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ESCOLA E CIDADANIA EM UMA ERA DE DESENCANTO Trecho subtraído do texto de Pablo Gentilii Uma breve história pode resumir algumas dimensões do profundo desafio ético, político e educativo que enfrentamos nessa era de desencanto. Algumas semanas atrás decidi sair com Mateo, meu filho de um ano, para fazer umas compras. As necessidades familiares eram, como quase sempre, ecléticas: fraldas, disquetes, o último livro de Ana Miranda e algumas garrafas de vinho argentino, difíceis de serem encontradas com um bom preço no Rio de Janeiro. Após algumas poucas quadras, Teo adormeceu placidamente em seu carrinho de bebê. Enquanto ele sonhava com alguma coisa provavelmente mágica, percebi que um de seus sapatos estava desamarrado e quase caindo. Decidi tirá-lo, para evitar que, em um descuido, se perdesse. Poucos segundos depois, uma elegante senhora me alertou: “Cuidado! Seu filho perdeu um sapatinho”. “Obrigado, respondi, mas fui eu que o tirei”. Alguns metros adiante, o porteiro de um estacionamento, aparentemente de sorriso tímido e de poucas palavras, moveu sua cabeça na direção do pé de Mateo, dizendo em tom grave: “o sapato”. Levantando o dedo polegar, em sinal de agradecimento, continuei meu caminho. Antes de chegar ao supermercado, dobrando a esquina da Avenida Nossa Senhora de Copacabana com a Rainha Elizabeth, um surfista, igualmente preocupado com o destino do sapato de Teo, disse: “Oi, mané, teu filho perdeu a sandália”. Ergui o dedo novamente e sorri em sinal de agradecimento. Já no supermercado, as advertências continuaram. A suposta perda do sapato de Mateo não deixava de gerar diferentes mostras de solidariedade e de alerta. Chegando ao nosso apartamento, João, o porteiro, fazendo festa com sua habitual algazarra, gritou, acordando a criança: “Teo, teu papai perdeu de novo o sapato”. O sol tornava aquela manhã especialmente brilhante. A preocupação das pessoas com o paradeiro do sapatinho, ainda que insistente, dava a ela um toque solidário que a tornava mais alegre ou, ao menos, fraternal. Todavia, uma vez a

Gentilli - "Sapatinho de Matheus"

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Page 1: Gentilli - "Sapatinho de Matheus"

ESCOLA E CIDADANIA EM UMAERA DE DESENCANTO

Trecho subtraído do texto de Pablo Gentilii

Uma breve história pode resumir algumas dimensões do profundo desafio ético, político e educativo que enfrentamos nessa era de desencanto. Algumas semanas atrás decidi sair com Mateo, meu filho de um ano, para fazer umas compras. As necessidades familiares eram, como quase sempre, ecléticas: fraldas, disquetes, o último livro de Ana Miranda e algumas garrafas de vinho argentino, difíceis de serem encontradas com um bom preço no Rio de Janeiro. Após algumas poucas quadras, Teo adormeceu placidamente em seu carrinho de bebê. Enquanto ele sonhava com alguma coisa provavelmente mágica, percebi que um de seus sapatos estava desamarrado e quase caindo. Decidi tirá-lo, para evitar que, em um descuido, se perdesse. Poucos segundos depois, uma elegante senhora me alertou: “Cuidado! Seu filho perdeu um sapatinho”. “Obrigado, respondi, mas fui eu que o tirei”. Alguns metros adiante, o porteiro de um estacionamento, aparentemente de sorriso tímido e de poucas palavras, moveu sua cabeça na direção do pé de Mateo, dizendo em tom grave: “o sapato”. Levantando o dedo polegar, em sinal de agradecimento, continuei meu caminho. Antes de chegar ao supermercado, dobrando a esquina da Avenida Nossa Senhora de Copacabana com a Rainha Elizabeth, um surfista, igualmente preocupado com o destino do sapato de Teo, disse: “Oi, mané, teu filho perdeu a sandália”. Ergui o dedo novamente e sorri em sinal de agradecimento. Já no supermercado, as advertências continuaram. A suposta perda do sapato de Mateo não deixava de gerar diferentes mostras de solidariedade e de alerta. Chegando ao nosso apartamento, João, o porteiro, fazendo festa com sua habitual algazarra, gritou, acordando a criança: “Teo, teu papai perdeu de novo o sapato”. O sol tornava aquela manhã especialmente brilhante. A preocupação das pessoas com o paradeiro do sapatinho, ainda que insistente, dava a ela um toque solidário que a tornava mais alegre ou, ao menos, fraternal. Todavia, uma vez a resguardo das advertências, começou a me invadir uma incômoda sensação de mal-estar. O Rio de Janeiro é, como qualquer grande metrópole latino-americana, um território de profundos contrastes, no qual o luxo e a miséria convivem de forma nem sempre harmoniosa. Meu desgosto era, talvez, injustificado: o que faz do pé de uma criança de classe média motivo de atenção e de eventual preocupação em uma cidade com centenas de crianças descalças – brutalmente descalças –, com dezenas de famílias vivendo ao relento, com as evidências indisfarçáveis da barbárie que supõe negar os mais elementares direitos humanos a milhares de indivíduos?

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A possibilidade de reconhecer ou perceber acontecimentos é uma forma de definir os limites sempre arbitrários entre o “normal” e o “anormal”, o aceitado e o recalcado, o permitido e o proibido. De modo que, enquanto é “anormal” que um menino de classe média ande descalço, é absolutamente “normal” que centenas de crianças pobres andem sem sapatos e perambulem pelas ruas de Copacabana pedindo esmolas. Sem tantos rodeios, o que pretendo dizer é que, hoje, em nossas sociedades dualizadas, a exclusão é invisível aos olhos. Certamente, a invisibilidade é a marca mais visível dos processos de exclusão neste século que começa. A exclusão e seus efeitos estão aí. São evidências cruéis e brutais que nos ensina a vida nas ruas, que comentam os jornais, que exibem as telas de cinema. Todavia, a exclusão parece haver perdido poder para produzir espanto e indignação em uma grande parte da sociedade. A seletividade do olhar cotidiano é implacável: dois pés descalços não são dois pés descalços. Um é um pé que perdeu o sapato. O outro, simplesmente não existe. Um é o pé de um menino. O outro é o pé de ninguém. A exclusão se desvanece no silêncio dos que a sofrem e no dos que a temem. De certa forma, devemos ao medo o mérito de recordarmos diariamente a existência da exclusão. A seletividade do olhar medroso é implacável: dois pés descalços não são dois pés descalços. Um é o pé de um menino. O outro, o pé de uma ameaça. Todavia, o medo não nos faz “ver” a exclusão. O medo só nos conduz a temê-la. E o temor é sempre, de uma ou de outra forma, aliado do esquecimento, do silêncio. O medo é um subproduto da violência. Uma violência cuja vocação é ocultar-se, tornar-se invisível aos olhos. A seletividade do olhar desmemoriado é implacável: dois pés descalços não são dois pés descalços. Um é um pé de um menino. O outro é um obstáculo.