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Ética Deontológica FILOSOFIA, 2012 JORGE NUNES BARBOSA iBooks Author

Etica Deontológica

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Ética Deontológica

FILOSOFIA, 2012

JORGE NUNES BARBOSA

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CAPÍTULO 1

O Que Importa é o Motivo

Quem acredita nos direitos humanos uni-versais, provavelmente não é utilitarista. Se todos os seres humanos são dignos de respeito, independentemente de quem são ou de onde vivem, então é errado tra-tá-los como meros instrumentos da felici-dade colectiva.

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Poderemos defender os direitos humanos universais, a pretexto de que o respeito desses direitos irá, a longo prazo, maximizar a utilidade. Contudo, neste caso, a nossa razão para respeitar os direitos não é respeitar a pessoa que os detém, mas sim tornar as coisas melho-res para todos. Uma coisa é condenar um situação que provoca sofrimento a uma criança porque reduz a utili-dade geral, outra é condená-la por ser um mal moral in-trínseco, uma injustiça para a criança.

Se os direitos não se baseiam na utilidade, então qual é o seu fundamento moral? Os libertários dão uma res-posta possível: as pessoas não devem ser usadas mera-mente como meios para o bem-estar dos outros, por-que isso viola o direito fundamental de autoproprieda-de, o direito de sermos donos de nós mesmos. A minha vida, o meu trabalho e a minha pessoa pertencem a mim e só a mim. Não estão à disposição da sociedade como um todo.

No entanto, a ideia de autopropriedade, aplicada de for-ma consistente, tem implicações que só um libertário fervoroso é capaz de apreciar - um mercado livre sem uma rede de segurança para os mais frágeis; um Estado mínimo que exclui a maioria das medidas que visam

combater a desigualdade e promover o bem comum; e um elogio tão radical do consentimento que permite afrontas autoinfligidas à dignidade humana, como o ca-nibalismo consensual ou a venda de nós próprios para escravatura.

Nem mesmo John Locke, o grande teórico dos direitos de propriedade e do governo limitado, reivindica um di-reito ilimitado da propriedade. Rejeita a noção de que podemos dispor da nossa vida e liberdade como nos aprouver. Mas a teoria dos direitos inalienáveis de Locke invoca Deus, o que constitui um problema para quem procura um fundamento moral para os direitos que não resida em pressupostos religiosos.

O Argumento de Kant a Favor dos Direitos

Immanuel Kant (1724-1804) apresenta uma explicação alternativa dos deveres e dos direitos, uma das explica-ções mais poderosas e influentes alguma vez apresenta-da por um filósofo. Não se baseia na ideia de que so-mos donos de nós, ou no pressuposto de que as nossas vidas e liberdades são uma dádiva de Deus. Em vez dis-

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so, baseia-se na ideia de que somos seres racionais, me-recedores de dignidade e respeito.

A filosofia de Kant é complexa. Mas não devemos dei-xar que isso nos assuste. Vale a pena o esforço, porque as vantagens são tremendas. A Fundamentação da Me-tafísica dos Costumes (livro de Kant, de 1785) aborda uma questão importante: qual é o princípio supremo da moralidade? E, ao tentar responder a essa questão, aborda outra extremamente importante: o que é a liber-dade?

As respostas de Kant a estas questões dominaram a filo-sofia moral e política desde então. Mas a sua influência histórica não é a única razão para lhe darmos atenção. Por muito assustadora que a filosofia possa parecer à primeira vista, a verdade é que está na base de muito do pensamento contemporâneo sobre moralidade e so-bre política, mesmo que não tenhamos consciência dis-so. Assim, compreender Kant não é apenas um exercí-cio filosófico, é igualmente uma forma de analisar al-guns dos principais pressupostos implícitos na nossa vida pública.

A ênfase de Kant na dignidade humana esta na base das actuais noções de direitos humanos universais. O

que ainda é mais importante, a sua explicação da liber-dade está presente em muitos dos nossos debates con-temporâneos sobre justiça. Os utilitaristas afirmam que a forma de definir justiça e de determinar a coisa certa a fazer é perguntar o que irá maximizar o bem-estar, ou a felicidade colectiva da sociedade como um todo. Os libertários associam a justiça à liberdade: a dis-tribuição justa do rendimento e da riqueza é aquela que resultar da livre transacção de bens e serviços num mer-cado livre; regular o mercado é uma injustiça, porque viola a liberdade de escolha do indivíduo; uma outra perspectiva, a de Aristóteles, por exemplo, defende que justiça significa dar às pessoas o que elas merecem, de forma a recompensar e promover a virtude.

Kant rejeita as perspectivas de maximização do bem-estar e de promoção da virtude. Segundo ele, nenhu-ma delas respeita a liberdade humana. Kant é um fervo-roso defensor de uma perspectiva que associe a justiça à liberdade. Só que a sua concepção de liberdade não tem quase nada a ver com o conceito de liberdade dos libertários. Para Kant, aquilo que vulgarmente conside-ramos liberdade de mercado ou de escolha do consumi-dor não é a verdadeira liberdade, porque implica só a satisfação de desejos que não escolhemos ter.

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Vejamos as críticas de Kant.

O Problema da Maximização da Felicidade

Kant rejeita o utilitarismo. Afirma que, ao basear os di-reitos num cálculo acerca de qual irá produzir a maior felicidade, o utilitarismo coloca os direitos numa posi-ção vulnerável. Há igualmente um problema mais pro-fundo: tentar inferir princípios morais dos desejos que, por acaso, temos é uma maneira errada de abordar a moralidade. Lá porque algo dá prazer a muitas pessoas, isso não significa que esteja certo. O simples facto de a maioria, por grande que seja, ser a favor de determina-da lei, independentemente da intensidade com que o são, não faz com que a lei seja justa.

Kant afirma que a moralidade não pode ser baseada em considerações meramente empíricas, como os inte-resses, as necessidades, os desejos e as preferências que as pessoas têm em determinado momento. Estes factores são variáveis e contingentes, refere ele, pelo que dificilmente poderiam servir de base a princípios morais universais - como os direitos humanos. Mas a ideia fundamental de Kant é que basear princípios mo-

rais em preferências e desejos - incluindo o desejo de felicidade - é fazer uma interpretação errada da morali-dade. O princípio utilitarista da felicidade não contri-bui em nada para a definição de moralidade, uma vez que tornar um homem feliz é muito diferente de o tor-nar bom, e (tornar um homem) prudente ou astuto na procura de benefício (é) muito diferente de o tornar virtuoso. Basear a moralidade em interesses e preferên-cias é destruir a sua dignidade. Não nos ensina a distin-guir o certo do errado, mas apenas a tornarmo-nos me-lhores a fazer cálculos.

Se as nossas necessidades e desejos não podem servir de base à moralidade, o que é que resta? Uma possibili-dade é Deus. Mas essa não é a resposta de Kant. Embo-ra fosse cristão, Kant não baseava a moralidade na auto-ridade divina. Em vez disso, afirma que podemos che-gar ao princípio supremo da moralidade através daqui-lo a que chama razão prática pura. Para ver como, se-gundo Kant, podemos inferir a lei moral temos de com-preender a relação entre a nossa capacidade racional e a nossa capacidade de liberdade.

Kant afirma que todas as pessoas são dignas de respei-to, não porque sejamos donos de nós (como pensam os

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libertários), mas porque somos seres racionais, capazes de raciocinar; somos igualmente seres autónomos capa-zes de agir e escolher livremente.

Kant não quer com isto dizer que somos sempre bem sucedidos a agir de forma racional ou a escolher de for-ma autónoma. Umas vezes, sim, outras vezes, não. Quer dizer apenas que temos a capacidade de entendi-mento racional, e de liberdade, e que estas capacidades são comuns a todos os seres humanos como tal.

Kant reconhece prontamente que a nossa capacidade de raciocínio não é a única capacidade que possuímos. Também temos a capacidade de sentir prazer e dor. Ele reconhece que somos simultaneamente criaturas sensí-veis e racionais. Por sensível Kant quer dizer que reagi-mos aos nossos sentidos, às nossas emoções. Então Bentham tinha razão - mas só em parte. Tinha razão quando dizia que gostamos do prazer e não gostamos da dor. Mas não tinha razão em insistir que eles são os nossos mestres soberanos. Kant afirma que a razão pode ser soberana, pelo menos durante algum tempo. E quando a razão rege a nossa vontade, não somos mo-tivados pelo desejo de procurar o prazer e evitar a dor.

A nossa capacidade racional está ligada à nossa capaci-dade de liberdade. Em conjunto, estas capacidades tor-nam-nos únicos e diferenciam-nos da mera existência animal. Fazem de nós criaturas com algo mais do que só apetites.

O que é a Liberdade?

Para compreender a filosofia moral de Kant, primeiro temos de perceber o que ele entende por liberdade. É frequente considerarmos a liberdade como a ausência de obstáculos àquilo que queremos fazer. Kant discor-da. Tem uma noção muito mais exigentes de liberdade.

O seu raciocínio é o seguinte: quando nós, à semelhan-ça dos animais, procuramos ter prazer ou evitar a dor, não estamos realmente a agir livremente. Estamos a agir como escravos dos nossos apetites e desejos. Por-quê? Porque sempre que procuramos satisfazer os nos-sos desejos, tudo o que fazemos é em função de um de-terminado fim exterior a nós. Vou por aqui aplacar a fome, vou por ali matar a sede.

Suponhamos que estou a tentar decidir que sabor de ge-lado pedir: devo escolher chocolate, baunilha ou cara-

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melo de café crocante? Posso achar que estou a exercer a minha liberdade de escolha, mas o que estou realmen-te a fazer é a tentar descobrir que sabor melhor satisfa-rá a minhas preferências no momento - preferências que não me foram dadas a escolher. Kant não diz que é errado satisfazer as nossas preferências. O que quer di-zer é que, quando o fazemos, não estamos a agir livre-mente, mas sim de acordo com uma determinação exte-rior a nós. Afinal não fui eu que escolhi o meu desejo de comer gelado com sabor a caramelo crocante de café em vez de baunilha. Simplesmente tenho esse desejo.

É costume as pessoas discutirem o papel da natureza e da educação na formação do comportamento. Estará o desejo de Coca-Cola inscrito nos genes ou será induzi-do pela publicidade? Para Kant, este debate é irrelevan-te. Sempre que o meu comportamento é biologicamen-te determinado ou socialmente condicionado, não é ver-dadeiramente livre. Agir livremente é, segundo Kant, agir autonomamente. E agir autonomamente é agir de acordo com uma lei que me imponho a mim mesmo - e não de acordo com os ditames da natureza ou da con-venção social.

Uma maneira de perceber o que Kant entende por agir autonomamente é comparar autonomia com o seu oposto: heteronomia. Quando ajo de forma heteróno-ma, ajo de acordo com determinações exteriores.

Quando agimos de forma autónoma, de cordo com uma lei que nos impomos a nós mesmos, fazemos algo por fazer, como um fim em si mesmo. Deixamos de ser instrumentos de objectivos exteriores a nós. Esta capa-cidade de agir autonomamente é o que confere à vida humana a sua dignidade específica. É o que marca a di-ferença entre pessoas e coisas. Para Kant, respeitar a di-gnidade humana significa tratar as pessoas como fins em si mesmas. É por isso que é errado usar as pessoas em prol do bem-estar geral, como faz o utilitarismo.

O que é a Moral? Procurar o Motivo

Segundo Kant, o valor moral de uma acção consiste não nas consequências que dela advêm, mas sim na in-tenção com que o acto é realizado. O que importa é o motivo, e o motivo tem de ser de um determinado tipo. O que importa é fazer a coisa certa.

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Uma vontade boa não é boa pelo que produz ou reali-za, escreve Kant. É boa em si, independentemente de ser concretizada ou não. Mesmo que... essa vontade boa carecesse totalmente de poder para concretizar as suas intenções, mesmo que, a despeito de seus maiores esforços, nada conseguisse alcançar... mesmo então, continuaria a brilhar por si mesma como uma jóia, como alguma coisa que tem o seu pleno valor em si mesma.

Para que uma acção seja moralmente boa, não basta que seja conforme com a lei moral; é preciso, além dis-so, que seja praticada por causa da mesma lei moral. E o motivo que confere valor moral a uma acção é o mo-tivo do dever. O conceito de motivo do dever correspon-de a fazer a coisa certa pela razão certa.

Ao dizer que apenas o motivo do dever confere valor moral a uma acção, Kant não está, no entanto, a dizer quais são os nossos deveres específicos. Não está a di-zer-nos o que o princípio supremo da moralidade exi-ge. Está simplesmente a observar que, quando avalia-mos o valor moral de uma acção, avaliamos o motivo que lhe está subjacente, não as consequências que pro-duz.

Se agirmos por outro motivo que não o dever, como o interesse pessoal, a nossa acção não tem valor moral. Isto aplica-se, afirma Kant, não apenas ao interesse pes-soal, mas a quaisquer tentativas de satisfazer as nossas necessidades, desejos, preferências e apetites. A estes motivos, Kant chama-lhes inclinações.

Kant admite que, muitas vezes, é difícil saber o que mo-tiva as pessoas a agir como agem. E reconhece que os motivos do dever e da inclinação podem estar ambos presentes. Na opinião dele, apenas o motivo do dever confere valor moral a uma acção.

Qual é o princípio supremo da moralidade?

Se moralidade significa agir com base no dever, resta demonstrar o que é que o dever requer, isto é, qual é o princípio supremo da moralidade.

A resposta de Kant resulta da relação entre três gran-des ideias: moralidade, liberdade e razão. Kant explica estas ideias através de uma série de contrastes ou dua-lismos:

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O primeiro dualismo (dever/inclinação) já foi analisa-do: só o motivo do dever pode conferir valor moral a uma acção.

O segundo dualismo ou contraste descreve duas manei-ras diferentes de determinar a minha vontade - autono-mamente ou heteronomamente. Segundo Kant, só sou livre quando a minha vontade é determinada autono-mamente, regida por uma lei que imponho a mim mes-mo. Mais uma vez, costumamos pensar que a liberdade é podermos fazer o que queremos, satisfazer os nossos desejos sem obstáculos. Mas Kant contesta esta forma de pensar sobre a liberdade: se não fui eu que escolhi os meus desejos, como posso considerar-me livre quan-do os satisfaço?

Quando a minha vontade é determinada heteronoma-mente, é determinada externamente, de fora de mim. Mas isso levanta uma questão complicada: se a liberda-de significa algo mais que obedecer aos meus desejos e inclinações, como é isso possível? Não será tudo o que faço motivado por algum desejo ou inclinação determi-nado por influências exteriores?

A resposta está longe de ser óbvia. Kant refere que tudo na natureza funciona de acordo com leis, como as leis da necessidade natural, as leis da física, as leis de causa e efeito. Isso inclui-nos a nós. Afinal, somos seres natu-rais. Os seres humanos não estão imunes às leis da na-tureza.

Mas se somos capazes de liberdade, temos de ser capa-zes de agir de acordo com alguma outra espécie de lei, uma lei que não as leis da física. Kant afirma que toda a acção é regida por leis de um tipo ou de outro. E se as nossas acções fossem regidas exclusivamente pelas leis da física, não seríamos muito diferentes de uma bola de bilhar num jogo de snooker. Assim, se somos capa-zes de liberdade, temos de ser capazes de agir não de acordo com uma lei que nos é dada ou imposta, mas

DUALISMOSDUALISMOS

1. Moralidade Dever / Inclinação

2. Liberdade Autonomia/Heteronomia

3. RazãoImperativos Categóricos/Imperativos hipotéticos

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sim de acordo com uma lei que damos a nós mesmos. Mas de onde poderá vir tal lei?

Resposta de Kant: da Razão. Não somos apenas seres sensíveis, regidos pelo prazer e pela dor que os senti-dos nos proporcionam; somos também seres racionais, capazes de razão. Se a razão determinar a minha vonta-de, então a vontade tem poder de escolher de forma in-dependente dos ditames da natureza ou da inclinação.

Imperativo Categórico/Imperativo Hipotético

Mas de que modo a razão pode comandar a vontade? Kant distingue duas maneiras, isto é, dois tipos de im-perativos da razão. Um tipo de imperativo, talvez o mais familiar, é o imperativo hipotético. Os impera-tivos hipotéticos usam a razão instrumental: se quer X, então faça Y. Se quer ter boa reputação nos negócios, então trate os seus clientes com honestidade.

Kant opõe os imperativos hipotéticos, que são sempre condicionais, a um tipo de imperativo que é incondicio-nal: o imperativo categórico. No caso de a acção ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, escreve Kant, o imperativo é hipotético. Se a acção é re-

presentada como boa em si mesma e, por conseguinte necessária para uma vontade conforme à razão, en-tão o imperativo é categórico. O termo categórico pode parecer muito técnico, mas não está assim tão dis-tante do uso comum que fazemos dele.

Formulações do imperativo categórico

1. Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei univer-sal. Por máxima, Kant entende um regra ou princí-pio proporcionado pela razão para a acção. Na verda-de, esta formulação está a dizer que devemos agir apenas segundo princípios que poderíamos universa-lizar sem contestação.

Algumas pessoas consideram esta versão do imperativo categórico de Kant pouco convincente. A fórmula da lei universal tem algumas parecenças com o hábito que aqueles adultos chatos têm de disciplinar as crianças que passam à frente na fila ou falam quando não é a vez delas: “E se toda a gente fizesse isso?” se toda a gen-te mentisse, ninguém poderia confiar na palavra de nin-guém, e todos sairíamos prejudicados. Se Kant estives-se a dizer isto, estaria a usar um argumento utilitarista. Foi esta a crítica que lhe fez Stuart Mill. Mas Mill não

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percebeu o objectivo de Kant. Para Kant, perceber se posso universalizar a máxima da minha acção não é uma forma de especular sobre possíveis consequências. É um teste para ver se a minha máxima está de acordo com o imperativo categórico. Uma falsa promessa, se-gundo Kant, não é moralmente errada por abalar a con-fiança social, mas porque quem a faz está a privilegiar as suas necessidades e desejos, não sendo portanto li-vre ou autónomo.

2. Age de tal maneira a que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca sim-plesmente como um meio. A força moral do imperati-vo categórico torna-se mais clara nesta segunda for-mulação, a fórmula da humanidade como fim. Se-gundo esta formulação do imperativo categórico, não podemos basear a lei moral em quaisquer inte-resses, objectivos ou fins particulares, porque então esta aplicar-se-ia apenas à pessoa a cujos fins perten-cessem. Mas, supondo que haja alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto, como fim em si mesma, Nessa coisa, e somente nela, é que estará o fundamento de um possível im-perativo categórico. Afirmo que o homem e, de uma

maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para uso ar-bitrário desta ou daquela vontade.

Política em Kant

Kant não escreveu nenhuma grande obra sobre teotia política, apenas alguns ensaios. Embora Kant não fale em pormenor sobre as implicações, a teoria política que defende rejeita o utilitarismo a favor de uma teoria baseada num contrato social de características muito invulgares para a época.

Kant rejeita o utilitarismo quer como fundamento da moralidade, quer como fundamento do direito. Para ele, uma constituição justa visa harmonizar a liberdade individual de cada um com a de todos os outros. Uma vez que as pessoas têm opiniões diferentes sobre o fim empírico da felicidade e em que é que este consiste, a utilidade não pode ser o fundamento da justiça e dos di-reitos. Porquê? Porque basear os direitos na utilidade iria exigir que a sociedade ratificasse ou subscrevesse um conceito de felicidade em detrimento dos outros. Basear a constituição numa determinada concepção de

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felicidade (como a da maioria) imporia a algumas pes-soas os valores de outras; não respeitaria o direito de cada pessoa de prosseguir os seus fins. Ninguém me pode obrigar a ser feliz segundo a sua concepção do que é o bem-estar dos outros.

A segunda característica distintiva da teoria política de Kant é o facto de ir buscar a justiça e os direitos a um contrato social - mas um contrato social surpreenden-te. os primeiros teóricos do contrato social afiurmavam que o governo legítimo resulta de um contrato entre ho-mens e mulheres que, num momento ou noutro, deci-dem entre si os princípios que irão reger a sua vida co-lectiva. Kant considera o contrato de maneira diferen-te. Embora o governo legítimo se deva basear num con-trato original, não devemos, de modo algum, partir do princípio de que esse contrato... existe de facto, porque tal não é possível. Kant defende que o contrato original não é real, mas sim imaginário.

Kant não nos disse quais seriam os moldes deste contra-to imaginário ou que princípios de justiça iria produzir. Quase dois séculos depois, um filósofo político america-no, John Rawls, tentaria responder a estas questões.

É este o autor que vamos estudar a seguir.11

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