C.s.lewis as crônicas de nárnia - vol. 7 - a última batalha

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C. S. LEWIS

AS CRNICAS DE NRNIAVOL. VIIA ltima Batalha

TraduoPaulo Mendes Campos

Martins FontesSo Paulo 2002

As Crnicas de Nrnia so constitudas por:Vol. I O Sobrinho do MagoVol. II O Leo, o Feiticeiro e o Guarda-RoupaVol. III O Cavalo e seu MeninoVol. IV Prncipe CaspianVol. V A Viagem do Peregrino da AlvoradaVol. VI A Cadeira de PrataVol. VII A ltima Batalha

NDICE

1. No LAGO DO CALDEIRO2. A PRECIPITAO DO REI3. SUA MAJESTADE, O MACACO4. O QUE ACONTECEU NAQUELA NOITE5. CHEGA AUXLIO PARA O REI6. UM BOM TRABALHO NOTURNO7. VIVAM OS ANES!8. AS NOVAS QUE A GUIA TROUXE9. A GRANDE REUNIO NA COLINA DO ESTBULO10. QUEM ENTRAR NO ESTBULO? 11. ACELERA-SE O PASSO12. PELA PORTA DO ESTBULO13. OS ANES NO SE DEIXAM TAPEAR14. CAI A NOITE SOBRE NRNIA15. PARA CIMA E AVANTE!16. ADEUS S TERRAS SOMBRIAS 1 NO LAGO DO CALDEIRO Nos ltimos dias de Nrnia, l para as bandas do Ocidente, depois do Ermo do Lampio e bem pertinho da grande cachoeira, vivia um macaco. Ele era to velho que ningum se lembrava quando foi que aparecera por aquelas bandas. E era o macaco mais enrugado, feio e astuto que se pode imaginar. Ele morava numa casinha de madeira coberta de folhas, empoleirada num dos galhos mais altos de uma grande rvore. Seu nome era Manhoso. Naquele recanto da floresta havia bem poucos animais falantes, homens, anes ou qualquer tipo de gente. Apesar disso, Manhoso tinha um vizinho, que era tambm seu amigo, um jumento chamado Confuso. Pelo menos eles se diziam amigos. Na verdade, porm, Confuso era mais um empregado que amigo de Manhoso. Era ele quem fazia todo o servio. Quando iam juntos para o rio, Manhoso enchia os alforjes de gua, mas quem os carregava at em casa era Confuso. Quando precisavam de alguma coisa das cidades, que ficavam bem longe, rio abaixo, era Confuso quem descia com os paneiros vazios s costas e voltava depois com eles, pesados de to cheios. E tudo que ele trazia de melhor e mais gostoso quem comia era Manhoso, pois, como este costumava dizer: Voc bem sabe, Confuso, que eu no posso comer capim e forragem como voc. Por isso claro que eu preciso compensar de outras formas... E o jumento respondia: Claro, Manhoso, claro. Eu sei disso. Confuso nunca reclamava, pois sabia que Manhoso era muito mais sabido que ele, e at achava que, afinal de contas, era muito gentil da parte dele ser seu amigo. E se, por acaso, Confuso tentava discutir com ele sobre alguma coisa, Manhoso sempre dizia: Ora, vamos, Confuso, eu sei muito melhor do que voc o que precisa ser feito. Voc sabe muito bem que no nada inteligente, no mesmo? E Confuso concordava: verdade, Manhoso. Voc tem toda a razo. Eu no sou sabido mesmo. E acabavam fazendo sempre o que Manhoso queria. Uma manh, no comecinho do ano, os dois andavam passeando margem do Lago do Caldeiro. O Lago do Caldeiro o grande lago que fica logo abaixo dos penhascos na extremidade oeste de Nrnia. A enorme cachoeira precipita-se dentro dele com estrondo, como se fosse um eterno trovo, e o rio de Nrnia brota pelo outro lado. Por causa da cascata as guas do lago esto sempre danando, agitadas, borbulhando e fazendo crculos como se estivessem continuamente fervendo. Por isso que se chama Lago do Caldeiro. no comecinho da primavera que ele fica mais agitado, porque as guas da cachoeira crescem muito mais com a neve que derrete nas montanhas do lado de l de Nrnia, na floresta ocidental, onde nasce o rio. Eles estavam olhando para o Lago do Caldeiro quando, de repente, Manhoso apontou com seu dedo escuro e fininho, dizendo: Olhe! O que aquilo? Aquilo o qu? perguntou Confuso. Aquela coisa amarela que vem descendo pela cachoeira. Olhe! L est ela de novo, flutuando na gua. Precisamos descobrir o que aquilo! Precisamos...? disse Confuso. E claro que sim respondeu Manhoso. Pode ser alguma coisa til. Vamos, seja camarada. Pule no lago e pegue aquilo l, para a gente dar uma olhada. Saltar no lago? resmungou Confuso, repuxando as orelhas compridas. Bem... Como que vamos peg-lo se voc no pular? disse o macaco. Mas... Mas... No seria melhor que voc entrasse no lago? Afinal de contas, quem quer saber o que aquilo voc, e no eu... E voc tem mos, no mesmo? Quando se trata de pegar alguma coisa, voc to bom quanto qualquer homem ou ano. Eu s tenho cascos... Puxa, Confuso! exclamou Manhoso. Nunca pensei ouvir uma coisa dessas. Nunca esperei isso de voc! Por qu? O que foi que eu disse de errado? indagou o jumento, numa vozinha muito humilde, pois percebera que o amigo estava muito ofendido. Eu s quis dizer... Querendo que eu entre na gua... queixou-se o macaco. Como se no soubesse perfeitamente quanto so fracos os pulmes dos macacos e quo facilmente eles se resfriam. Tudo bem, eu vou. J estou mesmo tremendo de frio por causa deste vento terrvel. Mas vou assim mesmo. Pode at ser que eu morra. E a voc vai se arrepender! (E aqui a voz de Manhoso soou como se ele estivesse prestes a chorar.) No, por favor, no v! Por favor, no! disse Confuso, meio zurrando, meio falando. Eu no quis dizer isso, Manhoso, juro! Voc bem sabe o quanto sou idiota e que no consigo pensar em duas coisas ao mesmo tempo. Eu esqueci que voc tem o peito fraco. claro que eu vou. Nem pense mais nisso. Prometa que no vai, Manhoso! Ento o macaco prometeu, e Confuso saiu trotando em volta da margem rochosa do lago, procurando um lugar de onde pudesse pular. No era brincadeira saltar dentro daquela gua agitada e espumejante e isso para no falar do frio! Confuso ficou um tempo parado, tremendo, tentando criar coragem. Mas a Manhoso gritou l de trs: Talvez seja melhor eu ir, Confuso! Ao ouvir isso, o jumento apressou-se: No, no! Voc prometeu! J estou indo! E pulou. Um monte de espuma espirrou-lhe na cara, enchendo-lhe a boca de gua e cegando-lhe os olhos. Durante alguns minutos ficou submerso, e quando voltou tona encontrava-se num ponto totalmente diferente do lago. Ento o redemoinho o pegou, e foi rodopiando cada vez mais rpido, carregando-o para mais e mais longe, at deix-lo exatamente debaixo da queda-dgua. E a fora da gua arrastava-o cada vez mais para o fundo, de tal forma que ele pensou que no conseguiria reter o flego... At que comeou a subir novamente. Quando voltou superfcie e afinal conseguiu chegar perto da coisa que estava tentando alcanar, esta saiu boiando para longe dele e foi cair bem embaixo da queda-dgua, que a fez afundar tambm. Quando a coisa voltou tona, estava muito mais longe do que nunca. Finalmente, quando j estava quase morto de cansao, todo dodo e dormente de frio, conseguiu agarr-la com os dentes. E l veio ele pelo lago, carregando frente aquela coisa enroscada nas patas dianteiras, pois era um pelego enorme, muito pesado, frio e cheio de lodo. Confuso atirou a coisa aos ps de Manhoso e ali ficou, todo encharcado, tiritando de frio e tentando recuperar o flego. O macaco, porm, nem sequer olhou para ele ou perguntou como se sentia. Manhoso estava muito ocupado dando voltas e mais voltas ao redor da coisa. Esticava, alisava, cheirava... E de repente seus olhos brilharam com um sorriso malicioso e ele exclamou: uma pele de leo! Eh... ha... ha... ... mesmo? ofegou Confuso. Eu s queria saber... o que ser... ser que... dizia Manhoso consigo mesmo, pensando profundamente. Quem ser que matou o pobre do leo? perguntou Confuso depois de alguns instantes. Ele precisa ser enterrado. Vamos fazer um funeral. Ora, no era um leo falante replicou Manhoso. Nem precisa se preocupar com isso. No existem mais animais falantes do lado de l das cascatas, para as bandas da floresta ocidental. Esta pele deve ter pertencido a um leo mudo e selvagem. A propsito, era isso mesmo. Um caador matara o leo e arrancara-lhe a pele em alguma parte da floresta ocidental, j havia vrios meses. Isso, porm, nada tem a ver com a nossa histria. Tanto faz, Manhoso disse Confuso. Mesmo que seja a pele de um leo mudo e selvagem, por que no devemos dar-lhe um funeral decente? Quer dizer, quando a gente conhece Ele, todos os lees so dignos de respeito, voc no acha? No comece a meter minhocas na cabea, Confuso retrucou Manhoso. Voc bem sabe que pensar no o seu ponto forte. Vamos pegar esta pele e fazer uma capa bem quentinha para voc usar no inverno. Ah, no! Nem pense nisso! objetou o jumento. Ia parecer... quer dizer, os outros animais poderiam pensar... isto , eu no iria sentir-me... Do que voc est falando? interrompeu Manhoso, coando-se como costumam fazer os macacos. Eu acho que seria uma falta de respeito para com o Grande Leo, para com o prprio Aslam, se um asno como eu andasse por a metido numa pele de leo explicou Confuso. No me venha agora com argumentos, por favor disse Manhoso. O que que um burro como voc entende dessas coisas? Voc bem sabe que no um bom pensador, Confuso. Por que no me deixa pensar por voc? Por que no me trata como eu o trato? Eu no acho que sou capaz de fazer tudo. Sei que h certas coisas que voc faz muito melhor do que eu. por isso que o deixei entrar no lago: sabia que voc faria isso melhor do que eu. Mas por que eu no posso ter uma chance quando se trata de fazer algo que posso fazer e voc no? Por que ser que nunca posso fazer nada? Seja justo e me d uma chance, v... Est bem... se assim que voc pensa... Sabe de uma coisa? disse Manhoso. Por que voc no d um pulinho at Cavacpolis para ver se encontra algumas laranjas e bananas para ns? Mas, Manhoso, estou to cansado! implorou Confuso. Isso verdade. Mas tambm est molhado e com muito frio disse o macaco. Voc precisa de alguma coisa que o aquea, e uma corridinha vem bem a calhar. Alm do mais, hoje dia de feira em Cavacpolis. Nem preciso dizer que Confuso acabou concordando. Assim que se viu sozinho, Manhoso saiu gingando, ora sobre duas patas, ora sobre as quatro, at chegar rvore onde morava. Ento comeou a pular de galho em galho, tagarelando e arreganhando os dentes o tempo todo, e finalmente entrou na casinha. L dentro pegou agulha, linha e uma enorme tesoura (inteligente como era, havia aprendido a costurar com os anes). Enfiou o novelo de linha na boca (era uma linha muito grossa, que mais parecia corda), de forma que as bochechas ficaram estufadas como se ele estivesse chupando um caramelo bem grando. Com a agulha entre os beios e segurando a tesoura com a mo esquerda, desceu da rvore e saiu bamboleando at a pele de leo. Ento, acocorado, ps-se a trabalhar. Manhoso logo percebeu que o corpo da pele de leo era grande demais para Confuso e que o pescoo era muito curto. Portanto, cortou um bom pedao do corpo e emendou-o na parte do pescoo, fazendo uma gola comprida como o pescoo do jumento. Depois arrancou a cabea, costurando a gola entre esta e os ombros. Colocou umas tiras em ambos os lados da pele de leo, a fim de amarr-las por baixo do peito e do ventre de Confuso. De vez em quando um passarinho passava voando e Manhoso parava de trabalhar, olhando ansiosamente para cima; no queria que ningum visse o que estava fazendo. Mas como nenhum dos passarinhos que viu era uma ave falante, no havia com que se preocupar. Quando Confuso voltou j era bem tarde. Ele no vinha trotando, mas caminhando lentamente, como fazem os jumentos. No achei laranja nenhuma e banana tambm no. Estou morto de cansado! disse, atirando-se ao cho. Venha c. Experimente a sua linda capa nova, de pele de leo chamou o macaco. Essa pele velha que se dane! disse Confuso. Amanh eu experimento. Hoje estou cansado demais. Puxa, Confuso, como voc indelicado! reclamou Manhoso. Se voc est cansado, imagine eu! Fiquei o dia inteiro aqui dando duro para lhe fazer uma capa, enquanto voc trotava tranqilamente pelo vale. Minhas mos esto to cansadas que mal consigo segurar a tesoura. E agora voc nem me diz obrigado... E nem sequer olha para a capa... Nem d bola... Manhoso, meu querido disse Confuso, erguendo-se de um salto. Sinto muito. Como fui estpido! claro que eu adoraria experimentar a capa. Como bonita! Vou prov-la agora mesmo. Coloque-a em mim, por favor! Bem, ento fique quieto disse o macaco. A pele era muito pesada para Manhoso ergu-la sozinho. Mas at que enfim, depois de muito puxar, empurrar, soprar, bufar, conseguiu coloc-la no jumento. Amarrou-a por baixo do corpo de Confuso e atou as pernas e o rabo da pele nas pernas e no rabo do jumento. Por dentro da boca aberta da cabea de leo ainda dava para ver uma boa parte do focinho e da cara cinzenta de Confuso. Quem j tivesse visto um leo de verdade jamais se enganaria ao v-lo. Mas algum que nunca vira um leo antes, ao ver Confuso metido naquela pele, poderia muito bem tom-lo por um leo, desde que ele no se aproximasse muito e que a luz no fosse muito boa, e, claro, desde que ele no soltasse um zurro nem fizesse nenhum barulho com os cascos. Confuso, voc est maravilhoso! Ma-ra-vi-lho-so! disse o macaco. Se algum o visse agora pensaria que voc o prprio Aslam, o Grande Leo! Oh, no! Isto seria terrvel! Nem tanto disse Manhoso. Todo mundo iria fazer qualquer coisa que voc mandasse. Mas no quero mandar ningum fazer nada! Imagine s quanta coisa boa a gente poderia fazer disse Manhoso. Eu seria o seu conselheiro, claro. Bolaria umas ordens bem sensatas para voc dar. E todo mundo obedeceria a ns inclusive o prprio rei. A a gente ia dar um jeito em Nrnia, botar tudo nos eixos. Mas j no est tudo nos eixos? estranhou Confuso. Que nada! respondeu Manhoso. Tudo nos eixos? Quando nem laranja ou banana se encontra? Bem, voc sabe... nem todos... alis, acho que ningum mais alm de voc gosta dessas coisas. E acar? insinuou Manhoso. Hmmm! At que seria bom se houvesse mais acar... Ento, est combinado disse o macaco. Voc vai fazer de conta que Aslam, e eu lhe digo o que dizer. No, no, no! protestou Confuso. Pare com essa histria horrvel, Manhoso. Vai sair tudo errado. Posso no ser muito inteligente, mas isso eu sei muito bem. O que seria de ns se o verdadeiro Aslam aparecesse? Acho que ele ia ficar muito satisfeito respondeu Manhoso. Quem sabe at foi ele quem nos enviou de propsito a pele de leo, a fim de que dssemos um jeito em Nrnia? E depois, ele nunca aparece mesmo, voc bem sabe. Pelo menos, no hoje em dia. Naquele momento um enorme trovo ribombou bem acima da cabea deles e um ligeiro terremoto fez tremer o cho. Os dois animais perderam o equilbrio e se estatelaram de cara no cho. Viu? ! gaguejou Confuso, assim que recuperou o flego. E um sinal, um aviso. Eu sabia que a gente estava fazendo uma coisa terrivelmente perigosa. Tire logo de uma vez essa pele ordinria de cima de mim. No, no disse o macaco, cuja cabea trabalhava muito depressa. um outro tipo de sinal. Eu ia justamente dizer que se o verdadeiro Aslam, como voc o chama, quisesse que levssemos esta idia avante, mandaria uma trovoada e um tremor de terra. J estava na pontinha da lngua, s que o sinal veio antes que as palavras sassem da minha boca. Agora voc tem de fazer. E, por favor, no vamos mais discutir. Voc bem sabe que no entende muito dessas coisas. O que que um burro como voc entende de sinais? 2 A PRECIPITAO DO REI Umas trs semanas mais tarde, o ltimo rei de Nrnia estava sentado debaixo de um grande carvalho que crescia entrada do seu alojamento de caa, onde ele costumava passar uns dez dias durante a primavera. O alojamento era uma construo baixa, coberta de sap, no muito distante do lado oriental do Ermo do Lampio e um pouco acima do encontro dos dois rios. O rei adorava aquela vida tranqila e relaxada, longe das preocupaes e das pompas de Cair Paravel, a cidade real. Chamava-se Tirian e tinha entre vinte e vinte e cinco anos. Seus ombros eram largos e fortes e os membros rijos e musculosos, mas a barba era ainda bem rala. Tinha olhos azuis e uma expresso honesta e corajosa. No havia ningum com ele naquela manh de primavera, exceto seu amigo mais ntimo, o unicrnio Precioso. Os dois amavam-se como irmos e, em guerras anteriores, ambos j haviam salvo a vida um do outro. O nobre animal estava bem pertinho do rei e, com o pescoo encurvado, ocupava-se em lustrar o belo corno azul, esfregando-o contra a brancura cremosa do prprio flanco. Hoje no tenho a mnima disposio para trabalhar ou praticar esporte, Precioso disse o rei. No consigo pensar em outra coisa a no ser nessa maravilhosa notcia. Voc acha que ainda hoje ouviremos algo mais sobre isso? So as novas mais maravilhosas que j ouvimos em nossos dias, ou mesmo nos dias dos nossos pais e dos nossos avs, senhor respondeu Precioso. Se que so verdadeiras. E como poderiam no ser verdadeiras? J faz mais de uma semana que os primeiros passarinhos chegaram voando e nos disseram que Aslam est aqui, que Aslam est de volta a Nrnia. Depois disso foram os esquilos. No o avistaram, mas disseram que era certo que ele estava na floresta. E a chegou o cervo e disse que o vira com seus prprios olhos, bem de longe, ao luar, no Ermo do Lampio. Depois veio aquele moreno barbudo, o mercador da Calormnia. Os calormanos no ligam muito para Aslam como ns, mas a maneira como o homem falou no deixa dvida alguma. E na noite passada foi o texugo, que tambm viu Aslam. De fato, senhor disse Precioso , eu acredito. Se parece que no acredito porque a minha alegria to grande que no consigo acreditar em mim mesmo. quase bonito demais para ser verdade. Pois disse o rei com um grande suspiro, quase um estremecimento de prazer. muito alm do que eu poderia imaginar em toda a minha vida. Oua! exclamou Precioso, voltando a cabea para um lado e empinando as orelhas. O que isso? perguntou o rei. Cascos, senhor respondeu Precioso. Um cavalo a galope. Deve ser um dos centauros. Veja, l est ele. Um grande centauro de barbas douradas, com suor de homem na testa e suor de cavalo nos flancos, precipitou-se em direo ao rei, parou e inclinou-se numa reverncia. Salve, Majestade!, exclamou, numa voz profunda como a de um touro. Ei, vocs! disse o rei, olhando por cima dos ombros na direo da porta do alojamento de caa. Uma taa de vinho aqui para o nobre centauro. Bem-vindo, Passofirme. Recupere o flego primeiro e depois transmita-nos a sua mensagem. Um pajem saiu da casa trazendo uma grande taa de madeira curiosamente entalhada e entregou-a ao centauro. Este ergueu a taa, dizendo: Bebo a Aslam e verdade em primeiro lugar, senhor, e depois sade de Vossa Majestade! Bebeu o vinho de um trago (a quantidade era suficiente para seis homens fortes), devolvendo ao pajem a taa vazia. E agora, Passofirme disse o rei. Ser que nos traz alguma notcia de Aslam? O centauro fitou-o muito srio, franzindo um pouco as sobrancelhas. Senhor disse ele , bem sabeis h quanto tempo venho estudando as estrelas, pois ns, os centauros, vivemos mais do que vs, homens, e ainda mais do que vs, unicrnios. Jamais, em toda a minha vida, vi coisas to terrveis escritas nos cus quanto as que vm aparecendo a cada noite, desde o incio deste ano. As estrelas nada dizem sobre a vinda de Aslam, nem sobre paz ou alegria. Pelos meus conhecimentos, sei bem que, nestes quinhentos anos, jamais ocorreu to desastrosa conjuno de planetas. J estava pensando em vir prevenir Vossa Majestade de que algum grande mal est por abater-se sobre Nrnia. Mas na noite passada ouvi rumores de que Aslam encontra-se em Nrnia. Senhor, no acrediteis nessa histria. No pode ser. As estrelas nunca mentem, mas os homens e os animais, sim. Se Aslam estivesse realmente vindo para Nrnia, os cus o teriam predito. Se ele estivesse mesmo por vir, todas as estrelas mais formosas estariam reunidas em sua homenagem. tudo mentira! Mentira! explodiu o rei. Que criatura, em Nrnia ou no mundo inteiro, ousaria inventar uma mentira dessas? E, sem nem pensar no que estava fazendo, levou a mo bainha da espada. Isso eu no sei, meu senhor disse o centauro. S sei que na terra existem mentirosos; nenhum, porm, entre as estrelas. Eu me pergunto interveio Precioso se Aslam no poderia vir de qualquer forma, mesmo sem ter sido previsto pelas estrelas. Ele no escravo das estrelas, mas, sim, o criador delas. No o que se diz em todas as narrativas antigas, que ele no um leo domesticado? Isso mesmo, Precioso, isso mesmo! exclamou o rei. So exatamente estas as palavras: ele no um leo domesticado. Isso aparece em inmeras histrias. Passofirme ergueu a mo e ia fazendo uma reverncia para dizer ao rei algo muito grave, quando de repente os trs se voltaram, pois acabavam de ouvir um som de lamentao que se aproximava cada vez mais rpido. Do lado direito de onde eles estavam, a mata era to espessa que ainda no dava para enxergar quem vinha vindo. Logo, porm, distinguiram as palavras. Ai, ai, ai! gemia a voz. Ai de meus irmos e minhas irms! Ai das rvores sagradas! As matas esto arrasadas. O machado voltou-se contra ns. Estamos sendo derrubadas. rvores enormes esto caindo, caindo, caindo... E, junto com o ltimo caindo, apareceu o dono da voz. Parecia uma mulher, mas era to alta que sua cabea ficava no mesmo nvel da do centauro. E ela prpria parecia uma rvore. Para quem nunca viu uma drade difcil explicar. Mas quem j viu uma no se engana, pois h algo diferente nela, na cor, na voz, no cabelo... O rei Tirian logo percebeu que se tratava da ninfa de uma faia. Misericrdia, senhor rei! chorava ela. Venha em nosso auxlio! Proteja nosso povo! Esto nos derrubando no Ermo do Lampio. Quarenta rvores grandes dentre as minhas irms j esto por terra. O qu? ! Derrubando o bosque do Lampio? Assassinando as rvores falantes? ! exclamou o rei, dando um salto e sacando a espada. Como ousam? Quem se atreve a fazer isso? Pela Juba do Leo, vou... Ah-h-h! ofegou a drade, estremecendo como se sentisse dores. E de instante em instante estremecia novamente, como se estivesse recebendo golpes contnuos. Ento, de sbito, caiu de lado, to de repente como se algum lhe tivesse arrancado de um golpe ambos os ps debaixo do corpo. Durante alguns segundos eles a viram ali, estirada na grama, morta; depois ela se desvaneceu. Sabiam o que havia acontecido: a rvore dela, a quilmetros de distncia, tinha sido derrubada. O rei ficou to furioso que, por algum tempo, nem conseguiu falar. Por fim disse: Venham, meus amigos. Vamos subir o rio e descobrir quem so os viles que esto fazendo isso, o mais depressa possvel. No deixaremos nem um deles vivo! Sim, senhor, com todo o prazer! concordou Precioso. Mas Passofirme retrucou: Senhor, cuidado com a vossa justa ira. Coisas muito estranhas andam acontecendo. Se existirem rebeldes armados l para as bandas do Ermo do Lampio, ns trs somos muito poucos para enfrent-los. Caso vos dignsseis a esperar um pouco, enquanto... No vou esperar nem um dcimo de segundo! interrompeu o rei. Mas enquanto eu e Precioso seguimos, galope o mais rpido que puder at Cair Paravel. Tome aqui o meu anel como garantia. Arranje-me um batalho de homens armados, todos bem montados, e tambm um batalho de ces falantes, dez anes (todos eles excelentes arqueiros!), um leopardo ou coisa parecida e ainda o gigante P-de-Pedra. Leve todos eles ao nosso encontro o mais depressa possvel. Com todo o prazer, senhor disse Passofirme, voltando-se de uma vez para o Oriente. E disparou a galope na direo do vale. O rei afastou-se a passos largos, ora falando sozinho, ora cerrando os punhos. Precioso seguia ao seu lado, sem dizer nada; entre os dois no se ouvia som algum, a no ser o leve tilintar de uma rica corrente de ouro que o unicrnio trazia ao pescoo e o barulho de dois ps e quatro patas. Logo alcanaram o rio e comearam a subir por uma estrada coberta de grama. Agora tinham a gua sua esquerda e a floresta direita. Pouco depois chegaram a um lugar onde o terreno era ainda mais irregular e uma mata espessa descia at a beira da gua. A estrada alis, o que restava dela seguia agora pela margem sul e eles tiveram de vadear o rio para alcan-la. A gua dava quase nos ombros de Tirian. Precioso, que por ter quatro pernas tinha muito mais estabilidade, colocou-se sua direita a fim de quebrar a fora da corrente. Com seus braos fortes Tirian agarrou-se ao potente pescoo do unicrnio e assim os dois chegaram a salvo do outro lado. O rei ainda estava com tanta raiva que mal se deu conta do frio da gua. Mesmo assim, logo que chegaram outra margem, ele enxugou cuidadosamente a espada na manga da capa, que era a nica parte seca em todo o seu corpo. Agora avanavam para o Oeste, tendo direita o rio e, bem sua frente, o Ermo do Lampio. Ainda no haviam caminhado um quilmetro quando ambos pararam, falando ao mesmo tempo: O que isso? perguntou o rei, enquanto Precioso exclamava: Olhe! uma balsa disse Tirian. E era mesmo. Uma meia dzia de troncos de rvores, todos recm-cortados e cujos galhos acabavam de ser podados, tinham sido amarrados um ao outro formando uma balsa e vinham deslizando velozmente rio abaixo. Na frente ia um rato-dgua, dirigindo-a com um varapau. Ei, rato-dgua! O que est fazendo? gritou o rei. Levando estes troncos rio abaixo para vender aos calormanos, senhor respondeu o rato, fazendo uma continncia e tocando na orelha como quem toca no chapu. Calormanos? ! vociferou Tirian. O que voc quer dizer com isso? Quem deu ordem para derrubar essas rvores? O rio corre to rapidamente nessa poca do ano que a balsa j tinha passado pelo rei e por Precioso. Mas o rato-dgua olhou para trs e gritou por cima dos ombros: Ordens do Leo, senhor. Do prprio Aslam! Ele ainda disse mais alguma coisa, mas eles no conseguiram entender. O rei e o unicrnio se entreolharam. Nunca, em nenhuma batalha, pareceram to assustados quanto agora. Aslam disse finalmente o rei, numa voz quase inaudvel. Aslam. Ser verdade? Ser possvel que Ele esteja derrubando as rvores sagradas e matando as drades? A no ser que todas as drades tenham feito algo terrivelmente errado... murmurou Precioso. Mas vend-las para os calormanos? ! pasmou o rei. Ser possvel? No sei... disse Precioso, desolado. Ele no um leo domesticado... Bem suspirou o rei, depois de alguns instantes. Vamos em frente e vejamos que aventura nos espera. a nica coisa que nos resta fazer, senhor disse o unicrnio. Naquele momento, nem ele nem o rei se deram conta da loucura que estavam fazendo, indo avante s os dois. Sua precipitao, no entanto, acabaria por trazer muitos males. De repente, o rei inclinou-se, encostando-se no pescoo do amigo, e disse, abanando a cabea: Precioso, o que ser de ns? Pensamentos horrveis comeam a me perturbar. Ah, se tivssemos morrido antes de hoje! Teria sido melhor para ns. Sim disse Precioso. Acho que vivemos demais. No poderia ter nos acontecido coisa pior. Ficaram ali parados durante uns dois minutos e depois seguiram em frente. De longe podiam ouvir o barulho dos machados devastando a floresta, embora ainda no conseguissem ver nada, pois o terreno elevava-se logo frente deles. Quando alcanaram o topo, avistaram o Ermo do Lampio; o rosto do rei ficou branco como cera. Bem no meio daquela antiga floresta a mesma floresta onde, muitos anos atrs, cresciam rvores de ouro e de prata e onde certa vez uma criana do nosso mundo plantara a Arvore da Proteo j fora aberta uma vasta clareira. Era uma faixa horrorosa, parecendo uma ferida aberta na terra, cheia de sulcos barrentos por onde as rvores derrubadas eram arrastadas para o rio. Havia uma poro de gente trabalhando em meio ao estalar de chicotes; cavalos resfolegavam e bufavam arrastando as toras de madeira. A primeira coisa que o rei e o unicrnio notaram foi que pelo menos metade dos trabalhadores eram homens e no animais falantes. Depois perceberam que aqueles homens no eram os louros narnianos, mas, sim, barbudos e morenos homens da Calormnia, o pas grande e cruel que fica para l da Arquelndia, ao sul do deserto. No existia, claro, razo alguma para no haver calormanos em Nrnia, fossem eles mercadores ou embaixadores, pois naqueles dias havia paz entre Nrnia e Calormnia. O que Tirian no conseguia entender era por que havia tantos deles ali, nem por que razo estavam abatendo as florestas narnianas. Apertou ainda mais o punho da espada, enrolando a capa sobre o brao esquerdo, e em questo de segundos j se encontravam no meio daqueles homens. Dois calormanos montavam um cavalo ao qual haviam atrelado um tronco. O rei os alcanou justo no momento em que o tronco atolara numa poa de lama. Vamos, filho de uma lesma! Puxa, seu porco preguioso! gritaram os calormanos, estalando os chicotes. O cavalo j se esforara ao mximo; seus olhos estavam vermelhos e o corpo coberto de espuma. Trabalhe, sua besta molenga! berrou um dos calormanos, aoitando selvagemente o cavalo com o chicote. A ento uma coisa terrvel aconteceu. At aquele momento Tirian imaginara que os calormanos estivessem usando seus prprios cavalos: animais mudos e irracionais como os cavalos do nosso mundo. E, embora detestasse ver qualquer cavalo, mesmo mudo, sendo maltratado, naquele momento estava mais preocupado com o assassinato das rvores. Nunca lhe passara pela cabea que algum teria a ousadia de atrelar um dos livres cavalos falantes de Nrnia, e muito menos de chicote-lo. O cavalo, porm, ao ser atingido por aquele golpe selvagem, empinou-se e soltou um grito estridente: Seu tirano idiota! No v que estou me esforando ao mximo? ! Ao verem que o cavalo era um dos seus prprios narnianos, tanto Tirian quanto Precioso foram tomados de tamanha fria que perderam totalmente a noo do que estavam fazendo. A espada do rei subiu e o corno do unicrnio desceu. Os dois avanaram de uma vez. Em questo de segundos os dois calormanos jaziam mortos no cho, um decepado pela espada de Tirian e o outro com o corao traspassado pelo corno de Precioso. 3 SUA MAJESTADE, O MACACO Mestre cavalo! Mestre cavalo! exclamou Tirian, cortando-lhe apressadamente os arreios. Como que esses estranhos o escravizaram? Houve porventura alguma batalha em Nrnia? Algum a conquistou? No, senhor respondeu o cavalo ofegante. Aslam est aqui. tudo por ordem dele. Foi ele quem mandou... Cuidado, senhor rei! gritou Precioso. Tirian levantou os olhos e viu que, de todas as direes, comearam a aparecer calormanos e, junto com eles, alguns animais falantes. Como os dois homens tinham morrido sem dar um nico grito, algum tempo se passou antes que os outros percebessem o que havia acontecido. Mas agora j sabiam. A maioria deles j vinha com a cimitarra desembainhada. Rpido! Em minhas costas! gritou Precioso. O rei montou de um salto o velho amigo, que se virou e partiu a galope. Assim que se viram fora das vistas dos inimigos, mudaram de direo umas duas ou trs vezes. Depois de atravessarem um riacho, Precioso gritou, sem diminuir a velocidade: E agora, senhor, para onde vamos? Para Cair Paravel? Agente firme a, amigo, que vou descer disse Tirian, escorregando do lombo do unicrnio e colocando-se frente a frente com ele. Precioso disse o rei , o que fizemos foi terrvel! Fomos cruelmente provocados, senhor replicou o unicrnio. Mas atac-los desprevenidos... Sem desafi-los... E, ainda por cima, desarmados... Que vergonha! Somos dois assassinos, Precioso. Estou desonrado para sempre. Precioso baixou a cabea. Ele tambm estava envergonhado. E o cavalo disse que eram ordens de Aslam continuou o rei. E o rato disse a mesma coisa. Todo mundo diz que Aslam est por aqui. E se for verdade? Mas, senhor, como que Aslam iria dar ordens to terrveis? Ele no um leo domesticado retrucou Tirian. Como poderamos saber o que ele pretende? Logo ns, uns assassinos. Precioso, vou voltar. Vou entregar minha espada, render-me queles calormanos e pedir-lhes que me levem presena de Aslam. Que Ele mesmo me faa justia. Mas assim estar caminhando para a morte! E voc acha que eu me importo se Aslam me condenar morte? Isso ainda seria pouco, muito pouco. Melhor morrer do que viver com esse terrvel temor de que Aslam voltou e no nada parecido com o Aslam em quem sempre acreditamos e por quem tanto esperamos. como se de repente a gente acordasse e visse o sol nascer escuro... Eu sei disse Precioso. Ou como se a gente bebesse um copo dgua e esta fosse seca. Tem razo, senhor. o fim de tudo. Vamos voltar e entregar-nos. No preciso irmos os dois, Precioso. Pelo amor que sempre nos uniu, Tirian, deixe-me ir com voc agora implorou o unicrnio. Se voc morrer, e se Aslam no for mesmo Aslam, de que me adianta continuar vivendo? Os dois retomaram o caminho de volta, chorando amargamente. Quando chegaram ao lugar onde os homens estavam trabalhando, ouviu-se uma gritaria e os calormanos avanaram para cima deles de armas na mo. O rei, porm, ergueu sua espada com o punho voltado contra eles, dizendo: Eu, que era o rei de Nrnia e sou agora um cavaleiro desonrado, rendo-me justia de Aslam. Levem-me presena dele. Eu tambm me rendo disse Precioso. Viram-se, ento, cercados por uma enorme multido de homens escuros, cheirando a alho e cebola, os olhos brancos faiscando terrivelmente nos rostos morenos. Passaram uma corda em volta do pescoo de Precioso. Tomaram a espada do rei e amarraram-lhe as mos s costas. Um dos calormanos, que usava um elmo em lugar de turbante e que parecia estar no comando, arrancou o diadema de ouro da cabea de Tirian, fazendo-o desaparecer sutilmente por entre suas roupas. Depois os prisioneiros foram conduzidos colina acima, at chegarem a uma clareira. E eis o que os dois viram. No centro da clareira, que era tambm o ponto mais alto da colina, havia uma pequena cabana coberta de palha. A porta estava fechada. Na frente desta, sentado na grama, encontrava-se um macaco. Tirian e Precioso, que esperavam ver Aslam e nunca tinham ouvido coisa alguma a respeito de tal macaco, ficaram completamente desnorteados ao verem aquela cena. Nem preciso dizer que o macaco era o prprio Manhoso. S que agora ele parecia dez vezes mais feio do que quando vivia no Lago do Caldeiro, pois estava trajado a rigor. Vestia uma jaqueta escarlate que no lhe assentava muito bem, pois fora feita para um ano. Nas patas traseiras ele enfiara umas sandlias cheias de jias que o deixavam ainda mais ridculo, porque, como todo mundo sabe, as patas traseiras de um macaco mais parecem mos. Na cabea colocara algo parecido com uma coroa de papel. Havia ao seu lado um monto de nozes, e ele ficava o tempo todo quebrando-as com os dentes e cuspindo as cascas no cho. E toda hora levantava a jaqueta escarlate para se cocar. De p, voltados para ele, havia uma poro de animais falantes, e praticamente cada rosto naquela multido trazia uma expresso aturdida e preocupada. Assim que viram quem eram os prisioneiros, comearam a gemer e a soluar. O, grande Manhoso, porta-voz de Aslam disse o chefe calormano. Trazemos prisioneiros. Graas nossa coragem e habilidade e com a permisso do grande deus Tash, capturamos vivos estes dois perigosos assassinos. Dem-me a espada daquele homem ordenou o macaco. Eles pegaram a espada do rei e a entregaram, com tiracolo e tudo, para o macaco, que a pendurou em seu prprio pescoo, o que o fez parecer ainda mais ridculo. Sobre esse dois conversaremos mais tarde resmungou o macaco, cuspindo uma casca de noz na direo dos prisioneiros. Tenho outros assuntos a tratar primeiro. Esses a podem esperar. Agora ouam-me todos vocs. A primeira coisa que quero dizer sobre as nozes. Onde est o esquilo-chefe? Aqui, senhor disse um esquilo vermelho, adiantando-se nervosamente e fazendo uma ligeira reverncia. Ah! A est voc. Pois bem falou o macaco com um olhar de desdm , quero... isto , Aslam deseja... mais nozes. Essas que voc me trouxe no do nem para o cheiro. Voc tem que trazer mais, ouviu bem? Duas vezes mais! E elas tm de estar aqui amanh, antes do pr-do-sol. E cuide para que no haja entre elas uma nica noz pequena ou estragada. Ouviu-se entre os esquilos um murmrio de desnimo, e o esquilo-chefe muniu-se de toda a coragem para dizer: Por favor, ser que o prprio Aslam no poderia conversar conosco sobre isso? Se ao menos nos fosse permitido v-lo... Bem, isso no vai dar respondeu o macaco. Mas pode ser que ele, num ato de muita generosidade, resolva sair um pouquinho hoje noite, embora isso seja muito mais do que a maioria de vocs merece. A todos podero dar uma espiadinha nele. Mas nada de aglomeraes ao redor dele ou de incomod-lo com perguntinhas tolas. Tudo o que quiserem dizer-lhe ter de ser por meu intermdio isso se eu achar que algo que valha a pena. Enquanto isso, esquilos, melhor vocs irem se virando para arranjar as nozes. E dem um jeito de traz-las aqui at amanh noite, seno vo se arrepender! Os pobres esquilos saram todos em disparada, como que perseguidos por um co de caa. Aquela nova ordem era o fim para todos eles: as nozes que haviam armazenado cuidadosamente para o inverno j tinham sido quase todas comidas; e do pouco que ainda lhes restava j haviam dado ao macaco muito mais do que podiam dispensar. Subitamente, do outro lado da multido, ouviu-se uma voz muito profunda. Era um grande javali peludo e de presas enormes. Mas por que ns no podemos ver Aslam e falar com ele? perguntou o javali. Quando ele aparecia em Nrnia, antigamente, qualquer pessoa podia v-lo face a face e conversar com ele. Isso pura conversa! disse o macaco. E mesmo que fosse verdade, os tempos mudaram. Aslam disse que tem sido generoso demais com vocs, mas que agora no vai mais ser to mole. Desta vez vai coloc-los todos nos eixos. Vai ensin-los a no pensar mais que ele um leo domesticado e bonzinho. Ouviu-se entre os animais um murmrio surdo, entremeado de suspiros, e a seguir houve um silncio de morte, ainda mais terrvel. E tem mais uma coisa que acho bom vocs saberem continuou o macaco. Ouvi dizer que andam falando por a que sou um macaco. Pois bem, no sou, no. Sou um homem. Se pareo com macaco s porque j vivi demais: tenho centenas e centenas de anos nas costas. E justamente por ser to velho que sou to sbio. E porque sou muito sbio que sou o nico com quem Aslam sempre vai falar. Ele no pode dar-se ao incmodo de andar por a falando com um monte de animais bobocas. Ele me dir o que vocs tm de fazer e eu o transmitirei a todos. E acho bom escutarem meu conselho e agirem duas vezes mais rpido, pois Aslam no est para brincadeira. O silncio era mortal, a no ser pelo barulho de um pequenino texugo que chorava e da me tentando acalm-lo. E agora tem mais uma coisa continuou o macaco, enfiando uma noz fresquinha na boca. Alguns cavalos andam dizendo por a: Vamos nos apressar e acabar de carregar essa madeira o mais rpido possvel, e assim ficaremos livres de novo. Pois bem, melhor tirarem essa idia da cabea de uma vez. E no s os cavalos. Daqui para a frente, todo mundo que tem condies de trabalhar vai ter o que fazer. Aslam j acertou tudo com o rei da Calormnia, o Tisroc, como chamado pelos nossos amigos calormanos. Todos vocs cavalos, touros e burros sero enviados Calormnia para trabalhar pelo resto da vida... puxando carroas e transportando coisas, igual aos outros animais de carga do mundo inteiro. E quanto a vocs, toupeiras, coelhos e os outros bichos que cavam buracos, iro todos juntos com os anes para trabalhar nas minas do Tisroc. E tambm... No! No! Pare! interromperam os animais. No pode ser verdade! Aslam nunca nos venderia como escravos para o rei da Calormnia! Esperem a! rosnou asperamente o macaco. Para que essa barulheira toda? Quem falou em escravido? Vocs no vo ser escravos coisa nenhuma. Sero pagos, alis, muito bem pagos. Quer dizer, o salrio de vocs ir para o tesouro de Aslam e ele utilizar tudo para o bem de todos. Ento olhou de soslaio e deu uma piscadela para o chefe calormano, que fez uma reverncia e replicou, pomposa maneira dos calormanos: , sapientssimo porta-voz de Aslam! O Tisroc (que ele viva para sempre!) est perfeitamente de acordo com Sua Excelncia no que diz respeito a esse sbio plano. Viram s? disse o macaco. Est tudo acertado. E tudo para o bem de vocs. Com todo esse dinheiro que iro ganhar poderemos fazer de Nrnia um pas digno de se viver. Haver laranjas e bananas vontade... Haver estradas, cidades grandes, escolas, escritrios, como tambm autoridades e armas, e selas, e cadeias, canis, prises... Tudo, tudo! Mas no queremos nada disso! bradou um velho urso. Queremos ser livres. E queremos que o prprio Aslam fale com a gente. No comecem a discutir agora, pois no vou tolerar isso esbravejou o macaco. Sou um homem e voc no passa de um urso velho, gordo e bobo. E o que que voc entende de liberdade? Pensa que liberdade significa fazer o que a gente bem entende? Pois est muito enganado. Isso no a verdadeira liberdade. Liberdade de verdade significa fazer aquilo que eu lhes digo. Rrrrrr! grunhiu o urso, cocando a cabea. Para ele essas coisas eram muito difceis de entender. Por favor! Por favor! exclamou uma ovelhinha felpuda, to novinha que todos se admiraram de que ela tivesse coragem de dizer alguma coisa. E agora, o que se passa? estranhou o macaco. Seja rpida! Por favor disse a ovelha. Eu no compreendo. O que temos ns a ver com os calormanos? Ns pertencemos a Aslam; eles pertencem a Tash. Tm um deus chamado Tash. Dizem que ele tem quatro braos e cabea de abutre, e que humanos so mortos em seu altar. No acredito que esse tal de Tash exista, mas, se existe, como que Aslam pode ser amigo dele? Todos os animais se voltaram e todos os pares de olhos chamejaram na direo do macaco. Todos sabiam que aquela era a melhor pergunta que algum ali j fizera. O macaco deu um salto e cuspiu na ovelha. Sua fedelha! Bebezinho choro! Por que no vai para casa mamar? ! O que que voc entende dessas coisas? Agora, vocs todos, escutem aqui. Tash apenas um outro nome de Aslam. Toda aquela velha histria de que ns estamos certos e os calormanos errados pura bobagem. Agora j sabemos melhor das coisas. Embora os calormanos falem uma outra linguagem, querem dizer a mesma coisa. Tash e Aslam, so apenas dois nomes diferentes, vocs bem sabem de quem... Por isso que nunca pode haver qualquer discrdia entre eles. Metam isso na cabea de uma vez por todas, seus brutos idiotas: Tash Aslam, e Aslam Tash. Quem tem um cachorrinho sabe muito bem como ele pode ficar com a carinha triste de vez em quando. Agora pensem nisso e depois imaginem como ficou a cara de cada um dos animais falantes, naquela hora. Imaginem todos aqueles pssaros, ursos, texugos, coelhos, toupeiras e ratos, to leais e humildes, agora desconcertados e mais tristes do que nunca. Todos os rabinhos estavam cados e todas as orelhas, murchas. S de olhar cortava o corao. De todos eles, apenas um parecia no estar triste. Era um gato ruivo um bichano enorme, no vigor dos anos que se postara todo empinado, com a cauda enrolada em volta dos ps, entre os animais que estavam na fileira da frente. Ficara o tempo todo ali, encarando firmemente o macaco e o chefe calormano, sem piscar uma nica vez. Queira me desculpar disse o gato com polidez , mas isto realmente me interessa. Ser que o seu amigo calormano tambm pensa a mesma coisa? Certamente disse o calormano. O iluminado macaco... quero dizer, homem... est absolutamente certo. Aslam significa nada mais, nada menos que Tash. E, principalmente, Aslam significa nada mais que Tash, no ? insinuou o gato. Mais, no... De forma alguma! protestou o calormano, encarando firmemente o gato. Est satisfeito, Ruivo? perguntou o macaco. Oh, certamente respondeu Ruivo com frieza. Muito obrigado. Eu s queria que as coisas ficassem bem claras. Acho que estou comeando a entender. At aquele momento, nem Tirian nem Precioso haviam dito coisa alguma. Estavam esperando que o macaco lhes desse permisso para falar, pois achavam que no era polido interromper uma conversa. Agora, porm, olhando ao redor e vendo as feies desesperadas dos narnianos, e ao perceber que todos iam acabar acreditando que Aslam e Tash eram uma e a mesma pessoa, o rei no pde mais se conter. Macaco! gritou bem alto. Voc est mentindo! Mentindo terrivelmente. Mentindo como um calormano. Mentindo como um macaco. Ele pretendia ir adiante e perguntar como o terrvel deus Tash, que se alimentava do sangue do seu povo, podia ser a mesma pessoa que o bom Leo, que dera o prprio sangue para salvar Nrnia inteira. Se lhe tivesse sido permitido falar, o domnio do macaco teria acabado naquele mesmo dia, pois os animais teriam percebido a verdade. Antes, porm, que pudesse dizer uma palavra mais, dois calormanos taparam-lhe a boca com toda a fora, e um terceiro veio por trs e deu-lhe um chute nas pernas, derrubando-o bruscamente. Ao v-lo cair, o macaco comeou a guinchar, furioso e aterrorizado. Tirem ele daqui! Levem-no embora! Carreguem-no para onde ningum possa ouvi-lo e nem ele a ns! Amarrem-no a uma rvore! Eu vou... isto , Aslam vai... fazer-lhe justia mais tarde. 4 O QUE ACONTECEU NAQUELA NOITE O rei ficou to tonto com as pancadas que recebeu, que s percebeu o que estava acontecendo quando os calormanos lhe desamarraram os pulsos e abaixaram-lhe os braos, esticando-os firmemente de cada lado do corpo. Depois colocaram-no de costas contra o tronco de uma rvore e passaram-lhe cordas em volta dos tornozelos, dos joelhos, da cintura e do peito. E foram embora. O que mais o incomodava naquele momento (pois geralmente as coisinhas pequenas so as mais difceis de suportar), era que seu lbio estava sangrando e ele no conseguia limpar o filete de sangue que escorria, fazendo-lhe ccegas. De onde ele estava ainda dava para ver o macaco sentado na frente do pequeno estbulo, l no topo da colina. Podia ouvi-lo falando ainda e, de vez em quando, uma ou outra resposta da multido, mas no conseguia discernir o que diziam. S queria saber o que fizeram com Precioso pensou o rei. De repente, a multido dispersou e os animais comearam a se mover em vrias direes. Alguns deles passaram pertinho de Tirian, olhando para ele como se estivessem assustados e, ao mesmo tempo, penalizados por v-lo amarrado, mas ningum disse nada. Logo todos tinham ido embora e a floresta ficou em silncio. Muitas horas se passaram, e Tirian comeou a sentir sede e depois fome. Quando chegou o final da tarde e a noite se aproximou, comeou a sentir frio tambm. Suas costas doam muito. Finalmente, o Sol se ps e o crepsculo desceu. J estava quase escuro quando Tirian ouviu um leve tamborilar de ps midos e viu umas criaturinhas se aproximando. Os trs da esquerda eram ratos e no meio vinha um coelho; direita estavam duas toupeiras. Estas traziam s costas uns sacos pequenos, o que lhes dava uma aparncia curiosa na escurido (tanto que, no primeiro instante, ele ficou imaginando que bichos seriam aqueles). Ento, num dado momento, todos se levantaram sobre as patas traseiras e, pousando as patas dianteiras nos seus joelhos, comearam a dar-lhe beijinhos de animal. (Podiam alcanar-lhe os joelhos porque os animaizinhos falantes de Nrnia so maiores do que os animais mudos do nosso mundo.) Senhor rei! Querido senhor rei! exclamaram. Sentimos muito pelo senhor. No ousamos desamarr-lo porque Aslam poderia ficar zangado conosco. Mas lhe trouxemos algo para comer. Em questo de segundos o primeiro rato j estava l em cima, empoleirado na corda que atava o peito de Tirian e franzindo o focinho spero bem na frente do rosto do rei. Em seguida subiu o segundo rato, dependurando-se bem debaixo do primeiro. Ento os outros animais se ergueram no cho e comearam a passar as coisas para cima. Beba, senhor, e assim ter condies de comer disse o rato de cima. Ento Tirian viu que este segurava bem frente de seus lbios uma pequenina taa de madeira. Era uma tacinha do tamanho de um ovo; portanto, mal ele conseguira provar o vinho, j a havia esvaziado. Mas o rato passou-a para baixo e os outros a encheram novamente, passando-a de mo em mo at chegar l em cima de novo, onde Tirian a esvaziou pela segunda vez. E assim foi, at que ele havia bebido o suficiente e desse modo foi muito melhor, pois beber em doses pequenas mata muito mais a sede do que tomar um longo trago. Agora queijo, senhor disse o rato. Mas no muito, pois no queremos que fique com sede. Depois do queijo deram-lhe bolinhos de aveia com manteiga fresquinha e, ento, um pouco mais de vinho. Agora me passem a gua para eu lavar o rosto do rei, que est sujo de sangue disse o primeiro rato. Tirian sentiu no rosto uma espcie de esponja muito pequena, que lhe trouxe uma sensao muito agradvel. Meus amiguinhos disse Tirian , como poderei agradecer-lhes por tudo isso? No precisa, no precisa responderam as vozinhas. O que mais quer que faamos? No queremos outro rei. Somos o seu povo. Se fossem apenas os calormanos e aquele macaco que estivessem contra o senhor, teramos lutado at virar picadinho para no deixar que o amarrassem desse jeito. Teramos mesmo. Mas no podemos ir contra Aslam... Vocs acham que mesmo Aslam? perguntou o rei. , sim! , sim! disse o coelho. Ele saiu do estbulo ontem noite. Todos ns o vimos. E como era ele? quis saber Tirian. Como um Leo grande e terrvel, pode crer respondeu um dos ratos. E vocs acham que realmente Aslam quem est matando as ninfas da floresta e fazendo de vocs escravos do rei da Calormnia? Ah! Isso ruim, no ? disse o segundo rato. Preferia ter morrido antes disso tudo comear. Mas no h dvida alguma. Todo mundo diz que so ordens de Aslam. E ns mesmos o vimos. Puxa! Queramos tanto que Aslam voltasse para Nrnia! No imaginvamos que ele fosse assim! Parece que, desta vez, ele voltou muito bravo disse o primeiro rato. Acho que, sem saber, todos ns andamos fazendo algo realmente terrvel. Ele s pode estar nos castigando por alguma coisa. Mas acho que ele pelo menos poderia nos dizer do que se trata! Suponho que o que estamos fazendo agora deve estar errado disse o coelho. E da? replicou uma das toupeiras. Para mim, tanto faz. Se for preciso, fao outra vez. Nesse momento algum disse: Cuidado, pessoal!; e outro acrescentou: Vamos, rpido! Ento todos falaram: Sentimos muito, querido rei, mas temos de ir agora. Se nos pegam aqui... Deixem-me de uma vez, amigos disse Tirian. No quero, por nada neste mundo, coloc-los em dificuldades. Boa noite! Boa noite! disseram os animais, roando cada um o focinho em seus joelhos. Voltaremos, se pudermos. Depois que todos se foram, a floresta pareceu muito mais escura, fria e solitria do que antes. As estrelas surgiram no cu e o tempo foi passando, lenta e vagarosamente, enquanto o ltimo rei de Nrnia permanecia ali, o corpo todo dolorido e rigidamente imprensado contra a rvore qual o haviam amarrado. Finalmente, porm, alguma coisa aconteceu. L longe surgiu uma luzinha avermelhada, que desapareceu por um instante para logo voltar, maior e mais forte. Ento ele avistou vultos se movimentando do lado de c da luz, carregando uns embrulhos que atiravam ao cho. Por fim conseguiu ver do que se tratava: era uma fogueira recm-acesa, na qual atiravam feixes de lenha. De repente, a labareda subiu e Tirian viu que a fogueira ficava bem no alto da colina. Agora podia enxergar perfeitamente o estbulo por detrs da fogueira, todo iluminado pelo claro, e, entre este e o lugar onde se encontrava, uma grande multido de homens e animais. O pequeno vulto agachado ao lado do fogo devia ser o macaco. Estava dizendo alguma coisa para a multido, mas Tirian no conseguia ouvir. Depois o macaco foi at a porta da cabana e inclinou-se trs vezes at o cho; em seguida levantou-se e abriu a porta. Ento alguma coisa saiu l de dentro algo que se movia rigidamente sobre quatro pernas e postou-se de frente para a multido. Ergueu-se no ar um grande murmrio (ou seriam bramidos?), to alto que Tirian pde at ouvir algumas palavras: Aslam! Aslam! Aslam! suplicavam os animais. Fale conosco! Conforte-nos! No fique mais zangado conosco! De onde Tirian estava no dava para ver muito bem que bicho era aquele; via apenas que era amarelo e peludo. Ele nunca tinha encontrado o Grande Leo. Para dizer a verdade, nunca sequer vira um leo comum. Por isso no tinha certeza se aquilo era mesmo Aslam. Jamais esperara que Aslam pudesse se parecer com aquela coisa tesa que estava ali, parada, sem dizer uma palavra. Mas como que algum poderia saber ao certo? Durante alguns instantes, pensamentos horrveis passaram-lhe pela mente. Lembrou-se ento do absurdo que ouvira sobre Tash e Aslam serem um s, e concluiu que tudo aquilo s podia ser trapaa. O macaco chegou bem pertinho da coisa amarela, encostando sua cabea na dela como que tentando escutar algo que lhe fosse cochichado ao ouvido. Ento virou-se e falou para a multido, que comeou a lamentar-se novamente. Depois a coisa amarela voltou-se desajeitadamente e saiu andando (talvez fosse melhor dizer gingando) para o estbulo de novo, e o macaco fechou a porta s suas costas. Depois disso parece que algum apagou a fogueira, pois a luz se extinguiu subitamente. Tirian ficou mais uma vez sozinho com o frio e a escurido. sua mente vieram, ento, os outros reis que tinham vivido e morrido em Nrnia nos tempos antigos. Nunca nenhum deles, pensou Tirian, fora to infeliz. Lembrou-se do rei Rilian, bisav de seu bisav, que, ainda bem jovem, fora raptado por uma feiticeira que o conservara escondido, durante anos e anos, nas escuras cavernas dos subterrneos da terra dos gigantes do norte. Mas no final tudo acabara bem, pois duas misteriosas crianas apareceram de repente, vindas das terras de Alm-Mundo, e o libertaram; e depois que ele regressou a Nrnia teve um longo e prspero reinado. Comigo no acontece nada disso, disse Tirian consigo mesmo. Ento ele foi ainda mais longe e pensou no pai de Rilian, Caspian, o Navegador, cujo perverso tio, o rei Miraz, tentara assassin-lo, e em como Caspian conseguira escapar para as matas e viver entre os anes. Mas essa histria tambm acabara bem, pois Caspian igualmente fora ajudado por crianas s que dessa vez eram quatro, vindas de algum lugar para l do fim do mundo e que, numa grande batalha, lutaram at conseguir recoloc-lo no trono de seu pai. Mas isso foi h muito tempo, pensou Tirian. Hoje em dia essas coisas no acontecem mais. E a ele lembrou (pois, quando menino, sempre fora muito bom em Histria) que essas mesmas crianas que ajudaram Caspian j tinham estado em Nrnia, anteriormente, havia milhares e milhares de anos, e que fora naquela poca que tinham realizado os feitos mais notveis. Haviam derrotado a temvel Feiticeira Branca, pondo fim ao Inverno dos Cem Anos. Depois disso reinaram, os quatro de uma vez, em Cair Paravel, at que no eram mais crianas e, sim, poderosos reis e adorveis rainhas; e seu reinado fora o perodo ureo de Nrnia. E, naquela histria, Aslam aparecera uma poro de vezes. Alis, nas outras histrias ele tambm aparecera muitas vezes, lembrava agora Tirian. Aslam... e crianas de um outro mundo, pensou. Sempre que as coisas estavam na pior, eles apareciam. Ah, se ao menos pudessem vir agora! Ento exclamou em voz bem alta: Aslam! Aslam! Venha ajudar-nos agora! Mas a escurido, o frio e a quietude continuaram do mesmo jeito. Que eu seja morto! gritou o rei. Nada peo para mim. Mas, por favor, venha salvar Nrnia! A noite e a floresta continuaram do mesmo jeito. Dentro de Tirian, porm, alguma coisa comeou a mudar. Sem saber por que, viu nascer dentro de si uma pontinha de esperana e sentiu-se um pouco mais forte. Oh, Aslam! Aslam!, suspirou. Se no vier pessoalmente, mande-me pelo menos os ajudantes de Alm-Mundo! E ento, quase sem se dar conta do que estava fazendo, subitamente gritou bem alto: Crianas! Crianas! Amigos de Nrnia! Venham, rpido! Eu vos chamo atravs dos mundos! Eu, Tirian, rei de Nrnia, senhor de Cair Paravel e imperador das Ilhas Solitrias! E no mesmo instante mergulhou em um sonho (se que aquilo era um sonho) mais vivido do que qualquer outro que j tivera em toda a sua vida. Pareceu-lhe estar em p numa sala iluminada onde havia sete pessoas sentadas em volta de uma mesa. Pelo jeito, tinham acabado de comer naquele instante. Duas delas eram bem idosas um senhor de barbas brancas e uma senhora de olhos inteligentes, brilhantes e joviais. O rapaz sentado direita do velho mal acabara de sair da adolescncia e era certamente ainda mais jovem que o prprio Tirian, mas j trazia no rosto a expresso de um rei e guerreiro. E quase se poderia dizer o mesmo quanto ao outro jovem que se sentava direita da senhora. Bem frente de Tirian, no outro lado da mesa, sentava-se uma moa loura, ainda mais jovem que os outros dois, e de cada lado dela um menino e uma menina ainda mais novos. Tirian pensou consigo mesmo que nunca vira roupas mais esquisitas do que aquelas que eles trajavam. Mas nem teve tempo de deter-se nesses detalhes, pois de repente o menino mais novo e as duas meninas levantaram-se de um pulo e uma delas deu um gritinho. A senhora ergueu-se de sbito, prendendo firmemente a respirao. O velho tambm deve ter feito algum movimento brusco, pois o copo de vinho que tinha na mo direita saiu voando da mesa. (Tirian at escutou o barulho do vidro estilhaando no cho.) S ento Tirian deu-se conta de que aquelas pessoas podiam v-lo; e o fitavam estarrecidas, como se vissem um fantasma. Notou, porm, que o jovem com aparncia de rei sentado direita do velho no fez um nico movimento (embora tivesse empalidecido), a no ser cerrar o punho com fora. Em seguida, disse: Fale, se que voc no um fantasma ou uma viso. Existe em voc algo que lembra Nrnia. E ns somos os sete amigos de Nrnia. Tirian quis falar, e tentou gritar em alta voz que ele era Tirian de Nrnia e que necessitava muito de ajuda. Mas descobriu (como muitas vezes nos acontece em sonhos) que sua voz no fazia o menor rudo. Aquele que j lhe falara uma vez ergueu-se e falou, encarando-o firmemente: Espectro ou esprito ou seja l o que for! Se voc de Nrnia, ordeno-lhe em nome de Aslam que fale comigo. Eu sou Pedro, o Grande Rei. A sala comeou a tremer diante dos olhos de Tirian. Ele escutava as vozes dos sete, todas falando ao mesmo tempo e ficando cada vez mais fracas: Vejam! Est desaparecendo!, Est sumindo!, Est... No momento seguinte, achou-se completamente acordado, ainda amarrado rvore, mais frio e enrijecido do que nunca. A mata estava repleta da luz plida e montona que antecede o nascer-do-sol, e ele estava todo ensopado de orvalho. J era quase manh. Aquele despertar foi talvez o pior momento que j tivera em toda a sua vida. 5 CHEGA AUXLIO PARA O REI Seu sofrimento, porm, no durou muito. Quase no mesmo instante ouviu um baque surdo, e depois mais um, e sua frente surgiram duas crianas. Momentos antes, a mata diante dele estava completamente vazia, e ele sabia que elas no tinham sado de trs da rvore, pois as teria escutado. Elas simplesmente haviam aparecido de lugar nenhum. Logo notou que usavam os mesmos trajes esquisitos e desbotados que as pessoas do sonho, e imediatamente percebeu que eram o menino e a menina mais novos daqueles sete. Caramba! disse o menino. Isso deixa qualquer um sem flego! Eu pensei... Rpido! Vamos desamarr-lo disse a menina. Depois a gente conversa. E, voltando-se para Tirian, acrescentou: Sinto muito pela demora. Viemos assim que pudemos. Enquanto ela falava, o menino tirou uma faca do bolso e rapidamente cortou as cordas que prendiam o rei. E cortou at rpido demais, pois o rei estava com o corpo to duro e entorpecido que, quando a ltima amarra se soltou, caiu para a frente sobre as mos e os joelhos. E s conseguiu levantar-se novamente depois de uma boa massagem nas pernas dormentes. Ah! disse a menina. Foi voc que nos apareceu naquela noite, quando estvamos todos jantando, h cerca de uma semana, no foi? Uma semana, gentil senhorita? ! exclamou Tirian. Mas... meu sonho me levou ao seu mundo h menos de dez minutos! aquela costumeira confuso dos tempos, Jill disse o menino. Ah, agora me lembro disse Tirian. Isso ocorre tambm nas histrias antigas. O tempo no estranho mundo de vocs diferente do nosso. Mas por falar em tempo, acho bom irmos embora daqui. Meus inimigos esto bem pertinho. Vocs vm comigo? claro que sim respondeu a menina. Viemos aqui para ajud-lo. Tirian ps-se de p e os conduziu rapidamente colina abaixo, afastando-se do estbulo rumo ao Sul. Ele sabia muito bem para onde ir; entretanto, seu primeiro objetivo era alcanar as regies rochosas onde no deixariam pista alguma. O segundo era encontrar alguma gua que pudessem atravessar sem deixar rastro. Isso lhes custou cerca de uma hora, escalando e vadeando. Enquanto isso, ningum tinha flego para conversar. Assim mesmo, de vez em quando Tirian olhava de soslaio para os seus companheiros. O fato de estar andando lado a lado com criaturas de um outro mundo deixava-o meio tonto; mas tambm fazia com que todas as antigas histrias parecessem muito mais reais do que nunca. Qualquer coisa podia acontecer agora. Estamos livres daqueles viles por algum tempo, e podemos caminhar com mais facilidade disse Tirian quando chegaram ao topo de um pequeno vale que descia frente deles, entre pequenas moitas de btulas. O sol j havia nascido e gotas de orvalho brilhavam em cada galho. Os pssaros cantavam alegremente. Que tal bater uma bia? Quer dizer, o senhor, pois ns dois j tomamos nosso caf disse o menino. Tirian ficou um tempo imaginando o que seria bater uma bia. Mas quando o menino abriu a bojuda mochila que trazia s costas e tirou l de dentro um pacote mole e gorduroso, ento ele entendeu. Tirian estava morto de fome, se bem que at aquele momento ainda no pensara nisso. Havia dois sanduches de ovos cozidos, dois sanduches de queijo e ainda dois outros com uma espcie de pat. Se no estivesse com tanta fome, Tirian nem teria ligado muito para aquele pat, pois o tipo de coisa que ningum come em Nrnia. Quando acabou de comer os seis sanduches, j estavam chegando ao fundo do vale, onde encontraram um penhasco cheio de musgo de onde brotava uma pequena fonte. Os trs pararam, beberam e lavaram o rosto. E agora disse a menina, ajuntando os cabelos molhados na testa e atirando-os para trs , no vai nos contar quem voc, por que estava amarrado e tudo o mais? Com todo o prazer, minha donzela respondeu Tirian. Mas acho melhor continuarmos andando. Assim, medida que caminhavam, ele lhes contou quem era e tudo o que lhe havia acontecido. E agora disse, por fim estamos indo para uma certa torre, uma das trs que foram construdas na poca dos meus ancestrais para proteger o Ermo do Lampio contra certos marginais perigosos que viviam por ali naquele tempo. Por graa de Aslam no me roubaram as chaves. Nessa torre encontraremos suprimentos de armas e cotas de malha e tambm mantimentos (embora nada mais que biscoitos secos). Tambm l estaremos a salvo enquanto traamos nossos planos. E, agora, por que no me dizem quem so? Gostaria de saber a sua histria. Eu sou Eustquio e esta Jill disse o menino. J estivemos aqui uma vez, sculos e sculos atrs, e h mais de um ano, segundo o nosso tempo. Tinha um sujeito chamado prncipe Rilian, que estava preso no mundo subterrneo, e a Brejeiro... Ah! exclamou Tirian. Ento vocs so o Eustquio e a Jill que libertaram o rei Rilian do seu longo encantamento? ! , somos ns mesmos disse Jill. Quer dizer, ento, que ele agora o rei Rilian, hein? claro, tinha que ser... Eu ia me esquecendo... Bem disse Tirian , eu sou o ltimo na sua descendncia. Ele morreu h mais de duzentos anos. Jill fez uma careta, dizendo: Bolas! Isso que chato quando se volta a Nrnia! Eustquio, porm, continuou: Bem, senhor, agora j sabe quem somos ns. E foi assim que aconteceu: o professor Digory e tia Polly tinham reunido todos ns, os amigos de Nrnia. Esses nomes eu no conheo disse Tirian. So os dois que vieram a Nrnia bem no comecinho, no dia em que todos os bichos aprenderam a falar. Pela Juba do Leo! exclamou Tirian. Aqueles dois! Lorde Digory e Lady Polly! Pela madrugada! E ainda vivos, no mesmo lugar? ! Maravilha das maravilhas! Mas me contem, me contem! Para dizer a verdade, ela no bem nossa tia disse Eustquio. O nome dela senhorita Plummer, mas ns a chamamos de tia Polly. Pois bem: os dois reuniram todos ns, em parte para nos divertirmos um pouco, para a gente bater um bom papo a respeito de Nrnia (pois, como sabe, no tem ningum mais com quem a gente possa conversar sobre essas coisas). Mas tambm porque o professor tinha a impresso de que, de alguma forma, algum estava precisando de ns por aqui. E foi ento que voc apareceu l feito um fantasma, ou sei l o qu, e quase nos matou de susto, e depois se evaporou sem dizer uma palavra. Depois disso, j sabamos por certo que alguma coisa errada andava acontecendo. A questo agora era como chegar at aqui. A gente no pode vir assim, s por querer. Depois de muita discusso, o professor chegou concluso de que o nico jeito era usar os anis mgicos. Foi atravs desses anis que ele e tia Polly chegaram aqui, muito tempo atrs, quando ainda eram crianas. Mas os anis haviam sido enterrados no quintal de uma casa em Londres (Londres a nossa grande cidade, senhor), e a casa tinha sido vendida. O problema agora era como consegui-los. Voc nem imagina o que acabamos fazendo! Pedro e Edmundo (isto , Pedro, o Grande Rei, aquele que falou com voc) foram a Londres, planejando entrar no quintal pelos fundos, de manh bem cedinho, antes que o pessoal da casa acordasse. Vestiram-se de trabalhadores, porque se algum os visse pensaria que tinham ido fazer algum reparo nos esgotos. Gostaria de ter estado ali com eles. Deve ter sido divertido pra valer. E acho que deu tudo certo, pois no dia seguinte Pedro nos mandou um telegrama ( um tipo de recado, senhor; qualquer hora dessas eu lhe explico), dizendo que havia conseguido os anis. No dia seguinte, Jill e eu teramos de voltar para a escola; do grupo todo, somos os nicos que ainda estudam, e estamos na mesma escola. Ficou combinado que Pedro e Edmundo nos encontrariam num determinado lugar a caminho da escola, para nos entregar os anis. Tinha de ser ns dois, pois os mais velhos j no podiam mais vir a Nrnia. Assim, embarcamos no trem (uma coisa que as pessoas usam para viajar em nosso mundo: uma poro de vages engatados um no outro). O professor, tia Polly e Lcia vieram conosco, pois queramos ficar todos juntos, o mximo de tempo possvel. Pois bem, l estvamos ns no trem. Ao chegarmos estao onde os outros deveriam nos encontrar, pus-me a olhar pela janela para ver se conseguia avist-los, quando, de repente, veio um tremendo solavanco e um barulho. E a nos achamos em Nrnia e vimos Sua Majestade amarrado quela rvore. Quer dizer que vocs nem usaram os anis? No disse Eustquio. Nem sequer os vimos. Aslam fez tudo por ns sua prpria maneira, sem anel algum. Mas o rei Pedro deve estar com os anis disse Tirian. Sim respondeu Jill. Mas no creio que possa utiliz-los. Quando os outros dois (quer dizer, o rei Edmundo e a rainha Lcia) estiveram aqui a ltima vez, Aslam lhes disse que eles nunca mais voltariam a Nrnia. E disse a mesma coisa ao Grande Rei, s que h muito mais tempo. Eu lhe garanto que, se Aslam deixasse, ele viria que nem uma bala! Caramba! queixou-se Eustquio. Este sol est ficando quente. J estamos chegando, senhor? Vejam! disse Tirian, apontando frente. No muito adiante deles erguiam-se umas muralhas cinzentas acima do topo das rvores. Depois de andarem alguns minutos deram com uma clareira toda coberta de grama, onde corria um pequeno riacho. No extremo deste, via-se uma torre baixa e quadrada, com umas poucas janelas estreitas e, na parede de frente, uma porta que parecia bem pesada. Tirian olhou cuidadosamente para um lado e para o outro, certificando-se de que no havia nenhum inimigo vista. Ento dirigiu-se para a torre e ficou uns minutos parado, tentando pegar um molho de chaves que usava por baixo do traje de caa, preso a uma correntinha de prata que ele trazia ao pescoo. Era um belo molho de chaves: duas eram de ouro e havia vrias outras ricamente enfeitadas. Via-se logo que eram chaves feitas para abrir salas solenes e secretas de algum palcio, ou gavetas e cofres de madeira perfumada contendo tesouros reais. No entanto, a chave que ele meteu na fechadura da porta era uma chave comum, grande e rstica. A fechadura estava emperrada e por um momento Tirian chegou a temer que a chave no girasse; finalmente, porm, conseguiu mov-la, e a porta se abriu com um rangido. Bem-vindos, amigos disse ele. Temo que, no momento, seja este o melhor palcio que o rei de Nrnia pode oferecer aos seus convidados. Tirian ficou contente ao notar que os dois hspedes eram bem-educados. Ambos disseram que no falasse assim, que tinham certeza de que aquele era um timo lugar. Mas, para falar a verdade, no era to bom assim. Era muito escuro e tinha um terrvel cheiro de umidade. Havia apenas um compartimento, que ia dar direto no telhado de pedra. Uma escadaria de madeira em um canto dava para um alapo por onde se podia chegar s muralhas. Para dormir, havia alguns beliches bem rsticos encravados na parede. Um monte de bas trancados e uma infinidade de embrulhos espalhavam-se pelo cho. Havia tambm uma lareira que, pelo jeito, no via fogo h anos e anos. Acho melhor a gente sair e ajuntar alguma lenha primeiro observou Jill. Ainda no, minha amiga disse Tirian. Ele no queria correr o risco de serem pegos desarmados. Por isso comeou a remexer nos bas, lembrando com gratido que sempre tivera o cuidado de mandar inspecionar aquelas torres de guarnio pelo menos uma vez por ano, para garantir que elas se mantivessem devidamente estocadas com todo o necessrio. Ali estavam os arcos com as cordas sedosas e cuidadosamente lustradas com leo; as espadas e as lanas estavam untadas para no enferrujar, e as armaduras brilhavam dentro das caixas. Havia uma coisa, porm, que era ainda melhor. Olhem aqui disse Tirian, tirando uma comprida cota de malha de um modelo muito curioso e fazendo-a brilhar ante os olhos das crianas. Que malha mais engraada, senhor! disse Eustquio. De fato, meu jovem concordou Tirian. Ela no foi feita por nenhum ano narniano. E uma malha da Calormnia, porcaria estrangeira. Sempre conservei algumas dessas vestimentas em prontido, pois nunca se sabe quando ser preciso passar pelas terras do Tisroc sem ser visto. E vejam s esta garrafa de pedra. Aqui dentro tem um lquido que, esfregado no rosto e nas mos, faz a gente ficar moreno como os calormanos. Oba! exclamou Jill. Um disfarce! Adoro disfarces! Tirian mostrou-lhes como pingar um pouquinho do lquido na palma da mo e depois esfregar no rosto e no pescoo, descendo para os ombros, fazendo depois o mesmo nas mos e cotovelos. Ele mesmo se besuntou tambm. Depois que isto seca na pele explicou ele , pode-se at lavar que a cor no muda. S com leo e cinza se fica branco de novo. E agora, Jill querida, vamos ver como fica esta malha em voc. um pouco comprida, mas no tanto quanto eu pensei. Sem dvida, pertenceu a algum pajem do squito de um dos tarcas calormanos. Depois de vestir as cotas de malha, colocaram uns elmos calormanos, pequenos e redondos, que encaixam bem na cabea e tm uma ponta no alto. Em seguida, Tirian tirou do ba uns rolos compridos de uma coisa branca e foi enrolando por cima dos elmos at que estes viraram turbantes; mesmo assim, a pontinha do elmo ainda aparecia. Ele e Eustquio armaram-se com espadas curvas calormanas e escudos pequenos e redondos. Como no havia uma espada que fosse leve o bastante para Jill, o rei deu-lhe uma faca de caa comprida e reta; em caso de emergncia, esta lhe serviria de espada. Sabe manejar o arco, senhorita? perguntou o rei. No muito bem respondeu a menina, corando. Eustquio que bom nisso. Conversa dela, senhor disse Eustquio. Ns dois praticamos arco e flecha desde que voltamos de Nrnia a ltima vez, e ela quase to boa quanto eu. No que a gente seja to bom, mas... Ento Tirian entregou a Jill um arco e uma aljava cheia de flechas. Agora era tratar de acender um fogo, pois, por dentro, aquela torre mais parecia uma caverna do que uma casa, e dava at calafrios. Mas s de juntar lenha eles j se aqueceram (agora o sol j estava a pino); e quando as labaredas comearam a crepitar chamin acima o lugar ficou at agradvel. O almoo, no entanto, foi uma comida muito sem graa, pois o mximo que conseguiram fazer foi picar umas bolachas duras, que acharam num dos bas, e coloc-las para ferver com gua e sal, fazendo uma espcie de mingau. Para beber, bvio, nada alm de gua. Ah, se eu tivesse trazido uns saquinhos de ch! suspirou Jill. Ou uma lata de chocolate em p acrescentou Eustquio. At que no seria mau se a gente achasse um barril de vinho nessas torres disse Tirian. 6 UM BOM TRABALHO NOTURNO S umas quatro horas mais tarde Tirian atirou-se num dos beliches para tirar uma soneca. As duas crianas j estavam roncando: ele as fizera ir para a cama mais cedo porque teriam de ficar acordadas a maior parte da noite, e Tirian sabia que, sem dormir, crianas daquela idade no agentariam. Alm disso, deixara os dois cansados demais. Primeiro tinha treinado arco e flecha com Jill e descobrira que, embora no atingisse os padres narnianos, ela de fato no era to ruim assim. Na verdade, conseguira acertar um coelho (no um coelho falante, claro; naquela regio de Nrnia existem muitos coelhos comuns), que j estava sem o couro, limpo e dependurado. Tirian descobrira que as duas crianas sabiam tudo sobre esse trabalho deprimente e malcheiroso, que haviam aprendido na sua grande viagem pela terra dos gigantes, nos dias do prncipe Rilian. Em seguida, tentara ensinar Eustquio a usar a espada e o escudo. O menino j aprendera bastante sobre o uso da espada lutando nas suas primeiras aventuras, mas ele s conhecia a espada reta narniana. Nunca havia manejado uma cimitarra calormana, e no foi nada fcil, pois muitos dos golpes so completamente diferentes, e alguns hbitos que ele adquirira usando a espada comprida tinham de ser aprendidos de novo. Tirian percebeu, no entanto, que ele tinha bom olho e era muito rpido com os ps. Ficou surpreso com a fora das duas crianas: na verdade, ambas pareciam agora muito mais fortes, maiores e mais maduras do que quando as encontrara pela primeira vez, poucas horas atrs. Esse um dos efeitos que a atmosfera de Nrnia produz nos visitantes do nosso mundo. Os trs concordaram que a primeira coisa a fazer era voltar Colina do Estbulo e tentar libertar Precioso, o unicrnio. Depois, se fossem bem-sucedidos, fugiriam para o leste, ao encontro do pequeno exrcito que Passofirme, o centauro, estaria trazendo de Cair Paravel. Um guerreiro e caador experiente como Tirian jamais tem dificuldade de despertar hora que deseja. Assim, depois de ter dito a si mesmo que acordaria s nove horas da noite, deixou todas as preocupaes de lado e adormeceu no mesmo instante. Quando despertou, teve a impresso de que haviam transcorrido no mais que alguns minutos, mas sabia, pela luminosidade e pelo prprio aspecto das coisas, que dormira exatamente o tempo que havia determinado. Levantou-se, colocou o elmo-turbante (ele dormira com a cota de malha) e ento sacudiu as crianas para acord-las. A bem da verdade, elas pareciam muito desoladas e abatidas quando saltaram dos beliches onde dormiam, bocejando muito. Bem disse Tirian , daqui vamos para o Norte. Por sorte, a noite est estrelada, e nossa jornada agora ser bem mais curta, pois esta manh nos desviamos muito, ao passo que agora iremos direto. Se formos interpelados, mantenham a calma; farei o possvel para falar como um detestvel, cruel e orgulhoso lorde calormano. Se eu puxar a espada, Eustquio, faa o mesmo; e voc, Jill, coloque-se atrs e fique com o arco a postos. Mas se eu gritar Para casa, ento fujam para a torre. E, quando eu tiver dado o sinal de retirada, no tentem lutar nem um golpe sequer , pois esse tipo de falsa bravura em guerras j arruinou muitos planos excelentes. E agora sigamos, amigos, em nome de Aslam. Ento saram na noite fria. Todas as grandes estrelas setentrionais flamejavam acima do topo das rvores. A estrela polar em Nrnia chamada de Ponta da Lana e brilha mais do que a nossa. Por algum tempo seguiram em linha reta, na direo da Ponta da Lana, mas ento, tendo chegado a uma mata espessa, tiveram de desviar-se de seu curso para contorn-la. Depois disso ficou difcil retomar o curso, pois os galhos ainda atrapalhavam sua viso. Foi Jill que os levou de volta ao caminho correto: na Inglaterra ela fora uma excelente bandeirante. E, obviamente, conhecia muito bem as estrelas de Nrnia, pois viajara muito pelas terras desrticas do Norte e podia encontrar a direo das outras estrelas, mesmo quando a Ponta da Lana estava oculta. Ao perceber que ela era o melhor rastreador dos trs, Tirian colocou-a frente. E ficou espantado ao ver quo silenciosamente ela deslizava na frente deles, quase como se fosse invisvel. Pela Juba do Leo! murmurou, dirigindo-se a Eustquio. Essa garota uma extraordinria dama dos bosques. Se tivesse sangue de drade nas veias, dificilmente faria isso melhor. O que ajuda que ela pequena sussurrou Eustquio de volta. Jill, frente, apenas disse: Psiu! No faam barulho. Ao redor deles, a floresta estava muito quieta. Na verdade, quieta demais. Numa noite comum, ali em Nrnia, estariam ouvindo rudos de quando em quando, um cordial boa noite de um ourio, o grito de uma coruja vindo do alto, talvez o som de uma flauta distncia a dizer que os faunos danavam, ou o barulho latejante das marteladas dos anes embaixo da terra. Mas tudo estava em silncio: escurido e medo reinavam em Nrnia. Aps algum tempo, iniciaram a ngreme caminhada colina acima; as rvores cresciam cada vez mais afastadas umas das outras. Ainda que indistintamente, Tirian j podia divisar o topo da colina e o estbulo. Jill seguia agora com mais cautela, e o tempo todo fazia sinais com a mo para que os outros fizessem o mesmo. Ento parou, totalmente imvel, e Tirian viu-a afundar-se na grama e desaparecer sem o menor rudo. Da a alguns instantes ela estava de volta e, chegando a boca bem pertinho do ouvido de Tirian, sussurrou o mais baixo possvel: Abaixe-se! D para ver melhor! Tirian abaixou-se rpido, quase to silencioso quanto Jill, mas no tanto, pois era mais velho e mais pesado. Daquela posio, deitado no cho, avistou dois vultos negros recortados contra o cu coberto de estrelas: um era o estbulo e o outro, poucos metros adiante, um sentinela calormano. O homem montava uma pssima guarda: no estava andando, nem sequer de p, mas sentado, com a lana recostada ao ombro e o queixo afundado no peito. timo!, disse Tirian a Jill. Ela lhe mostrara exatamente o que ele precisava saber. Ento eles se levantaram e Tirian retomou a liderana. Com muito cuidado, mal ousando respirar, encaminharam-se lentamente para um pequeno amontoado de rvores que ficava a uns poucos metros de onde estava o sentinela. Esperem aqui at eu voltar sussurrou ele para os dois. Se eu fracassar, fujam. Ento saiu caminhando decididamente, a plena vista do inimigo. Ao v-lo, o homem estremeceu e j ia dar um pulo para ficar de p, pensando que era um dos seus prprios oficiais e que ele estava em apuros por encontrar-se sentado. Antes, porm, que conseguisse pr-se de p, Tirian j havia se ajoelhado sobre uma perna, ao seu lado, dizendo: s um guerreiro do Tisroc (que ele viva para sempre)? Meu corao alegra-se por encontrar-te aqui entre todos esses animais e demnios de Nrnia. D-me tua mo, amigo. Antes que pudesse dar-se conta do que estava acontecendo, o guarda calormano sentiu sua mo direita dominada por um poderoso aperto de mo. E, logo a seguir, algum ajoelhou-se sobre as suas pernas, e ele sentiu a presso de uma adaga contra o pescoo: Um rudo e voc est morto disse-lhe Tirian ao ouvido. Diga-me onde est unicrnio, se quiser continuar vivo. A-a-trs do estbulo, gr-grande m-mestre gaguejou o infeliz. timo. Levante-se e leve-me at l. O homem ergueu-se, sempre com a ponta da adaga encostada ao pescoo. Esta s se moveu (fria e fazendo ccegas) quando Tirian passou para trs dele, colocando-a num ponto estratgico, abaixo da orelha. Tremendo de medo, ele deu a volta e dirigiu-se para trs do estbulo. Embora estivesse escuro, Tirian logo enxergou o vulto branco de Precioso. Silncio! disse ele. No relinche! Sim, Precioso, sou eu mesmo. Como que o prenderam? Pearam-me as quatro patas e puseram-me umas rdeas amarradas a uma campainha na parede do estbulo ouviu-se a voz de Precioso. Sentinela, fique aqui, com as costas contra a parede. Assim. Agora, Precioso, encoste a ponta do seu chifre contra o peito desse calormano. Com todo o prazer, senhor disse o unicrnio. Se ele se mexer, espete-lhe o corao. Em poucos minutos, Tirian cortou as cordas. Com o que conseguiu aproveitar delas amarrou o sentinela, atando-lhe as mos aos ps. Finalmente, fez o homem abrir a boca, entulhou-a de capim e, em seguida, amordaou-o de tal forma que lhe seria impossvel fazer qualquer rudo; depois colocou-o sentado no cho, de costas contra a parede. Fui um pouco indelicado com voc, soldado disse Tirian. Mas eu precisava fazer isso. Caso nos encontremos de novo, espero poder trat-lo um pouco melhor. E agora, Precioso, vamos sair daqui, com cuidado. Tirian passou o brao esquerdo em volta do pescoo do animal, inclinou-se e beijou-lhe o focinho; estavam ambos muito felizes. To silenciosamente quanto possvel, voltaram para o lugar onde Tirian havia deixado as crianas. Embaixo das rvores estava muito mais escuro, e ele quase esbarrou em Eustquio antes de enxerg-lo. Tudo bem sussurrou. Um bom trabalho noturno. Agora, para casa. Viraram-se e j haviam dado alguns passos quando Eustquio chamou: Jill, onde est voc? Ningum respondeu. Senhor, por acaso Jill est do seu lado? perguntou. O qu? ! disse Tirian. Pensei que ela estivesse do seu lado! Foi um momento terrvel. No ousaram gritar, mas sussurravam o nome dela o mais alto possvel. Ningum respondia. Ela saiu de perto de voc enquanto eu estava fora? perguntou Tirian. No vi nem escutei nada respondeu Eustquio. Mas ela pode muito bem ter sado sem eu perceber. Ela silenciosa como um gato; voc mesmo viu. Naquele momento eles escutaram um longnquo rufar de tambores. Precioso inclinou as orelhas para a frente. Anes disse ele. E so anes traioeiros, inimigos, muito provavelmente murmurou Tirian. E a vem algum bicho de cascos, muito mais perto disse Precioso. Os dois humanos e o unicrnio ficaram imveis como defuntos. Agora havia tantas coisas com que se preocupar que nem sabiam o que fazer. O barulho dos cascos foi chegando mais perto. Ento, bem pertinho deles, uma voz sussurrou: Ei, vocs! Esto todos a? Que alvio! Era Jill. Em que buraco voc se meteu? estourou Eustquio, num furioso cochicho, pois ficara morto de medo. No estbulo ofegou Jill, com uma voz que parecia a de algum que est se segurando para no dar uma gargalhada. Ah, ? ! resmungou Eustquio, indignado. E voc ainda acha engraado, hein? Pois s quero dizer que... Conseguiu libertar Precioso, senhor? perguntou Jill ao rei. Sim. Ele est aqui. E que animal esse que est com voc? ele respondeu Jill. Mas vamos embora antes que algum desperte. E ouviram-se novamente pequenas exploses de riso. Os outros obedeceram imediatamente, pois j haviam demorado demais naquele lugar perigoso, e os tambores dos anes pareciam estar cada vez mais perto. S depois de andarem um bom tempo rumo ao Sul que Eustquio falou: Voc trouxe ele? Que histria essa? O falso Aslam disse Jill. O qu? ! exclamou Tirian. Onde voc estava? O que voc fez? Bem, senhor respondeu Jill. Assim que eu vi que o sentinela estava fora de combate, pensei que seria bom dar uma olhadinha no estbulo para ver o que realmente havia l. Naturalmente, estava muito escuro ali dentro e cheirava a estbulo como qualquer outro. Ento acendi um fsforo e... adivinhem o que vi? Nada mais, nada menos que este velho jumento, com uma pele de leo amarrada s costas! A peguei a minha faca e disse-lhe que ele tinha de vir comigo. Para falar a verdade, eu nem precisava t-lo ameaado com a faca. Ele estava cheio do estbulo e prontinho para me acompanhar no , Confuso? Papagaios! exclamou Eustquio. Devo estar biruta. Ainda agorinha estava louco da vida com voc, e ainda acho que foi sujeira sua sumir daqui sem a gente. Mas devo admitir... quer dizer... bem, o que voc fez foi realmente incrvel. Se ela fosse um menino merecia ser armada cavaleiro, no acha, senhor? Se ela fosse um menino respondeu Tirian , ia levar uma bronca por ter desobedecido s minhas ordens. Naquela escurido, no dava para ver se ele dissera aquilo com uma carranca ou um sorriso. Logo a seguir ouviu-se um rudo de metal sendo amolado. O que est fazendo, senhor? perguntou Precioso, desconfiado. Amolando a minha espada para decepar a cabea desse asno maldito respondeu Tirian, com uma voz terrvel. Saia da, garota! Oh, no! Por favor, no! exclamou Jill. No pode fazer isso. No foi culpa dele. Foi tudo inveno daquele macaco. Ele no sabia de nada e sente muito pelo que aconteceu. Ele um jumento muito bom. O nome dele Confuso. E eu j estou abraada ao pescoo dele. E... Jill disse Tirian , voc a mais corajosa e a mais entendida em florestas dentre todos os meus sditos. Mas tambm a mais atrevida e desobediente. Pois bem: que o asno fique vivo. O que tem a dizer em seu favor, asno? Eu, senhor? ouviu-se a voz do jumento. S sei que sinto muito mesmo se fiz alguma coisa errada. O macaco me disse que Aslam queria que eu me vestisse daquele jeito. E eu achava que ele que devia saber. No sou inteligente como ele. Fiz apenas o que me mandaram. No teve graa nenhuma para mim ficar o tempo todo dentro daquele estbulo. E nem mesmo sei o que anda acontecendo aqui fora. Ele nem me deixava sair, a no ser por um ou dois minutos, noite. Tinha dias que at se esqueciam de me dar gua... Senhor disse Precioso , aqueles anes esto chegando cada vez mais perto. Vamos deixar que nos alcancem? Tirian pensou um pouco e de repente soltou uma enorme gargalhada. Ento falou, agora sem cochichar, mas em voz bem alta. Pela Juba do Leo! exclamou. Devo estar ficando retardado. Encontr-los? Mas claro que vamos encontr-los! Agora podemos encontrar qualquer pessoa. Temos conosco este asno para lhes mostrar. Eles precisam ver a coisa que tanto temeram e a quem reverenciaram. Podemos contar-lhes a verdade sobre a vil trapaa do macaco. Descobrimos o segredo dele. Agora as coisas mudaram. Amanh mesmo vamos pendurar aquele macaco na rvore mais alta de Nrnia. Chega de cochichos, covardia e disfarces. Onde esto esses simpticos anes? Temos boas-novas para eles! Quando a gente passa horas e horas cochichando, o simples fato de algum falar em voz alta tem um efeito incrivelmente animador. A turma inteira comeou a conversar e a rir; at Confuso ergueu a cabea e soltou um comprido zurro, coisa que o macaco no lhe permitira fazer havia muito tempo. Ento seguiram na direo dos tambores. O barulho foi ficando cada vez mais forte e logo enxergaram tambm luzes de tochas. Foram dar numa dessas estradas esburacadas (se fosse na Inglaterra, dificilmente se chamaria aquilo de estrada) que levam ao Ermo do Lampio. E ali, marchando pesadamente caminho afora, vinham cerca de trinta anes, todos carregando no ombro suas enxadinhas e picaretas. Dois calormanos armados comandavam a fila e dois outros guardavam a retaguarda. Parem! bradou Tirian, ao sair na estrada. Parem, soldados! Para onde esto levando esses anes narnianos, e por ordem de quem? 7 VIVAM OS ANES! Ao ver o que eles pensaram ser um tarca ou um grande lorde acompanhado de dois pajens armados, os dois soldados calormanos que comandavam o grupo pararam e ergueram as lanas, com uma reverncia. Salve, mestre disse um deles. Estamos levando esses anes para a Calormnia, a fim de trabalharem nas minas do Tisroc (que ele viva para sempre!). Pelo grande deus Tash! Como so obedientes! disse Tirian. E de repente voltou-se para os prprios anes. De cada seis deles, um carregava uma tocha; e por aquela luz bruxuleante viam-se seus rostos barbudos, todos olhando para ele com expresso dura e obstinada. Ter o Tisroc porventura empreendido uma grande batalha, conquistando a terra de vocs, anes? perguntou. Por que caminham assim to passivos para a morte nas minas de sal de Pugrahan? Os dois soldados fitaram-no, surpresos; mas todos os anes responderam: Ordens de Aslam, senhor, ordens de Aslam. Ele nos vendeu. O que podemos fazer contra ele? Grande porcaria, o Tisroc! resmungou um deles, com uma cusparada. Ele que se atrevesse para ver! Cala a boca, seu cachorro! berrou o soldado-chefe. Olhem aqui disse Tirian, empurrando Confuso na direo da luz. tudo trapaa! Aslam no esteve em Nrnia coisssima