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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 16, pp. 09 - 16, 2004 GEOGRAFIA FÍSICA, PESQUISA E CIÊNCIA GEOGRÁFICA Antonio Carlos Colangelo * *Professor Doutor do Departamento de Geografia - FFLCH - USP. E-mail:[email protected] RESUMO: A Geografia Física é uma parte integrada da ciências da terra pela razão de ser um assunto intrínseco a ela. Os homens não dominam a natureza simplesmente por que eles não podem mudar suas leis. O “sistema natural da superfície terrestre” trabalha estritamente sob estas leis e os processos podem não incluir o homem. Aqui nos apresentamos um tipo de aproximação cronológica da Geografia e Geografia Física. Outro ponto importante apresentado aqui refere-se ao problema das ciências ambientais e seu efeito negativo sobre as ciências tradicionais hoje. ABSTRACT: Physical Geography is an integrated part of Earth Sciences for the reason that its inherent subject. The men don’t dominate de nature simply because they don’t may change its laws. The “Terrestrial Surface Natural Systems” works strictly under these laws, autonomously, and the processes may or not to be man induced. Here we present a kind of corological approach of Geography and Physical Geography. Another important point presented here refers to the problem of environmental sciences and your negative effect over the traditional sciences today. I - A visão corológica em Geografia Já há alguns anos, venho apresentando aos meus alunos uma definição de Geografia nos seguintes termos: a Geografia é a ciência que estuda a localização, gênese e evolução espaciais de objetos (coisas e eventos), naturais e culturais à superfície da Terra. Segundo esta definição, interessa-nos a princípio, tudo o que tenha expressão geográfica, ou seja, tudo que de alguma maneira se instale ou apresente conseqüências, diretas ou indiretas, sobre a superfície da Terra. Esta definição pode parecer simples demais, mas é exatamente desta simplicidade que depende o prestígio da nossa categoria profissional. O prestígio de uma categoria profissional provém do reconhecimento de sua importância pelas outras categorias de profissionais. Para tanto, é condição necessária, ainda que não suficiente, que os outros tenham claro o que estudamos e sua aplicação, sua utilidade, ou seja: os outros precisam saber quando a atuação de um geógrafo é imprescindível. Sabemos ser inumerável a quantidade de fatores e variáveis que intervêm sobre a geografia da superfície da Terra, de modo que muitos fatores naturais e culturais aos quais podemos atribuir expressão geográfica ainda não foram avaliados, mensurados ou mapeados porque ainda não se tem conhecimento do tipo,

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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 16, pp. 09 - 16, 2004

GEOGRAFIA FÍSICA, PESQUISA E CIÊNCIA GEOGRÁFICA

Antonio Carlos Colangelo *

*Professor Doutor do Departamento de Geografia - FFLCH - USP. E-mail:[email protected]

RESUMO:A Geografia Física é uma parte integrada da ciências da terra pela razão de ser um assuntointrínseco a ela. Os homens não dominam a natureza simplesmente por que eles não podem mudarsuas leis. O “sistema natural da superfície terrestre” trabalha estritamente sob estas leis e osprocessos podem não incluir o homem. Aqui nos apresentamos um tipo de aproximação cronológicada Geografia e Geografia Física. Outro ponto importante apresentado aqui refere-se ao problema

das ciências ambientais e seu efeito negativo sobre as ciências tradicionais hoje.

ABSTRACT:Physical Geography is an integrated part of Earth Sciences for the reason that its inherent subject.The men don’t dominate de nature simply because they don’t may change its laws. The “TerrestrialSurface Natural Systems” works strictly under these laws, autonomously, and the processes mayor not to be man induced. Here we present a kind of corological approach of Geography and PhysicalGeography. Another important point presented here refers to the problem of environmental sciences

and your negative effect over the traditional sciences today.

I - A visão corológica em Geografia

Já há alguns anos, venho apresentandoaos meus alunos uma definição de Geografianos seguintes termos: a Geografia é a ciênciaque estuda a localização, gênese e evoluçãoespaciais de objetos (coisas e eventos),naturais e culturais à superfície da Terra.Segundo esta definição, interessa-nos aprincípio, tudo o que tenha expressãogeográfica, ou seja, tudo que de algumamaneira se instale ou apresente conseqüências,diretas ou indiretas, sobre a superfície da Terra.Esta definição pode parecer simples demais,mas é exatamente desta simplicidade quedepende o prestígio da nossa categoriaprofissional.

O prestígio de uma categoria profissionalprovém do reconhecimento de sua importânciapelas outras categorias de profissionais. Paratanto, é condição necessária, ainda que nãosuficiente, que os outros tenham claro o queestudamos e sua aplicação, sua utilidade, ouseja: os outros precisam saber quando aatuação de um geógrafo é imprescindível.Sabemos ser inumerável a quantidade defatores e variáveis que intervêm sobre ageografia da superfície da Terra, de modo quemuitos fatores naturais e culturais aos quaispodemos atribuir expressão geográfica aindanão foram avaliados, mensurados ou mapeadosporque ainda não se tem conhecimento do tipo,

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intensidade e extensão da intervenção delessobre a paisagem.

Localização é problema geográfico porexcelência. Localizar coisas e eventos nãoapenas em termos absolutos, mas tambémrelativos, além de determinar sua gênese eevolução espaciais é tarefa da Geografia. NaGeografia Histórica interessa conhecer aevolução dos padrões espaciais apresentadospor um determinado objeto geograficamentesignificativo. Não há dúvida sobre aimpressionante e assombrosa apropriação etransformação da superfície da Terra pelohomem. Como na verdade, as principais relaçõeshumanas são regidas por jogos de dominaçãoe poder com o objetivo de atender o suprimentode suas necessidades, algumas básicas eoutras nem tanto, torna-se relativamentesimples entender as intervenções humanassobre os elementos que compõem os “sistemasterrestres de superfície”.

O modelo de sistema natural terrestre desuperfície que venho utilizando há 10 anos noensino de Geografia Física do Dep. de Geografiada Universidade de São Paulo (Colangelo, 1989,

concurso de ingresso) trata de umarepresentação em estrutura octogonal do meiofísico terrestre à superfície, cujos vértices sãoocupados pelos elementos; clima, rocha, solo,relevo, água e organismos, os quais constituemobjeto das principais disciplinas que compõema Geografia Física. São seis pólos organizadosem três pares antagônicos, e complementares,a saber: clima, rocha, solo, relevo, água eorganismos. Cada um destes dipólos determinaum eixo do sistema triaxial que representa opróprio mundo físico, respectivamente: tempo,espaço e matéria.

O “Sistema Terra” é uma máquina movidasimultaneamente por radiação solar e cósmicae energiageotérmica. Esta última, provenienteda astenosfera, é originária tanto do fenômenoda acresção gravitacional, ocorrida nosprimórdios da formação da Terra, como tambémda desintegração dos elementos radio-isótopos.É importante salientar que o mundo físico e,conseqüentemente, os geoecossistemas sãodinâmicos e anisotrópicos por excelência e, alémdisso, seus elementos componentes sãomultiescalares.

Fig. 1 – a estrutura octaédricados “Sistemas NaturaisTerrestres de Superfície”

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O eixo do tempo (clima - rocha)

A idéia de “Tempo” está associada aodipolo clima (atmosfera - fatores exógenos) -rocha (litosfera - fatores endógenos). Ointemperismo, a erosão e a geomorfo-pedogênese são produtos imediatos dessainteração, diferenciados no tempo geológico eno espaço geográfico, segundo os fatores:latitudinais, altitudinais e continentalidade.

As rochas à superfície estão emdesequilíbrio com as condições do ambientesubaéreo: temperatura, pressão, presença deH2O, CO2, ácidos húmicos e atividade biológicaem geral. A atuação de processos químicos,físicos e biológicos, opera modificações radicaisem suas condições originais de textura,estrutura e composição - química e mineralógica- das rochas (meteorização), ao mesmo tempoque produz mobilizações de materiais emsuspensão ou em dissolução nos fluxos hídricossuperficiais ou subsuperficiais (erosão).

Processos químicos, físicos e biológicosproduzem não apenas meteorização e erosão,mas também e simultaneamente geomorfo-gênese e pedogênese. É claro que a dinâmicada água e dos organismos, ou seja a atividadefísica e química destes fatores, tem participaçãodireta nos conjuntos de processos quedeterminam, seja o complexo intemperismo -erosão, seja o complexo geomorfogênese -pedogênese.

O eixo do espaço (solo - relevo)

O espaço é o receptáculo da matéria. Amatéria degrada-se ou modifica-se no tempo,graças ao fato de que as diversas modalidadesde energia a ela vinculadas, ao promoverem arealização de trabalho, transformam-se em calor,fazendo, desta forma, com que a entropia douniverso cresça constantemente.

Os corpos (porções finitas de matéria)suportam formas as quais, embora sejamdependentes de um suporte material, não sãoefetivamente entidades físicas, mas abstrações.A ferramenta adequada para descrevê-las é ageometria - a Geometria Euclideana desde a

antiguidade clássica e, mais recentemente, aGeometria Fractal, Mandelbrot (1967).

Formas ou estruturas correspondem aosdiferentes arranjos que a matéria ou osmateriais podem exibir. Neste sentido, o objetoda Geomorfologia corresponde às diferentesformas que podem ser abstraídas da superfícieda Terra. Não são entidades materiais, emboraa sucessão espacial e temporal dos diferentesmateriais que lhes dão suporte seja deimportância capital. Identificar, delimitar,classificar e mapear unidades geomorfológicas,ou sistemas de relevo justapostos no espaço éum recurso técnico básico que os geomorfólogosdispõem para tentar explicar a gênese e aevolução das formas de relevo e tambémrelacioná-las aos seus respectivos sistemas deerosão: sistema de relevo ↔ sistemamorfogenético ↔ sistema de erosão.

Da mesma maneira, os pedólogos estãointeressados no estudo da gênese e evoluçãodos sistemas pedológicos, sendo neste casotambém fundamentais os mapeamentos dasdiferentes unidades pedológicas. Embora o solopedológico tenha uma vinculação mais diretacom os materiais minerais e biológicos que oconstituem, também corresponde a arranjos, ouestruturas, exibidas por tais materiais na porçãomais superficial do terreno, fazendo parte dabiosfera.

Morfologias, arranjos estruturais noespaço, nas mais diversas escalas; estas sãopalavras chave que governam o dipolomorfogênese ↔ pedogênese. Uma tese central,neste caso, que vem sendo desenvolvida hábastante tempo é a de que “quando a morfologiado relevo muda, a morfologia do solo mudatambém, ainda que em apenas um de seuselementos morfológicos componentes”. O pontode intersecção neste caso é o fator climático,que condiciona sobremaneira os tipos de solo etambém os sistemas de relevo considerados,estes últimos, na escala em que podem serobservadas as unidade pedológicas.

O eixo do espaço é, portanto, o domíniodos inumeráveis arranjos morfológico-estruturais geomorfo-pedogênicos observados

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na superfície emersa da Terra. Existem inúmerascorrespondências entre os elementos acima ea tipologia dos fluxos hídricos superficiais esubsuperficiais, a biogeoecologia,principalmente no que concerne à fitosociologia.

O eixo da matéria (água ↔↔↔↔↔ organismos)

Matéria, mater, matriz, mãe, origem, vida.São idéias que por analogia podemos associara este eixo. Água é o elemento fundamentalpara os organismos vegetais e animais. Na águaestá a origem dos organismos e a origem deum indivíduo, vegetal ou animal, está registradano seu cromossoma, que por sua vez carregatoda a informação a ele referente. A informaçãogenética que tal indivíduo herdou de sua mãe,ou matriz, contém a história evolutiva da suaespécie, pelo menos a parte bem sucedida.

Por exemplo, os indivíduos das diversasespécies que compõem as comunidades deorganismos vegetais que, por sua vez,constituem as sinúsias, as biogeocenoses, oscomplexos biogeocenóticos, os biomas, ossubzonobiomas e os zonobiomas, sucedem-seno tempo e no espaço em função disputasacirradas por: água, radiação solar - sombra,calor e temperatura, solos com característicasfísicas e químicas favoráveis e abrigo do vento.Os habitats também podem ser compartilhadosem função de diversos tipos de simbiose entreindivíduos de diferentes espécies.

As diferentes biogeocenoses exibemfatores estruturais muito característicos: alturade dossél, diâmetro de troncos e copas,espaçamento entre indivíduos e distribuição dosestratos componentes. E em qualquer umadelas os fatores limitantes são a água (ehidratação) e a temperatura.

Cumpre salientar que, embora a água ea vida sejam elementos complementares, nãoé raro haver antagonismo entre esteselementos, porque os organismos, apesar dedependentes da água, necessitam-na emproporções determinadas e com uma certadistribuição ao longo do ano hidrológico.

II - Antropomorfização da natureza e

desumanização do homem

O capitalismo em sua fase pós-industrialcombinado ao neoliberalismo e ao “fenômeno”da globalização, do “marketing” global, vemsufocando os estados nacionais a tal ponto quehoje as democracias de muitos dos paísesperiféricos não conseguem mais garantir o bemestar e os direitos dos cidadãos. O capitalismoatual consome hoje, na mesma proporção eintensidade, o homem e a natureza. Ocapitalismo promove uma antropomorfização danatureza e, simultaneamente, umadesumanização do homem. O homem atual éum fantoche nas mãos do capitalismo; é semdúvida, um refém da mídia que tem a capacidadede criar e transferir para os coletivos humanosnecessidades efetivamente desnecessárias eidéias pré-concebicas. Para dar um exemplo, éa mídia que nos avisa de que somos hoje maisinteligentes do que fomos no passado, graçasà utilização dos computadores. Na verdade, oque a mídia nos oferece é o resultado de umavasta cadeia de comprometimentos, o que levaa uma pobreza criativa e intelectual dasdimensões que presenciamos hoje. A mídia atualtem dois objetivos centrais: o primeiro é vendermais e mais revistas e jornais, ou seja, vencera concorrência; o segundo é lançar idéias quesão na verdade quase como dogmas para seupúblico leitor de modo pouco aprofundado,utilizando até mesmo recursos subliminaresmuitas vezes, no estilo publicitário. A questãode vender mais e mais jornais e revistas é auto-explicativa e não exige nenhuma análise maisaprofundada, entretanto, o segundo ponto quepodemos chamar de psico-mídia refere-sediretamente ao jogo do poder através dainculcação de idéias que não passam por umprocesso analítico efetivo. O resultado é que,não raro, vemos diversas pessoas recitandoidéias que estão sendo vendidas por aí, comose fossem o produto da sua reflexão autônoma.Hoje, vivemos um processo brutal depadronização também das idéias, ou seja, devehaver consenso com respeito às idéiasdesejáveis, aquelas que fazem parte dobombardeio diário da midia. A padronização das

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idéias é desejável porque melhora aprevisibilidade do comportamento dos coletivoshumanos e, portanto, melhora a eficácia dasestratégias de “marketing”.

O capitalismo não é selvagem só aqui, eleé selvagem por natureza, de modo que o quemuda de país a país são as ferramentas legaisde controle de que dispõem os estadosnacionais para proteger as pessoas físicas e aspequenas empresas dessa selvageria. Umaestatégia utilizada em toda a parte, embora nãoeficazmente em todos os países, é desmoralizartudo o que é público, inclusive as coisas quejamais poderiam deixar de ser públicas, querdizer: a educação e a saúde. Este processo nosaproxima da barbárie, o que é pior, nem nosdamos conta disto.

Uma série de recursos subliminarescriados pelo nazismo são util izados naatualidade sem nenhum impedimento legal nemmoral. Todo psicólogo social sabe que o maiorobstáculo à expansão do controle sobre amentalidade do homem é a sua satisfação.Pessoas satisfeitas com a sua vida material einterior, que dispõem tempo livre para pensar,não são consumistas, podem descobrir que àsua volta elas têm tudo do que necessitam eque as coisas e a sua posição social nãoprecisam ser objetos de ostentação.

Foi na década de noventa que ocapitalismo neoliberal passou a atacarviolentamente. Os liberais passam aresponsabilizar os estados nacionais pelorecrudescimento da crise em que ele, ocapitalismo, está mergulhado. O capitalismo éum sistema autofágico, ou seja, nele a crise éconstante e crescente, por isto precisa sercamuflada e bodes expiatórios precisam serapontados.

III - A Pós-Graduação e a Geografia Física:qualidade ou quantidade? Ciência de base ouciência “on demand”?

Um programa de pós-graduação emqualquer área do conhecimento científico é parteintegrante de uma vasta estrutura viva,arborescente e multidimensional cujos

inumeráveis ramos, desde os mais próximosaos mais distantes entre si, tocam-se de algumamaneira, em algum momento. As inumeráveisinterações existentes entre as suas diversasespecialidades compõem a dinâmica doconhecimento científico. Obviamente, asinterações dão-se em graus diferenciados emfunção da maior ou menor proximidade entreos campos, ou áreas da ciência. Écompletamente distorcida a idéia de que oespecialista é um “bitolado”, e que a amplitudedos resultados atingidos pelo seu trabalho émuito restrita, não podendo eles extrapolar emlimites do sub-compartimento de ciência quelhes corresponde. Este ponto de partidaparece-me um dos mais importantes porque,na qualidade de Geógrafo, pesquisador eprofessor, sinto-me na obrigação de tratar aquidas questões que me parecem centrais e queàs vezes, as deixamos de lado, ou as tratamosapenas superficialmente ou mesmo, em algunscasos, levianamente. Por este motivo, eu creioque a ciência geográfica vem pagando um preçomuito caro nos dias atuais, embora nem todosse apercebam da gravidade do fato.

O problema do geógrafo enquanto umespecialista segue paralelamente ao problemaciência-de-base – ciência aplicada. Estouconvencido de que não existe ciência aplicada!O que na verdade existe é a aplicação dosresultados alcançados pela ciência de base. Aaplicação dos resultados da ciência é tarefa dasengenharias, não necessariamente aquelasformalizadas em cursos superiores. Todaaplicação de conhecimento científico é umaengenharia! Esta afirmação pode parecerestranha à primeira vista, mas se pensarmossobre o que vem a ser ciência e o que vem aser aplicação veremos que faz sentido. A ciênciaou conhecimento científico é produzida a partirde certas normas muito restritas com afinalidade de que certos objetivos particularessejam atingidos. Tais normas são aquelasestabelecidas pelo método científico:delimitação de um universo de estudo, em queserão feitos testes, e um universo de controleou referência para que possamos confrontar osresultados atingidos e possamos, portanto,

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fazer afirmações. Até mesmo para podermosavaliar o grau de incerteza envolvido nainvestigação, para podermos fazer afirmaçõespara além do universo conhecido. O saltoindutivo é um processo intrínseco da ciência quepermite a aplicação dos resultados universaisda ciência-de-base a casos específicos. Estamosobviamente, partindo do pressuposto daexistência de uma hipótese a ser testada, umproblema que foi levantado com base numateoria previamente estabelecida, que opera comum conjunto de paradigmas que écompartilhado por uma comunidade depesquisadores daquela especialidade, o quegarante a possibilidade da crítica sobre osresultados da investigação científica. A crítica éoutro processo fundamental da prática científicae faz parte da sociologia da ciência. A crítica aum determinado trabalho de pesquisa só fazsentido se fôr estabelecida a partir do mesmoreferencial teórico-conceitual adotado peloautor. Por isto, o especialista é imprescindívelpara a sobrevivência do conhecimento científico.

A crítica é um elemento central na práticacientífica, porque a “dúvida”, e não a “certeza”,está na raíz do conhecimento. Não podemosesquecer de Descartes! A certeza é a base dareligião e não da ciência. A certeza é dogma, acerteza é fé. Na esfera da ciência estamos forados domínios da fé e da “doxa” (opinião,palpite). A produção do conhecimento só podedar-se na especialidade, e não na generalidade.É impossível tratar do geral sem o conhecimentodo específico. Por isto, eu insisto na necessidadede que nós geógrafos sejamos cientistas, esendo assim, conseqüentemente, devemos serespecialistas.

A estrutura em árvore da pesquisa

A Geografia Física é um ramo das ciênciasnaturais, mais especificamente um ramo daschamadas Ciências-da-Terra. Sei que muitos dosmeus colegas Geógrafos possivelmente vãotorcer o nariz, mesmo alguns da área deGeografia Física, ao lerem o que acabo deescrever, mas eu creio que a coerênciaepistemológica impõe-se sobre a luta político-corporativista travada hoje entre geógrafos e

geólogos. Devemos repudiar a políticacorporativista porque ela empobrece oconhecimento e atrasa o processo da ciência.Sobre que base se sustenta a afirmação de quea Geografia Física não é Ciências-da-Terra?Nenhuma, na verdade! Devemos repudiar apolítica corporativista, o mercantilismo, oumelhor o “Marketing Científico” e devemosrepudiar também a “mercadomorfização daciência” (Colangelo, Revista do Departamentode Geografia n° 11, 1997).

Com base em tudo que acabo deapresentar, devo dizer que o orientador não éo mentor ou simples conselheiro do orientando.O orientador deve ser o gerente de umprograma de pesquisa que ele elaborou e queagrega um conjunto de projetos, pré e pós-estabelecidos por ele mesmo, e que são de suatotal e completa responsabilidade. A grandedistorção da nossa prática na pós-graduaçãoem Geografia Física reside justamente no fatode que muitos dentre nós, grupo ao qual euposso ser incluído até o ano de 2001,orientamos alunos na pós-graduação cujosprojetos foram elaborados por eles mesmos:objetivos, área de estudo. Nesta prática, cabeao orientador apenas avaliar a qualidade doprojeto do aluno o que implica também avaliarsua viabilidade e acompanhar o trabalho naqualidade de conselheiro do orientando, que naprática vai fazer “o que quer”. Muitas vezes,como tenho visto ao longo destes anos, aprincipal função do orientador corresponde àviabilização do projeto do aluno.

Sinceramente, estou convencido que émelhor reduzir o número de orientandos,portanto de dissertações e teses, e elevar aqualidade do trabalho. Devemos entenderqualidade do trabalho como integração dosresultados da pesquisa. Deve haver uma sinergiaentre os resultados de um conjunto detrabalhos de pesquisa, quando os projetosoriginais foram elaborados dentro de umprograma integrado de pesquisa, daresponsabilidade do orientador. Para queservem projetos cujos resultados apontam paraas mais diversas direções?

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Sei que há uma grande demanda na pós-graduação, mas as duas principais funções dauniversidade são a produção e a transmissãodo conhecimento, não de qualquer tipo, mas oconhecimento científico. Nosso objetivo tambémnão é fornecer mão de obra farta e barata paraas universidades privadas.

O ambientalismo e o empobrecimentodas ciências

Não existe ciência ambiental! Por que?Porque ambiente é “tudo”! Não existe a ciênciado “geral”, existe a ciência do “particular”, do“específico”. Na Geografia Física podemoselencar a Climatologia, a Geologia, aGeomorfologia, a Pedologia, a Hidrologia e aBiogeografia. Cada sub-campo da GeografiaFísica comporta outros ainda mais específicos.Vejam bem! Não menores, simplesmente maisespecíficos. Quanto maior fôr a especificidadede um sub-campo maior será a amplitude dosconhecimentos direta ou indiretamenteenvolvidos na execução de um determinadotrabalho de pesquisa dentro deste sub-campo.O ambientalismo não trouxe nenhumconhecimento adicional às ciências em geral,simplesmente muito dinheiro destinado àspesquisas nos campos tradicionais da ciênciafoi desviado, por determinação política, para adita área ambiental, no caso da Geografia oPlanejamento Territorial Ambiental, arma políticapoderosa que pode ser util izada naimplementação de projetos de destruição dopouco que resta dos “sistemas naturaisterrestres de superfície”. Elaborei este conceitode “sistema natural terrestre de superfície” em1997, para poder dispor de um conceito físico-biológico que exclui o homem, e evitando assimsobreposições com o conceito de “Geossistema”

Para exemplificar o que afirmei noparágrafo anterior, vou usar o caso daGeomorfologia. Para se ter um conhecimentointrodutório sobre Geomorfologia é necessárioadquirir alguns conhecimentos sobre asdinâmicas atmosférica e litosférica (diastrofismo)bem como a distribuição geográfica global dosprodutos de sua interação, na escala geológica

do tempo. Portanto, deve-se conhecer algosobre a formação de alteritas e solos, bem comosobre os processos erosivos e deposicionais.Por outro lado, se desejamos conhecer adinâmica e evolução de uma encosta nocontexto de uma pequena bacia de drenagem,devemos conhecer os processos erosivosdominantes na área, a hidrodinâmica desuperfície e de subsuperfície envolvida, o que,por sua vez, exige conhecimentos nas áreas damecânica dos fluidos, mecânica dos solos,sedimentologia, biogeografia (dinâmicafitossociológica), climatologia (tratamentoestatístico dos eventos pluviométricos)pedologia, geoquímica e fotointerpretação.Estes conhecimentos são imprescindíveis paraque possamos projetar experimentos emedições que produzam resultadossignificativos no que se refere, seja ao testedas hipóteses iniciais, seja na proposição denovos problemas, os quais devem dar origem anovas pesquisas.

Se permanecermos com os pés, um sobreo pântano das generalidades do ambientalismoe outro sobre o papel de seda do descritivismonomilalista, não vamos a lugar nenhum. Oespírito da ciência não pode morrer na GeografiaFísica do Departamento de Geografia daUniversidade de São Paulo. Devemos dizer nãoà tiranias que representam a“mercadomorfização” e a burocratização daprática pseudo-ciêntífica que serve a interessesalheios àqueles vinculados ao processointrínseco de evolução do conhecimentocientífico.

Espero que algumas das questões quelevantei possam ser objeto de debate. Sei quemuitas destas idéias não são muito popularesentre nós da Geografia. Mas meu objetivo nãoé obter mercado para tais idéias. O que importarealmente, e aqui vai uma sugestão para osalunos, é que os conceitos e idéias que expomossejam livres de qualquer outro interesse quevá além do esclarecimento e do avanço doconhecimento.

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Bibliografia

Trabalho enviado em maio de 2004.

Trabalho aceito em agosto de 2004.

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