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CARTA ENCÍCLICA DEUS CARITAS EST DO SUMO PONTÍFICE BENTO XVI AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS ÀS PESSOAS CONSAGRADAS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR CRISTÃO INTRODUÇÃO 1. « Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele » (1 Jo 4, 16). Estas palavras da I Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a consequente imagem do homem e do seu caminho. Além disso, no mesmo versículo, João oferece-nos, por assim dizer, uma fórmula sintética da existência cristã: « Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem ». Nós cremos no amor de Deus deste modo pode o cristão exprimir a opção fundamental da sua vida. Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo. No seu Evangelho, João tinha expressado este acontecimento com as palavras seguintes: « Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único para que todo o que n'Ele crer (...) tenha a vida eterna » (3, 16). Com a centralidade do amor, a fé cristã acolheu o núcleo da fé de Israel e, ao mesmo tempo, deu a este núcleo uma nova profundidade e amplitude. O crente israelita, de facto, reza todos os dias com as palavras do Livro do Deuteronómio, nas quais sabe que está contido o centro da sua existência: « Escuta, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças » (6, 4-5). Jesus uniu fazendo deles um único preceito o mandamento do amor a Deus com o do amor ao próximo, contido no Livro do Levítico: « Amarás o teu próximo como a ti mesmo » (19, 18; cf. Mc 12, 29-31). Dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf. 1 Jo 4, 10), agora o amor já não é apenas um « mandamento », mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro. Num mundo em que ao nome de Deus se associa às vezes a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem de grande actualidade e de significado muito concreto. Por isso, na minha primeira Encíclica, desejo falar do amor com que Deus nos cumula e que deve ser comunicado aos outros por nós. Estão assim indicadas as duas grandes partes que compõem esta Carta, profundamente conexas entre elas. A primeira terá uma índole mais especulativa, pois desejo ao início do meu Pontificado especificar nela alguns dados essenciais sobre o amor que Deus oferece de modo misterioso e gratuito ao homem, juntamente com o nexo intrínseco daquele Amor com a realidade do amor humano. A segunda parte terá um carácter mais concreto, porque tratará da prática eclesial do mandamento do amor ao próximo. O argumento aparece demasiado amplo; uma longa explanação, porém, não entra no objectivo da presente Encíclica. O meu desejo é insistir sobre alguns elementos fundamentais, para deste modo suscitar no mundo um renovado dinamismo de empenhamento

Deus cartitas est

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Page 1: Deus cartitas est

CARTA ENCIacuteCLICA

DEUS CARITAS EST

DO SUMO PONTIacuteFICE

BENTO XVI

AOS BISPOS

AOS PRESBIacuteTEROS E AOS DIAacuteCONOS

AgraveS PESSOAS CONSAGRADAS

E A TODOS OS FIEacuteIS LEIGOS

SOBRE O AMOR CRISTAtildeO

INTRODUCcedilAtildeO

1 laquo Deus eacute amor e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele raquo (1 Jo 4 16)

Estas palavras da I Carta de Joatildeo exprimem com singular clareza o centro da feacute cristatilde a

imagem cristatilde de Deus e tambeacutem a consequente imagem do homem e do seu caminho Aleacutem

disso no mesmo versiacuteculo Joatildeo oferece-nos por assim dizer uma foacutermula sinteacutetica da

existecircncia cristatilde laquo Noacutes conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem raquo

Noacutes cremos no amor de Deus mdash deste modo pode o cristatildeo exprimir a opccedilatildeo fundamental da

sua vida Ao iniacutecio do ser cristatildeo natildeo haacute uma decisatildeo eacutetica ou uma grande ideia mas o

encontro com um acontecimento com uma Pessoa que daacute agrave vida um novo horizonte e desta

forma o rumo decisivo No seu Evangelho Joatildeo tinha expressado este acontecimento com as

palavras seguintes laquo Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho uacutenico para que

todo o que nEle crer () tenha a vida eterna raquo (3 16) Com a centralidade do amor a feacute cristatilde

acolheu o nuacutecleo da feacute de Israel e ao mesmo tempo deu a este nuacutecleo uma nova profundidade

e amplitude O crente israelita de facto reza todos os dias com as palavras do Livro do

Deuteronoacutemio nas quais sabe que estaacute contido o centro da sua existecircncia laquo Escuta oacute Israel O

Senhor nosso Deus eacute o uacutenico Senhor Amaraacutes ao Senhor teu Deus com todo o teu coraccedilatildeo

com toda a tua alma e com todas as tuas forccedilas raquo (6 4-5) Jesus uniu mdash fazendo deles um

uacutenico preceito mdash o mandamento do amor a Deus com o do amor ao proacuteximo contido no Livro

do Leviacutetico laquo Amaraacutes o teu proacuteximo como a ti mesmo raquo (19 18 cf Mc 12 29-31) Dado que

Deus foi o primeiro a amar-nos (cf 1 Jo 4 10) agora o amor jaacute natildeo eacute apenas um laquo

mandamento raquo mas eacute a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro

Num mundo em que ao nome de Deus se associa agraves vezes a vinganccedila ou mesmo o dever do

oacutedio e da violecircncia esta eacute uma mensagem de grande actualidade e de significado muito

concreto Por isso na minha primeira Enciacuteclica desejo falar do amor com que Deus nos

cumula e que deve ser comunicado aos outros por noacutes Estatildeo assim indicadas as duas grandes

partes que compotildeem esta Carta profundamente conexas entre elas A primeira teraacute uma iacutendole

mais especulativa pois desejo mdash ao iniacutecio do meu Pontificado mdash especificar nela alguns

dados essenciais sobre o amor que Deus oferece de modo misterioso e gratuito ao homem

juntamente com o nexo intriacutenseco daquele Amor com a realidade do amor humano A segunda

parte teraacute um caraacutecter mais concreto porque trataraacute da praacutetica eclesial do mandamento do

amor ao proacuteximo O argumento aparece demasiado amplo uma longa explanaccedilatildeo poreacutem natildeo

entra no objectivo da presente Enciacuteclica O meu desejo eacute insistir sobre alguns elementos

fundamentais para deste modo suscitar no mundo um renovado dinamismo de empenhamento

na resposta humana ao amor divino

I PARTE

A UNIDADE DO AMOR

NA CRIACcedilAtildeO

E NA HISTOacuteRIA DA SALVACcedilAtildeO

Um problema de linguagem

2 O amor de Deus por noacutes eacute questatildeo fundamental para a vida e coloca questotildees decisivas

sobre quem eacute Deus e quem somos noacutes A tal propoacutesito o primeiro obstaacuteculo que encontramos

eacute um problema de linguagem O termo laquo amor raquo tornou-se hoje uma das palavras mais usadas

e mesmo abusadas agrave qual associamos significados completamente diferentes Embora o tema

desta Enciacuteclica se concentre sobre a questatildeo da compreensatildeo e da praacutetica do amor na Sagrada

Escritura e na Tradiccedilatildeo da Igreja natildeo podemos prescindir pura e simplesmente do significado

que esta palavra tem nas vaacuterias culturas e na linguagem actual

Em primeiro lugar recordemos o vasto campo semacircntico da palavra laquo amor raquo fala-se de amor

da paacutetria amor agrave profissatildeo amor entre amigos amor ao trabalho amor entre pais e filhos

entre irmatildeos e familiares amor ao proacuteximo e amor a Deus Em toda esta gama de significados

poreacutem o amor entre o homem e a mulher no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e

se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistiacutevel sobressai como

arqueacutetipo de amor por excelecircncia de tal modo que comparados com ele agrave primeira vista

todos os demais tipos de amor se ofuscam Surge entatildeo a questatildeo todas estas formas de amor

no fim de contas unificam-se sendo o amor apesar de toda a diversidade das suas

manifestaccedilotildees em uacuteltima instacircncia um soacute ou ao contraacuterio utilizamos uma mesma palavra

para indicar realidades totalmente diferentes

laquo Eros raquo e laquo agape raquo ndash diferenccedila e unidade

3 Ao amor entre homem e mulher que natildeo nasce da inteligecircncia e da vontade mas de certa

forma impotildee-se ao ser humano a Greacutecia antiga deu o nome de eros Diga-se desde jaacute que o

Antigo Testamento grego usa soacute duas vezes a palavra eros enquanto o Novo Testamento

nunca a usa das trecircs palavras gregas relacionadas com o amor mdash eros philia (amor de

amizade) e agape mdash os escritos neo-testamentaacuterios privilegiam a uacuteltima que na linguagem

grega era quase posta de lado Quanto ao amor de amizade (philia) este eacute retomado com um

significado mais profundo no Evangelho de Joatildeo para exprimir a relaccedilatildeo entre Jesus e os seus

disciacutepulos A marginalizaccedilatildeo da palavra eros juntamente com a nova visatildeo do amor que se

exprime atraveacutes da palavra agape denota sem duacutevida na novidade do cristianismo algo de

essencial e proacuteprio relativamente agrave compreensatildeo do amor Na criacutetica ao cristianismo que se foi

desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do iluminismo esta novidade foi avaliada

de forma absolutamente negativa Segundo Friedrich Nietzsche o cristianismo teria dado

veneno a beber ao eros que embora natildeo tivesse morrido daiacute teria recebido o impulso para

degenerar em viacutecio [1] Este filoacutesofo alematildeo exprimia assim uma sensaccedilatildeo muito

generalizada com os seus mandamentos e proibiccedilotildees a Igreja natildeo nos torna porventura

amarga a coisa mais bela da vida Porventura natildeo assinala ela proibiccedilotildees precisamente onde a

alegria preparada para noacutes pelo Criador nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir

algo do Divino

4 Mas seraacute mesmo assim O cristianismo destruiu verdadeiramente o eros Vejamos o

mundo preacute-cristatildeo Os gregos mdash aliaacutes de forma anaacuteloga a outras culturas mdash viram no eros

sobretudo o inebriamento a subjugaccedilatildeo da razatildeo por parte duma laquo loucura divina raquo que

arranca o homem das limitaccedilotildees da sua existecircncia e neste estado de transtorno por uma forccedila

divina faz-lhe experimentar a mais alta beatitude Deste modo todas as outras forccedilas quer no

ceacuteu quer na terra resultam de importacircncia secundaacuteria laquo Omnia vincit amor mdash o amor tudo

vence raquo afirma Virgiacutelio nas Bucoacutelicas e acrescenta laquo et nos cedamus amori mdash rendamo-nos

tambeacutem noacutes ao amor raquo [2] Nas religiotildees esta posiccedilatildeo traduziu-se nos cultos da fertilidade aos

quais pertence a prostituiccedilatildeo laquo sagrada raquo que prosperava em muitos templos O eros foi pois

celebrado como forccedila divina como comunhatildeo com o Divino

A esta forma de religiatildeo que contrasta como uma fortiacutessima tentaccedilatildeo com a feacute no uacutenico Deus

o Antigo Testamento opocircs-se com a maior firmeza combatendo-a como perversatildeo da

religiosidade Ao fazecirc-lo poreacutem natildeo rejeitou de modo algum o eros enquanto tal mas

declarou guerra agrave sua subversatildeo devastadora porque a falsa divinizaccedilatildeo do eros como aiacute se

verifica priva-o da sua dignidade desumaniza-o De facto no templo as prostitutas que

devem dar o inebriamento do Divino natildeo satildeo tratadas como seres humanos e pessoas mas

servem apenas como instrumentos para suscitar a laquo loucura divina raquo na realidade natildeo satildeo

deusas mas pessoas humanas de quem se abusa Por isso o eros inebriante e descontrolado

natildeo eacute subida laquo ecircxtase raquo ateacute ao Divino mas queda degradaccedilatildeo do homem Fica assim claro

que o eros necessita de disciplina de purificaccedilatildeo para dar ao homem natildeo o prazer de um

instante mas uma certa amostra do veacutertice da existecircncia daquela beatitude para que tende

todo o nosso ser

5 Dois dados resultam claramente desta raacutepida visatildeo sobre a concepccedilatildeo do eros na histoacuteria e

na actualidade O primeiro eacute que entre o amor e o Divino existe qualquer relaccedilatildeo o amor

promete infinito eternidade mdash uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da

nossa existecircncia E o segundo eacute que o caminho para tal meta natildeo consiste em deixar-se

simplesmente subjugar pelo instinto Satildeo necessaacuterias purificaccedilotildees e amadurecimentos que

passam tambeacutem pela estrada da renuacutencia Isto natildeo eacute rejeiccedilatildeo do eros natildeo eacute o seu laquo

envenenamento raquo mas a cura em ordem agrave sua verdadeira grandeza

Isto depende primariamente da constituiccedilatildeo do ser humano que eacute composto de corpo e alma

O homem torna-se realmente ele mesmo quando corpo e alma se encontram em iacutentima

unidade o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado quando se consegue

esta unificaccedilatildeo Se o homem aspira a ser somente espiacuterito e quer rejeitar a carne como uma

heranccedila apenas animalesca entatildeo espiacuterito e corpo perdem a sua dignidade E se ele por outro

lado renega o espiacuterito e consequentemente considera a mateacuteria o corpo como realidade

exclusiva perde igualmente a sua grandeza O epicurista Gassendi gracejando

cumprimentava Descartes com a saudaccedilatildeo laquo Oacute Alma raquo E Descartes replicava dizendo laquo Oacute

Carne raquo [3] Mas nem o espiacuterito ama sozinho nem o corpo eacute o homem a pessoa que ama

como criatura unitaacuteria de que fazem parte o corpo e a alma Somente quando ambos se

fundem verdadeiramente numa unidade eacute que o homem se torna plenamente ele proacuteprio Soacute

deste modo eacute que o amor mdash o eros mdash pode amadurecer ateacute agrave sua verdadeira grandeza

Hoje natildeo eacute raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido adversaacuterio da

corporeidade a realidade eacute que sempre houve tendecircncias neste sentido Mas o modo de exaltar

o corpo a que assistimos hoje eacute enganador O eros degradado a puro laquo sexo raquo torna-se

mercadoria torna-se simplesmente uma laquo coisa raquo que se pode comprar e vender antes o

proacuteprio homem torna-se mercadoria Na realidade para o homem isto natildeo constitui

propriamente uma grande afirmaccedilatildeo do seu corpo Pelo contraacuterio agora considera o corpo e a

sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito

Uma parte aliaacutes que ele natildeo vecirc como um acircmbito da sua liberdade mas antes como algo que

a seu modo procura tornar simultaneamente agradaacutevel e inoacutecuo Na verdade encontramo-nos

diante duma degradaccedilatildeo do corpo humano que deixa de estar integrado no conjunto da

liberdade da nossa existecircncia deixa de ser expressatildeo viva da totalidade do nosso ser acabando

como que relegado para o campo puramente bioloacutegico A aparente exaltaccedilatildeo do corpo pode

bem depressa converter-se em oacutedio agrave corporeidade Ao contraacuterio a feacute cristatilde sempre

considerou o homem como um ser uni-dual em que espiacuterito e mateacuteria se compenetram

mutuamente experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza Sim o eros

quer-nos elevar laquo em ecircxtase raquo para o Divino conduzir-nos para aleacutem de noacutes proacuteprios mas por

isso mesmo requer um caminho de ascese renuacutencias purificaccedilotildees e saneamentos

6 Concretamente como se deve configurar este caminho de ascese e purificaccedilatildeo Como deve

ser vivido o amor para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina Uma

primeira indicaccedilatildeo importante podemos encontraacute-la no Cacircntico dos Cacircnticos um dos livros

do Antigo Testamento bem conhecido dos miacutesticos Segundo a interpretaccedilatildeo hoje

predominante as poesias contidas neste livro satildeo originalmente cacircnticos de amor talvez

previstos para uma festa israelita de nuacutepcias na qual deviam exaltar o amor conjugal Neste

contexto eacute muito elucidativo o facto de ao longo do livro se encontrarem duas palavras

distintas para designar o laquo amor raquo Primeiro aparece a palavra laquo dodim raquo um plural que

exprime o amor ainda inseguro numa situaccedilatildeo de procura indeterminada Depois esta palavra

eacute substituiacuteda por laquo ahabagrave raquo que na versatildeo grega do Antigo Testamento eacute traduzida pelo

termo de som semelhante laquo agape raquo que se tornou como vimos o termo caracteriacutestico para a

concepccedilatildeo biacuteblica do amor Em contraposiccedilatildeo ao amor indeterminado e ainda em fase de

procura este vocaacutebulo exprime a experiecircncia do amor que agora se torna verdadeiramente

descoberta do outro superando assim o caraacutecter egoiacutesta que antes claramente prevalecia

Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro Jaacute natildeo se busca a si proacuteprio natildeo busca a

imersatildeo no inebriamento da felicidade procura ao inveacutes o bem do amado torna-se renuacutencia

estaacute disposto ao sacrifiacutecio antes procura-o

Faz parte da evoluccedilatildeo do amor para niacuteveis mais altos para as suas iacutentimas purificaccedilotildees que

ele procure agora o caraacutecter definitivo e isto num duplo sentido no sentido da exclusividade

mdash laquo apenas esta uacutenica pessoa raquo mdash e no sentido de ser laquo para sempre raquo O amor compreende a

totalidade da existecircncia em toda a sua dimensatildeo inclusive a temporal Nem poderia ser de

outro modo porque a sua promessa visa o definitivo o amor visa a eternidade Sim o amor eacute

laquo ecircxtase raquo ecircxtase natildeo no sentido de um instante de inebriamento mas como caminho como

ecircxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertaccedilatildeo no dom de si e

precisamente dessa forma para o reencontro de si mesmo mais ainda para a descoberta de

Deus laquo Quem procurar salvaguardar a vida perdecirc-la-aacute e quem a perder conservaacute-la-aacute raquo (Lc

17 33) mdash disse Jesus afirmaccedilatildeo esta que se encontra nos Evangelhos com diversas variantes

(cf Mt 10 39 16 25 Mc 8 35 Lc 9 24 Jo 12 25) Assim descreve Jesus o seu caminho

pessoal que O conduz atraveacutes da cruz agrave ressurreiccedilatildeo o caminho do gratildeo de trigo que cai na

terra e morre e assim daacute muito fruto Partindo do centro do seu sacrifiacutecio pessoal e do amor

que aiacute alcanccedila a sua plenitude Ele com tais palavras descreve tambeacutem a essecircncia do amor e

da existecircncia humana em geral

7 Inicialmente mais filosoacuteficas as nossas reflexotildees sobre a essecircncia do amor conduziram-nos

agora pela sua dinacircmica interior agrave feacute biacuteblica Ao princiacutepio colocou-se o problema de saber se

os vaacuterios ou melhor opostos significados da palavra amor subentenderiam no fundo uma

certa unidade entre eles ou se deveriam ficar desligados um ao lado do outro Mas acima de

tudo surgiu a questatildeo seguinte se a mensagem sobre o amor que nos eacute anunciada pela Biacuteblia

e pela Tradiccedilatildeo da Igreja teria algo a ver com a experiecircncia humana comum do amor ou se

pelo contraacuterio se opusesse a ela A este respeito fomos dar com duas palavras fundamentais

eros como termo para significar o amor laquo mundano raquo e agape como expressatildeo do amor

fundado sobre a feacute e por ela plasmado As duas concepccedilotildees aparecem frequentemente

contrapostas como amor laquo ascendente raquo e amor laquo descendente raquo Existem outras classificaccedilotildees

afins como por exemplo a distinccedilatildeo entre amor possessivo e amor oblativo (amor

concupiscentiaelig ndash amor benevolentiaelig) agrave qual agraves vezes se acrescenta ainda o amor que

procura o proacuteprio interesse

No debate filosoacutefico e teoloacutegico estas distinccedilotildees foram muitas vezes radicalizadas ateacute ao

ponto de as colocar em contraposiccedilatildeo tipicamente cristatildeo seria o amor descendente oblativo

ou seja a agape ao inveacutes a cultura natildeo cristatilde especialmente a grega caracterizar-se-ia pelo

amor ascendente ambicioso e possessivo ou seja pelo eros Se se quisesse levar ao extremo

esta antiacutetese a essecircncia do cristianismo terminaria desarticulada das relaccedilotildees baacutesicas e vitais

da existecircncia humana e constituiria um mundo independente considerado talvez admiraacutevel

mas decididamente separado do conjunto da existecircncia humana Na realidade eros e agape mdash

amor ascendente e amor descendente mdash nunca se deixam separar completamente um do outro

Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade embora em distintas dimensotildees na uacutenica

realidade do amor tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral Embora o

eros seja inicialmente sobretudo ambicioso ascendente mdash fascinaccedilatildeo pela grande promessa de

felicidade mdash depois agrave medida que se aproxima do outro far-se-aacute cada vez menos perguntas

sobre si proacuteprio procuraraacute sempre mais a felicidade do outro preocupar-se-aacute cada vez mais

dele doar-se-aacute e desejaraacute laquo existir para raquo o outro Assim se insere nele o momento da agape

caso contraacuterio o eros decai e perde mesmo a sua proacutepria natureza Por outro lado o homem

tambeacutem natildeo pode viver exclusivamente no amor oblativo descendente Natildeo pode limitar-se

sempre a dar deve tambeacutem receber Quem quer dar amor deve ele mesmo recebecirc-lo em dom

Certamente o homem pode mdash como nos diz o Senhor mdash tornar-se uma fonte donde correm

rios de aacutegua viva (cf Jo 7 37-38) mas para se tornar semelhante fonte deve ele mesmo

beber incessantemente da fonte primeira e originaacuteria que eacute Jesus Cristo de cujo coraccedilatildeo

trespassado brota o amor de Deus (cf Jo 19 34)

Os Padres viram simbolizada de vaacuterias maneiras na narraccedilatildeo da escada de Jacob esta conexatildeo

indivisiacutevel entre subida e descida entre o eros que procura Deus e a agape que transmite o

dom recebido Naquele texto biacuteblico refere-se que o patriarca Jacob num sonho viu assente na

pedra que lhe servia de travesseiro uma escada que chegava ateacute ao ceacuteu pela qual subiam e

desciam os anjos de Deus (cf Gn 28 12 Jo 1 51) Particularmente interessante eacute a

interpretaccedilatildeo que daacute o Papa Gregoacuterio Magno desta visatildeo na sua Regra pastoral O bom pastor

mdash diz ele mdash deve estar radicado na contemplaccedilatildeo De facto soacute assim lhe seraacute possiacutevel acolher

de tal modo no seu iacutentimo as necessidades dos outros que estas se tornem suas laquo per pietatis

viscera in se infirmitatem caeligterorum transferat raquo [4] Neste contexto Satildeo Gregoacuterio alude a

Satildeo Paulo que foi arrebatado para as alturas ateacute aos maiores misteacuterios de Deus e precisamente

desta forma quando desce eacute capaz de fazer-se tudo para todos (cf 2 Cor 12 2-4 1 Cor 9

22) Aleacutem disso indica o exemplo de Moiseacutes que repetidamente entra na tenda sagrada

permanecendo em diaacutelogo com Deus para poder assim a partir de Deus estar agrave disposiccedilatildeo do

seu povo laquo Dentro [da tenda] arrebatado ateacute agraves alturas mediante a contemplaccedilatildeo fora [da

tenda] deixa-se encalccedilar pelo peso dos que sofrem Intus in contemplationem rapitur foris

infirmantium negotiis urgetur raquo [5]

8 Encontramos assim uma primeira resposta ainda bastante geneacuterica para as duas questotildees

atraacutes expostas no fundo o laquo amor raquo eacute uma uacutenica realidade embora com distintas dimensotildees

caso a caso pode uma ou outra dimensatildeo sobressair mais Mas quando as duas dimensotildees se

separam completamente uma da outra surge uma caricatura ou de qualquer modo uma forma

redutiva do amor E vimos sinteticamente tambeacutem que a feacute biacuteblica natildeo constroacutei um mundo

paralelo ou um mundo contraposto agravequele fenoacutemeno humano originaacuterio que eacute o amor mas

aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificaacute-la desvendando-lhe

ao mesmo tempo novas dimensotildees Esta novidade da feacute biacuteblica manifesta-se sobretudo em

dois pontos que merecem ser sublinhados a imagem de Deus e a imagem do homem

A novidade da feacute biacuteblica

9 Antes de mais nada temos a nova imagem de Deus Nas culturas que circundam o mundo

da Biacuteblia a imagem de deus e dos deuses permanece tudo somado pouco clara e em si

mesma contraditoacuteria No itineraacuterio da feacute biacuteblica ao inveacutes vai-se tornando cada vez mais claro

e uniacutevoco aquilo que a oraccedilatildeo fundamental de Israel o Shema resume nestas palavras laquo

Escuta oacute Israel O Senhor nosso Deus eacute o uacutenico Senhor raquo (Dt 6 4) Existe um uacutenico Deus

que eacute o Criador do ceacuteu e da terra e por isso eacute tambeacutem o Deus de todos os homens Dois factos

se singularizam neste esclarecimento que verdadeiramente todos os outros deuses natildeo satildeo

Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus eacute criada por Ele Certamente a ideia

de uma criaccedilatildeo existe tambeacutem alhures mas soacute aqui aparece perfeitamente claro que natildeo um

deus qualquer mas o uacutenico Deus verdadeiro Ele mesmo eacute o autor de toda a realidade esta

proveacutem da forccedila da sua Palavra criadora Isto significa que esta sua criatura Lhe eacute querida

precisamente porque foi desejada por Ele mesmo foi laquo feita raquo por Ele E assim aparece agora

o segundo elemento importante este Deus ama o homem A forccedila divina que Aristoacuteteles no

auge da filosofia grega procurou individuar mediante a reflexatildeo eacute certamente para cada ser

objecto do desejo e do amor mdash como realidade amada esta divindade move o mundo [6] mdash

mas ela mesma natildeo necessita de nada e natildeo ama eacute somente amada Ao contraacuterio o uacutenico

Deus em que Israel crecirc ama pessoalmente Aleacutem disso o seu amor eacute um amor de eleiccedilatildeo

entre todos os povos Ele escolhe Israel e ama-o mdash mas com a finalidade de curar

precisamente deste modo a humanidade inteira Ele ama e este seu amor pode ser qualificado

sem duacutevida como eros que no entanto eacute totalmente agape tambeacutem [7]

Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixatildeo de Deus pelo seu povo com

arrojadas imagens eroacuteticas A relaccedilatildeo de Deus com Israel eacute ilustrada atraveacutes das metaacuteforas do

noivado e do matrimoacutenio consequentemente a idolatria eacute adulteacuterio e prostituiccedilatildeo Assim se

alude concretamente mdash como vimos mdash aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros mas

ao mesmo tempo eacute descrita tambeacutem a relaccedilatildeo de fidelidade entre Israel e o seu Deus A

histoacuteria de amor de Deus com Israel consiste na sua profundidade no facto de que Ele daacute a

Torah isto eacute abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a

estrada do verdadeiro humanismo Por seu lado o homem vivendo na fidelidade ao uacutenico

Deus sente-se a si proacuteprio como aquele que eacute amado por Deus e descobre a alegria na

verdade na justiccedila mdash a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial laquo Quem terei

eu nos ceacuteus Aleacutem de Voacutes nada mais anseio sobre a terra () O meu bem eacute estar perto de

Deus raquo (Sal 7372 2528)

10 O eros de Deus pelo homem mdash como dissemos mdash eacute ao mesmo tempo totalmente agape E

natildeo soacute porque eacute dado de maneira totalmente gratuita sem meacuterito algum precedente mas

tambeacutem porque eacute amor que perdoa Sobretudo Oseias mostra-nos a dimensatildeo da agape no

amor de Deus pelo homem que supera largamente o aspecto da gratuidade Israel cometeu laquo

adulteacuterio raquo rompeu a Alianccedila Deus deveria julgaacute-lo e repudiaacute-lo Mas precisamente aqui se

revela que Deus eacute Deus e natildeo homem laquo Como te abandonarei oacute Efraim Entregar-te-ei oacute

Israel O meu coraccedilatildeo daacute voltas dentro de mim comove-se a minha compaixatildeo Natildeo

desafogarei o furor da minha coacutelera natildeo destruirei Efraim porque sou Deus e natildeo um homem

sou Santo no meio de ti raquo (Os 11 8-9) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo mdash pelo

homem mdash eacute ao mesmo tempo um amor que perdoa E eacute tatildeo grande que chega a virar Deus

contra Si proacuteprio o seu amor contra a sua justiccedila Nisto o cristatildeo vecirc jaacute esboccedilar-se

veladamente o misteacuterio da Cruz Deus ama tanto o homem que tendo-Se feito Ele proacuteprio

homem segue-o ateacute agrave morte e deste modo reconcilia justiccedila e amor

O aspecto filosoacutefico e histoacuterico-religioso saliente nesta visatildeo da Biacuteblia eacute o facto de por um

lado nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafiacutesica de Deus Deus eacute

absolutamente a fonte originaacuteria de todo o ser mas este princiacutepio criador de todas as coisas mdash

o Logos a razatildeo primordial mdash eacute ao mesmo tempo um amante com toda a paixatildeo de um

verdadeiro amor Deste modo o eros eacute enobrecido ao maacuteximo mas simultaneamente tatildeo

purificado que se funde com a agape Daqui podemos compreender por que a recepccedilatildeo do

Cacircntico dos Cacircnticos no cacircnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no

sentido de que aqueles cacircnticos de amor no fundo descreviam a relaccedilatildeo de Deus com o

homem e do homem com Deus E assim o referido livro tornou-se tanto na literatura cristatilde

como na judaica uma fonte de conhecimento e de experiecircncia miacutestica em que se exprime a

essecircncia da feacute biacuteblica na verdade existe uma unificaccedilatildeo do homem com Deus mdash o sonho

originaacuterio do homem mdash mas esta unificaccedilatildeo natildeo eacute confundir-se um afundar no oceano

anoacutenimo do Divino eacute unidade que cria amor na qual ambos mdash Deus e o homem mdash

permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa soacute laquo Aquele poreacutem que se

une ao Senhor constitui com Ele um soacute espiacuterito raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 6 17)

11 Como vimos a primeira novidade da feacute biacuteblica consiste na imagem de Deus a segunda

essencialmente ligada a ela encontramo-la na imagem do homem A narraccedilatildeo biacuteblica da

criaccedilatildeo fala da solidatildeo do primeiro homem Adatildeo querendo Deus pocircr a seu lado um auxiacutelio

Dentre todas as criaturas nenhuma pocircde ser para o homem aquela ajuda de que necessita

apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves integrando-os

assim no contexto da sua vida Entatildeo de uma costela do homem Deus plasma a mulher

Agora Adatildeo encontra a ajuda de que necessita laquo Esta eacute realmente osso dos meus ossos e

carne da minha carne raquo (Gn 2 23) Na base desta narraccedilatildeo eacute possiacutevel entrever concepccedilotildees

semelhantes agraves que aparecem por exemplo no mito referido por Platatildeo segundo o qual o

homem originariamente era esfeacuterico porque completo em si mesmo e auto-suficiente Mas

como puniccedilatildeo pela sua soberba foi dividido ao meio por Zeus de tal modo que agora sempre

anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade [8] Na

narraccedilatildeo biacuteblica natildeo se fala de puniccedilatildeo poreacutem a ideia de que o homem de algum modo esteja

incompleto constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a

sua totalidade isto eacute a ideia de que soacute na comunhatildeo com o outro sexo possa tornar-se laquo

completo raquo estaacute sem duacutevida presente E deste modo a narraccedilatildeo biacuteblica conclui com uma

profecia sobre Adatildeo laquo Por este motivo o homem deixaraacute o pai e a matildee para se unir agrave sua

mulher e os dois seratildeo uma soacute carne raquo (Gn 2 24)

Aqui haacute dois aspectos importantes primeiro o eros estaacute de certo modo enraizado na proacutepria

natureza do homem Adatildeo anda agrave procura e laquo deixa o pai e a matildee raquo para encontrar a mulher

soacute no seu conjunto eacute que representam a totalidade humana tornam-se laquo uma soacute carne raquo Natildeo

menos importante eacute o segundo aspecto numa orientaccedilatildeo baseada na criaccedilatildeo o eros impele o

homem ao matrimoacutenio a uma ligaccedilatildeo caracterizada pela unicidade e para sempre deste modo

e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta

corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e

definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo

de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e

matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma

Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus

12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou

clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A

verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura

de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo

Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo

imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma

dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha

perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do

pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao

encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a

explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus

contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na

sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19

37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1

Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora

definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu

viver e amar

13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia

durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos

seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf

Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do

homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora

este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-

nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado

mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e

Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na

presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu

corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de

Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica

elevaccedilatildeo do homem poderia realizar

14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um

caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os

demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um

soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A

uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu

natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se

tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me

para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute

corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo

agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende

por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de

Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir

desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o

ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao

duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da

centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir

autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e

ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro

com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente

desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar

por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute

em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo

mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera

exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado

15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus

O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam

informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava

necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos

acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva

a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia

essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de

Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido

Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de

proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a

todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo

pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa

da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos

seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final

(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a

inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos

forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos

mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo

fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus

encontramos Deus

Amor a Deus e amor ao proacuteximo

16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica

resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente

possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o

duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas

ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser

mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado

pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se

algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu

irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo

exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o

contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca

o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o

outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo

ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de

que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos

diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus

17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus

natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes

Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus

apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo

para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf

Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a

Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute

ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas

quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na

sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso

encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos

especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos

crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste

modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a

ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo

nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos

ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta

despontar tambeacutem em noacutes o amor

No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento

Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute

a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos

pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da

palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e

incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis

do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de

ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso

intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa

vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute

um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e

completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si

proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute

segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva

agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste

precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento

e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a

vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os

mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus

eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em

Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)

18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na

Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo

me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro

iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar

o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e

sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem

do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de

atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam

aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao

outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de

que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao

proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta

totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo

reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo

ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo

entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas

sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute

que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus

olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash

pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o

proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa

este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros

Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas

ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se

trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia

do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente

comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de

Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que

supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1

Cor 15 28)

II PARTE

CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR

PELA IGREJA

ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo

A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio

19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das

reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)

reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito

ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista

mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele

havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa

dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos

crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus

coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se

inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida

por todos (cf Jo 13 1 15 13)

O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no

mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu

Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do

homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento

este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios

acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para

acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute

sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da

Enciacuteclica

A caridade como dever da Igreja

20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um

dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis

desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua

globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto

eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo

comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde

os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras

e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo

(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre

cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos

anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum

pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-

37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga

mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo

deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para

uma vida condigna

21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial

fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio

diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo

quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os

Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo

serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo

decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo

tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia

realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do

Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de

cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo

espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um

dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste

organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido

comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da

proacutepria Igreja

22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-

se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e

o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e

necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos

Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal

como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns

exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos

descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As

pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer

o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros

motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor

cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de

qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por

117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se

supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade

caritativa concreta

23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que

tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no

Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo

conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes

iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade

juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo

puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua

diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa

Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo

documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os

primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde

expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra

uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu

martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos

seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele

como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de

liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo

distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como

sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se

queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande

expoente da caridade eclesial

24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra

uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e

praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e

doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com

razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em

consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito

imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo

reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se

largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes

deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o

uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso

considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade

da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham

conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste

modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade

cristatilde da Igreja

25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas

a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus

(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)

Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a

Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo

deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria

essecircncia [17]

b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra

por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das

fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida

impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo

(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do

amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de

que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade

Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo

pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)

Justiccedila e caridade

26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma

objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres

mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade

mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo

da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres

nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo

das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a

sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de

caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute

tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a

prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no

respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre

o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de

vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a

formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as

antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na

composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo

decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o

capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as

massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se

27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de

que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram

pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta

agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e

sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a

pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 2: Deus cartitas est

na resposta humana ao amor divino

I PARTE

A UNIDADE DO AMOR

NA CRIACcedilAtildeO

E NA HISTOacuteRIA DA SALVACcedilAtildeO

Um problema de linguagem

2 O amor de Deus por noacutes eacute questatildeo fundamental para a vida e coloca questotildees decisivas

sobre quem eacute Deus e quem somos noacutes A tal propoacutesito o primeiro obstaacuteculo que encontramos

eacute um problema de linguagem O termo laquo amor raquo tornou-se hoje uma das palavras mais usadas

e mesmo abusadas agrave qual associamos significados completamente diferentes Embora o tema

desta Enciacuteclica se concentre sobre a questatildeo da compreensatildeo e da praacutetica do amor na Sagrada

Escritura e na Tradiccedilatildeo da Igreja natildeo podemos prescindir pura e simplesmente do significado

que esta palavra tem nas vaacuterias culturas e na linguagem actual

Em primeiro lugar recordemos o vasto campo semacircntico da palavra laquo amor raquo fala-se de amor

da paacutetria amor agrave profissatildeo amor entre amigos amor ao trabalho amor entre pais e filhos

entre irmatildeos e familiares amor ao proacuteximo e amor a Deus Em toda esta gama de significados

poreacutem o amor entre o homem e a mulher no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e

se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistiacutevel sobressai como

arqueacutetipo de amor por excelecircncia de tal modo que comparados com ele agrave primeira vista

todos os demais tipos de amor se ofuscam Surge entatildeo a questatildeo todas estas formas de amor

no fim de contas unificam-se sendo o amor apesar de toda a diversidade das suas

manifestaccedilotildees em uacuteltima instacircncia um soacute ou ao contraacuterio utilizamos uma mesma palavra

para indicar realidades totalmente diferentes

laquo Eros raquo e laquo agape raquo ndash diferenccedila e unidade

3 Ao amor entre homem e mulher que natildeo nasce da inteligecircncia e da vontade mas de certa

forma impotildee-se ao ser humano a Greacutecia antiga deu o nome de eros Diga-se desde jaacute que o

Antigo Testamento grego usa soacute duas vezes a palavra eros enquanto o Novo Testamento

nunca a usa das trecircs palavras gregas relacionadas com o amor mdash eros philia (amor de

amizade) e agape mdash os escritos neo-testamentaacuterios privilegiam a uacuteltima que na linguagem

grega era quase posta de lado Quanto ao amor de amizade (philia) este eacute retomado com um

significado mais profundo no Evangelho de Joatildeo para exprimir a relaccedilatildeo entre Jesus e os seus

disciacutepulos A marginalizaccedilatildeo da palavra eros juntamente com a nova visatildeo do amor que se

exprime atraveacutes da palavra agape denota sem duacutevida na novidade do cristianismo algo de

essencial e proacuteprio relativamente agrave compreensatildeo do amor Na criacutetica ao cristianismo que se foi

desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do iluminismo esta novidade foi avaliada

de forma absolutamente negativa Segundo Friedrich Nietzsche o cristianismo teria dado

veneno a beber ao eros que embora natildeo tivesse morrido daiacute teria recebido o impulso para

degenerar em viacutecio [1] Este filoacutesofo alematildeo exprimia assim uma sensaccedilatildeo muito

generalizada com os seus mandamentos e proibiccedilotildees a Igreja natildeo nos torna porventura

amarga a coisa mais bela da vida Porventura natildeo assinala ela proibiccedilotildees precisamente onde a

alegria preparada para noacutes pelo Criador nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir

algo do Divino

4 Mas seraacute mesmo assim O cristianismo destruiu verdadeiramente o eros Vejamos o

mundo preacute-cristatildeo Os gregos mdash aliaacutes de forma anaacuteloga a outras culturas mdash viram no eros

sobretudo o inebriamento a subjugaccedilatildeo da razatildeo por parte duma laquo loucura divina raquo que

arranca o homem das limitaccedilotildees da sua existecircncia e neste estado de transtorno por uma forccedila

divina faz-lhe experimentar a mais alta beatitude Deste modo todas as outras forccedilas quer no

ceacuteu quer na terra resultam de importacircncia secundaacuteria laquo Omnia vincit amor mdash o amor tudo

vence raquo afirma Virgiacutelio nas Bucoacutelicas e acrescenta laquo et nos cedamus amori mdash rendamo-nos

tambeacutem noacutes ao amor raquo [2] Nas religiotildees esta posiccedilatildeo traduziu-se nos cultos da fertilidade aos

quais pertence a prostituiccedilatildeo laquo sagrada raquo que prosperava em muitos templos O eros foi pois

celebrado como forccedila divina como comunhatildeo com o Divino

A esta forma de religiatildeo que contrasta como uma fortiacutessima tentaccedilatildeo com a feacute no uacutenico Deus

o Antigo Testamento opocircs-se com a maior firmeza combatendo-a como perversatildeo da

religiosidade Ao fazecirc-lo poreacutem natildeo rejeitou de modo algum o eros enquanto tal mas

declarou guerra agrave sua subversatildeo devastadora porque a falsa divinizaccedilatildeo do eros como aiacute se

verifica priva-o da sua dignidade desumaniza-o De facto no templo as prostitutas que

devem dar o inebriamento do Divino natildeo satildeo tratadas como seres humanos e pessoas mas

servem apenas como instrumentos para suscitar a laquo loucura divina raquo na realidade natildeo satildeo

deusas mas pessoas humanas de quem se abusa Por isso o eros inebriante e descontrolado

natildeo eacute subida laquo ecircxtase raquo ateacute ao Divino mas queda degradaccedilatildeo do homem Fica assim claro

que o eros necessita de disciplina de purificaccedilatildeo para dar ao homem natildeo o prazer de um

instante mas uma certa amostra do veacutertice da existecircncia daquela beatitude para que tende

todo o nosso ser

5 Dois dados resultam claramente desta raacutepida visatildeo sobre a concepccedilatildeo do eros na histoacuteria e

na actualidade O primeiro eacute que entre o amor e o Divino existe qualquer relaccedilatildeo o amor

promete infinito eternidade mdash uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da

nossa existecircncia E o segundo eacute que o caminho para tal meta natildeo consiste em deixar-se

simplesmente subjugar pelo instinto Satildeo necessaacuterias purificaccedilotildees e amadurecimentos que

passam tambeacutem pela estrada da renuacutencia Isto natildeo eacute rejeiccedilatildeo do eros natildeo eacute o seu laquo

envenenamento raquo mas a cura em ordem agrave sua verdadeira grandeza

Isto depende primariamente da constituiccedilatildeo do ser humano que eacute composto de corpo e alma

O homem torna-se realmente ele mesmo quando corpo e alma se encontram em iacutentima

unidade o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado quando se consegue

esta unificaccedilatildeo Se o homem aspira a ser somente espiacuterito e quer rejeitar a carne como uma

heranccedila apenas animalesca entatildeo espiacuterito e corpo perdem a sua dignidade E se ele por outro

lado renega o espiacuterito e consequentemente considera a mateacuteria o corpo como realidade

exclusiva perde igualmente a sua grandeza O epicurista Gassendi gracejando

cumprimentava Descartes com a saudaccedilatildeo laquo Oacute Alma raquo E Descartes replicava dizendo laquo Oacute

Carne raquo [3] Mas nem o espiacuterito ama sozinho nem o corpo eacute o homem a pessoa que ama

como criatura unitaacuteria de que fazem parte o corpo e a alma Somente quando ambos se

fundem verdadeiramente numa unidade eacute que o homem se torna plenamente ele proacuteprio Soacute

deste modo eacute que o amor mdash o eros mdash pode amadurecer ateacute agrave sua verdadeira grandeza

Hoje natildeo eacute raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido adversaacuterio da

corporeidade a realidade eacute que sempre houve tendecircncias neste sentido Mas o modo de exaltar

o corpo a que assistimos hoje eacute enganador O eros degradado a puro laquo sexo raquo torna-se

mercadoria torna-se simplesmente uma laquo coisa raquo que se pode comprar e vender antes o

proacuteprio homem torna-se mercadoria Na realidade para o homem isto natildeo constitui

propriamente uma grande afirmaccedilatildeo do seu corpo Pelo contraacuterio agora considera o corpo e a

sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito

Uma parte aliaacutes que ele natildeo vecirc como um acircmbito da sua liberdade mas antes como algo que

a seu modo procura tornar simultaneamente agradaacutevel e inoacutecuo Na verdade encontramo-nos

diante duma degradaccedilatildeo do corpo humano que deixa de estar integrado no conjunto da

liberdade da nossa existecircncia deixa de ser expressatildeo viva da totalidade do nosso ser acabando

como que relegado para o campo puramente bioloacutegico A aparente exaltaccedilatildeo do corpo pode

bem depressa converter-se em oacutedio agrave corporeidade Ao contraacuterio a feacute cristatilde sempre

considerou o homem como um ser uni-dual em que espiacuterito e mateacuteria se compenetram

mutuamente experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza Sim o eros

quer-nos elevar laquo em ecircxtase raquo para o Divino conduzir-nos para aleacutem de noacutes proacuteprios mas por

isso mesmo requer um caminho de ascese renuacutencias purificaccedilotildees e saneamentos

6 Concretamente como se deve configurar este caminho de ascese e purificaccedilatildeo Como deve

ser vivido o amor para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina Uma

primeira indicaccedilatildeo importante podemos encontraacute-la no Cacircntico dos Cacircnticos um dos livros

do Antigo Testamento bem conhecido dos miacutesticos Segundo a interpretaccedilatildeo hoje

predominante as poesias contidas neste livro satildeo originalmente cacircnticos de amor talvez

previstos para uma festa israelita de nuacutepcias na qual deviam exaltar o amor conjugal Neste

contexto eacute muito elucidativo o facto de ao longo do livro se encontrarem duas palavras

distintas para designar o laquo amor raquo Primeiro aparece a palavra laquo dodim raquo um plural que

exprime o amor ainda inseguro numa situaccedilatildeo de procura indeterminada Depois esta palavra

eacute substituiacuteda por laquo ahabagrave raquo que na versatildeo grega do Antigo Testamento eacute traduzida pelo

termo de som semelhante laquo agape raquo que se tornou como vimos o termo caracteriacutestico para a

concepccedilatildeo biacuteblica do amor Em contraposiccedilatildeo ao amor indeterminado e ainda em fase de

procura este vocaacutebulo exprime a experiecircncia do amor que agora se torna verdadeiramente

descoberta do outro superando assim o caraacutecter egoiacutesta que antes claramente prevalecia

Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro Jaacute natildeo se busca a si proacuteprio natildeo busca a

imersatildeo no inebriamento da felicidade procura ao inveacutes o bem do amado torna-se renuacutencia

estaacute disposto ao sacrifiacutecio antes procura-o

Faz parte da evoluccedilatildeo do amor para niacuteveis mais altos para as suas iacutentimas purificaccedilotildees que

ele procure agora o caraacutecter definitivo e isto num duplo sentido no sentido da exclusividade

mdash laquo apenas esta uacutenica pessoa raquo mdash e no sentido de ser laquo para sempre raquo O amor compreende a

totalidade da existecircncia em toda a sua dimensatildeo inclusive a temporal Nem poderia ser de

outro modo porque a sua promessa visa o definitivo o amor visa a eternidade Sim o amor eacute

laquo ecircxtase raquo ecircxtase natildeo no sentido de um instante de inebriamento mas como caminho como

ecircxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertaccedilatildeo no dom de si e

precisamente dessa forma para o reencontro de si mesmo mais ainda para a descoberta de

Deus laquo Quem procurar salvaguardar a vida perdecirc-la-aacute e quem a perder conservaacute-la-aacute raquo (Lc

17 33) mdash disse Jesus afirmaccedilatildeo esta que se encontra nos Evangelhos com diversas variantes

(cf Mt 10 39 16 25 Mc 8 35 Lc 9 24 Jo 12 25) Assim descreve Jesus o seu caminho

pessoal que O conduz atraveacutes da cruz agrave ressurreiccedilatildeo o caminho do gratildeo de trigo que cai na

terra e morre e assim daacute muito fruto Partindo do centro do seu sacrifiacutecio pessoal e do amor

que aiacute alcanccedila a sua plenitude Ele com tais palavras descreve tambeacutem a essecircncia do amor e

da existecircncia humana em geral

7 Inicialmente mais filosoacuteficas as nossas reflexotildees sobre a essecircncia do amor conduziram-nos

agora pela sua dinacircmica interior agrave feacute biacuteblica Ao princiacutepio colocou-se o problema de saber se

os vaacuterios ou melhor opostos significados da palavra amor subentenderiam no fundo uma

certa unidade entre eles ou se deveriam ficar desligados um ao lado do outro Mas acima de

tudo surgiu a questatildeo seguinte se a mensagem sobre o amor que nos eacute anunciada pela Biacuteblia

e pela Tradiccedilatildeo da Igreja teria algo a ver com a experiecircncia humana comum do amor ou se

pelo contraacuterio se opusesse a ela A este respeito fomos dar com duas palavras fundamentais

eros como termo para significar o amor laquo mundano raquo e agape como expressatildeo do amor

fundado sobre a feacute e por ela plasmado As duas concepccedilotildees aparecem frequentemente

contrapostas como amor laquo ascendente raquo e amor laquo descendente raquo Existem outras classificaccedilotildees

afins como por exemplo a distinccedilatildeo entre amor possessivo e amor oblativo (amor

concupiscentiaelig ndash amor benevolentiaelig) agrave qual agraves vezes se acrescenta ainda o amor que

procura o proacuteprio interesse

No debate filosoacutefico e teoloacutegico estas distinccedilotildees foram muitas vezes radicalizadas ateacute ao

ponto de as colocar em contraposiccedilatildeo tipicamente cristatildeo seria o amor descendente oblativo

ou seja a agape ao inveacutes a cultura natildeo cristatilde especialmente a grega caracterizar-se-ia pelo

amor ascendente ambicioso e possessivo ou seja pelo eros Se se quisesse levar ao extremo

esta antiacutetese a essecircncia do cristianismo terminaria desarticulada das relaccedilotildees baacutesicas e vitais

da existecircncia humana e constituiria um mundo independente considerado talvez admiraacutevel

mas decididamente separado do conjunto da existecircncia humana Na realidade eros e agape mdash

amor ascendente e amor descendente mdash nunca se deixam separar completamente um do outro

Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade embora em distintas dimensotildees na uacutenica

realidade do amor tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral Embora o

eros seja inicialmente sobretudo ambicioso ascendente mdash fascinaccedilatildeo pela grande promessa de

felicidade mdash depois agrave medida que se aproxima do outro far-se-aacute cada vez menos perguntas

sobre si proacuteprio procuraraacute sempre mais a felicidade do outro preocupar-se-aacute cada vez mais

dele doar-se-aacute e desejaraacute laquo existir para raquo o outro Assim se insere nele o momento da agape

caso contraacuterio o eros decai e perde mesmo a sua proacutepria natureza Por outro lado o homem

tambeacutem natildeo pode viver exclusivamente no amor oblativo descendente Natildeo pode limitar-se

sempre a dar deve tambeacutem receber Quem quer dar amor deve ele mesmo recebecirc-lo em dom

Certamente o homem pode mdash como nos diz o Senhor mdash tornar-se uma fonte donde correm

rios de aacutegua viva (cf Jo 7 37-38) mas para se tornar semelhante fonte deve ele mesmo

beber incessantemente da fonte primeira e originaacuteria que eacute Jesus Cristo de cujo coraccedilatildeo

trespassado brota o amor de Deus (cf Jo 19 34)

Os Padres viram simbolizada de vaacuterias maneiras na narraccedilatildeo da escada de Jacob esta conexatildeo

indivisiacutevel entre subida e descida entre o eros que procura Deus e a agape que transmite o

dom recebido Naquele texto biacuteblico refere-se que o patriarca Jacob num sonho viu assente na

pedra que lhe servia de travesseiro uma escada que chegava ateacute ao ceacuteu pela qual subiam e

desciam os anjos de Deus (cf Gn 28 12 Jo 1 51) Particularmente interessante eacute a

interpretaccedilatildeo que daacute o Papa Gregoacuterio Magno desta visatildeo na sua Regra pastoral O bom pastor

mdash diz ele mdash deve estar radicado na contemplaccedilatildeo De facto soacute assim lhe seraacute possiacutevel acolher

de tal modo no seu iacutentimo as necessidades dos outros que estas se tornem suas laquo per pietatis

viscera in se infirmitatem caeligterorum transferat raquo [4] Neste contexto Satildeo Gregoacuterio alude a

Satildeo Paulo que foi arrebatado para as alturas ateacute aos maiores misteacuterios de Deus e precisamente

desta forma quando desce eacute capaz de fazer-se tudo para todos (cf 2 Cor 12 2-4 1 Cor 9

22) Aleacutem disso indica o exemplo de Moiseacutes que repetidamente entra na tenda sagrada

permanecendo em diaacutelogo com Deus para poder assim a partir de Deus estar agrave disposiccedilatildeo do

seu povo laquo Dentro [da tenda] arrebatado ateacute agraves alturas mediante a contemplaccedilatildeo fora [da

tenda] deixa-se encalccedilar pelo peso dos que sofrem Intus in contemplationem rapitur foris

infirmantium negotiis urgetur raquo [5]

8 Encontramos assim uma primeira resposta ainda bastante geneacuterica para as duas questotildees

atraacutes expostas no fundo o laquo amor raquo eacute uma uacutenica realidade embora com distintas dimensotildees

caso a caso pode uma ou outra dimensatildeo sobressair mais Mas quando as duas dimensotildees se

separam completamente uma da outra surge uma caricatura ou de qualquer modo uma forma

redutiva do amor E vimos sinteticamente tambeacutem que a feacute biacuteblica natildeo constroacutei um mundo

paralelo ou um mundo contraposto agravequele fenoacutemeno humano originaacuterio que eacute o amor mas

aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificaacute-la desvendando-lhe

ao mesmo tempo novas dimensotildees Esta novidade da feacute biacuteblica manifesta-se sobretudo em

dois pontos que merecem ser sublinhados a imagem de Deus e a imagem do homem

A novidade da feacute biacuteblica

9 Antes de mais nada temos a nova imagem de Deus Nas culturas que circundam o mundo

da Biacuteblia a imagem de deus e dos deuses permanece tudo somado pouco clara e em si

mesma contraditoacuteria No itineraacuterio da feacute biacuteblica ao inveacutes vai-se tornando cada vez mais claro

e uniacutevoco aquilo que a oraccedilatildeo fundamental de Israel o Shema resume nestas palavras laquo

Escuta oacute Israel O Senhor nosso Deus eacute o uacutenico Senhor raquo (Dt 6 4) Existe um uacutenico Deus

que eacute o Criador do ceacuteu e da terra e por isso eacute tambeacutem o Deus de todos os homens Dois factos

se singularizam neste esclarecimento que verdadeiramente todos os outros deuses natildeo satildeo

Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus eacute criada por Ele Certamente a ideia

de uma criaccedilatildeo existe tambeacutem alhures mas soacute aqui aparece perfeitamente claro que natildeo um

deus qualquer mas o uacutenico Deus verdadeiro Ele mesmo eacute o autor de toda a realidade esta

proveacutem da forccedila da sua Palavra criadora Isto significa que esta sua criatura Lhe eacute querida

precisamente porque foi desejada por Ele mesmo foi laquo feita raquo por Ele E assim aparece agora

o segundo elemento importante este Deus ama o homem A forccedila divina que Aristoacuteteles no

auge da filosofia grega procurou individuar mediante a reflexatildeo eacute certamente para cada ser

objecto do desejo e do amor mdash como realidade amada esta divindade move o mundo [6] mdash

mas ela mesma natildeo necessita de nada e natildeo ama eacute somente amada Ao contraacuterio o uacutenico

Deus em que Israel crecirc ama pessoalmente Aleacutem disso o seu amor eacute um amor de eleiccedilatildeo

entre todos os povos Ele escolhe Israel e ama-o mdash mas com a finalidade de curar

precisamente deste modo a humanidade inteira Ele ama e este seu amor pode ser qualificado

sem duacutevida como eros que no entanto eacute totalmente agape tambeacutem [7]

Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixatildeo de Deus pelo seu povo com

arrojadas imagens eroacuteticas A relaccedilatildeo de Deus com Israel eacute ilustrada atraveacutes das metaacuteforas do

noivado e do matrimoacutenio consequentemente a idolatria eacute adulteacuterio e prostituiccedilatildeo Assim se

alude concretamente mdash como vimos mdash aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros mas

ao mesmo tempo eacute descrita tambeacutem a relaccedilatildeo de fidelidade entre Israel e o seu Deus A

histoacuteria de amor de Deus com Israel consiste na sua profundidade no facto de que Ele daacute a

Torah isto eacute abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a

estrada do verdadeiro humanismo Por seu lado o homem vivendo na fidelidade ao uacutenico

Deus sente-se a si proacuteprio como aquele que eacute amado por Deus e descobre a alegria na

verdade na justiccedila mdash a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial laquo Quem terei

eu nos ceacuteus Aleacutem de Voacutes nada mais anseio sobre a terra () O meu bem eacute estar perto de

Deus raquo (Sal 7372 2528)

10 O eros de Deus pelo homem mdash como dissemos mdash eacute ao mesmo tempo totalmente agape E

natildeo soacute porque eacute dado de maneira totalmente gratuita sem meacuterito algum precedente mas

tambeacutem porque eacute amor que perdoa Sobretudo Oseias mostra-nos a dimensatildeo da agape no

amor de Deus pelo homem que supera largamente o aspecto da gratuidade Israel cometeu laquo

adulteacuterio raquo rompeu a Alianccedila Deus deveria julgaacute-lo e repudiaacute-lo Mas precisamente aqui se

revela que Deus eacute Deus e natildeo homem laquo Como te abandonarei oacute Efraim Entregar-te-ei oacute

Israel O meu coraccedilatildeo daacute voltas dentro de mim comove-se a minha compaixatildeo Natildeo

desafogarei o furor da minha coacutelera natildeo destruirei Efraim porque sou Deus e natildeo um homem

sou Santo no meio de ti raquo (Os 11 8-9) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo mdash pelo

homem mdash eacute ao mesmo tempo um amor que perdoa E eacute tatildeo grande que chega a virar Deus

contra Si proacuteprio o seu amor contra a sua justiccedila Nisto o cristatildeo vecirc jaacute esboccedilar-se

veladamente o misteacuterio da Cruz Deus ama tanto o homem que tendo-Se feito Ele proacuteprio

homem segue-o ateacute agrave morte e deste modo reconcilia justiccedila e amor

O aspecto filosoacutefico e histoacuterico-religioso saliente nesta visatildeo da Biacuteblia eacute o facto de por um

lado nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafiacutesica de Deus Deus eacute

absolutamente a fonte originaacuteria de todo o ser mas este princiacutepio criador de todas as coisas mdash

o Logos a razatildeo primordial mdash eacute ao mesmo tempo um amante com toda a paixatildeo de um

verdadeiro amor Deste modo o eros eacute enobrecido ao maacuteximo mas simultaneamente tatildeo

purificado que se funde com a agape Daqui podemos compreender por que a recepccedilatildeo do

Cacircntico dos Cacircnticos no cacircnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no

sentido de que aqueles cacircnticos de amor no fundo descreviam a relaccedilatildeo de Deus com o

homem e do homem com Deus E assim o referido livro tornou-se tanto na literatura cristatilde

como na judaica uma fonte de conhecimento e de experiecircncia miacutestica em que se exprime a

essecircncia da feacute biacuteblica na verdade existe uma unificaccedilatildeo do homem com Deus mdash o sonho

originaacuterio do homem mdash mas esta unificaccedilatildeo natildeo eacute confundir-se um afundar no oceano

anoacutenimo do Divino eacute unidade que cria amor na qual ambos mdash Deus e o homem mdash

permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa soacute laquo Aquele poreacutem que se

une ao Senhor constitui com Ele um soacute espiacuterito raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 6 17)

11 Como vimos a primeira novidade da feacute biacuteblica consiste na imagem de Deus a segunda

essencialmente ligada a ela encontramo-la na imagem do homem A narraccedilatildeo biacuteblica da

criaccedilatildeo fala da solidatildeo do primeiro homem Adatildeo querendo Deus pocircr a seu lado um auxiacutelio

Dentre todas as criaturas nenhuma pocircde ser para o homem aquela ajuda de que necessita

apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves integrando-os

assim no contexto da sua vida Entatildeo de uma costela do homem Deus plasma a mulher

Agora Adatildeo encontra a ajuda de que necessita laquo Esta eacute realmente osso dos meus ossos e

carne da minha carne raquo (Gn 2 23) Na base desta narraccedilatildeo eacute possiacutevel entrever concepccedilotildees

semelhantes agraves que aparecem por exemplo no mito referido por Platatildeo segundo o qual o

homem originariamente era esfeacuterico porque completo em si mesmo e auto-suficiente Mas

como puniccedilatildeo pela sua soberba foi dividido ao meio por Zeus de tal modo que agora sempre

anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade [8] Na

narraccedilatildeo biacuteblica natildeo se fala de puniccedilatildeo poreacutem a ideia de que o homem de algum modo esteja

incompleto constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a

sua totalidade isto eacute a ideia de que soacute na comunhatildeo com o outro sexo possa tornar-se laquo

completo raquo estaacute sem duacutevida presente E deste modo a narraccedilatildeo biacuteblica conclui com uma

profecia sobre Adatildeo laquo Por este motivo o homem deixaraacute o pai e a matildee para se unir agrave sua

mulher e os dois seratildeo uma soacute carne raquo (Gn 2 24)

Aqui haacute dois aspectos importantes primeiro o eros estaacute de certo modo enraizado na proacutepria

natureza do homem Adatildeo anda agrave procura e laquo deixa o pai e a matildee raquo para encontrar a mulher

soacute no seu conjunto eacute que representam a totalidade humana tornam-se laquo uma soacute carne raquo Natildeo

menos importante eacute o segundo aspecto numa orientaccedilatildeo baseada na criaccedilatildeo o eros impele o

homem ao matrimoacutenio a uma ligaccedilatildeo caracterizada pela unicidade e para sempre deste modo

e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta

corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e

definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo

de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e

matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma

Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus

12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou

clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A

verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura

de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo

Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo

imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma

dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha

perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do

pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao

encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a

explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus

contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na

sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19

37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1

Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora

definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu

viver e amar

13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia

durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos

seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf

Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do

homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora

este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-

nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado

mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e

Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na

presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu

corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de

Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica

elevaccedilatildeo do homem poderia realizar

14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um

caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os

demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um

soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A

uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu

natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se

tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me

para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute

corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo

agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende

por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de

Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir

desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o

ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao

duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da

centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir

autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e

ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro

com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente

desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar

por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute

em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo

mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera

exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado

15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus

O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam

informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava

necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos

acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva

a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia

essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de

Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido

Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de

proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a

todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo

pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa

da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos

seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final

(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a

inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos

forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos

mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo

fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus

encontramos Deus

Amor a Deus e amor ao proacuteximo

16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica

resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente

possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o

duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas

ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser

mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado

pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se

algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu

irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo

exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o

contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca

o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o

outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo

ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de

que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos

diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus

17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus

natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes

Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus

apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo

para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf

Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a

Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute

ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas

quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na

sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso

encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos

especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos

crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste

modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a

ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo

nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos

ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta

despontar tambeacutem em noacutes o amor

No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento

Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute

a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos

pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da

palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e

incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis

do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de

ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso

intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa

vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute

um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e

completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si

proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute

segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva

agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste

precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento

e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a

vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os

mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus

eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em

Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)

18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na

Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo

me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro

iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar

o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e

sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem

do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de

atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam

aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao

outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de

que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao

proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta

totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo

reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo

ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo

entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas

sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute

que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus

olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash

pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o

proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa

este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros

Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas

ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se

trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia

do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente

comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de

Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que

supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1

Cor 15 28)

II PARTE

CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR

PELA IGREJA

ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo

A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio

19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das

reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)

reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito

ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista

mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele

havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa

dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos

crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus

coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se

inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida

por todos (cf Jo 13 1 15 13)

O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no

mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu

Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do

homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento

este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios

acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para

acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute

sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da

Enciacuteclica

A caridade como dever da Igreja

20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um

dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis

desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua

globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto

eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo

comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde

os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras

e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo

(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre

cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos

anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum

pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-

37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga

mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo

deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para

uma vida condigna

21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial

fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio

diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo

quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os

Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo

serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo

decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo

tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia

realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do

Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de

cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo

espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um

dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste

organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido

comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da

proacutepria Igreja

22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-

se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e

o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e

necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos

Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal

como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns

exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos

descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As

pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer

o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros

motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor

cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de

qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por

117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se

supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade

caritativa concreta

23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que

tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no

Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo

conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes

iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade

juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo

puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua

diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa

Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo

documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os

primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde

expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra

uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu

martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos

seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele

como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de

liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo

distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como

sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se

queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande

expoente da caridade eclesial

24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra

uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e

praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e

doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com

razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em

consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito

imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo

reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se

largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes

deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o

uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso

considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade

da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham

conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste

modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade

cristatilde da Igreja

25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas

a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus

(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)

Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a

Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo

deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria

essecircncia [17]

b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra

por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das

fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida

impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo

(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do

amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de

que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade

Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo

pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)

Justiccedila e caridade

26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma

objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres

mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade

mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo

da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres

nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo

das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a

sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de

caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute

tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a

prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no

respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre

o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de

vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a

formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as

antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na

composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo

decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o

capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as

massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se

27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de

que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram

pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta

agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e

sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a

pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

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Page 3: Deus cartitas est

4 Mas seraacute mesmo assim O cristianismo destruiu verdadeiramente o eros Vejamos o

mundo preacute-cristatildeo Os gregos mdash aliaacutes de forma anaacuteloga a outras culturas mdash viram no eros

sobretudo o inebriamento a subjugaccedilatildeo da razatildeo por parte duma laquo loucura divina raquo que

arranca o homem das limitaccedilotildees da sua existecircncia e neste estado de transtorno por uma forccedila

divina faz-lhe experimentar a mais alta beatitude Deste modo todas as outras forccedilas quer no

ceacuteu quer na terra resultam de importacircncia secundaacuteria laquo Omnia vincit amor mdash o amor tudo

vence raquo afirma Virgiacutelio nas Bucoacutelicas e acrescenta laquo et nos cedamus amori mdash rendamo-nos

tambeacutem noacutes ao amor raquo [2] Nas religiotildees esta posiccedilatildeo traduziu-se nos cultos da fertilidade aos

quais pertence a prostituiccedilatildeo laquo sagrada raquo que prosperava em muitos templos O eros foi pois

celebrado como forccedila divina como comunhatildeo com o Divino

A esta forma de religiatildeo que contrasta como uma fortiacutessima tentaccedilatildeo com a feacute no uacutenico Deus

o Antigo Testamento opocircs-se com a maior firmeza combatendo-a como perversatildeo da

religiosidade Ao fazecirc-lo poreacutem natildeo rejeitou de modo algum o eros enquanto tal mas

declarou guerra agrave sua subversatildeo devastadora porque a falsa divinizaccedilatildeo do eros como aiacute se

verifica priva-o da sua dignidade desumaniza-o De facto no templo as prostitutas que

devem dar o inebriamento do Divino natildeo satildeo tratadas como seres humanos e pessoas mas

servem apenas como instrumentos para suscitar a laquo loucura divina raquo na realidade natildeo satildeo

deusas mas pessoas humanas de quem se abusa Por isso o eros inebriante e descontrolado

natildeo eacute subida laquo ecircxtase raquo ateacute ao Divino mas queda degradaccedilatildeo do homem Fica assim claro

que o eros necessita de disciplina de purificaccedilatildeo para dar ao homem natildeo o prazer de um

instante mas uma certa amostra do veacutertice da existecircncia daquela beatitude para que tende

todo o nosso ser

5 Dois dados resultam claramente desta raacutepida visatildeo sobre a concepccedilatildeo do eros na histoacuteria e

na actualidade O primeiro eacute que entre o amor e o Divino existe qualquer relaccedilatildeo o amor

promete infinito eternidade mdash uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da

nossa existecircncia E o segundo eacute que o caminho para tal meta natildeo consiste em deixar-se

simplesmente subjugar pelo instinto Satildeo necessaacuterias purificaccedilotildees e amadurecimentos que

passam tambeacutem pela estrada da renuacutencia Isto natildeo eacute rejeiccedilatildeo do eros natildeo eacute o seu laquo

envenenamento raquo mas a cura em ordem agrave sua verdadeira grandeza

Isto depende primariamente da constituiccedilatildeo do ser humano que eacute composto de corpo e alma

O homem torna-se realmente ele mesmo quando corpo e alma se encontram em iacutentima

unidade o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado quando se consegue

esta unificaccedilatildeo Se o homem aspira a ser somente espiacuterito e quer rejeitar a carne como uma

heranccedila apenas animalesca entatildeo espiacuterito e corpo perdem a sua dignidade E se ele por outro

lado renega o espiacuterito e consequentemente considera a mateacuteria o corpo como realidade

exclusiva perde igualmente a sua grandeza O epicurista Gassendi gracejando

cumprimentava Descartes com a saudaccedilatildeo laquo Oacute Alma raquo E Descartes replicava dizendo laquo Oacute

Carne raquo [3] Mas nem o espiacuterito ama sozinho nem o corpo eacute o homem a pessoa que ama

como criatura unitaacuteria de que fazem parte o corpo e a alma Somente quando ambos se

fundem verdadeiramente numa unidade eacute que o homem se torna plenamente ele proacuteprio Soacute

deste modo eacute que o amor mdash o eros mdash pode amadurecer ateacute agrave sua verdadeira grandeza

Hoje natildeo eacute raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido adversaacuterio da

corporeidade a realidade eacute que sempre houve tendecircncias neste sentido Mas o modo de exaltar

o corpo a que assistimos hoje eacute enganador O eros degradado a puro laquo sexo raquo torna-se

mercadoria torna-se simplesmente uma laquo coisa raquo que se pode comprar e vender antes o

proacuteprio homem torna-se mercadoria Na realidade para o homem isto natildeo constitui

propriamente uma grande afirmaccedilatildeo do seu corpo Pelo contraacuterio agora considera o corpo e a

sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito

Uma parte aliaacutes que ele natildeo vecirc como um acircmbito da sua liberdade mas antes como algo que

a seu modo procura tornar simultaneamente agradaacutevel e inoacutecuo Na verdade encontramo-nos

diante duma degradaccedilatildeo do corpo humano que deixa de estar integrado no conjunto da

liberdade da nossa existecircncia deixa de ser expressatildeo viva da totalidade do nosso ser acabando

como que relegado para o campo puramente bioloacutegico A aparente exaltaccedilatildeo do corpo pode

bem depressa converter-se em oacutedio agrave corporeidade Ao contraacuterio a feacute cristatilde sempre

considerou o homem como um ser uni-dual em que espiacuterito e mateacuteria se compenetram

mutuamente experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza Sim o eros

quer-nos elevar laquo em ecircxtase raquo para o Divino conduzir-nos para aleacutem de noacutes proacuteprios mas por

isso mesmo requer um caminho de ascese renuacutencias purificaccedilotildees e saneamentos

6 Concretamente como se deve configurar este caminho de ascese e purificaccedilatildeo Como deve

ser vivido o amor para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina Uma

primeira indicaccedilatildeo importante podemos encontraacute-la no Cacircntico dos Cacircnticos um dos livros

do Antigo Testamento bem conhecido dos miacutesticos Segundo a interpretaccedilatildeo hoje

predominante as poesias contidas neste livro satildeo originalmente cacircnticos de amor talvez

previstos para uma festa israelita de nuacutepcias na qual deviam exaltar o amor conjugal Neste

contexto eacute muito elucidativo o facto de ao longo do livro se encontrarem duas palavras

distintas para designar o laquo amor raquo Primeiro aparece a palavra laquo dodim raquo um plural que

exprime o amor ainda inseguro numa situaccedilatildeo de procura indeterminada Depois esta palavra

eacute substituiacuteda por laquo ahabagrave raquo que na versatildeo grega do Antigo Testamento eacute traduzida pelo

termo de som semelhante laquo agape raquo que se tornou como vimos o termo caracteriacutestico para a

concepccedilatildeo biacuteblica do amor Em contraposiccedilatildeo ao amor indeterminado e ainda em fase de

procura este vocaacutebulo exprime a experiecircncia do amor que agora se torna verdadeiramente

descoberta do outro superando assim o caraacutecter egoiacutesta que antes claramente prevalecia

Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro Jaacute natildeo se busca a si proacuteprio natildeo busca a

imersatildeo no inebriamento da felicidade procura ao inveacutes o bem do amado torna-se renuacutencia

estaacute disposto ao sacrifiacutecio antes procura-o

Faz parte da evoluccedilatildeo do amor para niacuteveis mais altos para as suas iacutentimas purificaccedilotildees que

ele procure agora o caraacutecter definitivo e isto num duplo sentido no sentido da exclusividade

mdash laquo apenas esta uacutenica pessoa raquo mdash e no sentido de ser laquo para sempre raquo O amor compreende a

totalidade da existecircncia em toda a sua dimensatildeo inclusive a temporal Nem poderia ser de

outro modo porque a sua promessa visa o definitivo o amor visa a eternidade Sim o amor eacute

laquo ecircxtase raquo ecircxtase natildeo no sentido de um instante de inebriamento mas como caminho como

ecircxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertaccedilatildeo no dom de si e

precisamente dessa forma para o reencontro de si mesmo mais ainda para a descoberta de

Deus laquo Quem procurar salvaguardar a vida perdecirc-la-aacute e quem a perder conservaacute-la-aacute raquo (Lc

17 33) mdash disse Jesus afirmaccedilatildeo esta que se encontra nos Evangelhos com diversas variantes

(cf Mt 10 39 16 25 Mc 8 35 Lc 9 24 Jo 12 25) Assim descreve Jesus o seu caminho

pessoal que O conduz atraveacutes da cruz agrave ressurreiccedilatildeo o caminho do gratildeo de trigo que cai na

terra e morre e assim daacute muito fruto Partindo do centro do seu sacrifiacutecio pessoal e do amor

que aiacute alcanccedila a sua plenitude Ele com tais palavras descreve tambeacutem a essecircncia do amor e

da existecircncia humana em geral

7 Inicialmente mais filosoacuteficas as nossas reflexotildees sobre a essecircncia do amor conduziram-nos

agora pela sua dinacircmica interior agrave feacute biacuteblica Ao princiacutepio colocou-se o problema de saber se

os vaacuterios ou melhor opostos significados da palavra amor subentenderiam no fundo uma

certa unidade entre eles ou se deveriam ficar desligados um ao lado do outro Mas acima de

tudo surgiu a questatildeo seguinte se a mensagem sobre o amor que nos eacute anunciada pela Biacuteblia

e pela Tradiccedilatildeo da Igreja teria algo a ver com a experiecircncia humana comum do amor ou se

pelo contraacuterio se opusesse a ela A este respeito fomos dar com duas palavras fundamentais

eros como termo para significar o amor laquo mundano raquo e agape como expressatildeo do amor

fundado sobre a feacute e por ela plasmado As duas concepccedilotildees aparecem frequentemente

contrapostas como amor laquo ascendente raquo e amor laquo descendente raquo Existem outras classificaccedilotildees

afins como por exemplo a distinccedilatildeo entre amor possessivo e amor oblativo (amor

concupiscentiaelig ndash amor benevolentiaelig) agrave qual agraves vezes se acrescenta ainda o amor que

procura o proacuteprio interesse

No debate filosoacutefico e teoloacutegico estas distinccedilotildees foram muitas vezes radicalizadas ateacute ao

ponto de as colocar em contraposiccedilatildeo tipicamente cristatildeo seria o amor descendente oblativo

ou seja a agape ao inveacutes a cultura natildeo cristatilde especialmente a grega caracterizar-se-ia pelo

amor ascendente ambicioso e possessivo ou seja pelo eros Se se quisesse levar ao extremo

esta antiacutetese a essecircncia do cristianismo terminaria desarticulada das relaccedilotildees baacutesicas e vitais

da existecircncia humana e constituiria um mundo independente considerado talvez admiraacutevel

mas decididamente separado do conjunto da existecircncia humana Na realidade eros e agape mdash

amor ascendente e amor descendente mdash nunca se deixam separar completamente um do outro

Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade embora em distintas dimensotildees na uacutenica

realidade do amor tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral Embora o

eros seja inicialmente sobretudo ambicioso ascendente mdash fascinaccedilatildeo pela grande promessa de

felicidade mdash depois agrave medida que se aproxima do outro far-se-aacute cada vez menos perguntas

sobre si proacuteprio procuraraacute sempre mais a felicidade do outro preocupar-se-aacute cada vez mais

dele doar-se-aacute e desejaraacute laquo existir para raquo o outro Assim se insere nele o momento da agape

caso contraacuterio o eros decai e perde mesmo a sua proacutepria natureza Por outro lado o homem

tambeacutem natildeo pode viver exclusivamente no amor oblativo descendente Natildeo pode limitar-se

sempre a dar deve tambeacutem receber Quem quer dar amor deve ele mesmo recebecirc-lo em dom

Certamente o homem pode mdash como nos diz o Senhor mdash tornar-se uma fonte donde correm

rios de aacutegua viva (cf Jo 7 37-38) mas para se tornar semelhante fonte deve ele mesmo

beber incessantemente da fonte primeira e originaacuteria que eacute Jesus Cristo de cujo coraccedilatildeo

trespassado brota o amor de Deus (cf Jo 19 34)

Os Padres viram simbolizada de vaacuterias maneiras na narraccedilatildeo da escada de Jacob esta conexatildeo

indivisiacutevel entre subida e descida entre o eros que procura Deus e a agape que transmite o

dom recebido Naquele texto biacuteblico refere-se que o patriarca Jacob num sonho viu assente na

pedra que lhe servia de travesseiro uma escada que chegava ateacute ao ceacuteu pela qual subiam e

desciam os anjos de Deus (cf Gn 28 12 Jo 1 51) Particularmente interessante eacute a

interpretaccedilatildeo que daacute o Papa Gregoacuterio Magno desta visatildeo na sua Regra pastoral O bom pastor

mdash diz ele mdash deve estar radicado na contemplaccedilatildeo De facto soacute assim lhe seraacute possiacutevel acolher

de tal modo no seu iacutentimo as necessidades dos outros que estas se tornem suas laquo per pietatis

viscera in se infirmitatem caeligterorum transferat raquo [4] Neste contexto Satildeo Gregoacuterio alude a

Satildeo Paulo que foi arrebatado para as alturas ateacute aos maiores misteacuterios de Deus e precisamente

desta forma quando desce eacute capaz de fazer-se tudo para todos (cf 2 Cor 12 2-4 1 Cor 9

22) Aleacutem disso indica o exemplo de Moiseacutes que repetidamente entra na tenda sagrada

permanecendo em diaacutelogo com Deus para poder assim a partir de Deus estar agrave disposiccedilatildeo do

seu povo laquo Dentro [da tenda] arrebatado ateacute agraves alturas mediante a contemplaccedilatildeo fora [da

tenda] deixa-se encalccedilar pelo peso dos que sofrem Intus in contemplationem rapitur foris

infirmantium negotiis urgetur raquo [5]

8 Encontramos assim uma primeira resposta ainda bastante geneacuterica para as duas questotildees

atraacutes expostas no fundo o laquo amor raquo eacute uma uacutenica realidade embora com distintas dimensotildees

caso a caso pode uma ou outra dimensatildeo sobressair mais Mas quando as duas dimensotildees se

separam completamente uma da outra surge uma caricatura ou de qualquer modo uma forma

redutiva do amor E vimos sinteticamente tambeacutem que a feacute biacuteblica natildeo constroacutei um mundo

paralelo ou um mundo contraposto agravequele fenoacutemeno humano originaacuterio que eacute o amor mas

aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificaacute-la desvendando-lhe

ao mesmo tempo novas dimensotildees Esta novidade da feacute biacuteblica manifesta-se sobretudo em

dois pontos que merecem ser sublinhados a imagem de Deus e a imagem do homem

A novidade da feacute biacuteblica

9 Antes de mais nada temos a nova imagem de Deus Nas culturas que circundam o mundo

da Biacuteblia a imagem de deus e dos deuses permanece tudo somado pouco clara e em si

mesma contraditoacuteria No itineraacuterio da feacute biacuteblica ao inveacutes vai-se tornando cada vez mais claro

e uniacutevoco aquilo que a oraccedilatildeo fundamental de Israel o Shema resume nestas palavras laquo

Escuta oacute Israel O Senhor nosso Deus eacute o uacutenico Senhor raquo (Dt 6 4) Existe um uacutenico Deus

que eacute o Criador do ceacuteu e da terra e por isso eacute tambeacutem o Deus de todos os homens Dois factos

se singularizam neste esclarecimento que verdadeiramente todos os outros deuses natildeo satildeo

Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus eacute criada por Ele Certamente a ideia

de uma criaccedilatildeo existe tambeacutem alhures mas soacute aqui aparece perfeitamente claro que natildeo um

deus qualquer mas o uacutenico Deus verdadeiro Ele mesmo eacute o autor de toda a realidade esta

proveacutem da forccedila da sua Palavra criadora Isto significa que esta sua criatura Lhe eacute querida

precisamente porque foi desejada por Ele mesmo foi laquo feita raquo por Ele E assim aparece agora

o segundo elemento importante este Deus ama o homem A forccedila divina que Aristoacuteteles no

auge da filosofia grega procurou individuar mediante a reflexatildeo eacute certamente para cada ser

objecto do desejo e do amor mdash como realidade amada esta divindade move o mundo [6] mdash

mas ela mesma natildeo necessita de nada e natildeo ama eacute somente amada Ao contraacuterio o uacutenico

Deus em que Israel crecirc ama pessoalmente Aleacutem disso o seu amor eacute um amor de eleiccedilatildeo

entre todos os povos Ele escolhe Israel e ama-o mdash mas com a finalidade de curar

precisamente deste modo a humanidade inteira Ele ama e este seu amor pode ser qualificado

sem duacutevida como eros que no entanto eacute totalmente agape tambeacutem [7]

Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixatildeo de Deus pelo seu povo com

arrojadas imagens eroacuteticas A relaccedilatildeo de Deus com Israel eacute ilustrada atraveacutes das metaacuteforas do

noivado e do matrimoacutenio consequentemente a idolatria eacute adulteacuterio e prostituiccedilatildeo Assim se

alude concretamente mdash como vimos mdash aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros mas

ao mesmo tempo eacute descrita tambeacutem a relaccedilatildeo de fidelidade entre Israel e o seu Deus A

histoacuteria de amor de Deus com Israel consiste na sua profundidade no facto de que Ele daacute a

Torah isto eacute abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a

estrada do verdadeiro humanismo Por seu lado o homem vivendo na fidelidade ao uacutenico

Deus sente-se a si proacuteprio como aquele que eacute amado por Deus e descobre a alegria na

verdade na justiccedila mdash a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial laquo Quem terei

eu nos ceacuteus Aleacutem de Voacutes nada mais anseio sobre a terra () O meu bem eacute estar perto de

Deus raquo (Sal 7372 2528)

10 O eros de Deus pelo homem mdash como dissemos mdash eacute ao mesmo tempo totalmente agape E

natildeo soacute porque eacute dado de maneira totalmente gratuita sem meacuterito algum precedente mas

tambeacutem porque eacute amor que perdoa Sobretudo Oseias mostra-nos a dimensatildeo da agape no

amor de Deus pelo homem que supera largamente o aspecto da gratuidade Israel cometeu laquo

adulteacuterio raquo rompeu a Alianccedila Deus deveria julgaacute-lo e repudiaacute-lo Mas precisamente aqui se

revela que Deus eacute Deus e natildeo homem laquo Como te abandonarei oacute Efraim Entregar-te-ei oacute

Israel O meu coraccedilatildeo daacute voltas dentro de mim comove-se a minha compaixatildeo Natildeo

desafogarei o furor da minha coacutelera natildeo destruirei Efraim porque sou Deus e natildeo um homem

sou Santo no meio de ti raquo (Os 11 8-9) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo mdash pelo

homem mdash eacute ao mesmo tempo um amor que perdoa E eacute tatildeo grande que chega a virar Deus

contra Si proacuteprio o seu amor contra a sua justiccedila Nisto o cristatildeo vecirc jaacute esboccedilar-se

veladamente o misteacuterio da Cruz Deus ama tanto o homem que tendo-Se feito Ele proacuteprio

homem segue-o ateacute agrave morte e deste modo reconcilia justiccedila e amor

O aspecto filosoacutefico e histoacuterico-religioso saliente nesta visatildeo da Biacuteblia eacute o facto de por um

lado nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafiacutesica de Deus Deus eacute

absolutamente a fonte originaacuteria de todo o ser mas este princiacutepio criador de todas as coisas mdash

o Logos a razatildeo primordial mdash eacute ao mesmo tempo um amante com toda a paixatildeo de um

verdadeiro amor Deste modo o eros eacute enobrecido ao maacuteximo mas simultaneamente tatildeo

purificado que se funde com a agape Daqui podemos compreender por que a recepccedilatildeo do

Cacircntico dos Cacircnticos no cacircnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no

sentido de que aqueles cacircnticos de amor no fundo descreviam a relaccedilatildeo de Deus com o

homem e do homem com Deus E assim o referido livro tornou-se tanto na literatura cristatilde

como na judaica uma fonte de conhecimento e de experiecircncia miacutestica em que se exprime a

essecircncia da feacute biacuteblica na verdade existe uma unificaccedilatildeo do homem com Deus mdash o sonho

originaacuterio do homem mdash mas esta unificaccedilatildeo natildeo eacute confundir-se um afundar no oceano

anoacutenimo do Divino eacute unidade que cria amor na qual ambos mdash Deus e o homem mdash

permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa soacute laquo Aquele poreacutem que se

une ao Senhor constitui com Ele um soacute espiacuterito raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 6 17)

11 Como vimos a primeira novidade da feacute biacuteblica consiste na imagem de Deus a segunda

essencialmente ligada a ela encontramo-la na imagem do homem A narraccedilatildeo biacuteblica da

criaccedilatildeo fala da solidatildeo do primeiro homem Adatildeo querendo Deus pocircr a seu lado um auxiacutelio

Dentre todas as criaturas nenhuma pocircde ser para o homem aquela ajuda de que necessita

apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves integrando-os

assim no contexto da sua vida Entatildeo de uma costela do homem Deus plasma a mulher

Agora Adatildeo encontra a ajuda de que necessita laquo Esta eacute realmente osso dos meus ossos e

carne da minha carne raquo (Gn 2 23) Na base desta narraccedilatildeo eacute possiacutevel entrever concepccedilotildees

semelhantes agraves que aparecem por exemplo no mito referido por Platatildeo segundo o qual o

homem originariamente era esfeacuterico porque completo em si mesmo e auto-suficiente Mas

como puniccedilatildeo pela sua soberba foi dividido ao meio por Zeus de tal modo que agora sempre

anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade [8] Na

narraccedilatildeo biacuteblica natildeo se fala de puniccedilatildeo poreacutem a ideia de que o homem de algum modo esteja

incompleto constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a

sua totalidade isto eacute a ideia de que soacute na comunhatildeo com o outro sexo possa tornar-se laquo

completo raquo estaacute sem duacutevida presente E deste modo a narraccedilatildeo biacuteblica conclui com uma

profecia sobre Adatildeo laquo Por este motivo o homem deixaraacute o pai e a matildee para se unir agrave sua

mulher e os dois seratildeo uma soacute carne raquo (Gn 2 24)

Aqui haacute dois aspectos importantes primeiro o eros estaacute de certo modo enraizado na proacutepria

natureza do homem Adatildeo anda agrave procura e laquo deixa o pai e a matildee raquo para encontrar a mulher

soacute no seu conjunto eacute que representam a totalidade humana tornam-se laquo uma soacute carne raquo Natildeo

menos importante eacute o segundo aspecto numa orientaccedilatildeo baseada na criaccedilatildeo o eros impele o

homem ao matrimoacutenio a uma ligaccedilatildeo caracterizada pela unicidade e para sempre deste modo

e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta

corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e

definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo

de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e

matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma

Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus

12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou

clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A

verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura

de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo

Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo

imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma

dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha

perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do

pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao

encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a

explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus

contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na

sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19

37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1

Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora

definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu

viver e amar

13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia

durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos

seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf

Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do

homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora

este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-

nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado

mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e

Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na

presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu

corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de

Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica

elevaccedilatildeo do homem poderia realizar

14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um

caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os

demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um

soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A

uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu

natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se

tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me

para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute

corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo

agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende

por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de

Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir

desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o

ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao

duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da

centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir

autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e

ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro

com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente

desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar

por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute

em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo

mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera

exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado

15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus

O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam

informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava

necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos

acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva

a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia

essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de

Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido

Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de

proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a

todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo

pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa

da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos

seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final

(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a

inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos

forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos

mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo

fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus

encontramos Deus

Amor a Deus e amor ao proacuteximo

16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica

resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente

possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o

duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas

ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser

mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado

pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se

algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu

irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo

exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o

contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca

o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o

outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo

ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de

que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos

diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus

17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus

natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes

Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus

apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo

para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf

Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a

Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute

ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas

quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na

sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso

encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos

especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos

crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste

modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a

ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo

nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos

ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta

despontar tambeacutem em noacutes o amor

No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento

Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute

a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos

pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da

palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e

incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis

do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de

ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso

intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa

vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute

um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e

completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si

proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute

segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva

agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste

precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento

e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a

vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os

mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus

eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em

Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)

18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na

Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo

me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro

iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar

o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e

sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem

do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de

atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam

aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao

outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de

que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao

proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta

totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo

reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo

ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo

entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas

sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute

que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus

olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash

pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o

proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa

este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros

Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas

ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se

trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia

do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente

comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de

Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que

supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1

Cor 15 28)

II PARTE

CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR

PELA IGREJA

ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo

A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio

19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das

reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)

reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito

ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista

mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele

havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa

dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos

crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus

coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se

inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida

por todos (cf Jo 13 1 15 13)

O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no

mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu

Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do

homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento

este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios

acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para

acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute

sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da

Enciacuteclica

A caridade como dever da Igreja

20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um

dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis

desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua

globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto

eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo

comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde

os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras

e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo

(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre

cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos

anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum

pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-

37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga

mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo

deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para

uma vida condigna

21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial

fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio

diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo

quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os

Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo

serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo

decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo

tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia

realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do

Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de

cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo

espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um

dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste

organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido

comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da

proacutepria Igreja

22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-

se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e

o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e

necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos

Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal

como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns

exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos

descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As

pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer

o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros

motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor

cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de

qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por

117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se

supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade

caritativa concreta

23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que

tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no

Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo

conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes

iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade

juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo

puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua

diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa

Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo

documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os

primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde

expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra

uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu

martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos

seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele

como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de

liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo

distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como

sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se

queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande

expoente da caridade eclesial

24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra

uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e

praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e

doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com

razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em

consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito

imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo

reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se

largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes

deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o

uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso

considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade

da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham

conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste

modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade

cristatilde da Igreja

25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas

a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus

(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)

Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a

Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo

deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria

essecircncia [17]

b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra

por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das

fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida

impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo

(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do

amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de

que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade

Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo

pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)

Justiccedila e caridade

26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma

objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres

mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade

mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo

da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres

nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo

das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a

sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de

caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute

tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a

prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no

respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre

o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de

vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a

formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as

antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na

composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo

decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o

capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as

massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se

27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de

que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram

pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta

agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e

sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a

pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 4: Deus cartitas est

propriamente uma grande afirmaccedilatildeo do seu corpo Pelo contraacuterio agora considera o corpo e a

sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito

Uma parte aliaacutes que ele natildeo vecirc como um acircmbito da sua liberdade mas antes como algo que

a seu modo procura tornar simultaneamente agradaacutevel e inoacutecuo Na verdade encontramo-nos

diante duma degradaccedilatildeo do corpo humano que deixa de estar integrado no conjunto da

liberdade da nossa existecircncia deixa de ser expressatildeo viva da totalidade do nosso ser acabando

como que relegado para o campo puramente bioloacutegico A aparente exaltaccedilatildeo do corpo pode

bem depressa converter-se em oacutedio agrave corporeidade Ao contraacuterio a feacute cristatilde sempre

considerou o homem como um ser uni-dual em que espiacuterito e mateacuteria se compenetram

mutuamente experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza Sim o eros

quer-nos elevar laquo em ecircxtase raquo para o Divino conduzir-nos para aleacutem de noacutes proacuteprios mas por

isso mesmo requer um caminho de ascese renuacutencias purificaccedilotildees e saneamentos

6 Concretamente como se deve configurar este caminho de ascese e purificaccedilatildeo Como deve

ser vivido o amor para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina Uma

primeira indicaccedilatildeo importante podemos encontraacute-la no Cacircntico dos Cacircnticos um dos livros

do Antigo Testamento bem conhecido dos miacutesticos Segundo a interpretaccedilatildeo hoje

predominante as poesias contidas neste livro satildeo originalmente cacircnticos de amor talvez

previstos para uma festa israelita de nuacutepcias na qual deviam exaltar o amor conjugal Neste

contexto eacute muito elucidativo o facto de ao longo do livro se encontrarem duas palavras

distintas para designar o laquo amor raquo Primeiro aparece a palavra laquo dodim raquo um plural que

exprime o amor ainda inseguro numa situaccedilatildeo de procura indeterminada Depois esta palavra

eacute substituiacuteda por laquo ahabagrave raquo que na versatildeo grega do Antigo Testamento eacute traduzida pelo

termo de som semelhante laquo agape raquo que se tornou como vimos o termo caracteriacutestico para a

concepccedilatildeo biacuteblica do amor Em contraposiccedilatildeo ao amor indeterminado e ainda em fase de

procura este vocaacutebulo exprime a experiecircncia do amor que agora se torna verdadeiramente

descoberta do outro superando assim o caraacutecter egoiacutesta que antes claramente prevalecia

Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro Jaacute natildeo se busca a si proacuteprio natildeo busca a

imersatildeo no inebriamento da felicidade procura ao inveacutes o bem do amado torna-se renuacutencia

estaacute disposto ao sacrifiacutecio antes procura-o

Faz parte da evoluccedilatildeo do amor para niacuteveis mais altos para as suas iacutentimas purificaccedilotildees que

ele procure agora o caraacutecter definitivo e isto num duplo sentido no sentido da exclusividade

mdash laquo apenas esta uacutenica pessoa raquo mdash e no sentido de ser laquo para sempre raquo O amor compreende a

totalidade da existecircncia em toda a sua dimensatildeo inclusive a temporal Nem poderia ser de

outro modo porque a sua promessa visa o definitivo o amor visa a eternidade Sim o amor eacute

laquo ecircxtase raquo ecircxtase natildeo no sentido de um instante de inebriamento mas como caminho como

ecircxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertaccedilatildeo no dom de si e

precisamente dessa forma para o reencontro de si mesmo mais ainda para a descoberta de

Deus laquo Quem procurar salvaguardar a vida perdecirc-la-aacute e quem a perder conservaacute-la-aacute raquo (Lc

17 33) mdash disse Jesus afirmaccedilatildeo esta que se encontra nos Evangelhos com diversas variantes

(cf Mt 10 39 16 25 Mc 8 35 Lc 9 24 Jo 12 25) Assim descreve Jesus o seu caminho

pessoal que O conduz atraveacutes da cruz agrave ressurreiccedilatildeo o caminho do gratildeo de trigo que cai na

terra e morre e assim daacute muito fruto Partindo do centro do seu sacrifiacutecio pessoal e do amor

que aiacute alcanccedila a sua plenitude Ele com tais palavras descreve tambeacutem a essecircncia do amor e

da existecircncia humana em geral

7 Inicialmente mais filosoacuteficas as nossas reflexotildees sobre a essecircncia do amor conduziram-nos

agora pela sua dinacircmica interior agrave feacute biacuteblica Ao princiacutepio colocou-se o problema de saber se

os vaacuterios ou melhor opostos significados da palavra amor subentenderiam no fundo uma

certa unidade entre eles ou se deveriam ficar desligados um ao lado do outro Mas acima de

tudo surgiu a questatildeo seguinte se a mensagem sobre o amor que nos eacute anunciada pela Biacuteblia

e pela Tradiccedilatildeo da Igreja teria algo a ver com a experiecircncia humana comum do amor ou se

pelo contraacuterio se opusesse a ela A este respeito fomos dar com duas palavras fundamentais

eros como termo para significar o amor laquo mundano raquo e agape como expressatildeo do amor

fundado sobre a feacute e por ela plasmado As duas concepccedilotildees aparecem frequentemente

contrapostas como amor laquo ascendente raquo e amor laquo descendente raquo Existem outras classificaccedilotildees

afins como por exemplo a distinccedilatildeo entre amor possessivo e amor oblativo (amor

concupiscentiaelig ndash amor benevolentiaelig) agrave qual agraves vezes se acrescenta ainda o amor que

procura o proacuteprio interesse

No debate filosoacutefico e teoloacutegico estas distinccedilotildees foram muitas vezes radicalizadas ateacute ao

ponto de as colocar em contraposiccedilatildeo tipicamente cristatildeo seria o amor descendente oblativo

ou seja a agape ao inveacutes a cultura natildeo cristatilde especialmente a grega caracterizar-se-ia pelo

amor ascendente ambicioso e possessivo ou seja pelo eros Se se quisesse levar ao extremo

esta antiacutetese a essecircncia do cristianismo terminaria desarticulada das relaccedilotildees baacutesicas e vitais

da existecircncia humana e constituiria um mundo independente considerado talvez admiraacutevel

mas decididamente separado do conjunto da existecircncia humana Na realidade eros e agape mdash

amor ascendente e amor descendente mdash nunca se deixam separar completamente um do outro

Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade embora em distintas dimensotildees na uacutenica

realidade do amor tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral Embora o

eros seja inicialmente sobretudo ambicioso ascendente mdash fascinaccedilatildeo pela grande promessa de

felicidade mdash depois agrave medida que se aproxima do outro far-se-aacute cada vez menos perguntas

sobre si proacuteprio procuraraacute sempre mais a felicidade do outro preocupar-se-aacute cada vez mais

dele doar-se-aacute e desejaraacute laquo existir para raquo o outro Assim se insere nele o momento da agape

caso contraacuterio o eros decai e perde mesmo a sua proacutepria natureza Por outro lado o homem

tambeacutem natildeo pode viver exclusivamente no amor oblativo descendente Natildeo pode limitar-se

sempre a dar deve tambeacutem receber Quem quer dar amor deve ele mesmo recebecirc-lo em dom

Certamente o homem pode mdash como nos diz o Senhor mdash tornar-se uma fonte donde correm

rios de aacutegua viva (cf Jo 7 37-38) mas para se tornar semelhante fonte deve ele mesmo

beber incessantemente da fonte primeira e originaacuteria que eacute Jesus Cristo de cujo coraccedilatildeo

trespassado brota o amor de Deus (cf Jo 19 34)

Os Padres viram simbolizada de vaacuterias maneiras na narraccedilatildeo da escada de Jacob esta conexatildeo

indivisiacutevel entre subida e descida entre o eros que procura Deus e a agape que transmite o

dom recebido Naquele texto biacuteblico refere-se que o patriarca Jacob num sonho viu assente na

pedra que lhe servia de travesseiro uma escada que chegava ateacute ao ceacuteu pela qual subiam e

desciam os anjos de Deus (cf Gn 28 12 Jo 1 51) Particularmente interessante eacute a

interpretaccedilatildeo que daacute o Papa Gregoacuterio Magno desta visatildeo na sua Regra pastoral O bom pastor

mdash diz ele mdash deve estar radicado na contemplaccedilatildeo De facto soacute assim lhe seraacute possiacutevel acolher

de tal modo no seu iacutentimo as necessidades dos outros que estas se tornem suas laquo per pietatis

viscera in se infirmitatem caeligterorum transferat raquo [4] Neste contexto Satildeo Gregoacuterio alude a

Satildeo Paulo que foi arrebatado para as alturas ateacute aos maiores misteacuterios de Deus e precisamente

desta forma quando desce eacute capaz de fazer-se tudo para todos (cf 2 Cor 12 2-4 1 Cor 9

22) Aleacutem disso indica o exemplo de Moiseacutes que repetidamente entra na tenda sagrada

permanecendo em diaacutelogo com Deus para poder assim a partir de Deus estar agrave disposiccedilatildeo do

seu povo laquo Dentro [da tenda] arrebatado ateacute agraves alturas mediante a contemplaccedilatildeo fora [da

tenda] deixa-se encalccedilar pelo peso dos que sofrem Intus in contemplationem rapitur foris

infirmantium negotiis urgetur raquo [5]

8 Encontramos assim uma primeira resposta ainda bastante geneacuterica para as duas questotildees

atraacutes expostas no fundo o laquo amor raquo eacute uma uacutenica realidade embora com distintas dimensotildees

caso a caso pode uma ou outra dimensatildeo sobressair mais Mas quando as duas dimensotildees se

separam completamente uma da outra surge uma caricatura ou de qualquer modo uma forma

redutiva do amor E vimos sinteticamente tambeacutem que a feacute biacuteblica natildeo constroacutei um mundo

paralelo ou um mundo contraposto agravequele fenoacutemeno humano originaacuterio que eacute o amor mas

aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificaacute-la desvendando-lhe

ao mesmo tempo novas dimensotildees Esta novidade da feacute biacuteblica manifesta-se sobretudo em

dois pontos que merecem ser sublinhados a imagem de Deus e a imagem do homem

A novidade da feacute biacuteblica

9 Antes de mais nada temos a nova imagem de Deus Nas culturas que circundam o mundo

da Biacuteblia a imagem de deus e dos deuses permanece tudo somado pouco clara e em si

mesma contraditoacuteria No itineraacuterio da feacute biacuteblica ao inveacutes vai-se tornando cada vez mais claro

e uniacutevoco aquilo que a oraccedilatildeo fundamental de Israel o Shema resume nestas palavras laquo

Escuta oacute Israel O Senhor nosso Deus eacute o uacutenico Senhor raquo (Dt 6 4) Existe um uacutenico Deus

que eacute o Criador do ceacuteu e da terra e por isso eacute tambeacutem o Deus de todos os homens Dois factos

se singularizam neste esclarecimento que verdadeiramente todos os outros deuses natildeo satildeo

Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus eacute criada por Ele Certamente a ideia

de uma criaccedilatildeo existe tambeacutem alhures mas soacute aqui aparece perfeitamente claro que natildeo um

deus qualquer mas o uacutenico Deus verdadeiro Ele mesmo eacute o autor de toda a realidade esta

proveacutem da forccedila da sua Palavra criadora Isto significa que esta sua criatura Lhe eacute querida

precisamente porque foi desejada por Ele mesmo foi laquo feita raquo por Ele E assim aparece agora

o segundo elemento importante este Deus ama o homem A forccedila divina que Aristoacuteteles no

auge da filosofia grega procurou individuar mediante a reflexatildeo eacute certamente para cada ser

objecto do desejo e do amor mdash como realidade amada esta divindade move o mundo [6] mdash

mas ela mesma natildeo necessita de nada e natildeo ama eacute somente amada Ao contraacuterio o uacutenico

Deus em que Israel crecirc ama pessoalmente Aleacutem disso o seu amor eacute um amor de eleiccedilatildeo

entre todos os povos Ele escolhe Israel e ama-o mdash mas com a finalidade de curar

precisamente deste modo a humanidade inteira Ele ama e este seu amor pode ser qualificado

sem duacutevida como eros que no entanto eacute totalmente agape tambeacutem [7]

Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixatildeo de Deus pelo seu povo com

arrojadas imagens eroacuteticas A relaccedilatildeo de Deus com Israel eacute ilustrada atraveacutes das metaacuteforas do

noivado e do matrimoacutenio consequentemente a idolatria eacute adulteacuterio e prostituiccedilatildeo Assim se

alude concretamente mdash como vimos mdash aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros mas

ao mesmo tempo eacute descrita tambeacutem a relaccedilatildeo de fidelidade entre Israel e o seu Deus A

histoacuteria de amor de Deus com Israel consiste na sua profundidade no facto de que Ele daacute a

Torah isto eacute abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a

estrada do verdadeiro humanismo Por seu lado o homem vivendo na fidelidade ao uacutenico

Deus sente-se a si proacuteprio como aquele que eacute amado por Deus e descobre a alegria na

verdade na justiccedila mdash a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial laquo Quem terei

eu nos ceacuteus Aleacutem de Voacutes nada mais anseio sobre a terra () O meu bem eacute estar perto de

Deus raquo (Sal 7372 2528)

10 O eros de Deus pelo homem mdash como dissemos mdash eacute ao mesmo tempo totalmente agape E

natildeo soacute porque eacute dado de maneira totalmente gratuita sem meacuterito algum precedente mas

tambeacutem porque eacute amor que perdoa Sobretudo Oseias mostra-nos a dimensatildeo da agape no

amor de Deus pelo homem que supera largamente o aspecto da gratuidade Israel cometeu laquo

adulteacuterio raquo rompeu a Alianccedila Deus deveria julgaacute-lo e repudiaacute-lo Mas precisamente aqui se

revela que Deus eacute Deus e natildeo homem laquo Como te abandonarei oacute Efraim Entregar-te-ei oacute

Israel O meu coraccedilatildeo daacute voltas dentro de mim comove-se a minha compaixatildeo Natildeo

desafogarei o furor da minha coacutelera natildeo destruirei Efraim porque sou Deus e natildeo um homem

sou Santo no meio de ti raquo (Os 11 8-9) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo mdash pelo

homem mdash eacute ao mesmo tempo um amor que perdoa E eacute tatildeo grande que chega a virar Deus

contra Si proacuteprio o seu amor contra a sua justiccedila Nisto o cristatildeo vecirc jaacute esboccedilar-se

veladamente o misteacuterio da Cruz Deus ama tanto o homem que tendo-Se feito Ele proacuteprio

homem segue-o ateacute agrave morte e deste modo reconcilia justiccedila e amor

O aspecto filosoacutefico e histoacuterico-religioso saliente nesta visatildeo da Biacuteblia eacute o facto de por um

lado nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafiacutesica de Deus Deus eacute

absolutamente a fonte originaacuteria de todo o ser mas este princiacutepio criador de todas as coisas mdash

o Logos a razatildeo primordial mdash eacute ao mesmo tempo um amante com toda a paixatildeo de um

verdadeiro amor Deste modo o eros eacute enobrecido ao maacuteximo mas simultaneamente tatildeo

purificado que se funde com a agape Daqui podemos compreender por que a recepccedilatildeo do

Cacircntico dos Cacircnticos no cacircnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no

sentido de que aqueles cacircnticos de amor no fundo descreviam a relaccedilatildeo de Deus com o

homem e do homem com Deus E assim o referido livro tornou-se tanto na literatura cristatilde

como na judaica uma fonte de conhecimento e de experiecircncia miacutestica em que se exprime a

essecircncia da feacute biacuteblica na verdade existe uma unificaccedilatildeo do homem com Deus mdash o sonho

originaacuterio do homem mdash mas esta unificaccedilatildeo natildeo eacute confundir-se um afundar no oceano

anoacutenimo do Divino eacute unidade que cria amor na qual ambos mdash Deus e o homem mdash

permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa soacute laquo Aquele poreacutem que se

une ao Senhor constitui com Ele um soacute espiacuterito raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 6 17)

11 Como vimos a primeira novidade da feacute biacuteblica consiste na imagem de Deus a segunda

essencialmente ligada a ela encontramo-la na imagem do homem A narraccedilatildeo biacuteblica da

criaccedilatildeo fala da solidatildeo do primeiro homem Adatildeo querendo Deus pocircr a seu lado um auxiacutelio

Dentre todas as criaturas nenhuma pocircde ser para o homem aquela ajuda de que necessita

apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves integrando-os

assim no contexto da sua vida Entatildeo de uma costela do homem Deus plasma a mulher

Agora Adatildeo encontra a ajuda de que necessita laquo Esta eacute realmente osso dos meus ossos e

carne da minha carne raquo (Gn 2 23) Na base desta narraccedilatildeo eacute possiacutevel entrever concepccedilotildees

semelhantes agraves que aparecem por exemplo no mito referido por Platatildeo segundo o qual o

homem originariamente era esfeacuterico porque completo em si mesmo e auto-suficiente Mas

como puniccedilatildeo pela sua soberba foi dividido ao meio por Zeus de tal modo que agora sempre

anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade [8] Na

narraccedilatildeo biacuteblica natildeo se fala de puniccedilatildeo poreacutem a ideia de que o homem de algum modo esteja

incompleto constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a

sua totalidade isto eacute a ideia de que soacute na comunhatildeo com o outro sexo possa tornar-se laquo

completo raquo estaacute sem duacutevida presente E deste modo a narraccedilatildeo biacuteblica conclui com uma

profecia sobre Adatildeo laquo Por este motivo o homem deixaraacute o pai e a matildee para se unir agrave sua

mulher e os dois seratildeo uma soacute carne raquo (Gn 2 24)

Aqui haacute dois aspectos importantes primeiro o eros estaacute de certo modo enraizado na proacutepria

natureza do homem Adatildeo anda agrave procura e laquo deixa o pai e a matildee raquo para encontrar a mulher

soacute no seu conjunto eacute que representam a totalidade humana tornam-se laquo uma soacute carne raquo Natildeo

menos importante eacute o segundo aspecto numa orientaccedilatildeo baseada na criaccedilatildeo o eros impele o

homem ao matrimoacutenio a uma ligaccedilatildeo caracterizada pela unicidade e para sempre deste modo

e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta

corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e

definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo

de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e

matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma

Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus

12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou

clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A

verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura

de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo

Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo

imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma

dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha

perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do

pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao

encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a

explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus

contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na

sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19

37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1

Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora

definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu

viver e amar

13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia

durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos

seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf

Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do

homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora

este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-

nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado

mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e

Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na

presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu

corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de

Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica

elevaccedilatildeo do homem poderia realizar

14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um

caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os

demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um

soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A

uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu

natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se

tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me

para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute

corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo

agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende

por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de

Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir

desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o

ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao

duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da

centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir

autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e

ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro

com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente

desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar

por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute

em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo

mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera

exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado

15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus

O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam

informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava

necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos

acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva

a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia

essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de

Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido

Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de

proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a

todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo

pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa

da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos

seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final

(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a

inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos

forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos

mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo

fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus

encontramos Deus

Amor a Deus e amor ao proacuteximo

16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica

resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente

possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o

duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas

ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser

mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado

pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se

algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu

irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo

exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o

contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca

o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o

outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo

ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de

que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos

diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus

17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus

natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes

Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus

apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo

para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf

Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a

Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute

ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas

quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na

sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso

encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos

especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos

crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste

modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a

ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo

nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos

ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta

despontar tambeacutem em noacutes o amor

No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento

Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute

a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos

pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da

palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e

incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis

do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de

ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso

intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa

vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute

um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e

completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si

proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute

segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva

agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste

precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento

e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a

vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os

mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus

eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em

Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)

18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na

Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo

me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro

iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar

o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e

sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem

do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de

atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam

aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao

outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de

que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao

proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta

totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo

reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo

ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo

entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas

sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute

que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus

olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash

pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o

proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa

este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros

Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas

ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se

trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia

do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente

comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de

Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que

supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1

Cor 15 28)

II PARTE

CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR

PELA IGREJA

ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo

A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio

19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das

reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)

reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito

ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista

mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele

havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa

dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos

crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus

coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se

inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida

por todos (cf Jo 13 1 15 13)

O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no

mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu

Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do

homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento

este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios

acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para

acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute

sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da

Enciacuteclica

A caridade como dever da Igreja

20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um

dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis

desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua

globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto

eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo

comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde

os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras

e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo

(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre

cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos

anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum

pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-

37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga

mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo

deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para

uma vida condigna

21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial

fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio

diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo

quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os

Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo

serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo

decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo

tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia

realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do

Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de

cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo

espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um

dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste

organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido

comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da

proacutepria Igreja

22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-

se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e

o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e

necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos

Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal

como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns

exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos

descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As

pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer

o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros

motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor

cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de

qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por

117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se

supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade

caritativa concreta

23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que

tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no

Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo

conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes

iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade

juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo

puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua

diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa

Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo

documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os

primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde

expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra

uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu

martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos

seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele

como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de

liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo

distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como

sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se

queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande

expoente da caridade eclesial

24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra

uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e

praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e

doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com

razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em

consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito

imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo

reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se

largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes

deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o

uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso

considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade

da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham

conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste

modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade

cristatilde da Igreja

25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas

a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus

(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)

Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a

Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo

deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria

essecircncia [17]

b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra

por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das

fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida

impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo

(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do

amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de

que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade

Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo

pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)

Justiccedila e caridade

26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma

objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres

mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade

mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo

da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres

nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo

das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a

sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de

caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute

tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a

prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no

respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre

o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de

vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a

formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as

antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na

composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo

decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o

capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as

massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se

27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de

que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram

pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta

agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e

sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a

pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

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Page 5: Deus cartitas est

certa unidade entre eles ou se deveriam ficar desligados um ao lado do outro Mas acima de

tudo surgiu a questatildeo seguinte se a mensagem sobre o amor que nos eacute anunciada pela Biacuteblia

e pela Tradiccedilatildeo da Igreja teria algo a ver com a experiecircncia humana comum do amor ou se

pelo contraacuterio se opusesse a ela A este respeito fomos dar com duas palavras fundamentais

eros como termo para significar o amor laquo mundano raquo e agape como expressatildeo do amor

fundado sobre a feacute e por ela plasmado As duas concepccedilotildees aparecem frequentemente

contrapostas como amor laquo ascendente raquo e amor laquo descendente raquo Existem outras classificaccedilotildees

afins como por exemplo a distinccedilatildeo entre amor possessivo e amor oblativo (amor

concupiscentiaelig ndash amor benevolentiaelig) agrave qual agraves vezes se acrescenta ainda o amor que

procura o proacuteprio interesse

No debate filosoacutefico e teoloacutegico estas distinccedilotildees foram muitas vezes radicalizadas ateacute ao

ponto de as colocar em contraposiccedilatildeo tipicamente cristatildeo seria o amor descendente oblativo

ou seja a agape ao inveacutes a cultura natildeo cristatilde especialmente a grega caracterizar-se-ia pelo

amor ascendente ambicioso e possessivo ou seja pelo eros Se se quisesse levar ao extremo

esta antiacutetese a essecircncia do cristianismo terminaria desarticulada das relaccedilotildees baacutesicas e vitais

da existecircncia humana e constituiria um mundo independente considerado talvez admiraacutevel

mas decididamente separado do conjunto da existecircncia humana Na realidade eros e agape mdash

amor ascendente e amor descendente mdash nunca se deixam separar completamente um do outro

Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade embora em distintas dimensotildees na uacutenica

realidade do amor tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral Embora o

eros seja inicialmente sobretudo ambicioso ascendente mdash fascinaccedilatildeo pela grande promessa de

felicidade mdash depois agrave medida que se aproxima do outro far-se-aacute cada vez menos perguntas

sobre si proacuteprio procuraraacute sempre mais a felicidade do outro preocupar-se-aacute cada vez mais

dele doar-se-aacute e desejaraacute laquo existir para raquo o outro Assim se insere nele o momento da agape

caso contraacuterio o eros decai e perde mesmo a sua proacutepria natureza Por outro lado o homem

tambeacutem natildeo pode viver exclusivamente no amor oblativo descendente Natildeo pode limitar-se

sempre a dar deve tambeacutem receber Quem quer dar amor deve ele mesmo recebecirc-lo em dom

Certamente o homem pode mdash como nos diz o Senhor mdash tornar-se uma fonte donde correm

rios de aacutegua viva (cf Jo 7 37-38) mas para se tornar semelhante fonte deve ele mesmo

beber incessantemente da fonte primeira e originaacuteria que eacute Jesus Cristo de cujo coraccedilatildeo

trespassado brota o amor de Deus (cf Jo 19 34)

Os Padres viram simbolizada de vaacuterias maneiras na narraccedilatildeo da escada de Jacob esta conexatildeo

indivisiacutevel entre subida e descida entre o eros que procura Deus e a agape que transmite o

dom recebido Naquele texto biacuteblico refere-se que o patriarca Jacob num sonho viu assente na

pedra que lhe servia de travesseiro uma escada que chegava ateacute ao ceacuteu pela qual subiam e

desciam os anjos de Deus (cf Gn 28 12 Jo 1 51) Particularmente interessante eacute a

interpretaccedilatildeo que daacute o Papa Gregoacuterio Magno desta visatildeo na sua Regra pastoral O bom pastor

mdash diz ele mdash deve estar radicado na contemplaccedilatildeo De facto soacute assim lhe seraacute possiacutevel acolher

de tal modo no seu iacutentimo as necessidades dos outros que estas se tornem suas laquo per pietatis

viscera in se infirmitatem caeligterorum transferat raquo [4] Neste contexto Satildeo Gregoacuterio alude a

Satildeo Paulo que foi arrebatado para as alturas ateacute aos maiores misteacuterios de Deus e precisamente

desta forma quando desce eacute capaz de fazer-se tudo para todos (cf 2 Cor 12 2-4 1 Cor 9

22) Aleacutem disso indica o exemplo de Moiseacutes que repetidamente entra na tenda sagrada

permanecendo em diaacutelogo com Deus para poder assim a partir de Deus estar agrave disposiccedilatildeo do

seu povo laquo Dentro [da tenda] arrebatado ateacute agraves alturas mediante a contemplaccedilatildeo fora [da

tenda] deixa-se encalccedilar pelo peso dos que sofrem Intus in contemplationem rapitur foris

infirmantium negotiis urgetur raquo [5]

8 Encontramos assim uma primeira resposta ainda bastante geneacuterica para as duas questotildees

atraacutes expostas no fundo o laquo amor raquo eacute uma uacutenica realidade embora com distintas dimensotildees

caso a caso pode uma ou outra dimensatildeo sobressair mais Mas quando as duas dimensotildees se

separam completamente uma da outra surge uma caricatura ou de qualquer modo uma forma

redutiva do amor E vimos sinteticamente tambeacutem que a feacute biacuteblica natildeo constroacutei um mundo

paralelo ou um mundo contraposto agravequele fenoacutemeno humano originaacuterio que eacute o amor mas

aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificaacute-la desvendando-lhe

ao mesmo tempo novas dimensotildees Esta novidade da feacute biacuteblica manifesta-se sobretudo em

dois pontos que merecem ser sublinhados a imagem de Deus e a imagem do homem

A novidade da feacute biacuteblica

9 Antes de mais nada temos a nova imagem de Deus Nas culturas que circundam o mundo

da Biacuteblia a imagem de deus e dos deuses permanece tudo somado pouco clara e em si

mesma contraditoacuteria No itineraacuterio da feacute biacuteblica ao inveacutes vai-se tornando cada vez mais claro

e uniacutevoco aquilo que a oraccedilatildeo fundamental de Israel o Shema resume nestas palavras laquo

Escuta oacute Israel O Senhor nosso Deus eacute o uacutenico Senhor raquo (Dt 6 4) Existe um uacutenico Deus

que eacute o Criador do ceacuteu e da terra e por isso eacute tambeacutem o Deus de todos os homens Dois factos

se singularizam neste esclarecimento que verdadeiramente todos os outros deuses natildeo satildeo

Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus eacute criada por Ele Certamente a ideia

de uma criaccedilatildeo existe tambeacutem alhures mas soacute aqui aparece perfeitamente claro que natildeo um

deus qualquer mas o uacutenico Deus verdadeiro Ele mesmo eacute o autor de toda a realidade esta

proveacutem da forccedila da sua Palavra criadora Isto significa que esta sua criatura Lhe eacute querida

precisamente porque foi desejada por Ele mesmo foi laquo feita raquo por Ele E assim aparece agora

o segundo elemento importante este Deus ama o homem A forccedila divina que Aristoacuteteles no

auge da filosofia grega procurou individuar mediante a reflexatildeo eacute certamente para cada ser

objecto do desejo e do amor mdash como realidade amada esta divindade move o mundo [6] mdash

mas ela mesma natildeo necessita de nada e natildeo ama eacute somente amada Ao contraacuterio o uacutenico

Deus em que Israel crecirc ama pessoalmente Aleacutem disso o seu amor eacute um amor de eleiccedilatildeo

entre todos os povos Ele escolhe Israel e ama-o mdash mas com a finalidade de curar

precisamente deste modo a humanidade inteira Ele ama e este seu amor pode ser qualificado

sem duacutevida como eros que no entanto eacute totalmente agape tambeacutem [7]

Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixatildeo de Deus pelo seu povo com

arrojadas imagens eroacuteticas A relaccedilatildeo de Deus com Israel eacute ilustrada atraveacutes das metaacuteforas do

noivado e do matrimoacutenio consequentemente a idolatria eacute adulteacuterio e prostituiccedilatildeo Assim se

alude concretamente mdash como vimos mdash aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros mas

ao mesmo tempo eacute descrita tambeacutem a relaccedilatildeo de fidelidade entre Israel e o seu Deus A

histoacuteria de amor de Deus com Israel consiste na sua profundidade no facto de que Ele daacute a

Torah isto eacute abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a

estrada do verdadeiro humanismo Por seu lado o homem vivendo na fidelidade ao uacutenico

Deus sente-se a si proacuteprio como aquele que eacute amado por Deus e descobre a alegria na

verdade na justiccedila mdash a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial laquo Quem terei

eu nos ceacuteus Aleacutem de Voacutes nada mais anseio sobre a terra () O meu bem eacute estar perto de

Deus raquo (Sal 7372 2528)

10 O eros de Deus pelo homem mdash como dissemos mdash eacute ao mesmo tempo totalmente agape E

natildeo soacute porque eacute dado de maneira totalmente gratuita sem meacuterito algum precedente mas

tambeacutem porque eacute amor que perdoa Sobretudo Oseias mostra-nos a dimensatildeo da agape no

amor de Deus pelo homem que supera largamente o aspecto da gratuidade Israel cometeu laquo

adulteacuterio raquo rompeu a Alianccedila Deus deveria julgaacute-lo e repudiaacute-lo Mas precisamente aqui se

revela que Deus eacute Deus e natildeo homem laquo Como te abandonarei oacute Efraim Entregar-te-ei oacute

Israel O meu coraccedilatildeo daacute voltas dentro de mim comove-se a minha compaixatildeo Natildeo

desafogarei o furor da minha coacutelera natildeo destruirei Efraim porque sou Deus e natildeo um homem

sou Santo no meio de ti raquo (Os 11 8-9) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo mdash pelo

homem mdash eacute ao mesmo tempo um amor que perdoa E eacute tatildeo grande que chega a virar Deus

contra Si proacuteprio o seu amor contra a sua justiccedila Nisto o cristatildeo vecirc jaacute esboccedilar-se

veladamente o misteacuterio da Cruz Deus ama tanto o homem que tendo-Se feito Ele proacuteprio

homem segue-o ateacute agrave morte e deste modo reconcilia justiccedila e amor

O aspecto filosoacutefico e histoacuterico-religioso saliente nesta visatildeo da Biacuteblia eacute o facto de por um

lado nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafiacutesica de Deus Deus eacute

absolutamente a fonte originaacuteria de todo o ser mas este princiacutepio criador de todas as coisas mdash

o Logos a razatildeo primordial mdash eacute ao mesmo tempo um amante com toda a paixatildeo de um

verdadeiro amor Deste modo o eros eacute enobrecido ao maacuteximo mas simultaneamente tatildeo

purificado que se funde com a agape Daqui podemos compreender por que a recepccedilatildeo do

Cacircntico dos Cacircnticos no cacircnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no

sentido de que aqueles cacircnticos de amor no fundo descreviam a relaccedilatildeo de Deus com o

homem e do homem com Deus E assim o referido livro tornou-se tanto na literatura cristatilde

como na judaica uma fonte de conhecimento e de experiecircncia miacutestica em que se exprime a

essecircncia da feacute biacuteblica na verdade existe uma unificaccedilatildeo do homem com Deus mdash o sonho

originaacuterio do homem mdash mas esta unificaccedilatildeo natildeo eacute confundir-se um afundar no oceano

anoacutenimo do Divino eacute unidade que cria amor na qual ambos mdash Deus e o homem mdash

permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa soacute laquo Aquele poreacutem que se

une ao Senhor constitui com Ele um soacute espiacuterito raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 6 17)

11 Como vimos a primeira novidade da feacute biacuteblica consiste na imagem de Deus a segunda

essencialmente ligada a ela encontramo-la na imagem do homem A narraccedilatildeo biacuteblica da

criaccedilatildeo fala da solidatildeo do primeiro homem Adatildeo querendo Deus pocircr a seu lado um auxiacutelio

Dentre todas as criaturas nenhuma pocircde ser para o homem aquela ajuda de que necessita

apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves integrando-os

assim no contexto da sua vida Entatildeo de uma costela do homem Deus plasma a mulher

Agora Adatildeo encontra a ajuda de que necessita laquo Esta eacute realmente osso dos meus ossos e

carne da minha carne raquo (Gn 2 23) Na base desta narraccedilatildeo eacute possiacutevel entrever concepccedilotildees

semelhantes agraves que aparecem por exemplo no mito referido por Platatildeo segundo o qual o

homem originariamente era esfeacuterico porque completo em si mesmo e auto-suficiente Mas

como puniccedilatildeo pela sua soberba foi dividido ao meio por Zeus de tal modo que agora sempre

anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade [8] Na

narraccedilatildeo biacuteblica natildeo se fala de puniccedilatildeo poreacutem a ideia de que o homem de algum modo esteja

incompleto constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a

sua totalidade isto eacute a ideia de que soacute na comunhatildeo com o outro sexo possa tornar-se laquo

completo raquo estaacute sem duacutevida presente E deste modo a narraccedilatildeo biacuteblica conclui com uma

profecia sobre Adatildeo laquo Por este motivo o homem deixaraacute o pai e a matildee para se unir agrave sua

mulher e os dois seratildeo uma soacute carne raquo (Gn 2 24)

Aqui haacute dois aspectos importantes primeiro o eros estaacute de certo modo enraizado na proacutepria

natureza do homem Adatildeo anda agrave procura e laquo deixa o pai e a matildee raquo para encontrar a mulher

soacute no seu conjunto eacute que representam a totalidade humana tornam-se laquo uma soacute carne raquo Natildeo

menos importante eacute o segundo aspecto numa orientaccedilatildeo baseada na criaccedilatildeo o eros impele o

homem ao matrimoacutenio a uma ligaccedilatildeo caracterizada pela unicidade e para sempre deste modo

e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta

corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e

definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo

de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e

matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma

Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus

12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou

clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A

verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura

de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo

Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo

imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma

dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha

perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do

pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao

encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a

explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus

contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na

sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19

37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1

Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora

definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu

viver e amar

13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia

durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos

seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf

Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do

homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora

este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-

nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado

mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e

Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na

presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu

corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de

Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica

elevaccedilatildeo do homem poderia realizar

14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um

caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os

demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um

soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A

uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu

natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se

tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me

para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute

corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo

agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende

por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de

Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir

desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o

ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao

duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da

centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir

autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e

ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro

com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente

desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar

por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute

em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo

mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera

exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado

15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus

O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam

informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava

necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos

acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva

a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia

essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de

Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido

Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de

proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a

todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo

pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa

da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos

seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final

(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a

inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos

forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos

mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo

fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus

encontramos Deus

Amor a Deus e amor ao proacuteximo

16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica

resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente

possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o

duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas

ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser

mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado

pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se

algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu

irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo

exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o

contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca

o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o

outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo

ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de

que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos

diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus

17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus

natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes

Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus

apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo

para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf

Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a

Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute

ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas

quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na

sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso

encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos

especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos

crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste

modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a

ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo

nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos

ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta

despontar tambeacutem em noacutes o amor

No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento

Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute

a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos

pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da

palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e

incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis

do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de

ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso

intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa

vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute

um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e

completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si

proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute

segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva

agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste

precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento

e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a

vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os

mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus

eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em

Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)

18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na

Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo

me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro

iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar

o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e

sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem

do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de

atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam

aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao

outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de

que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao

proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta

totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo

reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo

ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo

entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas

sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute

que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus

olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash

pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o

proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa

este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros

Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas

ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se

trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia

do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente

comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de

Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que

supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1

Cor 15 28)

II PARTE

CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR

PELA IGREJA

ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo

A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio

19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das

reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)

reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito

ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista

mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele

havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa

dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos

crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus

coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se

inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida

por todos (cf Jo 13 1 15 13)

O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no

mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu

Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do

homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento

este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios

acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para

acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute

sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da

Enciacuteclica

A caridade como dever da Igreja

20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um

dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis

desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua

globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto

eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo

comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde

os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras

e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo

(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre

cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos

anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum

pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-

37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga

mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo

deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para

uma vida condigna

21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial

fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio

diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo

quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os

Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo

serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo

decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo

tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia

realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do

Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de

cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo

espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um

dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste

organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido

comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da

proacutepria Igreja

22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-

se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e

o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e

necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos

Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal

como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns

exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos

descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As

pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer

o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros

motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor

cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de

qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por

117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se

supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade

caritativa concreta

23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que

tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no

Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo

conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes

iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade

juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo

puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua

diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa

Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo

documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os

primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde

expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra

uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu

martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos

seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele

como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de

liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo

distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como

sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se

queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande

expoente da caridade eclesial

24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra

uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e

praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e

doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com

razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em

consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito

imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo

reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se

largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes

deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o

uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso

considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade

da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham

conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste

modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade

cristatilde da Igreja

25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas

a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus

(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)

Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a

Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo

deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria

essecircncia [17]

b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra

por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das

fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida

impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo

(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do

amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de

que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade

Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo

pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)

Justiccedila e caridade

26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma

objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres

mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade

mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo

da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres

nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo

das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a

sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de

caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute

tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a

prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no

respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre

o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de

vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a

formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as

antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na

composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo

decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o

capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as

massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se

27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de

que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram

pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta

agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e

sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a

pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 6: Deus cartitas est

8 Encontramos assim uma primeira resposta ainda bastante geneacuterica para as duas questotildees

atraacutes expostas no fundo o laquo amor raquo eacute uma uacutenica realidade embora com distintas dimensotildees

caso a caso pode uma ou outra dimensatildeo sobressair mais Mas quando as duas dimensotildees se

separam completamente uma da outra surge uma caricatura ou de qualquer modo uma forma

redutiva do amor E vimos sinteticamente tambeacutem que a feacute biacuteblica natildeo constroacutei um mundo

paralelo ou um mundo contraposto agravequele fenoacutemeno humano originaacuterio que eacute o amor mas

aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificaacute-la desvendando-lhe

ao mesmo tempo novas dimensotildees Esta novidade da feacute biacuteblica manifesta-se sobretudo em

dois pontos que merecem ser sublinhados a imagem de Deus e a imagem do homem

A novidade da feacute biacuteblica

9 Antes de mais nada temos a nova imagem de Deus Nas culturas que circundam o mundo

da Biacuteblia a imagem de deus e dos deuses permanece tudo somado pouco clara e em si

mesma contraditoacuteria No itineraacuterio da feacute biacuteblica ao inveacutes vai-se tornando cada vez mais claro

e uniacutevoco aquilo que a oraccedilatildeo fundamental de Israel o Shema resume nestas palavras laquo

Escuta oacute Israel O Senhor nosso Deus eacute o uacutenico Senhor raquo (Dt 6 4) Existe um uacutenico Deus

que eacute o Criador do ceacuteu e da terra e por isso eacute tambeacutem o Deus de todos os homens Dois factos

se singularizam neste esclarecimento que verdadeiramente todos os outros deuses natildeo satildeo

Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus eacute criada por Ele Certamente a ideia

de uma criaccedilatildeo existe tambeacutem alhures mas soacute aqui aparece perfeitamente claro que natildeo um

deus qualquer mas o uacutenico Deus verdadeiro Ele mesmo eacute o autor de toda a realidade esta

proveacutem da forccedila da sua Palavra criadora Isto significa que esta sua criatura Lhe eacute querida

precisamente porque foi desejada por Ele mesmo foi laquo feita raquo por Ele E assim aparece agora

o segundo elemento importante este Deus ama o homem A forccedila divina que Aristoacuteteles no

auge da filosofia grega procurou individuar mediante a reflexatildeo eacute certamente para cada ser

objecto do desejo e do amor mdash como realidade amada esta divindade move o mundo [6] mdash

mas ela mesma natildeo necessita de nada e natildeo ama eacute somente amada Ao contraacuterio o uacutenico

Deus em que Israel crecirc ama pessoalmente Aleacutem disso o seu amor eacute um amor de eleiccedilatildeo

entre todos os povos Ele escolhe Israel e ama-o mdash mas com a finalidade de curar

precisamente deste modo a humanidade inteira Ele ama e este seu amor pode ser qualificado

sem duacutevida como eros que no entanto eacute totalmente agape tambeacutem [7]

Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixatildeo de Deus pelo seu povo com

arrojadas imagens eroacuteticas A relaccedilatildeo de Deus com Israel eacute ilustrada atraveacutes das metaacuteforas do

noivado e do matrimoacutenio consequentemente a idolatria eacute adulteacuterio e prostituiccedilatildeo Assim se

alude concretamente mdash como vimos mdash aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros mas

ao mesmo tempo eacute descrita tambeacutem a relaccedilatildeo de fidelidade entre Israel e o seu Deus A

histoacuteria de amor de Deus com Israel consiste na sua profundidade no facto de que Ele daacute a

Torah isto eacute abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a

estrada do verdadeiro humanismo Por seu lado o homem vivendo na fidelidade ao uacutenico

Deus sente-se a si proacuteprio como aquele que eacute amado por Deus e descobre a alegria na

verdade na justiccedila mdash a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial laquo Quem terei

eu nos ceacuteus Aleacutem de Voacutes nada mais anseio sobre a terra () O meu bem eacute estar perto de

Deus raquo (Sal 7372 2528)

10 O eros de Deus pelo homem mdash como dissemos mdash eacute ao mesmo tempo totalmente agape E

natildeo soacute porque eacute dado de maneira totalmente gratuita sem meacuterito algum precedente mas

tambeacutem porque eacute amor que perdoa Sobretudo Oseias mostra-nos a dimensatildeo da agape no

amor de Deus pelo homem que supera largamente o aspecto da gratuidade Israel cometeu laquo

adulteacuterio raquo rompeu a Alianccedila Deus deveria julgaacute-lo e repudiaacute-lo Mas precisamente aqui se

revela que Deus eacute Deus e natildeo homem laquo Como te abandonarei oacute Efraim Entregar-te-ei oacute

Israel O meu coraccedilatildeo daacute voltas dentro de mim comove-se a minha compaixatildeo Natildeo

desafogarei o furor da minha coacutelera natildeo destruirei Efraim porque sou Deus e natildeo um homem

sou Santo no meio de ti raquo (Os 11 8-9) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo mdash pelo

homem mdash eacute ao mesmo tempo um amor que perdoa E eacute tatildeo grande que chega a virar Deus

contra Si proacuteprio o seu amor contra a sua justiccedila Nisto o cristatildeo vecirc jaacute esboccedilar-se

veladamente o misteacuterio da Cruz Deus ama tanto o homem que tendo-Se feito Ele proacuteprio

homem segue-o ateacute agrave morte e deste modo reconcilia justiccedila e amor

O aspecto filosoacutefico e histoacuterico-religioso saliente nesta visatildeo da Biacuteblia eacute o facto de por um

lado nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafiacutesica de Deus Deus eacute

absolutamente a fonte originaacuteria de todo o ser mas este princiacutepio criador de todas as coisas mdash

o Logos a razatildeo primordial mdash eacute ao mesmo tempo um amante com toda a paixatildeo de um

verdadeiro amor Deste modo o eros eacute enobrecido ao maacuteximo mas simultaneamente tatildeo

purificado que se funde com a agape Daqui podemos compreender por que a recepccedilatildeo do

Cacircntico dos Cacircnticos no cacircnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no

sentido de que aqueles cacircnticos de amor no fundo descreviam a relaccedilatildeo de Deus com o

homem e do homem com Deus E assim o referido livro tornou-se tanto na literatura cristatilde

como na judaica uma fonte de conhecimento e de experiecircncia miacutestica em que se exprime a

essecircncia da feacute biacuteblica na verdade existe uma unificaccedilatildeo do homem com Deus mdash o sonho

originaacuterio do homem mdash mas esta unificaccedilatildeo natildeo eacute confundir-se um afundar no oceano

anoacutenimo do Divino eacute unidade que cria amor na qual ambos mdash Deus e o homem mdash

permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa soacute laquo Aquele poreacutem que se

une ao Senhor constitui com Ele um soacute espiacuterito raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 6 17)

11 Como vimos a primeira novidade da feacute biacuteblica consiste na imagem de Deus a segunda

essencialmente ligada a ela encontramo-la na imagem do homem A narraccedilatildeo biacuteblica da

criaccedilatildeo fala da solidatildeo do primeiro homem Adatildeo querendo Deus pocircr a seu lado um auxiacutelio

Dentre todas as criaturas nenhuma pocircde ser para o homem aquela ajuda de que necessita

apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves integrando-os

assim no contexto da sua vida Entatildeo de uma costela do homem Deus plasma a mulher

Agora Adatildeo encontra a ajuda de que necessita laquo Esta eacute realmente osso dos meus ossos e

carne da minha carne raquo (Gn 2 23) Na base desta narraccedilatildeo eacute possiacutevel entrever concepccedilotildees

semelhantes agraves que aparecem por exemplo no mito referido por Platatildeo segundo o qual o

homem originariamente era esfeacuterico porque completo em si mesmo e auto-suficiente Mas

como puniccedilatildeo pela sua soberba foi dividido ao meio por Zeus de tal modo que agora sempre

anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade [8] Na

narraccedilatildeo biacuteblica natildeo se fala de puniccedilatildeo poreacutem a ideia de que o homem de algum modo esteja

incompleto constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a

sua totalidade isto eacute a ideia de que soacute na comunhatildeo com o outro sexo possa tornar-se laquo

completo raquo estaacute sem duacutevida presente E deste modo a narraccedilatildeo biacuteblica conclui com uma

profecia sobre Adatildeo laquo Por este motivo o homem deixaraacute o pai e a matildee para se unir agrave sua

mulher e os dois seratildeo uma soacute carne raquo (Gn 2 24)

Aqui haacute dois aspectos importantes primeiro o eros estaacute de certo modo enraizado na proacutepria

natureza do homem Adatildeo anda agrave procura e laquo deixa o pai e a matildee raquo para encontrar a mulher

soacute no seu conjunto eacute que representam a totalidade humana tornam-se laquo uma soacute carne raquo Natildeo

menos importante eacute o segundo aspecto numa orientaccedilatildeo baseada na criaccedilatildeo o eros impele o

homem ao matrimoacutenio a uma ligaccedilatildeo caracterizada pela unicidade e para sempre deste modo

e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta

corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e

definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo

de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e

matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma

Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus

12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou

clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A

verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura

de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo

Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo

imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma

dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha

perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do

pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao

encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a

explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus

contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na

sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19

37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1

Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora

definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu

viver e amar

13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia

durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos

seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf

Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do

homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora

este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-

nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado

mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e

Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na

presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu

corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de

Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica

elevaccedilatildeo do homem poderia realizar

14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um

caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os

demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um

soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A

uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu

natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se

tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me

para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute

corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo

agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende

por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de

Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir

desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o

ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao

duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da

centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir

autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e

ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro

com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente

desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar

por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute

em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo

mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera

exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado

15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus

O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam

informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava

necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos

acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva

a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia

essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de

Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido

Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de

proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a

todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo

pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa

da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos

seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final

(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a

inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos

forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos

mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo

fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus

encontramos Deus

Amor a Deus e amor ao proacuteximo

16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica

resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente

possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o

duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas

ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser

mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado

pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se

algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu

irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo

exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o

contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca

o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o

outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo

ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de

que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos

diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus

17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus

natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes

Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus

apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo

para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf

Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a

Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute

ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas

quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na

sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso

encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos

especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos

crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste

modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a

ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo

nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos

ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta

despontar tambeacutem em noacutes o amor

No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento

Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute

a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos

pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da

palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e

incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis

do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de

ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso

intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa

vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute

um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e

completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si

proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute

segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva

agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste

precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento

e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a

vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os

mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus

eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em

Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)

18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na

Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo

me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro

iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar

o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e

sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem

do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de

atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam

aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao

outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de

que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao

proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta

totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo

reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo

ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo

entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas

sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute

que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus

olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash

pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o

proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa

este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros

Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas

ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se

trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia

do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente

comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de

Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que

supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1

Cor 15 28)

II PARTE

CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR

PELA IGREJA

ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo

A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio

19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das

reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)

reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito

ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista

mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele

havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa

dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos

crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus

coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se

inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida

por todos (cf Jo 13 1 15 13)

O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no

mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu

Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do

homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento

este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios

acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para

acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute

sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da

Enciacuteclica

A caridade como dever da Igreja

20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um

dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis

desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua

globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto

eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo

comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde

os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras

e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo

(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre

cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos

anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum

pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-

37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga

mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo

deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para

uma vida condigna

21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial

fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio

diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo

quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os

Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo

serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo

decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo

tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia

realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do

Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de

cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo

espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um

dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste

organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido

comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da

proacutepria Igreja

22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-

se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e

o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e

necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos

Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal

como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns

exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos

descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As

pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer

o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros

motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor

cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de

qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por

117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se

supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade

caritativa concreta

23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que

tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no

Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo

conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes

iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade

juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo

puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua

diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa

Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo

documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os

primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde

expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra

uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu

martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos

seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele

como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de

liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo

distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como

sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se

queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande

expoente da caridade eclesial

24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra

uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e

praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e

doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com

razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em

consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito

imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo

reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se

largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes

deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o

uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso

considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade

da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham

conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste

modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade

cristatilde da Igreja

25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas

a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus

(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)

Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a

Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo

deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria

essecircncia [17]

b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra

por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das

fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida

impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo

(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do

amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de

que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade

Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo

pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)

Justiccedila e caridade

26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma

objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres

mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade

mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo

da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres

nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo

das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a

sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de

caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute

tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a

prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no

respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre

o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de

vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a

formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as

antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na

composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo

decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o

capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as

massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se

27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de

que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram

pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta

agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e

sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a

pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 7: Deus cartitas est

adulteacuterio raquo rompeu a Alianccedila Deus deveria julgaacute-lo e repudiaacute-lo Mas precisamente aqui se

revela que Deus eacute Deus e natildeo homem laquo Como te abandonarei oacute Efraim Entregar-te-ei oacute

Israel O meu coraccedilatildeo daacute voltas dentro de mim comove-se a minha compaixatildeo Natildeo

desafogarei o furor da minha coacutelera natildeo destruirei Efraim porque sou Deus e natildeo um homem

sou Santo no meio de ti raquo (Os 11 8-9) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo mdash pelo

homem mdash eacute ao mesmo tempo um amor que perdoa E eacute tatildeo grande que chega a virar Deus

contra Si proacuteprio o seu amor contra a sua justiccedila Nisto o cristatildeo vecirc jaacute esboccedilar-se

veladamente o misteacuterio da Cruz Deus ama tanto o homem que tendo-Se feito Ele proacuteprio

homem segue-o ateacute agrave morte e deste modo reconcilia justiccedila e amor

O aspecto filosoacutefico e histoacuterico-religioso saliente nesta visatildeo da Biacuteblia eacute o facto de por um

lado nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafiacutesica de Deus Deus eacute

absolutamente a fonte originaacuteria de todo o ser mas este princiacutepio criador de todas as coisas mdash

o Logos a razatildeo primordial mdash eacute ao mesmo tempo um amante com toda a paixatildeo de um

verdadeiro amor Deste modo o eros eacute enobrecido ao maacuteximo mas simultaneamente tatildeo

purificado que se funde com a agape Daqui podemos compreender por que a recepccedilatildeo do

Cacircntico dos Cacircnticos no cacircnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no

sentido de que aqueles cacircnticos de amor no fundo descreviam a relaccedilatildeo de Deus com o

homem e do homem com Deus E assim o referido livro tornou-se tanto na literatura cristatilde

como na judaica uma fonte de conhecimento e de experiecircncia miacutestica em que se exprime a

essecircncia da feacute biacuteblica na verdade existe uma unificaccedilatildeo do homem com Deus mdash o sonho

originaacuterio do homem mdash mas esta unificaccedilatildeo natildeo eacute confundir-se um afundar no oceano

anoacutenimo do Divino eacute unidade que cria amor na qual ambos mdash Deus e o homem mdash

permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa soacute laquo Aquele poreacutem que se

une ao Senhor constitui com Ele um soacute espiacuterito raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 6 17)

11 Como vimos a primeira novidade da feacute biacuteblica consiste na imagem de Deus a segunda

essencialmente ligada a ela encontramo-la na imagem do homem A narraccedilatildeo biacuteblica da

criaccedilatildeo fala da solidatildeo do primeiro homem Adatildeo querendo Deus pocircr a seu lado um auxiacutelio

Dentre todas as criaturas nenhuma pocircde ser para o homem aquela ajuda de que necessita

apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves integrando-os

assim no contexto da sua vida Entatildeo de uma costela do homem Deus plasma a mulher

Agora Adatildeo encontra a ajuda de que necessita laquo Esta eacute realmente osso dos meus ossos e

carne da minha carne raquo (Gn 2 23) Na base desta narraccedilatildeo eacute possiacutevel entrever concepccedilotildees

semelhantes agraves que aparecem por exemplo no mito referido por Platatildeo segundo o qual o

homem originariamente era esfeacuterico porque completo em si mesmo e auto-suficiente Mas

como puniccedilatildeo pela sua soberba foi dividido ao meio por Zeus de tal modo que agora sempre

anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade [8] Na

narraccedilatildeo biacuteblica natildeo se fala de puniccedilatildeo poreacutem a ideia de que o homem de algum modo esteja

incompleto constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a

sua totalidade isto eacute a ideia de que soacute na comunhatildeo com o outro sexo possa tornar-se laquo

completo raquo estaacute sem duacutevida presente E deste modo a narraccedilatildeo biacuteblica conclui com uma

profecia sobre Adatildeo laquo Por este motivo o homem deixaraacute o pai e a matildee para se unir agrave sua

mulher e os dois seratildeo uma soacute carne raquo (Gn 2 24)

Aqui haacute dois aspectos importantes primeiro o eros estaacute de certo modo enraizado na proacutepria

natureza do homem Adatildeo anda agrave procura e laquo deixa o pai e a matildee raquo para encontrar a mulher

soacute no seu conjunto eacute que representam a totalidade humana tornam-se laquo uma soacute carne raquo Natildeo

menos importante eacute o segundo aspecto numa orientaccedilatildeo baseada na criaccedilatildeo o eros impele o

homem ao matrimoacutenio a uma ligaccedilatildeo caracterizada pela unicidade e para sempre deste modo

e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta

corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e

definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo

de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e

matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma

Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus

12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou

clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A

verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura

de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo

Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo

imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma

dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha

perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do

pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao

encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a

explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus

contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na

sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19

37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1

Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora

definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu

viver e amar

13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia

durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos

seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf

Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do

homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora

este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-

nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado

mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e

Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na

presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu

corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de

Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica

elevaccedilatildeo do homem poderia realizar

14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um

caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os

demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um

soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A

uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu

natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se

tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me

para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute

corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo

agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende

por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de

Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir

desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o

ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao

duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da

centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir

autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e

ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro

com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente

desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar

por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute

em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo

mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera

exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado

15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus

O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam

informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava

necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos

acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva

a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia

essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de

Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido

Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de

proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a

todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo

pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa

da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos

seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final

(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a

inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos

forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos

mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo

fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus

encontramos Deus

Amor a Deus e amor ao proacuteximo

16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica

resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente

possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o

duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas

ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser

mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado

pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se

algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu

irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo

exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o

contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca

o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o

outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo

ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de

que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos

diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus

17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus

natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes

Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus

apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo

para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf

Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a

Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute

ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas

quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na

sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso

encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos

especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos

crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste

modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a

ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo

nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos

ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta

despontar tambeacutem em noacutes o amor

No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento

Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute

a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos

pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da

palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e

incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis

do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de

ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso

intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa

vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute

um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e

completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si

proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute

segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva

agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste

precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento

e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a

vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os

mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus

eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em

Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)

18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na

Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo

me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro

iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar

o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e

sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem

do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de

atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam

aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao

outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de

que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao

proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta

totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo

reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo

ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo

entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas

sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute

que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus

olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash

pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o

proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa

este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros

Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas

ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se

trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia

do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente

comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de

Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que

supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1

Cor 15 28)

II PARTE

CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR

PELA IGREJA

ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo

A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio

19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das

reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)

reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito

ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista

mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele

havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa

dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos

crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus

coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se

inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida

por todos (cf Jo 13 1 15 13)

O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no

mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu

Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do

homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento

este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios

acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para

acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute

sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da

Enciacuteclica

A caridade como dever da Igreja

20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um

dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis

desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua

globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto

eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo

comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde

os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras

e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo

(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre

cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos

anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum

pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-

37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga

mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo

deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para

uma vida condigna

21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial

fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio

diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo

quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os

Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo

serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo

decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo

tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia

realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do

Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de

cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo

espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um

dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste

organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido

comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da

proacutepria Igreja

22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-

se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e

o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e

necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos

Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal

como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns

exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos

descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As

pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer

o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros

motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor

cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de

qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por

117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se

supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade

caritativa concreta

23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que

tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no

Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo

conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes

iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade

juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo

puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua

diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa

Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo

documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os

primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde

expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra

uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu

martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos

seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele

como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de

liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo

distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como

sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se

queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande

expoente da caridade eclesial

24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra

uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e

praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e

doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com

razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em

consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito

imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo

reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se

largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes

deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o

uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso

considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade

da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham

conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste

modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade

cristatilde da Igreja

25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas

a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus

(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)

Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a

Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo

deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria

essecircncia [17]

b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra

por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das

fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida

impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo

(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do

amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de

que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade

Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo

pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)

Justiccedila e caridade

26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma

objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres

mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade

mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo

da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres

nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo

das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a

sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de

caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute

tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a

prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no

respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre

o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de

vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a

formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as

antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na

composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo

decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o

capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as

massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se

27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de

que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram

pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta

agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e

sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a

pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 8: Deus cartitas est

e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta

corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e

definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo

de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e

matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma

Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus

12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou

clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A

verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura

de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo

Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo

imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma

dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha

perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do

pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao

encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a

explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus

contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na

sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19

37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1

Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora

definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu

viver e amar

13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia

durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos

seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf

Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do

homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora

este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-

nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado

mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e

Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na

presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu

corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de

Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica

elevaccedilatildeo do homem poderia realizar

14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um

caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os

demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um

soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A

uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu

natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se

tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me

para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute

corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo

agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende

por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de

Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir

desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o

ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao

duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da

centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir

autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e

ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro

com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente

desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar

por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute

em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo

mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera

exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado

15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus

O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam

informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava

necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos

acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva

a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia

essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de

Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido

Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de

proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a

todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo

pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa

da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos

seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final

(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a

inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos

forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos

mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo

fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus

encontramos Deus

Amor a Deus e amor ao proacuteximo

16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica

resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente

possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o

duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas

ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser

mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado

pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se

algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu

irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo

exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o

contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca

o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o

outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo

ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de

que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos

diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus

17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus

natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes

Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus

apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo

para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf

Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a

Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute

ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas

quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na

sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso

encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos

especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos

crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste

modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a

ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo

nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos

ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta

despontar tambeacutem em noacutes o amor

No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento

Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute

a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos

pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da

palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e

incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis

do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de

ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso

intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa

vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute

um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e

completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si

proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute

segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva

agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste

precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento

e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a

vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os

mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus

eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em

Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)

18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na

Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo

me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro

iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar

o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e

sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem

do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de

atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam

aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao

outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de

que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao

proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta

totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo

reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo

ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo

entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas

sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute

que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus

olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash

pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o

proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa

este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros

Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas

ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se

trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia

do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente

comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de

Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que

supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1

Cor 15 28)

II PARTE

CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR

PELA IGREJA

ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo

A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio

19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das

reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)

reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito

ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista

mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele

havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa

dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos

crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus

coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se

inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida

por todos (cf Jo 13 1 15 13)

O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no

mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu

Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do

homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento

este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios

acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para

acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute

sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da

Enciacuteclica

A caridade como dever da Igreja

20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um

dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis

desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua

globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto

eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo

comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde

os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras

e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo

(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre

cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos

anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum

pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-

37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga

mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo

deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para

uma vida condigna

21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial

fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio

diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo

quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os

Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo

serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo

decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo

tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia

realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do

Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de

cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo

espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um

dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste

organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido

comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da

proacutepria Igreja

22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-

se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e

o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e

necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos

Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal

como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns

exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos

descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As

pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer

o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros

motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor

cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de

qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por

117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se

supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade

caritativa concreta

23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que

tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no

Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo

conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes

iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade

juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo

puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua

diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa

Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo

documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os

primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde

expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra

uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu

martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos

seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele

como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de

liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo

distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como

sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se

queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande

expoente da caridade eclesial

24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra

uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e

praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e

doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com

razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em

consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito

imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo

reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se

largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes

deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o

uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso

considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade

da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham

conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste

modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade

cristatilde da Igreja

25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas

a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus

(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)

Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a

Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo

deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria

essecircncia [17]

b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra

por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das

fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida

impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo

(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do

amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de

que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade

Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo

pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)

Justiccedila e caridade

26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma

objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres

mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade

mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo

da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres

nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo

das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a

sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de

caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute

tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a

prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no

respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre

o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de

vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a

formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as

antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na

composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo

decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o

capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as

massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se

27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de

que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram

pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta

agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e

sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a

pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 9: Deus cartitas est

por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de

Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir

desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o

ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao

duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da

centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir

autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e

ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro

com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente

desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar

por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute

em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo

mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera

exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado

15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus

O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam

informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava

necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos

acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva

a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia

essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de

Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido

Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de

proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a

todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo

pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa

da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos

seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final

(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a

inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos

forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos

mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo

fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus

encontramos Deus

Amor a Deus e amor ao proacuteximo

16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica

resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente

possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o

duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas

ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser

mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado

pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se

algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu

irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo

exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o

contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca

o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o

outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo

ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de

que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos

diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus

17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus

natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes

Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus

apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo

para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf

Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a

Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute

ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas

quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na

sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso

encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos

especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos

crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste

modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a

ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo

nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos

ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta

despontar tambeacutem em noacutes o amor

No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento

Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute

a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos

pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da

palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e

incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis

do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de

ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso

intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa

vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute

um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e

completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si

proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute

segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva

agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste

precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento

e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a

vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os

mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus

eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em

Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)

18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na

Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo

me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro

iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar

o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e

sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem

do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de

atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam

aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao

outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de

que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao

proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta

totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo

reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo

ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo

entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas

sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute

que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus

olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash

pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o

proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa

este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros

Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas

ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se

trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia

do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente

comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de

Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que

supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1

Cor 15 28)

II PARTE

CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR

PELA IGREJA

ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo

A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio

19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das

reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)

reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito

ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista

mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele

havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa

dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos

crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus

coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se

inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida

por todos (cf Jo 13 1 15 13)

O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no

mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu

Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do

homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento

este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios

acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para

acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute

sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da

Enciacuteclica

A caridade como dever da Igreja

20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um

dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis

desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua

globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto

eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo

comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde

os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras

e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo

(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre

cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos

anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum

pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-

37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga

mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo

deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para

uma vida condigna

21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial

fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio

diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo

quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os

Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo

serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo

decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo

tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia

realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do

Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de

cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo

espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um

dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste

organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido

comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da

proacutepria Igreja

22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-

se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e

o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e

necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos

Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal

como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns

exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos

descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As

pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer

o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros

motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor

cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de

qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por

117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se

supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade

caritativa concreta

23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que

tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no

Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo

conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes

iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade

juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo

puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua

diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa

Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo

documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os

primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde

expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra

uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu

martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos

seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele

como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de

liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo

distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como

sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se

queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande

expoente da caridade eclesial

24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra

uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e

praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e

doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com

razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em

consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito

imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo

reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se

largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes

deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o

uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso

considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade

da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham

conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste

modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade

cristatilde da Igreja

25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas

a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus

(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)

Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a

Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo

deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria

essecircncia [17]

b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra

por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das

fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida

impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo

(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do

amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de

que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade

Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo

pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)

Justiccedila e caridade

26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma

objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres

mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade

mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo

da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres

nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo

das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a

sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de

caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute

tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a

prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no

respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre

o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de

vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a

formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as

antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na

composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo

decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o

capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as

massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se

27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de

que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram

pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta

agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e

sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a

pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

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Page 10: Deus cartitas est

outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo

ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de

que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos

diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus

17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus

natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes

Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus

apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo

para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf

Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a

Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute

ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas

quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na

sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso

encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos

especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos

crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste

modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a

ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo

nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos

ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta

despontar tambeacutem em noacutes o amor

No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento

Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute

a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos

pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da

palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e

incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis

do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de

ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso

intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa

vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute

um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e

completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si

proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute

segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva

agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste

precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento

e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a

vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os

mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus

eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em

Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)

18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na

Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo

me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro

iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar

o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e

sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem

do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de

atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam

aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao

outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de

que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao

proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta

totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo

reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo

ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo

entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas

sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute

que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus

olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash

pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o

proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa

este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros

Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas

ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se

trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia

do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente

comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de

Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que

supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1

Cor 15 28)

II PARTE

CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR

PELA IGREJA

ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo

A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio

19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das

reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)

reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito

ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista

mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele

havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa

dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos

crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus

coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se

inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida

por todos (cf Jo 13 1 15 13)

O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no

mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu

Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do

homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento

este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios

acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para

acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute

sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da

Enciacuteclica

A caridade como dever da Igreja

20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um

dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis

desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua

globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto

eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo

comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde

os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras

e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo

(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre

cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos

anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum

pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-

37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga

mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo

deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para

uma vida condigna

21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial

fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio

diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo

quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os

Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo

serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo

decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo

tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia

realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do

Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de

cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo

espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um

dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste

organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido

comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da

proacutepria Igreja

22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-

se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e

o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e

necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos

Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal

como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns

exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos

descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As

pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer

o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros

motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor

cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de

qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por

117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se

supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade

caritativa concreta

23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que

tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no

Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo

conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes

iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade

juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo

puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua

diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa

Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo

documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os

primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde

expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra

uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu

martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos

seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele

como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de

liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo

distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como

sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se

queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande

expoente da caridade eclesial

24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra

uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e

praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e

doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com

razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em

consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito

imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo

reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se

largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes

deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o

uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso

considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade

da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham

conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste

modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade

cristatilde da Igreja

25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas

a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus

(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)

Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a

Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo

deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria

essecircncia [17]

b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra

por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das

fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida

impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo

(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do

amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de

que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade

Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo

pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)

Justiccedila e caridade

26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma

objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres

mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade

mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo

da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres

nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo

das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a

sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de

caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute

tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a

prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no

respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre

o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de

vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a

formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as

antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na

composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo

decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o

capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as

massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se

27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de

que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram

pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta

agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e

sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a

pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

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Page 11: Deus cartitas est

o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e

sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem

do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de

atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam

aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao

outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de

que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao

proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta

totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo

reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo

ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo

entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas

sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute

que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus

olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash

pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o

proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa

este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros

Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas

ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se

trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia

do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente

comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de

Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que

supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1

Cor 15 28)

II PARTE

CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR

PELA IGREJA

ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo

A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio

19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das

reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)

reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito

ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista

mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele

havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa

dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos

crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus

coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se

inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida

por todos (cf Jo 13 1 15 13)

O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no

mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu

Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do

homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento

este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios

acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para

acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute

sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da

Enciacuteclica

A caridade como dever da Igreja

20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um

dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis

desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua

globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto

eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo

comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde

os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras

e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo

(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre

cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos

anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum

pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-

37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga

mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo

deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para

uma vida condigna

21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial

fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio

diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo

quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os

Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo

serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo

decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo

tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia

realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do

Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de

cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo

espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um

dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste

organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido

comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da

proacutepria Igreja

22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-

se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e

o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e

necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos

Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal

como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns

exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos

descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As

pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer

o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros

motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor

cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de

qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por

117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se

supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade

caritativa concreta

23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que

tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no

Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo

conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes

iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade

juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo

puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua

diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa

Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo

documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os

primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde

expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra

uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu

martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos

seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele

como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de

liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo

distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como

sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se

queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande

expoente da caridade eclesial

24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra

uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e

praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e

doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com

razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em

consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito

imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo

reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se

largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes

deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o

uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso

considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade

da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham

conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste

modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade

cristatilde da Igreja

25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas

a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus

(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)

Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a

Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo

deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria

essecircncia [17]

b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra

por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das

fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida

impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo

(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do

amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de

que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade

Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo

pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)

Justiccedila e caridade

26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma

objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres

mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade

mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo

da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres

nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo

das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a

sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de

caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute

tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a

prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no

respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre

o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de

vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a

formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as

antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na

composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo

decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o

capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as

massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se

27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de

que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram

pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta

agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e

sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a

pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 12: Deus cartitas est

homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento

este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios

acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para

acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute

sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da

Enciacuteclica

A caridade como dever da Igreja

20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um

dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis

desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua

globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto

eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo

comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde

os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras

e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo

(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre

cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo

(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos

anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum

pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-

37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga

mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo

deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para

uma vida condigna

21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial

fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio

diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo

quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os

Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo

serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo

decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo

tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia

realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do

Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de

cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo

espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um

dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste

organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido

comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da

proacutepria Igreja

22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-

se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e

o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e

necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos

Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal

como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns

exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos

descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As

pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer

o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros

motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor

cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de

qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por

117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se

supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade

caritativa concreta

23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que

tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no

Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo

conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes

iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade

juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo

puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua

diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa

Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo

documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os

primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde

expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra

uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu

martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos

seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele

como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de

liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo

distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como

sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se

queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande

expoente da caridade eclesial

24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra

uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e

praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e

doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com

razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em

consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito

imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo

reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se

largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes

deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o

uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso

considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade

da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham

conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste

modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade

cristatilde da Igreja

25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas

a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus

(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)

Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a

Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo

deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria

essecircncia [17]

b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra

por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das

fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida

impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo

(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do

amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de

que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade

Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo

pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)

Justiccedila e caridade

26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma

objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres

mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade

mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo

da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres

nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo

das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a

sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de

caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute

tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a

prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no

respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre

o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de

vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a

formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as

antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na

composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo

decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o

capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as

massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se

27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de

que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram

pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta

agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e

sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a

pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

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Page 13: Deus cartitas est

como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns

exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos

descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As

pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer

o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros

motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor

cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de

qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por

117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se

supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade

caritativa concreta

23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que

tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no

Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo

conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes

iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade

juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo

puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua

diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa

Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo

documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os

primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde

expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra

uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu

martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos

seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele

como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de

liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo

distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como

sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se

queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande

expoente da caridade eclesial

24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra

uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e

praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e

doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com

razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em

consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito

imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo

reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se

largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes

deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o

uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso

considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade

da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham

conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste

modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade

cristatilde da Igreja

25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas

a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus

(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)

Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a

Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo

deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria

essecircncia [17]

b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra

por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das

fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida

impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo

(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do

amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de

que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade

Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo

pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)

Justiccedila e caridade

26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma

objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres

mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade

mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo

da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres

nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo

das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a

sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de

caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute

tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a

prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no

respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre

o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de

vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a

formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as

antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na

composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo

decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o

capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as

massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se

27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de

que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram

pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta

agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e

sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a

pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 14: Deus cartitas est

cristatilde da Igreja

25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas

a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus

(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)

Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a

Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo

deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria

essecircncia [17]

b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra

por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das

fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida

impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo

(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do

amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de

que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade

Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo

pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)

Justiccedila e caridade

26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma

objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres

mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade

mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo

da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres

nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo

das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a

sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de

caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute

tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a

prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no

respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre

o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de

vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a

formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as

antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na

composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo

decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o

capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as

massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se

27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de

que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram

pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta

agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e

sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a

pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 15: Deus cartitas est

magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica

de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a

Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e

na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social

que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor

Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)

Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao

enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social

catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da

Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na

revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da

revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal

doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este

sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da

globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental

que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash

face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se

preocupam seriamente do homem e do seu mundo

28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e

o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais

a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se

regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho

uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave

estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf

Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a

autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve

garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a

Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua

forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em

reciacuteproca relaccedilatildeo

A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A

poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua

origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o

Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas

esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz

respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente

purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a

deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado

Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de

encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do

acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a

proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e

consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a

sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social

catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles

que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

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Page 16: Deus cartitas est

Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer

com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo

que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela

proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e

ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a

disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de

interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo

pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar

de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da

Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de

oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo

especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente

realizaacuteveis

A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a

sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas

tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via

da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que

sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo

pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o

empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves

exigecircncias do bem

b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute

qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer

desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute

sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre

tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de

um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque

torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que

o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo

precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente

reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das

diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo

Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem

refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio

material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade

esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o

homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e

ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano

29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo

entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a

actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute

imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo

auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a

purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

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Page 17: Deus cartitas est

justas nem estas permanecem operativas por muito tempo

Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis

leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida

puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa

administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo

[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando

a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria

responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da

caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade

eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem

a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]

Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium

um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua

como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja

nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos

crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um

dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do

amor

As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo

no actual contexto social

30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao

serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no

mundo actual

a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno

aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo

estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma

muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um

apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando

conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico

e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este

nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado

Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que

os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os

homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo

[24]

Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do

processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para

prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os

sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de

habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo

proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em

relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o

crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado

e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 18: Deus cartitas est

parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo

verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

supera significativamente a dos indiviacuteduos

b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as

estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a

transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de

maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo

deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se

tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos

problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto

humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas

formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar

uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas

formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de

vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer

coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na

droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que

precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e

paralelos) se revela como cultura da vida

Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas

formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais

se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de

caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo

Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a

disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas

Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo

fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que

reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta

dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a

um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar

o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e

desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter

encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas

O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja

31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias

necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter

sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito

tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz

este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma

do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de

tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras

da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o

seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples

variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da

caridade cristatilde e eclesial

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 19: Deus cartitas est

a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em

primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a

necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados

para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela

Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo

os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas

Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de

mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam

fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o

tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si

soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um

tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da

atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem

distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente

naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo

que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo

profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los

agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de

tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer

imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor

(cf Gal 5 6)

b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um

meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias

mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por

diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma

parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de

poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo

daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste

modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta

para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo

do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute

sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos

duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de

momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o

bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente

de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom

Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute

necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave

assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que

acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees

idecircnticas

c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como

proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem

natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado

Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz

mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute

impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 20: Deus cartitas est

testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe

quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor

Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que

nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio

do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus

Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute

dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus

membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu

exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo

Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja

32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo

caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente

que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade

eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas

particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do

Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia

da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades

caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja

o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a

primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos

Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como

ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para

servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo

Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao

candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os

deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que

seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de

conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio

episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade

episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras

de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o

Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever

da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]

sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal

como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria

[34]

33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo

na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento

do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem

ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo

conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua

acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos

constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave

morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os

outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e

instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa

catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 21: Deus cartitas est

Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser

testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente

34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o

colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas

de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo

requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo

ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua

todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver

caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo

eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta

Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo

homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas

necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o

dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim

mesmo devo estar presente no dom como pessoa

35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de

superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo

Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade

radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de

reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu

nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar

pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo

Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de

uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este

dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo

expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que

em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim

da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do

mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto

ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo

por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e

com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em

movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)

36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair

na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus

pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela

pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca

se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para

prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade

nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se

guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir

continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza

natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma

emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a

pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo

evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem

a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 22: Deus cartitas est

a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos

desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da

oraccedilatildeo raquo

37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao

secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o

cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu

procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o

conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono

agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e

terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz

de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas

quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre

quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente

38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e

aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se

pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-

me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()

Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu

coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute

concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo

nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me

abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta

pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo

Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O

compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem

insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar

que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute

que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e

mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos

continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo

na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como

os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem

inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja

incompreensiacutevel para noacutes

39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente

nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente

insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo

A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza

vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa

impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos

e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o

Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do

amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor

Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um

mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes

de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 23: Deus cartitas est

de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica

CONCLUSAtildeO

40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso

de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo

como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da

caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre

durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para

confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()

Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo

(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem

ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo

Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No

encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia

de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim

se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao

lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo

humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam

primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos

masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como

Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa

de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar

apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os

homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria

porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade

41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No

Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto

da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo

Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela

por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si

mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao

proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer

fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada

senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo

realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de

Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo

de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais

promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O

Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da

Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se

sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade

Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da

Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia

com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente

permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute

uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa

com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma

mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

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Page 24: Deus cartitas est

evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da

necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com

que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve

fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a

verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria

permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a

juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)

42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e

agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo

se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em

ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a

Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se

sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos

os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os

homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas

alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e

sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo

do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e

culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer

simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de

como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se

fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do

amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)

Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe

incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor

Santa Maria Matildee de Deus

Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira

Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus

Entregastes-Vos completamente

ao chamamento de Deus

e assim Vos tornastes fonte

da bondade que brota dEle

Mostrai-nos Jesus

Guiai-nos para Ele

Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo

para podermos tambeacutem noacutes

tornar-nos capazes de verdadeiro amor

e de ser fontes de aacutegua viva

no meio de um mundo sequioso

Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do

Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado

BENEDICTUS PP XVI

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

Page 25: Deus cartitas est

[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168

[2] X 69

[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss

[4] II 5 SCh 381 196

[5] Ibid 198

[6] Cf Metafiacutesica XII 7

[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14

PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape

[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d

[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4

[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32

[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287

[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429

[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468

[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801

[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141

[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2

a p 145

[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194

[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102

[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36

[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197

[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42

AAS 81 (1989) 472

[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

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Page 26: Deus cartitas est

agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1

LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42

[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939

[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8

[25] Ibid 14

[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195

[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)

41 AAS 81 (1989) 470-472

[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556

[29] N 43 AAS 87 (1995) 946

[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos

Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196

[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40

[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203

[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198

[34] Cf ibid 194

[35] Sermo 52 16 PL 38 360

[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258

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