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Gêneros literários Muitas teorias e discussões há em torno dos gêneros literários. Os especialistas em teoria literária estão sempre à procura de soluções gerais, nem sempre possíveis ou aceitáveis nos casos particulares. A palavra gênero, etimologicamente, significa família, raça ou conjunto de seres dotados de características comuns. Portanto, que viria a ser gênero literário? De maneira muito simplificada, diríamos que gênero literário é um conjunto de obras dotadas de características comuns. Desde Platão, os três gêneros fundamentais estabelecidos dó: o lírico, o dramático e o narrativo. Essa tripartição, com todos os matizes de que pode revestir-se, está psicologicamente fundamentada nas três faculdades essenciais da alma humana, fontes de toda mensagem verbal: a sensibilidade, a vontade e a inteligência. Como decorrência surgem, espectivamen- te, as três funções da linguagem, manifestadas em qualquer obra literária: a expressão ou função expressiva (pela sensibilidade), o apelo ou função apelativa (pela vontade) e a representação ou fun-ção informativa (pela inteligência). Entretanto, essa tripartição, perfeita e lógica na sua essência, pode tornar--se discutível e até errônea na prática, quando aplicada rigidamente a determinadas obras. É que na criação artística conflu- em as águas dessas três fontes, interpenetrando-se as funções da linguagem. E em certas obras predominará um gênero sobre o outro, mas nunca haverá a expressão pura de um só gênero.

GêNeros LiteráRios

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Page 1: GêNeros LiteráRios

Gêneros literários

      Muitas teorias e discussões há em torno dos gêneros literários. Os especialistas em teoria literária estão sempre à procura de soluções gerais, nem sempre possíveis ou aceitáveis nos casos particulares.

      A palavra gênero, etimologicamente, significa família, raça ou conjunto de seres dotados de características comuns.

      Portanto, que viria a ser gênero literário? De maneira muito simplificada, diríamos que gênero literário é um conjunto de obras dotadas de características comuns.

      Desde Platão, os três gêneros fundamentais estabelecidos dó: o lírico, o dramático e o narrativo.

      Essa tripartição, com todos os matizes de que pode revestir-se, está psicologicamente fundamentada nas três faculdades essenciais da alma humana, fontes de toda mensagem verbal: a sensibilidade, a vontade e a inteligência. Como decorrência surgem, espectivamen-te, as três funções da linguagem, manifestadas em qualquer obra literária: a expressão ou função expressiva (pela sensibilidade), o apelo ou função apelativa (pela vontade) e a representação ou fun-ção informativa (pela inteligência).

      Entretanto, essa tripartição, perfeita e lógica na sua essência, pode tornar--se discutível e até errônea na prática, quando aplicada rigidamente a determinadas obras. É que na criação artística conflu-em as águas dessas três fontes, interpenetrando-se as funções da linguagem. E em certas obras predominará um gênero sobre o outro, mas nunca haverá a expressão pura de um só gênero.

      Os modernos críticos, notadamente Todorov, ensinam que os gêneros literários devem ser estudados indutivamente, a partir das características da obra e não a partir de nomes classificatórios.

      Assim, fundindo a tripartição tradicional (lírico, épico e dramático), com as diferenciações apontadas pelas modernas teorias literárias, temos quatro gêneros básicos e suas respectivas formas:

      Gênero lírico

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      Poemas de forma fixa: soneto, por exemplo.

      Gênero narrativo

      Épico (epopéia)

      Ficção: romance, novela, conto, crônica.

      Gênero dramático: tragédia, comédia, tragicomédia, drama, auto.

      Gênero ensaístico: ensaio, artigo, análise de texto, oratória, carta.

      Gênero lírico

      O adjetivo lírico deriva de lira, instrumento de força expressiva já empregado pelos gregos. Essa associação entre música e lirismo é feita desde as primeiras épocas da cultura artística ocidental, chegando até nossos dias.

      A subjetividade lírica é estruturada com idéias, sentimentos, emoções, recordações, desejos, profundos estados de espírito que, em muitos casos, roçam o indefinível, o inefável e que só podem ser expressos pela musicalidade, pela metáfora e pela poesia. Por essa razão é que o lirismo encontrou, durante a evolução histórica, a sua mais perfeita e generalizada forma de expressão no verso, com seu ritmo e rima próprios.

      Se a prosa rejeita a rima, o verso a busca, exatamente como instrumento de expressão das emoções, as quais se afirmam mais pela repetição e pela simbologia do que pela descrição ou pelo recurso à caracterização ambiental.

      Conseqüentemente, no poema lírico, não há protagonistas, como na literatura de ficção, não há ambiente físico caracterizado, nem episódio, nem enredo, nem temporalidade definida. As emoções profundas do poeta, seu “eu", sua visão do mundo (e não o mundo) são o que vale.

      A linguagem poética é, assim, muito particular. Se quisermos entendê-la, é preciso que nos familiarizemos com ela e isso só será possível mediante uma leitura cuidadosa e freqüente de poemas.

      (in Estudo Dirigido de Português, vol. 1, J. Milton Benemann e Luís Agostinho Cadore, 1984, Editora Ática)

Page 3: GêNeros LiteráRios

      Atualmente, esse gênero está muito presente nas letras de músicas, que são poemas cantados, voltando às origens

      .

      Um homem também chora

      Gonzaguinha

      Um homem também chora

      Menina morena

      Também deseja colo

      palavras amenas

      Precisa de carinho

      Precisa de ternura

      Precisa de um abraço

      da própria candura

      Guerreiros são pessoas

      são fortes, são frágeis

      Guerreiros são meninos

      por dentro do peito

      Precisam de um descanso

      Precisam de um remanso

      Precisam de um sonho

      que os tornem perfeitos

      É triste ver meu homem

      guerreiro menino

      com a barra do seu tempo

Page 4: GêNeros LiteráRios

      com o nosso ideal

      São frases perdidas num mundo

      por sobre seus ombros

      Eu vejo que ele sangra

      Eu vejo que ele berra

      a dor que tem no peito

      pois ama e ama

      Um homem se humilha

      se castram seus sonhos

      Seu sonho é sua vida

      e vida é trabalho

      E sem o seu trabalho

      o homem não tem honra

      E sem a sua honra

      se morre, se mata

      se morre

      se mata

      não dá pra ser feliz

      não dá pra ser feliz

      Gênero narrativo

      A palavra ficção vem do latim fictionem (fingere, fictum), ato de modelar, criação, formação; ato ou efeito de fingir, inventar, simular; suposição; coisa imaginária, criação da imaginação. Literatura de ficção é aquela que contém uma história inventada ou fingida, fictícia, imagi-nada, resultado de uma invenção imaginativa, com ou sem intenção de enganar.

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      A ficção é um dos gêneros literários ou de imaginação criadora (ao lado dos gêneros dramático, lírico, ensa-ístico). A literatura de imaginação ou de criação é a interpretação da vida por um artista através da palavra. No caso da ficção (romance; conto, novela), e da epopéia, essa interpretação é expressa por uma história, que encor-pa a referida interpretão. É, portanto, literatura narrativa.

      A essência da ficção é, pois, a narrativa. Ë a sua espinha dorsal, correspondendo ao velho instinto humano de contar e ouvir histórias, uma das mais rudimentares e populares formas de entretenimento. Mas nem todas as histórias são arte. Para que tenha o valor artístico, a ficção exige uma técnica de arranjo e apresentação, que comunicará à narrativa beleza de forma, estrutura e unidade de efeito. A ficção distingue-se da história e da biografia, por estas serem narrativas de fatos reais. A ficção é produto da imaginação criadora, embora, como toda a arte, suas raízes mergulhem na experiência humana. Mas o que a distingue das outras formas de narrativa é que ela é uma transfiguração ou transmutação da realidade. Ela coloca a massa da experiência humana dentro de um molde, seleciona, omite, arruma os dados da experiência de modo a fazer surgir um plano, que se apresenta como uma entida-de, com vida própria, com um sentido intrínseco, diferen-te da realidade. A ficção não pretende fornecer um simples retrato da realidade, mas antes criar uma imagem da realidade, uma reinterpretação, uma revisão. Ë o espetáculo da vida por meio do olhar interpretativo do artista, a interpretação artística da realidade.”’

      • Elementos da narrativa

      O mundo da ficção desenvolve-se ao redor dos seguintes elementos estruturais:

      1.Personagem

      É a pessoa (de persona) que atua na narrativa. Pode ser principal ou secundária, típica ou caricatural.

      2.Enredo

      É a narrativa propriamente dita, que pode ser linear ou retrospectiva, cuja trama mantém o interesse do leitor, que espera por um desfecho. Chama-se também simples-mente de ação.

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      3. Ambiente

      É o meio físico e social onde se desenvolve a ação das personagens. Trata-se do pano de fundo ou do cenário da história, também designado de paisagem.

      4.Tempo

      É o elemento fortemente ligado ao enredo numa seqüência linear ou retrospectiva, ao passado, presente e futuro, com seus recuos e avanços. Pode ser cronológico ou psicológico. Cronológico, quando avança no sentido do relógio; psicológico, quando é medido pela repercussão emocional, estética e psicológica nas personagens.

      5.Ponto de vista

      Tecnicamente, podemos dizer. que se refere às diferentes maneiras de narrar. Geralmente, se resumem em duas:

      a) narrador-onisciente: autor conta a história como observador que sabe tudo. Usa a 3ª pessoa.

      b) narrador-personagem: autor conta, encarnando-se numa personagem, principal ou secundáría. Usa a lª pessoa.

      6. Discurso

      É o procedimento do narrador ao reproduzir as falas ou o pensamento das personagens. Há três tipos de discurso:

      a) direto: neste caso, o narrador, após introduzir as personagens, faz com que elas reproduzam a fala e o pensamento por si mesmas, de modo direto, utilizando o diálogo. Exemplo:

      Baiano velho perguntou para o rapaz:

      —O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial

      b) indireto: neste tipo de discurso, não há diálogo; o narrador não põe as personagens a falar e a pensar diretamente, mas ele faz-se o intérprete delas, transmitindo o que disseram ou pensaram, sem reproduzir o discurso que elas teriam empregado. Exemplo:

Page 7: GêNeros LiteráRios

      Baiano velho perguntou para o rapaz se o jornal não tinha dado nada sobre a sucessão presidencial.

      c) indireto livre: consiste na fusão entre narrador e personagem, isto é, a fala da personagem insere-se no discurso do narrador, sem o emprego dos verbos de elocução (como dizer, afirmar, perguntar, responder, pedir e exclamar). Exemplo:

      Agora (Fabiano) queria entender-se com Sinhá Vitória a respeito da educação dos pequenos. E eles estavam perguntadores, insuportáveis.

      Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber?

      Tinha? Não tinha.

      7. Linguagem e estilo

      É a vestimenta com que o autor reveste seu discurso, nas falas, nas descrições, nas narrações, nos diálogos, nas dissertações ou nos monólogos.

      • Espécies narrativas

      Nem sempre é possível classificar um determinado texto ou obra dentro de uma determinada modalidade narrativa. Didaticamente, podemos caracterizar o romance, a nove-la, o conto, a crônica e a epopéia.

      1. Romance

      É a modalidade narrativa de maior vulto, onde a visão do mundo do autor se manifesta pelo forte conflito das personagens. O romance aborda os mais variados assuntos. Assim, podem ser históricos, psicológicos, experimentais, científicos, policiais etc.

      São exemplos de romances: Iracema, de José de Alencar; Quincas Borba, de Machado de Assis; O mulato, de Aluísio Azevedo; Corpo vivo, de Adonías Filho etc.

      Há ainda romances que são classificados como verdadeiras epopéias em prosa. Entre eles estão: O sertões, de Eudides da Cunha e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.

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      2. Novela

      É a modalidade narrativa que se caracteriza pela sucessividade dos episódios, muitas vezes das persona-gens e dos cenários. O tempo e o espaço conjugam-se dentro dessa estrutura. Assim; a novela condensa os ele-mentos do romance. Os diálogos são mais rápidos, as narrações são diretas e sem circunlóquios, tudo favore-cendo a precipitação da história’ para o seu desfecho.

      Como exemplo de novelas, podemos citar: Noite, de Érico Veríssimo; A vida real, de Fernando Sabino; Uma vida em segredo, de Autran Dourado; A morte e a morte de Quíncas Berro d’Água, de Jorge Amado etc. A televisão atual explora essa espécie de narrativa com muito sucesso.

      3. Conto

      É a modalidade narrativa de maior brevidade. Se o romance é a vida, o conto é o caso, a anedota. Com economia de cenários e personagens, a solução do conflito é narrada perto do seu desenlace.

      Eis alguns exemplos de contos já clássicos: O alienista, de Machado de Assis; Apólogo brasileiro sem véu de alegoría, de Antônio de Alcântara Machado; O negrinho do pastoreio, de João Simões Lopes Neto; O peru de Natal, de Mário de Andrade.

      4. Crônica

      É uma espécie de narrativa curta e condensada que capta um flagrante da vida, pitoresco e atual, real ou imaginário, com uma ampla variedade temática.

      5. Epopéia

      É uma criação literária, geralmente em verso, de fundo narrativo. (Do grego epos = canto, narrativa). Des-de os tempos antigos, a epopéia tem a finalidade de exaltar os heróis nacionais e cantar os grandes feitos dos povos.

      Modernamente, certos padrões ou estilos de vida foram substituídos por outros bastante diversos. Os gêneros também foram evoluindo. Assim, o gênero narrativo em verso — a epopéia — cedeu lugar ao gênero narrativo em prosa, designado

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simplesmente de narrativa ou ficção, nas suas diversas modalidades.

      (in Estudo Dirigido de Português, vol. 1, J. Milton Benemann e Luís Agostinho Cadore, 1984, Editora Ática)

      Veja o exemplo de um conto:

      O conto que segue pertence a um dos maiores contistas brasileiros da atualidade, o curitibano Dalton Trevisan. O escritor notabilizou-se em nossa literatura com o livro de contos O vampiro de Curitiba, seguido por outros como A guerra conjugal e Desastres do amor. A síntese, um dos traços do autor, é também uma das tendências do conto contemporâneo.

      O ciclista

      Curvado no guidão lá vai ele numa chispa. Na es-quina dá com o sinal vermelho e não se perturba – levanta vôo bem na cara do guarda crucificado. No labirinto ur-bano persegue a morte como trim-trim da campainha: entrega sem derreter sorvete a domicílio.

      É sua lâmpada de Aladino a bicicleta e, ao sentar-se no selim, liberta o gênio acorrentado ao pedal. Indefeso homem, frágil máquina, arremete impávido colosso, des-via de fininho o poste e o caminhão; o ciclista por muito favor derrubou o boné.

      Atropela gentilmente e, vespa furiosa que morde, ei-lo defunto ao perder o ferrão. Guerreiros inimigos tritu-ram com chio de pneus o seu diáfono esqueleto. Se não se estrebucha ali mesmo, bate o pó da roupa e – uma perna mais curta – foge por entre nuvens, a bicicleta no ombro.

      Opõe o peito magro ao pára-choque do ônibus. Salta a poça d´água no asfalto. Nem só corpo, touro e toureiro, golpeia ferido o ar nos cornos do guidão.

      Ao fim do dia, José guarda no canto da casa o pássaro de viagem. Enfrenta o sono trim-trim a pé e, na primei-ra esquina, avança pelo céu na contramão, trim-trim.

      Gênero dramático

      O gênero dramático, desde a antigüidade clássica, teve grande importância, pois, tanto em suas origens gregas e latinas como medievais, esteve sempre associado à problemática

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religiosa, transformando-se, não raras vezes, em verdadeiro ritual.

      Atualmente, o gênero envolve dois aspectos: de um lado, como fenômeno literário, temos o texto, a linguagem; de outro, as técnicas de representação, o espetáculo. Ater-nos-emos, aqui, unicamente ao estudo do primeiro aspecto.

      No drama, as personagens aparecem dotadas de características marcantes, representando realidades humanas concretas. Contudo, a caracterização será indireta, uma vez que se deve sugerir ao público os traços peculiares das personalidades representadas, sendo que o autor não pode imiscuir-se na ação. Assim, o teatro exige um esmerado juízo seletivo, pois cada um dos fatos ocorrentes deve, pela concisão o e pela síntese, ser capaz de despertar emoção. A obra dramática não apresenta descrições nem dissertações, mas busca acentuar a ação. O texto é, então, representativo, onde o diálogo é fundamental, em contraposição ao romance, à novela, ao conto, cujos textos visam a apresentar, e onde o diálogo, se houver, é bastante acessório.

      É importante observar ainda que, no teatro, o autor faz uma tentativa de representar mais a língua falada do que a escrita. Daí os recursos próprios para enfatizar a entonação, a voz, a mímica, os gestos etc.

      Na Idade Média, o teatro tinha as modalidades de auto (milagre ou mistério) e farsa. No Classicismo, predominaram a tragédia e a comédia, de cuja fusão surge, no Romantismo, o drama.

      Hoje, o teatro assumiu uma posição crítica com relação aos problemas político-sociais, o que mostra que ele não é apenas uma forma de diversão, mas sim um poderoso meio de contestação da sociedade. Como prova disso, leia o fragmento da peça O pagador de promessas, que foi inclusive transposta para as telas, ganhando inúmeros prêmios internacionais.

      Texto: Zé-do-Burro

      Zé — (Olhando a igreja.) É essa. Só pode ser essa. (Rosa pára também, junto aos degraus, cansada, enfastiada e deixando já entrever uma revolta que se avoluma.)

      Rosa — E agora? Está fechada.

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      Zé —É cedo ainda. Vamos esperar que abra.

      Rosa — Esperar? Aqui?

      Zé — Não tem outro jeito.

      Rosa — (Olha-o com raiva e vai sentar-se num dos degraus. Tira o sapato.) Estou com cada bolha d’água no pé que dá medo.

      Zé — Eu também. (Contorce-se num ríctus de dor. Despe uma das mangas do paletó.) Acho que os meus ombros estio em carne viva.

      Rosa — Bem feito. Você não quis botar almofadinhas, como eu disse.

      Zé — (Convicto) Não era direito. Quando eu fiz a promessa, não falei em almofadinha.

      Rosa — Então: se você não falou, podia ter botado; a santa não ia dizer nada.

      Zé — Não era direito. Eu prometi trazer a cruz nas costas, como Jesus. E Jesus não usou almofadinhas.

      Rosa — Não usou porque não deixaram.

      Zé — Não, esse negócio de milagres, é preciso ser honesto. Se a gente embrulha o santo, perde o crédito. De outra vez o santo olha, consulta lá os seus assentamentos e diz: — Ah, você é o Zé-do-Burro, aquele que já me passou a perna! E agora vem me fazer nova promessa. Pois vá fazer promessa pro diabo que o carregue, seu caloteiro duma figa! E tem mais: santo é como gringo, passou calote num, todos os outros ficam sabendo.

      Rosa — Será que você ainda pretende fazer outra promessa depois dessa? Já não chega? ...

      Zé — Sei não ... a gente nunca sabe se vai precisar. Por isso, é bom ter sempre as contas em dia. (Ele sobe um ou dois degraus. Examina a fachada da igreja à procura de uma inscrição.)

      Rosa — Que é que você está procurando?

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      Zé — Qualquer coisa escrita, pra a gente saber se essa é mesmo a igreja de Santa Bárbara.

      Rosa — E você já viu igreja com letreiro na porta, homem?

      Zé —É que pode não ser essa...

      Rosa — Claro que é essa. Não lembra o que o vigário disse? Uma igreja pequena, numa praça, perto duma ladeira...

      Zé — (Corre os olhos em volta.) Se a gente pudesse perguntar a alguém...

      Rosa — Essa hora está todo mundo dormindo. (Olha-o quase com raiva.) Todo o mundo ... menos eu, que tive a infelicidade de me casar com um pagador de promessas. (Levanta-se e procura convencê-lo.) Escute, Zé... já que a igreja está fechada, a gente podia ir procurar um lugar

      para dormir. Você já pensou que beleza agora uma cama? ...

      Zé — E a cruz?

      Rosa — Você deixava a cruz aí e amanha, de dia ...

      Zé — Podem roubar ...

      Rosa — Quem é que vai roubar uma cruz, homem de Deus? Pra que serve uma cruz?

      Zé — Tem tanta maldade no mundo. Era correr um risco muito grande, depois de ter quase cumprido a promessa. E você já pensou: se me roubassem a cruz, eu ia ter que fazer outra e vir de novo com ela nas costas da roça até aqui. Sete léguas.

      Rosa — Pra quê? Você explicava à santa que tinha sido roubado, ela não ia fazer questão.

      GOMES, Dias. O pagador de promessas. São Paulo, Tecnoprint, [s. d.1. p. 14-8].

      (in Estudo Dirigido de Português, vol. 1, J. Milton Benemann e Luís Agostinho Cadore, 1984, Editora Ática)

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http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/generos