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Da leveza: uma civilização sem peso Gilles Lipovetsky Profa. Dra. Cíntia Dal Bello www.cintiadalbello.blogspot.com.br

Da leveza: uma civilização sem peso (Gilles Lipovetsky)

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Da leveza: uma civilização sem pesoGilles Lipovetsky

Profa. Dra. Cíntia Dal Bellowww.cintiadalbello.blogspot.com.br

Gilles Lipovetsky tem promovido uma guinada dos temas tradicionais da filosofia e da sociologia. E assim se firmou como um dos mais originais pensadores do mundo contemporâneo. Essa guinada consiste em conferir centralidade a objetos de estudo considerados excêntricos ou marginais. Em demonstrar a relevância de aspectos aparentemente irrelevantes de nossa vida. Por isso, desde A Era do Vazio (1987) e o Império do Efêmero (1987) até A Estetização do Mundo (2015), o pensador francês tem desenvolvido uma teoria da modernidade que valoriza mais a alimentação, a moda, as dietas e o lazer do que as macroestruturas econômicas, políticas ou sociais. [...]

A hipermodernidade seria uma radicalização dos processos de produção modernos que emergiram da industrialização do século 18. Entretanto, até o século 19, havia uma divisão clara entre produção e consumo, entre trabalho e lazer. A partir do processo de mecanização, começou a se produzir uma paradoxal indistinção entre produção e consumo. Em outras palavras: os trabalhadores deveriam ser incorporados à esfera do consumo para ampliar o circuito da economia e da produção. O século 20 representa um salto nesse percurso. As tecnologias digitais têm revolucionado nossa relação com o mundo. A maior fluidez entre consumo e produção fluidifica o poder, o trabalho, a sexualidade, a habitação. Ou seja: embaralha as relações entre peso e leveza. Nesse sentido, a hipermodernidade seria uma alteração do estatuto ontológico (relativo ao ser) dessas duas categorias.

Lipovetsky analisa essa transição em diversos domínios. A escolha de materiais e as propostas da arte, da arquitetura, do urbanismo e do design contemporâneos. As relações interpessoais, os casamentos abertos ou de curta duração. A mobilidade crescente e o nomadismo digital dos trabalhos a distância. A modelização do corpo, da alimentação, beleza, estética. E, por fim, a tentativa de eliminar a dor e o envelhecimento por meio da vitória sobre a morte do corpo biológico. Aqui entram as nanotecnologias, bem como todo tipo de tecnologia leve, capaz de suspender a fatalidade do mundo material e preservar a vida por meio de ambientes ou recursos artificiais.

Essa nova civilização da leveza erradicaria todas as contradições, desigualdades e misérias humanas? O leitor se perguntaria. E a resposta é: não. Lipovetsky é um pensador fino. Não se deixaria seduzir por um elogio unilateral da leveza. Revela-nos também as consequências negativas da leveza tomada como fatalidade, sobretudo no que diz respeito à medicalização indiscriminada e às violências da normatização do corpo e dos padrões de beleza. Nesse caso, essa sombra da leveza se manifestaria como sintoma e como psicopatologia. Nasceria da incapacidade de convivermos com nossa triste e pesada finitude.

Texto de Rodrigo Petrônio (21 jan. 2017) Fonte: http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,gilles-lipovetsky-mostra-leveza-da-sua-escrita-em-

novo-livro,70001636146.

Revolução digital e fluidez nômadeA convergência das nanotecnologias, das biotecnologias, da robótica, das

técnicas da informação e das ciências cognitivas abriu caminho aos

tecnoprofetas, às utopias pós-humanistas e transhumanistas que anunciam o

advento do ciborgue, a fusão da humanidade e da máquina, o crescimento

ilimitado de nossas capacidades físicas e mentais, a juventude eterna, a

superação de nossa condição humana imperfeita e mortal.

Trata-se, nada menos, nessa corrente de pensamento, de vencer a própria

mortalidade biológica ao produzir uma ciber-humanidade imortal graças

à transferência, em breve possível tecnologicamente, como nos garantem, do

“conteúdo informacional do cérebro” para as redes informática. (LIPOVETSKY,

p. 126).

A hipermobilidade digital

Recentemente, os aplicativos de mensagens efêmeras acabam de oferecer um novo

exemplo de leveza digital, ao permitir aos internautas trocar mensagens e fotos em

seus celulares que se autodestroem automaticamente segundos depois de serem

vistas. Uma foto aparece na tela e depois desaparece sem deixar traços: eis o tempo

digital que, tornado leve como um sopro de ar, afirma-se sob o signo da evanescência

pura. (LIPOVETSKY, p. 127).

• Novo paradigma de leveza: possibilidade tecnológica de fluidez e simultaneidade

• Mobilidade conectada, navegação veloz

• Nomadismo de objetos e pessoas

• Intervenção à distância

• Acesso a uma infinidade de informações sem restrição de tempo e espaço

• Objetos leves, sociabilidade leve

Promessa e servidões da vida digitalizada

O elo das tecnologias digitais com a leveza é duplo: além de permitirem o nomadismo

virtual, elas são capazes de reduzir o peso que certas organizações exercem sobre as

vidas individuais: trabalho, ensino, transporte e vida social estão diretamente

envolvidos. (LIPOVETSKY, p. 128).

• Flexibilidade, liberdade

• Reino imaterial da imediatez, do impalpável, do ultraleve

• Home office, videoconferência, novas formas de ensino-e-aprendizagem, carona compartilhada, sites de encontro, e-commerce, transações financeiras digitais (moeda virtual)

A fluidez e sua sombra

[...] mas as tecnologias do digital também têm sua parte na medida em que instauram a ditadura das respostas imediatas, a impossibilidade de se distanciar, uma pressão temporal permanente, o sentimento de viver “enterrado no trabalho”. [...] Ela (a lógica da urgência) engendra muito mais um homem hipertenso, despossuído do sentido de sua atividade, do que um homem leve. [...] À medida que desmaterializam o trabalho, as novas tecnologias aumentam constantemente o peso da carga psicossocial suportada pelos assalariados. O imaterial digital é menos mensageiro de existência nômade do que de vida em fluxo tenso, em ‘zero de atraso’. (LIPOVETSKY, p. 130).

• “Será que os assalariados que tratam da informação vivem muito melhor seu trabalho imaterial do que os operários do velho mundo industrial?” (p. 129)

• Redução de prazos, fazer mais com menos

• Novas formas de submissão e dependência

• Sofrimento mediante a privação das teletecnologias

• A questão da privacidade – a mecanização da vigilância

Somos cool?

O projeto moderno de tornar a existência mais leve concretizou-se de maneira espetacular na melhoria das condições de vida material e na democratização do consumo. Mas ele vai muito além apenas do campo materialista: afeta igualmente a maneira de viver em sociedade, nossas relações com as tradições, as instituições e os contextos coletivos. Um imenso trabalho de emancipação em relação aos pesos sociais realizou-se ao longo da segunda metade do século XX, mensageiro de uma completa revolução do modo de estar junto, da relação consigo mesmo e com os outros, das formas de socialização e de individualização. Livrar-se do peso dos interditos e dos tabus, desfrutar da carne como bem nos parece, viver desprendido, desapegado, de maneira mais flexível: a leveza do ser tornou-se uma aspiração, um ethos democrático de massa.(LIPOVETSKY, p. 243).

• Anos 1960 – efervescência da contracultura

• Exaltação da liberdade (subjetiva, social, moral, sexual) – antimoralismo, anti-hierárquico

• Vontade de emancipação à ordem burguesa

• Apelo à satisfação dos sentidos

Somos cool?

Pouco após o Maio de 1968, os casais, a filiação, a vida sexual e os códigos que regiam as relações homens/mulheres e pais/filhos, mas também a educação, o “saber viver” e as maneiras de se vestir conheceram a mesma descontração das regras, a mesma rejeição dos formalismos, das convenções e das imposições “burguesas”. Por toda parte, aciona-se um processo de flexibilização das restrições e das normas coletivas, uma volatização do peso dos códigos sociais. Ao culto do trabalho e do êxito social sucede a busca de novas formas de vida por meio do sexo “liberado”, da música, das viagens e das drogas: nada parece mais importante e mesmo “revolucionário” que “ter prazer”, “divertir-se”, “viajar”. Este é o momento cool das democracias, apoiado por um ideal de leveza individual absoluta na vida em sociedade.(LIPOVETSKY, p. 243-244).

• Viver “imediatamente”, “festa permanente sem tempo ocioso” (p. 243): direito ao prazer e a dispor de si mesmo (novo valor)

• Após maio de 1968: descontração das regras em todos os âmbitos

• Iluminismo: a figura do libertino “No universo libertino, o que conta é vencer obstáculos, pular de conquista em conquista, colecionar os troféus, subjugar as mulheres” (p.244)

Somos cool?

Esse modelo (o ideal de libertinagem do período Iluminista) não tem nada a ver com o

espírito cool. [...] O mundo aristocrático moribundo gerou a frivolidade libertina. O

universo democrático-individualista tardio, a leveza cool.(LIPOVETSKY, p. 244).

O cool foi o tom dominante de uma época. Mas será que ele ainda o é em uma época

de reflexividade e de competitividade generalizada? Será ainda a verdade do mundo

vivido? Será que a revolução doscostumes realmente permitiu viver de maneira mais

aérea? O terror do tédio rondava por trás dos prazeres dos libertinos e das festas

galantes. Hoje, outros medos são o avesso da ordem cool. Pobre Ícaro, que não cessa

de queimar suas asas à medida que crescem as promessas de leveza.(LIPOVETSKY, p.

245).

Casais do terceiro tipo

Cabe agora aos indivíduos escolher a maneira como querem viver juntos: casar-se, divorciar-se, viver em concubinato, ter filhos – tudo se tornou um assunto de liberdade pessoal. O casamento não é mais uma união forçada comandada pelos pais, e quando o é, desperta uma reprovação quase unânime. E os nascimentos não são mais uma fatalidade natural, mas uma escolha. Indo além do campo da vida material, o ideal moderno de deixar a existência mais leve investiu o universo da intimidade do casal, do vínculo de conjugalidade, da relação entre os sexos. Nas sociedades hiperindividualistas, a aspiração à felicidade transcorre no molde de uma vida própria livre do peso das imposições coletivas que se exercem sobre a vida privada.(LIPOVETSKY, p. 245).

• Processo de individualização: reconhecimento da autoridade das pessoasversus “casal como dois que são apenas um”

• Novas formas de vida em comum: casamento light, leveza conjugal

• Relacionamentos sem compromisso, “casamentos testes”

• Casais efêmeros, compromissos flexíveis

Sentimentalidade e descartabilidade

Será que cansamos de esperar que relações amorosas durem por muito tempo? Nada disso. A verdade é que a desregulação cool não provocou a destruição dos discursos, da expectativa e dos sonhos de amor. Essa nossa cultura hiperindividualista é simultaneamente consumista e idealista, materialista e sentimental. As lágrimas, os gestos delicados, o romance, nada disso está morto ou fora de moda: nem sob uma aparência cool o “romantismo” deixou de fazer bater os corações e também de torturá-los. Quanto menos as instituições tradicionais pesam sobre nós, mais se afirma o peso do afetivo na esfera privada.(LIPOVETSKY, p. 247-248).

• Escolher com quem viver, testar amores, poder romper, arejar a relação.

• Fragilidade dos vínculos: insegurança, incerteza, descartabilidade, descompromisso, efemeridade

• As delícias da renovação x o pesadelo de ser abandonado

• Solidão como solução: medo de relacionar-se

• “Vivemos menos a insuportável leveza do ser do que o peso da solidão do ser” (p. 248).

O cool e seu outro

Se os pesos coletivos ficaram mais leves, as experiências vividas continuam duras,

ainda tão carregadas de vontade de poder, de ódio, de ressentimento e de conflitos. A

individualidade cool é muito mais um mito da revolução da leveza do que uma

realidade vivida.(LIPOVETSKY, p. 249).

Inegavelmente, a família não é mais vista como uma instituição alienante: como

centro de afeição, ela é a única instituição pela qual a maioria se declara prestes a

fazer sacrifícios. [...] Houve um alívio das pressões coletivas, não das relações

interpessoais em casal. Leveza institucional, peso esmagador das violências

domésticas.(LIPOVETSKY, p. 249).

Infidelidade nova, fidelidade de sempre

Ficou para trás a época da contracultura que podia assimilar a fidelidade a uma norma burguesa e repressiva. Hoje, apenas uma minoria de pessoas considera a infidelidade como algo sem importância; a maioria estima a exclusividade amorosa como uma condição necessária para se ter uma vida doméstica bem-sucedida. É nosso dever observar que a cultura individualista e hedonista não conseguiu desvalorizar o ideal de fidelidade. Associada à mentira, à traição e ao jogo duplo e chocando-se com o princípio de autenticidade moderna, a aventura extraconjugal não conseguiu conquistar uma legitimidade moral e social.(LIPOVETSKY, p. 249-250).

• Novas taxonomias para a inconstância amorosa e os amores paralelos: infidelidade sexual, emocional, online...

• Desculpabilização da inconstância “em nome do direito à leveza, ao prazer, à autonomia pessoal”

• Leveza como forma de “salvar o casamento” e “reconquistar o eu”

• Direito democrático à infidelidade

Pais cool, crianças frágeis

[...] passou-se de um modelo autoritário a um modelo maleável, compreensivo e cool. A mudança é tão considerável que diversos autores chegaram a evocar uma ruptura que anuncia uma revolução antropológica .(LIPOVETSKY, p. 251-252).

• Primeira modernidade: boa educação = disciplina e obediência.

• Modelo autoritário = poder rígido dos pais

• Presença de castigos corporais

• Ensinar a dureza da vida, preparar as adversidades, inculcar o sentido de dever e obediência (sistema centrado na frustração, restrição, sanção)

• Início do século XX: crítica à educação severa

• Como consequência dos anos 60: educação compreensiva, permissiva, dialógica. Promoção da autonomia, foco na felicidade imediata, respeito à individualidade/singularidade pessoal

• Escuta dos desejos, espaço afetivo, de prazeres e compreensão

• Jovens agitados, hiperativos, ansiosos e frágeis (ausência de regras, de figuras de autoridade e hierarquia, sem restrições /diretrizes para a construção e estruturação do eu)