15
9 Arqueologia na Terra Santa: Lady Hester Lucy Stanhope Reuven Faingold 153 Colaboradores 161 Normas para publicação 163 1 , Do norte da Africa ao subcontinente indiano: a extensão histórico-geográfica da comunidade judaica Gar/os A/berlo Póvoa Com as novas extensões territoriais do conquistador europeu, o mundo deparou-se com uma enorme heterogeneidade de povos, etnias, culturas, idiomas, religiões e modos de vida. Inerentes e característicos de um povo, território e/ou lugar, esses elementos de territorialidade são particularmente estranhos àqueles que não os possuem, pois as excentricidades e costumes são fatos materializados nos espaçospor meio da cultura. Apesar das grandes diferenças, entre os grupos judaicos recém-descobertos ou em tratados das novas comunidades com as antigas europeias, observa-se uma semelhança e um ponto comum: Israel e a Torá e sua voZ a D 'uso {diversidade; cultura;judaísmo; Ocidente} Introdução Observa-se que, até o presente momento, as ciências humanas - como a Geografia, a História, a Antropologia e as Ciências Sociais - trataram prin- cipalmente de nomear as comunidades judaicas mais intimamente ligadas ao mundo ocidental- a Europa e a América. Contudo, tais ciências, com exce- ção da Geografia, ainda não conseguiram territorialispr essas comunidades. O avanço da Geografia é justificado, pois o principal objetivo em analisar a geografia de um povo é ajudar-nos a compreendê-ia em nosso próprio ambiente, seja ele onde for, o que não é diferente em se tratando 23

Do norte da áfrica ao subcontinente indiano carlos póvoa

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Artigo interessantíssimo sobre a diversidade étnico-cultural no judaísmo hoje.

Citation preview

Page 1: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

9 Arqueologia na Terra Santa: Lady Hester Lucy Stanhope

Reuven Faingold 153

Colaboradores 161

Normas para publicação 163 1,

Do norte da Africa aosubcontinente indiano: aextensão histórico-geográficada comunidade judaica

Gar/os A/berlo Póvoa

Com as novas extensões territoriais do conquistador europeu, o mundo deparou-se comuma enorme heterogeneidade de povos, etnias, culturas, idiomas, religiões e modos devida. Inerentes e característicos de um povo, território e/ou lugar, esses elementos deterritorialidade são particularmente estranhos àqueles que não os possuem, pois asexcentricidades e costumes são fatos materializados nos espaçospor meio da cultura.Apesar das grandes diferenças, entre os grupos judaicos recém-descobertos ou emtratados das novas comunidades com as antigas europeias, observa-se uma semelhança eum ponto comum: Israel e a Torá e sua voZ a D 'uso{diversidade; cultura;judaísmo; Ocidente}

Introdução

Observa-se que, até o presente momento, as ciências humanas - comoa Geografia, a História, a Antropologia e as Ciências Sociais - trataram prin-cipalmente de nomear as comunidades judaicas mais intimamente ligadas aomundo ocidental- a Europa e a América. Contudo, tais ciências, com exce-ção da Geografia, ainda não conseguiram territorialispr essas comunidades.

O avanço da Geografia é justificado, pois o principal objetivo emanalisar a geografia de um povo é ajudar-nos a compreendê-ia em nossopróprio ambiente, seja ele onde for, o que não é diferente em se tratando

23

Page 2: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

------ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS, v. 8, p. 23-50. Belo Horizonte, 2009-2010

da geografia judaica. É importante não nos esquecermos de que existe,em diferentes espaços, territórios e ambientes, a construção de distintoslugares judaicos nos quais, durante muitos séculos, múltiplas identidadesda religião hebraica se formaram e se instalaram, assim como se desen-volveram de maneira inteira e totalmente singular e desigual, o que nãoas tornaram menos judaicas que as outras, mas iguais às comunidades deáreas histórica e geograficamente manifestas.

Segundo Póvoa (2007), os judeus que imigraram e se desterritoriali-zaram do continente europeu logo antes e logo depois da Segunda Guer-ra Mundial começaram a se estabelecer em novas comunidades no novomundo - a América - ao lado de antigos grupos israelitas, denominados"judeus colonizadores", que desembarcaram e se fixaram nessas terras noinício da colonização.

As comunidades europeias sefaradim e as ashkenazim sobreviveram ainúmeras crises e dificuldades, o que suscitou uma imigração em grandeescala para outros países. Essa mobilidade passou, ainda, por mais umaconjuntura: a de as novas comunidades refazerem os caminhos dos seusantepassados e se reterritorializarem; dessa forma, elas reviveram um pas-sado longínquo e quase esquecido, cruzando novamente com o "acaso"que havia separado os dois grupos.

Para Martin Gilbert (1985), diversos fatores e acontecimentos nomundo ajudaram a desvendar algumas dessas comunidades "escondidas"e a trazê-Ias à luz do judaísmo moderno e contemporâneo, assim comoas aproximaram do mundo judaico ocidental. A rivalidade colonial entreas grandes potências europeias e os avanços das técnicas e ampliação docomércio mundial da época caracterizaram os séculos 19 e 20, assim comoo desenvolvimento da cultura ocidental e das novas territorializaçõesdos meios imperialistas sobre "África, Índias e extremo oriente asiático"(GILBERT, 1985).

Nas novas extensões territoriais, o conquistador europeu deparou--se com uma enorme heterogeneidade de povos, etnias, culturas, idiomas,religiões e modos de vida, todos de caráter particular (pÓVOA, 2007).Aqueles que não pertenciam ao lugar onde estavam - não possuíam "iden-tidade com o lugar" -, apresentavam costumes que, para os outros, eramentendidos como excêntricos. De modo repentino, essas "descobertas"

24

________________ PÓVOA. Do norte da África ao continente indiano ...

tornaram-se assunto de conversações diárias e objeto de interesse social,antropológico, histórico, geográfico e também econômico dos europeus.Nesse instante, revelava-se outra parte "desconhecida" do mundo judaicopara o mundo ocidental.

Para os judeus ocidentais, abriu-se uma porta para a curiosidade quetrouxe questões intrigantes acerca dos achados de outras comunidadesjudaicas nos diferentes continentes. Levantaram-se indagações acerca decomo essas comunidades imigraram e permaneceram com seu esboço ememória judaicos, assim como acerca de seu desenvolvimento e sobre-vivência mantendo o "ser judeu". Outra dúvida seria sobre as tradiçõesreligiosas, sociais, éticas e morais que resistiram a um lugar tão diferentedaquele de origem. Com certeza, os conhecimentos judaicos não pode-riam continuar a sobreviver tão isoladamente, pois com o passar dos anosa cultura do novo lugar seria assimilada.

Começou-se a especular as origens das novas comunidades, bemcomo do novo indivíduo judeu. Como a comunidade ocidental sempre seachou exclusiva no entendimento da civilização e cultura judaicas, passou--se a desconfiar de que aqueles eram "verdadeiros judeus", e que poderiamser um equívoco histórico. As comunidades oriental e africana, no entanto,são de fato judaicas e agora se fazem presentes no mundo contemporâneo,buscando os mesmos direitos das ocidentais e fazendo repensar-se exclu-sividades judaicas até então não questionadas. Dessa forma, carece trazeressas novas comunidades para mais próximo do mundo europeu e tambémde outros grupos judaicos ocidentais, como os judeus do Oriente Médio.

Devido à globalização, veiculam-se distintas concepções sobre "odiferente", criando-se hibridismos conceituais sobre cultura e sociedade,sobre a formação do outro e também sobre a formação e preservação doslugares - do local à elaboração do global-, além das suas idiossincrasias,segundo Pedro Geiger (1998). Os chamados "globalismos culturais" setornaram uma preocupação constante da comunidade judaica internacio-nal, que tem buscado a integração da sua história como povo/ espaço/tempo na tradição das comunidades.

Para Gilbert (1985), com a ampliação das pesquisas sobre as no-vas comunidades judaicas na África e no Médio Oriente asiático, houveuma consideração e mesmo uma maior apreensão por parte da comu-nidade judaica ocidental em entender e aceitar a diferença da cultura

25

Page 3: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS, v. 8, p. 23-50. Belo Horizonte, 2009-2010

do outro, já que etnicamente esses judeus não eram consequência deuma história previamente conhecida pela sociedade mundial e nem pe-los grupos europeus da diáspora, os sefaradz'm e os ashkenazz'm, sendo osegundo maioria étnica.

Para a comunidade ocidental, aquilo que se encontrasse fora deuma já conhecida informação histórico-geográfica, e mesmo da aprecia-ção classificatória étnico-judaica tradicional, não constituia parte de umpovo, o israelita; ou seja, aqueles não eram judeus. Entende-se que houvepreconceito por parte das comunidades judaicas já materializadas, estabe-lecidas e conhecidas do Ocidente em reconhecer o outro (pÓVOA, 2007).Assim, viu-se a minimização dos demais judeus para uma segunda classe,a dos que viviam fora do circuito europeu e ocidental.

A atuação das novas comunidades nos oferece inestimável compre-ensão do judaísmo vivido por eles e respeito à sobrevivência de sua culturajudaica em lugares por vezes tão inóspitos. Elas tiveram de adaptar suaexperiência a um novo ambiente e adotar uma forma de vida diferente, deacordo com a nova realidade, enquanto a comunidade judaica ocidentalmanteve costumes mais conhecidos e revelados às práticas e observânciasdo judaísmo rabínico. Observando as novas comunidades, os judeus oci-dentais encontraram a ambivalência entre os valores e o cotidiano, já quedurante muito tempo uma comunidade praticamente desconhecida e es-quecida construiu suas histórias e práticas judaicas com base na identifica-ção e construção de lugares, uso dos territórios e adaptação aos diferentestipos de espaços nos quais a comunidade ainda sobrevive.

Por meio de pesquisas sobre as ascendências das comunidades ju-daicas orientais, descobriu-se como em cada conjuntura, tanto na históriamundial quanto na história judaica, as circunstâncias deixaram profundasmarcas sobre o povo judeu e sobre seus costumes e tradições. Essas co-munidades, espalhadas, tornaram-se resistentes ao tempo e, passando pordiferentes crises vividas pela maioria dos judeus ocidentais, constituíramnovos costumes e adaptaram suas heranças judaicas.

Atualmente, sabe-se que a diáspora foi mais extensa do que se ima-ginava e, no percurso das grandes imigrações dos últimos cem anos, osjudeus têm buscado novas pátrias e novos territórios em todos os conti-nentes, fazendo girar o globo terrestre (GEIGER, 1998). Verifica-se que,entre os grupos recém-descobertos ou tratados de novas comunidades

26

________________ PÓVOA. Do norte da África ao continente indiano ...

com as antigas europeias, há uma semelhança e um ponto comum: Israele a Torá e sua voz a D''us.

Os judeus do norte da África e/ ou África Mediterrânea

Segundo o censo descrito por Scheindlin (2003), aproximadamente450 mil judeus viviam no norte da África desde o final do século 19 atémeados da Segunda Guerra Mundial, excluindo-se o Egito que, por se tra-tar de um grande centro judaico do continente africano na época, possuiaoutra estimativa.

Muitos desses judeus eram povoadores recentes que vinham de vá-rias partes da Europa e que sobreviveram fugindo das perseguições reli-giosas, das mazelas econômicas e sociais, e das atrocidades das politicasantissemitas. Procuravam por um novo lugar, onde pudessem iniciar umanova vida social, religiosa e econômica.

Os espaços então imigrados da África do Norte estavam, durante oseculo 19 e início do 20, sob o domínio das potências europeias da época,que tinham estruturado impérios neocoloniais para si próprias e para aexpansão do seu imperialismo político-econômico e ideológico.

Os judeus de procedência centro-sul-europeia conheciam, na me-lhor das hipóteses, o litoral norte da África, ou seja, apenas as importan-tes cidades ao longo da orla do Mar Mediterrâneo, que diferiam muitopouco de seus compartes de origem sefaradita - da Europa Meridional-, também de judiciosa familiaridade com a região mediterrânea, já quemuitos possuiam parentes nos dois continentes. Poucos europeus tinhamconhecimento das muitas vicissitudes que a comunidade judaica do norteda África sofrera, ou da grandeza dos grupos judeus que viviam tambémno interior dos países que formam a costa setentrional africana ou mesmodas variantes e peculiares formas de vida judaica que eram descobertas nolitoral e no cerne do continente.

Antes mesmo da chegada desses imigrantes à África no mesmo pe-ríodo, foram encontrados vestígios de comunidades judaicas que viveramde forma singular em oásis e também nos desertos. Nesse agrupamentoencontrou-se um distinto grupo que vivia nas altas montanhas do Atlas, noMagrebe - Marrocos, Argélia e Tunísia. Muitas outras comunidades foramencontradas vivendo como judeus errantes que apreciavam a liberdade

27

Page 4: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS, v. 8, p. 23-50. Belo Horizonte, 2009-2010

nos desertos e não conseguiam se constituir em lugares totalmente habita-dos nem próximos de grandes povoados.

A origem da comunidade judaica do norte da África data de antesda conquista maometana, que se descreve a partir da segunda metade doséculo 7. De modo geral, os judeus não tiveram problemas no início dogoverno muçulmano na região até meados do século 11. As dificuldadesprincipiaram a partir de 1056 - e não cessaram mais.

Muitos núcleos israelitas respeitáveis na época foram extintos; cida-des reconhecidas pelas suas populações judaicas, comércios bem estrutu-rados e amplas edificações residenciais ficaram despovoadas e o resultadofoi um amontoado de escombros. Quando finalmente estabeleceu-se umaaparente tranquilidade social, política e cultural, ou qualquer coisa que seassemelhasse à paz nas terras da África do Norte, nos fms do século 8, aposição dos judeus não era mais a mesma; eles estavam assinalados, ci-catrizados e levavam consigo um receio de se tornarem novamente alvodas temperanças muçulmanas que cresciam velozmente com propagandasreligiosas e ações prosélitas e conversivas.

Enquanto essa situação persistia, todo o território ex-judaico decaíanos níveis econômico, social e cultural. Com isso, os judeus também eramarrastados e levados para baixo da nova sociedade, tornando-se cidadãosnão gratos. Foram impostas às comunidades regras sociais e religiosas aus-teras que culminavam em atos intolerantes, da mesma forma que conse-cutivamente ressurgiam as habituais restrições antijudaicas, pois elas já fa-ziam parte do intento na transformação do uso do território em um novolugar islâmico. Entretanto e contraditoriamente a esse fato, por volta de1391 a 1492, judeus espanhóis - e, posteriormente, judeus portugueses -sobreviveram à conversão compulsória ao cristianismo - à Inquisição, quese aproveitava da frágil segurança e mesmo da opaca liberdade religiosa empaíses localizados no extremo noroeste do continente africano.

Com a chegada do novo indivíduo judeu ao novo lar, as comunida-des judaicas nativas eram procuradas, no intuito de criar laços entre elas eo recém-chegado e facilitar a este a ambientação entre os seus. Os judeusnativos, cognominados maaravim, acolheram em seus grupos os refugiadosibéricos sejaradim e os colocaram parcialmente em exposição à liderançamaometana para fornecer a eles algum direito de se estabelecerem perma-nentemente nos países governados pelos nativos.

28

________________ PÓVOA. Do norte da África ao continente indiano ...

Os recém-chegados sejaradim, todavia, urna vez estabelecidos e alo-cados, deram início ao desvaler dos ;udeus berberes ou maaravim/maaravi-nitas, aos quais julgavam de baixo nível cultural e inferiores aos judeus deorigem europeia (admite-se que a maior parte da liderança religiosa e daerudição talmúdica era encontrada entre os judeus de descendência espa-nhola e/ou portuguesa sefaradim).

Nada mais os aproximava; os infortúnios comuns a ambos os gru-pos deveriam ser unidos e estimular a formação de uma só comunidadejudaica, mas isso estava longe de acontecer, o que satisfazia aos governosmaometanos que percebiam a divisão total das comunidades e tinha, porisso, o seu domínio sobre elas facilitado.

Nos últimos quatro séculos, os impérios norte-africanos enfraque-ceram-se pela desordem e foram abalados por levantes civis. Infelizmente,o destino dos judeus maaravim e sefaradim na Tripolitânia, ou região ma-grebina, ainda não estava salvo, pois o antijudaísmo permanecia comoherança dos governos do lugar. Repetidas vezes o melah era saqueado pelapopulação não judaica e a comunidade por vezes era massacrada ou con-vertida à força ao maometismo. Assim, os sefaradim de Fez, no Marro-cos, foram completamente destruídos durante o século 16. Quando foipossível o restabelecimento de uma nova comunidade em Trípoli, na Lí-bia, observou-se dois Purim "extra": um pelos sefaradim terem sido salvosno último momento antes da destruição acertada pelos maometanos, em1705, e outro em 1792.

Cada desordem social e econômica trazia consigo novas persegui-ções internas; a cada posse de um novo governo, perpetuava-se a tiraniacontra a comunidade e por vezes iniciavam-se novas extorsões junto aosgrupos maaravim e sefaradim (pÓVOA, 2007). Essas ações concretizaramo propósito de preenchimento das necessidades econômicas das naçõesafricanas. Isso se justifica pelo fato de que a comunidade judaica faziaimportantes contribuições com manufaturas de joias e couro que compre-endiam comercialmente da África Mediterrânea à Europa Mediterrânea,incluindo-se França, Espanha, Portugal e Itália e até mesmo a região entrenorte da África, Oriente Médio e Sudão. Na realidade, o melab da Áfricado Norte não era um bairro numa cidade, mas uma "cidadezinha indepen-dente" dentro de uma cidade.

29

Page 5: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS, v. 8, p. 23-50. Belo Horizonte, 2009-2010

Com atitudes adotadas pelos governos maometanos, as leis ficarammais intransigentes e inflexíveis com o outro, o indivíduo não muçulmano.No que tange aos assuntos referentes às novas leis regulamentadas, umindivíduo judeu não tinha definitivamente direito algum num conselhodistrital, comercial ou mesmo intelectual do governo muçulmano. Somen-te quando o imperialismo europeu no século 19 invadiu a região e encon-trou no desgoverno maometano dos reinos norte-africanos a desordemeconômica e politica, instalou-se uma diferente perspectiva de um Códigoda Lei, agora mais ocidental; um código mais aberto e que aparentementesalvaguardava os judeus da humilhação, amparados pelos códigos euro-peus que se colocavam no momento exato para defender a comunidade.

O Código da Lei era soberano e amparava contra as temíveis e into-lerantes leis islâmicas tanto os europeus que estivessem no Oriente quantoos judeus que lá viviam, já que naquele momento a Europa era quem do-minava o território e, portanto, colocava o seu interesse e lei acima das leismaometanas locais.

Depois da década de 1870, os judeus das seções francesas - como aArgélia, a Tunísia e a parte norte do Marrocos -, exerceram consideravel-mente o direito de se tornarem cidadãos franceses, graças ao apoio da AIU(Alliance lsraélite Universelle), com sede em Paris. Foram (r)estabelecidasas escolas judaicas e alguns núcleos culturais em diversas localidades donorte da África, permanecendo por duas gerações e meia e facilitando umencontro dos judeus naturalizados com outras comunidades, além de osaproximarem da civilização europeia, tornando-os sustentáculos das novasgerações que emigravam dos reinos norte-africanos para os países da Eu-ropa Mediterrânea e em particular para a França.

Contudo, os costumes e tradições dos judeus imigrantes foram al-terando-se aos poucos. Seu idioma nativo (o árabe e o arabia - mistura doárabe com hebraico) foi substituído pelo francês, e no cotidiano uma novalinguagem mais ocidentalizada e universal ganhou espaço. Seus hábitos ali-mentares foram se ocidentalizando, assim como seus interesses pessoaise profissionais; os trajes típicos foram abandonados e deram lugar a umanova roupagem, com cortes franceses e tons da moda parisiense e europeia.

A modificação ocorreu de maneira rápida, se levado em conta o tem-po de chegada e instalação dos franceses às regiões e territórios ocupados

30

PÓVOA. Do norte da África ao continente indiano ...---------------

pelos judeus. Entretanto, a "transformação" causou, infelizmente, a abdi-cação não somente das tradições judaicas maaravinitas, mas também dasabedoria judaica. O mesmo aconteceu com as comunidades judaicas situ-adas nas cidades ao longo do litoral mediterrâneo da Africa. No entanto,mais ao sul da orla marítima, em direção ao interior dos países nas regiõesdo deserto e das montanhas Atlas, a influência europeia chegou bem maisfraca e não permaneceu predominante; ao contrário, foi quase nula e, sen-do assim, não sobreviveu para impor suas extensões ocidentais, deixandoo modo de vida e costumes nativos fortalecerem-se.

Com o passar dos anos, as influências europeias trouxeram o antis-semitismo, mal espiritual europeu do fim do século 19. Os colonos france-ses, em particular na Africa do Norte, construíram para si enormes fortu-nas e economias, apropriando-se de espantosas propriedades, tornando-asagrícolas (monocultura - plantation) e moldando o comércio local e dospaíses imperialistas, que obrigavam outros continentes a servir e produzirpara a Europa. Tiraram vantagens da pobreza manufatureira das regiõesdominadas e, por isso, passaram a deparar-se com a indignação dos mu-çulmanos frente à exploração econômica e trabalhadora da Europa. Estes,acostumados a oprimir os judeus em seus territórios, iniciaram uma mani-festação contra a proteção europeia aos maaravim e aos sefaradim que esta-vam então legalmente amparados pelo Código da Lei francês e europeu.Cabe ressaltar que os franceses seguiram à risca o modelo de desenvolvi-mento e exploração proposto pela Europa. Com a revolta da populaçãolocal não judaica, porém, os franceses culparam os maarauim e os sefaradi»:por facilitarem a tomada da riqueza dessas regiões, a exploração dos seusrecursos e a organização do processo de conquista do local.

Os sentimentos antijudaicos não podiam manifestar-se em açõesenquanto o liberalismo e a democracia europeia predominassem no norteda África. No entanto, na medida em que novos atores entravam em cenana esfera politica da Europa e aplicavam doutrinas suspeitas e nacionalis-tas - como a de Adolf Hitler na Segunda Guerra Mundial e na Alemanhanazista -, a presença europeia na .África fragilizava-se. Os movimentosantissemitas ganhavam ascendência principalmente entre os anos 1930 a1940, assentando a posição dos judeus europeus em situações degradantese lamentáveis. Isso se agravava também em outras áreas do continenteeuropeu, como na Itália, então sob regime fascista.

31

Page 6: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS, v. 8, p. 23-50. Belo Horizonte, 2009-2010

Os italianos também estavam presentes na África do Norte e ti-nham o controle total da Líbia, Neste país iniciou-se uma discriminaçãoativa contra os maaravim e os sefaradim. Tal ação discriminatória ocorreutambém no oeste do continente africano, influenciando os países magre-binos. Concomitantemente, nesse período o poder da França estava en-fraquecido devido à invasão alemã em seu território. Como derrotados, osfranceses aproveitaram-se avidamente da conjuntura para privar os judeusmaaravim e sefaradu» de seus direitos adquiridos como cidadãos franceses eos deixaram à própria sorte em território africano e europeu.

Após três anos de intensos conflitos, o exército dos aliados expul-sou os nazistas - alemães - e os fascistas - italianos - do norte da África.No entanto, a antiga situação legal foi restabelecida apenas parcialmente(1943), pois havia uma mobilização contínua dos maometanos contra osjudeus, à qual os aliados não podiam fazer muita coisa contra. Apesar davitória aliada, nada podia devolver as vidas perdidas e as comunidades des-truídas, principalmente na "África italiana", que estivera mais diretamentesob o controle nazifascista. Cidades como Benghazi, Derna e outras áreasurbanas ao longo da costa Iíbica no Mediterrâneo viram suas populaçõesjudaicas serem deportadas para a Europa, onde faziam trabalhos forçadospara os exércitos nazistas, ou eram levados para perecer em campos deconcentração na Polônia e virarem adustível para os fornos ou câmarasde gás.

Apenas alguns poucos conseguiram fugir desse inferno e retomarpara sua terra de nascimento. Ainda assim, a nova ordem política e econô-mica, amparada por uma frágil e relativa "paz" no norte da África, criouuma atmosfera de esperança para os judeus que lá se encontravam.

Talvez o Egito fosse uma das poucas nações a não sofrer tão rigi-damente com os ataques aos judeus e com os efeitos da Segunda GuerraMundial, pois o país não era uma colônia declarada, mas sim uma áreado protetorado britânico. A paz e a liberdade prosperavam no Egito e,além dos habitantes judeus nascidos no país - denominados etnicamentemi~ahim -, essa liberdade também abrangia os cristãos que mantinhamcoexistência com os maometanos. Tudo isso permaneceria enquanto oReino Unido se mantivesse no país, enquanto a Inglaterra tivesse todo ocontrole prático do Estado egípcio, até o início do século 20.

32

________________ PÓVOA. Do norte da África ao continente indiano ...

Uma considerável imigração de judeus europeus após a SegundaGuerra Mundial fortaleceu ainda mais as comunidades judaicas de Alexan-dria e do Cairo, que se transformaram em consideráveis centros culturais,sociais e econômicos na África do Norte e no Oriente Médio. Em 1940,havia cerca de 76 mil judeus no Egito; hoje, não passam de duzentos mi-rahim, segundo Scheindlin (2003). Além disso, havia pequenos grupos

de caraitas Oudeus originários do sul da Ucrânia, região conhecida comoCrimeia) com quem os mi~ahiJJ1mantinham amistosas relações comerciaise boas relações políticas e sociais, pois ambos os grupos ocupavam cargospúblicos de proeminente importância no Egito.

A relação amistosa entre os mi~ahim e o Estado do Egito é heran-ça do tempo do protetorado britânico e durou até a ascensão do generalGamal Abdel Nasser ao poder, por volta dos anos 1950, quando começouum período de horror em que o Egito entrou em guerras contra inglesese franceses, ocasionadas pelo controle do canal de Suez na Península doSinai, pelo não assentimento da existência do Estado de Israel na partilhada Palestina e pela fundação do movimento pan-arabista, que tinha comofoco unir os povos e governos árabes do Oriente Médio contra os Esta-dos Unidos e Israel. Foi um período difícil para os judeus na região e issodeu início a uma nova diáspora do Egito e norte da África para os paísesda Europa Mediterrânea e para as Américas do Norte e do Sul a partir de1954. Cerca de 850 mil judeus foram obrigados a sair de Estados árabese muçulmanos, incluindo a Etiópia e o Irã, sendo que 90% destes forammorar no recém-criado Estado de Israel. Hoje os judeus são minoria reli-giosa no Irã.

A paz voltou a terras egípcias apenas nos anos 1970, com a ascensãodo general Anwar Sadat, que viu a necessidade de o país coexistir comIsrael, além de romper com as forças soviéticas na região. A importânciada paz para a região e a necessidade de se confirmar um acordo de pazlevaram os Estados Unidos a realizarem um encontro entre os envolvidos,legitimando assim o tratado de Camp David, entre o primeiro ministroisraelense Menahem Beguin e o próprio general Sadat, além de fumaremum acordo sobre a devolução dos territórios ocupados por Israel no Egitodurante a Guerra dos Seis Dias, sob a supervisão e na presença do presi-dente norte-americano Jimmy Carter.

33

Page 7: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS, v. 8, p. 23-50. Belo Horizonte, 2009-2010

Hoje, a população judaica na região norte-africana é insignificante,quase nula, havendo apenas uma comunidade um pouco mais expressivaem Marrocos.

Os judeus negros da Abissínia: os falashas

Em 1867, o pesquisador Joséph Halévy anunciou que fizera umadescoberta importante ao explorar a Abissínia, a terra dos etíopes (atuaisEtiópia e Eritreia - nordeste do continente africano), a Cusb da Bíblia. Elehavia encontrado uma população de aproximadamente 110 mil pessoas depele negra que se avocavam de Bêit Israel, ou seja, 'Casa de Israel'.

Segundo Gilbert (1985), essas pessoas alegavam serem descendentesdiretos dos antigos israelitas e, segundo o relato de Halévy, apresentavamum tipo peculiar de judaísmo. Na ocasião da descoberta, um rei abissínio,embora cristão, vangloriou-se de possuir entre seus títulos o de Leão deJudá e alegou que o rei Salomão e a rainha de Sabá são os antepassados dafamília real etíope.

Com a extensão da análise, Halévy não aprofundou a busca dessasdescobertas, que ficaram na superficialidade da mera informação. No en-tanto, coube ao seu aluno, Jacques Faitlovich, apurar com novas pesquisasde campo e com desafios teóricos o propósito inicial.

De acordo com Gilbert (1985), Jacques Faitlovich passou algunsanos convivendo com os fa/ashas e trabalhou exaustivamente para compora história genealógica deles, assim como sua tradição bíblica e judaica.Ouvi-los e analisar suas histórias era fundamental para a concretização dedados que poderiam revelar algum indício da sua verdadeira ancestralidadee seu processo de territorialidade na Abissínia.

Na conclusão de parte da sua pesquisa, o professor JacquesFaitlovich pôde concordar que esses antepassados ancestrais eram co-muns àqueles soldados defensores da fronteira do sul do Egito (na Núbia),ou seja, eram descendentes da Tribo de Dan. Os danitas desceram ao suldo Egito, e entraram no sul do Sudão. No tempo dos faraós elefantinos,serviram como soldados mercenários e, com a queda do reino elefantino,fugiram para a Etiópia. Na mistura com núbios que se converteram aojudaísmo, tornaram-se mais escuros por questões naturais e ambientais.

________________ PÓVOA. Do norte da África ao continente indiano ...

Tal descrição foi encontrada no meio das ruínas de uma antiga muralha,em uma região hoje conhecida C0II10 Assuã.

Sabe-se que parte desse exército e suas famílias emigraram para aAbissínia durante a Rebelião na Diáspora entre os anos 115 a 117 a.E.~.Posteriormente, os descendentes dessas famílias se casaram com os nati-vos da região, e tudo indica que o judaísmo e a pele negra dos modernosjudeus da Etiópia e da Eritreia têm a ver com sua história africana. Domesmo modo, descobriu-se que o judaísmo propagou-se entre os abissí-nios, porém mais rapidamente do que o cristianismo, solidificando-se naregião como a religião oficial da Abissínia.

Com o desenvolvimento das pesquisas e dos fatos acerca da traje-tória humana no país, descobriu-se através de documentos uma série debatalhas nas quais o grupo judaico foi se enfraquecendo e, consequente-mente, perdendo poder territorial e mesmo espaços na sociedade. ParaGilbert (1985), a população tornou-se predominantemente cristã e, poste-riormente, alguns séculos depois da expansão islâmica no norte da África,elevou-se a uma maior quantidade de maometanos. Os vencedores cris-tãos, ao assumirem o poder, denominaram os judeus da Abissínia com onome de falashas, 'os estranhos'.

Derrotados e separados, os fa/ashas apegaram-se lealmente a suastradições judaicas. Naquele período de suas vidas, muitos sobreviveramcomo artesãos e lavradores em suas próprias aldeias. Essa comunidadenão sabia hebraico e até sua Torá era escrita num antigo dialeto abissínio.Através de documentos encontrados pelo professor Jacques Faitlovich,sabe-se que, perto de acontecer o Shabat, os fa/ashas banhavam-se e se ves-tiam de branco, e toda a comunidade reunia-se para rezar e participar deuma refeição comum. Também foi descoberto que naquela comunidadenão se trabalhava aos sábados.

As leis de kashtirnt dos fa/ashas eram um pouco diferentes das leisdos outros judeus ocidentais. Estes, por exemplo, habitavam uma regiãoonde os animais descritos na proibição não se aproximavam daqueles re-feridos na Torá; a realidade vivida e encontrada pelos fa/ashas era outra;eles conviviam diariamente com animais selvagens e nativos da África -da região da Abissínia. De modo geral, os fa/ashas não revelaram qualquerindício de influências de um judaísmo rabínico do Talmude.

35

Page 8: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS, v. 8, p. 23-50. Belo Horizonte, 2009-2010

A chegada de um rabino levado pelo próprio professor JacquesFaitlovich à comunidade, no princípio do século 20, provocou confusãotanto para o rabino quanto para os falashas no modo de pensar, agir, rezar ede observar os preceitos judaicos. Ao mesmo tempo, a visita revelou umapreocupação com esse grupo de "judeus" pois, se a cada conquista da Eu-ropa em terras ultramarinas descobria-se uma nova comunidade de judeusdiferentes tanto étnica quanto linguisticamente, tais achados colocavam acomunidade judaica europeia em estado de preocupação com o seu futuro,embora, ao mesmo tempo, estivesse surpresa e curiosa com a diversidadeétnica dos tipos judaicos pelo mundo.

As frequentes visitas e os constantes contatos dos rabinos europeusaumentaram o interesse da comunidade da Abissínia pelo judaísmo sefaradime ashkenazim, o que permitiu a inserção de escolas de hebraico na região. Apersuasão ficou mais complicada do lado judaico europeu e mesmo norte--americano, pois algumas associações e instituições se negavam a colaborare a participar com contribuições financeiras para apoio e sobrevivência da"nova" comunidade judaica africana, o que ecoava como um preconceitoem relação ao grupo de judeus que, além de africanos, eram negros.

Alguns rabinos e membros das congregações ocidentais não re-conheciam, num primeiro momento, a legitimidade judaica dos falashas.Desse modo, o plano de inserção dos mesmos ao mundo judaico contem-porâneo ocidental percorreu um longo caminho, com enormes barreirasdiscriminatórias, e um período bem extenso que quase levou à extinçãodos falashas pelos maometanos.

Quando a Abissínia foi conquistada pelos fascistas italianos por vol-ta dos anos 1935 a 1936, a pesquisa e os trabalhos do professor JacquesFaitlovich foram interrompidos bruscamente. Somente em 1940-1941 oinvasor italiano foi expulso e o imperador e general cristão ortodoxo, HailéSelassié (Tafari Makonnen ou Ras Tafari), retornou ao trono de seu país,governando até 1975. Nesse momento, não só foi possível recomeçar ainvestigação e a obra judaica, como também realocar os refugiados deguerra europeus da opressão nazifascista, que encontraram no caminho daEtiópia uma segurança provisória.

Esses refugiados levaram consigo habilidades técnicas de que tantoo país precisava para se desenvolver e para manter um grau de interesse

36

PÓVOA. Do norte da África ao continente indiano ...--------------

tecnológico com universidades, escolas, rodovias, portos, aeroportos, ma-quinários agrícolas e industriais e rnelhorias técnicas para agricultores emregiões semiáridas e áridas. Contudo, esse esforço contribuiu para o co-mércio com a África, a Europa e mesmo com a América do Norte. Poroutro lado, no que se refere ao religioso houve uma melhora material efilosófica acerca das questões talmúdicas e rabínicas, sedimentando o ju-daísmo entre os falashas.

O exílio foi momentâneo, passageiro, até a situação na Europa vol-tar à normalidade. O impacto da emigração foi enorme, pois abalou odomínio do imperador Hailé Selassié que, naquele instante, encontrava-sefragilizado e com o governo em fase de recomposição frente à expansãomaometana. Isso causou um segundo advento, uma revolução interna noano de 1975, quando um grupo militar formado por generais maometanosassumiu o poder e depôs Hailé Selassié. Tal golpe abalou a comunidadedos falashas, que voltaram a viver o terror da repressão, semelhante à vividapelos maaravim no norte da África.

Imediatamente, a comunidade internacional, e principalmente a ju-daica, solicitou o apoio do Estado de Israel na elaboração de um planopara a retirada e resgate dos falashas. Uma esquadrilha de aviões Dakotatransportou a comunidade na operação Tapete Mágico, entre junho de1949 e junho de 1950.

Contudo, o governo israelense descobriu que nem todos os falashashaviam saído do país e, por volta de 1984, Israel iniciou um trabalho emprol do resgate desses judeus. A Etiópia, porém, entra numa rota de coli-são a partir de 1995, numa verdadeira guerra civil com milhões de mortos,inclusive por doenças e fome. Neste ínterim, Israel "comprou" a liber-dade dos falashas presos e, em operações aéreas às escondidas, conseguiuinicialmente trazer 15 mil e posteriormente quase 30 mil indivíduos, pelaoperação Salomão.

Foi um resgate dramático. Apesar de tudo ter sido concretizado empouquíssimos dias, milhares de vidas foram salvas e receberam um verda-deiro lar, Eretz Israel ('Terra de Israel').

37

Page 9: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS, v. 8, p. 23-50. Belo Horizonte, 2009-2010

Os judeus do Iêmen: os teimanitasliemenitas

Os judeus do Iêmen têm várias lendas relacionadas a sua chegadaao país, sendo a mais conhecida aquela que diz que eles chegaram antes dadestruição do Primeiro Templo (587 a.E.C.). A primeira evidência históri-ca da presença de judeus no Iêrnen data do século 3.

Segundo Gilbert (1985), esse grupo de judeus começou a deixaro Iêrnen por volta de 1880, quando aproximadamente 2.500 deles ru-maram para Jerusalém e Jafa. Mas foi após a Primeira Guerra Mundial,quando o Iêmen se tornou independente, que o sentimento antijudeu nopaís tornou a imigração uma necessidade. Leis antissemitas, esquecidaspor anos, foram trazidas à tona (por exemplo, os judeus não podiam maisandar nas calçadas ou andar a cavalo). Em um tribunal, as evidências deum judeu não eram aceitas diante das evidências de um muçulmano.

Para Scheindlin (2003), antes da emigração dos judeus do Iêrnenpara Israel e para o mundo ocidental, a vida entre os teimanitas resumia-seprincipalmente às atividades artesã e têxtil. Essas atividades foram exerci-das até o início do século 20 e interrompidas com a importação de merca-dorias pelos ingleses, já que estes imperializavam o território.

Ainda assim, os produtos dos teimanitas foram tomando o mercadopor serem mais bem acabados e mais sofisticados. A concorrência era pro-vocada entre os produtos feitos de forma artesanal, mas a necessidade desobrevivência levou os judeus artesãos a entrarem no ramo do comérciovarejista local, o que não foi tão ruim assim para o desenvolvimento daslocalidades onde viviam, já que vários lugarejos no interior passaram aapresentar uma melhor infraestrutura.

Conta-se que um rabino de uma colônia local, Mori, como o ape-lidavam, ganhava a vida com os seus trabalhos manuais. Com a introdu-ção do comércio de importados, Mori abandonara as práticas artes anais epassou a trabalhar apenas com as atividades comerciais para se sustentar.Entretanto, os seus deveres rabínicos jamais foram esquecidos e abando-nados, pois incluía em sua lista de atividades prestezas para a comunidadecomo moréb, shocher, mohel, rabi, daian e outros exercícios rabínicos. Essasatividades também lhe davam alguns ganhos extras, vistos pela comunida-de como honorários.

38

________________ PÓVOA. Do norte da África ao continente indiano ...

A lei judaica no Iêmen permitia que os teimanitas pudessem ter maisde uma esposa. Poucos deles, no entanto, praticavam a poligamia, emborahouvesse algumas fanúlias que possuíam mais de duas mulheres e dezenasde filhos. De forma geral, porém, a vida familiar era exemplar. Sabe-seque a educação dos teimanitas era feita completamente em hebraico, assimcomo a aplicação das tradições judaicas no cotidiano, em conformidadecom as mit~ot, tendo se tornado uma tarefa sagrada para o dia a dia.

Constitui desonra para a comunidade judaica masculina teimanita, aoser chamado para subir e ler a Torá, não ler sua parte em hebraico perfeitoe claro, sem contar com qualquer tipo de ajuda, oral ou escrita, como atransliteração dos textos sagrados.

Houve um período da história dos judeus do Iêrnen em que as per-seguições e as imigrações foram uma constante, já que a intolerância re-ligiosa dos muçulmanos impôs muitas restrições. Em 1677, elas forampublicadas em édito expulsando todos os judeus do país. Muitos tiveramos seus pertences confiscados e queimados e outros tantos morreram aotentar buscar uma nova pátria em países vizinhos da península arábica.

Mori Shebesi (homem das artes, da literatura, poeta, músico e au-tor cabalista) desempenhou grande autoridade para que esse édito fosserevogado e fosse permitida a volta dos judeus para as suas antigas casas eterras, assim como a retomada de posse dos seus negócios e economias,ainda que não pudessem retomar à cidade de Sana. O pedido nem foi jul-gado e foi rapidamente negado; as condições pedidas por Mori não faziamsentido para o governo maometano, que já impusera uma lei de expulsão.Assim, a vida tornava-se mais irnplexa que antes.

No final do século 19, em 1890, considerável parte da comunida-de judaica do Iêmen emigrou e estabeleceu-se em Áden, na época sob odomínio britânico, e outra quantidade emigrou para a Palestina; poste-riormente, com o advento do Estado de Israel em 1948, essa comunidadepermaneceu. Gilbert (1985) analisa que a emigração mais simpática paraIsrael e a mais interessante, das várias aliot, foi a teimam/a, haja vista que secompõe e se comporta como uma das comunidades mais devotas do país.

De acordo com as pesquisas de Gilbert, em 1922 o governo doIêmen reintroduziu uma antiga lei islârnica exigindo que órfãos judeusmenores de 12 anos fossem convertidos ao islamismo. Quando um judeu

39

Page 10: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS, v. 8, p. 23-50. Belo Horizonte, 2009-2010

decidia emigrar, ele deveria deixar todas as suas posses. Apesar disso, entre1923 e 1945, um total de 17 mil judeus teimanitas deixaram o pais e tiveramnovamente como foco a Palestina.

Após a Segunda Guerra Mundial, milhares de ou tros teimanitas queriammigrar para a Palestina, mas o Livro Branco dos britânicos ainda estava emvigor e aqueles que deixassem o Iêmen acabariam em morros abarrotadosde gente em Áden, onde revoltas graves aconteceram em 1947, depois queas Nações Unidas decidiram pela partição. Muitos judeus foram mortos eo bairro foi completamente incendiado. Apenas em setembro de 1948 asautoridades britânicas em Áden permitiram que os refugiados fossem paraIsrael. Em 1947, após a decisão pela partição, revoltosos muçulmanos deraminício a uma sangrenta perseguição em Áden que matou 82 judeus e destruiucentenas de casas judias. A comunidade judaica em Áden, que contava com8 mil judeus em 1948, foi forçada a fugir. Até 1959, mais de 3 mil já haviamchegado em Israel. Muitos fugiram para os Estados Unidos e Inglaterra.

De acordo com Scheindlin (2003), atualmente não há judeus rema-nescentes em Áden. Na mesma época da fundação de Israel, a comunida-de judaica no Iêmen estava economicamente paralisada, já que a maioriadas lojas e negócios judaicos foi destruída. Essa situação cada vez maisperigosa levou à emigração de toda a comunidade judaica teimanita - qua-se 50 mil judeus - entre junho de 1949 e setembro de 1950, na chamadaoperação Tapete Mágico.

Uma emigração em menor escala foi permitida até 1962, quandouma guerra civil trouxe um final abrupto ao êxodo judaico. Esse é mais umexemplo do deslocamento de toda uma comunidade judaica de suas raízesancestrais em paises árabes. É estimado que aproximadamente mil judeusvivam atualmente no Iêmen. Eles são mantidos como reféns, em péssimascondições e não lhes é permitido deixar o pais.

Os judeus persas dos Montes Zagreb: os zagrebinos

A comunidade judaica da Pérsia localizava-se em maior número nosMontes Zagreb, na porção sudoeste-sul do Irã, daí a origem da denomina-ção pérsica zagrebinos. A comunidade é uma das mais antigas do mundo,segundo Scheindlin (2003), sendo sua origem datada dos dias de Ciro, oConquistador da Babilônia, restaurador da Judeia. Por séculos não se pôde

40

________________ PÓVOA. Do norte da África ao continente indiano ...

distinguir o começo da história da comunidade judaica zagrebina da dosjudeus da vizinha Mesopotâmia, cujos exilarcas e geonif11 também exerciamautoridade sobre os judeus persas.

A conquista do território da Pérsia pelos mongóis, sob o comandodo general Kara Hulagu Khan, no século 12, melhorou muito as condi-ções em que viviam os judeus de Zagreb. Os dirigentes mongóis interes-savam-se pelos trabalhos dos zagrebinos e os nomeavam para cargos deconfiança, como funções públicas e administrativas, elevando-os a ativida-des ligadas às áreas econômica e financeira.

Para Gilbert (1985), durante alguns séculos a vida em comunidadeprosseguiu sem muitas dificuldades, até que, no século 17, os mongóisforam vencidos em terras persas pelos soldados e sacerdotes muçulmanosda facção dos xiitas. Estes obtiveram a supremacia e o poder sobre o terri-tório persa, bem como sobre as benfeitorias constituídas pela comunidade.

Após a reconquista, foram estabelecidas algumas regras políticas ereligiosas divididas em dois regulamentos ultraortodoxos, cujo objetivo eraminar a resistência social, religiosa, econômica e cultural não maometana:

1. Os xiitas declararam que todos os não muçulmanos eram fontede impureza. Membros muito devotos chegavam até a lavar osolhos se por acaso cruzassem com um incrédulo pelas ruas. Issoobrigava a uma separação dos judeus e dos cristãos, pois a lei seaplicava também a estes, assim como a outros grupos religiosos,como os zoroastristas e os baba'is, marcados por meio de umainsígnia.

2. Os sacerdotes - aiatolás xiitas -, além desse fato, conseguiramque o governo persa adotasse uma lei por meio da qual um con-vertido ao maometismo se tornava herdeiro único dos bens detodos os seus parentes vivos e/ou mortos, e isso incluía os pa-rentes não maometanos.

Para Scheindlin (2003), os ataques físicos também se tornaram maisfrequentes. Em 1838, toda a comunidade judaica da cidade de Meshed foiobrigada a seguir o maometismo. Eles permaneceram judeus secretamen-te, vivendo uma ambivalência cultural, social e religiosa e convivendo coma angústia e o perigo que tal existência marrana significava para eles.

41

Page 11: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS, v. 8, p. 23-50. Belo Horizonte, 2009-2010

De acordo com Gilbert (1985), ao saberem dos acontecimentos naPérsia, entidades israelitas da Inglaterra e da França entraram em ação,porém seus protestos e pressão através de canais diplomáticos de nadaadiantaram. A situação chegou a tal questão que, em 1871, os zagrebinosapelaram para seus correligionários ocidentais, para que estes os ajudas-sem a fugir para a Palestina ou a emigrar para Europa ou Estados Unidos,O desespero era tão grande que aceitavam partir para outras nações, desdeque fossem mais amistosas,

Em 1873 e em 1889, o xá Nast-Ed-Din viajou à Europa, visitandoas cidades de Berlim, na Alemanha, Paris, na França, e Londres, no ReinoUnido (SCHEINDLIN, 2003). Nestes centros urbanos, vários judeus semanifestaram e também pressionaram para que a realeza resolvesse a situ-ação de seus súditos zagrebinos na Pérsia. O xá fez inúmeras promessasque, como verificou-se posteriormente, não foram cumpridas,

O único resultado desse interesse por parte dos judeus europeus foio estabelecimento na Pérsia de algumas escolas dirigidas pela AIU e sob asupervisão direta da França e da Inglaterra. Com a situação de tolerânciase deteriorando, houve uma rápida intercessão de representantes dos Es-tados Unidos, porém pouco adiantou.

Por volta de 1907-1909, influências europeias começaram a adentraro pais e um "espírito mais humano" se manifestou. Contudo, o poder dosaiatolás intolerantes só amenizou quando se estabeleceu uma nova dinastiado xá Reza Kã Pahlevi (1925-1978), que fizera esforços estrênuos e razoa-velmente bem sucedidos para iniciar a modernização do pais.

O Ruhollah Khomeini seria considerado o fundador do modernoEstado xiita e governou o Irã desde a deposição do xá até sua morte, em1989. De acordo com Scheindlin (2003), o ano de 1979 marcaria a reali-dade política do Oriente Médio para sempre, e as consequências da Re-volução Islâmica são assunto de discussões infindáveis e causa de tensõespolíticas que, nos dias atuais, vêm se acirrando em decorrência da retóricaagressiva do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad.

Antes da revolução, viviam no Irã mais de 100 mil judeus, dos quaiscerca de 75% emigraram, principalmente para os Estados Unidos e paraIsrael. Os que ficaram no pais vivem, em sua grande maioria, em Teerãe Shiraz, cidade localizada ao sul. Uma das consequências da revolução

42

________________ PÓVOA. Do norte da África ao continente indiano ...

sobre a vida dos judeus zagrebinos é o fato de que a comunidade se tor-nou mais religiosa, frequentando .com maior assiduidade as sinagogas edando maior atenção aos preceitos religiosos e às datas mais importantesdo calendário litúrgico. Hoje, vemos cerca de duzentos judeus se espre-mendo na entrada de uma das sinagogas de Teerã, numa noite de Shabat- uma cena que seria impensável durante os anos 1970, quando o pais foitomado por uma onda de secularismo à moda ocidental sem precedentes.

Os judeus e a sociedade iraniana como um todo se tornaram maisreligiosos e, no limite, houve aqueles entre os judeus que agradeceram porviver num país de religião oficial islâmica, já que assim podiam praticar umjudaísmo de acordo com a ortodoxia. Isso porque há diversas semelhançasentre a ortodoxia judaica e islâmica, como, por exemplo, a obrigatoriedadedo uso do véu para cobrir os cabelos das mulheres (SCHEINDLIN, 2003).

Em outras palavras, o setor mais religioso da comunidade judaica foi oque melhor se adaptou aos novos tempos no Irã, enquanto os judeus moder-nizados e ocidentalizados, vendo-se tolhidos das liberdades às quais haviamse acostumado sob o reino do xá, optaram, em sua maioria, pela emigração.

Para os judeus, a modernização representou, entre outras coisas, acriação de escolas de ensino da língua hebraica e a inauguração das escolasjudaicas laicas da Alliance Israélite Universelle (AIU). Os judeus tambémpassaram a gozar dos mesmos direitos e obrigações de todos os cidadãosiranianos, deixando para trás o status de dhimmi ('protegidos'), termo utili-ado para designar a minoria judaica e cristã no mundo islâmico, desde o

Pacto de Ornar, no século 7.Se na teoria os dbimmi são protegidos, já que a lei islâmica não os

obriga a se converterem ao Islã - ao contrário do que acontece com osseguidores de outras religiões que desejem viver entre os muçulmanos -,na prática seu status é inferior ao dos seguidores do Islã e os dhimmi sãosujeitos a uma série de restrições, destinadas a enfatizar essa inferioridade:cristãos e judeus têm liberdade para praticar suas liturgias, porém ficamobrigados a pagar um imposto especial, aJl1Ja; não podem ocupar deter-minados cargos; devem subserviência aos muçulmanos; não têm direito deandar sobre camelos, apenas sobre jumentos; e assim por diante.

De acordo com Scheindlin (2003), a revolução mudou apenasuma parte dessa história. O Estado de Israel continua demonizado pelos

43

Page 12: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

______ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS, v. 8, p. 23-50. Belo Horizonte, 2009-2010

aiatolás, que acrescentam a destruição. No entanto, Khomeini, que afir-mava que os judeus zagrebinos e/ ou iranianos eram uma minoria a serprotegida e a obter representação no senado, traçou uma clara distinção,que vale até hoje, entre o sionismo e o judaísmo, política e religião.

Tal atitude afetou também outros grupos minoritários que se en-contravam nas fronteiras setentrionais do Irã, como os judeus de Bokhara,que viviam na fronteira do Tadjiquistão e em regiões próximo do Irã e daÁsia Central, os judeus curdos, do antigo Curdistão, os judeus dos cazaros,do Cazaquistâo, e os judeus de gruzim, das montanhas dos Cárpatos.

Os judeus de Cochim

De acordo com Scheindlin (2003), duas comunidades judaicas so-breviveram separadas no vasto subcontinente indiano. Uma está situadaem Cochim, na extremidade sul da Índia, e a outra fica mais ao norte, nolitoral oeste do país, próximo à costa ocidental, na cidade de Bombaim.Nas suas proximidades também encontramos vilarejos com algumas co-munidades judaicas.

Ambas as comunidades estiveram durante vários séculos sem ne-nhum contato com outros judeus do mundo ou da própria Índia. Apesardo isolamento dos dois grupos, o ambiente hindu permaneceu para suasobrevivência como comunidade religiosa, cultural e étnica e foi mescladocom os elementos essenciais do "ser judeu" e da "judeidade". Nenhumadas duas comunidades sofreu perseguições e, portanto, a força e a vitalida-de intrínsecas do judaísmo continuaram vivas e sem medo.

É bem possível que esses judeus, vivendo isolados, também tenhamse habituado na cidade de Cochim ainda antes da destruição do Segun-do Templo. Sabe-se que existiram relações comerciais entre a Índia e osnumerosos mercadores judeus de Alexandria, no Egito, de forma que osalexandrinos talvez tenham tido representantes nessa região. Contudo, épossível também que a primeira colônia judaica tenha sido fundada porjudeus vindos da Babilônia e da Pérsia, por causa das dificuldades ocasio-nais durante os períodos dos amoraim e dos geoni1ll, em alguma época entreos séculos 5 e 8.

Segundo Gilbert (1985), o primeiro registro oficial e documen-tado dos judeus na Índia data do ano de 1020, quando o rajá Bhaskira

44

_________________ PÓVOA. Do norte da África ao continente indiano ...

Ravivarman, da costa malabar, concedeu um título de nobreza e muitaspropriedades a um judeu chamado Yosef Rabban. Através dele, os judeusde sua comunidade adquiriram importância e autoridade no comércio e naregião. O rabino Benjamim de Tudela ouviu falar deles um século e meiodepois e, um século depois disso, Marco Polo mencionou esses judeus emseus escritos para a corte italiana. Naquela época viviam em Cranganor;logo depois a maioria se mudaria para Cochim.

Tornaram-se abastados e influentes e ocupavam até mesmo impor-tantes cargos, como no exército dos príncipes locais, que ocasionalmenteadiavam uma batalha porque seus soldados judeus não queriam violar o

Shabat.No começo do século 16, ocorreu uma mudança revolucionária na

vida da comunidade judaica de Cochim, quando os europeus começarama navegar em águas indianas. Os portugueses foram os primeiros a che-gar e a estabelecer seu poder na Índia, em Goa. Além disso, essa era umaépoca em que os exilados judeus, chuetas e marranos da Península Ibéricaprocuravam algum lugar nas novas colônias fora do alcance da Inquisi-ção espanhola e portuguesa. Alguns milhares deles chegaram à Índia eestabeleceram-se perto dos judeus que há muito viviam ali. Logo após,os portugueses importaram o tribunal da Inquisição. Entretanto, tal açãointolerante não se concretizou, pois os seus rivais holandeses os expulsa-ram da Índia em conquista territorial e colonial, assim concentrando-seinicialmente na cidade de Goa. Com isso, os judeus de Cochim não forammais molestados e muito menos recriminados por suas práticas religiosas.

Tratando-se de assuntos de religião e cultura, a antiga colônia lusi-tana de judeus na Índia beneficiou-se com a chegada dos novos colonosjudeus holandeses e alguns outros judeus europeus. O conhecimento dohebraico foi restabelecido, adotou-se o ritual sefaradim e a colônia passou aemular seus companheiros judeus estudando a literatura sagrada.

Socialmente, a nova colônia trouxe um problema que tem afligidoa comunidade judaica de Cochim até hoje (GILBERT, 1985). De acordocom Scheindlin (2003), os judeus que haviam chegado mais recentementeinsistiram em manter-se separados dos outros. Suas razões eram a ausênciade conhecimento dos judeus indianos e a suposta impureza étnica que suacor indicava (os antigos judeus de Cochim possuem a pele escura, como

45

Page 13: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS, v. 8, p. 23-50. Belo Horizonte, 2009-2010

os demais habitantes da Índia). Para Gilbert (1985), era a reafirmação doaltivo preconceito dos judeus europeus e da assombrosa falta de saberpara os assuntos acerca da história e da geografia dos judeus. Esse con-vencionalismo provinha principalmente dos grupos sifaradim e ashkenazim,que acreditavam que seu grupo étnico se bastava como legítimos judeus.

De acordo com o mesmo autor, a cor dos judeus de Cochim é pro-vavelmente consequência dos casamentos mistos entre os colonos natu-rais da Índia e os nativos hindus que se converteram ao judaísmo. Taisconvertidos talvez tenham sido escravos, já que a escravidão "moderada"era reconhecida na Índia.

Os judeus espanhóis argumentavam que não podiam permitir quesua própria pureza racial fosse maculada por casamentos mistos (issoocorria entre os próprios judeus, ou seja, os cochime sifaradim), ou mesmopelo contato com tal descendência "inferior". Em diversas ocasiões, foramenviadas perguntas a rabinos reconhecidos do Egito e da Palestina pedin-do uma jurisprudência dessa conduta sem base legal dos judeus sifaradim.

Para Póvoa (2007), a discriminação continuou e ainda persiste atu-almente em pleno século 21. O conflito, na realidade, acentuou-se como surgimento de uma terceira divisão através dos escravos que os judeussifaradim convertiam de tempos em tempos e que, pelo menos tempora-riamente, faziam parte da "família branca". Estes ainda se empenham napeleja pela aceitação na comunidade judaica internacional.

B'nei Israel

Segundo Scheindlin (2003), há hoje em dia na Índia cerca de 4.400judeus, sendo 2.400 em Cochim, dentre os quais a população judaica en-contra-se atualmente com uma heterogeneidade étnica enorme. A outracidade de grande concentração de judeus é Bombaim, que abriga os B'neiIsrael (cerca de 2 mil pessoas), judeus indianos de pele parda e que se au-todenominam "filhos de Israel", conforme Gilbert (1985). A origem desua colônia e a razão de sua cor são assuntos de discussão tanto entre osjudeus de Cochim quanto entre os das organizações judaicas de assistênciainternacional. Como era de se esperar, foi sugerida a teoria das Dez Tri-bos Perdidas para explicar a procedência étnica desses judeus. Contudo,a teoria mais plausível é a de que os colonos originais vieram do norte da

46

PÓVOA. Do norte da África ao continente indiano ...--------------

Índia, ou possivelmente como prisioneiros de guerra do norte da África edo Oriente Médio numa galera de escravos romana do século 6.

Para Gilbert (1998), as influências religiosas hindus e muçulmanas e,principalmente, a falta de contato com judeus de fora provocaram mudan-ças fundamentais na vida dos B 'nei Israel como judeus e comunidade. Elesesqueceram a língua hebraica, de forma que apenas Shemá Israel perma-neceu com o grupo e, por negligência, modificaram muitas observânciase feriados do judaísmo. Observaram, porém, escrupulosamente o Shabat,a circuncisão e algumas das leis dietéticas básicas. Suas tradições contamque um homem chamado David Rahabi, judeu de Cochim, apareceu poracaso na comunidade no século 10 e provocou o renascimento do ju-daísmo. Outro visitante, Samuel Divakar, castelhano, prestou-lhe serviçosemelhante no fim do século 18. O resultado é que sua religião judaica foiimediatamente restabelecida e é observada de modo ortodoxo, segundo orito espanhol.

Com a chegada dos ingleses à Índia, provocaram-se muitas mudan-ças na vida dos B 'fiei Israel. Estes eram, em sua maior parte, lavradores eprensadores de sementes e frutas para a extração de óleo (como muitosdeles ainda o são), mas foram atraídos pelos ingleses para o exército. Mui-tos, apesar de tudo, alcançaram postos militares relativamente elevados eocuparam importantes cargos no serviço civil nativo.

Alguns também se voltaram para o comércio e outros se tornaramhábeis artesãos. Há cerca de 2.400 B 'nei Israel atualmente, segundo dadosde Scheindlin (2003). Observa-se que os membros dessa comunidade en-frentam hoje a mesma discriminação que tipos mistos semelhantes enfren-tam entre os judeus de Cochim. Além disso, as relações tornaram-se tensasentre os B 'fiei Israel e os judeus europeus que chegavam e ainda chegam àÍndia. Também neste caso, um sistema de casta se desenvolveu, muito em-bora no rabinato sifaradim da Inglaterra e da Palestina tenha-se recusado aaprová-lo. Com o tempo, talvez os judeus da Índia um dia sejam absorvi-dos pelo demais judeus do mundo ocidental.

De acordo com Scheindlin (2003), a Índia tornou-se acessível ao co-mércio da Europa em expansão e mais tarde ao mundial; diversos judeusforam morar no país, devido aos negócios e indústrias que lá se instala-vam. Sua presença, como já foi descrita, às vezes contribuía e por vezes

47

Page 14: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS, v. 8, p. 23-50. Belo Horizonte, 2009-2010

atrapalhava e criava conflitos no que tange à observância judaica, mas otempo fez o ajuste devido e dessa maneira houve um melhor entrosamen-to entre os diferentes judeus. Algumas das altercações colocadas deramum melhor resultado e reverteram em bem-estar aos judeus de Cochim eB 'nei Israel, pendências foram abrandadas e a comunidade judaica indianase voltou para uma só ação, a preservação de si como um grupo harmôni-co capaz de exercer o seu judaísmo na Índia.

Considerações finais

Embora os judeus se constituam um povo numericamente "peque-no", uma minoria, eles possuem as suas diferenças étnicas, que se têmapresentado de forma muito mais ampla do que o esperado.

Para Scheindlin (2003), é simples apreender o porquê dessa diversi-dade, que pode estar contido na seguinte explicação: o real e fundamentalmotivo que esclarece tal fato foram as constantes desterritorializações aque foram submetidos os judeus durante os aproximadamente três séculosde sua história. A história levou o "ser judeu" a habitar diferentes partesdo planeta e a se adaptar a novas realidades social, cultural, geográfica ehistórica.

Antes da Era Comum já existiam grupos judaicos estabelecidos forade Israel (palestina), de maneira especial na Babilônia, Egito, em outrasnações no Oriente Médio, Asia Central, Índia, Grécia e Itália. De acordocom Gilbert (1998), na Idade Média a Espanha tornou-se o maior centrojudaico do mundo. Com a expulsão dos judeus, dos domínios espanhóiscristãos e intolerantes em 1492, os sefaradin: deslocaram-se para Portugal,para o Norte da Africa (Marrocos, Tunísia, Argélia) e para países mediter-râneos como França, Turquia, Síria, Palestina, da Europa Centro-Nortecomo Holanda, Inglaterra e sul ou norte-americanos como Brasil, Argen-tina e Uruguai, Estados Unidos, México e Canadá.

Enquanto isso, os ashkenazim dirigiram-se para a Europa Central,Rússia, Ucrânia, Polônia e Alemanha. Paralelamente, os dois mais impor-tantes grupos étnicos judaicos administraram com grande responsabili-dade a sobrevivência do judaísmo no mundo ocidental, enquanto outrascomunidades israelitas, muito sui generis, à parte das conhecidas grandescorrentes e grupos ocidentais, se desenvolveram em regiões independentes

48

________________ PÓVOA. Do norte da África ao continente indiano ...

e diferentes da tradicional cultura europeia e branca, como as comunidadesdo Iraque, Irã, Iêmen, Armênia, Cáucaso, Etiópia, Índia, Filipinas, Japão,Austrália e mesmo na China, com a presença dos judeus denominadosKai-Feng-Fu. O judaísmo é mesclado de tantas modificações culturais,étnicas e histórico-geográficas que é quase não judaico acolher somenteuma delas.

Referências

ATI ALI, Jacgues. Os judeus, o dinheiro e o mnndo. São Paulo: Futura, 2003.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade - A era da informação: economia,sociedade e cultura. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001. v. 2.

CLAVAL, Paul. A geografia cultural. Florianópolis: Editora UFSC, 1999.

CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (Orgs.). Introdução à geografiam/tura/. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico.São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GEIGER, Pedro Pinchas. O povo judeu e o espaço. Território, Rio de Janeiro, n.5, p. 85-104, jul./ dez. 1998.

GILBERT, Martin. Tbe Itiustrated Atlas of Jewisb Civilization: 4.000 Years of JewishHistory. New York: Consulting Editor, 1985.

HALL, Stuart A identidade cu/tural na pâs-modernidade. 5. ed. Rio de Janeiro: DP&A,2001.

KANIUK, Yoram. Exodus: a odisséia de um comandante. Rio de janeiro: Imago,2000.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. 5. ed. Lisboa: Presença, 1996.

LOPES, Edward. A identidade e a diferet1ça:raizes históricas das teorias estruturaisda narrativa. São Paulo: Edusp, 1997.

MIZRAHI, RacheI. Imigrantesjudells do Oriente Médio: São Paulo e Rio de Janeiro.Cotia: Ateliê, 2001.

PÓVOA, Carlos Alberto. A territorialização dosjudms na cidade de São Paulo: amigraçãodo Bom Retiro ao Morumbi. 2007. 267 f.Tese (Doutorado em Geografia Humana)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

49

Page 15: Do norte da áfrica ao subcontinente indiano    carlos póvoa

_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS, v. 8, p. 23-50. Belo Horizonte, 2009-2010

RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia dopoder. São Paulo: Ática, 1993.

SANTOS, Milton. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 2005.

___ o Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teórico e metodológico daGeografia. São Paulo: Edusp, 1996.

___ o A natureza do espaço.São Paulo: Edusp, 2002.

___ o Pensando o espaço do homem. São Paulo: Edusp, 2004.

SARTRE, Jean-Paul. A questãojudaica. São Paulo: Ática, 1995.

SCHEINDLIN, Raymond. História ilustrada dopovojudeu. Rio de Janeiro: Ediouro,2003.

UNTERMAN, Alan. Dicionário judaico de lendas e tradições. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 1992.

50

2 A carnavalização do HolocaustoLuiz Nazario

Um carro alegóricodo Holocaasto, elaborado com boas ou más intenções no Carnavalcarioca de 2008 pelo carnavalesco da escola de samba Viradouro, foi defendido porum jornalista como manifestação artística, contra a comunidade judaica ofendidaque a FIERJ representou em açãojudicial: De acordo com ojornalista e meios decomunicação, a autoridade moral no domínio das representações carnavalescas doHolocausto deveriapertencer exclusivamente aos carnavalescos.O samba estaria acimada dignidade humana. Adulado pelas midias, o carnavalescoacabou acusando a FIERJde "censurar o Carnaval". Um exemplo dosperigos da má assimilação do Holocausto.

{Carnaval,' Holocausto; representação}

Em dezembro de 2007, o carnavalesco Paulo Barros e o presidentedo Grêmio Recreativo Escola de Samba (GRES) Unidos do Viradouro,Marco Lira, procuraram o Presidente da Federação Israelita do Estadodo Rio de Janeiro (FIERJ), Sergio Niskier, Queriam comunicar à FIERJ aintenção da escola de incluir em seu enredo de 2008, intitulado "É de ar-repiar!", no bloco "Dissabores, infelicidades, vidas perdidas nesse mundode maldade", um carro alegórico do Holocausto.

51