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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL ALEXANDRA UNGARATTO COTIDIANO E REPRESENTAÇÃO NA PUBLICIDADE: O MELHOR DOS MUNDOS? CAXIAS DO SUL 2015

COTIDIANO E REPRESENTAÇÃO NA PUBLICIDADE: O ...autores Michel de Certeau, Erving Goffman, Michel Maffesoli e Gilles Lipovetsky, o estudo foi dividido em três focos de abordagem:

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Page 1: COTIDIANO E REPRESENTAÇÃO NA PUBLICIDADE: O ...autores Michel de Certeau, Erving Goffman, Michel Maffesoli e Gilles Lipovetsky, o estudo foi dividido em três focos de abordagem:

UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

ALEXANDRA UNGARATTO

COTIDIANO E REPRESENTAÇÃO NA PUBLICIDADE:

O MELHOR DOS MUNDOS?

CAXIAS DO SUL

2015

Page 2: COTIDIANO E REPRESENTAÇÃO NA PUBLICIDADE: O ...autores Michel de Certeau, Erving Goffman, Michel Maffesoli e Gilles Lipovetsky, o estudo foi dividido em três focos de abordagem:

ALEXANDRA UNGARATTO

COTIDIANO E REPRESENTAÇÃO NA PUBLICIDADE:

O MELHOR DOS MUNDOS?

Trabalho de conclusão de curso para obtenção

do grau de Bacharel em Comunicação Social –

Habilitação em Publicidade e Propaganda, da

Universidade de Caxias do Sul.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ivana Almeida da

Silva

CAXIAS DO SUL

2015

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ALEXANDRA UNGARATTO

COTIDIANO E REPRESENTAÇÃO NA PUBLICIDADE:

O MELHOR DOS MUNDOS?

Trabalho de conclusão de curso para obtenção

do grau de Bacharel em Comunicação Social –

Habilitação em Publicidade e Propaganda, da

Universidade de Caxias do Sul.

Aprovado em ___/12/2015

Banca Examinadora

_____________________________________

Prof.ª Dr.ª Ivana Almeida da Silva

Universidade de Caxias do Sul – UCS

_____________________________________

Prof.ª Dr.ª Ramone Mincato

Universidade de Caxias do Sul – UCS

_____________________________________

Prof. Me. Misael Paulo Montaña

Universidade de Caxias do Sul – UCS

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“Tentei não fazer nada na vida que

envergonhasse a criança que fui.” Do

mesmo modo que José Saramago, também

é minha tentativa diária. Dedico este

trabalho aos que questionam, que mudam,

mas que não perdem a essência de uma

criança, que sonha em construir um

mundo melhor, todos os dias, ao acordar.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pela força em viver a vida com suas nuances infinitas. Aos meus

pais, Elói e Helena, por quem eu conheci o amor, o carinho, a doação e a beleza de criar laços

eternos. Pelo incentivo à educação e por me ensinarem a ser forte sem nunca perder a ternura.

É uma honra chegar aqui e poder ser motivo de orgulho a quem sempre me deu tanto.

Aos meus irmãos, Andréia e André, agradeço a oportunidade de ter aprendido a dividir

desde cedo e, principalmente, a certeza de que estarão sempre ao meu lado, independente de

tudo. Ter crescido sob o cuidado de vocês foi incrível. Aos meus cunhados, Márcio e Alice,

agradeço pela presença, gentileza e possibilidade de convivência, de me sentir amada e

querida de forma constante.

De forma especial, serei eternamente grata à minha irmã, Andréia Ungaratto, meu

grande porto seguro, minha fonte inesgotável de força, de amor e de alento. A pessoa que

mais me compreende no mundo e papel fundamental na construção que tive como aluna,

como profissional e como pessoa. Tu és parte de mim.

À minha orientadora, Ivana Almeida da Silva, pelo apoio fundamental, palavras doces

e incentivos desde o primeiro dia de orientação. Por entender minhas preocupações e abraçá-

las com amor e conhecimento. Tua dedicação e compreensão foram imprescindíveis no

trabalho aqui exposto.

Aos meus amigos, pela presença, palavras de estímulo, mas, principalmente, por terem

me dado confiança e ternura, me conhecendo e aceitando-me de forma plena, como bons

amigos fazem. De modo especial, à Gabriela Grillo, pela ajuda na revisão, pelas palavras

carinhosas e por ser uma pessoa que traz esperança e bondade, além de compartilhar comigo

as incerteza do mundo.

Agradeço imensamente a oportunidade de estudar e de modificar meu caminho por

causa da educação. Os últimos anos me trouxeram questionamentos, reflexões e a certeza de

que temos a obrigação em lutar por cenários mais igualitários e de construção social, seja no

âmbito que for. Fico feliz em acreditar que a experiência em uma universidade me trouxe

mais consciência.

Ao mundo da literatura, que me presentou com a paixão pelas palavras, pelas histórias

e pelas pessoas. Por fim, à alegria e à sede em sermos melhores.

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"Existe gente de fogo sereno, que

nem percebe o vento, e gente de

fogo louco, que enche o ar de

chispas. Alguns fogos, fogos

bobos, não alumiam nem

queimam; mas outros incendeiam

a vida com tamanha vontade que é

impossível olhar para eles sem

pestanejar, e quem chegar perto

pega fogo.”

Eduardo Galeano

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RESUMO

O objetivo geral da presente monografia é analisar a forma como a publicidade representa o

cotidiano na atualidade. A partir da pesquisa bibliográfica, com base principalmente nos

autores Michel de Certeau, Erving Goffman, Michel Maffesoli e Gilles Lipovetsky, o estudo

foi dividido em três focos de abordagem: a conceituação de cotidiano e a representação social,

a construção de sentido no discurso publicitário e análise de material audiovisual, no caso de

comerciais, ao final. Foram elencadas cinco categorias que contemplam o tema: a reprodução

de estereótipos, a idealização, a estetização, a individualização e a busca por emoção. A

análise, que segue uma orientação geral de caráter qualitativo, busca entender, de forma

primordial, a produção de sentido do cotidiano na publicidade atual. Como resultado, conclui-

se que, há espaço para clichês e para o novo, uma vez que ao mesmo tempo em que é

resultado da realidade, a publicidade mantém e reforça discursos, tornando-se parte do agir

social.

Palavras-chaves: Cotidiano. Publicidade. Representação social. Audiovisual.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Montagem com dados do perfil demográfico e penetração da TV aberta.........30

FIGURA 2 – Montagem com peças da campanha Be Stupid, da marca Diesel ......................31

FIGURA 3 – Anúncio da Campanha Dove - Real Beleza .......................................................35

FIGURA 4 – Anúncio de cobranding da Adidas e da estilista Stella McCartney...................48

FIGURA 5 – Anúncio de cobranding do Fiat Gucci................................................................49

FIGURA 6 – Montagem realizada com frames do comercial Doutor......................................54

FIGURA 7 – Montagem realizada com frames do comercial Doutor......................................56

FIGURA 8 – Montagem realizada com frames do comercial Pérolas.....................................59

FIGURA 9 – Montagem realizada com frames do comercial Pérolas.....................................60

FIGURA 10 – Montagem realizada com frames do comercial A mais perfeccionista

presuntaria do Brasil................................................................................................................64

FIGURA 11 – Montagem realizada com frames do comercial A mais perfeccionista

presuntaria do Brasil................................................................................................................65

FIGURA 12 – Montagem realizada com frames do comercial Make History..........................67

FIGURA 13 – Montagem realizada com frames do comercial Make History..........................68

FIGURA 14 – Montagem realizada com frames do comercial Nunca deixe de buscar...........70

FIGURA 15 – Montagem realizada com frames do comercial Nunca deixe de buscar...........72

FIGURA 16 – Montagem realizada com frames do comercial Nunca deixe de buscar...........73

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10

1.1 METODOLOGIA ............................................................................................................... 11

2 O COTIDIANO E A REPRESENTAÇÃO SOCIAL ........................................................... 14

2.1 A CONCEITUAÇÃO DE COTIDIANO ......................................................................... 14

2.2 A REPRESENTAÇÃO SOCIAL ....................................................................................... 16

2.3 A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS ......................................................................... 21

3 SOBRE O DISCURSO: SENTIDO E PUBLICIDADE ALÉM DA APARÊNCIA ............ 27

3. 1 O DISCURSO PUBLICITÁRIO ....................................................................................... 28

3.2 O MELHOR DOS MUNDOS ............................................................................................ 36

3.3 CONSUMO, FELICIDADE E PUBLICIDADE EMOCIONAL....................................... 38

3.4 A ESTÉTICA EM TUDO .................................................................................................. 44

4 ANÁLISE .............................................................................................................................. 52

4.1 ORGANIZAÇÃO DO CORPUS DE ANÁLISE: .............................................................. 52

4.1.1 A reprodução de estereótipos: comercial “Doutor” ................................................... 53

4.1.2 A idealização: comercial “Pérolas” .............................................................................. 58

4.1.3 A estetização: comercial “A mais perfeccionista presuntaria do Brasil” ................. 62

4.1.4 A individualização: comercial “Seu nome, sua história” ........................................... 66

4.1.5 A busca da emoção: comercial “Nunca deixe de buscar” .......................................... 69

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 76

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 78

ANEXOS .................................................................................................................................. 83

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1 INTRODUÇÃO

A Publicidade é conhecida por trabalhar de forma utópica a vida cotidiana das pessoas.

Durante muito tempo, o mundo dos anúncios apresentou vidas felizes, que beiraram a

perfeição, contrapondo as falhas e problemas que, sabe-se, são comuns a todas as relações e

vivências humanas. Com o passar do tempo, levando em conta principalmente a influência da

globalização, da expansão da internet e das novas relações sociais, junto ao sistema

econômico vigente, são percebidas algumas mudanças que refletem diretamente no modo de

vender e posicionar as marcas.

Faz-se necessário analisar a carga de valores e representações que a Publicidade traz

consigo e as implicações que os anúncios possuem na atualidade. Para isso, a questão

proposta é descobrir: como o cotidiano é retratado pela Publicidade1, a partir de

representações sociais? Para responder a isso, o trabalho tem como objetivos: definir

cotidiano e representação social, buscando estabelecer relações com o conceito de estereótipo;

estudar a publicidade como espaço de persuasão a partir de discursos, local de criação de

sentidos, especialmente aqueles referentes à individualização e às novas aspirações de

consumo. Também será importante analisar a publicidade a fim de se demonstrar o quanto a

mesma, mais do que uma ferramenta de mercado, contribui para a construção social do

cotidiano por meio de representações sociais.

O intuito é o de colaborar com o campo de pesquisa da representação social e das

táticas utilizadas nos comerciais atuais veiculados em todo o Brasil, bem como o de analisar

alguns dos conceitos atuais e a justificativa por serem utilizados. A carga de valor, normas e a

construção anterior do indivíduo será considerada, mas nem sempre toda a imagem será

preenchida. Assim, a imaginação terá um espaço importante na significação completa – aqui

entrarão novamente aspectos relacionados à cultura, aos conhecimentos individuais e à

subjetividade.

Para alcançar estes objetivos, o trabalho foi dividido em três capítulos:

O capítulo II (O Cotidiano e a Representação Social) será responsável por conceituar

brevemente o tema e apresentar fatores de representação social que modificam a forma de

observar as pessoas e seus papéis na sociedade. A partir disso, a representação e a construção

do outro, com a criação constante de estereótipos, também pode ser construída e analisada nos

meios de comunicação e na publicidade.

1 Para fins deste trabalho, os termos publicidade e propaganda serão tidos como sinônimos.

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O capítulo III (O Discurso Publicitário) se voltará para a forma como a publicidade se

utiliza de recursos próprios para atingir seus objetivos mercadológicos. O comportamento

mutante dos consumidores e a relação da globalização e de aspirações modernas nessa

mudança, bem como a busca pela felicidade instantânea e por desejos individuais, serão

discutidos.

Por fim, a análise contemplará cinco categorias específicas, que terão por base a

bibliografia utilizada no corpo deste trabalho. São elas: a reprodução de estereótipos, a

idealização, a estetização, a individualização e a busca da emoção.

1.1 METODOLOGIA

Para analisar a questão proposta, a pesquisa terá cunho qualitativo. Inicialmente, parte-

se da consulta bibliográfica por meio de autores e obras que possam auxiliar nos temas

apresentados. O teor qualitativo é fundamental, pois as análises serão baseadas em critérios

selecionados como presentes no cotidiano atual das pessoas. Alguns aspectos como trilha

sonora, narração e movimentos de câmeras serão utilizados como reforço e suporte ao

entendimento da mensagem – mas apenas por auxiliarem na compreensão da produção de

sentido em si.

A partir do problema de pesquisa proposto, a análise de conteúdo foi realizada tendo

como base material de caráter audiovisual, ou seja, comerciais. Para isso, toma-se como

sustentação, principalmente, os autores estudados nos capítulos de embasamento teórico como

Michel de Certeau, Erving Goffman, Michel Maffesoli e Gilles Lipovetsky. Todas as

categorias contemplam a vida moderna, seus anseios, preocupações e aliam a relação social e

a mercadológica.

A fim de elucidar o problema de pesquisa proposto, será realizada uma análise

audiovisual de comerciais veiculados no Brasil, na televisão aberta, compreendendo o período

de fevereiro a setembro de 2015. Todos os comerciais a serem analisados foram retirados da

página oficial das respectivas marcas no canal Youtube.

A construção de sentidos formada pela comunicação é complexa e o audiovisual é um

dos aspectos comunicacionais que pode ser abordado por diversos fatores, seja pela produção,

narração, estética ou pelo viés tecnológico. Inegável é que a comunicação audiovisual é

facilitada ao aliar os sentido e trabalhar com o som (áudio) e com a representação visual

(vídeo).

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A análise de imagens permite que sejam considerados elementos separados, da mesma

forma que o permite fazer a relação do contexto envolvido e da significação que decorre

quando esses mesmos elementos são incorporados a outros, completando os comerciais. Essa

análise, conforme a autora Martine Joly (1996), possui uma “função pedagógica”:

Demonstrar que a imagem é de fato uma linguagem, uma linguagem específica e

heterogênea; que, nessa qualidade, distingue - se do mundo real e que, por meio de

signos particulares dele, propõe uma representação escolhida e necessariamente

orientada; distinguir as principais ferramentas dessa linguagem e o que sua ausência

ou sua presença significam; relativizar sua própria interpretação, ao mesmo tempo

que se compreendem seus fundamentos: todas garantias de liberdade intelectual que

a análise pedagógica da imagem pode proporcionar (JOLY, 2002, p. 48).

O poder da imagem, enquanto instrumento do discurso publicitário, também não pode

ser desconsiderado.

A imagem é, de maneira determinante, incorporada à produção da significância

publicitária. Ora, contrariamente à linguagem verbal, cujos signos são considerados

arbitrários e que deve, em conseqüência, demonstrar permanentemente sua

adequação referencial, a linguagem visual beneficia-se, na consciência coletiva, de

um incontestável crédito de autenticidade. De fato, ela parece perfeitamente

motivada, visto que combina signos em relação analógica com a realidade que

representam (FARIAS et al, 1996, p. 14 -15).

De acordo com Silva e Rossini (2009), a imagem tem por característica não mostrar

tudo, assim, para interpretá-la, o espectador precisa reconhecer signos que já foram

preenchidos e, a partir deles, gerar sentido. A carga de valor, normas e a construção anterior

do indivíduo será considerada, mas nem sempre toda a imagem será preenchida. Assim, a

imaginação terá um espaço importante na significação completa – aqui entrarão aspectos

relacionados à cultura, aos conhecimentos individuais e à subjetividade.

Um ponto importante do conteúdo televisivo é o de abordar a uniformização e suas

consequências. Para alcançar um público maior, se trabalha com a exclusão de textos que

abordem a diversidade, assuntos polêmicos e que exijam grande raciocínio, conhecimento e

posição crítica. O motivo seria o de facilitar o entendimento e chamar a atenção – com uma

linguagem clara, acessível e direta (SILVA, ROSSINI, 2009). No entanto, existe a ressalva

para que o audiovisual sempre busque a inovação e, atendendo as demandas tecnológicas, que

responda às exigências do setor.

Deve-se considerar, também, o contraponto real/imaginário ao abordar a linguagem

audiovisual como representação verbal e conceitual e apresentar os dois códigos utilizados

pelo meio: denotativo, que compreende a realidade, e conotativo, que engloba a percepção e a

interpretação.

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Goffman (1985) sinaliza que a produção audiovisual constrói a mensagem desejada

passar ao escolher ângulos e perspectivas que, segundo ele, são essenciais para contar as

verdades convenientes, utilizando, para isso, técnicas como insinuação, ambiguidade

estratégica e omissões.

[...] os meios de comunicação de massa têm sua própria versão a respeito disto e

demonstram que, por meio de reportagens e ângulos fotográficos criteriosos, uma

minúscula resposta a uma celebridade pode ser transformada em uma torrente

impetuosa (GOFFMAN, 1985, p.63).

Rinaldi (2009) reforça que cada linguagem possui suas próprias características e

peculiaridades, além de acrescentar que cada obra audiovisual será apresentada de modo

diferente dependendo do meio onde for produzida e veiculada. Do meio também dependerá

fatores como o formato da imagem, as cores, a composição dos elementos que formam a

própria imagem e a proporção dos padrões determinados pelos veículos escolhidos. Assim,

em cada categoria, quando entendido como necessário, serão tecidos comentários sobre

critérios técnicos - como trilha sonora, cor e luminosidade, por exemplo – que contribuem no

entendimento do sentido desejado e muito mais do que elementos decorativo ou estéticos, são

fundamento de expressão.

Lipovetsky e Serroy (2015) trabalham o conceito de cinema pelo viés estético e no

contexto da época onde surge. Entende-se que ocorra o mesmo com os vídeos publicitários.

Assim,

[...] de todas as formas de expressão artística [o cinema], é a única que exprime sua

natureza propriamente estética num sistema de produção industrial e de distribuição

comercial: sua história não é outra que a história do sistema econômico em que

surge (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p.194).

A seleção dos cinco comerciais levou em consideração, de forma principal, conceitos

teóricos que contemplem o cotidiano, o quesito da veiculação em rede aberta brasileira, a

atualidade das produções e a possibilidade de mostrar as táticas utilizadas, relacionando o ser

social e o contexto mercadológico envolvido no audiovisual.

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2 O COTIDIANO E A REPRESENTAÇÃO SOCIAL

Quando se fala em cotidiano, a tendência é de que ações rotineiras e frequentes sejam

imediatamente associadas. Entender as diversas “realidades” que envolvem as ações diárias,

tanto individuais quanto aquelas realizadas por grupos sociais, pode, no entanto, ser um pouco

mais complexo. Situações como férias e festas também encontram espaço no mesmo conceito

e, a partir da dinâmica pessoal e grupal, novas perspectivas emergem dessas rotinas,

produzindo novos sentidos.

Esse cotidiano pode ser baseado nas ações pessoais, nos desejos e anseios de cada um,

mas também no coletivo. Cada pequeno gesto, por mais simples que possa parecer, cria um

contexto de vida e é nele que as pessoas constroem o sentido diário, indo muito além do que

se enquadra simplesmente na rotina.

As relações do cotidiano, se analisadas como ações repetidas pelo resto do mundo,

possuem impactos sociais e econômicos fundamentais na compreensão de uma nova

sociedade de consumo e nas representações sociais expostas. É também nesse espaço dito

“cotidiano” que se formam as condições de diferenças sociais, de padrões e, mais importante,

onde a mudança e o debate, ao integrar toda a sociedade, podem ocorrer:

[...] as experiências cotidianas parecem minúsculos fragmentos isolados da vida, tão

distantes dos vistosos eventos coletivos e das grandes mutações que perpassam a

nossa cultura. Contudo, é nessa fina malha de tempos, espaços, gestos e relações que

acontece quase tudo o que é importante para a vida social. É onde assume sentido

tudo aquilo que fazemos e onde brotam as energias para todos os eventos, até os

mais grandiosos (MELUCCI, 2004, p. 13).

2.1 A CONCEITUAÇÃO DE COTIDIANO

Leite (2010) faz uma relação sobre os diferentes significados que alguns autores

atribuem à palavra cotidiano. Segundo ele, Pais coloca o termo como um campo de

ritualidades que envolvem regularidade, normatividade e repetitividade e Heller acrescenta

que o cotidiano é algo moralmente adequado. Giddens também atribui um caráter de

rotinização como uma forma importante das pessoas manterem as atividades diárias e garantir

a segurança social por meio das próprias atitudes, mas também pela conduta dos demais

Já Michel de Certeau (1996) afirma que as rupturas também integram a noção de

cotidiano. O autor aborda a noção de lugar comum e o que chama de linguagem ordinária com

o uso de palavras como “cada um” e “ninguém”, que sugeriria a ausência de responsabilidade

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e de preocupação numa sociedade que passa, cotidiana e paulatinamente, a transformar

pessoas em números, que não pertencem a ninguém:

O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos

pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia,

pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de

viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O

cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a

meio - caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. [...] é um

mundo que amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da

infância, memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres [...] O que interessa

ao historiador do cotidiano é o invisível (CERTEAU, 1996 p.31).

Tanto Certeau (1996) quanto Goffman (1985) tratam o cotidiano não como

regularidade, mas como jogo interativo. O primeiro não define o cotidiano como uma

regularidade social, mas acredita que as ações dos indivíduos seriam proporcionais às

situações vividas, além de acreditar que seriam as relações de poder que explicariam e

manteriam a vida cotidiana. Aqui, pode-se considerar a interferência que ocorre na elaboração

de representações, mesmo que as pessoas tentem desconsiderar o quanto a construção social

implica fatores externos e de convívio e construção mútua.

Goffman (1985) afirma que, na existência cotidiana, ninguém comanda sua própria

vida, mas que todos acabam vivendo de interferências. Ao exemplificar, supõe que se alguém

for receber um hóspede desconhecido, ninguém poderá comprovar cientificamente se o

sujeito roubará ou não o seu dinheiro, mas que, por dedução, isso não ocorrerá, e, também por

dedução, o hóspede será aceito.

Com o passar dos anos, os avanços tecnológicos, o acesso à informação, as diversas

manifestações culturais, econômicas e sociais, as mudanças no consumo e nas aspirações

trouxeram, também, novos hábitos e questionamentos para o dia a dia das pessoas. Uma

palavra chave para analisar as relações que existem hoje é o tempo. A ocupação do espaço

diário da “melhor forma possível” é dos grandes embates da sociedade moderna. Tempo para

os filhos, para o trabalho, para o lazer, para as férias: o teor de urgência que os indivíduos

vivem atualmente colabora ainda mais para a reflexão sobre as prioridades da vida moderna.

Lipovetsky (2007) denomina esse novo cotidiano como sendo a era do hiperconsumo e

apresenta a atualidade como tempos hipermodernos (2004). Para ele, esse período traz o

declínio das estruturas tradicionais de sentido, substituídas pela moda e pelo consumo.

Nesse sentido, a falta de dinheiro ou de liberdade geraria menos reclamações que a

falta de tempo, para “ser” o que se quiser. Mesmo que isso também recaia nas desigualdades

sociais, onde desempregados tem tempo de sobra, por exemplo. Dessa forma, é importante

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fazer um contraponto entre as consequências desse cotidiano que se baseia no capitalismo e a

relação paradoxal que existe. Se por um lado as desigualdades sociais são agravadas e existe

insegurança de várias naturezas, o ritmo é frenético, as relações urgentes e os prazeres

passageiros, por outro as mulheres têm mais voz, pensa-se mais na qualidade de vida, há mais

formas de expressão, espaços para questionamentos, novos modos e formas de vida, além da

busca por sentido nas ações (LIPOVETSKY, 2007).

É crescente, também, a ideia de que existe um teor de urgência em tudo que tange o

cotidiano atual. Lipovetsky (2007) concorda com Maffesoli (1996) ao afirmar que a cultura

cotidiana considera a mitologia da felicidade, do presente e de ideais hedonistas. Parte-se de

promessas de felicidade individual, do gozo do agora e de prazeres imediatos. Se vive para si

e não há a necessidade de adiamento.

Toda a vida das sociedades superdesenvolvidas se apresenta como uma imensa

acumulação dos signos do prazer e da felicidade. Vitrines rutilantes de mercadorias

nas publicidades resplandecentes de sorriso, do sol das praias nos corpos de sonho,

de férias com divertimentos midiáticos, é sob os traços de um hedonismo radiante

que se mostram as sociedades opulentas. Por toda parte ressoam os hinos ao maior

bem-estar, tudo se vende em promessas de volúpia, tudo se oferece como de

primeira qualidade e com música ambiente difundindo um imaginário de terra da

abundância. Nesse jardim de delícias, o bem-estar tornou-se Deus, o consumo, seu

templo, o corpo, seu livro sagrado (LIPOVETSKY, 2007, p.153).

Maffesoli (2007) cita Durkheim para considerar que o indivíduo, “do ponto de vista

mental” é apenas um “sistema de representações” (p.96) e que as ideologias são efêmeras. E

é justamente esse poder momentâneo que torna as representações importantes: ao

acompanhar as gerações e exprimir os anseios, sentimentos e projetos e dar espaço, mais

frente, a novas mudanças e outros imaginários. Maffesoli (1996) também cunha o termo

“barroquização do mundo” (p.185), fazendo menção ao estilo barroco, para falar sobre o

tempo onde os indivíduos e os meios de comunicação se baseiam no presente, no “instante

eterno”. Para ele, na pós-modernidade, o cotidiano é centrado na aparência, no hedonismo

coletivo, na saturação imagética, no aspecto banal, efêmero e coletivo das relações sociais.

2.2 A REPRESENTAÇÃO SOCIAL

Há uma multiplicidade de conceitos e áreas que buscam definir o que é a

representação social. Nesse sentido, não é simples traçar uma única definição.

Para Pereira (1994), as representações funcionam como produtores de realidade pela

forma como são interpretadas tanto as situações que acontecem com o sujeito, como as que

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ocorrem a sua volta, e, ainda, pelas respostas que são buscadas em virtude do que se supõe ter

acontecido. Além disso, reforça que a representação envolve construção, por utilizar

esquemas de pensamento social já estabelecidos, com estruturas já firmadas por ideologia

dominantes e com a repetição dessas representações sociais.

O conceito de representação social surgiu a partir dos estudos de Moscovici, na

década de 1960, com a oposição entre indivíduo e sociedade. Nesta época, já se acreditava

que a representação social não retrata uma realidade única e homogênea para todas as pessoas

e seus grupos. A grande questão, na época, era se as representações tinham relação com uma

interpretação individual ou se já faziam parte da construção dos ser social, moldado pela sua

atuação em âmbito de sociedade. Assim, o indivíduo seria, ao mesmo tempo, produto e

produtor da realidade no campo coletivo e as representações uma forma de entender e explicar

os valores e as crenças: uma mediação entre o sujeito e o mundo no qual ele está inserido.

Nesse sentido, os meios de comunicação seriam “[...] espaços privilegiados para construção e

veiculação de representações sociais, visto que os canais de mediação por excelência do

mundo contemporâneo” (BARROS; MOREIRA, 2010, p. 1073).

A conceituação do que é real ou não também adquire necessidade de esclarecimento. E

as representações simbólicas dessa “realidade” podem ser feitas inclusive por meio de

linguagens, seja a verbal, a visual ou a gestual, por exemplo. Também é importante refletir

sobre os conteúdos históricos que figuram no imaginário social:

[...] as representações são essencialmente dinâmicas; são produtos de determinações

tanto históricas como do aqui-e-agora e construções que têm uma função de

orientação: conhecimentos sociais que situam o indivíduo no mundo e, situando-o,

definem sua identidade social – o seu modo de ser particular, produto de seu ser

social (SPINK, 1995, p. 8).

Assim, as representações sociais acabam congregando elementos afetivos, mentais e

sociais, ao lado da cognição, da linguagem e da comunicação. Outro ponto importante para

ressaltar é o de que as relações sociais afetam as representações e a realidade material, social e

ideal, intervindo sobre elas (SPINK, 1995). Assim, é possível afirmar que as representações

sociais acabam sendo um produto ao mesmo individual e grupal, formado por cada um, mas

dentro de contextos sociais a que todas as pessoas são expostas. Logo, não é possível

conhecer esse ser, naturalmente social, sem observar as condições que o envolvem numa

sociedade, numa cultura e numa conjuntura política e econômica.

O sociólogo Erving Goffman (1985) toca em aspectos fundamentais para a

compreensão do tema. O autor compara os seres humanos a atores, e a vida em sociedade

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como uma peça teatral, com o emprego de técnicas para a comprovação de determinados

desempenhos. As análises feitas servem como um guia, por possuírem critérios que poderiam

ser utilizados em qualquer ambiente, fosse ele empresarial, doméstico ou comercial.

Ao mencionar a palavra “pessoa” e lembrar que, em sentido inicial, o termo signfica,

“máscara”, Goffman (1985) traz a ideia de que, de forma consciente ou não, o ser humano

sempre desempenha papéis. Quando um professor veste-se com determinadas roupas e

adquire certa postura, além de contar com acessórios como crachás, está representando

socialmente seu “papel”. O aluno, em uma suposta conversa com esse professor, terá uma

postura de ouvinte, com roupas que condigam com o que é esperado dele. O mesmo se espera

de um médico e de um paciente, de um advogado e de um cliente, que utilizam, para isso, o

que o autor chama de fachada social.

Na análise, alguns termos são utilizados para estabelecer critérios. Assim, Goffman

afirma (1985, p.32) que “[...] além da esperada compatibilidade entre aparência e maneira,

esperamos naturalmente certa coerência entre ambiente, aparência e maneira.” Ele também

entende que um número pequeno de fachadas acaba por ser uma consequência natural no

processo de organização social. Já o quanto elas são justas ou corretas, exige uma outra

análise, que a própria sociedade - por meio de grupos sociais - tenta regular. Segundo ele, essa

fachada pode ser dividida em três partes:

Dissemos que a fachada social pode ser dividida em partes tradicionais tais como

cenário, aparência e maneira, e que (visto que diferentes práticas regulares podem

ser apresentadas por trás da mesma fachada) não encontramos um ajustamento

perfeito entre o caráter específico de uma atuação e o aspecto socializado geral em

que nos aparece (GOFFMAN, 1985, p.36).

Ao tratar da aparência, o médico terá “rosto” de médico e estará fazendo uso um

jaleco branco, por exemplo; no quesito cenário, o consultório provável apresentará quadros

com imagens ou desenhos ligados à Medicina, bem como livros sobre o assunto/especialidade

do profissional e a maneira se dará pela linguagem rebuscada utilizada, com termos próprios

da área profissional, pela calma e gestos convictos. Ou seja, uma imagem já consolidada na

mente do público. Assim, parecer acaba sendo mais importante do que, de fato, agir de acordo

com determinada profissão. Goffman comprova isso ao afirmar que (1985, p.50) “[...] na

interação real entre o médico e o paciente admite-se que se crie a impressão de que o médico

é médico simplesmente devido a aptidões e ao treinamento especiais” ou ainda quando afirma

que o importante é ter “[...] aparência de diretores e não porque são capazes de agir como”.

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Entende-se, também, que nenhuma pessoa age da mesma forma em todos os

ambientes. O mesmo professor terá atitudes condizentes e reconhecidas pela sociedade como

aceitáveis no trabalho e terá outra postura em sua casa, em momentos de lazer e assim

sucessivamente. Mais do que isso, é necessário que existam essas fachadas e papéis sociais, a

fim de que exista uma ordem. Até porque uma representação social só recebe esse nome por

já ser algo tradicional, entendido há muito tempo como uma “realidade”. Logo, as

representações são essenciais para a vida em sociedade, pois sem elas as pessoas não saberiam

como agir ou se portar.

Pode parecer que, dessa forma, por ser algo que já está construído, as representações

são falsas ou não condizem com a realidade. No entanto, o autor sugere outra visão da

situação:

Em geral, portanto, a representação de uma atividade diferirá da própria atividade e

por conseguinte, inevitavelmente a representará falsamente. E como se exige do

indivíduo que confie nos sinais para construir uma representação de sua atividade, a

imagem que construir, por mais fiel que seja aos fatos, estará sujeita a todas as

rupturas a que as impressões estão sujeitas (GOFFMAN, 1985, p.66).

Deve-se considerar, também, que uma condição social não é algo material que possa

ser “possuído”, mas que faz parte de uma conduta apropriada, coerente e adequada. Para

esclarecer, pode-se utilizar o exemplo de um garçom, que age como se estivesse em um jogo,

pelo atendimento demasiado solícito - com movimentos rápidos, passos ágeis e firmes - como

se tudo fosse programado.

Assim, percebe-se que, na presença do outro, o sujeito passa a acentuar algumas de

suas atividades e esses fatos aparecem na região de fachada. Mas, além dela, o autor acredita

que exista outra região, chamada de “região de fundo” ou “bastidores”, local do que dos fatos

que seriam suprimidos:

Uma região de fundo ou dos bastidores pode ser definida como o lugar, relativo a

uma dada representação, onde a impressão incentivada pela encenação é

sabidamente contradita como coisa natural. Há, sem dúvida, muitas funções

características de tais lugares. É aqui onde se fabrica laboriosamente a capacidade de

uma representação expressar algo além de si mesma. Aqui é onde as ilusões e

impressões são abertamente construídas. Aqui guardados, numa espécie de

aglomerado de repertórios inteiros de ações e personagens. Aqui os tipos de

equipamento cerimonial, tais como as diferentes espécies de bebidas e roupas,

podem ser escondidos, de tal como que a plateia não seja capaz de perceber o

tratamento concedido a eles, em comparação com o que lhe poderia ser dado

(GOFFMAN, 1985, p.106)

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O controle dos bastidores será decisivo para a certificação de um trabalho bem feito.

Por exemplo, se alguém manda consertar algo, não vê o processo do conserto, apenas deixa o

objeto e passa para buscá-lo mais tarde. Se durante esse tempo foram cometidos diversos

erros antes da versão final, o cliente não saberá. Do mesmo modo, em restaurantes, os

gerentes gostam de deixar as portas da cozinha fechadas para que os clientes não percebam os

“hábitos da cozinha”. Logo, entende-se que quem presta serviço está habituado a não ter o

público perto da região dos fundos.

Também não significa que o fato de uma representação ser apresentada pela forma

simbólica seja necessariamente errada ou que traga uma carga propositalmente negativa. Até

porque é impossível que a representação seja igual à atividade em si e isso já caracteriza algo

“falso”. Goffman (1985) ainda ressalta a exigência de que por mais fiel que seja, a imagem

que será construída sempre estará sujeita a todas as rupturas que as impressões também estão.

Normalmente, as pessoas são o que parecem, mesmo que, às vezes, as aparências possam ser

manipuladas.

Como pode ser constatado, o termo “representação social” pode ser abordado por

diversas áreas do conhecimento e interpretado sob vários prismas, especialmente aqueles

vinculados às Ciências Humanas. De acordo com Gastaldo (2000, p.85), no contexto das

Ciências Sociais, “a noção de representação está estreitamente vinculada à noção de cultura”.

Assim, é válido conceituar brevemente a palavra. De acordo com a Enciclopédia Intercom, a

cultura “[...] no sentido amplo, significa a maneira total de viver de um grupo, sociedade, pais

ou pessoa” (ROCHA; TOSTA, 2010, p. 346).

Goffman também atribui à cultura diversas manifestações:

É um lugar comum dizer-se que diferentes grupos sociais expressam de maneiras

diversas atributos tais como idade, sexo, jurisdição, posição de classe e que em cada

caso esses simples atributos são elaborados por meio de uma configuração cultural

complexa distintiva de meios convenientes de conduta. Ser uma determinada espécie

de pessoa por conseguinte não consiste meramente em possuir os atributos

necessários, mas também em manter os padrões de conduta e aparência que o grupo

social do indivíduo associa a ela (GOFFMAN, 1985, p. 74).

O indivíduo, ao constituir suas relações sociais, o faz a partir da linguagem e da

relação que existe entre as representações e às crenças e valores. O que acaba por criar a

própria identidade destes sujeitos, apreendendo antes o ambiente e, depois, se inserindo nele

(TRINDADE, ACEVEDO, 2010).

São com os valores culturais que se criam os quadros de aparências. E o termo sempre

dá margem para discussões que analisam o quanto elas são, de fato, relevantes e em que

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medida devem ser consideradas. Nesse sentido, Goffman (1985) reforça que “confiar” nas

aparências é imprescindível, afinal, se o indivíduo se interessar pela realidade inacessível à

percepção, terá que concentrar muito mais sua atenção nas aparências. Além disso, o

sociólogo entende que a compreensão de mundo do outro passa por uma interpretação do

próprio sujeito. Afinal, “[...] quando um indivíduo se apresenta diante de outros, consciente

ou inconscientemente projeta uma definição da situação, da qual uma parte importante é o

conceito de si mesmo” (p. 222).

Gastaldo (2000) acredita que para uma representação se tornar permanente é

necessário que ela seja pertinente, ou seja, que exista uma relação com outras representações

culturais já presentes e incorporadas. Isso abre outro precedente: o de manter o poder e as

relações conforme já estão, sendo difícil que se rompam paradigmas e que surja o “novo”,

tanto nas representações cotidianas, quanto naquelas apresentadas por comerciais de televisão

e na publicidade de modo geral.

Como a construção desses simbolismos foi criada e mantida por muito tempo, pode-se

pensar que é difícil mudar, inclusive rompendo com possíveis estereótipos. Nesse sentido,

Goffman (1985), acredita que talvez seja mais fácil do que parece, pois, segundo ele, a

impressão criada por uma representação pode sim ser quebrada por pequenos contratempos,

por ser delicada e frágil.

Os papéis sociais, que provém das representações, são comumente utilizados pela

mídia e pela publicidade. A representação acaba sendo reconhecida pelo público, visto que

está presente no cotidiano. Dessa forma, utilizando as representações que já são conhecidas, a

mensagem será percebida mais facilmente e com menos ruído. As consequências de manter o

mesmo discurso, porém, devem ser analisadas e debatidas.

2.3 A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS

Ao reduzir uma diversidade enorme, simplificando e não contabilizando a

complexidade que ela envolve, é importante ter cuidado ao trabalhar com estereótipos.

Heloani e Silva, na Enciclopédia do Intercom (2010), conceituam o termo de duas formas. A

primeira, ao citar o que é discriminação, coloca o estereótipo como um processo que reforça

conceitos e definições que já estão socialmente estabelecidas. Além disso, sugerem que o

termo afeta um julgamento, o tornando perigoso:

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É como se fosse um modelo mental. Entendemos por estereótipo uma série de

características – padronizadas e cristalizadas – associadas a determinado sujeito, e

não raro a determinada ocupação, e que não são, necessariamente, negativas. Porém

é sempre negativo quando o estereótipo é a representação coletiva do preconceito

(HELOANI; SILVA, 2010, p.405).

Ao conceituar rotulação, Leal (2010) reforça a constante relação dos estereótipos

junto a situações de opressão. Isso ocorre quando o termo cria vínculo com preconceitos e

estigmas, e determinados rótulos acabam sendo difundidos como um saber construído

socialmente e que se torna natural no discurso cotidiano. Assim, certas marcas, consideradas

fundamentais, se reproduzem sem questionamentos.

Os estereótipos negativos configuram, junto à rotulação, à exclusão social, e à

discriminação, os estigmas. Nesse sentido, mesmo quando são “positivos” os estereótipos

podem ser prejudiciais, como a pressão que um asiático sofre, por exemplo, ao ter vinculada

uma imagem de jovem estudioso, dedicado e bem sucedido na medida em que não se encaixe

nessa descrição. As consequências são a restrição da diversidade e a limitação da

individualidade (TRINDADE, ACEVEDO, 2010).

Deve-se considerar, também, que o ato de estigmatizar deixa margem para relações

assimétricas de poder. Um grupo que possui determinados atributos ou características

comuns, diferentes dos parâmetros que já estavam estabelecidos, corre o risco de ser marcado

ou estigmatizado.

Cabecinhas (2004) apresenta a origem da palavra estereótipo, que seria, em grego,

“sólido” e “firme”. Pereira (2002) mostra que no sentido etimológico, o termo seria formado

por stereos, que significa “rígido”, e túpos, traduzido como “traços” e sinaliza que a palavra

chegou às Ciências Sociais ao fazer a ligação com uma imagem generalizada de pessoas ou

grupos. Walter Lippmann (2008) surge com novas ressignificações do conceito, mesmo que

também faça referência, em dado momento, a essa definição mais “rígida” ao analisar as

imagens construídas com grupos sociais de pouco ou nenhum contato, quando essas imagens

concebidas negam a individualidade de cada um e se tornam exageradas e gerais.

O que deve ser sempre considerado é que os estereótipos acabam por influenciar

grande parte das informações sociais, como a interpretação de comportamentos, a busca de

detalhes sobre o comportamento e a seleção das informações. Por consequência, ocupada pela

memória, essa relação criada será passada adiante e reproduzida.

Lippmann (2008) acredita que os fatos dependem da posição e do hábito do olhar, ou

seja, é muito difícil que alguém perceba certas situações (e quebre certos estereótipos) se nem

sequer os observa sem ver apenas o que já via anteriormente. Goffman (1985) também fala

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sobre as representações implicarem apenas em um único foco de atenção visual. Ainda

segundo Lippmann, as pessoas fazem um ‘recorte’ da realidade, por meio do que a cultura

definiu, e atribuem-lhe significado. Assim, fica mais claro entender que o ser humano possui

limites que influenciam no processamento da informação, visto que os preconceitos terão

reflexo na hora de selecionar, interpretar, memorizar, recuperar e utilizar qualquer

informação.

Não é simples mensurar o quanto os estereótipos podem decidir posições e influenciar

na vida de cada pessoa. As construções são paulatinas e, justamente por isso, envolvem

observação e esforço diário. Pereira e Ornelas (2005) assinalam que o termo possui uma visão

negativa pelo fato de ter sido usado inicialmente como recurso para justificar e racionalizar a

desigualdade e a discriminação. Outras críticas que o estereótipo carrega são, de acordo com

Gastaldo (2000), o caráter de ser redutor e de tornar engessadas as diferenças dos grupos

representados, de ser uma prática de exclusão por construir fronteiras simbólicas e, ainda, da

tendência de estereótipos estarem presentes onde há grande desigualdade de poder. E, mesmo

que não se conceitue como positivos ou negativos, é necessário entendê-los como a

construção de imagens gerais, representam uma grande diversidade:

[...] o fato é que os estereótipos, mesmo que sejam apenas imagens, têm

conseqüências reais e importantes. Eles podem afetar a auto-estima dos que foram

estereotipados e podem freqüentemente chegar perto de determinar a maneira pela

qual algumas pessoas pensam e se comportam com relação aos membros dos grupos

que foram estereotipados (GASTALDO, 2010, p. 90).

Como forma de difundir uma série de conceitos, valores e de caracterizar épocas, os

meios de comunicação são bem importantes para identificar como muitas representações são

criadas, compartilhadas e difundidas. Nesses locais, fica claro o uso de estereótipos na

construção da identidade de toda sorte de assuntos.

Barbero (1997), ao citar os meios de comunicação, também atribui a falta de

questionamento sobre o outro como um problema. De acordo com o autor, as imagens buscam

a heterogeneidade, em vez de buscar compreender as diferenças, que são agravadas por

estereótipos:

Eles [os meios de comunicação] buscam nas outras culturas o que mais se parece

com a nossa e, para isso, silenciam ou enfraquecem os traços mais conflitivamente

heterogêneos e desafiantes. Para tanto não haverá outro remédio senão estilizar e

banalizar, isto é, simplificar o outro, ou melhor, descomplexizá-lo, torná-lo

assimilável sem necessidade de decifrá-lo (BARBERO, 1997, p.41).

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Lippmann (2010) afirma que há uma conexão entre o que se vê e os fatos, mas

também que observar todas as situações, por outro ângulo, acaba sendo cansativo e fora de

questão. O autor aponta que é muito difícil, num contexto de vida moderna, conhecer todas as

pessoas de forma íntima, como um empregador e um empregado, por exemplo. Logo, alguns

traços dessas pessoas são observados e o restante do espaço acaba por ser preenchido com

estereótipos. Ao mesmo tempo, pode-se afirmar que o acesso à informação que a sociedade

atual possui facilita a busca por novos pontos de vista.

Na falta de opiniões embasadas, as pessoas passam a sustentar-se em crenças – que

são compartilhadas pela maioria da população – e nessa interpretação precipitada, compõem

apenas um “retrato” parcial, baseado em uma preconcepção anterior. Lippmann (2010)

também sugere que, por ser passado de geração em geração, o estereótipo chega a ser visto

quase como um fator psicológico. Assim, as pessoas narram um mundo antes de o ver,

imaginam as coisas sem experimentar e as percepções acabam se projetando em imagens

segundo determinada realidade.

Se voltando para os movimentos sociais que crescem e se deparam com opiniões já

enraizadas e que precisam ser, ao menos, discutidas, pensar a questão de gênero se faz

bastante pertinente. Martins e Pinto (2008) abordam a figura da mulher na publicidade e os

estereótipos de gênero. Apesar das mudanças que vem ocorrendo e do papel da mulher na

sociedade estar em constante transformação, ainda são perceptíveis diferenças na avaliação do

papel de homens e mulheres. Os estereótipos de gênero já estão incorporados na sociedade e a

publicidade acaba reforçando-os enquanto reprodutora da realidade social e das ideologias.

No estudo dos autores em questão, o homem ainda é mostrado como quem decide a compra –

com o exemplo de automóveis - enquanto a mulher ocupa um espaço associado à família,

sendo mais jovem que o marido e numa relação mais dependente, propensa à emoção e

vulnerabilidade com mais facilidade, ou, ainda, em situações de sedução. Além disso, ao

homem são atribuídas características de alegria, ambição e reconhecimento social, enquanto a

mulher é vista para veicular tendências, conferir credibilidade aos produtos e aparece como

uma figura mais responsável, ligada à beleza e com pretensões de estabilidade e conforto.

Em uma visão que soa mais positiva, Leite (2009) define o estereótipo como uma

forma de auxiliar os indivíduos a compreenderem o ambiente onde vivem de forma mais

simples e categorizando, na memória, as pluralidades dos elementos sociais. Aqui, pode-se

entender um espaço para que essas categorias e apreensões do mundo se tornem mais amplas

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e passem por questionamentos mais profundos do que a simples aceitação de modelos

vigentes.

Além de defender que os estereótipos são comuns porque economizam esforços de

mudança de algo que já está concebido, Lippmann (2010) afirma que eles também podem

servir como defesa da posição social. Segundo ele, existe uma ideia de mundo, onde as

pessoas sabem “seu lugar” e mesmo que não seja completa, essa imagem é mais fácil de

assimilar e compreender, pois já está definida. Ali se encontra o familiar, o normal e o seguro.

Logo, os estereótipos não seriam neutros:

[...] é a garantia de nosso auto-respeito, é a projeção sobre o mundo de nosso

sentido, do nosso próprio valor, nossa própria posição e nossos próprios direitos. Os

estereótipos estão, portanto, altamente carregados com os sentimentos que estão

presos a eles. São as fortalezas de nossa tradição, e atrás das nossas defesas podemos

continuar a sentir-nos seguros na posição que ocupamos (LIPPMANN, 2010, p.97).

Sob algum estímulo externo, a pessoa evocará alguma parte de um sistema de

estereótipos onde o preconceito e a “realidade” preencherão a consciência ao mesmo tempo.

Se o que acontecer era previsto de acordo com a ideia antecipada, o estereótipo será reforçado

para o futuro; caso contrário, com uma pessoa que não seja flexível ou que tenha um grande

interesse para reorganizar esse estereótipo, a situação será tratada como exceção, nada mudará

e o estereótipo continuará intacto. Já se a pessoa for aberta e estiver disposta a refletir sobre

sua construção prévia, pode ocorrer a troca da imagem, possibilitando a alteração do

estereótipo. Outra consideração feita é de que o mundo estereotipado não é aquele que as

pessoas gostariam que fosse, mas o que elas esperavam que fosse: se os eventos acontecem da

forma como foram previstos, cria-se uma sensação de familiaridade. Além de poupar tempo

numa vida corrida e de ser uma defesa da posição social, o estereótipo também preservaria o

ser humano do “efeito desconcertante de tentar ver firmemente o mundo e vê-lo

completamente” (LIPPMANN, 2010, p.111).

Dessa forma, os estereótipos estariam carregados de preferências e, antes mesmo de

qualquer evidência, já seria traçado um julgamento, uma conclusão. Pode-se e deve-se pensar

em formas de combater modelos prontos, mas Lippmann (2010) salienta que, mesmo com

todas as devidas ressalvas que devem ser feitas nessas conclusões antecipadas, uma pessoa

sem nenhum tipo de preconceito é inimaginável, pois como são finitas, as pessoas precisam

“aprender” e carregar imagens, o que acarreta da mesma forma - e sempre - prejuízos. Nesse

sentido, o autor sugere que esses “prejuízos” sejam amigáveis e o mais flexíveis possíveis:

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O que é estranho será rejeitado, o que é diferente cairá em olhos cegos. Não vemos o

que nossos olhos não estão acostumados a levar em conta. Algumas vezes

conscientemente, mais freqüentemente sem saber, nos impressionamos por aqueles

fatos que se encaixam em nossa filosofia (LIPPMANN, 2010, p.115).

Como a construção de estereótipos parece passar por visões superficiais de situações,

povos e pessoas, e por estar se referindo à construção da opinião pública, é importante tanto

que os veículos discutam formas mais plurais de representar o outro, como que os próprios

sujeitos se questionem acerca das informações recebidas. Na perspectiva de Lippmann (2010),

é necessária uma longa educação crítica para a tomada de consciência, mas os estereótipos

seriam inevitáveis. Assim, configurariam um jeito de olhar, de julgar e que acabam

viabilizando a vida em sociedade, já que sem eles não haveriam opiniões próprias e nem a

opinião pública, uma vez que ela é resultado da associação dos estereótipos de cada pessoa.

Conforme comentando anteriormente, é nesse cotidiano quase invisível, de ações que

podem parecer pequenas e sem grandes revelações ou mudanças, que se criam as

representações e se formam relações cheias de sentidos - nem sempre tão perceptíveis.

Inegável é que toda construção feita resultará no olhar para com o outro, na forma de se

construir junto e socialmente e, por consequência, afetará diretamente todas as pessoas, em

diversos níveis.

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3 SOBRE O DISCURSO: SENTIDO E PUBLICIDADE ALÉM DA APARÊNCIA

O entendimento de qualquer discurso, seja ele publicitário ou jornalístico, passa

sempre pelo trabalho de construção de sentido de um sujeito, direcionado a outro que terá, ao

mesmo tempo, identidade e diferença. Logo, para sua significação um “acontecimento”

depende do olhar que se coloca sobre ele. Diferente do texto jornalístico, que tem como

principal função uma informação com doses de isenção, o discurso publicitário é repleto de

persuasão e convencimento.

Charaudeau (2006) versa sobre o discurso midiático. Segundo ele, o discurso de

informação é o que permite, por meio da linguagem, que a sociedade estabeleça vínculos

sociais. O autor também sugere que a linguagem não diz respeito apenas a uma língua, mas

aos valores que compõem os signos dessa língua. Aqui, aparece o discurso, que organiza essa

fala e produz sentido – que, ainda de acordo com o autor, nunca é dado antecipadamente, mas

construído pela ação do homem em situação de troca social.

É bastante nítido que o ser humano depende da linguagem – e ela não se faz sem

informação. As questões se tornam mais complexas, porém, quando se pensa na natureza do

que é transmitido, por quem, para quem e em que contexto aquela informação surgiu e foi

pronunciada. Salienta-se que, como a tomada de consciência dos indivíduos é feita por meio

do outro, a fala também se coloca em relação ao outro. Dessa forma, todo discurso, antes de

representar o mundo, representa uma relação. Assim, não existe um discurso neutro e isento,

visto que, ao ser dito, ele já implica na construção que todo ser possui. Do mesmo modo, a

interpretação passará por uma associação dos valores e parâmetros que já são próprios de

quem está recebendo qualquer informação. Logo:

Não há captura da realidade empírica que não passe pelo filtro de um ponto de vista

particular, o qual constrói um objeto particular que é dado como um fragmento do

real. Sempre que tentamos dar conta da realidade empírica, estamos às voltas com

um real construído, e não com a própria realidade (CHARAUDEAU, 2006, p131).

O papel das palavras nas representações do discurso midiático é fundamental. Ao usar

certos adjetivos, a mídia e a própria Publicidade se valem de representações que estão nos

saberes de conhecimento e crenças do público. Uma simples frase como “essa mulher é

poderosa” depende da interpretação que é feita de conceitos sobre a mulher e sobre o poder,

por exemplo. As comprovações do que é “verdadeiro” também recaem no imaginário e são

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baseadas nas representações do que um determinado grupo social faz, ao garantir o que foi

dito (CHARADEAU, 2006).

Assim, é imprescindível atentar ao poder que a palavra possui – de criar e destruir – e

de modificar toda a forma do indivíduo perceber o mundo. Os termos dominados vão muito

além da comunicação por si só – eles traduzem a intensidade da vivência e permitem

estabelecer significados. A língua acarreta em diversas relações, algumas que integram e

outras tantas com caráter excludente. Carvalho (2001) afirma que o vocabulário não exerce

apenas um papel passivo, mas que também define as situações, e que as palavras não

exprimem as coisas, mas a consciência que as pessoas fazem delas. Nesse sentido, é

importante reforçar novamente a força que a cultura possui no entendimento de uma língua,

ao identificar um povo e se tornar um denominador do convívio social, pois, segundo ele [...]

“não se trata de uma realidade objetiva, mas de uma realidade construída a partir do recorte

que os signos operam na realidade bruta” (CARVALHO, p. 104).

Ao utilizar o termo “discurso”, Fairclough (2001) considera a linguagem como prática

social e não como uma atividade individual. Assim, o discurso se tornaria uma forma pela

qual as pessoas poderiam agir sobre o mundo e sobre os outros, além de ter caráter de

representação. Ainda assim, o discurso seria moldado e restrito pela estrutura social: seja pela

classe, pelas relações específicas em locais particulares, como a educação, por exemplo, por

sistemas de classificação, normas e convenções. O autor acredita que do mesmo modo que a

prática discursiva mantém a sociedade em suas práticas convencionais, ela teria um poder

criativo, de transformá-la.

Charadeau (2006) lembra ainda que nem sempre o efeito que se deseja produzir no

discurso será o que, de fato, será entendido. E que, mais do que informar, a Publicidade

deseja persuadir. O autor afirma que no discurso propagandista2 a ordem fica na promessa:

nas possibilidades do que acontecerá - o que não ocorre no informativo, que fala do que

decorreu. O modelo proposto, na Publicidade, é o próprio desejo.

3. 1 O DISCURSO PUBLICITÁRIO

O gênero publicitário, para ser reconhecido com tal, utiliza a linguagem do público

onde está inserido, com o léxico mais adequado e baseado na cultura da qual faz parte. O

discurso mescla a forma linguística, como eufemismo, redundâncias, hipérboles e

2 Considerado pelo autor como o discurso que compreende tanto o “publicitário” quando o “político”.

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polissemias, com o poder da sedução e da argumentação, por meio de mitos, valores,

tendências e uma sempre curva em relação à realidade (ou ao que pode ser real).

Multiplicidade de aspectos e áreas do conhecimento envolvidas (CARVALHO, 2001).

A publicidade costuma utilizar, de forma majoritária, termos positivos - os traços

negativos são usados apenas para fazer contraste como o comum “antes e depois”. Assuntos

polêmicos e que reflitam injustiça, discriminação e preconceito são raros, ao que Carvalho

(2001) justifica pela Publicidade ser como “a Ilha da Fantasia, [...] o reino da felicidade e da

perfeição” (p. 20), sem lugar para os problemas. E completa dizendo que [...] “a Publicidade,

por princípio, pertence à indústria dos sonhos – mais do que o cinema e a televisão -, por isso,

nunca apresentará a sociedade tal como ela é” (p. 24). Lipovetsky (2015) também assinala

que nenhuma sociedade é possível sem um corpo de mitos, de imagens e de crenças, e que

isso tem direta relação positiva com a possibilidade de tentar ser “melhor”.

Já de acordo com Carrascoza (2014), a Publicidade não vende um mundo ideal,

tampouco o mundo real, mas sim um mundo tido como favorável, preferível e que

recompensa. Sendo um mundo ficcional – que traz enraizado em sua materialidade e em seu

discurso as condições existenciais da sociedade, o pensamento e o imaginário da época em

que foi criado -, também expressa a historicidade na construção simbólica de suas narrativas.

Logo, cada período apresentará conceitos diferentes do que é um mundo favorável e o que

significaria essa gratificação.

No universo extremamente competitivo, cada marca apresenta sua visão particular de

mundo e foca num aspecto como mote. Todos, entretanto, visto que a publicidade sempre

tratará de produtos, serviços ou ideias a serem “vendidas”, precisam apresentar algum

destaque e diferencial. Como em contos clássicos, a publicidade se vale de histórias que

mantenham vivo o imaginário e que despertem a curiosidade. Essa narrativa ficcional acaba

por ser uma bastante sedutora e um dos trunfos utilizados. A descrição contempla o termo

storytelling, que será citado de forma direta na continuidade do trabalho.

Com a certeza de que o discurso publicitário sempre defende um ponto de vista, ele

busca ser persuasivo de diversas formas: seja com argumentos racionais ou emocionais,

discursos com testemunhas, argumentos de autoridade, uso da ironia ou demais táticas. “Se

as narrativas ficcionais são sonhos acordados da nossa civilização, a publicidade é uma das

formas ‘imaginárias’, por excelência, de textualizar o sonho na sociedade de consumo”

(CARRASCOZA, p.83, 2014).

Outro recurso muito recorrente no discurso publicitário é a utilização do modo

imperativo – mesmo que o método já não seja mais tão utilizado como em décadas anteriores.

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O imperativo acaba ecoando de forma individual a “você”, sem direito à replica. Um ponto

ressaltado é que mesmo dirigindo-se a “um” sujeito, acaba atingindo todo o público receptor

do veículo de mídia. Esse seria o caso da televisão aberta, por exemplo, que alcança todas as

regiões brasileiras, bem como todas as camadas sociais, conforme ilustrado a seguir.

Figura 1 – Montagem com os dados do perfil demográfico e da penetração da TV aberta

Fonte: Mídia Dados 20153

Carvalho (2001) salienta o uso do modo imperativo como “faça” e “beba” como

recorrente e reforça o uso de linguagens próprias, como a sedução e a persuasão, que seriam

um reforço ao individualismo.

Porém, como essas representações padrões acabam ficando corriqueiras e os

consumidores se acostumam com o universo dos anúncios, seus argumentos e apelos, algumas

marcas desafiam a retórica dominante, estabelecendo norma e transgressão ao mesmo tempo.

A marca italiana Diesel, por exemplo, rompe o comum ao apresentar uma campanha com o

3 Disponível em: <https://dados.media/#/app/dashboard/TVA_PENETRACAO_PERFIL_DEMOGRAFICO>

Acesso em: 17 nov.2015.

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tema Be Stupid4, mostrando os jovens, público principal, em situações ridículas

(CARRASCOZA, 2014). Na provocação, a marca coloca a “estupidez” como ligada à arte, ao

prazer desinteressado, e ao gozo máximo da vida.

Figura 2 – Montagem com peças5 da campanha Be Stupid, da marca Diesel

Fonte: Creative Ad Awards6

4 “Seja estúpido”. Tradução livre da autora.

5: “Espertos têm os planos, e estúpidos as histórias”. | “Espertos tiveram uma boa ideia, e essa ideia era

estúpida”. Tradução livre da autora. 6 Disponível em: <http://www.creativeadawards.com/be-stupid-17/> Acesso em: 15 nov. 2015.

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Também é recorrente a ideia de que o discurso publicitário é um dos gêneros

discursivos que mais se utiliza de estereótipos e a relação de tempo e espaço limitados seria

um dos grandes motivos justificados. Logo, a intenção seria enviar ao receptor uma

mensagem clara e objetiva, evitando todos os “ruídos” possíveis. O que acaba, porém,

perpetuando a mesma imagem, que pode não ser a mais correta, ou, ao menos, não a única.

Ao apresentar um médico como homem, de meia idade, com o estetoscópio e o jaleco,

não é preciso “perder tempo” explicando quem é a figura retratada e o anunciante já pode

falar sobre o seu negócio ou produto. (GASTALDO, 2010). Carrascoza (2014) sugere algo

similar e afirma que os estereótipos configuram ao discurso uma situação encarada como

“verdadeira” pelo público, impedindo o questionamento e a dúvida sobre o que é apresentado.

De acordo com o autor, em diversos anúncios, as personagens são planas, sem profundidade

psicológica e estereotipadas para permitir a rápida associação por parte do público e a

imediata compreensão da história. A forma é compreensível do ponto de vista mercadológico,

mas levanta questões sérias sobre perpetuar conceitos que agravam conceitos arbitrários e

conservadores.

Já Farias (1996) reforça o papel de autoridade e de formas arbitrárias do signo

linguístico para descrever a comunicação publicitária. E Carvalho (2001), respondendo à fama

de linguagem manipuladora, sugere que, na realidade, ocorre o uso de recursos

argumentativos e da linguagem coloquial e que, como nos demais gêneros de discurso

existentes, os objetivos da comunicação servem ao emissor.

Outra associação da qual a publicidade se vale constantemente é a juventude. Sabe-se

que os jovens são comumente retratados com idolatria na retórica publicitária e esse padrão

recorrente seria justificado pela grande importância à aprovação social e ao padrão estético

vigente - a chamada “cultura do consumo” - o que incentivaria as diversas individualidades a

partir da disponibilidade de múltiplos produtos (GASTALDO, 2010). Aqui, cabe desvincular

a imagem de “identidade” que é atrelado ao consumo de produtos:

Entendido o truque, a magia se esvai. Em tese, parece simples; não obstante, a

“magia” da propaganda é eficaz e poderosa, e a única maneira de viver em nossa

sociedade é consumindo produtos industriais, as mercadorias, ou seja, entrando de

corpo inteiro no circuito de produção e consumo. A diferença possível reside entre

participar de “corpo inteiro” ou “de corpo e alma” (GASTALDO, 2010, 106).

A mensagem publicitária faria uso, ao mesmo tempo, do real e do sonho. Maffesoli

(2007) vê no mundo representando a dificuldade em separar com certeza o verdadeiro do

falso, e sugere que se considere o conhecimento de mundo como uma mistura de lógica e

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mitologia. Carvalho (2001) fala da publicidade como uma beleza “perfeita e não-perecível”

(p.11). O autor também acredita que a publicidade utiliza de símbolos e do discurso para falar

coisas “extraordinárias” de produtos “banais”. Segundo ele:

Toda a estrutura publicitária sustenta uma argumentação icônico-linguística que leva

o consumidor a convencer-se consciente ou inconscientemente. Tem a forma de

diálogo, mas produz uma relação assimétrica, na qual o emissor, embora use o

imperativo, transmite uma expressão alheia a si própria. O verdadeiro emissor

permanece ausente do circuito da fala; o receptor, contudo, é atingido pela atenção

desse emissor em relação ao objeto (CARVALHO, 2001, p.13).

Carvalho (2001) considera ainda a organização diferenciada das mensagens

publicitárias, com valores, mitos e ideias, utilizando os recursos fonéticos (sons

característicos, ruídos e motivação sonora), léxico-semânticos (clichês, criação de novos

termos, provérbios, construção e desconstrução de palavras) e morfossintáticos (flexões e

grafias distintas das originais e sintaxe não-linear). O autor sugere uma análise crítica ao

afirmar quer a publicidade serve como controle social, e utiliza simulações de igualdade, além

de substituir os indicadores de autoridade pela linguagem da sedução.

Fato é que o discurso publicitário contém características próprias e peculiares e as

imagens acabam representando valores e comportamento das pessoas ou grupos que seriam o

público-alvo. Hoje, a publicidade se baseia mais em apresentar ao consumidor representações

simbólicas que gerem identificação do que simplesmente convençam. Dessa forma, seria

utilizada muito mais na construção de sonhos do que propriamente de informação.

Lipovetsky (2009) acredita que a publicidade deve primar pelo simples. Mesmo assim,

ao citar o audiovisual, acredita que a era da multiplexidade chegou, com um dilúvio de

imagens, o ritmo cada vez mais acelerado, montagem compacta e efeitos especiais. Já

segundo, Vieira (2008):

A publicidade não complementa, não remenda (grifo do autor), não agrega valor ao

produto ou ao serviço anunciado. A publicidade não faz nada sozinha e só funciona

quando tem como missão enaltecer qualidades reais. O sucesso da publicidade é

absolutamente dependente da satisfação do consumidor (p.139).

É também relevante citar o papel ideológico que o discurso publicitário carrega

consigo. Para fins de melhor compreensão, Gastaldo (p. 106) utiliza o termo ideologia como

“sistemas discursivos que os diferentes grupos sociais, em constante luta no campo social,

utilizam visando a definição ‘legítima’ da realidade e a ‘naturalização’ de seus pressupostos”.

O que não nega que exista uma ideologia que predomine, e, sim, que ela não é definitiva e

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algo imutável, mas que está combinada no campo social e, portanto, associada à dinâmica

social. O autor salienta ainda que não coloca a ideologia a serviço de uma classe dita

“dominante”. Considera que existam, de fato, algumas ideologias que legitimem as posições

dominantes, mas que a visibilidade na mídia em questões como o feminismo e a luta

igualitária contra a dominação masculina é um indicativo que nada é definitivo e que novos

significados podem ser articulados com o tempo.

Por estar tão perto das representações sociais, muitas vezes a publicidade condensa e

antecipa diversas tendências de comportamento e cultura. Novamente, deve-se ressaltar que

além desses elementos contemporâneos, o discurso está impregnado de ideologia.

O universo das imagens publicitária, assim, pode ser uma janela reveladora

que se abre sobre uma espécie de “mundo das ideias” (parafraseando Platão),

ou, quem sabe, um “melhor dos mundos” como talvez acreditaria o

“Cândido” de Voltaire, construído com um somatório de símbolos dos

desejos da sociedade que o engendrou” (GASTALDO, 2010, p. 100).

Nesse sentido, a publicidade não determinaria a hegemonia no campo social, mesmo

que colaborasse. Logo, o discurso publicitário faria apenas referências ao que a sociedade já

entende como consenso – não descartando que isso manteria um caráter conservador.

Segundo Gastaldo (2010, p. 108) na publicidade “[...] ousa-se tudo, menos perder espaço no

mercado por um anúncio equivocado”. O autor entende que, por esse motivo, anúncios não

são revolucionários e, quando chocam, apenas é porque alcançam outros públicos que não

aqueles a que foram dirigidos Quando os grupos minoritários passam a ganhar destaque no

mercado, o discurso também vai ao encontro dele, tornando-os “públicos-alvo”. Com as

conquistas das mulheres, por exemplo, as representações femininas ganharam novos

significados, mesmo que ainda exista uma série de padrões estéticos e de postura, como ser

“magra e bonita” (GASTALDO, 2010, p.109).

Para confirmar como algumas situações ainda estão estereotipadas, Carvalho (2001)

aborda o modo com que a sociedade de consumo identifica e reforça o papel da mulher como

a sustentação da estrutura familiar. Além de continuar sendo a que desempenha o papel da

família e da casa, o discurso se dirige a uma mulher-consumidora, tanto de perfumes e

produtos que a deixem bela, quanto aos de limpeza e que sirvam para “proteger” o lar. Além

da beleza, a necessidade em se manter jovem é recorrente no discurso e nas imagens

publicitárias.

Ao fazer uma retrospectiva com foco nesta questão de gênero, percebe-se uma

mudança considerada positiva por abordar mais perspectivas e lutar por uma igualdade de

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reconhecimento da mulher, mesmo que outras, ainda, mereçam reflexão. De acordo com

Carrascoza (2014), na criação publicitária da década de 1920, o lugar da mulher se reflete

com ênfase na família. Representada como a mãe e dona de casa, em diferentes ocasiões do

cotidiano, a mulher aparece cozinhando, lavando, limpando, reunida com as amigas, em

passeios com a família, mas raramente exercendo algum papel de destaque frente ao homem.

Nos anos 1960, a mulher se torna porta-voz de um estilo de vida, manifestado nas vestes, no

cabelo e na expressão do corpo – os produtos precisam ter seus usos explicados. A partir de

1990, a publicidade brasileira começa a segmentar os públicos e ocorre uma diversificação

nas criações, muito por causa da globalização e das novas exigências dos consumidores.

Marcas como O Boticário, que entre 2004/2005 divulgou uma linha de maquiagem para pele

negra – até então quase inexistente no país, e Dove, que exaltou diversos tipos de corpos e

“belezas” femininas, quebraram paradigmas em solo nacional - mesmo que o autor faça a

ressalva que o motivo foi muito mais a lógica de mercado do que a de transformação social.

Figura 3 - Anúncio da Campanha Dove - Real Beleza, de 2004

Fonte: Site da Unilever7

No que diz respeito às diversidades nos anúncios, Trindade e Acevedo (2010) debatem

a baixa representação do negro em anúncios. Os autores afirmam que, embora os índices

tenham aumentado, a participação ainda não atinge 10%”.

Logo, entende-se que o discurso é uma forma de “agir” social, que carrega consigo

uma série de símbolos e representações. Assim, a prática discursiva é extremamente

7 Disponível em: <http://www.unilever.com.br> Acesso em: 15 nov.2015

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importante na mudança de conceitos antigos e oportuniza a transformação pelo caráter de

desconstrução, tanto social quanto cultural, que possui. O discurso está intimamente ligado ao

contexto cultural e, desta forma, tem papel importantíssimo ao reproduzir, manter ou

transformar as representações e os estereótipos que as pessoas carregam consigo. O processo

ocorre paulatinamente, no cotidiano.

Leite (2009) sugere que o discurso dessa nova publicidade, contrária aos padrões

conservadores e já estabelecidos, possibilitaria mais visibilidade para indivíduos e grupos que

são considerados minoritários, quebrando as associações e crenças negativas que as pessoas

têm deles. Na visão dele, o caráter criativo que a publicidade assume é uma ferramenta de

produção de sentido muito importante e a questão não seria desconsiderar o senso comum,

mas apresentar provocações que possibilitem análises mais críticas de diversas situações que

normalmente apenas mantém as crenças já existentes - ou escolhem se isentar.

Com a ideia de que os estereótipos agregam diversos elementos numa mesma imagem,

a publicidade pode tanto reforçá-los, junto com as possíveis atitudes preconceituosas vindas

deles, como trazer à tona outras versões da realidade. A luta seria pelo direito à manifestação

das múltiplas identidades e, em uma análise mercadológica, entender que as minorias também

configuram um público a ser alcançado.

3.2 O MELHOR DOS MUNDOS

Durante muito tempo, a publicidade usou apenas de aspectos ideais para retratar o

cotidiano das pessoas. Supervalorizando ações diárias, o universo dos anúncios publicitários

esteve repleto de pessoas felizes, bonitas, bem humoradas e detentoras de vidas bem

sucedidas. Com o passar do tempo, algumas marcas têm seguido movimentos contrários, de

encontro às novas aspirações que tomam forma na sociedade, mesmo o imaginário e os

padrões vigentes ainda estejam presentes.

Hoje, mais do que nunca, a publicidade deve ser encarada muito além de uma simples

ferramenta de mercado, mas considerando toda a perspectiva social, cultural e simbólica

presente no discurso. Há muito, os anúncios não vendem apenas um produto, mas um

contexto de estilo de vida, padrões de consumo, representações sociais e, muitas vezes,

estereótipos e preconceitos, que acabam sendo reforçados, consolidando a visão hegemônica

da “realidade”. A veiculação das representações sociais acaba produzindo modelos e até

“identidades”, com base no consumo. Mesmo que as pessoas saibam que a vida “real” não é

perfeita, é inegável a força simbólica que a publicidade traz consigo.

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A italiana Benetton foi uma das primeiras marcas a utilizar um conceito mais

transgressor, com a assinatura do fotógrafo Oliveiro Toscani, que depois se mostrou um

crítico sobre o modo com a publicidade era feita:

[...] no melhor dos mundos, o paraíso sobre a Terra, o reino da felicidade, do êxito

assegurado e da juventude eternal. Nesta região mágica de céu sempre azul,

nenhuma poluição macula o verde viçoso das folhagens, nenhuma marquinha

estraga a pele vivamente rosada das meninas, nenhum arranhão desfigura a lataria

rebrilhante dos veículos (TOSCANI, 1996, p.13).

Gastaldo (2010) explica a relação ao também se referir à Publicidade como o “melhor

dos mundos” (p.93) com a “lógica do Papai Noel” - também citada por Carvalho (2001) e

Carrascoza (2014) - e nomeada assim por Jean Baudrillard. De acordo com esse fundamento,

as pessoas teriam com a publicidade o mesmo comportamento que as crianças possuem com o

Papai Noel: não acreditariam, mas conservariam a crença, justificando o sucesso de produtos

e serviços que “vendem” a perfeição. Carrascoza (2014) opta por utilizar a expressão

“mundos possíveis”.

Uma associação pode ser feita ao conceito de “realidade irreal ou transrealidade”

apresentado por Lipovetsky (2015, p.307). Ao exemplificar, traz o fato da Disneylândia de

Paris, fundada em 1992, ter-se tornando o primeiro destino turístico europeu. A conclusão

talvez reafirme ainda mais, em pleno ano de 2015, como os consumidores buscam experiência

onde o clichê de um mundo sem conflitos (ou que se resolvam ao final) e personagens de

contos e lendas povoa o imaginário.

A isso se une fortemente o conceito de kitsch8. Dos inúmeros souvenirs e cartões

postais que tomam os lugares turísticos ao redor do mundo, às bijuterias, extensões na moda,

na arte moderna, nas camisetas e em filmes, o consumo se reflete nas questões hedonistas

comentadas anteriormente: muito mais do que assegurar condição social ou status, como era

antigamente, a finalidade ao comprar esses objetos é experimentar todo o prazer disponível de

forma imediata, sentir-se bem sem alguma finalidade cultural.

Refletindo a onda individual, de direito ao prazer e de responsabilidade:

8 De acordo com Moles (1994), um dos pioneiros do conceito, a palavra alemã, o kitsch está ligado à arte de

maneira indissociável, assim como o falso liga-se ao autêntico. O autor definiu o tema como “arte da felicidade”

justamente por representar os valores da sociedade burguesa em ascensão durante a Revolução Industrial. Na

estética, o termo é usado para categorizar objetos de valor distorcido ou exagerado, que são considerados

inferiores à sua cópia existente, além de ter apelo popular e ser comumente vinculado ao “mau gosto”.

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[...] o universo mashmallow do kitsch traz a descontração do momento guloso; ele

alivia como uma válvula de escape; tem a leveza do fútil, o sabor do prazer, o gosto

da doçura ante o peso o e amargor do cotidiano. Ele apela, para tanto, a formas

estéticas: a do conto de fadas e do desenho naïf, da mistura de cores e do tecnicolor,

dos efeitos do barroco e das proliferações do rococó. Ele se degusta no primeiro

grau, num abandono voluptuoso e maravilhado que nos faz descansar do peso da

nossa liberdade subjetiva (LIPOVETSKY, 2015, p311).

Sobre esse universo mágico e “perfeito” que circunda a publicidade, Goffman (1985)

também apresenta a crença de que o verdadeiro segredo é que, na verdade, não há mistério. A

ressalva é justamente a associação, visto que “[...] o problema real consiste em evitar que o

público também aprenda isso” (p. 69).

Inegavelmente, ao adotar esse caráter de representação tanto de idealização como de

utilizar formas sociais mais aceitas e enraizadas, o discurso acaba sendo alvo de críticas

constantes, bem como os publicitários, que são vistos como manipuladores e alienadores.

Nesse sentido, Gastaldo (2010) sugere que nem o profissional é um manipulador de mentes,

nem o consumidor é um fantoche completamente suscetível, mas que é necessário entender o

contexto social onde todos estão inclusos.

Sob o mesmo prisma, mas com a intenção de confrontar essa situação, Leite (2009)

aborda os efeitos do discurso publicitário na (des)construção dos estereótipos sociais e, em

sua análise, propõe que o discurso é o responsável por produzir sentido para a comunicação

publicitária. Ao citar que a publicidade se apropria de algumas realidades para alimentar a

linha criativa de seus anúncios, o discurso colabora com a ordem social e pode abordar – de

forma indireta e sutil - questões importantes relacionadas às minorias e grupos estigmatizados,

como as mulheres, os negros e os homossexuais, por exemplo.

3.3 CONSUMO, FELICIDADE E PUBLICIDADE EMOCIONAL

Mesmo tendo utilizado sempre recursos estéticos, agora a Publicidade faz disso o seu

ponto máximo. Antes concentrada em produtos, hoje se baseia nas emoções e afetos. As

marcas precisam criar vínculos emocionais, significados expressivos e reais nas pessoas. O

poder reside e deverá sempre residir no consumidor, mas as aspirações desse novo

consumidor também ainda não são claras.

Intrínseca no sistema econômico, aqui abordado com a base do que Lipovetsky (2015)

chama de “capitalismo artista” (p.15), a Publicidade repetitiva se transforma em inovação e

criatividade constante. A nova forma alinha fortemente alguns princípios da moda, como

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mudança, fantasia e sedução, e passa a se relacionar com um consumidor emocional e

reflexivo. Chamada de hiperconsumo, a época atual seria o “triunfo da marca como moda e

como mundo” (p.97).

Maffesoli (1995) já assinalava para a importância em se considerar o papel que as

imagens possuem na vida social e que elas despertam mais interesse pela emoção que faz

partilhar com os outros do que pela mensagem em si. Com base em seus sentidos históricos,

as imagens possuem grande poder de aliar o “bem e o mal” e de carregar consigo uma grande

carga de sentido e valores que despertam nas pessoas sentimentos de aprovação e

desaprovação. As marcas são elaboradas em vista disso e com todo o sentido transcendental

que pretendem despertar.

Independentes de serem avaliados como paixões, crenças, ilusões, algumas

representações coletivas desempenham um papel simbólico inegável. “A nostalgia, o ideal ou

a utopia possuem uma eficácia que a geopolítica racional deveria reconhecer” (MAFFESOLI,

1995, p.117).

As imagens não são necessariamente sinônimos dos objetos, mas, na maioria das

vezes, se caracterizam por meio deles. Porém, a questão é o sentido abrangente que esse

objeto terá na interpretação das pessoas, o poder que possuirá e a lembrança de imagem que

ele suscitará. Essa foi a missão observada com o passar dos anos na publicidade: carregar os

objetos concretos de poder imaterial e simbólico.

Partindo do princípio de que todas as pessoas consomem, estudar as aspirações que

envolvem o processo passa a ser fundamental. Lipovetsky (2007) faz o caminho da evolução

da sociedade de consumo, desde a criação das marcas para diferenciar os produtos no início

da produção de massa, depois com o apelo de destaque social e status, o que ele chama de

“consumo ostentatório” (p.38) até a fase da experiência, do emocional e do sensorial. Essa,

conforme citado anteriormente, seria a fase do hiperconsumo. O consumo de bens que antes

serviam como status e identidade econômica e social, agora fazem parte de satisfações

emocionais e corporais. Existe um movimento de individualização dos gostos,

comportamentos e da identidade cultural e singular de atores, ainda que por meio dos

produtos mais banalizados.

Com um viés crítico e social, Bourdieu (1979, apud BACCEGA Org., 2008) se baseia

na questão inicial de que gostar ou não gostar de algo é importante na hora de analisar a

relação de consumo. Para o autor, além de possuir uma origem social, o gosto discrimina e

hierarquiza.

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Longe de ser evidente ou natural, Bourdieu defende que o gosto não é neutro e alça

poucos ao topo das camadas sociais, enquanto coloca outros às margens da sociedade,

caracterizando assim um instrumento de poder. O autor afirma que, por se tratar de gostos

decididos pelos aspectos sociais, não existe um que seja mais legítimo que o outro, mas que as

circunstâncias são desiguais, visto que os conceitos mais aceitos são travados por agentes

dominantes em espaços hierarquicamente estruturados. Assim, ele coloca o que chama de

sociologia do gosto como intrínseco à sua teoria de dominação - e o consumo como

consequência disso tudo.

Esses gostos classificam socialmente e são, por consequência, objetos de distinção.

Definições como “mau gosto” ou “brega” surgem a partir disso. Ao exemplificar, pode-se

considerar o que é tido como “gostos populares” e outros, ditos “refinados”. Escutar

determinados gêneros musicais, frequentar certos lugares, utilizar certos trejeitos linguísticos

e diversos outros aspectos são utilizados por todos, inclusive pela Publicidade, para definir

públicos-alvo. Quando a publicidade trabalha o luxo, o popular e estilos de vida é

completamente baseada no que entende pelo “gosto” e aspirações de seus clientes.

Vásquez (2007) aborda a publicidade emocional como forma de “conquistar” os

consumidores. Por meio de relatos que se inspiram em mitos, contos e lendas e partindo do

pressuposto de que a concorrência entre marcas na atualidade é extremamente acirrada - e

como forma de diferenciação - existe o despertar para componentes afetivos. A atenção dos

consumidores não seria definida por meio de argumentos racionais, mas de imagens que

emocionem: quanto mais profunda a emoção, mais forte será a conexão neurológica

adquirida.

A publicidade emocional, entendida como a persuasão direcionada aos sentimentos do

público, se concentra, antes, nos desejos e anseios profundos de forma simbólica ou real. As

marcas devem oferecer uma experiência única por meio de vínculos emocionais. Os

consumidores esperam que as marcas o conheçam individualmente e entendam suas

necessidades e orientações culturais, visto que todas as pessoas projetam valores emocionais

no que as rodeia.

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Assim, da mesma forma que a literatura encontra espaço para o imaginário, a

publicidade inunda o cotidiano com um oceano de histórias – hoje, na Publicidade, essa

técnica é conhecida como storytelling 9e amplamente utilizadas pelas grandes marcas, em

todos os segmentos. Para Roberts (2004), “[...] uma imagem pode valer mil palavras, mas

histórias maravilhosas não ficam atrás” (p.89).

O universo fictício, as piadas, causos, devaneios: uma boa história é aquela que coloca

o consumidor em posição de reconhecimento e identificação. A atmosfera e o desejo se unem

com os complexos procedimentos técnicos em comerciais como Think diferente (Apple),

Impossible is nothing (Adidas) e Be yourself (Calvin Klein).

Roberts (2004) não só percebe esses fatores de sentimento que estão ligados às marcas

como fundamentais, mas sugere o conceito de lovemarks nas marcas que são donas de um

apelo público enorme.

As lovemarks deste novo século serão as marcas e as empresas que criarem

conexões emocionais genuínas com os consumidores e redes com as quais se

relacionam. Isso significa tornar-se próximo e pessoal. E ninguém vai deixar você se

aproximar o suficiente para tocá-lo, a menos que respeite o que você faz ou quem

você é (ROBERTS, 2004, p.60, grifo do autor).

O termo não considera apenas objetos, mas qualquer coisa: desde um país e um carro

até uma organização. Algumas das lovemarks apresentadas são: Walt Disney, Guiness, Audi,

O Senhor dos Anéis, Harley – Davidson, iPod, Coca-Cola, Virgin Atlantic, Barbie, Absolut,

Havaianas, Tiffany’s e Toyota. Outros exemplos são os símbolos como o swoosh da Nike, a

cruz da Cruz Vermelha Internacional, a gatinha japonesa que representa a Hello Kitty, e a

figura de Nelson Mandela, por exemplo. O autor define três palavras essenciais que fazem as

marcas adquirirem essa nova conceituação: mistério (que envolveria grandes histórias,

exploração de sonhos, mitos e ícones e inspiração), sensualidade (combinação dos sentidos

humanos) e intimidade (compromisso, empatia e paixão).

Assim, a publicidade passa, nessa nova fase, a vender conceitos e valores, baseando-se

na emoção e com foco muito mais no estilo de vida associado à marca do que ao produto em

si. Todos aspiram por melhores “condições de consumo”. A marca se torna uma diferenciação

da família e dos amigos, em busca de uma identidade própria e única, mas ainda existe a

9 De acordo com o dicionário de Cambridge, o termo significa “a arte de contar histórias”. Disponível em:

<http://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/storytelling> Acesso em: 26 nov. 2015. De acordo com

Kelley e Littman (2007), o poder de uma “boa história” iniciou ainda ao redor da fogueira, na era pré-

histórica. Ainda segundo os autores, as histórias são muito mais convincentes que os fatos, que os relatórios e

que as análises, pois essas narrativas criam vínculos emocionais: as histórias convertem pessoas reais em heróis

mitológicos. A conexão emocional é fundamental para que o storytelling conecte o consumidor às marcas.

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ambiguidade ao reforçar que essa mesma individualidade é um desejo de integração e de

afirmação perante os outros. Há um cuidado especial com a saúde e com o corpo. Nesse novo

modelo de consumo, as pessoas desejam saber as novidades médicas, controlar seu humor, e

suas experiências cotidianas. Existe uma preocupação no consumo como viagem e

divertimento, como lazer, tanto que o turismo se tornou a primeira indústria mundial. Isso

trouxe a todas as classes o “direito” às marcas de luxo, democratizando o conforto e a

pretender o belo (LIPOVESTKY, 2015, p.62).

Outro ponto que se faz pertinente é o do consumo aliado ao tempo. Quando acumular

coisas não é mais prioridade, o consumo passa a ter relação com a juventude e com o tempo a

não ser desperdiçado. A importância do presente vivido e de consumo de produtos com

estampas ou ícones infantis estamparem e figurarem o imaginário de diversos adultos também

faz relação ao prolongamento da infância e da adolescência, o uso de sensações nostálgicas

que remetessem a boas sensações passadas. O questionamento figuraria no quanto isso

acarreta o excesso de todas as possibilidades, a falta de qualquer preocupação e um esforço

mínimo.

Nesse sentido, Lipovetsky (2007) afirma que o hiperconsumo traria ao indivíduo “[...]

o gozo da irresponsabilidade e da superficialidade do jogo.” (p. 74 -75). O desejo agora é

“jogar com o público”, fazer com que ele compartilhe valores e cumplicidade. Antes, a

publicidade “educava” o cliente, agora o reflete.

Existe uma mitologia que compreender a felicidade privada. Parte-se de promessas de

felicidade individual, do gozo do agora e de prazeres imediatos. Se vive para si e não há a

necessidade de adiamento.

Toda a vida das sociedades superdesenvolvidas se apresenta como uma imensa

acumulação dos signos do prazer e da felicidade. Vitrines rutilantes de mercadorias

nas publicidades resplandecentes de sorriso, do sol das praias nos corpos de sonho,

de férias com divertimentos midiáticos, é sob os traços de um hedonismo radiante

que se mostram as sociedades opulentas. Por toda parte ressoam os hinos ao maior

bem-estar, tudo se vende em promessas de volúpia, tudo se oferece como de

primeira qualidade e com música ambiente difundindo um imaginário de terra da

abundância. Nesse jardim de delícias, o bem-estar tornou-se Deus, o consumo, seu

templo, o corpo, seu livro sagrado (LIPOVETSKY, 2007, p.153).

A felicidade sempre foi cultuada como objetivo a ser alcançado. Desde os tempos mais

remotos, o ser humano busca sensações, pessoas, experiências e modos de vida que tragam a

sensação de prazer, plenitude e os demais sentimentos que se aliam ao temo. Hoje, a

felicidade é vista como presente imediato, como uma sensação eufórica e instantânea.

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Lipovetsky (2007) afirma que tudo, na sociedade do hiperconsumo, é baseado na

busca pela felicidade. Seja a produção de bens, os serviços, a educação ou qualquer ordem

que a sociedade estabeleça. Ao mesmo tempo, parece que a felicidade virou um fardo. Algo

que precisa ser alcançado a todo custa: pessoas tristes e problemas não devem fazer parte do

cotidiano e existe certa culpabilidade na infelicidade. Essa nova sociedade, segundo o autor,

deixa crescer mais as insatisfações que a própria felicidade. As decepções não são supridas,

porque as expectativas estão sempre crescendo. Logo, fica inevitável que ocorra o conflito

entre prazer e conforto, que acaba gerando acomodação e, depois, tédio e frustração e,

finalmente, um ciclo de decepções.

O lado positivo é que essa nova fase também traz questionamentos relativamente

novos. Se, por um lado, preocupa o desgaste ambiental que o consumo gera e o quanto os

recursos naturais estarão escassos nesse ritmo frenético, ocorre, hoje, uma exigência de

responsabilidade e reflexão por parte dos consumidores que antes não existia. Paga-se mais

desde que a procedência seja anunciada, que o meio de produção seja mais consciente: há

maior preocupação com produtos que respeitem o ambiente. O marketing de massa é

substituído por ações segmentadas e ampliando a cada instante as opções e escolhas. Porém,

ainda nesse sentido, Lipovetsky (2007) considera importante frisar que o chamado

“anticonsumidor” (p. 344) não é o contrário da sociedade de consumo, mas constitui um

grupo que tende a aumentar.

Mesmo aceitando as críticas feitas à sociedade consumista, e sabendo que os

indivíduos consomem três vezes mais energia do que na década de 1960, por exemplo, de

acordo com Lipovetsky (2007) [...]” não existe, por ora, solução alternativa à sociedade do

hiperconsumo” (p.343). Até porque, não é tão simples diferenciar o essencial do supérfluo. O

autor questiona se uma vida mais “racional”, sem “banalidades” faria as pessoas serem mais

felizes, de fato. Segundo ele “uma parte de nossas felicidades é feita de prazeres ‘inúteis’, de

jogo, de superficialidade, de aparências, de facilidades mais ou menos insignificantes”

(p.347). Aqui, pode-se associar o pensamento de Maffesoli (2007) que, ao falar sobre

ideologia, diz que mesmo que a “arte de pensar” reserve sentimentos nobres e se aprofunde

ante a julgamentos superficiais, o senso comum, a intuição popular e o discurso do cotidiano

(como conversas em bares e botequins) são necessários a um equilíbrio.

Logo, por mais problemas que existam, a sociedade do hiperconsumo considera o ser

humano com suas contradições e futilidades, sem analisar apenas o lado “nobre” do ser – mas

sim as diversas facetas, mais reais e que fazem parte do cotidiano. Numa sociedade que deseja

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ser “livre”, a gama imensa de produtos cumpre sua função, mesmo com imperfeições, de

apresentar múltiplas opções.

Outro questionamento levantado nessa nova era de publicidade diz respeito ao

consumidor ser insatisfeito com o que os outros têm. Não é mais necessária a melhor marca

para trocar de carro, nem o modelo para marido: basta encontrar significado. A satisfação, de

modo geral, está mais associada à novidade do que à qualidade. Além disso, há uma

tendência em ser “transparente”, em expressar a opinião, em dizer tudo, mostrar tudo e ver

tudo.

Novas tendências relacionadas surgem, algumas aliam o sentimento de felicidade mais

à espiritualidade, à busca do equilíbrio e aos desejos sem restrição, bem mais do que às

imposições familiares e sociais, por exemplo. Mesmo com essa busca tão forte pelo mais

“profundo”, os indivíduos desejam alcançar rápido, numa era que preza o instantâneo.

Ninguém melhor que Rousseau soube pôr em evidência os dilemas insuperáveis da

questão da felicidade. Ser incompleto, incapaz de bastar-se por si só, o ser humano

tem necessidade de outrem para conhecer a felicidade. Mas, porque esta é

inseparável da relação com o outro, o indivíduo está inevitavelmente destinado às

decepções e mágoas da vida. Dependente dos outros para ser plenamente feliz,

minha felicidade é necessariamente fugida e instável. Sem o outro, não sou nada,

com o outro estou à mercê dele: a felicidade que o homem pode ter acesso não pode

ser mais que uma ‘frágil felicidade’. A lição é luminosa: porque não podemos ser

felizes sozinhos, não somos senhores da felicidade. Elas nos ‘acontece’ ou nos

abandona, em grande parte, sem nós, é por excelência que não possuímos. Forte é a

influência do outro sobre nossa felicidade, fraco nosso poder de controlar-lhe o

curso. Efêmera, infelizmente, é a experiência da felicidade (LIPOVETSKY, 2007,

p.353).

3.4 A ESTÉTICA EM TUDO

Essa nova fase da economia e da publicidade reforça o consumo de arte e de beleza e

de experiências estéticas em todas as dimensões. Lipovetsky (2015) reforça o quanto a moda

se mesclou a todos os produtos, serviços e conceitos modernos, fornecendo um caráter

estético a praticamente tudo: seja na publicidade, no design, nos gostos, no cinema, na própria

arte e, claro, nas novas relações.

Durante muitos anos, o conceito de arte esteve restrito aos renomados artistas, em

grande parte pintores e escultores europeus, e ao que os intelectuais entendiam pelo termo.

Apesar de ainda existir essa conotação, percebe-se, hoje, um movimento para democratizar e

tornar o conceito mais amplo e discutido. O que se reflete diretamente no comportamento dos

consumidores e em suas atividades.

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Carrascoza (2014) aborda a relação que a publicidade teria com a arte na forma como

foi e é feita e cita poetas famosos como o português Fernando Pessoa, que emprestou seu

talento à Publicidade, por exemplo. A leitura de um romance se confunde com a atenção na

novela e nos próprios comerciais e “[...] comercial funciona como um sonho, espaço (e

tempo) onde a lógica da vida está suspensa” (CARRASCOZA, 2014, p.81). Como a poesia, a

publicidade causa encantamento estético e é capaz de transformar o cotidiano e o

desconhecido. As metáforas levam o consumidor ao prazer estético.

Como o ato de consumir é muito mais amplo que comprar carros ou roupas, Rocha

(2008) lembra que livros e conteúdos também fazem parte do círculo. A autora ainda ressalta

que se consumo é cultura ele também está na base das desigualdades e na possibilidade de

resolvê-las. Inclusive porque existe mais consumo de informação e, assim, existem novas

atuações, de novos atores sociais que debatem o consumo e as práticas que o envolvem.

Castro (2008) também sinaliza o quanto o consumo atual tem a ver com a indústria

cultural10

, voltada à informação e ao entretenimento. Mesmo que ainda existam padrões,

algumas marcas consolidadas, como Benetton, Calvin Klein, Versace e Playstation desafiaram

os padrões ainda na década de 1990. Isso deixa claro as mudanças no comportamento de

consumo e suas implicações na cultura. O autor também reforça que foi a partir desse período,

com a formação de grandes conglomerados midiáticos - e do mercado publicitário mundial –

que consolidou-se uma publicidade produzida e veiculada mundialmente, com um público

também global.

Baccega (Org., 2008) acredita que o estudo do consumo é mais complexo do que se

supõe. Não podendo ser reduzido apenas a vontades individuais, mantém sua natureza social,

é governando por representações coletivas, e por uma ordem cultural:

O consumo não pode ser explicado, na extensão de seu impacto social, através de

visões moralizadoras, mercadológicas ou reducionistas. Seu lugar em nossas vidas é

proeminente como estruturador de valores e práticas que regulam relações sociais,

definem mapas culturais e constroem identidades. O consumo é um fenômeno denso

que envolve diferentes dimensões da experiência contemporânea. A cultura, tal

como podemos reconhecê-la no cotidiano, passa pelo fenômeno do consumo

(BACCEGA, Org, 2008, p.187.

Lipovetsky (2007) sugere que o ciclo se encerrará quando a felicidade não estará mais

ligada à renovação sem limite dos objetos e dos lazeres, visto que as demandas do futuro

10

De acordo com Wolf (2002), no modelo da indústria cultural, o indivíduo deixa de decidir de forma autônoma,

porque os produtos oferecidos já forma previamente pensados para o mercado. O termo foi utilizado pela

primeira vez por Horkheimer e Adorno, substituindo a expressão “cultura de massa”.

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residem justamente na invenção de novos modos de educação e de trabalho que permitam que

os indivíduos encontrem identidade e prazer em outros meios, que não apenas os do consumo:

A cada dia, a felicidade tem de ser reinventada e ninguém detém as chaves que

abrem as portas da Terra Prometida: sabemos apenas pilotar sem instrumentos e

retificar ponto por ponto, com mais ou menos sucesso. Lutamos por uma sociedade

e uma vida melhor, buscamos incansavelmente os caminhos da felicidade, mas o que

nos é mais precioso, a alegria de viver, como ignorar que sempre nos será dada por

acréscimo? (LIPOVESTKY, 2007, p.370).

A publicidade é, por vezes, criticada por utilizar a arte apenas como forma de ganhar

dinheiro, perdendo muito do conceito nato. Com uma qualidade artística inegável, passa-se a

falar da “arte publicitária”. Ao conquistar todos os setores do consumo, a arte não está mais só

na arte, mas preenche, também, o mundo mercantil.

Nesse sentido, Lipovetsky (2015) lembra que mesmo as aclamadas obras de arte

passavam por contratos mercantis e, hoje, o próprio cotidiano se artealiza. Assim:

[...] é necessário ampliar a noção de arte incluindo esses domínios considerados

“menores” do que são o design industrial, as artes decorativas, a moda, as músicas

de variedade, o rock, as imagens publicitárias, o cinema, as HQS. Elas constituem,

com as artes “nobres”, os diferentes “mundos da arte” do capitalismo artista

transestético (LIPOVETSKY, 2015, p. 77).

O cinema acaba sendo outro produto da era industrial. É uma arte técnica que se vale

do emocional e possui produção e distribuição comercial. Mesmo se dirigindo a um grande

público, o cinema sempre teve características estéticas, que passam do realismo ao

surrealismo, por exemplo, e que abordou todas as vanguardas e contraculturas, sendo reflexo

da sociedade em que os produtos são criados. A publicidade artista se vale da simplicidade, do

“menos é mais” e da clara visibilidade. Ela anda junto ao modelo de “mundo novo”.

Por era transestética, entende-se a estetização de todos os mercados de consumo, que,

com o capitalismo artista, multiplica estilos, tendências, espetáculos, locais de arte e que lança

novas modas o tempo todo. A arte e a criatividade se infiltram nas indústrias, no comércio e

na vida comum (LIPOVETSKY; SERROY, 2015). Contrariando a opinião de que a

publicidade moderna perdeu a força do imaginário, pode-se dizer que ela passou apenas a

poetizar os bens de consumo de massa:

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[...] o desenvolvimento da publicidade moderna não traduz em absoluto um

empobrecimento do imaginário, mas o advento de mercadorias mais impregnadas de

dimensões simbólicas, de significados imaginários multiplicados; ela é menos um

sinal de déficit de sentidos do que início da ludicização e da estetização do discurso

comercial (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p.219).

Se Lipovetsky (2015) acredita numa era hipermoderna, pensa que a Publicidade

também se diferencia, num mercado altamente competitivo, por meio do hiperespetáculo e do

que chama de “estetização da vida cotidiana” (p.14). Dessa forma, as ações diárias da

sociedade atual seriam baseadas num capitalismo que prima pela estética e faz relação direta

com a publicidade. O autor, que assina a obra com o crítico de moda Jean Serroy, afirma que

a cultura e a produção industrial estão, ao contrário do que acontecia anteriormente, bastante

relacionadas:

[...] estamos no momento em que os sistemas de produção, de distribuição e de

consumo são impregnados, penetrados, remodelados por operações de natureza

fundamentalmente estética. O estilo, a beleza, a mobilização dos gostos e das

sensibilidades impõem cada dia mais como imperativos estratégicos das marcas: é

um modo de produção estético que define o capitalismo de hiperconsumo

(LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p.13).

Nesse sentido, os autores apontam a mudança que houve no capitalismo, que afeta

diretamente o dia a dia de todos. Nesse novo tempo, o do capitalismo artista, todas as

atividades da vida passam pela arte e comportam dimensões estéticas – apesar de reforçarem

que essa arte não é utilizada para libertar ou com propostas morais, mas, sim, mercantis.

Sugere-se que a beleza não “salvará” o mundo, porque apesar das imagens difundidas serem

cercadas pelo belo, a realidade não se apresenta dessa forma e essas condições não

aproximam as pessoas de mais justiça e felicidade, por exemplo.

Estamos fadados a uma existência cada vez mais reflexiva, problemática, conflitual

em todas as dimensões, sejam íntimas, familiares ou profissionais. O ideal estético

que triunfa é o de uma vida feita de prazeres, de novas sensações, mas

simultaneamente temos de dar prova de excelência, de eficiência, de prudência. A

sensação de qualidade de vida parece recuar à medida que se intensificam os

imperativos de saúde, eficácia, mobilidade, rapidez, desempenho. A ética

hipermoderna se mostra impotente para criar uma existência reconciliada e

harmoniosa: nós a sonhamos voltada para a beleza, e ela é voltada para a competição

(LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p.33).

O capitalismo industrial teria sido substituído por esse, estético, e a Publicidade se

apropria dele ao se voltar quase que completamente à sedução por meio de emoções, sonhos e

sentimentos – sem nunca deixar de lado o seu caráter econômico de lucro, mas tocando no

sensível e no imaginário. Assim, o sistema econômico teria se tornado artista.

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No que diz respeito às tendências e ofertas globais, é importante salientar as

plataformas de vídeo e música, como You Tube, iTunes Store e Spotify, com um número

inédito de oferta, mas que resulta num sistema dito de diversidade homogênea, que repete a

diferença, os mesmos sucessos e os mesmos cantores. A moda se integra com a tecnologia e

as marcas se unem. Assim, vê-se o Fiat Gucci, a parceria da Armani com a Samsung, da Prada

com a LG e da Dolce & Gabbana com a Motorola ou, ainda, o Ipod sendo “vestido” com

capas da Dior. No setor esportivo o mesmo ocorre, com Stella McCartney assinando Adidas,

por exemplo.

A isso, os autores chamam de operações de “co-branding11

” (p.82) e são essas as

estratégias, com dimensões de sonho e estilo, que as marcas têm utilizado na atualidade

(LIPOVETSKY; SERROY; 2015).

Segunda The Innova database, todo ano 100 mil novos produtos aparecem no

mercado agroalimentar dos cinco continentes; e mais de oitocentos novos perfumes

são lançados no mercado mundial. A aceleração da obsolescência dos produtos é

observada em toda parte, um número enorme desses tem vida média que não

ultrapassa dois anos: os celulares não ficam mais de oito meses no mercado; dois

terços dos filmes ficam menos de dois meses em cartaz; mais de 50% dos perfumes

desaparecem logo no primeiro ano; a vida média de um livro na livraria é hoje de

pouco mais de três meses contra seis há uma geração. O imperativo do Novo,

exaltado de longa data pela moda e desde o fim do século XIX pelas vanguardas,

está hoje incorporado a um capitalismo que se tornou, com isso, artista. O

capitalismo transestético é aquele em que a produção é remodelada pelas lógicas-

moda do efêmero e da sedução, por um imperativo de renovação e de criatividade

perpétua (p80).

Figura 4 – Anúncio de cobranding da Adidas e da estilista Stella McCartney

Fonte: FIELD.io 12

11

Associação entre duas ou mais marcas distintas e reconhecidas no mercado, para se diferenciarem frente à

concorrência e oferecerem ao consumidor uma ação, produto ou serviço com maior valor agregado.

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Figura 5 – Anúncio de cobranding do Fiat Gucci

Fonte: Auto Evolution13

As marcas têm buscado surpreender, com grandes telas, intervenções urbanas, painéis,

animações e jogos de luz. Empresas de luxo, como Chanel e Dior, se valem de atores famosos

com superproduções hollywoodianas. Passando a usar recursos visuais muito parecidos ao do

cinema, a Publicidade prima por bons ângulos, montagem densa, efeitos especiais, jogo de

iluminação, com modos narrativos diversificados, elegantes e refinados. O consumidor tem,

nos últimos anos, alterado sua lista de gostos e modos de consumir. Nesse novo ato de

consumo estão no topo a paixão por viagens e turismo, a busca por locais de patrimônio e

paisagens, a decoração da casa e o aumento da captura de fotos e vídeos e de estar

acompanhado de música em todos os lugares:

[...] vivemos o tempo da explosão democrática das aspirações, das paixões e dos

comportamentos estéticos. Organizando uma economia em que a lógica estética

desempenha um papel fundamental, o capitalismo artista avançado produziu ao

mesmo um tempo um consumidor estético de massa (LIPOVETSKY, 2015, p.327).

12

Disponível em: <http://www.field.io/wp content/uploads/2015/01/Campaign-FIELD2.jpg> Acesso em: 15

nov.2015.

13 Disponível em: <http://www.autoevolution.com/news/fiat-500c-by-gucci-uk-pricing-announced-38446.html>

Acesso em: nov. 2015.

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Gasta-se menos no dia-a-dia para poder usar em lazer. Não se compra menos, mas se

pensa mais no que se está comprando, de modo geral. Assim, ganham destaque os produtos

orgânicos, as viagens low cost, com um consumidor que coleciona experiências e busca novas

sensações e emotividades. No modo de vestir, de comprar e de trabalhar, percebe-se a busca

pelos gostos individuais e desejos de cada um. Assim, individualização, dissolução das

culturas de classe e estetização do consumo andam juntas. As classes desfavorecidas entram

em choque com o universo de eletrônicos caros e suas playlists, do culto à moda e seus looks

às marcas de luxo. A necessidade passa a ser substituída pelos prazeres estéticos, que

dominam a comunicação e o universo globalizado.

Esse novo consumidor parece querer ressignificar o próprio conceito de cotidiano,

abordado inicialmente neste trabalho. Cada pequena ação diária é pensada para fazer sentido e

ser grande por si mesma. Com a ideia de prazer imediato, busca-se grandes realizações todos

os dias, mesmo que isso implique em alimentações rápidas, em mais contato com a tela do

que com rostos reais e acabe com os prazeres ociosos.

O turismo se torna um grande exemplo de consumo estético porque se exclui quase

totalmente qualquer pretensão utilitária. A orientação fica centrada em novas descobertas, na

beleza dos lugares e nas sensações provocadas. Do outro lado, esse turista sabe pouco dos

muitos museus que visita e negligencia o cuidado com o patrimônio, por exemplo.

O culto pela beleza, no entanto, se torna cada vez mais forte no consumidor moderno.

Alimentos orgânicos se aliam a cirurgias estéticas num tempo onde envelhecer parece

perigoso e ruim. O culto à juventude e corpos definidos e padronizados segue, mesmo que na

contramão. Lipovetsky (2015) acredita que não são apenas as mídias que sugerem o padrão de

“magreza”, ainda que tenham grande porcentagem de culpa, mas que uma tendência da

cultura moderna é “não esperar”, assim, a insatisfação de estar parado – e conquistando peso,

aliado à construção de que corpos mais voluptuosos vão contra o ideal de saúde fortalecem o

ideal da magreza, além da construção narcisista de agradar aos outros e a si mesmo, bastante

presente da sociedade. Mesmo que haja um debate mais forte, sobre quebra de estereótipos,

para o autor, as pessoas (e principalmente as mulheres) sempre terão o desejo de melhorar a

aparência e de considerar algum modelo ideal socialmente reconhecido. O consumo de beleza

masculino também aumentou consideravelmente nos últimos anos, mesmo que seja claro que

os homens não sofrem – e em escalas diferentes - a mesma pressão fisicamente estética.

Todos querem ser mais criativos, aprender a fotografar, manter um blog, cozinhar,

cuidar da saúde, praticar dança, dedicar-se à pintura. Quando mais os ritmos se aceleram,

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mais se percebe a tendência de aproveitar as melhores coisas da vida com calma - daí

movimentos como o slow food e slow tourism.

É importante frisar que, apesar do consumo ser parte importante da nova sociedade

hipermoderna, ele é apenas um dos fatores que a compõem. Além disso, ainda está no centro

do debate questões sobre criar, inventar e desafiar as dificuldades da vida e do pensamento.

Logo, essa vida estética não deve ficar limitada aos ideias promovidos pelo mercado, mesmo

que esteja relacionada a ele. A relação parece estar em apreciar os segredos mercantis sem

fazer disso o foco maior e único. Essa sociedade transestética, que serve tanto positiva como

negativamente, deve buscar a evolução: qualidade profissional e pessoal.

De acordo com Lipovetsky (2009) “[...] a era hipermoderna está tudo menos fechada.”

(p100) e assinala (2015) que o futuro estaria na ética, com a responsabilidade se destacando

frente a comportamentos irresponsáveis.

Diante de todas essas considerações sobre o contexto atual, o comportamento moderno

se caracteriza, de forma geral, como um grande paradoxo. Ao mesmo tempo em que a lógica

dos interesses individuais predomina, existem diversas sensibilizações públicas por causas

comuns. Mesmo que os lazeres fúteis e a pouca paciência com o intelecto dominem, cada vez

aumenta mais o número de pessoas em museus e tendo acesso às artes. Existe mais reflexão

sobre legado e sobre orgulhar-se das realizações, além da nova geração continuar disposta a

criar e a se superar.

Dentre os diversos conceitos que permeiam o cotidiano na atualidade, a publicidade

procura encontrar formas que sensibilizem o consumidor e que tragam valor às marcas.

Observar as formas de organização social e econômica, bem como as tendências do mercado e

as aspirações do comportamento humano é essencial para incorporar aspectos relevantes aos

anunciantes.

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4 ANÁLISE

4.1 ORGANIZAÇÃO DO CORPUS DE ANÁLISE:

O cotidiano se manifesta de diversas formas nos comerciais e a forma de trabalhar o

conceito amplo nos materiais audiovisuais também acaba por contemplar uma imensa gama

de fatores. O foco da análise deste trabalho se concentra nas abordagens e conceitos dos

autores citados no corpo do arquivo e as categorias serão organizadas de acordo com cinco

temas que perpassam o conceito, e que foram apresentados ao longo dos capítulos, como

resposta ao questionamento inicial.

Visto que o material analisado é uma das diversas formas do “fazer” publicidade,

serão exemplificados, sempre que houver necessidade, alguns termos relacionados à produção

audiovisual e características técnicas relevantes. Para a compreensão dos espectadores que

assistem os comerciais, é fundamental que os elementos da narrativa conversem em harmonia.

Assim, alguns movimentos de câmera e plano, bem como de elementos como cor e luz serão

abordados, mesmo que apenas como forma de traduzir o sentido de forma mais clara.

Assim, a análise foi organizada baseada em cinco conceitos trazidos no corpo no texto:

a) A reprodução de estereótipos: comercial Doutor, da marca Open English;

A análise abordará a existência ou não de estereótipos – suas causas e consequências -,

os argumentos para o uso e verificará qual é a construção de fachada pelos conceitos

goffminianos (Goffman, 1985) de cenário, maneiras e aparência. A análise terá ênfase na

representação social e na reprodução de estereótipos.

b) A idealização: comercial Pérolas, da marca O Boticário;

A segunda análise será dedicada a entender se e, em caso afirmativo, porque os

anúncios ainda retratam as situações de forma idealizada e em que espaço esse ideal encontra

sustentação. Também será analisada as implicações de um mundo “perfeito” e a importância

do imaginário nessa construção.

c) A estetização: comercial A mais perfeccionista presuntaria do Brasil, da marca

Sadia;

A análise abordará o conceito de estetização, apresentado por Lipovetsky e Serroy

(2015). Num cenário que prima pela estética em todas as ordens, o intuito é verificar as

aspirações da moda e da “beleza” presentes no comercial, bem como a abordagem

cinematográfica da produção e os elementos que a compõem.

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d) A individualização: comercial Seu nome, sua história, da marca Jeep;

Entende-se que a sociedade atual cultiva o indivíduo de forma particular e a

publicidade faz isso tomando cada consumidor como exclusivo. Lipovetsky e Serroy (2015)

abordam o fato desse novo consumidor colecionar experiências e novas sensações. No

comercial, será analisada a busca pela sensação de plenitude, de gozar de todos os momentos

importantes e do orgulho em ter uma identidade única, que se diferencia do restante do

mundo.

e) A busca da emoção: comercial Nunca deixe de buscar, da marca Mercado Livre.

A busca por sentimentos aproxima a marca do público, tornando-a mais “humana”. Na

análise, será avaliada a ligação entre a emoção e a construção de sentido, baseada em

componentes que compõem o ser humano como a paixão, o imaginário e o sonho.

4.1.1 A reprodução de estereótipos: comercial “Doutor”, da marca Open English

Comercial Doutor, da marca Open English. Veiculação nacional, com 30 segundos.

Disponível no canal oficial da marca no Youtube:

<https://www.youtube.com/watch?v=hc9ZcYjJ_dw>. Lançamento: setembro/2015.

A Open English, plataforma de ensino de inglês online, é norte-americana e têm forte

atuação na América Latina, contabilizando 100 mil14

alunos pelo mundo. No Brasil desde

2011, diversos comerciais da marca são adaptados de países latinos que possuem a língua

espanhola como materna. O comercial em questão, intitulado “Doutor” também foi veiculado

em outros países da América Latina com o nome “El Doctor”.

A cena inicial do comercial em questão apresenta um local com paredes claras, uma

pessoa deitada em um leito, roupas de cama brancas, levando a crer ser um hospital. Com uma

máscara no rosto, o personagem principal é homem, na faixa dos 30 anos, cor branca, cabelos

grisalhos; com um olhar seguro e andar confiante, sai da sala ao cumprimentar a pessoa

deitada no leito. O jaleco e o crachá terminam de compor a cena, de acordo com os itens

cenário, maneira e aparência apresentados por Goffman (1985), e sugerem que o personagem

em questão é um médico.

14

Fonte Portal da Propaganda. Disponível em:

<http://www.portaldapropaganda.com.br/portal/propaganda/40042-paulo-gustavo-estrela-nova-campanha-da-

open-english> Acesso em: 15 nov. 2015

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Figura 6 – Montagem realizada com frames do comercial Doutor

Fonte: Fonte: Página oficial da Open English 15

no Youtube

Enquanto caminha, com a câmera em movimento tilt up16

, e se despede do que se

entende ser uma paciente, o personagem fala, com um sotaque que, mesmo em português,

carrega algo que segure ser uma pronúncia espanhola: “são seis horas da manhã, mas ainda

15

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hc9ZcYjJ_dw> Acesso em: 03.nov.2015 16

Movimento de câmera panorâmico vertical de baixo para cima.

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tenho duas horas antes da minha próxima cirurgia”. Depois de atravessar um breve corredor,

já em plano médio17

, ele olha diretamente para a câmera, como se estivesse conversando com

o telespectador e declara “momento perfeito para fazer uma aula de inglês ao vivo com a

Jenny, da Califórnia”. Nesse instante, a tela se transforma em uma interface online, simulando

o serviço oferecido pelo anunciante.

O personagem prossegue mencionando que “com Open English é muito fácil

começar”. Nesse instante, na tela, pela suposta interface, surge a figura da Jenny – uma

professora de origem norte-americana – argumento utilizado para comprovar o método

eficiente da empresa. Em uma demonstração de como seria a conversa, a mulher pergunta,

em inglês, se ele já está pronto para sua primeira lição. A personagem está com um pequeno

microfone, como se estive em uma central de atendimento, tem a pele de cor branca e é loira.

Ainda em forma de interface, o comercial apresenta o que seria o plano de estudos, reforçando

que seriam focados no interesse e na profissão do público.

Ao final da fala do personagem apresentado como médico, ele faz menção de tomar

café, mas sai correndo quando o barulho das sirenes toca e o que seria um paciente chega na

porta do hospital com enfermeiros e uma ambulância. Enquanto, ao fundo, o médico examina

rapidamente o paciente, a personagem chamada Jenny, declara, forçando um claro sotaque

estrangeiro “Open English.com, aulas ao vivo 24h por dia”.

O cenário é composto de cores claras e frias. Além do branco, tons claros de verdes e

azuis que, de acordo com Farina (1990), sugerem repouso e calma, são utilizados. O ambiente

está impecavelmente limpo e o corredor vazio. Já no que aparenta ser uma cafeteria, (pela

máquina com estampa de grãos de café, além de bules e xícaras em segundo plano),

aparecem, ao fundo, outras pessoas – caracterizados como médicos ou enfermeiros - vestidas

com roupas nos mesmo tons já citados e que confirmam o hospital como palco da produção.

O visual do vídeo, de forma geral, é clean e sóbrio. A trilha sonora se mantém igual do

início ao fim, com acordes tranquilos, sem nada abrupto. Com um tom doce, sugere, um ar

cômico, enquanto a sirene toca e um plano conjunto18

toma a cena.

A reprodução – e consequente manutenção - de estereótipos está presente em todas as

cenas da produção. O médico possui todas as indicações do profissional que figura no

imaginário: sexo, idade, roupas, acessórios, postura e ambiente não deixam dúvidas da

imagem construída. O ambiente hospital em cores frias, o café – bebida reconhecida como

17

Com o personagem enquadrado da cintura para cima. 18

Com um ângulo mais aberto, a câmera revela parte do cenário e os personagens ocupam um espaço maior na

tela.

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energética e que evita o sono – bem como as aparições e roupas dos outros funcionários do

hospital, contribuem para um ambiente escrachado.

Figura 7 – Montagem realizada com frames do comercial Doutor

Fonte: Fonte: Página oficial da Open English19

no Youtube

19

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hc9ZcYjJ_dw> Acesso em: 03 nov. 2015.

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O comercial se pauta no humor e essa relação fica clara ao apresentar o cliente do

curso online como médico. Já é consenso que a carga horária desses profissionais,

especialmente de cirurgião – menção feita propositalmente nesse sentido -, seja veiculada pela

mídia como bastante longa e cansativa. Logo, o contraponto com sentido cômico aparece

também de forma bastante óbvia, visto que mesmo depois de passar uma noite inteira

acordado e trabalhando, o personagem ainda demonstra aparência alegre e disposição para

ocupar as duas horas de seu intervalo com aulas online de inglês.

O humor foi a marca da empresa desde o início. De acordo com o Portal Propmark20

,

quando o negócio surgiu, era o próprio diretor da empresa, o venezuelano Andrés Moreno,

que protagonizava e assinava os roteiros nos vinte países hispânicos onde a Open English

atua. A mesma fonte aponta que a empresa aumentou muito o número de alunos e continua

usando o apelo humorístico bonachão. O fato da maioria dos roteiros serem adaptados de

países influenciados pela cultura e pela língua espanhola (como exceção pode-se citar uma

campanha produzida inicialmente no Brasil, que contou com o humorista brasileiro Paulo

Gustavo e assinada pela agência Unlike|3a, e que seguiu o caminho inverso, sendo adaptada

para o exterior depois) faz com que o humor também seja encarado diferente pelo público

brasileiro.

Um dos trunfos da produção é justamente a forma simplória como é apresentada e a

fácil compreensão da proposta. E um dos motivos para esse rápido entendimento é a

utilização massiva de estereótipos. Ao mesmo tempo em que deseja passar um ar

descontraído, o comercial reforça, ao utilizar de forma caricata a figura do médico, que existe

sim um imaginário acerca do profissional de medicina. Nesse caso, não existe a mínima

intenção em questionar qualquer disposição social, de classe ou gênero, apenas utilizar

estereótipos clichês como pano de fundo para o serviço do anunciante. O sorriso constante, o

sotaque carregado propositalmente e a aparência da professora norte-americana reforçam

ainda mais o ar bonachão da produção, mas ausentam os questionamentos sobre continuar a

perpetuar imagens e posições genéricas. Além disso, é relevante reforçar, a veiculação de

mesmo roteiro e personagens extremamente parecidos, descaraterização as identidades

nacionais e trazendo um toque muito mais estadunidense à produção.

20

Disponível em: <http://propmark.com.br/anunciantes/open-english-vira-case-na-tv-paga> Acesso em: 14 de

nov. de 2015.

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Os conceitos vistos ao longo dos capítulos se aplicam no questionamento sobre as

representações presentes retratarem uma realidade única e homogênea, além de possuir um

caráter reducionista, evitando indagações e apenas repetindo um padrão mental. Além disso,

engessar diferenças de grupos e identidades – como as inúmeras que estão presentes em toda a

América Latina - constrói uma fronteira simbólica e alimenta um culto às identidades

dominantes, reforçando, nesse caso, entre muitas coisas, a dependência mundial da língua

inglesa e a força que os Estados Unidos ocupam no conceito de “América”.

Existem diversos segmentos brasileiros que sempre foram ocupados pelas críticas aos

estereótipos. Sejam os de margarina, que trazem o “café da manhã” de sonho, ou os

anunciantes de cerveja, que, de forma quase absoluta, usam a figura feminina como apelo

sexual na venda do produto, enaltecendo discussões sobre o papel da mulher na sociedade e

sua apresentação apenas enquanto “objeto”. O segmento de produtos de limpeza também

apresenta, ainda, um olhar voltado à mulher como a pessoa que cuida do lar e fica responsável

pelas compras domésticas, como no comercial da marca Veja, intitulado Neura21

e vinculado

no ano passado, 2014. Mesmo que exista uma mudança significativa nos moldes das famílias

atuais e que a mulher ocupe, inegavelmente, um papel diferente do que era atribuído a ela há

décadas atrás, a mudança é mais profunda e envolve mais discussão do que parece.

4.1.2 A idealização: comercial “Pérolas”, da marca O Boticário

Comercial Pérolas, da marca O Boticário, para o Dias das Mães 2015. Veiculação

nacional, com 1 minuto, assinado pela agência AlmapBBDO. Disponível no canal oficial da

marca no Youtube: <https://www.youtube.com/watch?v=1Xo8HnE4G1s>. Lançamento:

abril/2015.

Já na cena inicial do comercial, aparece o animal de estimação da família, um cachorro

de raça. Em um ambiente amplo, iluminado, com diversas janelas e uma vista natural, que

sugere um grande jardim, aparecem as irmãs protagonistas da história (e posteriormente filhas

da personagem principal). São crianças de pele e olhos claros.

21

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qJ-bTsaJwSs> Acesso em: 5 nov. 2015

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Figura 8 – Montagem realizada com frames do comercial Pérolas

Fonte: Página oficial da marca O Boticário22

no Youtube

A cena seguinte, em plano americano23

com foco nas crianças, confirma a grandeza do

espaço e a decoração moderna, com sofás, mais janelas e um grande quadro. No quarto da

mãe, aparecem móveis de cor clara que remetem ao estilo clássico, uma grande cama de casal

e demais objetos decorativos – todos em tom claro, combinando perfeitamente com o restante,

22

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1Xo8HnE4G1s> Acesso em 27 out. 2015.

23 Mostra as personagens do joelho para cima.

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sem exageros. Ao abrir o móvel em destaque, na gaveta, as meninas encontram um colar de

pérolas, o plano detalhe 24

evidencia a importância do objeto.

Figura 9 – Montagem realizada com frames do comercial Pérolas

Fonte: Página oficial da marca O Boticário 25

no Youtube

24

Enquadramento que mostra detalhes de um a pessoa ou objeto.

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Já na rua, o comercial sugere um mundo ficcional ao apresentar as duas meninas

andando sozinhas pela rua, numa cidade limpa, com pessoas atravessando tranquilamente na

faixa de segurança e nenhum carro em movimento (apenas alguns estacionados). A cena é

bem clara, sem informações excessivas.

As meninas, que saíram de casa pensando em ir a uma joalheria, mudam de ideia em

frente à loja da marca de cosméticos anunciante, em plano conjunto26

. Quando a mãe chega

em casa, se depara com as pérolas sinalizando, em cada um dos degraus da escada, o caminho

que deve seguir até, pela sequência das cenas, chegar ao quarto. As pérolas terminam no

móvel onde o colar estava. No lugar dele, no entanto, está uma caixa de presente. Quando a

mãe a abre, as duas filhas, que estavam escondidas embaixo da cama, com o cão, desejam

“Feliz dia das mães”. A cena termina com as três sorrindo, felizes e se abraçando, em cima da

cama.

Em todas as cenas, há algum objeto com a cor rosa, desde a roupa que veste o animal

de estimação, as cortinas e detalhes na decoração da casa, os prédios da rua por onde as

meninas caminham, até a fachada da loja anunciante. Ao final, percebe-se que a caixa de

presente e o próprio produto anunciado, um perfume, são também, da cor rosa – justificando e

criando de forma sutil o contexto para a cor. Além disso, as mulheres são historicamente

vinculadas ao tom rosa, que seria sinônimo de feminilidade.

O comercial possui uma trilha sonora constante e aconchegante que sugere um clima

familiar durante todo o tempo. Mesmo quando as meninas quebram o colar, e a trilha

apresenta uma pausa de dois segundos - sugerindo uma expectativa e uma pequena tensão - ,

ela recomeça com mais intensidade, ao sugerir que as meninas já sabem como solucionar o

problema do colar rompido. Quando a mãe chega em casa, o som sugere novamente um

momento de expectativa, que culmina com o presente e a trilha surge imponente e épica,

configurando um final feliz. Há poucas falas e o próprio slogan da marca “Aqui sua vida é

linda” sugere um mundo idealizado e de sonho.

Ao analisar o cenário, a maneira e a aparência, todas as características apresentadas no

vídeo configuram pessoas de classe alta, por objetos clássicos, uma casa imensa, bem

iluminada, espaçosa, de limpeza impecável. As pessoas representadas estão com roupas da

moda, a mãe é jovem, e tanto ela como as crianças estão dentro de um padrão de beleza

socialmente dominante. Todas as pessoas retratadas no comercial, inclusive os figurantes, são

25

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1Xo8HnE4G1s> Acesso em 27 out. 2015.

26 Enquadramento que mostra parte do cenário, mas mantém o reconhecimento dos personagens.

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de cor branca, contrastando com os dados de que existem, no Brasil, de que o percentual de

pessoas que se declaram pardas é de 43,1% (82 milhões de pessoas) e pretas é 7,6% (15

milhões), de acordo com o Censo realizado em 201027

. Esse resultado também aponta que a

população que se autodeclara branca é de 47,7% (91 milhões de brasileiros). Nesse sentido, e

do ponto de vista mercadológico, pode-se questionar como as consumidoras pardas e negras,

que certamente também integram o público-alvo do comercial, são atingidas pela campanha –

além das claras implicações sociais de trazer apenas uma representação.

O aspecto mais recorrente observado é a esfera de sonho e perfeição que circunda a

produção. A roupa das personagens, o tamanho de todos os cômodos e objetos, a limpeza

impecável em todos os ambientes, os sorrisos e a ausência de problemas – ou a solução

simples e mágica dele, sugerem uma idealização da realidade – quase um conto de fadas.

O contraponto de idealização serve para lembrar que os comerciais não tem

“compromisso” com a realidade e que o imaginário e os sonhos sempre foram um grande

argumento discursivo utilizado pela Publicidade. O comercial, assim, pode assumir um papel

de fuga da realidade – que pode ser justificado como positivo - atraindo os consumidores pela

estética e pelo “melhor dos mundos”, onde os problemas se esvaem com facilidade e se

resolvem, conforme a produção apresenta, num abraço carinhoso entre mãe e filhas.

Também é importante ressaltar, em contraponto aos diversos estereótipos presentes no

comercial analisado, que a mesma marca, no comercial de Dia dos Namorados, com um vídeo

intitulado “Um dia dos namorados para todas as formas de amor” recebeu o prêmio Grand

Effie28

. A campanha abordou o amor por diversos tipos de casais, heterossexuais e

homossexuais29

.

4.1.3 A estetização: comercial “A mais perfeccionista presuntaria do Brasil”, da marca

Sadia

Comercial A mais perfeccionista presuntaria do Brasil. O comercial de 30 segundos é

assinado pela agência F/Nazca Saatchi & Saatchi. Disponível no canal oficial da marca no

Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=4wDuYDaGWA8 Lançamento: Setembro/2015.

27

Dado do Portal Brasil. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/educacao/2012/07/censo-2010-mostra-as-

diferencas-entre-caracteristicas-gerais-da-populacao-brasileira> Acesso em: 10 de novembro de 2015. 28

Prêmio máximo no Effie Wards Brasil 2015, realizado no dia 19 de outubro de 2015. Fonte: publicação online

da revista de Comunicação Meio e Mensagem. 29

Denunciado ao Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) por “ferir a família

brasileira”, o comercial foi absolvido. A organização do prêmio justificou a escolha pela coragem do tema

delicado e pela marca não ter voltado atrás mesmo com postagens contrárias, especialmente nas redes sociais.

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Figura 10 – Montagem realizada com frames do comercial A mais perfeccionista presuntaria

do Brasil

Fonte: Página oficial da marca Sadia 30

no Youtube

O comercial possui linguagem cinematográfica, demonstrada de forma clara já na

cena inicial, com a câmera fazendo o movimento de aproximação31

(dolly-in). O fundo de cor

escura, que perpassa todas as cenas, dá um clima de apreensão, como se algo estivesse sendo

desvendado. Movimentos simples e cotidianos, como espremer um limão, cortar uma fatia de

presunto ou arrumar os alimentos são encenados com dramaticidade, por meio do plano

30

Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=4wDuYDaGWA8> Acesso em 27 out. 2015. 31

Quando a câmera se move em direção ao objeto.

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detalhe32

e a representação traz a ideia de que todos os pequenos momentos diários possuem

algo notável, quase magnífico.

Nesse comercial, de forma específica, a voz ganha um destaque muito grande, sendo

responsável por grande parte do “tom” que a produção deseja passar. A voz, feminina, é rouca

e sussurrada e passa a ideia de aproximação e conformidade. Ao falar o breve texto, de forma

articulada e pronunciando todas as palavras de forma precisa, a narradora utiliza uma

linguagem diferente da comum, usando palavras de cunho mais técnico, como a palavra

maturação: “A seleção das carnes nobres. O tempero a base de ervas. A maturação paciente,

por 12 meses.” Quando a narradora fala dos três tipos de presuntos – Cozido, Parma e Royale

– aparecem legendas com os nomes. É como se a escolha pela marca anunciante fosse pautada

em argumentos de especialistas, com o resguardo de um perito, mesmo que o que prenda o

espectador seja o tom estético e o envolvimento por meio da fala e da trilha sonora, por

exemplo.

Assim, deve se evidenciar que a trilha sonora é um ponto fundamental nesta produção.

Ela ajuda a construir o “mistério” que envolve o diferencial da marca – nesse caso, os três

presuntos. E faz o espectador esperar pelo desfecho. A trilha inicia com acordes menores que

causam mais tensão e expectativa no espectador e pedem por uma resolução. Com a

apresentação dos tipos de presunto, a tensão aumenta e culmina na palavra “Eureka”. Nesse

instante, a trilha se torna suave e confortável ao telespectador, como se o mistério tivesse sido

resolvido.

Além da trilha, o termo “eureka” é, por si só, muito relevante na compreensão do

contexto do comercial. A interjeição, popular e conhecida pela maioria das pessoas, é

sinônimo de “eu encontrei” ou “eu descobri”, frente a algo difícil ou que parece sem solução.

Historicamente, o termo teria surgido – e ficado mundialmente famoso – depois do grego

Arquimedes de Siracusa (287 a.C. – 212 a.C.), ter feito uma grande descoberta científica. O

termo tem a sua origem etimológica na palavra grega “heúreka”, o pretérito perfeito do

indicativo do verbo “heuriskéin” que significa “achar” ou “descobrir”.

Ao final, o slogan da campanha “A Sadia entra com a ciência. Você inventa sua

fórmula” aparece. Nesse sentido, o comercial todo utilizada a estética tanto na imagem e no

movimento das câmeras, quanto na narração e no tom dado pelo uso de uma palavra

científica. Quebra aqui o paradigma de comerciais normais de presuntarias, que não explicam

os detalhes de preparo, nem utilizam as palavras e o tom de mistério ao falar do produto.

32

Enquadramento que mostra detalhes de um a pessoa ou objeto.

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Figura 11 – Montagem realizada com frames do comercial A mais perfeccionista presuntaria

do Brasil

Fonte: Página oficial da marca Sadia33

, no Youtube

Aqui, se encaixa a ideia de que o modo de fazer cinema se mescla aos comerciais

publicitários, como uma arte técnica que se vale do emocional, possui produção e distribuição

33

Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=4wDuYDaGWA8>. Acesso em 27 out. 2015.

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comercial. Do mesmo modo que o cinema abordou vanguardas e contraculturas, a publicidade

faz o uso, hoje, com o teor mercadológico que sempre teve. É o que Lipovetsky (2015)

considera ao afirmar que a os bens de consumo possuem caráter poético, impregnadas de

simbologia e múltiplos imaginários. O conceito de “estetização da vida cotidiana”, cunhado

pelo autor é refletido nessa produção da Sadia, onde tudo gira em torno da beleza: seja na fala

ou em cada gesto ou e detalhe. A apresentação de um alimento diário toma dimensões

dramáticas e impregnadas de fundamento estético.

Vale ressaltar que na corrida pela diferenciação, as marcas que são gigantes do mesmo

setor, como Sadia, Perdigão e Seara, por exemplo, acabam usando estratégias muito similares,

confundindo o consumidor que, por vezes, até lembra de um comercial, mas não da marca que

o assina. De toda forma, a utilização de linguagem cinematográfica, que primem tanto pela

estética, é nova no país.

4.1.4 A individualização: comercial “Seu nome, sua história”, da marca Jeep

Comercial Seu nome, sua história, da marca Jeep. Veiculação nacional, com 1 minuto,

assinado pela agência Leo Burnett Tailor Made. Disponível no canal oficial da marca no

Youtube: <https://www.youtube.com/watch?v=qqtTHkPfmDQ> Lançamento: fevereiro/2015.

O comercial da Jeep é um convite à autenticidade. Ao defender, em seu

posicionamento, que é uma marca única, ela aborda a importância de que cada pessoa viva,

também, histórias únicas. Sob a ideia de que cada pessoa é incomparável, a marca reforça que

os caminhos que cada pessoa percorre determina quem ela é.

Esse sentido é construído com uma trilha envolvente, que apresenta o som de uma

guitarra dedilhada. Apesar de ser e se manter linear, a trilha não traz “resolução”, não implica

no tradicional início, meio e fim, mas, ao contrário, propõe a ideia de continuação, de

movimento. O que sugere, no contexto da produção, que a história de cada um continuará se

tecendo sempre – além da palavra movimento ser fundamental no segmento do anunciante.

A locução, em off34

, faz um convite à reflexão, construindo sentido com palavras-

chave. O texto versa sobre identidade e sobre legado ao citar que é importante deixar “sua

marca no mundo”. Examina, ao mesmo tempo, sobre responsabilidade ao dizer que “ninguém

pode apagar essa marca” e que “é isso que define você”. Além disso, a importância do tempo

34

Voz proferida por alguém fora do campo visual em questão, nesse caso, para contextualizar as cenas

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– “nem hoje, nem amanhã, nem nunca” é reforçada. O conceito do comercial é resumido ao

final com a frase “O que importa no final é que sua história seja única. Jeep. Make history”.

Os símbolos redondos, ao final da mensagem, imitam os faróis do produto anunciado. Na

última cena, junto ao texto e à assinatura do anunciante, aparecem os seis modelos da marca,

fabricados no Brasil.

Figura 12 – Montagem realizada com frames do comercial Make History

Fonte: Página oficial da marca Jeep35

no Youtube

A produção apresenta cenas do cotidiano, mesclando ambientes e situações distintas.

Os personagens aparecem tanto em paisagens naturais, com cachoeiras, lugares isolados e

35

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qqtTHkPfmDQ> Acesso em: 03 nov.2015

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silenciosos, como no ambiente urbano, barulhento, colorido e cheio de intervenções. Nesse

sentido, pode-se entender o posicionamento da marca por estar presente em "todos os

lugares". Os enquadramentos também mudam de plano geral 36

até primeiro plano 37

durante

todo o comercial. Em algumas cenas o carro, do modelo Renegade, aparece, em outras não.

Figura 13– Montagem realizada com frames do comercial Make History

Fonte: Página oficial da marca Jeep 38

no Youtube

Há representatividade de gênero e de raça, ao apresentar homens e mulheres, negros e

brancos, no entanto, todas as pessoas mostradas são jovens. O que pode ser explicado pelo

36

Enquadramento de um grande cenário ou paisagem, sem identificar claramente os personagens. 37

Enquadramento mais fechado, que mostra a face do personagem. 38

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qqtTHkPfmDQ> Acesso em: 03 nov.2015

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público- alvo do novo modelo ser esse, de acordo com o anunciante39

. O nome do modelo, do

inglês Renegade, também é importante no posicionamento da marca. De acordo com o Oxford

Dictionary a palavra serve para designar “a person who behaves in a rebelliously

unconventional manner”, que, em uma tradução livre sugere “uma pessoa que possui um

comportamento rebelde e não convencional”. Essa definição vai de encontro com a busca por

se manter jovem. Hoje, a felicidade está cada vez mais relacionada a não desperdiçar tempo, a

perceber a importância do presente vivido, mas sem esquecer que a época “de ouro”, para

viver todas as coisas, ou, como o comercial propõe, de “fazer história” é a juventude.

A ideia se afirma, também, com cenas que retratam a relação humana. Momentos

felizes, como beijos e outros nem tão alegres, como brigas e discussões ou situações de

solidão e reflexão, na forma de casal, ou em instantes compartilhados com amigos, passando

por fases comuns à maioria das pessoas. Ao se colocar no contexto de vida moderno e

frenético, a marca perpassa a busca por sentido e felicidade, abordada por Lipovetsky (2007).

Traz, também, um caráter de urgência em relação ao tempo, conceito abordado pelo mesmo

autor em 2015. Ao mesmo, tem-se a sensação de que a juventude escorrerá pelas mãos, de que

a construção dessa histórica, única e original, pede urgência e atos de legado.

Assim, a Jeep contempla o consumidor do qual Lipovetsky (2015) fala: que coleciona

experiências e busca novas sensações e emotividades, que busca modos de vida que tragam a

sensação de prazer e plenitude instantâneos. Um consumidor que quer trazer novas

concepções ao que é diário, rotineiro e do que faz sentido de ser vivido.

4.1.5 A busca da emoção: comercial “Nunca deixe de buscar”, da marca Mercado Livre

Comercial Nunca deixe de buscar, da marca Mercado Livre. Veiculação nacional, com

1 minuto e 30 segundos, com criação da agência Ponce Buenos Aires e adaptação para o

Brasil pela agência VML. Disponível no canal oficial da marca no Youtube.

<https://www.youtube.com/watch?v=IxoIxtjBhWU>Lançamento: setembro/2015

Quebrando o paradigma de empresa que atua apenas em transações eletrônicas e no

intuito de buscar uma aproximação com os consumidores/navegadores, a campanha “Nunca

deixe de buscar”, do Mercado Livre, empresa de tecnologia especializada em comércio

eletrônico, busca uma conexão entre imaginário e sentimento. O comercial busca uma

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Disponível em: <http://carplace.uol.com.br/jeep-marketing-do-renegade-nos-eua-sera-totalmente-focado-nos-

jovens/> Acesso em: 16 nov. 2015

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conexão emocional ao colocar o sentimento da personagem frente ao produto em si. Assim, a

plataforma deixa de ser apenas uma forma de compra, mas se torna um meio de aproximar as

pessoas.

A história inicia em um parque de diversões, cheios de luzes e tons de cores quentes,

com destaque para o vermelho e para os tons retrôs – com se tudo estivesse ambientado em

um universo de sonho e memória. Os brinquedos, como a roda gigante que fica em segundo

plano em diversas imagens, confirmam o local onde se passa a maior parte do roteiro.

Figura 14– Montagem realizada com frames do comercial Nunca deixe de buscar

Fonte: Página oficial da marca Mercado Livre 40

no Youtube

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Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=IxoIxtjBhWU> Acesso em: 03 nov.2015

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Um menino, protagonista da produção, observa encantado uma garota. A menina

analisa com olhar esperançoso um brinquedo cheio de ursos de pelúcia. Quando se olham, a

menina sorri, a cena é interrompida, no entanto, por outro menino - que pelo tamanho e

postura demonstra ser mais velho - que sai abraçado na menina.

O protagonista fica claramente decepcionado, evidenciado por um close up41

no rosto

do menino. Enquanto ele observa a garota ir embora, um personagem (que se supõe ser o

irmão mais velho) se aproxima e ambos vão para casa. Já no seu quarto, o menino observa,

ainda com ar de desânimo, a foto da menina em um tablet. O local é amplo, confortável, e

conta com móveis antigos, livros com aspecto também envelhecidos e pouca iluminação,

sugerindo um momento de introspeção, onde as memórias ficam retidas, bem como os

segredos da vida.

O olhar do garoto se dirige, então, para um quadro de um super-herói, colado na

parede do próprio quarto e que aparece em plano detalhe42

. Nesse instante, ele parece ter uma

ideia para resolver a situação de conflito em que se encontra. No que se supõe ser a manhã

seguinte, num ambiente da casa já bem iluminado - contrastando com a cena anterior, no

quarto -, o irmão do menino pesquisa na página online do Mercado Livre preços de ursos de

pelúcia. Na cena seguinte, o irmão surge com um carro, também antigo, cheio de ursos – que

seriam a encomenda feita. Após, a busca na plataforma online é por objetos menos

convencionais, como um capacete esportivo e o aluguel de um caminhão.

O menino, que se descobre ter o nome Lucas, envia à menina, por um iPhone, uma

mensagem pedindo para que ela o encontre às 11h, no mesmo parque de diversão onde a

história tem início. Ao chegar no local, a menina encontra, no mesmo local onde viu o menino

pela primeira vez, flechas indicando a direção. Sorrindo, se movimenta até onde está um

pequeno aglomerado de pessoas. Nesse instante, vê Lucas se preparando para saltar de bungee

jump (enfatizado com a câmera em primeiro plano,43

) numa montanha de ursos de pelúcia. No

salto, em plano geral44

, percebe-se todo o ambiente e, ao final, com um largo sorriso da

menina, o garoto consegue alcançar um urso de pelúcia e aparece a legenda "Nunca deixe de

buscar", seguida da assinatura do anunciante.

41

Plano enquadrado de uma maneira muito próxima do assunto. A figura humana é enquadrada do ombro para

cima, mostrando apenas o rosto. Com isso, o cenário é praticamente eliminado e as expressões tornam-se mais

nítidas para o/a espectador/a. 42

Enquadramento que mostra detalhes de uma pessoa ou objeto. 43

Enquadramento mais fechado, que mostra a face do personagem. 44

Enquadramento de um grande cenário ou paisagem, no qual é difícil reconhecer os personagens pela distância.

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Figura 15– Montagem realizada com frames do comercial Nunca deixe de buscar

Fonte: Página oficial da marca Mercado Livre 45

no Youtube

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Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=IxoIxtjBhWU> Acesso em: 03 nov.2015

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Figura 15– Montagem realizada com frames do comercial Nunca deixe de buscar

Fonte: Página oficial da marca Mercado Livre 46

no Youtube

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Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=IxoIxtjBhWU >Acesso em: 03 nov.2015

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De modo geral, a atmosfera de sonho se mescla com a tecnologia. De acordo com

Farina (1990), em A Psicodinâmica das Cores, as cores quentes são estimulantes e produzem

sensações de calor, proximidade, emoção e ação. Os tons de vermelho também são

associados à idade, e nesse caso, fazem relação com o primeiro amor e a fase de descobertas

da juventude. A associação vai de encontro com a proposta da marca, que define a campanha

como sendo voltada para jovens entre 18 e 35 anos. O nome do comercial, que sugere que

nunca se pare de “buscar” também pode ser relacionado à palavra “busca” essencial no

negócio da empresa.

A música I am an astronaut,47

da banda Snow Patrol, é utilizada como trilha para a

produção. Com letra simples e que remete à infância, período onde os personagens do vídeo

estão inseridos, a música repete o título da música que pode fazer referência aos sonhos das

crianças, do “o que ser quando crescer” e de profissões incomuns estarem no imaginário

infantil. A frase, pelo contexto do comercial e pela aparência do menino (franzino, vestindo

peças antiquadas/ultrapassadas e usando óculos redondos e com aspecto de antigos,

caracterizando um estilo nerd), também pode se referir ao fato da criança se sentir diferente

dos demais, com algum possível problema de aceitação.

No trecho “daddy's away and mum's asleep48

”, a relação também pode ser feita

analisando que, enquanto os pais não estão por perto, ele pode ser o que desejar, sem pressões

sociais. A ideia é confirmada, também, na parte “I am anything I want to be, when nobody

else is there”49

, enfatizando a busca pela liberdade de ser o que quiser, livre de estigmas.

A trilha sonora vai crescendo conforma a história se desenvolve. Ao final, o som de

trompetes traz uma conotação épica. Ao assistir na televisão, a trilha pode até passar

despercebida para os telespectadores, mas em uma análise isolada ela é parte fundamental da

emoção e do ápice que o comercial passa.

Ao caracterizar a realização de sonhos, a produção vai de encontro com o apresentado

por meio de bibliografia, visto que, atualmente, as marcas não podem mais se colocar como

produtos ou prestadoras de serviços. Também não basta apresentar apenas qualidades

racionais, a conexão emocional não passa, simplesmente, por argumentos. Nesse sentido,

criar significados reais é essencial e é nesse sentido que a Mercado Livre se coloca como

realizadora de sonhos e não como uma simples ferramenta de comércio eletrônico. Evidencia,

no comercial analisado, o ser humano com seus anseios, medos e frustrações, mas ainda

47

“Eu sou um astronauta”. Tradução livre da autora. 48

“Papai está longe e mamãe dormindo”. Tradução livre da autora. 49

“Eu sou qualquer coisa que quiser ser, quando ninguém mais está lá”. Tradução livre da autora.

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assim, enfatiza que, também, acredita nos sonhos dos seus clientes e é uma forma de ajudar a

realiza-los.

Os princípios da moda, evidenciados por Lipovetsky (2015), como mudança, fantasia

e sedução, aparecem e o imaginário, abordado principalmente por Maffesoli (2007), suscitará

lembranças comuns a quase todas as pessoas, aproximando a tela de vivências reais, ou, pelo

menos, despertando o sentimento de afinidade. Seja do primeiro amor, da timidez, de quem se

sentia ou sente o “patinho feio” e de todos, visto que idealizar, se apaixonar, bem como as

frustrações e superações os dramas amorosos envolvem, fazem parte do contexto de vida de

todas as pessoas.

Mesmo contando com elementos “exagerados”, como o montante de ursos usados na

reviravolta da história, e idealizados, seja pelo ambiente de parque de diversões, pela

facilidade em comprar com apenas alguns cliques, ou em montar a estrutura para o salto, o

menino faz tudo com a ajuda do irmão – figura que não é destaque, mas está sempre presente.

A relação estabelecida entre os dois transmite cumplicidade e alguém “para contar”,

evidenciando a importância de laços humanos, criando um elo emotivo com a marca.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante todo o processo de pesquisa, muitas teorias e fatores foram abordados para

tratar do cotidiano, tema amplo que engloba diversas manifestações e está em constante

transformação. Para solucionar o problema proposto inicialmente, de como o cotidiano é

retratado pela Publicidade, a partir de representações sociais?, foi preciso conceituar os

termos fundamentais e buscar apoio em áreas distintas para estabelecer as relações devidas.

Pode-se dizer que o cotidiano é um espaço onde as representações sociais são criadas,

afirmadas e reproduzidas, inclusive pela publicidade, que se vale de simbologias e do

imaginário para povoar esse espaço. Ao mesmo tempo em que a publicidade é fruto do que a

sociedade entende como importante, necessário e belo – e que muda conforme a época

retratada - também acaba sendo reprodutora das tendências.

Percebe-se, hoje, uma exigência maior por parte dos consumidores. As pessoas estão

mais críticas quanto ao que consomem e pela forma como são atraídas pelo imaginário que

cerca determinados produtos e marcas - mesmo que o consumo ainda seja o símbolo da

sociedade no sistema econômico vigente. Assim, a sociedade traz paradoxos profundos entre

crenças, valores e busca por felicidade.

A partir das análises realizadas, conclui-se que a publicidade ainda se utiliza do

imaginário e das representações sociais presentes na mente das pessoas para fazer associações

e despertar sentimentos. A idealização de pessoas e lugares, bem como a promessa de um

mundo de sonho, o “melhor dos mundos”, continua sendo um dos trunfos utilizados. Ao

mesmo tempo, com a demanda de outros grupos consumidores, a publicidade precisa se

reinventar e contemplar novas formas de persuadir e convencer. Ao trazer a estética, a

emoção e trabalhar o indivíduo de forma única, ela responde as aspirações da sociedade

moderna, contemplando um consumidor que está em constante mudança e percepção de quem

é.

O uso de um mundo dito favorável e repleto de simbologia, também contribui com a

utilização recorrente de estereótipos. O caráter de unificar e reduzir espaços e pessoas por

meio de representações genéricas evita indagações e repete padrões que engessam as

diferenças e constroem fronteiras simbólicas. Dessa forma, são criados preconceitos e rótulos

que prejudicam a aceitação da diferença e da pluralidade. Assim, é importante avaliar como a

comunicação pode trabalhar esses conceitos no intuito de apresentar situações mais plurais e

menos exclusivas.

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Mesmo seguindo padrões conservadores e com resistência a abordar temas mais

profundos, percebe-se que, a partir da demanda dos grupos sociais, a publicidade deve se

tornar mais aberta e discutir anseios atuais, quebrando paradigmas e trazendo para o centro da

discussão temas polêmicos e de importância social – ainda que por motivos mercadológicos,

que atendam um novo consumidor.

Nessa produção de sentidos, há espaço para clichês e para o novo, visto que, ao

mesmo tempo em que é resultado da realidade, a publicidade mantém e produz discursos.

Para que faça sentido, a publicidade atual precisa ir de encontro com a construção social, se

pautando cada dia mais no que a sociedade entende como importante e absorvendo as

mudanças contidas no cotidiano e fundamentadas pelas representações sociais. Mais do que

uma simples ferramenta de mercado, a publicidade se encarrega de portar mitos, imagens,

crenças, ideais de felicidade e de abordar anseios e desejos humanos, tornando-se parte

essencial do agir social.

Este trabalho pode ser utilizado como compreensão do período analisado, entretanto, é

importante ressaltar que o assunto não se esgota aqui. O campo é vasto, aborda diversas áreas

do conhecimento e está em mudança permanente, visto que se baseia de forma central no

comportamento humano e nas tendências de mercado. Com a evolução da tecnologia e das

novas relações humanas que se estabelecem de forma constante, bem como as formas de

encarar o consumo e o pertencimento ao mundo, surgem novas demandas, novos

questionamentos e novas formas de integrar a publicidade ao contexto social do cotidiano.

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ANEXOS