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ENTR,EVISTA A ANTONIO poLITO

Hobsbawm, e. o declínio do império do ocidente in o novo século entrevista a antonio polito

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ENTR,EVISTA AANTONIO poLITO

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Grafia atualizada segundo 0 Acm·do Ortogrtifico da Lingua Portuguesa de 1990,que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Esta tradu~ao de Intervista ml nuovo secolo foi publicada em acordo com Gius.Laterza e Figli, Roma-Bari

Titulo originalIntervista suI nuovo secolo

CapaJeff Fisher

L Guerra e paz 122. 0 declinio do imperio do Ocidente 343. Pequeno mundo global 614. 0 que restou da esquerda 905. Homo globalizatus 1126. Idlia, querida Italia 1367. 12 de outubro de 1999 152

RevisiioRenato Potenza RodriguesMarcelo D. de Brito Riqueti

Dados Intcrnacionais de Cataloga<;ao na Publicac;ao (CIP)

(C5mara Brasileira do Livro, Sl', Brasil)

Hobsbawl11, Eric]., 1917-o novo seculo : entrcvista a Anton io Polito / Eric J.

Ilohshawl11 ; traduc;ao do italiano para 0 ingles Allan Cameron;t, .nlll('i'io do inglcs para 0 portugues e catcjo com a edic;ao italiana( IUlldio Marcondes. ~ Sao Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Conclusao: Tomara! 167Sobre 0 autor e 0 entrevistador 17S

11111111 1I1 il~in:ll: lntervista sui nuovo seeolo.1~11t.'I/H H~ \,1)-1420-7

I III I,ull III.HI ••• II:' Scculo 20 2. Hobsbawm, Eric]., 1917I llH' I III I "II !Iln.!1 Previsoes I. Titulo. II. Titulo:

I I I I j IlHtHh. Pnlllll,

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2. 0 DECLiNIO DO IMPERIODOOCIDENTE

Em muitas regioes, as erupfoes naciona!istas que 0 senhor anali-_ anhadas de uma desmtegrafao estatal, provocada pelosou sao acomp , , . - d p'

colapsode instituifoes e sistemas juridicos epela substztZtlfao es;s ~1

ac oes etnias e grupos violentos. Ou, mazs szmplesmente, 0 sta 0~oJe a~abar se tornando, C077ZOno casodosparaisos [zSC£lZS, ape~as ~77:ainstancia administrativa em favor ~o capit~lismo glo~al. ( ua e 0futuro do Estado enquanto instxtZtlfao no proxxmo mzlenzo.

Creio que estamos diante da inversao de um pr~cesso sec~-

d h· t' . a de construrao e fortaleClmento g1a-lar a longa on a 15onc '3'., 'ddu~l dos Estados territoriais ou Estad.os naClOnaIS n~ sentI ~

olftico do termo. Essa tendencia domllloU 0 mundo ese~1Vop d d '10 XVI e ate por volta da decadavido pdo menos es e 0 secude 1960 eu diria.o ~ais interessante e que esse processo ocorreu, em espe-

< h ' 10 com a natureza. 1 des de 0 seculo XVIII, sem nen um VlllCU .~~:016 ica de cada Estado. Quero dizer com 1550que .enco~-tramo~ tal tendencia em todos os regimes, fossem el~lr~era~s,conservadores, fascistas ou qualquer ~utra, coisa. sta _0

apaz de definir cada vez malS a area e a populac;aotornou-se c dsob seu controle, passou a acumular um vol~me crescente .e'informac;oes relativas a sua soberania. e amplrou cada ve~ malsSU.\ cficiencia em termos administratlvos. Em outrdas palavras,. , h' conquistou po er, a argou') \'5\'1(10 ,1cl1mulou con eClmento, ., .., . - e assumlU

I . '-cs e 0 espectro de suas llltervenc;oes,'011:1':111\H(,O ,

lilli', I\,,'110I\5:1hiliclades. . cI do' , em mea os()11.1IHlo '55' processo alcanc;ou seu aprce 1 d. fora do contro e 0

'11111111 III('V\', IHUlto pOlKO permaneceu. 1II ~1,ldll(:,1111'11:1klllhr:\r aqui a teoria da cidadallla proposta pe 0

soci610go ingles Thomas Marshall: primeiro vem a cidadaniacivil e juridica, ados direitos; em seguida, a cidadania politica,que pressupoe a participac;ao; e, por fim, a cidadania social.

Do ponto de vista do Estado, isso significa que, antes detudo, ele assumiu 0 monop6lio da lei e a transformou em leiestatal. Depois, a politica tornou-se polftica nacional, e todasas outras formas de politica the foram subordinadas ou delapassaram a depender. Por fim, 0 Estado ampliou seu campo deatividade, comec;ando com 0 controle de seu pr6prio exercito,pelo menos desde 0 seculo XVII, e terminando por gerenciardiretamente industrias e, na verdade, planejar economias intei-ras, a tal ponto que quase nada permaneceu fora de seu contro-Ie. E nao estou me referindo aos regimes totalitarios. 0 ReinoUnido, 0 Estado mais liberal no infcio do seculo XVIII, jn eraextremamente poderoso, nao s6 para saber 0 que estava aconte-cendo em seu territ6rio, mas tambem para administra-Io.

Ate 0 seculo XIX, nenhum Estado conseguia realizar umcenso acurado. Antes disso, era praticamente impossivel estabe-lecer um sistema para controlar a populac;ao rural. Era diffcilate mesmo delimitar com exatidao as fronteiras que demarca-vam 0 territ6rio de soberania nacional. A despeito de os Piri-neus constituirem uma clara linha divis6ria, a fronteira entre aEspanha e a Franc;a s6 seria delimitada completamente com 0Tratado de 1868.

Essa tendencia dos Estados territoriais para ampliar a capa-cidade de exatidao, conhecimento, tecnologia, poder e ambi-c;ao prosseguiu de modo quase ininterrupto, mesmo atravesdo perfodo da politica de liberalismo mercantil, ate 0 final dadecada de 1960. Dois exemplos me ocorrem.

Um deles e 0 extraordinario exito, no seculo XIX, de todosos principais Estados no sentido cle desarmar suas populac;oes.Em outras palavras, eles conseguiram transferir para seus pr6-prios 6rgaos 0 monop6lio dos meios de coerc;ao. Antes disso,era mais facil desarmar os camponeses clo que os nobres. 0pr6prio Maquiavel discute exaustivamente esse problema. Noseculo XIX, e de fato notavel como a maioria dos Estados con-

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segue impedir que seus habitantes andem armados. Uma dasraras excec;6es foram os Estados Unidos que, mesmo tendocondic;6es para tal, preferiram nao fazer isso. Mas no Canadahouve 0 desarmamento.

o outro exemplo e a ordem publica, que e parte do mesmofenomeno. 0 nivel de ordem publica alcanc;adonos paises europeusmais desenvolvidos e urn fenomeno hist6rico extraordinario.

Ha ainda outro elemento, devido nao tanto ao estabeleci-mento da democracia, e sim a participac;ao das pessoas comunsno processo politico: trata-se da lealdade e da subordinac;aovoluntirias dos cidadaos ao seu governo. Esta nao era uma leal-dade as elites, mas ao Estado e a nac;ao. As guerras baseadasno alistamento obrigat6rio nao teriam sido possiveis sem isso.Cabe lembrar aqui 0 que Thomas Hobbes escreveu no seculoXVII: a unica coisa que nenhum Estado, nem mesmo 0 Leviata,pode fazer e obrigar as pessoas a matarem ou estarem dispo~-tas a ser mortas. No entanto, os Estados modernos consegUl-ram fazer exatamente isso, e nao poucas vezes. Embora muitasvezes tenham conseguido isso por meio do alistamento com-puls6rio, tambem 0 fizeram apelando a cad a cida~a? e convel~-cendo-o de que, se ele se identificasse com a coletlvldade, deVlaestar pronto para 0 ato supremo de abdicar de sua liberdade ede sua vida. A obediencia voluntaria ao Estado foi urn elemen-to essencial na capacidade de mobilizar as populac;6es, e tam-bem na de democratizac;ao.

Esse processo desenrolou-se ao longo de seculos e alcanc;ouseu apice na decada de 1960, quando todos os paises do mundo,ate mesmo os de capitalismo mais avanc;ado, estruturaram-sesob a forma de Estados dotados dos mais amplos poderes. Eisso vale sobretudo para os Estados Unidos.

Essa tendencia parece ter chegado a seu limite. Nao sei s~houve uma inversao, mas sem duvida ela perdeu impulso. E

preciso, no entanto, deixar algo bem claro: nao e 0 poder doEstado que foi restringido, pelo menos em teoria. Na realidadesua capacidade de acompanhar 0 que acontece em seu territ6rj~e de mante-lo sob controle tornou-se maior do que nunca. Hojeo Estado e capaz de escutar praticamente qualquer conversa,mesmo que ela ocorra no topo de uma montanha. Estamostestemunhando urn enorme aumento no uso de video camerasli~a~as dia e noite, mantendo sob vigilancia todos os espa<;:ospubllcos. 0 grau de vigilancia hoje possivel eo maior e maisagressivo de toda a hist6ria.

Eu nao diria, portanto, que houve urn enfraquecimento doEstado. Por outro lado, ele de fato perdeu, em certa medidaseu monop6lio sobre os meios de coerc;ao. Isso se explica e~parte pela disponibilidade atual de certos tipos de armamento,mas tambem por ter diminuido a relutancia dos cidadaos emutiliza-los, 0 que para mim e bastante significativo. Em outraspalavras, a mudanc;a e que hoje os cidadaos estao menos dispos-tos do que antes a obedecer as leis do Estado.

Considero urn dos primeiros exemplos desse fen6meno osacontecimentos de 1968. Se compararmos 0 comportamen-to dos estudantes e radicais da Nova Esquercla nos tribuna isdos Estados Unidos com a atitude anterior daqueles acusadosde atividades comunistas, notamos que, embora estes tenhamse recusado a fornecer informac;6es que os incriminassem etenham recorrido a Quinta Emenda, eles se comportaram maisou menos de acordo com as regras, as quais, em ultima anali-se, respeitavam. A Nova Esquerda, por outro lado, nao se con-formava a :ssas r.egras, rejeitava todo 0 proceclimento e agiacomo se nao malS reconhecesse os principios funclamentaisque regial~ a conduc;ao dos assuntos publicos, principios queantes conslderava-se que todos os cidaclaos tinham 0 dever derespeitar.

o mesmo ocorreu no campo da ordem publica. Na decaclade 1970, os responsaveis pela policia inglesa informaram ao?,overno que nao seria mais possivel garantir 0 nivel de pazmterna e ordem publica ate entao existente.

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As passeatas contra a Guerra do Vietna foram outro exem-plo: elas se assemelhavam mais a revoltas do que a manifes-ta<;6es pacificas. 0 poderio do Estado moderno alcan<;ou seuapice quando 0 protesto social foi de algum modo instituciona-lizado como parte do processo politico normal, quase como urnritual. Isso tambem chegou ao final na Europa dos anos 1970.

Urn indicio claro desse fenomeno foi a persistente incapa-cidade, durante longos periodos, para se eliminar for<;as anna-das organizadas no interior do proprio territorio nacional doEstado, mesmo ali onde havia governos fortes. Durante trintaanos, pOl' exemplo, 0 IRA representou a coexistencia, na Irlandado Norte, de uma administra<;ao estatal normal e de elementosinsubmissos ao controle desta. E isso a despeito do fato de que,comparado com 0 Estado, 0 IRA dispunha de uma quantidadeinfinitamente menor de homens e armas.

Talvez esse fenomeno que estou descrevendo seja tempo-rario, mas e inegavel que, desde a decada de 1970, de foi re-for<;ado pela ideologia dos governos neoliberais, explicitamen-te dirigida contra 0 Estado, a fim de enfraquece-lo, de inverterdeliberadamente a tendencia historica ao fortalecimento de seupapel, tanto na area economica como, de modo geral, em to-das as suas fun<;6es.

Isso nao significa que tenha havido uma desintegra<;ao dosEstados. Apesar de for<;ada a conviver durante tres decadas,na Irlanda do Norte, com uma situa<;ao quase de guerra civil,a Gra-Bretanha nao se desintegrou, embora e provavel quese tenha debilitado. Enfatizo, porem, que isso assinalou umamudan<;a no relacionamento entre as atividades estatais e nao--estatais no interior de seu territorio.

A outra parte do problema encontra-se naquelas regi6esdo mundo em que todas as form as de Estado tend em a desa-parecer. Atualmente (e acho qu~ se trata efetivamente de umanovidade), em grandes areas da Africa e partes consideraveis daAsia Ocidental e Central, e praticamente impossivel falarmosde urn Estado operacional. Talvez 0 mesmo tambem seja vali-do para os Balds. Nao e nada claro em que medida podemos

falar hoje de urn Estado operacional na Albania. 0 contrastee surp~eendente pOl'que, gostemos ou nao, ate 0 colapso docomUilIsmo havla urn Estado albanes. Do mesmo modo no~orte do Caucaso, 0 fim do comunismo tambem signific~u 0fun das estruturas estatais.

Cre~o que tanto a inversaodessa tendencia secular para 0

fortaleclII~ento dos Estados nacionais como a desintegra<;ao e 0

desapareClmento de alguns Estados estao ligados a perda, pOl'parte _do Estado soberano, de seu monopolio sobre a for<;a decoer<;ao.

Em certos casos, como no Afeganistao, nao ha nenhum Es-tado, mas apenas disputas entre grupos, tal como no seculo xvdurante 0 feudalismo, com fac<;6es mais ou menos armadas emais ou menos vinculadas as elites e aos proprietarios fundi a-r~os. Essas. ~ac~6es se engalfinham tentando alcan<;ar uma espe-Cled~ eq~J11bno. Em outras partes, como pOl' exemplo na Afri-ca, nao ha nem mesmo isso.

A desintegra<;ao dos Estados nessas regi6es do planeta es?bretudo consequencia do colapso dos imperios coloniais, do6:n da era, na.qual as grandes potencias europeias controlavam,dHeta ou mdlretamente, boa parte do mundo, ali onde haviamencontrad~ sociedades nao-estatais e imposto a elas certo graude orde~, l~terna e ~xterna. Esta analise aplica-se ate mesmoaos terntonos conqUlstados pela Russia depois de 1800 como 0

Caucaso., Hoje e evidente que so em alguns poucos ca~os hou-ve algo dlverso de uma imposi<;ao externa. No caso da AlbaniaP?r exemplo, ond~ n~o havia Estado antes de 1913 pois a Alba~ilIa nem seque~ eXlstla, nao ha a menor duvida de que havia urnEstado operaclOnal sob 0 regime comunista, mesmo que talvezfo~se 0 ~rodut~ de algum compromisso entre for<;asnao-esta-talS. Porem, aSSlmque 0 regime comunista desapareceu de facto aAlbania voltou a mergulhar em urn estado de guerra entre cl~stal como no Caucaso ou na Tchetchenia. '

o que aconteceu nessas partes do mundo me parece simi-lar, em certos a~p~ctos, ao destino da Europa Ocidental aposa queda do Impeno Romano. Nao havia mais autoridade cen-

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tral. Em certos casos, as autoridades locais ainda conseguiamexercer seu poder, mas, em outros, foi inevitavel a invas~o e 0

estabelecimento de grupos externos. Contudo, em reahd,ade,vastas regi6es da Europa permaneceram por urn Iongo penodosem nenhuma estrutura estatal permanente.

Acho que e bem isso 0 que esta acontecendo nessas partesdo mundo. Isso gera problemas graves no relacionamento detais regi6es com aquelas que nao estao, ~assando pelo me~~oprocesso, ou seja, com a Europa, as Amencas e 0 Lest: da ASIa.Vma das grandes quest6es que sedo colocadas pel? seculo XXIe a da interar;:ao entre 0 mundo onde 0 Estado eXlste e aqueleonde ele deixou de existir. .

Nao podemos dizer se 0 mundo id se tornar u~ local all1-da mais dificil de ser administrado, por esse motlvo ou peloproblema que mencionei antes, isto e, 0 fim. da obedienci~ d~spopular;:6es a seus governos. Durante a I~lalOr parte da hl~to-ria, sempre houve uma suposir;:ao ge~erahzada de que os Clda-daos obedeceriam a urn governo efeuvo, qualquer que fo.sse ele,e contasse ou nao com a aprovar;:ao geral. Claro que, mUltas ve-zes, 0 governo era respeitado por ser forte, mas, em outras, es-se respeito baseava-se em uma ideia express a por Hobbes, a deque qualquer governo eficaz e melhor que r;en~um gov~~n~.

Por exemplo, quando conquistaram a IndIa, os bn~al1lcosconseguiram administrar aquele pais por urn peri~do I~UltOl~n-go com poucas dezenas de milhares de homens" mclumdo al astropas. Considerando-se que gove~na~am .urn pal~ corn cente~asde milh6es de habitantes, isso tena sldo Impossivel se a malO-ria da popular;:ao nao tivesse aceitado 0 r~gime. Os indianos j.ahaviam se submetido a outros no passado, Igualmente estrangel-ros e tambem dessa vez aceitaram os ingleses. Por ai podem.0seX~licar 0 extraordinario exito corn que ~ ma!~ria das P?~enciaSeuropeias estabeleceu e controlou vastos Impenos COIOl1lais.

No fim das contas, raros for am os povos que ofereceramresistencia, e certamente nenhum deles estava entre aqueles ha-bituados a viver sob algum tipo de governo. Apenas aqueles q,ueja viviam ern sociedades sem Estado nao se submeteram: alem

dos afegaos, as sociedades tribais do Velho Oeste americano,os curdos ou os berberes marroquinos. Basicamente, os povosque ofereceram resistencia foram aqueles que se teriam opos-to a qualquer forma de governo, fosse este local ou estrangei-roo Ern suma, 0 que gostaria de ressaltar e que a grande maioriados povos no mundo aceitou a ideia de serem governados.

Deixou. No final do Seculo Breve, a nova situar;:ao,refletindoa mobilizar;:ao da popular;:ao a partir da base (pois 0 seculo xx foio das pessoas comuns, que assumiram urn papel essencial na ad-ministrar;:ao da coisa publica), e a de que nao podemos mais pres-supor essa disposir;:aopara aceitar uma autoridade superior.

De certo modo, os movimentos de resistencia durante a Se-gunda Guerra na Europa foram uma antecipar;:ao desse feno-meno. A rear;:ao tradicional a invasao estrangeira foi a de Pe-tain e da Franr;:a de Vichy: n6s perdemos, eles venceram e s6nos resta aceitar os fatos. Vma rear;:ao racional. No entanto, 0

movimento da Resistencia recusou-se a aceitar tal situar;:ao. Es-se foi 0 comer;:o da mudanr;:a. Por esse motivo parece-me que asolur;:ao 6bvia adotada no seculo XIX naquelas partes do mundoonde houve desintegrar;:ao do Estado, que consistia em trans-forma-Ios em colonias, ja nao sera eficaz. Ela e muito dispen-diosa e os resultados sao incertos.

Vamos retomar 0 exemplo que usei ern A era das ext1'emas:a Somalia. Tanto os ingleses como os italianos sempre tive-ram problemas nesse pais, mas nunca encontraram dificuldadesintransponiveis para governa-lo como uma colonia. Ninguemjamais sugeriu que deviam se retirar de la. Na decada de 1990,porem, os Estados Vnidos resolveram intervir ali par motivoshumanitarios e, antes que percebessem 0 que estava ocorrendo,acabaram sendo expulsos.

Ern suma, as popular;:6es de muitos paises do mundo naoaceitam mais 0 principio de que nao vale a pena lutar contra

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exercltos de ocupac,:ao. Isso tambem vale para os Balds. Nopass ado, 0 raciocinio era que urn pais pequeno, ao se defrontarcom uma superioridade clara e esmagadora pOl' parte do adver-sario, cedo ou tarde teria de reconhecer que nada podia fazerpara mudar a situac,:ao. Esta era em parte uma atitude racional,mas 0 fato e que hoje ela ja nao e aceita com tanta facilidade.

POI'causa disso, sera cada vez mais diffcil saber que atitudetomar no que se refere a essas regi6es, pois uma intervenc,:aoeficaz exigiria uma mobilizac,:ao pennanente de forc,:aque mui-to poucos paises estariam dispostos a financial', ou 0 fariamapenas se considerassem sua propria sobrevivencia em risco. AGra-Bretanha, pOl' exemplo, nunca mobilizaria tantos recurs ospara uma intervenc,:ao em Kosovo quanto os que destinou aIrlanda do Norte, pelo simples fato de que Kosovo nao e taoimportante.

Comparando 0 custo de administrar a Bosnia depois daguerra com 0 de manter uma colonia, nao ha como negar quea diferenc,:a e imensa. Creio que havia 64 mil soldados estran-geiros na minliscula Bosnia, ou seja, mais ou menos a mesmaquantidade de gente com que os britanicos governaram e con-trolaram todo 0 subcontinente indiano.

No amago da crise europeia, esta 0 problema niio nsolvido doCentro e do Leste da Europa, 0 qual voltou a eclodir assim que 0 fragilveu do Imperio sovieticofoi rasgado com a quedado Muro de Bedim.o senhor mesmo afirmou que, quando nasceu, existiam apenas seisdos 33 Estados que hoje aparecem no mapa entre Trieste e os Urais,e que alguem de sua idade que tenha nascido e vivido na cidadeatualmente chamada de Lviv (antes Lemberg, Lwow, Lvov) teriavivido sob quatro Estados, sem contar os regimes de ocupafiio durantea guerra. Seria a pe1cmanente incerteza 0 destino dessespovos e dessangiiio da Europa? 0 que restou na consciencia dessaspopulafoes dastentativas de coexistencia multinacional emp1ceendidas pela UniiioSoviitica de Stalin e pela Iugosltivia de Tito?

Nao tenho uma resposta satisfatoria para essa questao; epOl' dois motivos. Primeiro, ainda nao sabemos qual sera 0 efei-to a longo prazo desses regimes nas populac,:6es que viveramsob eles, ainda que ninguem duvide que hayed consequenciasde longo prazo. POI' exemplo, nao estamos vendo nenhum mo-vimento entre os camponeses russos em favor de urn retorno ainiciativa privada no campo, mesmo que a agricultura tenha si-do urn paraiso para 0 campesinato russo antes da coletivizac,:aoda decada de 1920.

Ha outros efeitos que foram adiados pOl' gerac,:6es. Recen-temente Ii urn artigo sobre os judeus russos em Israel no qualse dizia que, ao contrario dos outros judeus, eles haviam che-gada ern Israel sem nenhum sentimento de inferioridade, poisnao haviam sido afetados pela sindrome do Holocausto. A ati-tude geral deles era express a nos seguintes termos: "Nos luta-mos contra Hitler e 0 derrotamos". E isso a despeito do antis-semitismo que sofriam na Russia. Alem disso, esses judeus saDmuito mais secularizados do que os outros. Ern suma, e inega-vel que houve mudanc,:as permanentes e duradouras nos povosque viveram tantas decadas sob esses regimes. No entanto, ain-da nao foram feitas pesquisas suficientes para dizermos quaissaD esses efeitos e pOl' quanto tempo serao sentidos.

Evidentemente, 0 dramatico ressurgimento de hostilidadesnacionalistas nesses paises e, sob certos aspectos, algo inex-plicavel, sobretudo quando pareciam tel' desaparecido parasempre devido ao elevado numero de casamentos interetnicosem especial nas zonas urbanas. E provavel que esse fenomen~seja mais comum nas classes cultas do que nas camadas maispobres da sociedade, mas sua difusao e magnitude eram taisque nao se previa 0 que esta acontecendo: uma nova separac,:aoe segregac,:ao dos grupos etnicos.

Ern A era dos extremos, fiz referencia a urn fator que tal-vez nos ajude a entender a questao: de certo modo, os regi-mes comunistas eram deliberadamente elitistas. Basta consi-derar a insistencia deles no papel de lideranc,:a do Partido. Elesnao tinham como objetivo a conversao da populac,:ao; mais do

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que credos, eram igrejas oficiais. Por esse motivo, a maioriados povos submetida a esses regimes era basicamente despoli-tizada. 0 comunismo nao entrou em suas vidas, no sentido deque 0 catolicismo, por exemplo, impregnou a consciencia dospovos latino-americanos apos a coloniza<;ao. 0 comunismo eraalgo do qual se esperavam bons e maus resultados, mas que, emgeral, nao foi internalizado por essas popula<;6es.

Houve apenas uma exce<;aoverdadeira, e esta foi a GrandeRussia durante a Segunda Guerra. Ninguem contesta 0 fato deStalin ter se transformado em urn verdadeiro lfder nacional, poiscomandou uma guerra que 0 povo percebeu como sendo genu i-namente nacional. E por esse motivci que ainda precisamos dedi-car muita aten<;ao a experiencia da Segunda Guerra, quando nosperguntamos sobre 0 legado do comunismo na Russia.

Seja como for, quando esses Estados ruiram, exatamentecomo ocorreu quando outros imperios se fragmentaram depoisda Primeira Guerra, todos se viram obrigados a estabelecer novasconex6es e solidariedades. Mesmo aqueles que nao queriam nadadisso tiveram de faze-Io. Ali, portanto, onde antes existiamformas de nacionalismo, que talvez nao fossem necessaria menteantissovieticas, elas foram for<;adas pela historia a desempenharurn novo papel, mais intenso e proeminente. Paradoxalmente, oscomunistas haviam aceitado 0 criterio nacionalista de territorios"pertencentes a" na<;6es definidas em termos etnicos e linguisti-coso Dai que nos territorios multinacionais, 0 imperio consistiaoficialmente de federa<;6es de tais "na<;oes". Quando esse impe-rio entrou em colapso, ele se fragmentou ao longo dessas linhasja existentes.

Talvez 0 ressurgimento do nacionalismo ja, estivesse ins-crito no codigo genetico daquelas sociedades. E possivel queas divis6es nacionais ten ham continua do a operar em urn nivelmuito mais profundo do que imaginavamos. Porem, nao possocrer que a coexistencia pacifica dos povos iugoslavos durantemeio seculo tenha se devido apenas e exclusivamente a autori-dade do Partido Comunista iugoslavo. Por isso, volto a insistirque sou incapaz de dar uma resposta adequada a sua questao.

Estou convencido de que qualquer um que tenha uma vIsaopmgressista da historia nao deve temer necessariamente 0 decliniodo Estado nacional. Sera que estou equivocado? Deveriamos, em vezdisso, estar preocupados com 0 surgimento de um mundo que ja naose organiza segundo um sistema internacional de Estados, tal comohaviamos conhecido desde 0 siculo XVIII?

Sim e nao. Nao, porque falando em termos ideais, poderia-mos preferir urn sistema diferente. Tambem e verdade que osprogressistas nao estao de acordo quanto a uma maneira espe-cifica de organizar os Estados e as unidades polfticas, uma vezque poderiam existir outras, alem daquelas com as quais esta-mos familiarizados.

Mas tambem digo que sim, que deveriamos nos preocupar,pois a globaliza<;ao e urn processo que nao pode ser facilmentetransposto para a polftica. Nos ja temos uma economia globa-lizada, podemos aspirar a uma cultura globalizada, certamentedispomos de uma tecnologia globalizada e de uma ciencia glo-balizada, mas, em term os politicos, vivemos em urn mundo quepermanece de fato pluralista e dividido em Estados territoriais.Claro que esses Estados nao sao todos iguais. Ha cerca de duascentenas de paises no planeta, dos quais alguns sao paraisos fis-cais e, na verdade, sua unica razao de ser e 0 fato de serem uteispara a economia global. No entanto, tres quartos da popula<;aomundial vivem em cerca de 25 Estados com mais de 50 milh6esde habitantes, e nao existe nenhuma autoridade acima deles.

Ainda que, no caso da economia, seja possivel teoricamen-te que ela funcione sem uma serie de institui<;6es globais, creioque 0 mesmo e inconcebivel no caso da polftica. E a realidadee que nao existem institui<;6es polfticas globais. A institui<;aoque mais se aproxima disso e a Organiza<;ao das Na<;6es Uni-das, mas esta deriva seu poder de Estados existentes. Portan-to, na situa<;ao atual, coexistem dois sistemas diferentes: urn naecon?mia e outro na polftica.

E nesse contexto que devemos nos perguntar sobre as con-sequencias do enfraquecimento do Estado nacional. sera algo

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born ou ruim? Ainda nao sabemos. Mas e certo que os Estadosnacionais nao podem ser ignorados, e nao podemos examinar 0

mundo como se nao existissem ou nao fossem impartantes, poisnao h:i nada alem deles no campo da politica. Atualmente, esimples mente inexistente a possibilidade de que uma {mica auto-ridade global desempenhe urn papel politico e militar efetivo.

Niio haveria ai uma nostalgia, por parte do senhor, pelo Jim deuma estrutura bipartidaria, com duas superpotencias que supervi-sionavam suas areas de influencia e atuavam como policia interna-cional? Conzo 0 senhor viu a desintegmfiio da Uniiio Sovitftica, umavez que esta era um ator na cena internacional que 0 senhor via comsimpatia enquanto Jator de emancipafiio e estabilidade?

o problema da Guerra Fria era que 0 mundo vivia COl~s-tantemente sob a amea<;a de uma catastrofe fatal, urn confhtonuclear mundial. Enquanto a Guerra Fria durou, e foi urnlongo periodo, a probabilidade de tal carastrofe era bastanteelevada por este ou aquele motivo, talvez mesmo par aCldente.Como na famosa Lei de Murphy: se algo po de dar errado,certamente isso ira ocorrer, cedo ou tarde. A amea<;a de umaguerra nuclear era a principal razao para se opar a Guerra Fri~.\':SSil guerra nao aconteceu, mas houve momentos em que estl-v 'IllOS hem proximos (durante a crise dos misseis em Cuba e,llil Illillh:1 opiniao, no inicio da decada de 1980).

No ('111:1111"0,tambem devemos reconhecer que a Guerra'" ill ,"lilhili'l.PII () mundo, ou pelo menos uma vasta regiao doI 11111III, 1111Iii (I h('11lOil pHa 0 mal, conforme 0 ponto de vis-

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exatamente como no seculo XIX, tornou no minimo administra-veis certos tipos de conflito. Como esse estado de coisas ja naoexiste mais, temos de nos perguntar 0 que poderia substitui-lo.Por enquanto, ele deu lugar a uma incerteza total, pois nao so aUniao Sovietica foi completamente destruida, mas todo 0 siste-ma de rela<;oes internacionais ao qual 0 mundo, ou pelo menosa Europa, se acostumara desde pelo menos 0 seculo XVIII.

Esse sistema baseava-se na existencia de determinados ato-res, paises que desempenhavam urn papel fundamental. Todossabiam quais eram esses paises e, em geral, de que lado eles secolocavam. E entre eles estava a Russia que, des de 0 inicio doseculo XVIII, preservou mais ou menos a mesma dimensao ter-ritorial. Alem disso, todos sabiam as regras do jogo, que haviamsido estabelecidas desde 0 final da Guerra dos Trinta Anos como Tratado de Vestfalia, de 1648, cujo 350" aniversario acabou depassaro A autonomia e a soberania dos Estados individuais eramreconhecidas, e todos sabiam em que circunstancias era legiti-mo interferir nos assuntos desses Estados, e 0 que era viavel ouinterdito na politica internacional.

Ambos esses elementos pertencem ao passado. Ja mencio-namos a erosao das regras, por exemplo a diferen<;a entre guer-ra e paz, 0 principio de nao-interferencia, a proibi<;ao de atra-vessar as fronteiras, exceto em epocas de guerra (pois a regrabasica nao era a de que simplesmente nao se travavam guer-ras, mas que estas tinham de ser declaradas). Outro aspecto doproblema e 0 desaparecimento das antigas potencias, 0 que dei-xou urn enorme vacuo. Enquanto Estado, a Russia esra ate hojeem processo de desintegra<;ao. Nao se via isso des de meadosdo seculo XVII. A partir do inicio do seculo XVIII, sabia-se que,entre a Polonia e 0 oceano Pacifico, havia uma entidade uni-ca e definida, dotada de imenso territorio, ainda que enfrentas-se muitos problemas e incertezas nas regioes da Asia Central.Hoje a situa<;ao e bem outra, e nao mais concebemos essa ideia.Nao podemos mais dizer que, seja qual for 0 futuro, a Russiacontinuara a ser urn dos protagonistas na cena internacional.Mesmo depois das tragicas derrotas de 1918 e 1945, foi pos-

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sivel dizer "agora a Alemanha esta de joelhos, mas e evidenteque, cedo ou tarde, ela voltara a ser urn ator importante"; hoje,porem, nao podemos dizer 0 mesmo da Russia. Sua tragedia etao grande que ate sua existencia futura esta em questao.

A verdadeira dimensao dessa catastrofe foi gravemente su-bestimada. Houve tres grandes fraturas na historia do conti-nente europeu durante 0 seculo xx: apos a Primeira GuerraMundial, durante e depois da Segunda Guerra, e apos 0 co-lapso da Uniao Sovietica. Na minha opiniao, esta ultima semduvida e a que provocara as consequencias maiores e mais du-radouras. E ainda nao temos a menor ideia de quais serao es-ses efeitos.

Em termos politicos, continua incerto 0 futuro dos Estadosque surgiram da antiga Uniao Sovietica. Dez anos ja se passa-ram desde 0 colapso da URSS, e eles c~ntinuam a se desintegrar,divididos em faq:6es hostis, como no Asia Central; e a estruturadeles ainda e muito vaga. 0 futuro politico do Tadjiquistao naoe nada claro, tal como 0 do vizinho Afeganistao, que h:i anosmergulhou na guerra civil. A propria Federa<;ao Russa continua,na pratica, a fragmentar-se em areas autonomas e independen-tes. Enfim, e dramaticamente incerto 0 destino politico da par-te do mundo que se estende desde a fronteira da Romenia ate ada China. Nada disso ocorreu depois das duas guerras mundiais.Portanto, a questao para 0 proximo seculo e saber 0 que ira to-mar 0 lugar do antigo sistema de potencias que regia 0 mundo.

Talvez os Estados Unidos. Este seculo que chega ao Jim Joichamado de "seculo americano". Agora os Estados Unidos parecemestar tentados a assumir a tareJa de mante1' a ordem mundial emescala planetaria, usando a OTAN como 0 instrumento militardessa ambi(iio. No caso de Kosovo, os american os alegaram que agi-Tam independentemente de interesses estrategicos, recorrendo a umaretorica humanitaria. Sera que niio estariamos, portanto, iniciandooutro seculo ame1"icano,desta vez tambem "hico"?

E possivel, mas nao tenho muita certeza. Minha impressaoe que 0 seculo americano baseou-se sobretudo na esmagado-ra predominancia, no dinamismo e na dimensao da economiaamericana. Ela e de uma ordem de grandeza incomparavel coma das outras na<;6es capitalistas. Naopodemos esquecer que,ja na decada de 1920, os Estados Unidos respondiam por 40%de toda a capacidade industrial do mundo. Eles perderam par-te dessa vantagem com a Grande Depressao, mas recuperaramsua posi<;ao apos a Segunda Guerra Mundial, a tal ponto que,em certa epoca, a economia americana era equivalente a meta-de do poderio economico de todos os outros paises somados.

Esta e uma situa<;ao que, na minha opiniao, tende a acabar.Em termos demograficos, os Estados Unidos serao relativamen-te menores, e mesmo hoje respondem por uma parcela menor dacapacidade produtiva mundial. Evidentemente, eles ainda con-trolam grande parte da economia global, tanto em termos poli-ticos como pela hegemonia do modelo americano de negocios eorganiza<;ao empresarial. A despeito disso, duvido muito que osEstados Unidos possam continuar a ser a locomotiva produti-va do mundo, pelo menos da maneira como 0 foram em grandeparte do seculo xx. 0 mesmo se deu com a Gra-Bretanha que,em determinado momenta de sua historia, deixou de ser a prin-cipal potencia capitalista, pois nao era grande 0 suficiente paramanter essa posi<;ao. Com a industrializa<;ao generalizada devastas areas do mundo, a for<;arelativa da economia americana,enquanto sistema produtivo, tender a a declinar.

o outro fator que explica 0 seculo americano foi a hegemo-nia cultural dos Estados Unidos, em especial na cultura popu-lar. Esta ultima tern mais possibilidade de se perpetuar, pois foirefor<;ada pelo papel cada vez mais importante da lingua inglesae pela difusao da informatica, cuja lingua franca e 0 ingles eque esta bastante concentrada nos Estados Unidos. Portanto,essa hegemonia certamente ira prosseguir.

No entanto, a hegemonia cultural tern seus limites. Bastapensar no dominio exercido pela Italia no campo da musica du-rante os seculos XVII e XVIII. Ele era total, mesmo nao estando

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fundamentado no poderio politico, militar ou economico. Mastambem acabou por desaparecer. Outro exemplo foi a hegemo-nia cultural britanica no seculo XIX. Praticamente todos os es-portes hoje conhecidos no mundo foram inventados e pratica-dos primeiro na Gra-Bretanha. A moda masculina originou-sena Inglaterra. Hoje as pessoas ainda jogam futebol em todas aspartes do mundo, e os homens se vestem a maneira inglesa, ain-da que a Gra-Bretanha nao esteja mais na lideranc;:a tanto no fu- .tebol como na moda. Por isso, percebemos esse fenomeno co-mo urn evento historico e nao como urn problema atual.

Ha, p01"em, uma diferenc;:a: ao contrario da Gra-Bretanhano seculo XIX, os Estados Unidos san uma potencia revolucio-naria, baseada em uma ideologia revolucionaria. Assim como aFranc;:a revolucionaria e a Russia sovietica, os Estados Unidosnao san apenas urn Estado, mas urn Estado empenhado emtransformar de certo modo 0 mundo. Nesse sentido, a hege-monia cultural americana possui uma dimensao politica que ahegemonia britanica nunca teve. as britanicos, mesmo no augede seu poderio, nunca tentaram converter 0 mundo. Por outrolado, essa ambic;:aode ser urn modelo para 0 mundo e inerenteao sistema americano.

a fato de que os Estados Unidos obviamente continuarao aser a principal potencia nao significa, por si mesmo, que 0 pro-ximo seculo sera americano. Mas 0 que eu gostaria de enfatizare que 0 proximo seculo nao sera de ninguem, porque uma coisame parece cada vez mais evidente: 0 mundo tornou-se grande ecomplexo demais para ser dominado por urn unico Estado.

Cabe lembrar aqui 0 argumento proposto por Norber-to Bobbio nas discussoes sobre a guerra em Kosovo, quan-do afirmou que sempre existiu uma potencia hegemonica, nomomenta san os Estados Unidos, e que isso e uma coisa boapois os americanos estao do lado certo. Na realidade, porem,nao concordo que sempre tenha havido uma potencia hege-monica. Para comec;:ar, a hegemonia global e algo inconce-bivel antes do seculo XVIII. E, mesmo depois, na verdade ne-nhum pais agiu efetivamente para se colocar nessa posic;:ao.

~s primeiros que 0 fizeram foram os americanos, no final doseculo xx.

A hegemonia britanica - muito forte em termos economi-cos, c~lturais e, em certos aspectos, militares (a Gra-BretanhapOSSUlaum.a _esquadra maior que todas as outras somadas)- nunca f01 tao abrangente a ponto de levar a Gra-Bretanha ate~tar organizar 0 mundo. as ingleses fizeram 0 possivel paraone~ta/r 0 mu~do d~ acordo com seus interesses, mas nao para?omll1a-Io, pOlS sabiam que nao eram fortes 0 bastante paraISSO,ou mes~o para manter seu ativo mais precioso: a forc;:anaval. Eles tll1ham consciencia de que, cedo ou tarde, haveriaoutros pais.e~ ricos e poderosos 0 suficiente para exercer urncontrole mlhtar dos mares equivalente.

Portanto, os Estados Unidos san 0 unico pais da historiaq~e chegou a uma posic;:aode reivindicar uma hegemonia mun-dIal. Mesmo as hegemonias regionais san extrernamente raras.Com excec;:aoda China, no Extremo Oriente, na maioria dasveze~ elas nao. foram mUit~ duradouras. A ideia de uma hege-mom a euro~e13 sempre fOl urn sonho passageiro, e raramen-te durou maiS do que poucos anos. No seculo XVI nao houvehege~onia espar:hola _porque a Franc;:a sempre foi urn possi-vel nval, e tambem nao houve hegemonia francesa no seculoX~II, embora L~is ~IV teI~ha chegado perto. Sob Napoleao eHItler, uma potencia domll1ou 0 continente pelas armas masem nenhum dos casos isso durou muito. Enquanto historladorco~sidero e~uivocada a ideia de que uma potencia unica, po;mawr e mms poderosa que seja, possa assumir 0 controle dapolitica mundial.

. as Estados Unidos tentaram, e continuam tentando, fazerIS~O:Esse fato se deve sobretudo a suas aspirac;:oes revolucio-na~las. no ~entido de mudar 0 mundo, aspirac;:oes inscritas napropna ongem do pais. Mas tambem se deve a circunstanciahist6~ica de se v:rem, em urn mundo no qual nenhum Olltro paisou ah~nc;:ade paises e capaz de ameac;:a-Iosem termos militares.Essa e uma aposta e, no que me concerne, uma aposta perigo-sa. Em outras palavras, ha urn risco pOl' tras da aspirac;:ao dos

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Estados Unidos a se tornar a poHcia do mundo ou a estabeleceruma nova ordem mundial.

A itica do individualismo liberttirio, a mesma que impulsionaos mercados, poderia ser aplicada a politica externa? Esta baseia--se na prioridade dos individuos em relafao a comunidade da qualJazem parte. Ela i, portanto, intrinsecamente liberal. Poderia elarepresentar um antidoto eJicaz a todas as ideologias comunittirias,incluindo seus desvios nacionalistas e itnicos? Poderia a Europa, comseu conjunto de valores liberais, ser 0 moderador Juturo das turbu-lencias mundiais?

Acho que 0 individualismo libertario nao e uma base apro-priada para a poHtica de poder, pois no fundo 0 individualis-mo e 0 oposto de uma poHtica coletiva. Os povos podem sermobilizados em fun<;ao do nacionalismo, do patriotismo oude outros motivos coletivos. Porem, quando se diz ao indivi-duo que 0 interesse dele e supremo, sera dificil depois conven-ce-lo ate mesmo a subordinar parte desse interesse aos interes-ses dos outros.

A l6gica do individualismo libertario e perfeitamente com-pativel com 0 livre mercado, mas 0 mesmo nao se da com asexigencias da poHtica internacional. Nao acredito que a politicaamericana ou de qualquer outro pais seja de fato determinadaou dominada por esse ideal. A unica maneira pela qual tal apelopoderia funcionar foi a usada pelos Estados Unidos na GuerraFria, quando 0 governo transmitiu a seguinte mensa gem aopovo americano: nosso sistema de individualismo e liberalismoesta sendo amea<;ado por uma for<;a externa e, por isso, preci-sa mos agir a fim de defende-lo.

Essa estrategia pode legitimar uma poHti;:a externa, mas nao'onstitui ela pr6pria uma poHtica externa. E possivel, cons ide-nlllClo-sc que foi uma estrategia bem-sucedida, que os EstadosUniclos tcntem usa-la de novo. Na verdade, com 0 fim da GuerraFrin . n c1iminac;:ao do principal inimigo dos valores americanos,

existem alguns americanos que veem em outras for<;as culturais,como 0 fundamentalismo e 0 orientalismo, novas amea<;as exter-nas contra as quais e preciso promover uma mobiliza<;ao. Mas es-te nao me parece urn argumento muito convincente, pois a for<;ada Guerra Fria, sua justificativa, estava no fato de que 0 poten-cial agressor aos ideais e interesses americanos era uma superpo-tencia real e poderosa. Esta, porem, ja deixou de existir. Talvez,quando e se a China de fato tornar-se uma superpotencia peri-gosa, esse apelo volte a fazer efeito.

No entanto, insisto em que nao consigo entender 0 amplofasdnio exercido por esse argumento. Ele est:i estritamente limi-tado aos paises ricos, e nao teria 0 mesmo efeito na maior partedo Terceiro Mundo. Por isso, nao creio que 0 individualismo li-bertario seja urn antfdoto poHtico. Basta considerar 0 que houveem Kosovo. Com base nessa doutrina, nao se pode pedir a nin-guem que sacrifique sua vida. A teoria predominante nos Esta-dos Unidos, segundo a qual pode-se pedir tudo aos soldados me-nos que arrisquem suas vidas, e inteiramente compatfvel com aconvic<;ao de que os direitos individuais estao acima de tudo. Noentanto, a realidade e que nao se pode conduzir nenhuma guer-ra dessa maneira. Desse modo, e possfvel bombardear 0 inimigo,mas nao combate-lo de fato. E as vezes nao basta bombardear.

Mas nao seria mais seguro para 0 mundo ter uma unica super-potencia? Ou seria melhor que houvesse mais do que uma, a Jim dese criar um equilibrio de pode1r?

o problema e entender as limita<;6es a que est:i sujeita umaunica superpotencia, ou seja, 0 que ela pode ou nao pode fazer.Ja vimos que nao pode determinar 0 que acontece no mundo,mas, por outro lado, ela pode contribuir para atenuar os confli-tos e assegurar a estabilidade da situa<;ao internacional. A esserespeito, acho que seria util comparar a hegemonia britanica noseculo XIX com a american a no seculo seguinte. Entre paren-teses, a hegemonia da Gra-Bretanha e 0 modelo que os ame-

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ricanos tentam seguir. A propria expressao "Pa~ Americana" eurn eco da "Pax Britannica", tal como esta havla sldo urn ecoda "Pax Romana".

Creio que os ingleses tinham consciencia dos limites ~uepesavam sobre urn pais de porte medi~. Por exe~nplo.,.sablamque havia regioes no mundo em que a mtervenc;:ao nllhta.r eraa pior das soluc;:oes. Eles se convencer~m disso ja no inlclO doseculo XIX, por exemplo quando abdlCaram de. qualquer. m-tervenc;:ao na America do SuI, onde estavam mUlto envolvldosem conflitos contra a Espanha. Para os ingleses, era cla.ro quenao deviam intervir nas Americas contra os norte-amencanos.Aceitaram assim a chamada doutrina Monroe, mas nao por fra-queza, pois durante a maior parte do seculo XIX sem duvida naoeram mais fracos que os americanos. Houve, por e~emplo, umadisputa em relac;:aoa Guiana inglesa, que os amencanos resol-veram de modo pouco satisfatorio para a Gra-Bretal~la ..No el;-tanto esta aceitou a situac;:ao, pois entendia que, em ultIma ana-lise, ~xistiam limites para 0 que podia conseguir no mundo.

Do mesmo modo, os ingleses nunca tentaram estabeleceralgum tipo de supremacia no contine~te. europeu. Tudo 0 quealmejavam era impedir que outra potencla 0 flZesse. Em suma,tin ham como objetivo 0 equilibrio de poder. Eles semprepreferiram concentrar-se no controle dos mar~s e em ocuparapenas aquelas partes do mundo i.ndis?~nSaVels para tal fuu,e nisso foram bem-sucedidos. 0 lmpeno estava baseado empequenas ilhas anexadas em func;:ao de objetivos estrategicos:Gibraltar, Malta, as Falklands e muitas outras que contmuamate hoje sob controle direto de Londres. .

o imperio americano, por sua vez" ~aseou sua hegem011laem Estados satelites, algo que na pratlca os mgleses nu~~atentaram fazer, a menos que Fosse yma alter~ativa nec~ssanaa colonizac;:ao. Eles 0 fizeram na India, na Africa OCldentale em certa medida, no Oriente Medio, mas apenas quando ac~lonizac;:ao era inviavel. Desde 1800, ao contrario, os EstadosUnidos nunca pensaram em termos de colonizac;:ao ~o.r~ daAmerica do Norte. A ocupac;:ao de Porto Rico e das Flhpmas

foi urn acidente historico e talvez uma concessao a tendenciacolonialista da epoca. Em vez disso, preferiam contar com umgrande numero de Estados, sobretudo na America Latina, quefossem obrigados a se alinhar as posic;:oesamericanas.

Estou convencido, portanto, de que os ingleses tinham cons-ciencia de suas proprias limitac;:oes, e de que os americanos foramtomados por uma especie de megalomania, pois pensavam quepodiam fazer 0 que bem entendessem rio hemisferio ocidental,em parte porque durante grande parte do seculo XIX nao haviauma polltica global, mas no maximo hemisferica. E essa concep-c;:aoeles chegaram ate mesmo a formular de maneira expHcita.Em 1895, 0 secretario de Estado americano afirmou, apos a so-luc;:aode uma disputa fronteiric;:a entre a Venezuela e a Guianainglesa, que "hoje, os Estados Unidos sao, na pratica, os sobera-nos deste continente [...]. Por que? [...] 0 motivo e, entre outros,que seus recursos infinitos, associados a sua posic;:aoisolada, tor-nam [os Estados Unidos] senhores da situac;:aoe praticamente in-vulneraveis contra quaisquer outras potencias". Nenhum minis-tro do Exterior britiinico, nem mesmo Henry Palmers ton, teriadito isso em parte alguma do mundo: somos uma potencia uni-versal, ninguem pode interferir e, se decidirmos fazer algo, nin-guem podera nos impedir.

Creio que 0 perigo colocado pelos americanos esta em elesestenderem essa concepc;:ao de modo a incluir 0 mundo todo. Eum perigo serio, pois hoje e evidente que os Estados Unidos naopodem agir sem a ajuda de aliados, no minimo porque em muitoscasos suas bases militares estao localizadas em paises amigos.

Falando em termos hipoteticos, se a Itilia nao autorizassemais 0 usode suas bases aereas para as missoes contra a Iugos-lavia, isso teria tido consequencias muito embarac;:osas para apotencia americana. Imagino que os americanos tenham seperguntado inumeras vezes, no Iraque ou nos Balcas por exem-plo, 0 que fariam se nao dispusessem de bases em paises aliados.Teriam de depender apenas de voos a partir de porta-avioes oudos Estados Unidos. Os americanos, portanto, necessitam dealiados, de alguem pronto para ajuda-Ios. Em segundo lugar,

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seus armamentos mais poderosos, os de alta tecnologia, nemsempre san suficientes para decidir urn conflito.

Em consequencia, parece-me que a politica americana terade se adaptar a essa realidade no pr6ximo seculo, tomando co-mo modelo a politica britiinica no passado. Isto e, ela tera de reco-nhecer os limites do possivel. Os Estados Unidos ainda continua-rao sendo a unica superpotencia por muito, muito tempo. Doponto de vista da tecnologia militar, nao consigo nem imaginarpor quanto tempo. Mesmo isso, porem, nao sera suficiente. Seriadiferente se a ameas;a de uma superioridade militar esmagadoralevasse seus adversarios a dizer: "S6 nos resta desistir, nao ha na-da a fazer". Esse foi 0 dilema no Iraque e em Kosovo.

Quanto mais cedo os Estados Unidos reconhecerem issomais cedo eles serao capazes de articular uma politica adequad~a uma superpotencia: a mera exibiS;ao de fors;a nao basta paradominar 0 mundo. E isso vale tanto para uma superpotenciacomo para as potencias regionais, pois as populas;6es dos paisesmais fracos nao estao mais dispostas a se submeter., Ha pouco tive a oportunidade de discutir os problemas da

Africa Central com diplomatas britiinicos, profissionalmenteinteressados na situas;ao local. Toda a politica africana se des-mantelou devido a recusa, por parte dos paises da regiao, em jo-gar segundo as regras tradicionais. Houve uma epoca em que,quando a situas;ao se deteriorava em urn Estado africa no inde-pendente, os franceses enviavam urn batalhao de paraquedistas,estes desfilariam pela cidade mais importante, exibindo seu po-derio militar, e os baderneiros fugiriam, 0 velho presidente erareconduzido ao poder ou entao empossava-se urn novo. Tudovoltava ao normal. Mas isso nao funciona mais.

o que aconteceu em Ruanda foi que os franceses estavamprontos para entrar em as;ao e interromper 0 massacre dos tut-sis. Na verdade, eles eram aliados dos hutus, mas nao que-riam urn banho de sangue. Eles fizeram todo 0 possivel parademonstrar isso, mas de nada valeu. Os hutus simplesmen-te perceberam que os franceses nao poderiam fazer nada paraimpedi-Ios, e continuaram a assassinar seus vizinhos pratica-

me~te diante dos franceses. No final, toda uma vasta reglaoda A~nca Central foi completamente transformada, mas naopela ll1tervenS;ao de alguma potencia ou organizaS;ao interna-cIOn:l. Tod?s acabaram envolvidos: Paris, Washington e asNas;oes Umdas. Todos tentaram servir de intermediarios eem determinado momento, havia, pelo que me disseram, nad~menos que treze mediadores diferentes em Ruanda. Todo essee~fors;o, porem, nao serviu para nada. Zaire, Ruanda, Burun-dI, Uganda ... no final, sete Estados africanos haviam sido arras-tados para 0 conflito. Nenhuma intervenS;ao externa teria sido-.nao digo dispendiosa -, mas obtido resultados proporcio-naIS a? esfors;o despendido. 0 mesmo vale para os Estados Uni-dos, all1da que eles sejam tao ricos que possam se dar ao luxo demobilizar uma enorme quantidade de recursos. Ha muitas coi-sas no mundo que simplesmente nao podem ser realizadas.

, Qu~ ~ova superpotencia poderia surgir no proximo seculo? Quale a posszbzlzdade de a China tornar-se rival dos Estados Unidos noplano militar? E, em sua opiniao, quais sao as ambifoes da indiaagora que 0 pais entrou na corrida das armas nucleares? '

A ~ muito provavel que a China se torne uma grande po-tenCIa, mesmo no aspecto militar. E ela e certamente 0 unicoEstado que poderia aspirar a competir com os Estados Uni-dos ~o futuro. ~reio, porem, que e extremamente improva-vel ve-Ia competll1do com os Estados Unidos em termos mi-litares no futuro pr6ximo. A vantagem dos Estados Unidos egrande demais. Nao acho que isso exclua a possibilidade deurn confro~to nuclear, pois este nunca se baseou na igual-dade, mas sI.mples.mente no fato de que urn dos lados possuiuma fors;a dIssuasIva capaz de provocar danos intoleraveis aoadversario.

Seja c?mo for, e indiscutiv~l 0 fato ?e que, ainda por urnlongo penodo, os Estados Umdos contll1UaraO a ser a maiorpotencia militar. Alem disso, e possivel que urn conflito entre

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os Estados Unidos e a China no seculo XXI assuma form ascompletamente novas. 0 principal motivo disso e a China seressencialmente uma potencia terrestre. Mas esse e urn exercicioespeculativo arriscado ~emais para urn his tori ador.

No que se refere a India, minha opiniao e que suas armasnucleares esta.o voltadas sobretudo contra 0 Paquistao. 0 inte-resse dos indianos e regional, e seu pais, uma potencia regio-nal. E e improvavel que se tome mais do que isso l}os pr6ximoscinquenta anos. No entanto, em certos aspectos, a India tern urnfuturo muito promissor, sobretudo porque disp6e de algo quenao existe na China: uma verdadeira originalidade nos camposda pesquisa tecnol6gica e intelectual que, por raz6es hist6ricas,nao se encontra com facilidade na area de influencia confucia-na no Extremo Oriente. Por exemplo, os indianos sempre con-seguiram manter uma tradic;ao filos6fica e matematica muitoimportante. Por outro lado, e discutivel que a China e 0 Japaopossuam uma tradic;ao filos6fica, pelo menos no sentido euro-peu. Em uma sociedade moderna baseada na tecnologia, a ori-ginalidade intelectual tern urn enorme potencial. A grande di-ficuldade da India e a extrema fragilidade de seu Estado emtermos de estrutura, capacidade administrativa e sistema poli-tico. Porem, nas areas da economia e da cultura, considero quea India tern urn futuro brilhante, mais do que outros paises noExtremo Oriente.

Nao acho que estamos diante de urn conflito entre 0 Papa-do e 0 Imperio. E preciso distinguir entre a politica e a teolo-

gia do papa. Joao Paulo II e urn cat61ico tradicionalista. Essepapado assinala urn retorno a uma concepc;ao mais tradicio-nal da Igreja do que 0 relativo liberalismo que marcou 0 cato-licismo nas decadas de 1960 e 1970. Ate que ponto isso e possi-vel, nao tenho a menor ideia. Se eu fosse 0 papa, provavelmentefaria a me sma coisa, pois, se a religiao tern algum futuro, eleesta justa mente em nao mudar com a mudanc;a dos tempos, emse manter distante das modas transit6rias. Mas eu nao sou reli-gioso e, portanto, 0 assunto nao me concerne diretamente.

No entanto, devo dizer que esse projeto de restaurac;ao iraencontrar dificuldades muito grandes, talvez intransponiveis,porque, assim como 0 Estado ja nao mais consegue controlartotalmente os cidadaos, do mesmo modo a Igreja cat6lica naopode mais contar com a lealdade irrestrita de seus fieis. 0 pro-blema com uma religiao autoritaria como 0 catolicismo e 0 fatode se basear em uma aceitac;ao voluntaria das verdades teol6-gicas. Acredito que, desde que as mulheres da Europa cat6licadeixaram de aceitar automaticamente os ensinamentos ou dita-mes mora is da Igreja, as possibilidades de conduzir a cristan-dade como urn todo foram drasticamente reduzidas, e terao deser transferidas dos paises desenvolvidos para os do TerceiroMundo. E, mesmo assim, nem todo 0 Terceiro Mundo serareceptivo, pois ate na America Latina 0 seculo xx deixou evi-dente a debilidade da Igreja. Na Europa, a Igreja cat6lica naoficou imune ao processo de secularizaC;ao e de declinio da tradi-cional religiao de massa. Desde meados da decada de 1960, suainfluencia sobre os fieis vem sendo seriamente enfraquecida.

Ha, no entanto, algo de especial nesse papa, algo que lem-bra os grandes papados do seculo XIX e a forc;a da enciclicaRerum Novarum. Joao Paulo II e 0 ultimo grande ide610go acriticar 0 capitalismo enquanto tal. Talvez isso seja urn aciden-te hist6rico, pois acredito que a esquerda laica ira retomar suavisao critica do capitalismo. Nos ultimos dez anos, ela se mos-trou extremamente temerosa de condenar 0 capitalismo comourn mal, em termos morais, mas creio que voltara a faze-Io.Contudo, por enquanto, 0 papa e a unica figura de relevo mun-

opapa manifestou de maneira explicita seu desacordocom 0 pre-donzinio da superpotencia americana. Apos ter concentrado seus ata-ques contra 0 comunismo, parece que agora ele elegeu 0 capitalismo,em sua forma americana, como seu principal ininzigo. Conzo 0 senhorve 0 papa Joiio Paulo II na condiriio de figura historica? Seria ele 0

ultinzo revolucionario que restou no nzundo? Ou estamos diante deunza versiio nzoderna do conflito entre 0 Papado e 0 Inzperio?

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dial que reJelta sistematicamente 0 capitalismo. Sem duvida,isso foge ao pensamento conformista ocidental e ao consensopolitico e intelectual predominante. E urn fenomeno muitointeressante.

Muitas vezes, contudo, tal como na guerra em Kosovo, presen-ciamos uma estranha alianfa, sob 0 estandarte do papado, entre aextrema esquerda e a extrema direita, ambas unidas pelo antiameri-canismo. Irso nao perturba 0 senhor?

Nao, pelo menos nao em principio. Durante a historia,houve muitas alianc;:as estranhas. A mais extraordinaria de to-das, no seculo xx, foi a alianc;:ados Estados Unidos e da UniaoSovietica contra a Alemanha nazista. Na epoca, a Igreja cato-lica pendia mais para 0 outro lado. 0 fato de que alianc;:ases-tranhas possam ser formadas nao significa que sejam perma-nentes. Mais interessante e observar, no caso de Kosovo, que adivisao nao se deu segundo as linhas tradicionais de esquerda edireita, tendo cortado transversalmente as fronteiras nacionaise ideologicas. A esquerda certamente estava dividida. Houvepessoas de esquerda tanto a favor como contra a guerra. Mas 0

mesmo tambem se deu na direita. Embora eu ache que, na di-reita, tenha prevalecido a crftica da guerra do ponto de vista doprofissionalismo militar, ou seja, a guerra era aprovada mas naoo modo como foi conduzida.

No caso do papa, certamente nao foi por motivos pacifistasque ele criticou a guerra. E, em geral, nao acho que a maioriadas pessoas que criticaram a guerra 0 fez por pacifismo. Eles seopuseram a essa guerra especifica como soluc;:aopara urn pro-blema especifico. Contudo, e verdade que 0 antiamericanismo ea desconfianc;:a em relac;:aoas ambic;:6eshegemonicas de urn uni-co Estado foram os fatores que aproximaram uma ampla varie-dade de posi~6es politicas. Nao e que isso tenha me agradado;estou apenas enfatizando que e assim que as coisas acontecerame que a guerra no Kosovo so reforc;:ou esse sentimento.