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Titulo: Autor(es): Ciclos de Formação na Escola Plural Agnela da Silva Giusta, Maria Angela Moraes Euclides, Débora Aniceta de Mello Ramón Texto: 1. INTRODUÇÃO O ordenamento do tempo escolar em ciclos, no lugar de série, na Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, só pode ser compreendido no contexto do Programa Escola Plural. Como se sabe, a Escola Plural não é apenas uma proposta pedagógica, nem se confunde com uma simples mudança de metodologias. Trata-se, antes de tudo, de um projeto político que se diferencia de outras propostas consideradas modernas. Principalmente daquelas que procuram diminuir os custos da educação, na medida em que tem como finalidade a formação do aluno inserido no coletivo das transformações culturais e sociais. Uma das maiores preocupações que movem, hoje, o mundo globalizado, refere-se à exigência de atendimento, pelos sistemas de ensino, das demandas de qualificação para o mercado. A proposta político-pedagógica da Escola Plural opõe-se frontalmente ao pressuposto de que as instituições educativas devam ser regidas pelo compromisso de acolhimento e satisfação de tais demandas. Daí, questões cruciais serem levantadas: como romper com essa mentalidade para que o processo ensino/aprendizagem seja motivado por objetivos que ultrapassem os limites das pressões economicistas? Como fazer frente à lógica neoliberal e assumir valores da cidadania relativos à solidariedade, cooperação e compromisso ético com o público? O Programa Escola Plural foi instituído como uma das possíveis respostas às essas questões. Tem como horizonte uma escola voltada para a complexidade de espaços e tempos socioculturais de seus protagonistas, e, como base, o patrimônio de práticas exemplares exercidas na Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, sintonizadas com as idéias de uma escola democrática e igualitária. Assim, a Escola Plural vem propiciar rupturas já desejadas e até certo ponto ensaiadas no próprio sistema quanto a: concepções e modelos de aprendizagem e desenvolvimento antigos e superados; ações administrativas autoritárias e centralizadoras na RME e na escola; aspectos da cultura escolar que perpetuam a dominação, quer do ponto de vista das classes sociais, quer mesmo do ponto de vista do sujeito aprendiz; normas autocráticas que regulam as relações pedagógicas; metodologias e práticas excludentes de ensino; cultura do trabalho individualista, etc. Pelas suas características, portanto, a Escola Plural amplia os espaços educativos para além dos muros da instituição escolar, reformula a noção de currículo, de processo ensino/aprendizagem e de avaliação, e repropõe, com argumentos consistentes, a continuidade da trajetória escolar do aluno sem as restrições da medida de tempo característica da seriação.

Formação da escola plural

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Page 1: Formação da escola plural

Titulo: Autor(es): Ciclos de Formação na Escola Plural

Agnela da Silva Giusta, Maria Angela Moraes Euclides, Débora Aniceta de Mello

Ramón

Texto:

1. INTRODUÇÃO

O ordenamento do tempo escolar em ciclos, no lugar de série, na Rede Municipal de

Ensino de Belo Horizonte, só pode ser compreendido no contexto do Programa Escola

Plural. Como se sabe, a Escola Plural não é apenas uma proposta pedagógica, nem se

confunde com uma simples mudança de metodologias. Trata-se, antes de tudo, de um

projeto político que se diferencia de outras propostas consideradas modernas.

Principalmente daquelas que procuram diminuir os custos da educação, na medida em

que tem como finalidade a formação do aluno inserido no coletivo das transformações

culturais e sociais.

Uma das maiores preocupações que movem, hoje, o mundo globalizado, refere-se à

exigência de atendimento, pelos sistemas de ensino, das demandas de qualificação para

o mercado. A proposta político-pedagógica da Escola Plural opõe-se frontalmente ao

pressuposto de que as instituições educativas devam ser regidas pelo compromisso de

acolhimento e satisfação de tais demandas. Daí, questões cruciais serem levantadas:

como romper com essa mentalidade para que o processo ensino/aprendizagem seja

motivado por objetivos que ultrapassem os limites das pressões economicistas? Como

fazer frente à lógica neoliberal e assumir valores da cidadania relativos à solidariedade,

cooperação e compromisso ético com o público?

O Programa Escola Plural foi instituído como uma das possíveis respostas às essas

questões. Tem como horizonte uma escola voltada para a complexidade de espaços e

tempos socioculturais de seus protagonistas, e, como base, o patrimônio de práticas

exemplares exercidas na Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, sintonizadas

com as idéias de uma escola democrática e igualitária. Assim, a Escola Plural vem

propiciar rupturas já desejadas e até certo ponto ensaiadas no próprio sistema quanto a:

concepções e modelos de aprendizagem e desenvolvimento antigos e superados; ações

administrativas autoritárias e centralizadoras na RME e na escola; aspectos da cultura

escolar que perpetuam a dominação, quer do ponto de vista das classes sociais, quer

mesmo do ponto de vista do sujeito aprendiz; normas autocráticas que regulam as

relações pedagógicas; metodologias e práticas excludentes de ensino; cultura do

trabalho individualista, etc.

Pelas suas características, portanto, a Escola Plural amplia os espaços educativos

para além dos muros da instituição escolar, reformula a noção de currículo, de processo

ensino/aprendizagem e de avaliação, e repropõe, com argumentos consistentes, a

continuidade da trajetória escolar do aluno sem as restrições da medida de tempo

característica da seriação.

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Consistindo num artifício favorável à democratização da educação nos termos

descritos, o ciclo dá sustentação às oportunidades de formação do educando como

sujeito de direitos, tendo seu processo de formação e ritmo de aprendizagem respeitados

ao longo desse processo. Entretanto, a implantação dos ciclos não garante, por si só, a

democratização da educação se a escola não incorpora, como próprio, o papel político

de garantir um ensino da melhor qualidade possível para todos. Isso implica, em

princípio, a anulação dos controles de seletividade e exclusão daqueles alunos que

apresentam maiores dificuldades para aproximar-se dos padrões escolares idealizados.

Vale frisar que a implantação dos ciclos não é artimanha para camuflar os índices de

evasão e repetência; tampouco pode ser interpretada como mecanismo neoliberal de

afrouxamento de rigor do processo educativo, que poria em risco a preparação dos

alunos da rede pública, colocando-os em desvantagem quando comparados com os que

passam por experiências pedagógicas supostamente mais puxadas.

É preciso, ainda, reconhecer que o alargamento do tempo necessário ao aluno, para

que ele possa organizar suas trocas com o meio escolar, é igualmente relevante para o

professor e para a escola demonstrarem quanto são competentes no cumprimento de

suas funções.

Por fim, defendemos a implantação dos ciclos de formação como opção ética da

maior responsabilidade, razão por que devemos passar a limpo os fundamentos políticos

e teórico-práticos dessa opção.

2. - POR QUE CICLO EM LUGAR DE SÉRIE ?

Esta é uma pergunta que muitos se fazem, na tentativa de encontrar justificativa para

abandonar uma tradição milenar - a da seriação - e abraçar outra lógica de organização

do tempo escolar - a do ciclo-, cujos argumentos nem sempre são apresentados com a

clareza, a consistência e a profundidade requeridas.

Para fins de melhor compreensão, agrupamos os argumentos a favor do ciclo em dois

blocos: os de natureza política e os de caráter eminentemente teórico-práticos.

Ressalvamos, porém, que ambos os blocos estão organicamente articulados e que a

arbitrariedade da separação tem o objetivo didático de facilitar a interlocução com os

educadores e com os leitores em geral.

2.1 - Argumentos políticos

Supomos que nenhum educador se posicione contra o direito à educação. Pelo

contrário, as lutas para a formalização desse direito sempre contaram com os

educadores na linha de frente. Por isso, as conquistas alcançadas, nesse terreno, são uma

vitória também dos profissionais da educação. Mas, se o reconhecimento do direito à

educação é muito fácil em se tratando do acesso à escola, o mesmo não ocorre quando

se trata de manter o aluno nessa instituição, provendo-o de meios necessários para que

ele possa dela usufruir de fato. Nesse momento, a afirmação do direito à educação pode

Page 3: Formação da escola plural

transformar-se, aliás, em sua negação quando, ainda que inconscientemente, traímos

nossas próprias convicções por meio de comportamentos e práticas excludentes.

Lembremos que o Ensino Fundamental de 8 anos de duração é o mínimo de

escolaridade obrigatória e gratuita prevista por lei, conforme a Constituição Federal, a

LDB em vigor e o Plano Nacional de Educação. O Município de Belo Horizonte, na

gestão Patrus Ananias, ampliou para 9 anos o direito à educação pública e gratuita sob a

sua jurisdição. Isso quer dizer que todo aluno tem a prerrogativa de freqüentar a escola

municipal nesse espaço de tempo. Qualquer mecanismo que dificulte sua formação

escolar deve ser objeto de avaliação rigorosa. Caso contrário, estaremos fortalecendo a

concepção de escola como organismo para aprofundar as desigualdades sociais.

Quando dizemos que a instituição do ciclo é uma opção ética, o fazemos porque cabe

a nós decidir, no terreno da prática, como proceder com o aluno durante o tempo que lhe

é devido. Se optamos pela seriação, teremos os resultados já conhecidos: expressivos

contingentes de alunos são obrigados a retroceder, vão ficando para trás e raramente

conseguem levar a bom termo um projeto de vida estudantil, ou até mesmo delineá-lo.

Se, por outro lado, admitimos que o esquema da seriação tem-se demonstrado

inoperante e injusto, procuramos experimentar outras modalidades de arranjo de tempo

para regular as exigências de resultados que sejam mais concordantes com a

complexidade da função educativa tanto para alunos quanto para professores e escolas.

Assim, a opção ética refere-se, basicamente, à consideração do direito à educação, ao

cumprimento do dever de educar e à justiça com os atores da cena escolar. Nesses

termos, a dimensão político-pedagógica do programa Escola Plural fica bem explícita ao

se implantar, antes mesmo da aprovação da LDB 9394/96, os Ciclos de Formação como

um dos instrumentos sociais de democratização do ensino nas escolas da RME de Belo

Horizonte.

A instituição dos ciclos de formação adensa o conjunto de medidas para mudar a

escola, legitimando-a como espaço público de construção democrática, e reorganizando

todas as suas áreas (administrativa, curricular, metodológica etc) em torno do princípio

da justiça social. Para isso, a Escola Plural apóia-se no conhecimento científico do ser

humano em desenvolvimento e lança-se num programa educacional aberto às

transformações necessárias para cumprir seu papel de formar sujeitos de direito,

cidadãos políticos capazes de ocupar um lugar qualificado na sociedade e nela atuar de

forma crítica e consciente. Isso se concretiza com o direito a uma escolaridade de

qualidade, ininterrupta, que dá ênfase aos aspectos da formação do aluno enquanto

sujeito de cultura. Uma cultura que, segundo Palácios, engloba aspectos diversos como

"conceitos, explicações, raciocínios, linguagem, ideologia, organização familiar, de

trabalho ou econômica, tipo de moradia, etc.". COLL, C., Palácios, J. e Marchesi, A

(org.). Desenvolvimento psicológico e educação, vol. 1 Porto Alegre: Artes Médicas,

1995, p. 333. O direito a uma escola entendida como espaço de vivência afetiva, social e

histórica do educando, "sintonizada com a pluralidade de espaços e tempos

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socioculturais" Proposta Político Pedagógica da Escola Plural. Caderno 1. Belo

Horizonte. SMED. 1994 de que participam os alunos.

Enfim, a organização por ciclos instiga uma reflexão acerca das dimensões

sociopolíticas da escola, facilitando o desempenho de seu papel no movimento das

transformações sociais. Propõe uma escola engajada na formação real de cidadãos,

numa prática que integra a dimensão social e individual na construção de uma nova

cultura escolar que busca garantir:

direito à formação do aluno;

direito à formação continuada e em serviço do professor e sua valorização profissional;

nova relação no processo ensino/aprendizagem;

nova relação da escola com o conhecimento e a construção de um currículo narrativo e

relacional;

mudança do conceito e das práticas de avaliação;

nova organização da escola, dos seus órgãos e espaços.

2.2.- Argumentos teórico-práticos

A sociedade atual apresenta-se enredada numa cultura de velocidade e eficiência que

afeta diretamente nossa consciência. Acreditamos que a velocidade reflete o estar alerta

para o mundo competitivo, para o poder e para o sucesso dentro dos padrões do

capitalismo contemporâneo. Como estamos sempre atropelados por compromissos,

movidos pela falta de tempo, recorremos à lógica do tempo para classificar nossos

alunos da mesma forma que classificamos a produção e os produtos para consumo.

Colocamos um alto valor na cultura da velocidade, invertendo a função do tempo. No

lugar de fazermos dele um instrumento para facilitar nossa vidas, tornamo-nos seus

escravos. E, por razões culturais e não cognitivas, tendemos a avaliar a aprendizagem

dentro da nossa percepção de tempo assim construída. Os alunos que se enquadram nos

valores de velocidade e eficiência são considerados inteligentes e hábeis, enquanto

aqueles que fogem a esse padrão social são considerados atrasados e lentos RICCI,

Rudá, O perfil do educador do século XXI, Belo Horizonte, Seminário de Formação de

Educadores, Regional Pampulha, 1997.. Dessa forma, perpetuamos o status quo e

negamos as diferenças, num testemunho inequívoco de que as oportunidades para os

alunos da última categoria limitam-se à vaga e não aos benefícios que a escola, em tese,

produz.

Coerente com a tradição expressa, a escola tem tratado a aprendizagem sob a forma

de generalizações previsíveis, que pode ser obtida ao estabelecer um calendário rígido

de ensino, dando muita atenção ao desenvolvimento e aplicação de instrumentos

precisos de medidas. Como se não bastasse o calendário de doze meses, outros

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parâmetros de medida do tempo de aprendizagem são adotados : o semestre, o bimestre

e o módulo aula.

Os tempos de escolaridade já não podem permanecer os mesmos, circunscritos a um

currículo que não resistirá mais às mudanças quando submetidos ao crivo das

diferenças. Ao exercer um controle rígido sobre o tempo em detrimento de um bom

funcionamento do trabalho escolar, não consideramos o significado dessa conduta para

a aprendizagem do aluno. Como conseqüência, a educação é pensada em termos

quantitativos, pelos quais os alunos aprendem unidades e peças separadas de

informações, sem relação com suas experiências e com os contextos mais globais.

O tempo é usado, portanto, como instrumento de predição e controle, o que é

confortável quando, em nome da exaustão de um currículo pronto, imposto e aplicado

de forma linear, desconsideramos as necessidades de formação do aluno, pressupondo

que o conhecimento se dá pela soma das partes e dos tempos, independente dos

processos de subjetivação de quem conhece. É preciso avançar na compreensão da

dinâmica do tempo para a educação: uma dinâmica que valorize o conhecimento da

cultura do professor e do aluno, suas experiências e conflitos pelos quais constroem e

aprimoram suas identidades e comportamentos. Os tempos de aprendizagem devem,

pois, ter prioridade sobre o ritmo artificial da ordem que rege a cultura educacional

vigente, com seu tempo de relógio processado.

Isso posto, chamamos atenção para os seguintes pontos teórico-práticos que

sustentam a defesa do ciclo em vez da série :

A amplitude do dever de educar:

Como se pode observar, a concepção de ciclos, enquanto unidade de tempo, vincula-se a

um projeto social de educação no qual prevalece a lógica do direito à educação na

acepção de direito à formação de sujeitos socioculturais, considerando-se a

multiplicidade das suas dimensões humanas. Dessa forma, são colocados diferentes

papéis para alunos, professores, escolas e associados que, em órgãos colegiados, entram

em interação com vistas à análise, reflexão e encaminhamento de soluções necessárias

ao bom termo da atividade educativa. É de todos, portanto, a responsabilidade pela

construção desses espaços coletivos de discussão, avaliação e planejamento dos

processos vividos pela escola. Esses processos demandam um tempo mais elástico pois,

se somos pressionados para fazer julgamentos definidores da vida do aluno em um curto

espaço de tempo, a tendência é restringir o processo de formação ao que parece poder

ser mais objetivamente desenvolvido e avaliado: os conteúdos programáticos.

Na verdade, estamos falando aqui de maior chance no que se refere à função de educar,

com vistas à consideração e exercício da cidadania em suas esferas civil (ou dos direitos

fundamentais) e cívica (ou dos deveres como compromisso ético perante os

concidadãos). A seriação não é impedimento para que tal função seja exercida, assim

como a instituição dos ciclos não nos permite inferir que, naturalmente, a esse respeito

possa ter-se total garantia. Entretanto, na sistemática de ciclos, há muito mais

Page 6: Formação da escola plural

probabilidade de estudo reflexivo e trabalho coletivo em torno das estratégias da

formação intelectual, moral e socioafetiva do aluno como sujeito imerso na cultura, na

história e nas relações sociais cotidianas de diferentes matizes. O dever de educar, assim

entendido, requer um tempo sem pressões imediatistas, a fim de que se possa respeitar a

inteireza dos processos de socialização do aluno como cidadão. Por isso, afirmamos que

o sucesso do ciclo está sempre na dependência das finalidades claramente expressas em

propostas educativas que consigam ressonância e o voto de confiança dos diferentes

segmentos envolvidos na vida escolar. A Escola Plural, quer pela sua procedência, quer

pela sua formulação indiscutivelmente progressista e engajada, é fonte da credibilidade

necessária para que se façam, na Rede Municipal de Ensino, apostas mais seguras na

direção das transformações inadiáveis.

A complexidade do processo ensino/aprendizagem

Ensinar para que se aprenda e aprender o que se ensina não são tarefas fáceis. Por mais

competente que seja e por mais que se disponha a realizar um trabalho objetivamente

considerado da melhor qualidade, o professor não consegue fazer com que todos os

alunos aprendam o esperado, pelo menos, no mesmo espaço de tempo. Existem aqueles

que aprendem mais, os que ficam na média com 50 ou 60% de aproveitamento e,

finalmente, os que se situam abaixo da média com pontuações diversas.

Sem falar dos problemas que temos com a avaliação - e eles são muitos-, o fato é que

não existe uma relação mecânica, natural ou espontânea entre ensinar e aprender. Por

isso, é urgente deslocar o foco da atenção do ensino em si e da aprendizagem em si para

a relação ensino/aprendizagem. Só assim podemos nos aproximar da complexidade

implicada em tal relação, sendo imprescindível uma análise acurada dos seus

fundamentos.

É, ainda, predominante a concepção da aprendizagem humana como decorrente de

simples pressões externas, conforme afirmam os behavioristas, célebres partidários da

epistemologia empirista. A forma de conceber a aprendizagem como mudança de

comportamento, ocorrendo no tempo em função do treino ou da experiência, típica

dessa direção epistemológica, tem fornecido munição para ações pedagógicas baseadas

na crença de que uma boa aprendizagem é a contrapartida do bom ensino, e que é

possível antecipar-se aos resultados pretendidos. Assim, o behaviorismo oferece

justificação técnica para a consideração do aprendiz como caixa registradora de

informações, como ser passivo que nada cria de original porque nele não se reconhece a

condição de sujeito. Mas, os professores sabem que o problema não é tão simples assim.

E, se tal concepção é ainda dominante nas escolas, não é por escolha premeditada dos

professores, mas porque, desde a sua formação até as condições organizativas do

sistema de ensino e da instituição escolar, tudo converge para práticas antidemocráticas.

Nas duas últimas décadas, entretanto, assiste-se a um combate progressivo contra os

reducionismos da concepção de aprendizagem apresentada, o que se dá no contexto dos

ideais dos movimentos sociais em prol da democratização da educação. É, então, que se

ergue a bandeira do construtivismo significando a defesa de uma outra concepção de

Page 7: Formação da escola plural

aprendizagem que leve em conta a atividade auto-organizadora do sujeito na construção

do conhecimento e na aprendizagem. Isso não quer dizer, entretanto, que se tenha

encontrado a solução para os problemas da aprendizagem escolar. O construtivismo não

é, não pretende, nem pode assumir uma promessa desse gênero.

Por outro lado é inegável que o construtivismo, apesar de todos os equívocos de sua

divulgação, representa um grande avanço no que se refere às conceituações anteriores,

quer quando teoriza sobre questões gerais do conhecer, quer quando investiga o

processo de estruturação cognitiva do sujeito, quer, ainda, quando favorece uma nova

leitura do ato de ensinar/aprender.

De acordo com as formulações dos construtivistas, o aluno não é meramente um

recipiente passivo dos conhecimentos transmitidos pelo professor, nem o professor é um

modelo de comportamento sempre bem-sucedido.

A relação ensino/aprendizagem só é efetiva quando é fruto da compatibilidade de

objetivos, emoções, conteúdos e projetos compartilhados por professores e alunos. Se

isso não ocorre, o que é muito freqüente, o processo pedagógico torna-se tenso e, na

maioria das vezes, desagregador ou inócuo.

Para ajudar a esclarecer o que há de problemático na relação em foco, podemos lançar

mão de contribuições das ciências da cognição, em especial das provenientes da teoria

dos sistemas no que tange à noção de sujeito.

No campo da educação, tornou-se comum falar de sujeito, de sujeito ativo, de sujeito

que constrói o seu próprio conhecimento e assim por diante. O que isso quer dizer ?

Ao fazermos uso de tal terminologia, situamo-nos num lugar teórico determinado. Falar

de sujeito ativo significa referir-se aos sistemas autônomos, que são sistemas fechados

porque auto-organizadores. Mas o que o sujeito organiza internamente de forma a

transformar-se e, ao mesmo tempo, preservar sua integridade enquanto sistema?

Obviamente organiza informações que retira do meio. Então, o fechamento do sistema

depende da sua abertura às trocas energéticas e informacionais e, como corolário, a

autonomia se define pela dependência. Esse paradoxo exposto por Foerster ainda na

década de 60 (1968), foi retomado por Morin que passou a definir o sujeito como

sistema auto-eco-organizador, a fim de marcar a unidade indissolúvel do sujeito com o

mundo.

Com base na conceituação apresentada, a relação do sujeito da aprendizagem com o

sujeito do ensino, como sistemas autônomos, é altamente complexa porque consiste no

que Maturana e Varela chamaram de acoplamento estrutural entre dois ou mais

sistemas. Não é só o aluno que apresenta dificuldade e resistência para estabelecer

vínculos com certos objetos de conhecimento e com o professor. Este, também, passa

pelos mesmos apuros para conseguir congruência com seus alunos. É por isso que

defendemos a tese de que a relação ensino/aprendizagem é probabilística, tornando-se

mais ou menos possível conforme se consiga fazer apelo às estruturas cognitivas

Page 8: Formação da escola plural

potenciais, com todas as suas injunções histórico- culturais, afetivas, étnicas, de gênero,

etc. É por isso, também, que defendemos a ampliação do tempo, que é mais propícia ao

conhecimento mútuo entre os participantes do processo educacional, ao diálogo, à

avaliação permanente, ao desenvolvimento da confiança e ao estabelecimento de laços

de compromissos compartilhados - condições básicas para que os sistemas entrem em

comunicação para que aconteça o acoplamento estrutural mencionado. Em vista disso, o

ciclo de formação constitui uma medida muito mais realista e auspiciosa para o êxito

escolar do que a seriação.

O caráter construtivo e indeterminável da relação aprendizagem /

desenvolvimento

O título deste item prenuncia um outro argumento fortíssimo em favor do ciclo. Os

estudos da relação aprendizagem/desenvolvimento, cujas primeiras elaborações são

atribuídas a Vygotsky, permitem interpretações e apropriações muito convenientes para

o assunto aqui tratado, bem como para a Pedagogia em seu amplo espectro.

Contrariando posições correntes, Vygotsky inverte, na seqüência temporal, a relação

aprendizagem/desenvolvimento. Em lugar da defesa de que seria preciso atingir-se

determinado nível de desenvolvimento para que fosse possível lidar com certa

aprendizagem, Vygotsky afirma que a aprendizagem deve se antecipar ao

desenvolvimento, por ser um mecanismo que o completa, projetando-o para patamares

mais elevados.

No sentido de fundamentar essa hipótese, ele utiliza-se de dados de pesquisa que

evidenciam duas zonas de desenvolvimento sempre presentes nos seres humanos.

A primeira delas, chamada de zona de desenvolvimento real ou efetivo (ZDE), onde se

inserem as conquistas ou as sínteses já realizadas pelo indivíduo no curso de sua história

social, é aferida pelos testes e pelas avaliações de desempenho, e nada informa sobre as

aquisições futuras.

A segunda, intitulada zona de desenvolvimento próximo (ZDP), é constituída das

possibilidades abertas pelo que foi consolidado e que estão em vias de se tornar

desenvolvimento efetivo, sendo para isso necessária a ajuda, a mediação instrumental de

um agente externo.

A zona de desenvolvimento próximo é, dessa forma, o espaço de investimento do

processo ensino/aprendizagem que, quando bem-sucedido, amplia o âmbito do

desenvolvimento efetivo, dando origem a uma nova zona de desenvolvimento próximo,

e assim sucessivamente. Isso quer dizer que o destino da zona de desenvolvimento

próximo é de compor, com a zona de desenvolvimento real, uma totalidade enriquecida

e mais poderosa.

Esse movimento incessante põe em relevo o papel da aprendizagem como provocadora

de desenvolvimento real e de novas zonas de desenvolvimento próximo, uma vez que,

Page 9: Formação da escola plural

para Vygotsky, o que o aluno é capaz de realizar hoje, com a ajuda de outro mais

experiente, será capaz de realizar sozinho amanhã.

Finalmente, é preciso dizer que o alcance de um mesmo nível de desenvolvimento

efetivo por vários alunos não é indicador das ZDPs dos mesmos, pois elas são

extremamente diferenciadas. Assim, quem chegou junto com outro, ou mesmo antes,

num determinado nível de desenvolvimento real, não significa que tenha chegado

melhor ou que não vá ser superado brevemente. Se aquele que se encontra atrasado, ao

chegar, apresentar uma zona de desenvolvimento próximo mais ampla, terá tudo para

dar um salto de qualidade e igualar-se ou passar na frente do que se encontrava, no

momento da avaliação anterior, em posição mais vantajosa.

Diante do exposto, é lícito concluir que o tempo da aprendizagem é da esfera do sujeito

e não pode ser determinado pelo professor, pelo currículo e tampouco pela escola. O

que é possível e desejável é o estabelecimento de expectativas com base em critérios

mais abalizados de intervalo de tempo médio, para que o processo ensino/aprendizagem

puxe, de fato, o desenvolvimento, ou seja, para que o processo ensino/aprendizagem

possa provocar mudança estrutural nas formas mentais de interpretação do mundo.

Insistimos que só é possível estabelecer tempo médio uma vez que não se pode

determinar o tempo preciso de efetivação de aprendizagem de cada aluno particular. A

seriação, portanto, como espaço de tempo muito curto, alheio aos critérios

epistemológicos referentes à gênese dos processos cognitivos esocioculturais, apresenta

os sérios inconvenientes de:

puxar o aluno para trás, no lugar de puxá-lo para frente, ou seja, fazer o aluno voltar a

um ponto por ele já superado, podendo ter como conseqüência o desinteresse, a

ausência de desafio e o rebaixamento da auto-estima que só prejudicam o seu

desenvolvimento; perder de vista a zona de desenvolvimento próximo como uma aposta

no futuro, na continuidade do processo e na consideração de que ela, quando se torna

zona de desenvolvimento efetivo, pode dar lugar à "recuperação" do tempo que fora

considerado improdutivo.

Aqui é bom reiterar que chegar antes não significa chegar melhor, pois, ao alcançar

conceituações e condutas mais complexas e mais adequadas segundo o caso, tem-se a

oportunidade de preencher lacunas, ampliar o que já foi aprendido, proceder a

reestruturações mais fecundas e corrigir erros e ambigüidades de aprendizagens

inadequadas.

Entretanto, para que isso ocorra, é preciso, também, que o currículo seja recursivo, no

sentido de estar retomando continuamente aprendizagens anteriores e, ao mesmo tempo,

seja projetivo, no sentido de estar olhando para diante, prevendo as complexificações

futuras. Em síntese, isso nos conduz à visão de currículo como estrutura narrativa e

relacional. Narrativa, porque, como construção, deve contar a sua própria história;

Page 10: Formação da escola plural

relacional, no sentido de prover os meios para que suas diferentes partes possam

articular-se, a fim de preservar a integridade do sistema enquanto totalidade.

Enfim, tem-se a necessidade de um outro aparato de definições para o processo

avaliativo. É preciso encará-lo como julgamento de valor para embasar a tomada de

decisões sobre a caminhada do aluno; caminhada para frente e não para trás. Isso requer

uma completa mudança do conceito, das práticas e das funções da avaliação da

aprendizagem escolar.

A esse propósito, vale lembrar que termos como aprovação, reprovação, promoção e

similares não são apropriados ao novo modo de conceber o direito à educação, como

direito de se formar na escola. Quando defendemos a não-retenção, pelos motivos que

esperamos terem sido esclarecidos ao longo deste documento, longe estamos de

identificar a não-retenção com a aprovação. A não-retenção é, convenhamos, uma

tomada de posição ética quanto ao direito à educação e quanto às características do

processo ensino/aprendizagem e do sujeito aprendiz. Quer-se dizer, enfim, que não é

profícuo, muito menos justo, reter o aluno na mesma série, significando concretamente

fazê-lo retroceder, quando o processo de aprendizagem vivido por ele é um processo

progressivo, de construções sucessivas com chances de superação das defasagens

anteriores.

BIBLIOGRAFIA

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