C.s.lewis as crônicas de nárnia - vol. 6 - a cadeira de prata

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C. S. LEWIS

AS CRNICAS DE NRNIAVOL. VIA Cadeira de Prata

TraduoPaulo Mendes Campos

Martins FontesSo Paulo 2002

As Crnicas de Nrnia so constitudas por:Vol. I O Sobrinho do MagoVol. II O Leo, o Feiticeiro e o Guarda-RoupaVol. III O Cavalo e seu MeninoVol. IV Prncipe CaspianVol. V A Viagem do Peregrino da AlvoradaVol. VI A Cadeira de PrataVol. VII A ltima Batalha

Para Nicholas Hardie

NDICE

1. ATRS DO GINSIO 2. A MISSO DE JILL 3. A VIAGEM DO REI 4. UMA REUNIO DE CORUJAS 5. BREJEIRO 6. AS TERRAS AGRESTES DO NORTE 7. A COLINA DOS FOSSOS ESTRANHOS 8. A CASA DE HARFANG 9. UMA DESCOBERTA QUE VALEU A PENA 10. VIAGEM SEM SOL 11. NO CASTELO ESCURO 12. A RAINHA DO SUBMUNDO 13. O SUBMUNDO SEM RAINHA 14. O FUNDO DO MUNDO 15. O DESAPARECIMENTO DE JILL 16. REMATE DE MALES 1 ATRS DO GINSIO Era um dia tristonho de outono e Jill Pole estava chorando atrs do ginsio de esportes. Chorava porque algum andara mexendo com ela. Como no vou contar uma histria de escola, tratarei de falar o mais depressa possvel sobre o colgio de Jill, assunto que no nada simptico. Era um colgio experimental para meninos e meninas. Os diretores achavam que as crianas podiam fazer o que desejassem. Infelizmente, porm, havia uns dez ou quinze da turma que s queriam atormentar os outros. L acontecia de tudo: coisas horrveis que, numa escola comum, seriam descobertas e punidas. Mas ali, no. Mesmo que se descobrisse quem as havia feito, o responsvel no era expulso nem castigado. O diretor achava que se tratava de interessantes casos psicolgicos e passava horas conversando com tais alunos. E estes, se encontrassem uma resposta adequada para dizer ao diretor, acabavam se tornando privilegiados. Por isso Jill estava chorando naquele dia tristonho de outono, na alameda mida que vai do fundo do ginsio de esportes mata de arbustos. Ainda no tinha acabado de chorar quando, asso-viando, um menino surgiu do canto do ginsio, mos nos bolsos, quase dando um tropeo nela. Est cego? perguntou Jill. Opa, desculpe... tambm no precisava... e a notou a cara da menina. Ei, Jill, o que h com voc? Jill s fez uma careta, a careta que a gente faz quando quer dizer alguma coisa, mas sente que vai acabar chorando se falar. S podem ser eles, como sempre disse o menino, carrancudo, afundando ainda mais as mos nos bolsos. Jill concordou com a cabea. No era preciso falar mais nada. J sabiam de tudo. Olhe aqui disse o menino , de nada adianta que ns... Falava como quem comea um sermo. Jill irrompeu numa crise de nervos (o que comum acontecer s pessoas quando so interrompidas durante um acesso de choro). Deixe-me em paz e cuide da sua vida. Ningum lhe pediu para meter o bico. Voc mesmo muito bacana para me ensinar o que eu devo fazer. Vai dizer, na certa, que a gente deve chaleirar eles, fazer o que eles quiserem, como voc faz. Caramba, Jill! disse o menino, sentando-se na relva espessa e pulando logo, pois a relva estava toda molhada. Seu nome infelizmente era Eustquio Msero; mas no era um mau sujeito. Jill, voc est sendo injusta. Por acaso eu fiz alguma coisa ruim este ano? No fiquei do lado do Daniel no caso do coelho? E no guardei segredo no caso da Gabriela... mesmo debaixo de torturas? E no fiquei... No sei, nem quero saber! soluou Jill. Eustquio, vendo que ela ainda no estava bem, ofereceu-lhe uma pastilha de hortel e comeou a chupar outra. Jill j enxergava tudo com mais clareza. Desculpe, Eustquio. Confesso que s falei aquilo de maldade. Voc foi muito bonzinho... este ano. Ento, esquea o ano passado. Admito que j fui um sujeito muito diferente. Puxa vida! Como eu era chato! Para ser franca, era mesmo. Acha que eu mudei? Acho, e no sou s eu que acho. Todo mundo diz o mesmo. Ainda ontem no quarto, Eleonor ouviu Adlia dizer que voc est mudado e que iam peg-lo no ano que vem. Eustquio sentiu um tremor. Todos no Colgio Experimental sabiam o que era ser pego pela turma da pesada. Por que voc era to diferente no ano passado? Aconteceram comigo coisas estranhssimas disse Eustquio, misterioso. Como assim? Ele ficou calado durante um tempo. Escute, Jill, tenho dio deste lugar, mais do que uma pessoa pode ter dio de qualquer coisa. Voc tambm, no ? Ora, se tenho! Assim sendo, acho que posso ter toda confiana em voc. Quanta gentileza! Pois , mas acontece que um segredo para l de assustador. Jill, voc boa de acreditar em coisas... quer dizer... nas coisas que fariam os outros aqui cair na gargalhada? Nunca me aconteceu... mas acho que sou. Iria acreditar em mim, se eu dissesse que j estive fora deste mundo? No estou entendendo bulhufas. Bem, vamos esquecer os mundos. Suponha que eu dissesse que j estive num lugar onde os animais sabem falar e onde h... hum... encantamentos, drages... bem, essas coisas que aparecem nos livros de fadas. Eustquio sentia-se como um novelo embaraado, um novelo vermelho. Como voc chegou l? perguntou Jill, tambm um pouco encabulada. Da nica maneira possvel: magia. Eu estava com dois primos meus. Fomos simplesmente levados, assim. Eles j tinham estado l antes. Como tinham passado a cochichar, era mais fcil acreditar, mas, repentinamente, Jill foi apanhada por uma tremenda suspeita (to violenta que, por um instante, virou uma ona): Se eu descobrir que est querendo me fazer de boba, nunca mais falo com voc durante toda a minha vida! Nunca, nunca, nunca! Juro que no estou! Juro por tudo que sagrado! Est bem, eu acredito. E promete no contar para ningum! Quem que voc est pensando que eu sou? Estavam muito nervosos. Mas, quando Jill olhou em torno e reparou o cu tristonho de outono, com as folhas gotejando, e lembrou-se de que no havia esperana no Colgio Experimental (faltavam ainda onze semanas para as frias), disse: Mas, afinal de contas, de que adianta? No estamos l: estamos aqui. E no h nenhum jeito de ir para l. Ou h? por isso mesmo que estamos aqui conversando. Quando voltei do tal lugar, algum disse que os meus dois primos nunca mais iriam l. Era a terceira vez que iam, entende? Mas esse algum no disse que eu no ia voltar. Se no disse porque achava que eu ia voltar. No me sai da cabea a idia de que ns... poderamos... Dar um jeito para que a magia acontea de novo? Eustquio fez que sim. Quer dizer que a gente podia desenhar um crculo no cho, escrever umas letras dentro... e recitar umas frmulas mgicas? Eustquio ficou atento por um instante: Estava pensando em coisa parecida. Mas agora estou vendo que esse negcio de crculo e de frmulas no d certo. S h uma coisa a fazer: temos de pedir a ele. Quem ele? L naquele lugar ele chamado de Aslam. Mas vamos em frente. Ficamos um ao lado do outro, assim, e estendemos os braos para a frente com as palmas das mos viradas para baixo, como fizeram na ilha de Ramandu... Ilha de qu? Depois eu conto. Acho que ele gostaria que olhssemos para o oriente. Onde o oriente? Sei l. Gozado, as mulheres no sabem nada de pontos cardeais Voc tambm no sabe replicou Jill indignada. Sei, sei e muito bem. s voc no me interromper. J vi tudo. L o oriente, onde esto aquelas rvores. Agora voc tem de repetir minhas palavras. Que palavras? As palavras que eu vou dizer, claro. Agora... Aslam, Aslam, Aslam! Aslam, Aslam, Aslam repetiu Jill. Por favor, deixe que ns dois... Nesse momento uma voz do outro lado do ginsio gritou: Jill ? Eu sei onde ela est. S pode estar choramingando atrs do ginsio. Vou pegar ela. Jill e Eustquio entreolharam-se, mergulharam debaixo das rvores e comearam a escalar a encosta ngreme da mata de arbustos a uma velocidade de campees. (Devido aos curiosos mtodos de ensino do Colgio Experimental, l no se aprendia muito Matemtica ou Latim, mas todos sabiam desaparecer rapidamente e sem rudo, quando eles estavam atrs de algum.) Depois de um minuto de correria, detiveram-se para ouvir e concluram que continuavam sendo perseguidos. Se ao menos a porta estivesse aberta! suspirou Eustquio, e Jill concordou com a cabea. No fim da mata de arbustos havia um alto muro de pedra, com uma porta que dava para um terreno relvado. Essa porta quase sempre estava trancada, mas j fora encontrada aberta uma ou outra vez. Ou s uma vez, quem sabe. Mas sempre havia uma grande esperana de que no estivesse trancada. Seria a oportunidade maravilhosa para que os alunos, sem ser percebidos, escapassem dos domnios do colgio. Jill e Eustquio, fatigados e desarrumados, pois tinham corrido quase de gatinhas por debaixo das rvores, chegaram ofegantes ao muro. A porta, fechada, como de hbito. No vai adiantar nada disse Eustquio, com a mo na maaneta, para suspirar em seguida: O-o-oh! A porta abriu-se. E eles, que no desejavam outra coisa, agora ficaram apalermados, pois deram com uma paisagem muito diferente da que esperavam. Esperavam encontrar uma encosta cinzenta indo juntar-se ao cu tristonho do outono. Em vez disso feriu-lhes os olhos o claro do sol, que entrava pelo portal como a luz do vero quando se abre a porta da garagem. As gotas deslizavam como contas pela relva. Via-se melhor o rosto de Jill lambuzado de lgrimas. A luz do sol parecia chegar de um mundo diferente. Mais macia era a relva. Umas coisas reluziam no cu azul como jias ou borboletas gigantescas. Apesar de esperar por alguma coisa parecida, Jill sentiu-se amedrontada. Eustquio demonstrava o mesmo dizendo com dificuldade: Vamos, Jill. Ser que podemos voltar? No h perigo? Uma voz gritou l de trs, cheia de maldade e escrnio: J sei que voc est a, Jill. No adianta se esconder. Era a voz de Edite, que no pertencia turma da pesada, mas era subserviente e delatora. Depressa! exclamou Eustquio. Segure minha mo. Antes que ela soubesse bem o que estava acontecendo, foi puxada para fora dos domnios do colgio, dos domnios do seu pas, dos domnios do mundo. A voz de Edite sumiu de repente como se apaga a voz de um rdio que se desliga. Outro som dominou os ares. Vinha das coisas que reluziam no alto: pssaros, para dizer a verdade. Faziam um barulho de algazarra, que, no entanto, parecia msica, msica de vanguarda, de que a gente no gosta logo. Contudo, apesar da cantoria, havia, envolvendo tudo, uma espcie de silncio profundo. Este, combinado leveza do ar, levou Jill a imaginar se no estariam no cume de uma alta montanha. Segurando a mo da menina, Eustquio avanava. Arregalavam os olhos para todos os lados. Arvores imensas, mais altas do que cedros, erguiam-se direita e esquerda, deixando abertas algumas brechas para a viso. Sempre a mesma paisagem: relva lisa, pssaros de cor amarela, com azulados de liblulas, ou plumagem de arco-ris e sombreados azuis... e o vazio. Era uma floresta solitria. Na frente no havia rvores, s o cu azul. Caminharam sem falar at que Jill ouviu a voz de Eustquio: Cuidado! E viu-se empurrada para trs. Estavam beira de um precipcio. Jill era uma dessas meninas felizes que possuem a cabea boa para grandes alturas. Podia parar sem tremer beira de um abismo. No gostou, portanto, do puxo de Eustquio (como se eu fosse uma criana), e soltou a mo do companheiro. Notando que ele ficou branco, chegou a sentir desprezo: Que que h? E, para mostrar que no tinha medo, parou na beirinha do precipcio (uns palmos alm da prpria coragem) e olhou para baixo. S ento percebeu que Eustquio tinha razo de ficar branco, pois no h em nosso mundo um penhasco como aquele. Imagine-se beira do precipcio mais alto que voc conhea. Imagine-se olhando l para baixo. Pense agora o seguinte: o abismo no acaba onde devia acabar, mas continua, mais fundo, mais fundo, vinte vezes mais fundo. E l embaixo voc nota umas coisinhas brancas; primeira vista parecem carneiros; olhando melhor, descobre que so nuvens, nuvens imensas e gordas. Enfiando o olhar entre as nuvens, voc consegue afinal ver um pouquinho do fundo do abismo, mas to distante que se torna impossvel afirmar se feito de relva, de rvores, de terra ou de gua. Jill ficou olhando de boca aberta. No deu um passo para trs por medo do que Eustquio iria pensar. Mas decidiu logo que me importa o que ele vai pensar? O jeito era afastar-se daquele abismo e nunca mais zombar de quem tem medo de altura. Tentou, mas no conseguiu sair do lugar. As pernas pareciam feitas de massa. Estava tudo danando diante de seus olhos. Que est fazendo, Jill ? Caia fora da, sua boboca! gritou Eustquio. Mas a voz parecia vir de muito longe. Sentiu que ele procurava agarr-la. Jill, no entanto, no tinha mais o domnio dos braos e das pernas. Houve um instante de agonia na ponta do penhasco. O medo e a tontura impediam que ela soubesse de fato o que estava fazendo, mas de duas coisas se lembraria a vida toda, e sonharia com elas: uma, de que se libertara, com um safano, das mos de Eustquio; outra, de que Eustquio, no mesmo instante, tinha perdido o equilbrio, precipitando-se, com um grito de terror, em pleno abismo. Felizmente no teve tempo de pensar no que havia feito. Um imenso animal de cores brilhantes apareceu beira do precipcio. Estava deitado e (coisa estranha) soprando. No estava rugindo ou bufando: simplesmente soprando com a boca escancarada, como se fosse um aspirador de p trabalhando para fora. Jill estava to perto da criatura que podia sentir as vibraes no prprio corpo. Por pouco no desmaiou. E at queria desmaiar, mas o desmaio no depende da nossa vontade. Por fim, l embaixo, viu um pontinho escuro afastando-se do penhasco, flutuando ligeiramente para cima. A medida que subia, mais se afastava, movendo-se a grande velocidade, at que Jill acabou por perd-lo de vista. Parecia que a criatura ao lado soprava o pontinho para longe. Virou-se e olhou. A criatura era um Leo. 2 A MISSO DE JILL Sem olhar para Jill, o Leo levantou-se e deu uma ltima soprada. Depois, satisfeito com seu trabalho, voltou-se e entrou lentamente na floresta. S pode ser um sonho, tem de ser um sonho disse Jill para si mesma. Vou acordar agorinha mesmo. Mas no era sonho. A gente nunca devia ter atravessado o porto. Duvido que Eustquio conhea melhor este lugar do que eu. E, se conhecia, no tinha nada que me trazer para c sem me dizer antes como era. A culpa no minha se ele caiu no abismo. Se tivesse me deixado em paz, no teria acontecido nada. Lembrou-se novamente do berro de Eustquio ao cair e debulhou-se em lgrimas. Chorar funciona mais ou menos enquanto dura. Porm, mais cedo ou mais tarde, preciso parar de chorar e tomar uma deciso. Ao parar, Jill sentiu uma sede enorme. Havia chorado de cara contra o cho, mas agora estava sentada. As aves no cantavam mais. O silncio seria total, no fosse um barulhinho insistente que parecia vir de longe. Ouviu com ateno e teve quase certeza de que se tratava de gua corrente. Levantou-se e olhou em torno, atenta. Nenhum sinal do Leo, mas, com tantas rvores por ali, podia ser que ele estivesse por perto. A sede era intolervel e ela juntou coragem para localizar a gua. Na ponta dos ps, escondendo-se de rvore em rvore, espreitando por todos os cantos, avanou. A floresta estava to quieta que no era difcil descobrir de onde vinha o rudo. Numa clareira corria o riacho, brilhante como um espelho. Apesar da viso da gua multiplicar sua sede, no correu logo para beber. Ficou paradinha, como se fosse de pedra, boquiaberta. Motivo: o Leo estava postado exatamente beira do riacho, cabea erguida, patas dianteiras esticadas. No havia dvida de que a vira, pois olhou dentro dos olhos dela por um instante e virou-se para o lado, como se a conhecesse h muito tempo e no precisasse dar-lhe muita ateno. Ela pensou: Se eu correr, ele me pega; se eu ficar, ele me come. De qualquer forma, mesmo que tivesse tentado, no teria sado do lugar. No tirava os olhos de cima do Leo. Quanto tempo durou isso no saberia dizer. Pareciam horas. A sede era to forte que chegou a pensar que pouco se importaria em ser comida pelo animal, desde que desse tempo de beber um bom gole. Se est com sede, beba. Eram as primeiras palavras que ouvia desde que Eustquio falara com ela beira do abismo. Por um segundo procurou descobrir quem falara. A voz voltou: Se est com sede, venha e beba. Lembrou-se naturalmente do que dissera Eustquio sobre os animais falantes daquele outro mundo e percebeu que era a voz do Leo. No se parecia com a voz humana: era mais profunda, mais selvagem, mais forte. No ficou mais amedrontada do que antes, mas ficou amedrontada de um modo diferente. No est com sede? perguntou o Leo. Estou morrendo de sede. Ento, beba. Ser que eu posso... voc podia... podia arredar um pouquinho para l enquanto eu mato a sede? A resposta do Leo no passou de um olhar e um rosnado baixo. Era (Jill se deu conta disso ao defrontar o corpanzil) como pedir a uma montanha que sasse do seu caminho. O delicioso murmrio do riacho era de enlouquecer. Voc promete no fazer... nada comigo... se eu for? No prometo nada respondeu o Leo. A sede era to cruel que Jill deu um passo sem querer. Voc come meninas? perguntou ela. J devorei meninos e meninas, homens e mulheres, reis e imperadores, cidades e reinos respondeu o Leo, sem orgulho, sem remorso, sem raiva, com a maior naturalidade. Perdi a coragem suspirou Jill. Ento vai morrer de sede. Oh, que coisa mais horrvel! disse Jill dando um passo frente. Acho que vou ver se encontro outro riacho. No h outro disse o Leo. Jamais passou pela cabea de Jill duvidar do Leo; bastava olhar para a gravidade de sua expresso. De repente, tomou uma resoluo. Foi a coisa mais difcil que fez na vida, mas caminhou at o riacho, ajoelhou-se e comeou a apanhar gua na concha da mo. A gua mais fresca e pura que j havia bebido. E no era preciso beber muito para matar a sede. Antes de beber, havia imaginado sair em disparada logo depois de saciada. Percebia agora que seria a coisa mais perigosa. Ergueu-se de lbios ainda molhados. Venha c disse o Leo. E ela foi. Estava agora quase entre as patas dianteiras do Leo, olhando-o diretamente nos olhos. Mas no agentou isso por muito tempo e desviou o olhar. Criana humana disse o Leo , onde est o menino? Caiu no abismo respondeu Jill, acrescentando: ...Senhor. No sabia como trat-lo e seria uma desfeita no lhe dar tratamento algum. Como foi isso? Ele estava querendo me segurar, para eu no cair. Por que voc chegou to perto do abismo, criana humana? Eu queria fazer bonito, senhor. Gostei da resposta, criana. No faa mais isso. Pela primeira vez a face do Leo mostrou-se um pouco menos severa. O menino est bem. Foi soprado para Nrnia. A sua misso que ficou mais difcil. Qual misso, por favor? A misso que me fez cham-los aqui, fora do mundo de vocs. Jill ficou intrigadssima, achando que o Leo a tomava por outra pessoa. No tinha coragem de revelar isso, apesar de sentir que podia dar numa confuso medonha. Diga o que est pensando, criana. Eu estava imaginando... quer dizer... no est havendo um engano? Acontece que ningum chamou a gente aqui. Ns que pedimos para vir. Eustquio disse que devamos chamar... algum... no me lembro do nome... e que esse algum talvez nos deixasse entrar. Foi o que fizemos, e ento encontramos a porta aberta. No teriam chamado por mim se eu no houvesse chamado por vocs. Ento o senhor o Algum? perguntou Jill. Sim. Mas oua qual a sua misso. Longe daqui o reino de Nrnia. Ali vive um velho rei, que anda em aflio por no deixar um filho, um prncipe de seu prprio sangue, que venha a ser rei depois dele. No tem herdeiro, pois seu nico filho foi seqestrado h muitos anos. Ningum em Nrnia sabe onde est esse prncipe ou mesmo se continua vivo. Mas est vivo. Ordeno que vocs procurem o prncipe at encontr-lo, para traz-lo de volta, ou at morrerem, ou at voltarem a seu prprio mundo. Mas como? perguntou Jill. Vou lhe dizer. Estes so os sinais pelos quais hei de gui-la na sua busca. Primeiro: logo que Eustquio colocar os ps em Nrnia, encontrar um velho e grande amigo. Deve cumprimentar logo esse amigo; se o fizer, vocs dois tero uma grande ajuda. Segundo: vocs devem viajar para longe de Nrnia, para o Norte, at encontrarem a cidade em runas dos gigantes. Terceiro: encontraro uma inscrio numa pedra da cidade em runas, devendo proceder como ordena a inscrio. Quarto: reconhecero o prncipe perdido (caso o encontrem), pois ser a primeira pessoa em toda a viagem a pedir alguma coisa em meu nome, em nome de Aslam. O Leo parecia ter acabado de falar. Jill achou que devia dizer alguma coisa: Certo, muito obrigada. Criana disse o Leo, com a voz mais amvel do que antes , talvez no esteja to certo quanto voc imagina. Seu primeiro cuidado lembrar-se de tudo. Repita para mim, pela ordem, os quatro sinais. Jill no se saiu muito bem. O Leo a corrigiu e fez com que repetisse outra vez, e mais outra, e mais outra, at que a menina decorou tudo direitinho. Mostrava-se pacientssimo, e Jill teve a coragem de perguntar: Por favor, como que eu vou para Nrnia? De sopro. Vou sopr-la para o Oeste, como soprei Eustquio. Ser que eu chego a tempo de contar-lhe o primeiro sinal? Alis, acho que isso no tem importncia. Se ele encontrar um velho amigo, fatalmente ir falar com ele... ou no ? Voc no tem tempo a perder. Tem de ir imediatamente. Venha. Caminhe at a beira do abismo. Se no havia tempo a perder, a culpa era de Jill, e ela sabia disso. Se eu no tivesse bancado a boba, Eustquio e eu teramos ido juntos, e ele tambm teria ouvido as instrues todas. Era assustador chegar beira do abismo, principalmente porque o Leo no ia na frente, mas ao lado dela e sem fazer o menor rudo com as patas. J perto do precipcio, ouviu uma voz atrs de si: Fique quieta. Daqui a pouco soprarei. Antes de tudo, lembre-se dos sinais! Repita-os ao amanhecer, antes de dormir e, caso acordar, durante a noite. Por mais estranhos que sejam os acontecimentos, de maneira alguma deixe de obedecer aos sinais. Em segundo lugar, aviso-a de que falei, aqui na montanha, com a maior clareza: no o farei sempre em Nrnia. O ar aqui na montanha limpo, e aqui o seu esprito tambm limpo; em Nrnia, o ar ser mais pesado. Cuidado para que o ar pesado no confunda seu esprito. Os sinais que aprendeu aqui surgiro sob formas bem diferentes ao depar-los l. importantssimo conhec-los de cor e desconfiar das aparncias. Lembre-se dos sinais, acredite nos sinais. Nada mais importa. Agora, Filha de Eva, adeus... A voz tornara-se mais branda ao fim da fala e agora sumira de todo. Jill olhou em torno. Para seu espanto viu o penhasco mais de cem metros l atrs; o Leo era um pontinho dourado. Ela havia cerrado os dentes e fechado os punhos, esperando uma terrvel lufada; mas o sopro do Leo foi to delicado que ela nem chegou a notar o momento em que deixou a terra. Sentiu medo s por um instante de medo. Era to longe o mundo l embaixo, que no podia ter com ele a menor relao. Flutuar na respirao do Leo era uma delcia. Podia deslizar de frente ou de costas, revirar-se vontade, como se fosse dentro dgua. No havia vento e o ar era clido. Sem barulho e sem turbulncia, era uma sensao bem diferente do que a de viajar de avio. Parecia mais com uma viagem de balo, at melhor, mas Jill nunca entrara num balo. Ao olhar para trs pde avaliar a altura da montanha onde estivera. Perguntava a si mesma como uma montanha to colossal no estava coberta de neve e gelo. Essas coisas deviam ser diferentes naquele mundo. Olhando para baixo, no podia distinguir se estava flutuando sobre o mar ou sobre a terra, to alto estava. Nossa! Os sinais! disse subitamente. Melhor repeti-los. Passou por um estado de pnico durante dois segundos, mas ainda era capaz de dizer os sinais com perfeio. Estava tudo bem, pensou, recostando-se no ar como se fosse um sof e dando um suspiro de satisfao. Bem disse Jill para si mesma algumas horas mais tarde , devo confessar que dormi. Dormi no ar, veja s! Ser que isso j aconteceu a algum no mundo? Acho que no. Ora bolas, vai ver que o Eustquio tambm dormiu! Nessa mesma rota, s um pouquinho antes de mim. Vou dar uma espiada l embaixo. Parecia uma vasta plancie azul-escura. No se percebiam montes, mas havia coisas esbranquiadas que se moviam devagar. Devem ser nuvens, pensou, mas muito maiores que as do abismo; so maiores porque esto mais perto: devo estar indo para baixo. Que sol chato! O sol, que estava l no alto no comeo da viagem, feria-lhe os olhos, baixando sua frente. Eustquio tinha razo quando disse que Jill (no sei se as meninas em geral) no era muito entendida em pontos cardeais. Se o fosse, ao sentir o sol nos olhos deveria saber que viajava na direo oeste. Olhando a plancie azul l embaixo, notou que existiam aqui e ali uns pontos bem brilhantes, mais plidos. o mar, pensou, os pontos devem ser ilhas. E eram. Teria sentido inveja se soubesse que Eustquio j havia apreciado aquelas ilhas de um navio, e at percorrido uma ou outra. Mais tarde, comeou a observar pequenas rugas na planura azul; rugas que deveriam ser ondas imensas se estivesse entre elas. Juntando-se ao horizonte, estendia-se uma linha cada vez mais espessa e acentuada. Era o primeiro sinal da grande velocidade em que viajava. A linha que se acentuava, ela sabia, s podia ser a terra. Sbito, da esquerda (pois o vento era sul), uma grande nuvem branca veio a seu encontro, na mesma altura em que ela se achava. Antes de saber onde se encontrava, mergulhou naquele nevoeiro frio e mido. Por um instante nem conseguiu respirar. Foi piscando que encontrou, do outro lado, a luz do sol. Suas roupas estavam molhadas: vestia um casaco esporte, suter, saia-cala, meias e bonitos sapatos. Foi descendo, descendo, e notou com surpresa alguma coisa pela qual j devia estar esperando: rudos. At aquele instante viajara em absoluto silncio. Agora, pela primeira vez, ouvia o marulhar das ondas e o grito das gaivotas. Sentia tambm o cheiro do mar. A terra estava cada vez mais prxima, com montanhas frente e esquerda. Eram baas e cabos, campos, matas e praias. O espraiar das ondas, cada vez mais intenso, abafava os demais alaridos do mar. A terra surgiu bem frente estava chegando desembocadura de um rio. Voava a poucos metros da gua. A crista de uma onda golpeou-lhe os ps e a espuma molhou seu corpo. J perdia velocidade. Deslizava na direo da margem esquerda do rio. Havia tanta coisa para ver que era impossvel observar tudo: um lindo relvado, um navio to brilhante que parecia uma jia imensa, torres e ameias, bandeiras agitando-se ao vento, uma multido, roupas festivas, armaduras, ouro, espadas, msica. Mas viu tudo embaralhado. A primeira coisa que percebeu com nitidez foi que estava em p, sob ramos de rvores, beira do rio; a poucos metros, achava-se Eustquio. Seu primeiro pensamento foi: Como Eustquio est sujo e desarrumado! Depois: Como estou molhada! 3 A VIAGEM DO REI O que fazia Eustquio parecer to encardido e desalinhado (e Jill tambm, caso se visse no espelho) era o esplendor do ambiente. De uma brecha da montanha, a luz do sol poente jorrava sobre a relva lisa. Do outro lado da relva, com seus cata-ventos cintilando, erguia-se um castelo de numerosas torres, o mais belo que Jill j havia visto. Perto ficava um cais de mrmore branco; amarrado a este, um navio alto, com o castelo de proa e a popa empinados, todo dourado e carmesim, com uma grande bandeira no mastro central e flmulas no tombadilho; escudos prateados enfileiravam-se no cais. A prancha de embarque fora colocada e um velho preparava-se para subir a bordo. Usava luxuoso manto escarlate, deixando entrever a malha de prata. Tinha na cabea uma pequena coroa de ouro. A barba cor de l quase batia-lhe na cintura. Mantinha-se firme, apoiando a mo no ombro de um senhor ricamente vestido, mais novo que ele. Muito velho e frgil, parecia que uma lufada de vento poderia carreg-lo, e trazia os olhos marejados. Na frente do rei que se virar para falar ao povo antes de embarcar , havia uma poltrona sobre rodas, atrelada a um burrinho pouco maior que um cachorro. Sentado na poltrona estava um anozinho gordo, vestido com o mesmo luxo do rei. Por ser muito gordinho e estar refestelado entre almofadas, parecia uma trouxa de peles, de seda e veludo. Era to velho quanto o rei, porm mais saudvel e animado, de olhos espertos. A cabea, sem um fio de cabelo, lembrava uma grande bola de bilhar banhada pelo crepsculo. Mais atrs, os nobres postavam-se num semi-crculo, com roupagens e armaduras dignas de se ver. Lembravam mais um canteiro de flores do que gente. Mas o que fez Jill abrir mesmo a boca e arregalar os olhos foi o prprio povo, se que povo a palavra certa. Pois s um em cinco era gente humana. Os outros eram criaturas que no vemos em nosso mundo: faunos, stiros, centauros. Jill havia visto aquelas figuras em livros. E havia tambm anes, e uma poro de animais que ela conhecia bem: ursos, castores, toupeiras, leopardos, camundongos, numerosos pssaros. Pareciam, entretanto, algo diferentes dos animais que conhecemos por esses nomes. Alguns eram bem maiores; os camundongos, por exemplo, erguiam-se nas patinhas traseiras e mediam meio metro de altura. Mas no s por isso pareciam diferentes. Pela expresso de suas caras, via-se que sabiam falar e pensar como ns. Que coisa!, pensou Jill. Quer dizer que tudo verdade! Mas... ser que so amigos? Acabara de observar nos arredores uns dois gigantes e outras criaturas que no sabia o que eram. Foi quando se lembrou de Aslam e dos sinais. Eustquio! cochichou, agarrando-lhe o brao. Eustquio, rpido! Est vendo algum conhecido seu por a? Ah, voc de novo? disse Eustquio, com desagrado (tinha certa razo para isso). Ser que no pode ficar quieta? Quero escutar. Deixe de ser pateta, Eustquio. No h tempo a perder. No est reconhecendo aqui algum velho amigo? Porque voc tem de ir e falar com ele imediatamente! No estou entendendo nada. Foi Aslam... o Leo... que mandou disse Jill, aflita. Estive com ele. Ah, esteve com ele? Que que ele disse? Disse que a primeira pessoa que voc ia ver em Nrnia era um velho amigo, e devia falar com ele imediatamente. Acontece que no h nenhum conhecido meu aqui; alis, nem sei ainda se isto aqui Nrnia. Pensei que voc j tinha estado aqui antes. Ento pensou errado. Pois fique sabendo que voc me disse... Pelo amor de Deus, vamos ouvir o que eles esto dizendo. O rei falava com o ano, mas Jill no podia ouvir o que dizia. Pelo jeito, o ano no respondeu, apesar de sacudir a cabea vrias vezes. O rei ergueu a voz e dirigiu-se a toda a multido; mas sua voz era to velha e trmula que ela entendeu pouqussimo e ainda por cima ele falava de pessoas e lugares desconhecidos. Terminado o discurso, o rei inclinou-se e beijou o ano nas duas faces, reergueu-se, levantou a mo direita como se abenoasse o povo, e subiu para o navio com passadas incertas. Os nobres demonstravam grande emoo. Agitavam-se lenos e ouviam-se soluos por todos os lados. A prancha foi recolhida, trombetas soaram na popa, e o navio afastou-se do cais. (Estava sendo rebocado por um barco de remos, mas Jill no o viu.) Bem, agora... disse Eustquio, mas no prosseguiu, pois naquele instante uma coisa branca Jill imaginou que fosse um papagaio de papel veio planando e pousou aos ps do menino. Era uma coruja branca, enorme, da altura de um ano de bom tamanho. A coruja piscou os olhos, espreitando como se fosse mope, a cabea meio de lado. A voz era como um pio suave: Turru, turru! Quem so vocs? Meu nome Eustquio, esta Jill. Poderia ter a gentileza de dizer onde estamos? No reino de Nrnia, no castelo real de Cair Paravel. Foi o rei que embarcou agora mesmo? Turru, turru! confirmou a coruja, balanando a cabea com tristeza. Mas quem so vocs? H alguma coisa meio encantada em vocs. Eu os vi chegando: voando. Estavam todos to entretidos com a partida do rei que ningum viu. S eu. Eu vi. Fomos enviados por Aslam falou Eustquio, em voz baixa. Turru, turru! exclamou a coruja, ruflando as penas. Isso demais para mim, e to cedo! Minha cabea no muito boa antes do anoitecer. Fomos enviados para procurar o prncipe perdido informou Jill, que j se achava ansiosa para entrar na conversa. S estou sabendo disso agora falou Eustquio. Que prncipe? melhor que vocs venham logo falar com o lorde regente disse a coruja. aquele l, sentado na carruagem com o burrinho; Trumpkin, o ano. A ave abriu caminho, murmurando para si mesma: Turru, turru! No consigo pensar com clareza. cedo demais! Qual o nome do rei? perguntou Eustquio. Caspian X respondeu a coruja. Jill no entendeu por que Eustquio levou um grande susto e ficou como se se sentisse mal. No houve tempo de fazer perguntas; j estavam perto do ano, que recolhia as rdeas, pronto para retornar ao castelo. Os nobres, dispersos, seguiam em grupos na mesma direo, como depois de um jogo de futebol. Turru! Al! Lorde regente! chamou a coruja, abaixando-se um pouco e levando o bico para perto do ouvido do ano. Ei? Que que h? perguntou o ano. Dois estrangeiros, senhor respondeu a coruja. Escoteiros!? Que histria essa? estranhou o ano. S estou vendo dois filhotes humanos. Que desejam? Meu nome Jill disse a menina, adiantando-se, doida para explicar a importante misso que os trazia. O nome da menina Jill disse a coruja, na voz mais alta possvel. Que histria essa? Ardil? Quem fez o ardil? No, meu senhor, no h nenhum ardil. uma menina... O nome dela Jill. Fale alto disse o ano. No fique a zumbindo no meu ouvido. Quem fez o ardil? NINGUM berrou a coruja. Calma, calma; no preciso berrar. No sou to surdo assim. Mas por que voc vem me dizer que ningum fez um ardil? Melhor dizer para ele que o meu nome Eustquio disse o menino. Este, senhor, Eustquio. Batrquio? perguntou o ano, irritado. E isso motivo para traz-lo aqui? Hein? No batrquio disse a coruja , EUSTQUIO. eu ou ele? No estou entendendo coisa nenhuma. Vou dizer-lhe uma coisa, Plumalume... era o nome da coruja. Quando eu era moo, aqui neste pas os animais falantes sabiam falar de verdade. No era esse bl-bl-bl confuso. Isso no era permitido, entendeu? Urnus, traga minha corneta acstica. O pequeno fauno, que permanecera o tempo todo quietinho ao lado do ano, estendeu-lhe uma corneta de prata. Parecia aquele instrumento musical chamado serpento, pois o tubo tinha de ser enrolado no pescoo do ano. A coruja, ou Plumalume, cochichou para as crianas: Minha cabea agora est ficando melhor. No digam nada a respeito do prncipe desaparecido. Explicarei para ele depois. Agora ia dar tudo errado, tudo, tudo, turru, turru! Bem disse o ano , se tem alguma coisa razovel para falar, Plumalume, pode comear. Respire fundo e procure no falar depressa demais. Com o auxlio das crianas, e a despeito de um acesso de tosse do ano, Plumalume explicou que os estrangeiros haviam sido enviados por Aslam, em visita ao reino de Nrnia. O ano logo olhou para eles com uma nova expresso. Enviados pelo prprio Leo? disse ele. E vieram... hum... daquele Outro Lugar... alm do Fim do Mundo... no ? Exatamente, meu senhor berrou Eustquio na corneta. Filho de Ado e Filha de Eva, ou no ? Mas como no Colgio Experimental no se falava em Ado e Eva, Jill e Eustquio no souberam o que responder. O ano, entretanto, no parecia ter notado o pormenor. Segurando as mos de ambos, disse: Muito bem, meus caros: uma alegria t-los aqui. Se o meu bom rei, bom e infeliz, no tivesse acabado de partir para as Sete Ilhas, seria dele a satisfao em receb-los. A presena de vocs teria devolvido a mocidade ao meu senhor... pelo menos por um instante, um pequeno instante. Bem, j est passando da hora do jantar. Vocs me diro o que desejam na reunio do Conselho amanh de manh. Plumalume, providencie aposentos e roupas prprias e mais o que for preciso para os nossos convidados de honra. Alm disso, Plumalume, chegue aqui... O ano colocou a boca perto do ouvido da coruja, pretendendo falar em segredo; mas, como acontece com certos surdos, no dominava o volume de sua voz, e as crianas ouviram o que disse: Providencie tambm um banho caprichado para eles. Depois disso, o ano tocou o burrinho na direo do castelo; tambm muito gordo, o animal partiu numa pisada que ficava entre o trote e o bamboleio. O fauno, a coruja e as crianas seguiram um pouco mais devagar. O sol escondera-se e o ar comeava a ficar frio. Atravessaram a relva e um pomar na direo do porto norte de Cair Paravel, que estava aberto. Dentro estendia-se um ptio gramado. Viam-se luzes das janelas do grande salo direita e de outras salas frente. Uma jovem muito simptica foi chamada para cuidar de Jill. No era muito mais alta do que ela prpria e bem mais magra, embora fosse totalmente desenvolvida. Conduziu a menina para um quarto redondo numa das torres, onde havia uma banheira embutida no cho, madeiras perfumadas queimando na lareira e um candeeiro pendurado da abbada do teto por uma corrente de prata. A janela dava para oeste do estranho reino de Nrnia, e Jill ainda viu reflexos do sol poente fulgindo atrs de montanhas distantes. Ansiava por novas aventuras, sentindo que mal tinha comeado. Depois de tomar banho, pentear os cabelos e vestir as roupas que lhe foram separadas (que alm de bonitas eram perfumadas e faziam barulhinhos gostosos quando ela se movimentava), Jill teria voltado janela deslumbrante, mas foi interrompida por uma pancada na porta. Entre. E quem entrou foi Eustquio, muito bem lavado e magnificamente vestido com os trajes de Nrnia (dos quais, alis, parecia no gostar muito). Jogando-se numa cadeira, disse, meio zangado: At que enfim! Estou h um tempo procurando voc. Bem, agora j me achou. No formidvel, Eustquio? Nem d para falar! Por um instante ela havia esquecido os sinais e o prncipe desaparecido. Ah, acha isso? Pois acho que o melhor era a gente no ter vindo replicou o menino. Mas por qu? No agento ver o rei Caspian assim velho e decrpito. ... apavorante. Mas por que voc sofre com isso? Voc no pode entender. No pode, claro. Esqueci de contar-lhe que este mundo tem um tempo diferente do nosso. Troque isso em midos. O tempo que a gente passa aqui no leva tempo em nosso mundo. Entendeu? Vou explicar melhor: mesmo que fiquemos aqui durante muito tempo, quando voltarmos para o colgio ser o mesmo momento em que samos de l... Que falta de graa! No amole. E quando voc estiver em casa... em nosso mundo... no saber quanto tempo est passando aqui. Pode ser uma p de anos em Nrnia e s um ano na Inglaterra. Os meus primos explicaram tudo para mim, mas banquei o bobo e me esqueci. Parece que passaram setenta anos em Nrnia depois que sa daqui. Est entendendo agora? pavoroso voltar e descobrir que Caspian um velhinho. Ah, quer dizer que o rei era amigo seu! disse Jill, fulminada por um pensamento horrvel. Devo confessar que era respondeu Eustquio, infeliz. Amigo at demais. Da ltima vez, ele era s um pouquinho mais velho do que eu. Agora encontro aquele velhinho de barba branca e no me sai da cabea a manh em que capturamos as Ilhas Solitrias. Ou a luta com a Serpente do Mar. Oh, de doer! pior do que se ele estivesse morto. Chega! ainda muito pior do que voc imagina! Jill mostrava toda a sua impacincia. O caso que j perdemos o primeiro sinal. Eustquio naturalmente no podia entender. Ento Jill contou-lhe toda a conversa com Aslam, os quatro sinais, a misso de procurar o prncipe. E concluiu: Agora est entendendo? Voc viu um velho amigo, exatamente como Aslam disse; devia ter ido falar com ele imediatamente. Ora, como no foi, tudo est dando errado, desde o incio. Mas como eu podia saber? Muito simples: se tivesse prestado ateno quando tentei falar, estaria tudo certinho. Ah, claro! E se voc no tivesse bancado a idiota na beira do abismo, quase me assassinando... isso mesmo, assassinando!... tambm teria dado tudo certinho... Foi ele a primeira pessoa que voc viu, no foi? Deve ter chegado horas antes de mim. No viu ningum antes? Cheguei apenas um minuto antes de voc. Ele deve t-la soprado com mais fora. Para tirar o atraso, o seu atraso. Deixe de ser bobo, Eustquio... Ei, o que isso? Era o sino do castelo tocando para o jantar. A briga, que prometia ser das boas, foi logo interrompida, felizmente. Estavam os dois com excelente apetite. Jamais haviam visto uma coisa to deslumbrante. O prprio Eustquio, que j estivera em Nrnia, passara todo aquele tempo no mar, e no chegara a conhecer o esplendor e a hospitalidade dos narnianos em seu prprio reino. As flmulas pendiam do teto e as iguarias entravam com o som de trombetas e tmpanos. As sopas eram de dar gua na boca, sem falar nos peixes fabulosos, nas finas caas, nas aves raras, nos pastis, sorvetes, gelias, frutas, nozes, vinhos e refrescos. O prprio Eustquio animou-se admitindo que era um banquete pra l de legal. Terminada a imensa refeio, um poeta cego contou uma histria chamada O cavalo e seu menino, que se passava em Nrnia e no reino dos calormanos, na Idade de Ouro, quando Pedro era o Grande Rei em Cair Paravel. (No tenho tempo de cont-la no momento, mas uma histria que vale a pena ouvir.) Quando subiram para os quartos, bocejando, Jill falou: Aposto que a gente vai dormir feito uma pedra. Isso mostra que jamais temos idia do que poder acontecer-nos daqui a pouco. 4 UMA REUNIO DE CORUJAS engraado: quanto mais uma pessoa est com sono, mais tempo leva para cair na cama, especialmente se existe no quarto o conforto de uma lareira. Jill pensou que, se no se sentasse um tempinho diante do fogo, seria incapaz at de tirar a roupa. Sentou-se e no teve mais vontade de levantar-se, apesar de repetir para si mesma: V para a cama, menina! Foi quando se sobressaltou com um barulhinho na janela. Ergueu-se, correu as cortinas, vendo a princpio s a escurido l fora. Depois deu um salto para trs: uma coisa grande lanava-se contra a janela, golpeando a vidraa. Passou-lhe pela cabea uma idia muito desagradvel: Imagine s se existem mariposas gigantes neste pas! Ai! Mas a coisa voltou e ela teve quase a certeza de ter visto um bico, e era este bico que golpeava a vidraa. E um passaro, pensou. Ser uma guia? No estava para visitas, nem mesmo de uma guia, mas abriu a janela e olhou. No mesmo momento, com um rudo farfalhante, a criatura pousou no peitoril, enchendo todo o vo da janela. Era a coruja. Quietinha! Turru, turru! Sem barulho disse a coruja. Agora diga-me: verdade aquilo que disse? Sobre o prncipe? , pra valer. Pois lembrava-se agora da cara do Leo, do qual quase se esquecera durante o banquete e a histria de O cavalo e seu menino. timo! disse a coruja. Ento no podemos perder tempo. Tem de sair logo. Vou acordar o outro humano. Volto aqui em seguida. Melhor trocar essas roupas elegantes e vestir coisa simples para viajar. No demoro nada. Turru, turru! E, sem esperar resposta, partiu. Jill, pouco habituada a aventuras, nem pensou em desconfiar da coruja: a idia excitante de uma fuga meia-noite fez com que esquecesse o sono. Vestiu o suter e a saia-cala havia no cinto um canivete que poderia ser til , escolhendo tambm algumas coisas que havia no quarto. Pegou uma capa, que lhe batia nos joelhos, um capuz (pode chover, pensou), alguns lenos e um pente. Sentou-se e ficou espera. J estava sentindo sono de novo, quando a coruja voltou para dizer: Estamos prontos. Melhor voc ir na frente disse Jill. Ainda no conheo todas as passagens aqui. Turru! Est pensando que vamos por dentro do castelo? Nada disso. Tem de montar em mim. Vamos voando. Oh! exclamou Jill, de boca aberta, no gostando nada da idia. Sou muito pesada para voc. Turru, turru! No seja boba. J carreguei o outro. Vamos. Mas primeiro apague essa luz. Apagada a luz, a noite ficou menos escura, meio cinzenta. A coruja postou-se no peitoril, de bico para fora, e abriu as asas. Jill teve de ajeitar-se sobre o corpo curto e grosso, apertando os joelhos sob as asas da ave. As penas eram quentinhas e macias, mas no havia nada em que se agarrar. Pensou: Ser que Eustquio gostou do vo? Com um assustador mergulho no vazio, ambas deixaram a janela. As asas abanavam perto das orelhas de Jill, e o ar da noite, meio frio e mido, batia-lhe no rosto. O cu estava encoberto, mas um fulgor prateado mostrava as nuvens que tapavam a lua. Os campos embaixo eram cinzentos; as rvores pareciam negras. O ar abafado era sinal de chuva. A coruja deu uma volta e o castelo surgiu na frente dela. Havia poucas janelas iluminadas. Passaram por cima e cruzaram o rio. O ar ficava mais frio. Jill pensou ter visto o reflexo branco da coruja na gua. Logo voavam sobre a floresta. A coruja abocanhou qualquer coisa que Jill no podia ver. Por favor! Pare de sacudir desse jeito! Quase ca. Mil perdes. Agarrei um morcego. No h nada mais alimentcio do que um morceguinho rechonchudo. Quer que eu pegue um para voc? Muito obrigada respondeu Jill com um arrepio. Voavam agora mais baixo e uma coisa escura avultava-se diante delas. Jill s teve tempo de ver que era uma torre, em parte arruinada e coberta de hera, pois logo em seguida teve de abaixar a cabea para no bater no arco de uma janela cheia de teias de aranha. Estavam num lugar escuro e bolorento no alto da torre. No momento em que deslizou de cima da coruja, adivinhou (como s vezes acontece) que o local estava repleto. Vozes comearam a falar de todos os cantos: Turru! Turru! Repleto, portanto, de corujas. Foi um certo alvio quando uma voz muito diferente disse: voc, Jill ? voc, Eustquio? Acho que j estamos todos aqui disse Plumalume. Vamos dar incio sesso. Turru, turru! Quem est certo s tu! Aqui no tem urubu! disseram vrias vozes ao mesmo tempo. Peo a palavra disse Eustquio. Antes de mais nada quero dizer uma coisa. Turru! Quem est certo s tu! disseram as corujas. E Jill para ele: Manda brasa. Acho que os companheiros todos aqui... as corujas todas aqui no ignoram que Caspian X, no tempo da mocidade, navegou para o Extremo Oriente. Bem, tive a honra de acompanh-lo nessa viagem, na companhia ainda de Ripchip, o rato, do fidalgo Drinian e muitos outros. Sei que parece difcil de acreditar, mas as criaturas no envelhecem em nosso mundo no mesmo ritmo que no seu mundo. O que pretendo dizer o seguinte: sou fiel ao rei, e se esta reunio de corujas tiver qualquer carter subversivo, minha presena aqui um equvoco. Turru, turru! Somos todas fiis ao rei, como tu! Ento, por que motivo estamos aqui? indagou Eustquio. Muito simples respondeu Plumalume. D-se o seguinte: se o lorde regente, o ano Trumpkin, souber que vocs pretendem procurar o prncipe desaparecido, no os deixar partir. E h de mant-los confinados, sob vigilncia. Essa no! exclamou Eustquio. No vai dizer que Trumpkin um traidor? Ouvi muito sobre ele, nos velhos tempos. Caspian... o rei, digo... tinha nele uma confiana absoluta. Mas no isso disse uma voz. Trumpkin no um traidor. O que se passa o seguinte: mais de trinta dos nossos melhores guerreiros centauros, bons gigantes e tantos outros j empreenderam vrias viagens em busca do prncipe. Nem um s voltou! O rei disse, por fim, que no permitiria que os mais valentes narnianos fossem aniquilados por causa de seu filho. Ningum mais pode ir: uma proibio real. Tenho certeza de que nos deixar partir disse Eustquio se souber quem eu fui e quem me enviou. Quem nos enviou acrescentou Jill. Acredito que sim ponderou Plumalume. Mas o rei est ausente; Trumpkin observar a letra da lei. Trata-se de um ano verdadeiro como a verdade, mas surdo como uma porta e... uma pimentinha. No conseguir convenc-lo de que agora o tempo adequado para abrir uma exceo na lei. No se esquea observou algum de que ele prestaria ateno ao que dissssemos, pois somos corujas, e todos sabem como as corujas so sbias. , mas agora ele est to velho que simplesmente dir: Voc no passa de um pinto. Eu me lembro de quando voc era ainda um ovo. No venha com lies para cima de mim. Ora bolas! A coruja que disse isso imitou to bem a voz de Trumpkin, que foi uma gargalhada geral. As crianas comearam a perceber que os narnianos olhavam para Trumpkin como alunos olham para um professor rabugento, do qual todos sentem medo, mas de quem no fundo todos gostam. Quanto tempo o rei passar fora? perguntou Eustquio. Ah, se eu soubesse! respondeu Plumalume. H rumores de que o prprio Aslam foi visto nas ilhas (em Terebntia, acho). O rei disse que far tudo para v-lo antes de morrer, a fim de aconselhar-se sobre seu sucessor ao trono. Mas receamos que ele no encontre Aslam em Terebntia e continue a viagem at as Sete Ilhas e as Ilhas Solitrias... e siga em frente. Ele nunca se refere ao assunto, mas sabemos todos que jamais se esqueceu da viagem ao fim do mundo. No fundo do corao, deseja ir at l outra vez. Assim sendo, intil esperar a volta do rei disse Jill. Intil! concordou a coruja. Oh, o que fazer? Se ao menos vocs tivessem falado com ele! Teria arranjado tudo... talvez mandaria um exrcito acompanh-los. Jill ficou calada, esperando que Eustquio tivesse a gentileza de no contar para as corujas por que motivo isso no acontecera. Ele andou perto de contar, resmungando em voz baixa: Culpa minha que no foi. Mas disse em voz alta: Muito bem. Temos de dar um jeito. Mas h uma coisa que desejo saber: se esta reunio leal e acima de qualquer suspeita, por que tem de ser to secreta, numa torre em escombros, na calada da noite? Turru, turru! piaram diversas corujas. E onde haveramos de fazer a reunio? E no s na calada da noite que as pessoas se encontram? Plumalume interveio: Acontece que a maioria das criaturas aqui em Nrnia tm hbitos pouco naturais. Fazem coisas durante o dia, em plena luz do sol (oh!), quando todos deviam estar dormindo. Resultado: noite ficam to cegas e estpidas que no se arranca delas uma s palavra. E por isso que as corujas tm o bom senso de fazer suas reunies nas horas noturnas. J vi tudo disse Eustquio. Est bem, vamos continuar. Conte-nos tudo sobre o prncipe desaparecido. Uma velha coruja, e no Plumalume, foi quem narrou a histria. H cerca de dez anos, ao que parece, quando Rilian, filho de Caspian, era muito jovem, numa manh de primavera, foi com a me a cavalo para o norte de Nrnia. Levaram consigo numerosos escudeiros e damas de companhia. No levaram ces, pois no iam caar, mas festejar a primavera. tarde chegaram a uma clareira onde jorrava a gua pura de uma fonte; a descansaram, comeram, beberam e riram. Como a rainha sentisse sono, estenderam-lhe mantos na relva; o prncipe Rilian e os outros afastaram-se a fim de no despert-la com suas risadas e conversas. Uma grande serpente surgiu da densa floresta e picou a rainha na mo. Ao ouvir o grito de dor, todos correram at ela. Rilian, espada em punho, partiu no encalo do animal, que era grande, reluzente e verde como veneno. Mas a serpente deslizou para dentro das moitas espessas e desapareceu. Ele voltou para perto da me, encontrando todos aflitos em torno dela. Era tarde demais. Rilian, ao v-la, compreendeu que nenhum mdico do mundo poderia fazer qualquer coisa. Enquanto lhe restava ainda um pequeno hausto de vida, a rainha tentou dizer-lhe algo. Mas, incapaz de articular com clareza, morreu sem transmitir sua ltima mensagem. Tudo no durou mais que dez minutos. A rainha morta foi transportada para Cair Pa-ravel e pranteada dolorosamente pelo filho, pelo rei e por todo o reino de Nrnia. Fora uma grande dama, cheia de sabedoria, de graa e alegria. O rei Caspian trouxera a noiva do Extremo Oriente. Diziam que corria em suas veias o sangue da estrelas. O prncipe sofreu terrivelmente e, a partir de ento, estava sempre a percorrer a cavalo as fronteiras do Norte, caa da venenosa serpente. Ningum dava grande ateno a isso, apesar de o prncipe voltar extenuado e agitado de suas peregrinaes. Um ms depois da morte de sua me, entretanto, alguns passaram a notar certa mudana nele. Trazia nos olhos uma expresso de quem tivera vises; e, embora passasse todo o dia fora, seu cavalo no demonstrava se ressentir das duras caminhadas. Seu maior amigo, entre os velhos fidalgos, era Drinian, que fora capito do navio de seu pai na grande viagem para o Oriente. Uma noite Drinian disse para o prncipe: Vossa Alteza deve cessar de caar a serpente. No h vingana em destruir um bruto irracional. desperdcio de energia. O prncipe respondeu: Drinian, nesta ltima semana quase me esqueci por completo da serpente. Drinian quis saber qual era, ento, o motivo que continuava a atrair o prncipe s matas do Norte. E ele respondeu: Vi nas matas do Norte a criatura mais bela que jamais existiu. Meu bom prncipe replicou Drinian , permita que amanh eu o acompanhe, para que tambm possa ver a bela criatura. Com grande prazer concordou Rilian. No dia seguinte, selaram os cavalos e partiram a galope para as matas, apeando na mesma clareira na qual a rainha encontrara a morte. Drinian estranhou que, dentre todos os lugares, o prncipe escolhesse aquele. Ali ficaram at o meio-dia, quando Drinian viu a mais bela criatura que jamais existiu. Estava ao p da fonte e nada disse, mas fez um sinal para o prncipe, como se pedisse que se aproximasse. Era alta, viosa, coberta por uma veste verde como veneno. O prncipe olhava para ela como se estivesse fora de si. Subitamente, no entanto, a dama desapareceu, sem que Drinian soubesse como. Ambos voltaram para Cair Paravel. Drinian estava convencido de que aquela mulher fulgurante era malfica. Pensou muito se devia ou no contar a aventura para o rei, pois no queria bancar o intrigante. Mais tarde arrependeu-se muito de ter silenciado o episdio, porque, no dia seguinte, o prncipe Rilian partiu sozinho e no voltou. Nunca mais foi visto em Nrnia, nem nas terras vizinhas. O cavalo e o manto tambm no foram encontrados. Penando na sua amargura, Drinian procurou o rei e disse-lhe: Senhor, mate-me logo como grande traidor; pelo meu silncio, causei a destruio de seu filho. E contou-lhe tudo. Com um machete de guerra, Caspian precipitou-se sobre ele para mat-lo; Drinian esperou impassvel o golpe mortal. Subitamente, porm, o rei lanou fora o machete e bradou: J perdi minha rainha e meu filho; devo tambm perder o meu amigo? Caiu nos braos de Drinian e ambos derramaram lgrimas de dor e verdadeira amizade. E essa a histria de Rilian. E quando a coruja terminou de cont-la, Jill foi logo dizendo: Aposto que a serpente e a mulher eram a mesma pessoa. Turru, turru! concordaram as corujas. Mas no acreditamos que haja assassinado o prncipe disse Plumalume , pois no se encontraram ossos... Sei disso falou Eustquio , pois Aslam contou para Jill que ele est vivo em algum lugar. Isso at pior disse a mais velha das corujas. Significa que ela dispe do prncipe e trama algum plano terrvel contra Nrnia. H muito, muito tempo, no princpio de tudo, uma feiticeira branca, vinda do Norte, condenou nosso reino neve e ao gelo durante cem anos. Essa outra deve ser da mesma laia. Muito bem disse Eustquio. Jill e eu temos de encontrar o prncipe. Conto com a ajuda de vocs? E vocs sabem por onde comear? Sabemos que temos de tomar a direo norte. E sabemos que devemos atingir a cidade em runas dos gigantes. Foi um turru-turru-turru por todos os cantos. As corujas comearam a falar ao mesmo tempo. Sentiam muito, mas no podiam acompanhar as crianas: Vocs viajam de dia e ns viajamos de noite. No d p, no d p. Uma coruja chegou a dizer que, mesmo ali na torre, j no estava to escuro como no princpio. A reunio prolongara-se por muito tempo. Ao que parece, a mera meno de uma viagem cidade em runas dos gigantes havia arrefecido o entusiasmo das aves. Mas Plumalume interveio: Se eles querem ir nessa direo... pela charneca de Ettin... devemos lev-los at um paulama. So as nicas criaturas que podero ajud-los de fato. Turru, turru! Quem est certo s tu! Ento, vamos disse Plumalume. Eu levo um. Quem leva o outro? Tem de ser hoje noite. Eu levo: at a terra dos paulamas! falou outra coruja. Est pronta? perguntou Plumalume para Jill. Acho que Jill caiu no sono disse Eustquio. 5 BREJEIRO Jill estava mesmo dormindo, depois de ter bocejado o tempo todo durante a reunio. No gostou nem um pouco de ser acordada e de se ver num campanrio empoeirado e escuro, cheio de corujas. Gostou ainda menos quando ouviu que deviam partir para algum lugar que no parecia ser a cama nas costas da coruja. Ora, vamos, Jill disse Eustquio. mais uma aventura, afinal de contas. J estou cheia de aventuras respondeu a menina, zangada. Mas acabou subindo em Plumalume, e o vento frio da noite deixou-a totalmente desperta (por algum tempo). A lua sumira e no havia estrelas. Muito atrs, Jill conseguiu distinguir uma janela acesa, sem dvida de uma das torres de Cair Paravel. Isso lhe deu saudades daquele quarto maravilhoso. Colocou as mos sob a capa, aconchegando-se. Eustquio, a uma certa distncia, conversava com a sua coruja. Nem parece cansado, pensou Jill, sem saber que o clima de Nrnia devolvia ao menino a fora que adquirira quando navegara com o rei Caspian pelos mares orientais. Jill tinha de dar belisces em si mesma para manter-se acordada, temendo escorregar e cair do dorso de Plumalume. Quando as corujas chegaram ao fim da viagem, ela pulou para o cho firme. Soprava um vento danado de frio. No se via uma rvore. Turru! Turru! chamava Plumalume. Acorde, Brejeiro, rpido. da parte do Leo. Por um longo tempo no houve resposta. Depois, ao longe, surgiu uma luzinha, que comeou a aproximar-se. E uma voz: Ol, corujas! O que h? Morreu o rei? H inimigo em Nrnia? Enchente? Ou drages? A luz vinha de uma lanterna, mas Jill podia distinguir muito pouco da pessoa que a segurava. Parecia algum feito s de pernas e braos. As corujas conversavam com ele, mas Jill estava cansada demais para prestar ateno. Tentou reanimar-se um pouquinho quando percebeu que se despediam dela. Nem mesmo mais tarde conseguiu se lembrar do que acontecera: sabia apenas que entrara com Eustquio por uma portinha e (oh, at que enfim!) pde estender-se sobre alguma coisa macia e quente. E de uma voz que dizia: A ficam vocs. O melhor que podemos dar. Cho frio e duro. E at mido, de se esperar. No d para tirar uma pestana, claro, mesmo que no caia uma tempestade daquelas ou que a cabana no venha abaixo. Ajeitem-se como puderem... Mas Jill caiu no sono antes que a voz terminasse... Quando as crianas acordaram no dia seguinte perceberam que tinham dormido num lugar seco e quente, em camas de palha. A claridade entrava por uma abertura triangular. Estamos em terra? perguntou Jill. Na cabana de um paulama respondeu Eustquio. Na cabana de quem? Um paulama. No me pergunte o que isso. No consegui v-lo ontem noite. Vamos procur-lo. Como chato acordar hoje com a roupa de ontem disse Jill, sentando-se. Engraado: eu estava pensando como bom a gente no ter de se vestir. Nem de se lavar, na certa replicou Jill, com ar de pouco caso. Mas Eustquio j estava de p, bocejando e espreguiando-se, e logo caiu fora da cabana. Jill fez o mesmo. O que encontraram l fora era bem diferente do pedacinho de Nrnia visto na vspera. Estavam num terreno muito plano, cheio de inumerveis ilhazinhas, cortadas por incontveis canais. As ilhas eram cobertas de capim e cercadas de juncos. Nuvens de aves pousavam e revoavam dos juncos: marrecos, narcejas, galinholas e garas. Viam-se por ali muitas cabanas iguais quela em que passaram a noite, mas separadas a uma boa distncia umas das outras, pois os paulamas apreciam muito a privacidade. A no ser a floresta, a muitos quilmetros de distncia, no se via uma s rvore. Para o leste, o alagadio estendia-se na direo de pequenas colinas arenosas. Ao norte ficavam outras colinas esmaecidas. O resto era alagadio plano. Um lugar de dar tristeza numa tarde de chuva. Visto ao sol matinal, com um vento refrescante, o ar repleto com os pios das aves, era ainda um lugar solitrio, mas tinha seus encantos. As crianas ficaram mais animadas. Jill perguntou: Onde andar esse tal de paralama! Paulama respondeu Eustquio, orgulhoso de saber o nome certo. Acho... olhe l, s pode ser ele. Viram logo o paulama, sentado de costas para eles, a uns cinqenta metros, pescando. No era fcil distingui-lo, assim to quietinho e por ser quase da mesma cor do alagadio. Disse Jill : Acho que o melhor bater um papo com ele. Sentiam-se um pouco nervosos, mas Eustquio concordou. A medida que se aproximavam, a figurinha virou a cabea, mostrando um rosto magro e comprido, sem barba, bochechas encovadas, boca apertada e nariz pontudo. Usava chapu alto, pontudo como uma torre de igreja, de abas enormes. O cabelo, se que se pode chamar de cabelo, cado sobre as grandes orelhas, tinha uma tonalidade cinza-esverdeada, e os tufos lisos lembravam juncos midos. A expresso era solene: via-se logo que levava a vida a srio. Bom dia, meus hspedes. verdade que quando eu digo bom dia no estou querendo dizer que no v chover... ou nevar... ou trovejar. Aposto que vocs no conseguiram dormir nem um pouco. Pois dormimos muito bem respondeu Jill. Passamos uma noite maravilhosa. Ah! replicou o paulama, sacudindo a cabea. Sei que voc est querendo bancar a durona. Faz muito bem. Aprendeu a sorrir na desventura. Qual o seu nome, por favor? perguntou Eustquio. Brejeiro. Mas no tem a menor importncia se esquecerem. No me custa nada continuar dizendo que meu nome Brejeiro. As crianas sentaram-se a seu lado, percebendo ento que as pernas e os braos dele eram compridssimos; apesar de o tronco no ser muito maior que o de um ano, ele devia ser, em p, mais alto que a maioria dos homens altos. Seus dedos das mos eram ligados por uma membrana, como os dedos de um sapo, e do mesmo jeito eram seus ps descalos, que ele balanava dentro da gua lodosa. Usava roupas da cor da terra, que eram muito folgadas para ele. Estou tentando pegar umas enguias para fazer um cozido, mas acho que no vou pegar coisa alguma. E, mesmo que pegasse, vocs no iam gostar de enguias. Por que no? perguntou Eustquio. Ora, como que vocs poderiam gostar da nossa comida? De qualquer maneira, enquanto fico aqui tentando, os dois podiam tentar acender o fogo; no custa nada tentar! Tem lenha detrs da cabana. Deve estar danada de mida. Podem acender o fogo dentro da cabana e chorar com a fumaceira, ou podem acender o fogo do lado de fora, e a a chuva chega e apaga tudo. Aqui est a minha binga; suponho que no saibam mexer com isso? Mas Eustquio aprendera essas coisas em sua aventura anterior. As crianas apanharam a madeira (que estava sequinha) e fizeram fogo mais depressa do que se costuma. Enquanto Eustquio atiava as chamas, Jill foi passar uma gua no rosto no canal mais prximo. Depois foi a vez do menino. Sentiam-se muito melhor, mas com uma fome daquelas. O paulama juntou-se a eles. Apesar do pessimismo, trouxe uma dzia de enguias, j limpas. Ps uma panela grande no fogo e acendeu um cachimbo. Os paulamas fumam um tabaco muito forte e esquisito (misturado com lama, dizem), e as crianas notaram que a fumaa no subia, pelo contrrio, espalhava-se pelo cho como um nevoeiro. A fumaa escura fez Eustquio tossir. Bem disse Brejeiro , essas enguias vo levar um tempo enorme para cozinhar; vocs so capazes de desmaiar de fome. Conheci uma menina... mas melhor no contar essa histria. Coisa que eu no gosto de deprimir os outros. Para disfarar a fome, podemos tambm falar dos nossos planos. Querem? Queremos! gritou Jill. Voc pode ajudar-nos a encontrar o prncipe Rilian? O paulama fez uma careta, encovando ainda mais as bochechas: Bem, no sei se vocs chamam isso de ajuda. Acho que ningum capaz de ajudar propriamente. O lgico a gente no ir muito longe numa viagem para o Norte logo nesta poca do ano, com o inverno na porta, e outras coisas mais... Mas no devem desanimar por causa disso: com tantos inimigos, e montanhas imensas, e rios caudalosos, e a dificuldade de achar o caminho certo, e a falta de comida, ora, com tanta coisa desagradvel, nem vamos dar ateno ao frio de matar. Afinal de contas, se a gente no chegar muito longe, tambm no vai precisar voltar correndo. As crianas notaram que ele falava ns e no vocs. Perguntaram ento ao mesmo tempo: Voc vem com a gente? Oh, vou, naturalmente, preciso. Acho que jamais veremos o rei de novo em Nrnia, agora que partiu para o exterior. E estava tossindo muito. E depois tem o Trumpkin, que j est bastante decadente. E vocs ho de ver: aps este vero de fogo, a colheita s poder ser muito ruim. E para mim no ser nenhuma surpresa se um inimigo nos atacar. Podem escrever o que digo. E como a gente comea? perguntou Eustquio. A resposta veio com muita lentido: Bem... todos os outros que procuraram o prncipe Rilian comearam pela mesma fonte onde lorde Drinian viu a dama. Quase todos foram para o Norte. Ora, como nenhum deles voltou, no podemos saber o que se passou. Devemos comear falou Jill encontrando uma cidade de gigantes, em runas. Foi o que disse Aslam. Comear encontrando, no ? perguntou Brejeiro. Ser que no permitido comear procurando a cidade? Foi exatamente o que eu quis dizer. Depois de achada a cidade... Ah, depois! exclamou Brejeiro com secura. Ningum sabe onde fica a cidade? perguntou Eustquio. Eu no sei de ningum. Mas no vou dizer que nunca ouvi falar dela. No precisam partir da fonte; vo pela charneca de Ettin. onde fica a cidade em runas, se que fica em algum lugar. Mas j fui bem longe nessa direo, como quase todo mundo, e nunca topei com runa alguma. Onde fica a charneca de Ettin? perguntou Eustquio. L para as bandas do Norte respondeu Brejeiro, apontando com o cachimbo. Esto vendo aqueles montes e aquelas lascas de penedos? Pois l o comeo de Ettin. Mas daqui para l h um rio no meio, o rio Ruidoso. No h pontes, claro. Espero que a gente consiga vade-lo falou o menino. Bem, j foi vadeado admitiu o paulama. E talvez encontremos em Ettin quem possa ensinar-nos o caminho disse Jill. Perfeito! Quem possa!... Que espcie de gente vive l? indagou Jill. No cabe a mim afirmar que eles no esto certos, ao modo deles respondeu Brejeiro. Mas o que so eles? insistiu Jill. H tanta gente esquisita neste pas! Estou perguntando se so animais, passarinhos, anes ou sei l o qu. O paulama deu um longo assovio: Fiu! Voc no sabe? Pensei que as corujas tinham contado... So gigantes. Jill estremeceu. Jamais se dera bem com gigantes, mesmo nos livros, e j se encontrara com um durante um pesadelo. Notando depois a cara de Eustquio bastante esverdeada, achou que ele estava pior do que ela (o que a fez sentir-se mais corajosa). O rei h muito me disse falou Eustquio , quando andei com ele pelos mares, que derrotara esses gigantes e os forara submisso. Verdade confirmou Brejeiro. No esto mais em guerra conosco. Desde que fiquemos do lado de c do rio Ruidoso, no tocaro em ns. Mas do lado de l... Sempre pode haver um jeito. Se no chegarmos muito perto deles, se algum deles no perder a cabea, se no formos vistos, poderemos caminhar um bom pedao. Olhe aqui disse Eustquio, perdendo o controle, como costuma acontecer com as pessoas amedrontadas. No acredito na metade do que est falando; as camas da cabana tambm no eram to duras nem a lenha estava molhada. Aslam no nos teria enviado se o risco fosse to grande. Esperou que o paulama lhe respondesse enraivecido, mas no: isso a, Eustquio. E assim que se fala. ver a coisa pelo lado melhor. S que devemos ter muito cuidado com os nervos, j que teremos de atravessar tantas dificuldades juntos. No adianta brigar, pelo menos no desde j. Sei que as expedies desse tipo acabam em geral desse modo: um esfolando o outro antes da hora. Quanto mais tempo a gente suportar... Bem, se to pouca sua esperana interrompeu o menino , melhor ficar. Jill e eu podemos ir sozinhos... No banque o burro, Eustquio atalhou a menina, apavorada com a idia de que o paulama pudesse tomar as palavras dele ao p da letra. No tenha receio falou Brejeiro. E claro que eu vou. No posso perder essa oportunidade. S ir me fazer bem. Eles sempre dizem... os outros paulamas dizem... que eu sou muito volvel; que no levo a vida muito a srio. J disseram milhes de vezes: Brejeiro, voc todo empfia e fanfarronada, um brincalho. Precisa aprender que a vida no s r e enguia na barriga, e mais nada. Precisa achar algo que lhe sofreie um pouco. Estamos falando pelo seu prprio bem, Brejeiro. o que dizem sempre. Pois a est a minha sorte: uma jornada para o Norte, na hora em que o inverno est comeando! procura de um prncipe que provavelmente no se encontra l! Passando por uma cidade em runas que ningum nunca viu!... No podia ser melhor! Se uma aventura dessas no consertar um sujeito, porque no tem mesmo conserto. E esfregou as mos de sapo como se estivesse falando em ir a uma festa ou ao circo. E agora acrescentou , vamos ver como esto aquelas enguias. Pois foi uma refeio gostosssima. No comeo o paulama no acreditou que eles poderiam gostar; quando comeram tanto que no podia haver mais dvida, comeou a achar que aquilo poderia no lhes cair bem. Comida de paulama, veneno para gente humana. Est na cara. Depois tomaram ch em latas, como os operrios bebem caf na estrada, e Brejeiro deu umas boas goladas numa garrafa preta e quadrada. Perguntou se as crianas queriam provar, mas a coisa parecia repugnante. O resto do dia foi empregado em preparativos para a partida na manh seguinte, cedinho. Brejeiro, sendo de longe o mais alto, carregaria trs cobertores, com um bom pedao de toucinho enrolado dentro. Jill devia levar as sobras das enguias, uns biscoitos e a binga. Eustquio carregaria duas capas, a dele e a dela, quando no precisassem vesti-las. Eustquio (que aprendera a atirar um pouco na viagem ao Oriente) levou o arco nmero dois de Brejeiro, que ficou com o melhor, dizendo que mesmo assim (com aquele vento, com as cordas midas, na luz de inverno, os dedos gelados) a possibilidade de acertarem em alguma coisa era uma em cem. Ele e Eustquio levavam espadas. Eustquio trouxera a que deixaram para ele no quarto em Cair Paravel. Jill teve de contentar-se com um canivete. Ia saindo briga por causa disso, mas o paulama, esfregando as mos, foi logo dizendo: J sabia disso; o que acontece em geral quando as aventuras comeam. Calaram-se logo. E foram dormir cedo na cabana. Dessa vez a noite para as crianas no foi de fato excelente. Pois Brejeiro, depois de dizer acho que ningum vai fechar o olho esta noite, comeou na mesma hora a roncar alto e sem parar. Quando Jill conseguiu por fim adormecer, sonhou o resto da noite com perfuratrizes de asfalto, cachoeiras e trens expressos atravessando tneis. 6 AS TERRAS AGRESTES DO NORTE Na manh seguinte, s nove horas, trs figuras solitrias podiam ser vistas procurando o caminho atravs do rio Ruidoso sobre pedras e baixios. Era um riacho raso e barulhento; nem mesmo Jill chegou a molhar mais do que o joelho quando atingiram a outra margem. Uns cinqenta metros alm, comeava uma elevao de terra pedregosa e penhascos. Acho que este o nosso caminho disse Eustquio. E apontou para a esquerda, para onde um regato descia por um desfiladeiro raso. O paulama balanou a cabea: na encosta desse desfiladeiro que os gigantes costumam viver. Para eles, o desfiladeiro como uma rua. Melhor seguirmos em frente, apesar de ser um pouco ngreme. Acharam um lugar por onde podiam subir agarrando-se s pedras e, em dez minutos, chegaram ofegantes l em cima. Deitaram um olhar saudoso para o vale de Nrnia e viraram-se para o Norte. A vasta e solitria charneca estendia-se em todas as direes. esquerda o terreno era mais rochoso. Puseram-se a caminho. Era uma terra boa para caminhar ao sol mortio do inverno. A medida que adentravam na charneca, a solido crescia: ouviam-se pios de pssaros e via-se um ou outro falco. Na metade da manh, pararam para descansar perto de um riacho, e Jill comeou a imaginar que, afinal de contas, as aventuras podiam ser divertidas. E disse isso. Ainda no tivemos aventura alguma! falou o paulama. Caminhadas depois do primeiro descanso assim como as manhs na escola depois do recreio ou as viagens de trem depois da baldeao nunca so como eram antes. Quando se puseram outra vez a caminho, Jill observou que a borda rochosa do desfiladeiro estava mais prxima. E as pedras eram menos achatadas, mais verticais, como se fossem pequenas torres. E tinham formas muito engraadas! Acho, pensou ela, que essa histria sobre os gigantes comeou com essas rochas engraadas. Se a gente chegasse aqui ao escurecer, seria faclimo tomar aquelas pedras por gigantes. Olhem aquela ali! No custa imaginar que aquele bola de pedra em cima uma cabea. Uma cabea grande demais para o corpo, mas que no ficaria de todo mal num gigante horroroso. E aquelas moitas desgrenhadas devem ser ninhos de pssaros passariam por cabelos e barba. E aquelas coisas penduradas de cada lado parecem mesmo orelhas. Orelhas monstruosamente grandes, mas gigante deve ter mesmo orelhas de elefante. E... ooooh! Ficou gelada. A coisa se mexia. Era de fato um gigante. No havia mais dvida: tinha virado a cabea. Jill chegara a perceber a cara estpida e bochechuda. Eram gigantes, no eram rochas, aquelas coisas. Uns quarenta ou cinqenta, enfileirados. Tinham os ps pousados no fundo do desfiladeiro e os cotovelos apoiados na borda, como fazem os preguiosos na beirada de um muro depois do almoo. Em frente! cochichou Brejeiro, que tambm os notara. No olhem para eles! Acontea o que acontecer, no corram! Cairo em cima de ns como um raio. E assim continuaram, fingindo que no tinham visto os gigantes. Era como atravessar o porto de uma casa onde houvesse um cachorro feroz, s que muito pior. Os gigantes no demonstravam raiva... nem bondade... nem o menor interesse. Nem davam sinal de que tinham notado os viajantes. A zim, zim, zim , um pesado objeto veio zunindo e um grande calhau explodiu uns vinte passos na frente deles. Depois pimba! caiu um outro, cinco metros atrs. Esto apontando para ns? perguntou Eustquio. No respondeu Brejeiro , e estaramos mais seguros se estivessem. Esto tentando acertar ali, naquele monte de pedras direita. No vo acertar nunca. Tm uma pontaria desgraada. Passam a manh quase toda brincando de pontaria. a nica brincadeira que so capazes de entender. Foi um mau pedao. A fila de gigantes parecia no acabar nunca, e no paravam de dar pedradas. E, alm do perigo real, as caras e os vozeires j eram suficientes para apavorar qualquer um. Jill fez tudo para no olhar. Depois de quase meia hora, os gigantes, pelo jeito, comearam a brigar. Foi o fim do concurso de pontaria, mas no nada agradvel estar a um quilmetro de gigantes brigando. Agridem e escarnecem uns dos outros com palavras sem sentido, de vinte slabas cada uma. Berram, espumam e saltam enfurecidos, fazendo a terra estremecer. Ferem-se uns aos outros na cabea com marteles de pedra. As cabeas so to duras que os martelos saltam, e os monstros deixam cair o martelo e uivam de dor com os dedos machucados. Mas so to estpidos que voltam a repetir a mesma coisa um minuto depois. De qualquer forma foi bom, pois depois de uma hora os gigantes estavam to machucados que se sentaram e comearam a chorar. Sentados, ficaram com a cabea abaixo da borda do desfiladeiro, e assim no foram mais vistos. Mas, mesmo um quilmetro frente, Jill continuava a ouvi-los uivar e abrir o berreiro, como se fossem bebs enormes. Acamparam naquela noite em plena charneca. Brejeiro ensinou s crianas como fazer o melhor uso dos cobertores, dormindo uma de costas para a outra. (De costas, uma aquece a outra, e podem-se jogar os dois cobertores por cima.) Mas estava gelado mesmo assim, e o cho era duro e encaroado. Disse-lhes o paulama que, para se sentirem melhor, bastaria lembrar que seria ainda muito mais frio quando se aproximassem mais do Norte. Mas isso no serviu de consolo. Caminharam atravs de Ettin por muitos dias, poupando o toucinho e alimentando-se principalmente de aves (no eram, naturalmente, aves falantes) que Eustquio e o paulama derrubavam. Jill chegava a invejar a habilidade de Eustquio. Como havia riachos sem conta pelo caminho, gua que no faltava. Jill lembrou-se de que nos livros, quando as pessoas se alimentam de caa, nunca se faz referncia ao trabalho malcheiroso, demorado e sujo que depenar e limpar uma ave abatida. O melhor que no tinham encontrado mais gigantes. Um deles os viu, mas deu uma gargalhada gigantesca e continuou a tratar da vida. Por volta do dcimo dia, chegaram a um lugar no qual a paisagem mudava. Tinham atingido a borda norte da charneca, que dava para um territrio mais ngreme e penoso. No fundo de uma encosta havia penhas: alm destas, uma terra de montanhas altas, negros precipcios, vales pedregosos, abismos to fundos e estreitos que ficavam escuros, e rios que jorravam de gargantas ressoantes para o fundo de sinistros despenhadeiros. No preciso dizer que foi Brejeiro quem apontou para um punhado de neve nas encostas mais distantes. Mas haver mais neve para o Norte, sem dvida acrescentou. Levaram algum tempo para atingir o sop da encosta. Olharam ento do alto dos penhascos para um rio que corria embaixo, de oeste para leste. Ladeado de precipcios, era verde e sombrio, pontilhado de rpidos rios e cachoeiras. O rugido das guas estremecia a terra. O melhor de tudo disse Brejeiro que, se quebrarmos o pescoo ao descer do penhasco, estaremos salvos de morrer afogados no rio. E aquilo ali? disse Eustquio de repente, apontando rio acima, esquerda. Todos olharam e viram o que menos esperavam uma ponte. E que ponte! Era um vasto e nico arco transpondo o abismo e firmado no topo de dois penhascos. O ponto culminante do arco elevava-se acima dos topos mesma altura que est da rua a abbada de uma catedral. Puxa! S pode ser uma ponte de gigantes! exclamou Jill. Ou de feiticeiras, mais provvel replicou Brejeiro. Precisamos estar atentos aos feitios num lugar como este. Parece uma armadilha. Aquilo pode virar nvoa e sumir quando estivermos no meio da travessia. Oh, francamente, deixe de bancar o p-frio falou Eustquio. Por que diabo aquilo no pode ser uma ponte de verdade? E voc acha que algum dos gigantes que vimos at agora teria cabea para construir uma ponte como aquela? perguntou Brejeiro. E no poderia ter sido construda por outros gigantes? perguntou Jill. Quer dizer: por gigantes que existiram h sculos e tinham muito mais cabea que os modernos? S podem ser os mesmos que construram a cidade gigantesca que andamos procurando. Se assim, devemos estar no caminho certo: a velha ponte leva cidade velha! Grande idia, Jill disse Eustquio. S pode ser isso. Vamos. Quando chegaram em cima, verificaram que a ponte era slida. As pedras eram enormes e deviam ter sido talhadas por bons pedreiros, embora o tempo as tivesse rachado e desconjuntado. A balaustrada j devia ter sido coberta de entalhes, dos quais restavam alguns traos: gigantes, minotauros, lulas, centopias e divindades medonhas. Brejeiro, apesar de continuar desconfiado, decidiu atravess-la com as crianas. A subida at o ponto mais alto do arco era longa e penosa. Em muitos lugares as grandes pedras tinham cado, abrindo buracos apavorantes pelos quais se via, l embaixo, o rio a espumejar. Uma guia passou voando sob os ps deles. Quanto mais subiam, mais frio sentiam, e o vento era to forte que dificultava a caminhada. Parecia sacudir a ponte. Do alto viram na encosta frente os restos de uma estrada que se dirigia para o corao das montanhas. Diversas pedras do pavimento tinham desaparecido; tufos de capim cresciam entre as que ficaram. E na direo deles, a cavalo, vinham pela velha estrada duas figuras do tamanho de um adulto humano. Continuemos disse Brejeiro. Num lugar como este todo mundo deve ser inimigo, mas no devemos dar demonstrao de medo. Quando chegaram ao fim da ponte e pisaram na relva, as duas figuras estranhas estavam bem prximas. Uma era um cavaleiro com armadura completa e a viseira abaixada. A armadura e o cavalo eram negros; no havia emblema no escudo, nem flmula na lana. A outra era uma dama montada num cavalo branco, um cavalo to bonito que dava logo vontade de beijar-lhe o focinho e oferecer-lhe um torro de acar. Mas a dama, que montava de lado e usava um comprido e esvoaante vestido verde, era ainda mais bonita. Bom dia, estr-r-angeiros murmurou a dama numa voz mais doce que o canto dos pssaros, trilando os erres gostosamente. Alguns de vocs so peregrinos nesta terra agreste? Pode ser, madame respondeu Brejeiro, muito empertigado, em posio defensiva. Estamos procurando a cidade arruinada dos gigantes declarou Jill. A cidade ar-r-ruinada? fez a dama. Que idia! Que pretende fazer, se encontr-la? Precisamos encontr-la... comeou Jill, logo interrompida por Brejeiro. Com o seu perdo, madame. Acontece, porm, que no a conhecemos, nem a senhora, nem o seu companheiro... sujeito calado, hein... e a senhora tambm no nos conhece. Assim, melhor no confiar a estranhos nossos negcios. Parece que vai chover, no mesmo? A dama riu o riso mais comunicativo, mais musical que se pode imaginar: Muito bem, meus filhos, parabns pelo guia sbio e solene que possuem. No lhes quero mal por fechar seu corao, mas eu abrirei o meu para vocs. J ouvi muitas vezes referncias gigantesca cidade arruinada, mas jamais encontrei quem me ensinasse o caminho para l. Esta estrada conduz ao burgo do castelo de Harfang, onde vivem gigantes amveis. So to bonzinhos, educados e sensatos como os de Ettin so bobos, perversos, selvagens e dados a bestialidades. Em Harfang talvez vocs possam saber qualquer coisa sobre a cidade arruinada, talvez no; de qualquer forma, l encontraro bons alojamentos e anfitries amveis. Seria mais sensato passar a todo o inverno ou, pelo menos, permanecer alguns dias para que descansem e se recuperem. L encontraro banhos de vapor, caminhas macias, grandes lareiras; e o que h de bom, assado ou cozido, doce ou salgado, estar na mesa quatro vezes por dia. Que beleza! exclamou Eustquio. S de pensar em dormir de novo numa cama! Pois ... e banho quente?! acrescentou Jill. Ser que eles nos convidam? Ns nem os conhecemos... simples respondeu a dama. Diga-lhes que Ela, a Dama do Vestido Verde, manda lembranas e duas crianas do Sul para a Festa do Outono. Jill e Eustquio ficaram comovidos: Muito obrigado, muito obrigado... quanta gentileza... De nada, meus anjos. Mas tomem um cuidado: no cheguem tarde demais em Harfang; eles fecham os portes poucas horas depois do meio-dia e no abrem para ningum. As crianas agradeceram mais uma vez, com os olhos a luzir, e a dama acenou-lhes adeus. O pau-lama tirou o chapu pontudo e fez uma reverncia, muito empertigado. O cavaleiro calado e a dama conduziram os cavalos para a entrada da ponte com um grande tropel de cascos. Pois muito bem! falou Brejeiro. Daria um saco de rs para saber de onde ela vem e para onde vai. No o tipo que a gente espera encontrar nas vastides dos gigantes, no ? No pode ser boa coisa! Besteira! disse Eustquio. Mulher fabulosa. Pense numa comida quentinha... quartos aquecidos. S espero que Harfang no esteja muito longe. Tambm acho disse Jll. E que vestido esplndido! E o cavalo! E da? fez Brejeiro. Se a gente soubesse um pouquinho mais sobre ela no seria nada mau. Pois eu ia perguntar! disse Jill. Mas como que eu poderia fazer isso se voc no quis contar-lhe nada a nosso respeito? Isso mesmo concordou Eustquio. Voc ficou a feito um pedao de pau, bancando o antiptico! No gostou deles? Deles? Eles quem? estranhou o paulama. S vi uma pessoa. Vai dizer que no viu o cavaleiro? perguntou Jill. Vi uma armadura. Se era ele, por que no abriu a boca? Deve ser tmido explicou Jill. Pode ser tambm que ele fique satisfeito s de olhar para ela, s de ficar ouvindo aquela voz linda de morrer. Eu faria o mesmo se fosse ele. Pois eu replicou Brejeiro estou s imaginando o que a gente veria levantando a viseira do elmo e olhando l dentro. Deixe disso atalhou Eustquio. No viu a forma da armadura? S podia ter uma coisa l dentro: um homem. E no poderia ser um esqueleto? perguntou o paulama, com uma entonao lgubre. Ou talvez, nada. Nada que fosse visvel. Um algum invisvel. Francamente, Brejeiro falou Jill num sobressalto. Voc tem cada idia. Deixe-o para l disse Eustquio. Ele est sempre esperando o pior, e est sempre errado. Vamos pensar nos gigantes amveis e chegar em Harfang o mais cedo possvel. Gostaria de saber a distncia que nos separa do castelo. E quase acabaram caindo numa daquelas brigas previstas por Brejeiro: Jill e Eustquio j tinham estado s turras antes, mas agora o desentendimento era de fato srio. Brejeiro no queria ir para Harfang de maneira nenhuma. No sabia (disse) o que significava ser amvel na cabeorra de um gigante. Alm disso, segundo os sinais de Aslam, nada havia a respeito de hospedar-se com gigantes, amveis ou desagradveis. Por sua vez, as crianas (cansadas de ventanias, de chuvaradas, de aves assadas nos acampamentos, do cho duro) estavam indiscutivelmente decididas a uma visita aos gigantes amveis. Por fim, Brejeiro acabou concordando, mas sob uma condio: os dois tinham de prometer de pedra e cal que, a no ser que a proibio fosse levantada, jamais revelariam aos gigantes de onde vinham e que estavam procura do prncipe Rilian. A promessa foi feita e eles prosseguiram. Depois da conversa com a dama, as coisas pioraram de duas maneiras: o caminho era muito mais spero e cruzava vales estreitos, onde o vento norte os castigava; nada se encontrava que pudesse ser usado como lenha e no havia bons lugares para passar a noite; o terreno era todo pedregoso, causando dores nos ps durante o dia e dores no corpo todo durante a noite. Em segundo lugar, fosse qual fosse a inteno da dama ao referir-se s delcias de Harfang, o efeito sobre as crianas no foi nada bom. No pensavam em outra coisa, s em camas quentes, banhos, jantares, aconchego. J nem falavam mais em Aslam ou no prncipe perdido. Jill deixou de repetir os sinais todas as noites e manhs. A princpio, dizia para si que estava cansada demais; depois, simplesmente se esqueceu de tudo. A idia de passar uma boa vida em Harfang, em vez de mant-los mais felizes e animados, produziu o efeito contrrio: aumentou-lhes a insatisfao, tornando-os mais impacientes e irritados. Uma tarde chegaram finalmente a um lugar onde o desfiladeiro abria-se e escuros abetos erguiam-se de cada lado. Tinham atravessado as montanhas. Diante deles estendia-se uma plancie deserta e pedregosa; alm, montanhas distantes, cobertas de neve. E entre eles e as montanhas longnquas elevava-se uma pequena colina com uma chapada irregular. Olhem! Olhem! gritou Jill, apontando para alm da plancie. L, na penumbra do crepsculo, todos viram luzes. Luzes! No a luz da lua, nem a luz de fogueiras, mas uma acolhedora fileira de janelas iluminadas. Quem nunca atravessou dias e noites numa terra deserta, dificilmente poder saber o que eles sentiram. Harfang! bradou Eustquio, triunfante. Harfang! gritou Jill, excitada. Harfang repetiu Brejeiro numa entonao sombria e aborrecida. Mas acrescentou logo: Oba! Gansos selvagens! Puxou o arco do ombro num segundo e derrubou um ganso gordo. Era tarde demais para ter a esperana de alcanar Harfang naquele dia. Assim, comeram carne quente ao p do fogo e entraram na noite mais animados. Quando o fogo se extinguiu, a noite ficou fria de doer; ao despertarem na manh seguinte, os cobertores estavam endurecidos pela geada. No se preocupem disse Jill, batendo os ps. Hoje noite tem banho quente. 7 A COLINA DOS FOSSOS ESTRANHOS inegvel que foi um dia pavoroso. No alto, um cu sem sol, abafado por nuvens pesadas de neve; embaixo, uma geada escura, e um vento que soprava como se fosse arrancar-lhes a pele. Ao chegarem plancie, perceberam que esse trecho da velha estrada estava em condies muito piores. Tinham de achar passagem entre grandes blocos partidos, entre calhaus e pedregulhos. Dura caminhada para ps doloridos. E, por mais cansados que ficassem, o frio era demais para um descanso. L pelas dez horas os primeiros flocos midos comearam a cair nos braos de Jill. Dez minutos mais tarde caam com mais intensidade. Mais vinte minutos e o cho ficara branco. No fim de meia hora, uma boa tempestade de neve