégicas, inclusive nas diretorias ou pre-sidência. Pode-se dizer, assim, que há um controle incipiente, realizado nas unidades e focado no atendimento. Com isso, questões de eficácia e efetividade não apresentam um real monitoramento.

Além disso, tampouco se observam controles financeiros ou de custos para além daqueles permitidos pelos sistemas informatizados normalmente usados na administração pú-blica paulista, como o Sistema Integrado de

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Quadro 2. Síntese do estudo de caso: principais avanços, lacunas e entraves

Dimensão Principais avanços (o que foi feito)

L a c u n a s (o que não foi feito)

E n t r a v e s (o que dificultou fazer)

Princípio 1: foco no cidadão

– Relacionamento proativo

com os cidadãos, envio de

comunicados

– Novo modelo de atendi-

mento pessoal

– Canais de atendimento

não presencial (telefone e

internet)

– Não finalização da im-

plantação do novo modelo

de atendimento em todas

as unidades

– Pouca atenção dada à

participação da sociedade

no processo de restrutura-

ção, não tendo sido fomen-

tados canais de consulta

– Forte controle procedimen-

tal (ex ante), e falta de fun-

cionários

Princípio 2: eficiência

– Negociação com fornece-

dores para redução de custos

dos contratos

– Racionalização de proces-

sos em nível micro

– Canais de atendimento não

presencial

– O orçamento do órgão

aumentou

– Ausência de relatórios

gerenciais

– Redução de custos nunca

foi um objeto explícito do

programa de restruturação,

que desde o princípio deu

mais ênfase à qualidade no

atendimento e à satisfação

do usuárioPrincípio 3: transparência

– Criação de ouvidoria

– Acesso do cidadão à parte

de seus dados pela internet

– Falta de integração de

sistemas que permita maior

disponibilização de dados

– Pouca exploração do sítio

eletrônico como canal de

transparência, privilegian-

do-se seu papel como canal

de serviço

– Baixa qualidade da maioria

dos sistemas em funciona-

mento

Administração Financeira para Estados e Municípios (Siafem) e o Sistema Integrado de Informações Físico-Financeiras (Siafísi-co). Caso houvesse controles ou sistemas do próprio órgão, seria possível efetuar me-lhores análises quanto ao desempenho do Detran-SP e possibilidades de melhora de eficiência.

5. Achados e considerações finais

A discussão anterior, que mostra como o Detran-SP vem se desempenhando em seu processo de restruturação quanto a cada uma das categorias selecionadas (três prin-cípios e quatro instrumentos da NAP), nos permite sintetizar os achados do estudo de caso no Quadro 2. A figura apresenta os prin-cipais avanços e lacunas em cada uma das sete categorias analisadas e as dificuldades que impediram o órgão de lograr avanços maiores.

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Instrumento 1: TIC

– Disponibilização de servi-

ços eletrônicos (internet).

– Desenvolvimento de siste-

mas para acesso pela web

(e-CNHsp)

– Falta de integração dos

sistemas

– Baixa qualidade dos siste-

mas legados

– Centralização do forne-

cimento de sistemas na

Prodesp, que não conseguiu

responder de maneira satis-

fatóriaInstrumento 2: gestão de pes-soas

– Regulamentação funcional

dos servidores

– Aumento salarial

– Cursos de capacitação/

treinamento

– Aumento do quadro de

funcionários com criação de

carreiras específicas

– Programa de bonificação

por resultados

– Não participação dos fun-

cionários no planejamento

tático e estratégico

– Demora para criação de

novas carreiras

– Demora para abertura de

concurso público

Instrumento 3: novas estrutu-ras organizacio-nais

– Transformação em au-

tarquia: maior autonomia e

agilidade

– Descentralização (criação

das Regionais)

– Terceirização de algumas

atividades

– Alteração do organograma,

com supressão e/ou fusão de

áreas e criação de diretoria

de Atendimento

– Demora na implantação

das Regionais, o que difi-

culta a sua análise.

– Não definição clara do

papel das Regionais

– Grande gama de atividades

diferentes sob a responsabili-

dade do órgão

Instrumento 4: controle de re-sultado

– Monitoramento local da

qualidade do atendimento

nas unidades

– Monitoramento apenas

local, ausência de visão

sistêmica

– Falta de monitoramento

em outras áreas (custos,

habilitação etc.)

– Inexistência de relatórios/

informações gerenciais impe-

de o monitoramento

Fonte: elaboração própria

Com isso, a principal contribuição do traba-lho foi ter levantado e discutido informações sobre como se deu a implantação de valo-res e práticas da NAP em um órgão público estadual relevante, com características de caso peculiar e revelador de um fenômeno

novo: a implantação de reformas administra-tivas gerenciais em nível subnacional e intra-organizacional.

O estudo traz uma contribuição para a práti-ca gerencial ao servir como fonte de referên-

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cia para futuros projetos de restruturação no contexto da modernização administra-tiva em âmbito estadual ou municipal. Ob-viamente cada caso terá as suas particu-laridades, mas o exemplo de experiências relevantes, como a aqui analisada, pode servir de aprendizado ou referência a ges-tores públicos à frente de prováveis novos projetos de restruturação. A experiência do Detran-SP, aqui apresentada, pode ser en-tendida como um laboratório para melhor entendermos alguns dos desafios mais re-levantes para tornar viável a modernização administrativa em organizações de nível subnacional.

Quanto às contribuições acadêmicas, o es-tudo de caso aqui apresentado não tem, evidentemente, a pretensão de preencher a escassez de pesquisas sobre reformas administrativas em âmbito subnacional e organizacional. Por outro lado, ele oferece um instrumento de análise – conjunto de categorias classificadas em princípios e ins-trumentos –, que poderá ser útil ao estudo de casos futuros, que, somando-se à análi-se aqui apresentada, venha a construir um conhecimento apurado sobre reforma admi-nistrativa em organizações públicas de nível subnacional.

Finalmente, um comentário com relação às limitações do estudo. Embora diferentes fontes de evidência empírica tenham sido utilizadas (observação participante, diferen-tes fontes documentais e entrevistas), não se pode negar a importância que as entre-vistas tiveram para coleta e triangulação de dados do estudo de caso. Por esse motivo, o fato de as entrevistas terem se restringi-do a dois gestores responsáveis pela polí-tica implementada, com exclusão de outros

grupos, como, por exemplo, funcionários do órgão, cidadãos usuários dos serviços ou mesmo atores políticos críticos à iniciativa, pode ser visto como um fator que limita os achados do estudo. Ao mesmo tempo, isso sugere um caminho para a ampliação do es-tudo, em uma fase subsequente do esforço de pesquisa.

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