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LIBERDADE, POSSIBILIDADE E DETERMINISMO EM LEIBNIZ por Luís Filipe Fernandes Mendes Estudo apresentado como trabalho para o Seminário do Ramo de Formação Educacional Universidade Nova de Lisboa Faculdade de Ciências Sociais e Humanas 2006/2007 A ser avaliado p/ Professor Doutor João Matos Data 26 de Abril de 2007

Liberdade e possibilidade em Leibniz

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LIBERDADE, POSSIBILIDADE E DETERMINISMO EM LEIBNIZ

por

Luís Filipe Fernandes Mendes

Estudo apresentado como trabalho para o Seminário do

Ramo de Formação Educacional

Universidade Nova de Lisboa

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

2006/2007

A ser avaliado p/ Professor Doutor João Matos

Data 26 de Abril de 2007

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Liberdade, possibilidade e determinismo em Leibniz Luís Mendes Seminário

Apresentação

Universidade Nova de Lisboa

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

LIBERDADE, POSSIBILIDADE E DETERMINISMO EM LEIBNIZ

por Luís Filipe Fernandes Mendes N.º 11131

Dirigido ao Professor Doutor João Matos Departamento de Ciências da Educação

APRESENTAÇÃO

arece-nos deveras importante, para a compreensão do sistema de Leibniz, a coexistência de Determinismo e

Liberdade. Existem vários caminhos e pistas diversas no manancial leibniziano sobre este assunto. Sendo

assim, pretendemos mostrar essa importância e escrutinar um caminho para realizar a compreensão duma

matéria que consideramos bastante sensível. Sensível não apenas no contexto da produção deste filósofo, mas

mesmo no contexto geral da reflexão do ser humano sobre si mesmo.

Neste problema em que se entrelaçam considerações religiosas e/ou teológicas, antropológicas, existenciais e, de algum modo,

escatológicas, a posição de Leibniz é recorrentemente lembrada numa áurea de mistério, indecifrabilidade e paradoxo. É porque consideramos

importantíssimo este assunto para a própria compreensão do ser humano, bem como para uma compreensão esclarecida do sistema de Leibniz,

que ousamos empreender a tarefa de trazer à luz os adiantamentos de Leibniz sobre a matéria da liberdade, assunto ao qual, aliás, parece ter

dedicado muita atenção – e não porque este assunto nunca tenha sido abordado, nem porque nunca se tenha tentado um esclarecimento eclético.

Vamos, assim, deitar o nosso olhar sobre os textos do autor para nos esclarecermos sobre um assunto acerca do qual muitos já

disseram muito.

P

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Índice

ÍNDICE

Secção Título Página

Secção 1 – Introdução ------------------------------------------------------------------------------------------------------ 1

Secção 2 – Capítulo I – Da possibilidade da liberdade --------------------------------------------------------------- 8

Secção 3 – Do infinito ------------------------------------------------------------------------------------------------------- 9

Secção 4 – Das razões ------------------------------------------------------------------------------------------------------ 11

Secção 5 – Da verdade e das proposições -------------------------------------------------------------------------------- 13

Secção 6 – Capítulo II – Da liberdade ---------------------------------------------------------------------------------- 15

Secção 7 – Da espontaneidade --------------------------------------------------------------------------------------------- 17

Secção 8 – Capítulo III – As Mónadas e as Almas, A contingência e a Necessidade, A Determinação e a

Liberdade ----------------------------------------------------------------------------------------------------- 25

A simplicidade das Mónadas ---------------------------------------------------------------------------------------------- 25

Secção 9 – A complexidade das Mónadas ------------------------------------------------------------------------------- 26

Secção 10 – A contingência e a necessidade das coisas ---------------------------------------------------------------- 27

Secção 11 – A determinação e a liberdade ------------------------------------------------------------------------------- 27

Secção 12 – Capítulo IV – A forma do ponto de vista --------------------------------------------------------------- 31

Secção 13 – Da disposição ------------------------------------------------------------------------------------------------- 32

Secção 14 – Da liberdade de facto ---------------------------------------------------------------------------------------- 37

Secção 15 – Da pressuposição de evidência ----------------------------------------------------------------------------- 40

Secção 16 – O estabelecimento de hipóteses e o estado de confusão ------------------------------------------------ 45

Secção 17 – Capítulo V – Advertências -------------------------------------------------------------------------------- 51

Secção 18 – A finitude da vida humana e a imortalidade -------------------------------------------------------------- 53

Secção 19 – Conclusão ---------------------------------------------------------------------------------------------------- 62

Bibliografia ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 74

Anexos ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 76

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Introdução Início

“ C o m o a l i b e r d a d e e a c o n t i n g ê n c i a p o d e m c o e x i s t i r

c o m a s é r i e d e c a u s a s e c o m a p r e v i d ê n c i a é u m a d a s m a i s

a n t i g a s p r e o c u p a ç õ e s d a r a ç a h u m a n a . ”

Leibniz, Sobre a Liberdade

S e c ç ã o 1

INTRODUÇÃO À DELIMITAÇÃO DOS CONCEITOS DE DETERMINISMO E LIBERDADE

“… a ditadura de César tem o seu fundamento na sua [de César] noção ou natureza; que aí [na

natureza de César] se vê uma razão pela qual ele ganhou a jornada de Farsália, em vez de a ter perdido.”

Leibniz, Discurso de Metafísica

A noção de Mónada levará, à primeira vista, a julgar que existe em Leibniz uma teoria fácil da casualidade. A Mónada é apresentada como uma substância simples, una, única, indivisível, isolada, fechada, sem janelas, da qual nada sai, na qual nada pode entrar1.

A Mónada é uma noção que facilmente nos encaminha para uma leitura fácil dum certo isolacionismo do sujeito. Parece uma defesa ingénua da idiossincrasia, de tal modo que o mundo seria um conjunto de “unidades solipsistas”. Cada substância é um mundo à parte. Cada Mónada é um mundo inteiro. Um espelho do universo2.

Antes de abordarmos este possível solipsismo cumpre-se, portanto, mostrarmos porque essa seria uma leitura fácil, mas desinformada. Isto porque, se quem tomar conhecimento dessa noção fundamental da filosofia de Leibniz pode ser levado a considerá-lo solipsista ingénuo, aquele que se ativer a ler o que deixou escrito sobre a causalidade será, pelo contrário, invadido duma sensação determinista desconcertante.

Há, portanto, aqui um problema. O problema da conciliação destas duas teses num mesmo ponto de vista. A nossa investigação deverá, portanto, esclarecer-se sobre o que seja entendido pelo termo determinismo, bem como sobre o que se quer indicar por essa autonomia constitutiva da Mónada.

Quem entrar em Leibniz pelos textos da tradição, tais como a Monadologia ou o Discurso de Metafísica, entra em contacto com textos formais, os quais apresentam a generalidade das suas ideias e teorias, erigidas em sistema. O problema de uma tal entrada não é evidente. Essa entrada, no entanto, escamoteia os textos que apresentam as suas explicações, na maior parte dos casos fornecidas em pequenos textos, correspondências e cartas nunca enviadas. Ora, o sistema filosófico de Leibniz é uma imbricação da qual a teoria da liberdade é um sistema. À partida, para abordar uma parte do sistema, ter-se-ia que abordar, primeiramente, a totalidade. A totalidade prevalece sobre a parte dando-lhe sentido.

Nós seguiremos, no entanto, um caminho inverso. É verdade que a natureza deste trabalho não nos permite enveredar por análises metodológicas que, por si só, ocupariam a totalidade do espaço que temos previsto para este estudo. Assim, este estudo não pode deixar de ser preliminar. Mas, por ser preliminar não abdica de escrutinar o sentido daquilo que investiga.

O caminho inverso a que aludimos trata-se de partirmos dos textos explicativos. Um desses textos é o De libertate de 1680-1682. Outro é o De libertate de 16893. Este nosso caminho invertido começa, precisamente, neste último. A nossa intenção é começar pelas explicações específicas dadas por Leibniz para, depois, visualizarmos essas explicações à luz da totalidade do seu sistema. Refira-se que as explicações dadas por Leibniz têm sempre em vista, como não poderia

1 Ver, Monadologia, página 42. Doravante será referida por Mona, seguida do artigo ou da página. A edição usada é a indicada na Bibliografia.

2 Discurso de Metafísica, 46. Doravante referido por DM, seguido da página. A edição é a indicada na Bibliografia.

3 Disponíveis, ambos, na Internet, em http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm. Estão incluídos em anexo ao presente estudo. O escrito de 1680 será, doravante, referido por A, seguido da indicação da página de anexo. O escrito de 1689 será referido, doravante, por B, seguido da página de anexo.

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Introdução -2-

deixar de ser, a totalidade do seu ponto de vista. Assim, obviamente que a explicação sectária não é, em rigor, sectária, visto ser delineada dentro do ponto de vista que a enforma. Assim, a nossa abordagem não descura da advertência do próprio filósofo chama a atenção para a precedência do todo relativamente à parte. O nosso intento é, precisamente, doar sentido ao fenómeno da liberdade a partir da estrutura fundamental (a totalidade), procedendo das suas explicações dirigidas especificamente, sem que esta especificidade implique um esquecimento relativamente ao todo, pois é este não esquecimento que permite o pré-delineamento da abordagem específica em causa.

A própria delimitação do fenómeno deve contar com a preposição do todo. Mas, isso significa que o primeiro passo deve ainda ser essa delimitação. Teremos pois sempre em vista a totalidade doadora de sentido nesta delimitação do fenómeno da liberdade.

O texto B começa por fazer um comentário que simultaneamente se compreende dentro duma perspectiva antropológica e duma perspectiva da história das ideias filosóficas. “Como a liberdade e a contingência podem coexistir com a série de causas e com a previdência divina é uma das mais antigas preocupações da raça humana.” Este labirinto da mente humana parece surgir irremediavelmente ligado a formas de determinação. Ora, o nosso intento é, exactamente, o esclarecimento destas formas de determinismo implicadas pelo questionamento do que seja a liberdade humana ou o seu âmbito efectivo.

A liberdade aparece imediatamente referida à série de causas do mundo natural. O ponto de vista de Leibniz sobre o mundo físico descreve um mundo determinado pela relação de causalidade ou de causação entre dois fenómenos. Isto é, segundo Leibniz os fenómenos sucedem-se de um modo tal que um provoca o outro, sendo que este existe pela implicação da existência do outro.

Ora, esta referência contínua ao ponto de vista leibniziano deve precaver-se de ser mal interpretada. Não se pressupõe aqui que um ponto de vista recrie um mundo à parte. Se uma Mónada e, por consequência, um ponto de vista é um mundo à parte, isso não deve significar uma referência a qualquer coisa sem domínio público. Como veremos mais à frente, o mundo à parte que cada Mónada é configura um mundo próprio que é o seu, em propriedade e originariamente. Contudo, faz parte dos fenómenos percebidos como parte do mundo físico que venham acompanhados duma referência à totalidade do universo. Esta referência é fundamental. Esta referência é a publicidade dos fenómenos, isto é, é o carácter dos fenómenos que nos aparecem referidos a um ponto de vista geral. Os fenómenos com que nos deparamos vêm ao nosso encontro com essa referência própria que remete para um ver geral (o que eu vejo, vejo-o como visível – que pode, em princípio, ser percebido por qualquer um). E isto independentemente da questão epistemológica acerca da existência das coisas fora de mim4. O mundo que cada um é, constituído como ponto de vista, é, antes de mais, um mundo próprio de percepções, percepções que constituem a proximidade. Esse mundo familiar, o mundo que cada um habita em propriedade, de tal modo que se identifica com o seu mundo (a Mónada é o seu mundo), configura a proximidade das coisas (cada mundo é um ponto de vista). Entretanto, esta proximidade não exclui o resto. A Mónada, o mundo que cada um é, o ponto de vista e que cada um se projecta a si mesmo no mundo que o constitui, reflecte a totalidade do sistema de Mónadas. O domínio próximo que cada um habita em propriedade, isto é, o domínio de familiaridade refere-se constitutivamente à totalidade do sistema de Mónadas e, por inerência, à totalidade de sistemas de mundos. Aqui encontramos a âncora da publicidade sobredita, mas também a âncora que nos permite dizer que um ponto de vista não é um sujeito isolado no sentido solipsista. O domínio de familiaridade configura, deste modo, o ponto de vista no próprio olhar em que este se projecta sobre o que desconhece (sobre o que não apercebe, sobre o que não percebe senão confusamente). Isso que escapa ao seu olhar apercebido (consciente) não é, de facto, algo sobre o qual não possamos dizer nada. O que desconhecemos, o que dizemos ignorar, não é algo sobre o qual não possamos dizer nada. Aquilo que não sabemos e que, portanto, procuramos, é algo que à partida se configura a partir dessa referência que procede do domínio familiar para se referir à totalidade. Na medida em que cada mundo espelha o universo, é em todo o lado como aqui.

Assim, quando nos referimos ao ponto de vista de Leibniz, não queremos com isso dizer que se trata de uma fábula de Leibniz. Pelo contrário, partimos do princípio que o seu ponto de vista reflectia e se reflectia na mesma totalidade de sistemas que o autor deste estudo reflecte e em que se reflecte. Portanto, usando as palavras comuns e em

4 DM, 53.

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Introdução -3-

sentido comum, para que nos façamos entender em palavras de todos-os-dias5, partimos do princípio que Leibniz não inventou um mundo que coubesse nas suas teorias, mas que desenvolveu uma explicação para o mundo.

Aqui percebemos que a noção de Mónada não deve ser lida de maneira imediata. Uma Mónada, sendo simples e una, é complexa e múltipla. Sobre este tema, Leibniz escreveu profusamente. Aliás, esta matéria faz parte dos pontos cardeais que servem de argamassa ao seu sistema. No entanto, não entrando ainda nas suas obras que atrás considerámos propriamente de sistema, atemo-nos aqui ao escrito específico Novo sistema da natureza e da comunicação das substâncias6.

“É necessário afirmar que Deus primeiro criou a alma, ou qualquer outra unidade real, de tal modo que tudo nela origina-se de sua própria natureza, com uma perfeita espontaneidade quanto a si mesma e ainda com uma perfeita conformidade a coisas fora dela”7.

Não há, portanto, nenhuma comunicação efectiva entre substâncias, embora no uso corrente da linguagem esse seja o nome que lhe demos. Comunicação é uma palavra que usamos para designar esse fenómeno da simultaneidade das ocorrências concordantes no interior de cada substância. Esta elucidação vale para qualquer substância, portanto, vale também para as substâncias a que chamaremos almas. De resto, a alma mais não é do que a substância central dum corpo que perfaz uma totalidade. Esta totalidade é ela mesma indestrutível (a morte não é entendida como uma separação entre alma e corpo em que este seria destruído e aquela mantida). A alma é uma substância individual particular, ou seja, uma Mónada específica, característica dos seres reflexivos8.

Na realidade, então, as substâncias foram de tal modo criadas pela Substância Suprema (Deus) que, enquanto existem, tudo o que no seu interior ocorre tem origem no seu próprio interior (espontaneidade). Por outro lado, cada substância é um espelho do Universo e se, assim, é um mundo inteiro, é também um reflexo da totalidade do universo. Ou seja, o interior duma Mónada reflecte a totalidade das Mónadas. Cada Mónada foi criada com uma tal forma (evitando utilizar já a noção de constituição) que durante a sucessão de ocasiões no seu interior (existência), essa sucessão puramente interior reflecte perfeitamente a sucessão de ocasiões que ocorre no interior de cada Mónada do universo. Assim a aparência para as Mónadas capazes de pensamento, que dão conta de si mesmas, é a de que existe comunicação entre as Mónadas. Esta comunicação é portanto uma explicação prática, segundo o uso habitual das palavras, e pode manter-se desde que previamente esclarecida.

Tudo o que ocorre no nosso interior exprime o universo. Nesse sentido, pareceria que as nossas percepções, claras e distintas ou confusas e indistintas, apercebidas9 ou não, seriam o resultado da sucessão das causas exteriores. Assim, a nossa vontade e as nossas acções seriam um efeito do exterior entendido como causa. A liberdade seria, então, uma aparência proporcionada pelo facto da nossa apercepção se iniciar em nós10, como não poderia deixar de ser. Nós, enquanto espelho, somos, propriamente falando, o reflexo. Tal como nunca poderemos ver o espelho por detrás do reflexo, também não podemos ver o nosso ponto de vista por detrás do reflexo. Somos imagem do mundo e, como tal,

5 O próprio Leibniz, depois de esclarecer as coisas com rigor, recorre ao uso vulgar das palavras. Este uso perde em especificidade, mas não perde em

rigor, pois ganha o seu próprio rigor a partir da explicitação que o antecede.

6 Também disponível no endereço atrás referido, este texto não é incluído em anexo por não recorrermos frequentemente a ele.

7 Novo sistema da natureza e da comunicação das substâncias.

8 Habitualmente, Leibniz não entende que a alma seja simplesmente a essência animal, por assim dizer. O que caracteriza a alma não é a simples animalidade, mas a reflectividade. Trata-se de uma parte do universo que consegue aperceber-se de si e do universo (note-se que a apercepção de si implica sempre a apercepção do universo, e a apercepção do universo implica sempre a apercepção de si). Na imagem que se apercebe da imagem ocorre, portanto, uma inflexão, tal como quando colocamos um espelho frente a outro espelho, gerando uma referência infinita peculiar que converte a espontaneidade em liberdade.

9 As percepções podem ser apercebidas ou não, ou seja, há percepções que não notamos, e outras que notamos. Notar significa, em Leibniz, aperceber. Por vezes cortamo-nos e não damos conta disso, não notámos o corte. Ora, podemos pensar que existiu dor, mas que não demos por ela. Então, não foi apercebida. Em rigor tudo o que existe é percebido, mais ou menos confusamente. Leibniz entende que existe um limiar da a aperceptibilidade, da notabilidade, isto é, há um limite de confusão para lá do qual não notamos as coisas, apesar delas estarem em nós. O universo está totalmente em nós, mas essa totalidade não é absolutamente apercebida. Só porque tudo está em nós podemos aprender coisas novas, descobrir coisas nunca vistas, inventar coisas ainda não imaginadas – tudo isto acontece porque se trata de um desbravamento, de um des-encobrir, de um fazer luz sobre, de um esclarecer. Além disso, tudo aquilo que notamos refere a totalidade; o domínio familiar espelha a totalidade. Deste modo, o ponto de vista tem uma forma de olhar o desconhecido que lhe é constitutiva. Como dissemos, o ponto de vista projecta-se a si mesmo sobre o que lhe é, ainda, oculto. Essa projecção pode esclarecer-se da seguinte maneira: é em todo o lado como aqui.

10 Tal como um espelho consciente de si mesmo e cujo foco dessa consciência visa um espelho.

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Introdução -4-

vemos a partir desses olhos que são já parte do reflexo. A liberdade parece surgir como uma ilusão proporcionada por essa limitação óptica.11

Contudo, as divagações anteriores permitem-nos uma amplitude diferente. Enquanto espelho do universo cada um dos humanos é, primeiramente, uma Mónada sem janelas. Não é a liberdade mas a causalidade que é uma ilusão provocada pela nossa forma original, criada por Deus à imagem do universo. Ora, sendo que todas as substâncias foram deste modo criadas, à imagem da totalidade das substâncias, é evidente que o que se origina em cada um reflecte de tal modo o exterior que gera a ilusão de comunicação, causalidade ou causação entre substâncias12.

Ora, isso significa que os fenómenos que ocorrem em nós têm origem na nossa natureza13 e que são consequências do nosso ser, ocorrendo em ordem ao mundo que está em nós, exprimindo o universo em conformidade com essa ordem total que presidiu à criação de todas as Mónadas individualmente consideradas. Daqui resulta uma outra forma de determinismo que pode ser percebido no sistema de Leibniz. Se o que ocorre em nós resulta da visão de Deus acerca da totalidade das Mónadas, visão que resulta na criação individual das Mónadas de tal modo que cada ocasião14 no seu interior foi prevista, isto significa que cada substância é um mundo isolado, próprio e auto-suficiente cujo desenrolar ontológico15 foi previamente visto por Deus. Este pré não deve aqui remeter para uma leitura cronológica da categoria divina. A visão de Deus é a-temporal por definição, isto é, Deus apercebe a totalidade do universo de um só golpe. E esta visão não deve remeter para categorias empíricas, mas puramente intuitivas e a priori (a totalidade é apreendida de uma só vez, sem mediação, e, para dizê-lo em linguagem humana, antes de todos os tempos).

A presciência16, a sabedoria prévia de Deus, a visão prévia de cada mundo e da totalidade dos mundos (universo) não deve aqui ser descarnada do seu sentido teológico, tal como acima anotámos. Contudo, esta advertência não basta a Leibniz.

11 Este uso do campo semântico de espelho é muito comum na Escolástica e reflecte-se, como não poderia deixar de ser, nos primeiros filósofos

que pretendem escapar da influência da metafísica medieval. Leibniz é um destes filósofos.

12 Ver DM, 55 e Mona. art. 51.

13 Natureza tem, para Leibniz, o sentido de essência, de noção. Não se entende natureza no sentido contemporâneo, devedor do romantismo, de natureza humana. De algum modo a natureza de cada um é o seu modo de ser. Daí que Leibniz fale da natureza de cada Mónada. Uma análise mais aprofundada levar-nos-ia a dizer que a natureza de cada Mónada compreende não só a totalidade da sua existência (dos possíveis que ela escolheu para existirem, mas a totalidade das suas possibilidades, quer venham a existir alguma vez, quer não.

14 Uma ocasião não é simplesmente um instante cronológico, mas um momento de abertura de possibilidades da própria existência. Não é um simples instante parado ao qual seguirá um outro. É um momento do fluxo contínuo que a apercepção prefigura e que prefigura a totalidade da Mónada. A alma, pelo movimento livre da vontade, deve, então, identificar-se com existência. Cada um é a totalidade da sua existência. Obviamente, o novelo ontológico gerado pela compreensão de cada um como espelho do universo, implica também que cada um seja a totalidade da existência em geral. Note-se que, uma análise lógica levar-nos-ia à conclusão de que, cada escolha feita implica a totalidade do universo. Em cada escolha que cada um faz compromete-se a existência da totalidade do universo. Uma escolha diferente pressuporia um diferente universo. Um mundo em que o autor deste estudo resolvesse não o fazer, implicaria que o universo existente (nessa hipótese) não fosse tal e qual este que existe. A minha escolha implica a totalidade.

15 Na medida em que, pelo que já se foi dizendo, a existência de cada um ressai do ser de cada um. O ser de cada um compreende o desenrolar fáctico da existência. Cada fenómeno da existência, cada momento de vida na vida de César está implicado pelo seu ser. O ser de cada um é a totalidade da vida de cada um.

16 A Presciência trata-se de um saber das coisas antes das coisas acontecerem. Não se trata de um simples cálculo, mas uma detenção em absoluto, em propriedade. Não se trata de um saber indirecto como o que nós podemos ter se ouvirmos alguém dizer que vai fazer isto ou aquilo. Também não se trata de um cálculo, como na meteorologia. A Presciência divina significa uma detenção em próprio de todo o saber, de todas as verdades acerca de todas as coisas. Esta presciência não é, sob nenhum aspecto, empírica ou mediata, mas detida por anterioridade. Note-se que o Pré-, em todos os fenómenos a que nos referimos, tem uma conotação absolutamente formal, isto é, refere-se à própria constituição, neste caso, da sabedoria divina. A sabedoria divina é, constitutivamente, anterior. Isto significa que esta anterioridade não faz, na verdade, nenhuma referência cronológica. A sua forma é a anterioridade. Não se trata, pois, de ser produzida um ou dois segundos antes disto ou daquilo, mas de ser, por definição, anterior ao tempo e, consequentemente, anterior a qualquer categoria temporal. A alma, enquanto imagem de Deus, é constitutivamente constituída por algo semelhante a esta presciência. Mas a sua natureza presciente à sua medida. Mas a alma recebe desta pré-sabedoria o seu próprio modo de ser pré. Deste modo, a determinação do sentido de cada ocasião depende das possibilidades que dessa ocasião são arrancadas, que essa ocasião abre. O sentido da vida é determinado, de cada vez, da abertura de possibilidades enraizada nesse próprio a cada vez (facticidade). A incontornabilidade do agora, do viver a cada vez, é o próprio atraso de cada um relativamente a si mesmo, na medida em que o seu sentido e, por consequência, o seu ser é assim determinado, constitutivamente, enquanto possibilidade. O paradoxo que daqui resulta, a saber, a anterioridade da possibilidade relativamente à existência, não é de facto um paradoxo, na medida em que este pré é meramente formal, isto é, sem referência a nenhuma categoria cronológica.

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Introdução -5-

A presciência é um problema da tradição cristã que tradicionalmente costuma ser mitigado pelo factor de eternidade. Ou seja, habitualmente dissolve-se a sensação de determinismo (ou fatalismo) que deriva da noção de presciência (Predeterminismo), nesse prefixo que indica a ausência de tempo. Então, o pré divino, enquanto abdicando por essência de qualquer anterioridade cronológica, na medida em que é a ausência de uma apercepção temporal, apresenta uma visão pura, eterna (um ponto de vista absoluto, o mundo que é todos os mundos) que, obviamente, não cabe já nessa série de fenómenos em que ocorre a relação de determinação de um fenómeno por outro.

Ora, segundo Leibniz a presciência divina é, de facto, atemporal e, nesse sentido, não se lhe pode tornar a culpa dos nossos actos. Assim, o acto voluntário de alguém, antes de ter lugar, não existe ainda. Não existe, embora Deus saiba certamente que ele vai ocorrer. Mas o ponto aqui é antropológico, ou melhor, fenomenológico e não propriamente teológico. O que importa aqui a Leibniz é que um segundo antes de agir o acto é desconhecido do agente.17

O argumento de que “se Deus sabe de antemão todas as minhas acções, então as minhas decisões estão, a bem dizer, já tomadas e, nesse caso, não são propriamente minhas, mas de Deus que assim decidiu o mundo do qual faço parte” é um argumento vazio, de um qualquer ponto de vista humano. Isto porque a presciência divina nada decreta, apenas prevê. Mas, se se afirmar que essa previsão é para as criaturas uma predestinação, então resta dizer que a vontade divina determina mas não necessita. Ou seja, não se pode dizer que sendo exterior Deus não comunica com a Mónada. Deus é o único objecto externo que afecta a nossa alma, aliás, toda a afecção da nossa alma resulta da influência divina (vemos todas as coisas através dele)18. Mas, por outro lado, também não se pode dizer que a decisão divina necessita a nossa decisão. Um segundo antes da decisão a nossa alma ainda não tem uma escolha, ainda são possíveis várias escolhas e tem que ser, efectivamente, a alma a tomar a decisão. Essa decisão não decorre, no domínio das coisas humanas, da vontade divina (pois esta explicação, por última e primeira que é, nada explica). A escolha ainda por fazer também não pode ser demonstrada matematicamente antes de ser tomada. Ora, se a decisão estivesse necessitada (não dependesse da decisão da alma), então haveria de se poder demonstrar recorrendo ao princípio da contradição. Contudo, qualquer tentativa de fornecer uma tal demonstração apenas demonstrará à saciedade o contrário: que a decisão não está necessitada e que, para se saber qual a escolha possível que se tornará existente, se terá de esperar pelo momento em que a vontade se pronuncia19. Só depois de tomada a decisão a escolha (prevista por Deus) se torna evidente.

Note-se que com isso Leibniz não está a afirmar que, apesar de a nossa decisão já estar tomada necessariamente antes do momento da nossa vontade se decidir, nós estamos livres porque ao nos decidirmos tomámos a nossa decisão à margem de uma coação. Pelo contrário, para Leibniz, a coação é indiferente. A coação é indiferente para aferir da liberdade humana devido à não indiferença da vontade. Leibniz recusa a possibilidade da indiferença da vontade, ou, pelo menos, recusa a possibilidade de uma escolha em estado de indiferença, o que, na prática, significa a recusa de que seja

17 Ver DM, 74.

18 Como se pode ver em DM, 72.

19 Aqui não podemos deixar de fazer um reparo contemporâneo. A indústria da sétima arte ajuda a ilustrar e a tornar compreensível, a partir de um apoio empírico ou experimental, esta tese. Veja-se o filme Relatório Minoritário. Nesse filme, as técnicas forenses permitem à polícia antecipar os crimes mais graves. A polícia sabe quando um cidadão vai decidir executar um homicídio. O curioso é que os homicidas que ainda não mataram, em grande parte dos casos, recusam a ideia de que iriam matar. A pergunta surge-nos: como podemos saber se eles iriam de facto matar? Mas os homicídios foram praticamente eliminados. Este dado estatístico fornece alguma base de apoio para acreditarmos que o método funciona. Contudo, imaginemos o acusado: o réu é acusado antes de matar. Assim, a maior parte dos casos são passionais, pois os casos ponderados, os homicídios premeditados, deixaram de ser uma opção (por razões óbvias: são imediatamente previstos pela polícia). Por outro lado, um futuro-homicida, estando junto à esposa apanhada em flagrante traição, empunhando uma arma, apontando-a à traidora, recusa que fosse matar. Mas é, sobretudo, o caso principal do filme que aqui me interessa. O chefe da polícia de pré-conhecimento é acusado pela técnica forense que o implica num futuro homicídio de alguém que ele nem conhece. Recusando a ideia de se vir a tornar homicida envereda por uma fuga que o leva ao local previsto para o crime. Aí desenrolam-se todas as circunstâncias previstas, circunstâncias que inclinam o protagonista a premir o gatilho. Por momentos ele julga-se necessitado, sem escolha, pois o homicídio havia sido previsto. Mas foi aí, nesse momento de conflito entre o que sabia ser uma previsão e o momento existencial, fáctico (incontornável) da decisão que ele percebeu: a decisão só estaria tomada quando ele a tomasse. Note-se que o tomar conhecimento da previsão se torna um factor decisivo da decisão. Podemos dizer que, se alguém toma conhecimento de uma decisão sua futura, essa decisão passa a ser um condicionante da decisão futura efectiva. Isto é, teria que existir uma actualização da previsão que tivesse em conta esse conhecimento. Obviamente que, se essa actualização fosse também ela transmitida ao agente, seria necessária uma nova actualização. Este processo é infinito. Ou seja, conhecer uma decisão futura é abrir de novo o processo, por assim dizer. Deste modo podemos afirmar que, se Deus nos revelasse as nossas decisões futuras, essas decisões não estariam, de facto, predeterminadas, pois poder-se-ia decidir sobre elas. Claro que, uma vez que Deus é absoluto conhecimento, o seu conhecimento levaria em conta, também, este facto. Então, como se vê, entra aqui um vector paradoxal. A previsão última e irreversível não pode ser revelada pois, ao ser revelada, deixa de ser irreversível. O vector paradoxal é, precisamente, a revelação da previsão. Por outro lado, a não revelação significa que só se sabe a escolha depois da decisão.

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Liberdade, possibilidade e determinismo em Leibniz Luís Mendes Seminário

Introdução -6-

possível ser-se livre e indiferente. A liberdade pressupõe escolha, escolha pressupõe decisão, a decisão só pode ocorrer no caso em que uma das escolhas inclina a vontade em maior grau. A inclinação da vontade segue a perfeição. O mesmo é dizer que só existe liberdade quando em causa está a decisão entre duas ou mais possibilidades sendo que, entre elas, existe uma cuja perfeição leva à rejeição da existência das restantes. Assim, mesmo em circunstâncias de coação não se pode negar a liberdade humana (devido à coacção). Isto significa também que, apesar de uma das escolhas oferecer muito prazer20 e felicidade aparente, o agente pode sempre se decidir pela outra que, porventura, pode ser mais perfeita (na realidade). Para Leibniz esta realidade não mostra a indiferença da vontade perante as escolhas possíveis. Existe liberdade se existem vários possíveis em consideração. Um possível tem sempre alguma realidade, isto é, algum grau de perfeição. A vontade, se é livre, deve ser indiferente à necessidade (isto é, deve ter o poder de agir diferentemente), deve poder inclinar-se para o que julga mais perfeito21.

A vontade não é indiferente. Mas este tópico insere uma dificuldade que as teorias da indiferença evitavam ou

pretendiam evitar ao propor essa indiferença. Essa dificuldade pode traduzir-se assim: podemos então afirmar que não existe liberdade onde a vontade é determinada por uma inclinação. Esta dificuldade é poderosa e assaz esgrimida na história das ideias filosóficas. Mas pouco tem que ver com o sistema de Leibniz. A abordagem ao sistema de Leibniz, por despreocupada que seja, facilmente encontra referências à espontaneidade substancial. A espontaneidade substancial erradica, logicamente, a necessidade da inclinação22.

A não indiferença da vontade mais não significa que dizer que uma vontade não pode ter uma vontade, pois, nesse caso, a referência seria ao infinito23. De resto, Leibniz concebe a vontade como conatus24, como tenção para, como esforço de, como intenção. Trata-se de uma ligação. A vontade não pode, pois, ser vazia. Não pode haver uma selecção sem um princípio de preferência.

A espontaneidade da substância implica, pois, uma existência em referência circular. Isto é, tudo o que lhe acontece durante a vida surge de si mesma. Na acepção mais própria das palavras, a vida de cada um nasce da sua própria natureza. Assim, as decisões são, também elas, próprias. Espontâneas. Sem qualquer ingerência. A nossa vontade é, pois, independente de tudo quanto não é ela. Deste modo, a inclinação para a perfeição, a vontade de perfeição (conatus) deve ser compreendida tendo em atenção os seguintes aspectos. Antes de mais, qualquer possível em consideração é, enquanto está em consideração, uma percepção da alma. Essa percepção pode, com efeito, ser apercebida confusamente e confundir a alma. Assim, a alma pode errar por erro, digamos assim. Aquilo que aparentemente é mais perfeito pode não o ser (“a nossa vontade tenderia sempre para o bem aparente”25).

Não pode a alma, neste particular, afirmar-se necessitada por um conjunto de razões? O facto de a sua vontade se

encontrar inclinada, o facto da sua apercepção a iludir ou enganar parecem necessitar a decisão. Admitindo-se a inclinação (que não resulta duma opção da alma, a alma não escolheu ser atraída pela perfeição), e admitindo-se o ponto de vista (a alma, enquanto reflexo do universo é um mundo possível, uma visão desse universo, a alma não escolhe o seu

20 Ver Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano , doravante referido como Ensaio, seguido da paginação (a edição é a referida na Bibliografia).

Ensaio, 109-110. A indiferença deve ser definida propriamente como a ausência de apercepção de prazer ou dor. Uma percepção indiferente é aquela que não é acompanhada de nenhum prazer nem dor (em sentido geral como sentimento de perfeição ou de ausência dela). Ora, é certo que não há nenhuma percepção absolutamente indiferente, mas aplica-se este adjectivo às percepções cujo efeito não é notável (cujo prazer ou dor resultantes não são notáveis pela alma). Note-se, portanto, que a indiferença e a ignorância são afinal a indistinção e a confusão das percepções.

21 DM, 74.

22 Ensaio, 135: “Ser determinado ao melhor é ser maximamente livre”; “… a escolha, por muito determinada que a vontade esteja a seu respeito, não deve ser chamada necessária absolutamente e em rigor; a prevalência dos bens inclina sem necessitar, se bem que, tudo considerado, essa inclinação seja determinante e não deixe nunca de produzir o seu efeito”. Esta escolha inclinada é a essência da liberdade e jamais um jugo: “Se a liberdade consiste em sacudir o jugo da razão, os loucos e os insensatos serão os únicos livres, mas não creio, porém, que pelo amor de uma tal liberdade alguém quisesse ser louco, salvo aquele que já o é.” Kant viria a perceber a importância deste ponto teórico para uma fundamentação da moral.

23A, 2 e 3.

24 Conatus. De conor – empreender, esforçar-se, ensaiar, tentar; esforço, ímpeto, impulso, tendência, inclinação, empenho.

25 DM, 74.

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Introdução -7-

ponto de vista na medida em que este é a sua forma), então a decisão resulta, supõe-se, matematicamente da sua soma. A resposta de Leibniz é mais clara do que nós poderíamos ser: “depende da alma precaver-se contra as surpresas das aparências”26. O ponto de vista (a substância) é sempre verdadeiro. A inclinação é sempre boa27. O erro28, pois, está no olhar que deve precaver-se, tematizar-se29 e não o fez convenientemente. Este poder de precaver-se deve ser usado invariavelmente no seu melhor proveito e a responsabilidade do uso incorrecto ou incauto desse poder cabe à alma.

Essa precaução que a alma deve tomar vem apenas asseverar a tese segundo a qual “todos os nossos fenómenos, tudo aquilo que pode alguma vez acontecer-nos, mais não são do que consequências do nosso ser”. Ora, isto significa apenas que o mundo está em nós. Não precisamos de receber estímulos de fora. O mundo está dentro de nós30. E é com esse mundo que contamos para os nossos cálculos e para julgar do futuro pelo passado. Ora, esta pertença do mundo a si refere a espontaneidade dos fenómenos relativamente à substância. Todos os fenómenos que a alma percebe e/ou dos quais se apercebe nascem espontaneamente (sem outra causa) de si própria. Todas as suas decisões são, portanto, incondicionadas se, por condição, se entender um requisito exterior à alma. Nas substâncias inteligentes a espontaneidade é liberdade que, neste sentido, mais não é que a apercepção de si próprio como causa. Por outras palavras, a liberdade é a consumação da alma como espelho propriamente dito, na medida em que espelha a divindade, causa suprema e espontaneidade pura.

Ora, aqui surge-nos uma nova objecção. Deus, ente no qual tudo é espontâneo, é também o ser necessário por

excelência. A existência necessária está aliada à vontade livre, e ambos em grau supremo. Qualquer objecção deste género não é uma objecção de facto nem de direito, posto que ela própria se responde.

Em Deus a existência é absolutamente necessária, e a vontade divina é supremamente livre. Ora, o que questionamos é, precisamente, a liberdade da vontade (por oposição à necessidade da vontade). A necessidade da existência (que se opõe à contingência) em nada impede a liberdade da vontade31. De resto, mesmo que impedisse, nada daí se inferiria para as criaturas, visto não ser a existência de nenhum ser criado necessária32. Nenhuma alma criada é tal que a negação da sua existência resultasse em contradição. Todas as existências limitadas, na medida em que não abarcam a plenitude, a perfeição total, são simplesmente contingentes, isto é, a sua coexistência com Deus é possível mas não necessária (pois, como é óbvio, Deus, substância necessária por princípio, existe independentemente da não existência de qualquer das suas criaturas)33.

26 Ensaio, 135, “… a mais alta perfeição de um ser inteligente consiste em se aplicar cuidadosa e constantemente à procura da verdadeira

felicidade, assim, também o cuidado que devemos ter para não tomar por uma felicidade real a que é simplesmente imaginária…” este cuidado é o fundamento mesmo da nossa liberdade. A liberdade, com efeito, seria vácua se a alma não detivesse este poder de cuidar de si.

27 E é, como se viu, uma condição para a liberdade.

28 O erro consiste em tomar por felicidade real uma felicidade apenas aparente. Resulta das nossas percepções confusas (note-se que a ignorância mais não é do que a confusão das percepções uma vez que o autor sustenta que cada substância contém o mundo inteiro). A possibilidade do erro, em si mesma, é boa na medida em que segue uma necessidade operativa, prática. Praticamente convém que a alma possa decidir-se em tempo útil. Ensaio, 111, “o autor infinitamente sábio do nosso ser agiu para nosso bem, quando fez de maneira que estejamos muitas vezes na ignorância e em percepções confusas: para que possamos agir mais prontamente por instinto e para não sermos incomodados por sensações demasiado distintas, relativas a muitos objectos, de que nos esquecemos por completo e que a natureza não pôde dispensar para alcançar os seus fins.” É claro, umas linhas a baixo, ao afirmar que se tivéssemos os nossos sentidos mais aperfeiçoados do que temos isso nos traria demasiados inconvenientes. Temos o olfacto e a visão que nos é conveniente. A margem de erro que lhes cabe é a melhor tendo em conta a nossa finalidade (procura da felicidade, procura da perfeição).

29 Tematizar é, antes de mais, considerar – uma concentração do ponto de vista. A esta concentração podemos chamar atenção. Este esforço de concentração do ponto de vista é dirigido pelas necessidades da vida. Cf. Ensaio, 56.

30 DM, 53.

31 Pelo menos, em abstracto. A consideração desta objecção em termos dos seus pormenores far-se-á, tacitamente, mais à frente ao se mostrar a possibilidade da liberdade.

32 É possível conceber-se um Deus necessitado sem negar a liberdade humana. Há, de facto, quem defenda que Deus escolhe necessariamente a perfeição e, simultaneamente, defenda que o humano é livre. Contra esses também Leibniz escreve. Essas considerações também se farão mais à frente.

33 A haver uma substância necessária, qualquer outra substância necessária é necessária se a sua não coexistência com a primeira implicar contradição, pois, dada a sua necessidade a primeira não pode ser negada sem contradição. Assim, sendo Deus o criador incriado e necessário, a haver outra substância necessária, a existência desta ter-se-ia que derivar da existência de Deus, dado que esta foi já asserida. Obviamente, a existência de Deus tem também de ser derivável da existência dessa outra (o que não coloca nenhuma dificuldade, uma vez que a existência de Deus se deriva da existência de qualquer outra substância). Uma análise mais demorada haveria de mostrar que uma qualquer existência

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Introdução -8-

necessária tem que ser absolutamente coexistente com Deus, isto é, tem que ser Deus. Daí derivar-se-ia que é necessário que a única substância cuja existência é necessária é Deus (qualquer substância necessária é Deus).

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Da possibilidade da liberdade -9- Cap. I

S e c ç ã o 2

CAPÍTULO I – DA POSSIBILIDADE DA LIBERDADE

Depois de ter notado a importância do problema em causa, Leibniz, no Sobre a Liberdade de 1689, comenta uma das aparências que podem resultar das suas teorias34. Em linhas gerais, traça um quadro para um leitor possível. Esse quadro apresentaria Leibniz como necessitarista e fatalista.

A primeira confusão surge da sua tese segundo a qual “nada acontece por acaso ou acidente”, ou “tudo acontece por uma razão”. Esta tese é por ele afirmada ao longo de toda a sua obra, nos seus mais vários escritos. Em DM, 42, podemos encontrar uma formulação interessante tal que nada acontece no mundo que seja absolutamente irregular, nem sequer se poderia ficcionar nada assim. Mas citamos aqui o princípio claramente expresso e explicado em Princípios da Natureza e da Graça35, 25: “… nada se faz sem razão suficiente, quer dizer, que nada acontece, sem que seja possível àquele que conhecesse bem as coisas, dar uma razão que baste para determinar por que é isso assim e não de outro modo.”

Ora, como Leibniz bem aponta, dessas considerações resulta um certo necessitarismo. Isto é, fica-se com a ideia que Leibniz considera que tudo está necessitado e que, portanto, ou não existe liberdade ou, se existe, se trata duma liberdade derivada, por assim dizer (uma liberdade fenoménica, isto é, reduzida à apercepção de poder decidir-se a si mesmo sem coação). Mas deverá o fenómeno da liberdade ser reduzido a esta apercepção de ausência de coação? Para Leibniz, não.

Em ordem a demonstrar que a ordem dos acontecimentos não está necessitada, apesar de para tudo se poder encontrar uma razão e nada acontecer por acaso, Leibniz procede a uma análise lógica. Sendo que há possíveis que nunca existiram, não existem e não existirão, então há, necessariamente, possíveis que existem sem serem necessários, pois em vez deles poderiam existir esses possíveis que não existem. Portanto, apesar de nada acontecer por acaso, o que acontece é contingente.

O contingente é aquilo que existe sem que seja possível demonstrar a sua necessidade, apesar de se poder demonstrar a sua certeza36. O necessário é, pois, o que é demonstrável pelo princípio da contradição. A força da necessidade implica que seja contraditório o seu contrário. Assim, um acontecimento necessário é tal que a sua não ocorrência resulta numa contradição. Qualquer ser necessário é igualmente definido. Deus, por exemplo – e na série dos fenómenos não existe qualquer exemplo – é necessário uma vez que, enquanto Criador Incriado e substância primeira de todas as coisas, a sua não existência acarretaria contradição ao concluir pela não existência de mais nenhum fenómeno, o que é manifestamente contraditório com a verificação de que existem coisas. Mas esta contradição é, por assim dizer, sintética e, como tal, deve resultar numa identidade. Ou seja, a necessidade de Deus significa que não pode ocorrer que Deus possa ser não existente (não é verdade que[Deus=não Deus]). Por outras palavras, a análise do conceito de Deus implicará a sua própria existência (Deus=Deus; por análise de que Deus=Perfeição=Existência). A noção de Deus implica a sua própria existência. A não existência de Deus é contraditória, resulta num absurdo (a possibilidade de um ser perfeito que não existe)37.

34 “Quando eu considerava que nada acontece por acaso ou por acidente (a menos que estejamos considerando certas substâncias entendidas por si

mesmas), que a fortuna diferenciada do destino é nome vazio, e que nenhuma coisa existe a menos que suas próprias condições [requisitis] particulares estejam presentes (condições de cuja presença conjunta se segue, alternadamente, que as coisas existem) estive muito próximo à opinião daqueles que pensam que tudo é absolutamente necessário, que julgam que é suficiente para a liberdade que não estejamos coagidos, mesmo que estejamos sujeitos à necessidade, e próximo à opinião daqueles que não distinguem o que é infalível ou certamente conhecido como verdadeiro, daquilo que é necessário.”

35 Doravante, PNG, seguido da paginação. A edição é a indicada na Bibliografia.

36 Há aqui uma diferença fundamental entre o certo e o necessário. Habitualmente, Leibniz confina o uso da demonstração ao necessário. No entanto, em A, 1, Leibniz admite uma forma fraca de demonstração como um mostrar certo. Entretanto, cabe elucidar que ser certo difere de ser necessário (o que é mostrado no caso da demonstração necessária).

37 Uma vez que Perfeição implica Existência. A necessidade dum ser necessário significa que a sua mera possibilidade implica a sua existência necessariamente. Note-se que esta demonstração não é propriamente leibniziana. Leibniz aceita-a com a reserva de que não supre todas as inquietações. Incluímo-la a título de exemplo.

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Da possibilidade da liberdade -10- Cap. I

Ora, também as fábulas são possíveis, na medida em que posso pensar num carneiro a falar sem entrar em contradição. Mas apesar disso, não existem carneiros falantes38. Deste modo também a realidade existente que temos perante nós não é mais do que um possível entre outros possíveis. A negação desta realidade existente não implica contradição e, aliás, é perfeitamente imaginável que a sociedade humana que existe fosse substituída por uma sociedade de carneiros falantes, a qual é possível e em nada contraditória em si mesma.

A contingência das coisas resulta de que a existências delas não é necessária em si mesma. A realidade existente poderia ser diferente.

Não só a existência, mas também a verdade pode ser necessária ou contingente. Tentando delimitar os sentidos dos termos com a máxima precisão, Leibniz procura apreender claramente o uso desses termos neste particular. As verdades necessárias são bem diferentes das contingentes. Então, cumpre-se esclarecer a sua ideia, isto é, tornar essas ideias claras e distintas.

É comum a qualquer verdade que o predicado esteja no sujeito. Por outras palavras, que a proposição verdadeira assira uma identidade. É essa a fonte da infalibilidade e, a bem dizer, da demonstração: que o predicado seja contido pelo sujeito.

Leibniz nota aqui que, ao invés de resolver o problema, parece estar a escavá-lo mais e mais. Como é possível que se retire o predicado do sujeito sem que este se mude noutra coisa? Ora, se isto não for possível, então toda a verdade se mostrará necessária39.

As formas de identidade, os seus modos de enunciação e as dificuldades inerentes foram largamente estudadas pelo autor40. Entretanto, essa infalibilidade é distinta conforme se está a falar de Deus ou da criatura. Qualquer verdade se mostra infalível perante Deus, mas apenas uma certa infalibilidade se mostra às almas humanas. As verdades cuja demonstração se estende ao infinito não são captáveis pelo intelecto humano. Da mesma forma, não podem ser reduzidas a uma identidade imediata (x=x), precisamente porque a análise se estenderia ao infinito. Estas verdades não redutíveis a uma identidade imediata são verdades contingentes (pois, no que nos diz respeito, poderiam não ser verdade). As verdades que são imediatamente redutíveis a uma identidade são proposições inter-definíveis (12=6x2) e, portanto, necessárias (pois negá-las seria negar a própria definição dos termos, isto é, uma contradição). Do ponto de vista divino, todas as verdades são necessárias porque Deus capta toda a série infinita num só golpe claramente distinguindo a identidade imediata entre os termos.

Leibniz percebe que a noção de liberdade se relaciona com a de infinito. Assim, os dois maiores labirintos humanos mostram-se como devedores do mesmo problema: a natureza do infinito.

A liberdade é da ordem do infinito, pois que a sua possibilidade está ligada ao contingente. A análise dos vários sentidos de contingente levou à noção de infinito (série infinita).

S e c ç ã o 3

DO INFINITO

“Todas as criaturas têm gravadas em si um certo sinal da divina infinidade”41. Cada criatura é um espelho, um espelho que reflecte a totalidade do universo. Mas reflecte, primeiramente, a imagem de Deus. Deus, a substância

38 Leibniz rejeita que a matéria tome sucessivamente todas as formas possíveis. Como pode Leibniz saber que não existem tais carneiros? Ora,

Leibniz sustenta que é em todo o lado como aqui. O resto do universo não difere, segundo ele, do nosso horizonte de familiaridade, pelo menos, formalmente.

39 Com consequências gravosas a resultarem da análise. Se toda a verdade é necessária, então toda a proposição verdadeira é uma identidade. Há duas consequências analíticas. Ou há muito poucas verdades – apenas as identidades, apenas as necessárias. E/ou toda a proposição verdadeira é percebida como tal. Ora, a primeira consequência resulta em contradição, pois é evidente que existem verdades não demonstráveis matematicamente. A segunda é, igualmente, um absurdo, pois nesse caso eu poderia saber com certeza tudo aquilo que é verdade, inclusivamente, conhecer todo o meu futuro.

40 Cf. DM, 74; Ensaio, passim. 41 A,1.

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Da possibilidade da liberdade -11- Cap. I

primeira, origem de todas as outras, é a Vontade supremamente livre, absolutamente espontânea (Deus deseja o Bem porque quer). As Mónadas individuais, as almas são, portanto, à imagem de Deus, unas, espontâneas, livres, infinitas42. É importante delimitarmos o sentido deste infinito.

Em toda e qualquer porção de matéria se encontra uma infinidade de mundos (Mónadas)43. Cada substância individual, Mónada, actua sobre todas as outras e sofre as acções de todas as outras44. Ou seja, cada substância, por mais imperfeita que seja, contém o universo inteiro45.

Qualquer verdade de facto, relativa às coisas individuais, depende de uma série infinita de razões (é explicada por uma série infinita). Numa série infinita apenas Deus pode ver a infalibilidade de uma verdade contingente. Isto significa que Deus conhece as verdades contingentes a priori, isto é, anteriormente à experiência, por pura intuição intelectual.

Leibniz distingue entre verdades originárias ou básicas e verdades derivadas. As primeiras são as imediatas46, evidentes, claras e distintas por si mesmas. São, portanto, segundo a nomenclatura acima, identidades (x=x). São deste tipo as tautologias (afirmam-se a si mesmas ou negam a própria contradição). As verdades derivadas são mediatas, não são sempre evidentes por si próprias e a análise pode levar ao infinito sem mostrar a sua infalibilidade à razão humana. Então dividem-se em dois conjuntos: as verdades derivadas que podem ser decompostas numa série finita de verdades originárias (x=y+z); e as verdades derivadas cuja análise, como se disse, se desenvolve infinitamente (x=y+z+…+n, em que n=∞).

De acordo com a elucidação dada acima devemos considerar como verdades necessárias as verdades originárias e as verdades derivadas finitamente decomponíveis47. Então podemos dizer, em concordância com a noção de necessário que apresentamos relativamente à existência, que uma proposição necessária é aquela cujo contrário implica uma contradição.

A demonstração expõe a igualdade entre os termos da proposição (12=6x2=12). Ou seja, a demonstração revela a coincidência entre sujeito e predicado, tal como disséramos atrás, evidenciando a identidade entre os termos da

proposição (12=2x2x312=2x612=12)48. Por seu lado, as verdades contingentes não são redutíveis a uma proposição básica ou verdade originária (tal como

não é possível completar a série de pi (π=3,14159265358979…), isto é, não é possível indicar a sua proposição originária tal que os termos sejam idênticos49. No entanto, para Leibniz, isso não significa que o predicado não esteja no

42 Apesar da finitude constitutiva do seu ponto de vista. As almas têm o infinito espelhado em si próprias, apesar de sobre si próprias deterem

constitutivamente um olhar finito (por condição, incapaz de abarcar a totalidade, o infinito).

43 B,2, “Na verdade, não há porção de matéria tão diminuta que não contenha um tipo de mundo de criatura, infinitas em número […]”

44 B,2. Note-se que esta linguagem segue o uso corrente. Nenhuma substância actua sobre outra ou sofre de outra o que quer que seja. Esse pathos é meramente uma ilusão criada pelo facto de cada substância reflectir em si mesma o universo.

45 Confusamente. A alma contém em si, confusamente, a imagem do universo inteiro, de todas as coisas que tenham existido, que existam ou venham a existir. E não apenas parcialmente, mas em sua noção completa. Se pudéssemos notar a totalidade do que somos, deter um conhecimento absoluto do que somos, então conheceríamos o futuro, o presente e o passado de todo o universo e de todos os mundos que o constituem. Por mundos não se entende universos. Para Leibniz existe apenas um universo (uma totalidade). Cada Mónada é um mundo. É neste sentido que existem múltiplos mundos. São tantos os mundos quantos os pontos de vista, os quais se constituem, precisamente, desse mundo que são.

46 Inatas. Uma verdade inata não é, necessariamente, um conhecimento inato. Isto, nem sempre, aliás, na maioria das vezes não se tematiza o que é inato. Não se lhe presta atenção. A constituição dum ponto de vista teórico é a possibilidade de retirar do escondimento isso que está presente, manifestando-se, mas não se mostrando enquanto tal.

47 Isto é, as verdades tautológicas (12=12), e as verdades redutíveis a verdades tautológicas (12=6x2). Isto é, as verdades necessárias são aquelas em que os termos são inter-definíveis.

48 Importa referir que a demonstração pode passar por mostrar a inclusão da definição de um dos termos na definição do outro termo, tal como: demonstra-se que um duodenário é senário decompondo 12 (duodenário) em 2x2x3 (binário, binário, ternário), sendo que o senário equivale a 2x3 (binário, ternário), pois, então, um duodenário é, também, senário. Uma demonstração serve também para evidenciar as várias formulações possíveis de uma proposição, ou para reduzir uma proposição derivada numa básica, tal como: 12=2x2x3, então 12=2(2x3); ou, 12=2x2x3, então 2x2x3=2x2x3, então 2(2x3)=2(2x3); ou, 7+7+3+4=4x7-7, 3x7=3x7, então 21=21. A demonstração elucida a identidade de proposições derivadas de uma mesma verdade originária, tal como: 12/60; 18/90; 12/60=2/10; 18/90=2/10; 12/60=18/90 (note-se que ambas as fracções resultam em 0,2 ou 20%, isto é, são de facto o mesmo valor).

49 Isto é, π=3,14159265358979 não é exacto (na verdade, é falso). O valor de pi não é 3,14159265358979, pois a série está por completar. O mais importante é que não é possível completá-la por ser infinita. Deus vê a identidade a priori, não porque veja o fim, o termo ou o último número da série, o que seria uma contradição, mas porque Deus abarca a totalidade da série num só golpe.

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Da possibilidade da liberdade -12- Cap. I

sujeito, mas significa que isso não pode ser demonstrado. Não se pode demonstrar a identidade entre os dois termos, pois não é possível retornar uma unidade da série cuja análise se prolonga ao infinito. O importante aqui é notar essa impossibilidade humana de prever a identidade. Não se pode demonstrar matematicamente a identidade entre sujeito e predicado nas proposições verdadeiras não redutíveis a proposições originárias. Portanto, o infinito da criatura é um infinito que a própria criatura não está em condições de esclarecer. Nesta medida, essa infinitude da criatura realça o seu carácter de finita. Ou seja, evidencia que a criatura se desconhece a si mesma. Aquilo que lhe é mais próprio, o próprio ser, é de tal natureza que escapa à sua própria compreensão. A sua infinitude realça a sua finitude na medida em que esta consiste, precisamente, na presença inabarcável daquela.

A demonstração matemática não é possível pela própria natureza do contingente. Mas os recursos da razão não foram esgotados e ainda nos resta a experiência. O conhecimento pela experiência é a percepção distinta mediante os sentidos, enquanto o conhecimento racional é o conhecimento por princípios. O princípio geral da razão afirma que nada é sem razão, isto é, que há sempre uma razão pela qual o predicado está no sujeito50. Por outras palavras, manda a razão que se algo é de determinado modo, haja requisitos suficientes51 pelos quais ela é assim e não de outro modo. No entanto, no que concerne ao contingente, a demonstração matemática não é possível.

Há aqui o delinear de um espaço para a liberdade que parte da infinitude humana facticamente experienciada como finitude, ou, mais precisamente, limitação. A liberdade deverá surgir precisamente neste espaço de avanço da alma relativamente a si própria. Por outro lado, poder-se-ia objectar, que a liberdade teria que ser diferente em Deus, já que Deus não pode ser infinito e finito. Mas continuemos a nossa análise. Tal dificuldade ainda não está completamente compreendida.

S e c ç ã o 4

DAS RAZÕES

Segundo Leibniz podem ser fornecidas razões quer para as acções das mentes, quer para as acções dos corpos. No entanto, as escolhas que fundam essas acções não são necessárias. Assim, a escolha tomada é uma possibilidade tornada existente, mas não a única possibilidade disponível. Deste modo, a explicitação da escolha incorre numa série infinita de explicações (na impossibilidade de indicar a identidade por uma proposição finita). Por outro lado, isso significa que a verdade da nossa escolha nos permanece oculta e que, de facto, não podemos conhecer verdadeiramente a série infinita que nos determina52 na escolha53.54

50 B, 2, “De facto devemos assumir como certo que Deus fez todas as coisas do modo mais perfeito, e que Ele nada faz sem uma razão, e que nada

acontece, em qualquer lugar, a menos que Ele que a tudo conhece, reconheça sua razão, ou seja, por que o estado de coisas é deste modo e não de outro.”

51 Por requisitos suficientes não se entendem as simples condições de possibilidade mas também as condições que, uma vez coexistentes, levem à coexistência de qualquer outra coisa. Cf. PNG, 25.

52 Note-se, portanto, o matiz, a tonalidade que distingue, no uso, a necessidade da determinação. Pretendemos que o uso forme continuamente uma compreensão prévia à altura em que tematizaremos essa distinção de modo formal.

53 Esta análise aqui feita por nós é corroborada pelas palavras do próprio autor em Ensaio, 120. “E se nem sempre notamos a razão que nos determina, ou antes, pela qual nós nos determinamos, é porque somos igualmente incapazes de nos apercebermos de todo o jogo do nosso espírito e dos seus pensamentos, o mais das vezes imperceptíveis e confusos, como de destrinçar todas as máquinas que a natureza faz jogar no corpo.” Aqui Leibniz vai mais longe do que a nossa análise pretende neste ponto. Assim, deixemos a sua análise mais para a frente. Queremos apenas fazer notar a mestria do filósofo que mostra ideias perspicazes e muito interessantes, provavelmente muito à frente do seu tempo. Qualquer coisa como um não consciente está aqui claramente presente nas suas considerações, bem como a noção da importância da mecânica somática na formulação da decisão, a um nível evidentemente somático (passamos a redundância). Leibniz pretende dizer que para conhecer a totalidade da série explicativa (demonstrativa) da nossa decisão seria necessário conhecer a totalidade do processo de formação da decisão, quer ao nível fisiológico, quer ao nível filogenético (remanescente no corpo), quer ao nível de tendências, inclinações ou forças espirituais não conscientes, bem como toda a história perceptiva do sujeito. De acrescentar a necessidade de conhecer a totalidade das relações entre a totalidade do universo e entre o resto do universo e o sujeito. A circunstância imediata e longínqua, interna e externa – a esse conhecimento haveria que se juntar uma grande capacidade de concentrar a atenção e uma avantajada inteligência, conhecer os possíveis desígnios de Deus e destrinçar todos os possíveis na sua mente. Só então se poderiam ponderar os possíveis e perceber o que realmente contou entre os que foram

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Da possibilidade da liberdade -13- Cap. I

As escolhas feitas pela mente carecem de necessidade. Esta tese é fundamental na medida em que Leibniz parece procurar uma noção de liberdade que tenha um alcance metafísico55. Mas é sobretudo fundamental na ressalva da santidade de Deus. O tema da liberdade é caro às religiões, na medida em que dessa discussão resulta a compreensão da natureza originária do humano e da sua imbricação com as noções de pecado e redenção (no Ocidente), e de religamento (nas religiões em geral).

A tentativa de salvar a natureza originária do humano tenta justificar a origem do mal fora da culpa humana. Por outro lado, a imperatividade de responsabilizar o humano pelos seus actos exige que as decisões surjam de si próprio, da sua vontade, culpando-o, absolvendo-o ou salvando-o. Surge então este dilema entre a natureza do mal que, para salvar a natureza do humano (e da natureza em geral, bem como a própria natureza divina), não deve ser considerada positiva, e a natureza das acções humanas que, de modo a manter o sentido de responsabilidade, deve sustentar-se sobre a liberdade da vontade.

Leibniz vê, aqui, a necessidade de rejeitar que o pecado seja escolhido pelo humano (o que tornaria a natureza humana em má e daria ao mal consistência real e positiva, dividindo o universo em Bem e Mal). Esta decisão de Leibniz é fácil de concretizar sem entrar em grandes problematizações nem colidir em demasia com a normalidade religiosa neste particular. Assim, como já se disse, a existência humana é entendida como uma situação de finitude incontornável dominada pelo fenómeno da confusão. A alma, dirigida à perfeição, escolhe o erro por confusão. Salva-se a natureza humana (inclinada à perfeição, ao bem, à felicidade e à verdade) e o acto criador divino (o homem é criado imagem de Deus). Por outro lado, esse acto humano confuso significa que o erro é permitido (portanto, escolhido56) por Deus.

Ora, o filósofo não pretende escapar a esta dificuldade. Pelo contrário, ele defronta-a, digladia-se com ela. Pretende resolvê-la.

Deus não escolhe os pecados. Deus escolhe (admitir) a existência de substâncias (ou acontecimentos57) possíveis, existência que envolve pecados livres58. A escolha da existência de uma substância envolve a admissão de todos os possíveis da sua noção completa59, ou seja, toda a série de coisas que nela estão contidas. A razão mais profunda e primeira, específica, para a escolha de uma série de coisas que inclui pecados não é do domínio da criatura. Mas a razão geral é a escolha da maior perfeição possível.

Deus escolhe apenas a perfeição (escolhe-se a si mesmo)60. Ao escolher a perfeição Deus escolhe, pois, o positivo. Ou seja, Deus não escolhe os pecados na série. Deus abarca a série de um só golpe e, se a escolhe, escolhe-a pela sua perfeição, por ser mais perfeita do que qualquer outra que pudesse existir em seu lugar, tendo em conta a totalidade do universo e a sua máxima perfeição possível. Portanto, Deus escolhe a perfeição da série de coisas contidas na Mónada e, nessa escolha são admitidas (escolhidas) as suas limitações por essa imbricação que têm com o que é positivo na série. A rejeição desses pecados é excluída por não haver outro possível cuja perfeição rejeite esses pecados. O pecado é uma limitação, é nada de positivo, não é escolhido por si próprio, mas é admitido pelo acto de escolha da perfeição61 cuja

existentes, compreendendo as razões próximas e profundas da nossa próxima decisão, compreender, portanto, a complexidade que a envolve e o verdadeiro desígnio que a enformou e tornou existente. Enfim, para se conhecer realmente uma decisão seria necessário ser Deus.

54 A situação do humano na facticidade (incontornabilidade) é de confusão.

55 De facto, não seria necessário refutar o necessitarismo para afirmar a liberdade, como de resto Leibniz sabe e expressa algumas vezes. B,1, por exemplo.

56 Relativamente a Deus não se pode afirmar que se pudesse, teria escolhido outra coisa. O que Deus quer que seja, é. O que Deus permite que exista, Deus quer que exista. Nada existe que Deus não queira que exista.

57 Note-se que se deriva do sistema de Leibniz que, em rigor, um acontecimento, um sucesso físico, natural ou outro, nada mais é que uma percepção nas Mónadas individualmente consideradas. Não há acontecimentos fora das Mónadas. Em rigor, tampouco existem interacções – tais termos são simplesmente usados por comodidade. Existem apenas Mónadas e (sem que este e signifique um acrescento quantitativo) as suas percepções. Todas as percepções são provocadas pelas percepções imediatamente anteriores (e, em última instância, pelo ser da própria Mónada). Cf. Mona, art. 23, pág. 47, DM §14, por exemplo. Tudo o que nos pode acontecer são pensamentos e percepções.

58 Dada a liberdade humana, a escolha da existência duma alma (substância individual ou Mónada) acarreta, obviamente, a sua liberdade e, consequentemente, os seus pecados livres.

59 A noção que Deus tem de cada Mónada envolve toda a série das suas percepções, e, consequentemente, todas as suas decisões.

60 O que, de resto, se verifica em todas as Mónadas criadas à sua imagem.

61 No que se refere a Deus não se pode invocar a escolha por confusão.

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Liberdade, possibilidade e determinismo em Leibniz Luís Mendes Seminário

Da possibilidade da liberdade -14- Cap. I

existência é estabelecida pela série que os inclui. Numa série, a rejeição de um elemento rejeitaria todos os outros.62 “Todavia, essas questões não são oportunas aqui.”63

S e c ç ã o 5

DA VERDADE E DAS PROPOSIÇÕES

A verdade consiste numa relação interna (à proposição) entre os termos, entre o sujeito e o predicado. Desse modo, elucida-nos Leibniz, tal como um número menor só é menor na medida em que está para outro número maior, de igual modo uma proposição só é verdadeira na medida em que o predicado está no sujeito. Esta analogia propõe a compreensão da verdade como identidade. Só é verdadeira a proposição que põe uma identidade entre dois termos.

Ora, tal como numa enunciação matemática se pode sempre subtrair o menor do maior, também numa proposição se pode subtrair o predicado do sujeito. Deste modo conclui-se que o predicado sempre está contido (disperso) nas coisas do sujeito 64 . A análise das enunciações matemáticas traduz cada termo por uma repetição (matemática) de si mesmo, quando possível (de 2+3=4+1, obter 5=5), ou, se não é possível, essa análise prolonga-se ao infinito (como no caso de pi). A tradução de um número irracional por um racional resulta normalmente numa série infinita.

De modo semelhante, as verdades demonstráveis, necessárias, podem ser traduzíveis em identidade65 (daí a demonstrabilidade), enquanto que as verdades contingentes são livres, não podem ser traduzidas, por qualquer tipo de análise, a uma identidade.

Apesar disso, as verdades contingentes e livres são do conhecimento divino, não demonstrativamente (o que seria contraditório), mas intuitivamente (de um só golpe)66.

O conhecimento divino incide sobre si próprio (Deus conhece-se a si mesmo absolutamente). Conhecendo-se a si mesmo, Deus conhece todos os possíveis, existentes e não existentes, conhece todas as verdades, originárias ou derivadas,67 conhece todas as coisas e os decretos do Seu livre arbítrio o mais importante dos quais é o de que todas as coisas aconteçam da melhor maneira pela melhor razão.

Por meio destes raciocínios se mostra a possibilidade da liberdade. A noção de necessidade deve ser delimitada como a relação cuja negação implica contradição. Então, resulta da exposição que até aqui se fez, que é certo que podem e devem haver verdades que não podem ser traduzidas, por nenhuma espécie de análise, a identidades ou avaliadas pelo princípio de contradição. Essas verdades consistem em séries infinitas apenas conhecidas plenamente por Deus. Tendo sido mostrado que, em toda e qualquer porção de matéria se encontra uma infinidade de substâncias, e que toda a Mónada actua sobre todas as outras e sofre as acções de todas as outras, ou seja, tendo sido mostrada a própria infinidade das porções do universo (a infinita analisabilidade) e a interpenetração geral e conexão mútua de todas as coisas – demonstra-se a possibilidade da liberdade das Mónadas, fundada sobre a contingência das coisas e da verdade.

As coisas que existem são possíveis que existem porque, pela sua perfeição, excluíram da existência outros possíveis que, consequentemente, não existem. A escolha da existência, tarefa divina, é uma preferência da perfeição, mas não uma necessidade. O que é poderia ser de outro modo. Da mesma forma há verdades contingentes tais que de si se podem dar razões, e destas outras razões, assim sucessivamente ao infinito, sem conseguir, por intermédio duma

62 B,2, “[…] a limitação e o pecado devem ser compensados por um outro bem não passível de obtenção [de outro modo].”

63 B,2.

64 Impõe-se aqui uma advertência. A análise destes tópicos não é inocente. Note-se sobretudo que o que quer que se conclua para a relação entre predicado e sujeito deve ser inferido, por analogia, para a relação entre as percepções e as Mónadas. Ou seja, o estado de coisas que aparece de cada vez à Mónada (sujeito) mais não é que um predicado.

65 A verdade foi resumida à identidade.

66 Visio. Isto é, visão (imediata). Este tipo de visão imediata não deve ser confundido com a visão empírica.

67 Ao conhecimento dos contingentes chama-se conhecimento médio.

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Da possibilidade da liberdade -15- Cap. I

análise, reduzir a análise a uma demonstração matemática. Há, portanto, verdades que não estão necessitadas, cuja negação não acarreta contradição e cuja explicação se estende infinitamente sem podermos abarcar completamente toda a série.

Tendo mostrado isto demonstrou-se a possibilidade da liberdade. O contingente, quer no que diz respeito à verdade, quer no que diz respeito à existência, é uma condição necessária (requisito fundamental) para a liberdade. Isto não significa que a liberdade humana seja entendida como reduzida à possibilidade de dizer não. Significa sim que a possibilidade da negação é condição de possibilidade da afirmação livre.

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Da liberdade -16- Cap. II

S e c ç ã o 6

CAPÍTULO II – DA LIBERDADE

“Mas, será preciso utilizar de sentidos inequívocos para as palavras a fim de evitar todo o tipo de locução absurda.”68

A Leibniz não interessa apenas que a liberdade humana se trate duma liberdade de ter feito outra coisa. Não lhe interessa apenas uma liberdade fundada sobre o contingente69. Interessa-lhe que a liberdade possa ser sustentada na espontaneidade. Interessa-lhe mostrar que a liberdade, além de ser possível é necessária.

Toda a pessoa possui liberdade de vontade, do mesmo modo que em Deus tudo é espontâneo. Uma vontade é um ímpeto em agir do qual estamos conscientes. Uma acção decorre duma vontade e da faculdade70 para a realizar. Uma vontade ocorre onde as condições para o querer e para o não querer não são indiferentes. A indiferença não é um requisito da liberdade, pelo contrário, a ausência de indiferença é fundamental para a formação duma vontade. Por outras palavras, a vontade só pode ocorrer onde existe uma preferência71. De resto, para os intentos deste estudo, convém-nos, precisamente, delimitar o conceito de vontade como preferência. A vontade é, portanto, um ímpeto para. Deve entender-se este para como remissibilidade. O sentido de uma vontade encontra-se no seu referente.

Essa é uma conclusão muito importante e deve ser explicada. A alma enquanto espelho72 do universo é o reflexo das coisas, é o reflexo do universo. E é, por princípio, reflexo de Deus. Este ponto é fundamental. É natural do espelho que não o possamos ver. Quando olhamos um espelho o que vemos é a imagem que nele é reflectida. Tome-se a imagem em consideração. A imagem é constituída por reflexo daquilo de que é imagem. É natural da imagem que desapareça com o objecto de que é imagem. Se sairmos de frente do espelho a nossa imagem sairá dele.

Assim, vemos melhor o sentido do ímpeto da vontade. A vontade do homem é esse conatus do espelho que se esforça por espelhar o objecto. Nesse sentido, a vontade humana é, primeiramente, um esforço de perfeição, à imagem de Deus. Isso significa que aquilo que o homem é depende daquilo que Deus é. O homem depende, Deus é. O Homem está caído na confusão, na sua confusão que o leva a perder-se de si próprio. A perder-se, no próprio esforço de perfeição, da própria perfeição para que é esforço. O humano caído na facticidade (a condição incontornável do humano) é um ser lançado na confusão do próprio ponto de vista, jogado na confusão do seu próprio mundo. Há, evidentemente, o perigo de se perder na confusão. Há o perigo de que o esforço para a perfeição (forma da própria vontade) se torne, facticamente, um erro.

68 A,1.

69 Leia-se, para uma pré-posição de leitura dos próximos capítulos, a correspondência com Clarke, sobretudo o 5º escrito: “Pois importa distinguir entre uma necessidade absoluta e uma necessidade hipotética […], entre uma necessidade que tem lugar porque o oposto implica contradição, e que é designada lógica, metafísica ou matemática, e uma necessidade moral, que leva o sábio a escolher o melhor e todo o espírito a seguir a inclinação mais forte.”. (Ed., Erdmann, p. 763, segundo tradução de Adelino Cardoso em introdução a DM)

70 Facultas. Habilidade. Poder. Mas, em sentido rigoroso difere de capacidade no sentido em que se pode ter a faculdade da visão e não se ter a capacidade.

71 Utiliza-se a palavra preferência no sentido de inclinação da vontade, um esforço espontâneo fundador da liberdade. Difere, portanto, do termo sentiment, traduzível também por orientação preferencial ou sentimento, mas que Leibniz usa com o significado de uma orientação preferencial do espírito num ou noutro sentido. Os sentimentos ou orientações preferenciais não são voluntários, pelo contrário, a sua formação é insensível e ocorre no espírito manifestando-se apenas enquanto orientação preferencial. Ora, também o esforço da vontade não é formado livremente, posto que é a própria vontade. A diferença, no entanto, é fundamental: enquanto que o esforço é voluntário, isto é, formado em sede da vontade, definindo-a espontaneamente, o sentimento é marginal a essa vontade e pode opor-se-lhe. Não deve confundir-se sentimento com opinião, pois embora a característica fundamental dos dois seja a formação insensível, à margem da percepção e vontade, a opinião manifesta-se com a aparência de juízo auto-justificado, precisamente enquanto não evidencia a necessidade de justificação. Pelo contrário, o sentimento não se mostra de maneira teórica, mas como uma orientação preliminar, anterior a qualquer formação de opinião. Isto nada diz, sem uma descriminação posterior, que uma opinião tenha mais ou menos valor que uma orientação. Significa que, se um deles acerta o alvo do que está em causa, tal é contingente e indistinguível.

72 DM, 46, “toda a substância é como um mundo inteiro e como um espelho de Deus, ou melhor, de todo o universo, que cada um exprime à sua maneira”.

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Da liberdade -17- Cap. II

Por outro lado, tal remissibilidade implica que a própria possibilidade da liberdade reside nesse para do esforço enformador da vontade como esforço para. Tal como a imagem existe apenas enquanto o objecto estiver diante do espelho. Daí que, para Leibniz, a noção de graça fosse da maior importância. A ideia cristã da imagem torna a graça divina num fenómeno fundamental para a compreensão da própria antropologia cristã. A graça é, por seu lado, fortemente condicionadora da ideia de liberdade, dentro da reflexão cristã, mas sobretudo para a reflexão protestante. Leibniz reforça, por isso, sobretudo a ideia de espelho. O filósofo está completamente ciente de que a defesa filosófica da liberdade necessita, acima de tudo, da prescrição da primordialidade da vontade. Mas a primordialidade da vontade, compreendida como exclusão de qualquer coisa anterior73, traz consigo o problema da prescrição. Isto é, a primordialidade não pode ser se não prescrita pelo filósofo, pois é por definição não explicável.

A indiferença da vontade é, pois, rejeitada por Leibniz que considera fundamental que a vontade seja um esforço para. A inclinação é a verdadeira essência da vontade. Não faz sentido, pois, exigir da vontade uma indiferença que a descaracterizaria.74 Em contrapartida assere a primordialidade da vontade. Como devemos conceber esta primordialidade? Com certeza, como espontaneidade. Mas assim estamos apenas a adiar o problema, pois como devemos conceber esta espontaneidade? Entendamos que a dificuldade não está em entendê-la, mas em fundamentá-la. Não é possível dar uma razão daquilo que é, por definição, a ausência de razões. A ausência de razões não é abarcável pela razão. Percebemos que se adie o problema mais uma vez: Deus escolhe o mundo melhor porque quer.75 O problema é adiado da discussão antropológica, a qual passa em stand by para a teológica.76 Mas, sendo a indiferença rejeitada e a primordialidade posta em seu lugar, devemos determo-nos na importância dada às noções de espelho/reflexo/imagem que ocupa tantas secções em tantos escritos do autor.

A imagem é posta no espelho por uma espécie de emanação do objecto. É a presença do objecto que mantém a imagem. Por outro lado, o espelho permanece não-visto, de tal modo que o podemos tomar pela imagem. A imagem origina-se no espelho como imagem-do objecto. No espelho não há causalidade relativamente à imagem. A imagem que o espelho reflecte não depende de uma causa no espelho. O mesmo espelho reflecte várias imagens sem que nele nada se altere. É o objecto que muda. De igual modo, não há nenhuma causa nem nenhuma razão para a decisão – relativamente ao humano, a vontade é primordial, é o momento zero, o momento constituinte de si mesmo. Relativamente ao seu objecto, ela reflecte aquilo para que tende, reflecte a perfeição, mas reflecte, também, a confusão do ponto de vista77. Estas observações são fundamentais. E constituem um pano de fundo para a compreensão da tese de Leibniz segundo a qual a perfeição (as razões duma vontade), inclina sem necessitar. A nossa decisão decorre, portanto, ou da perfeição do objecto, ou da imperfeição do espelho. Assim há, de facto, uma relação entre a constituição (o que em cima nos pareceu não existir) do espelho e a imagem. Contudo, esta relação não é a causa da decisão. Tal como a minha imagem num espelho não é causada pela superfície do espelho, mas pela minha presença diante do espelho. Contudo, se o espelho estiver partido ou deformado, a imagem vai ser corrompida, sem que, com isso, se altere a remissão da minha imagem a mim. Por outro lado, a imagem também não surge pela razão de eu me ter postado diante do espelho. Eu posso postar-me diante de uma parede de pedra que ela não me devolve nenhuma imagem. Ora, a superfície do espelho é tal que reflecte. Contudo, se a minha presença diante do espelho define os contornos da imagem, a imagem surge na superfície do espelho sem, propriamente, ser causada por mim. Percebe-se que a imagem seja definida pelo objecto de que é imagem

73 Sobre Belarmino, Grua, II, p. 302.

74 A, 3, “Se a completa indiferença é requerida para a liberdade, então, certamente não há jamais um ato [actus] livre, já que penso que o caso em que tudo em ambos os aspectos é igual, certamente não ocorre. […]Nem penso que se possa produzir um exemplo no qual é a vontade [voluntas] que escolhe, desde que há [sempre] alguma razão para escolher uma de duas coisas;”. Ver a expressão muito clara em DM, 37, “toda a vontade supõe alguma razão de querer e que essa razão é naturalmente anterior à vontade”.

75 A,3, “Deus produz o melhor não por necessidade, mas, porque o deseja.” Ver a discussão do assunto em DM, 37. Leibniz considera que o melhor, a verdade ou o bem não são o melhor, a verdade ou o bem devido ao facto de Deus os escolher, mas que Deus os escolhe de livre vontade inclinado por serem o que são. Isto é, Deus não tem qualquer poder sobre as essências. Nem sequer é criador do próprio entendimento. A verdade é únivoca e anterior à sua escolha. Deus produz o melhor porque assim o deseja. Não acontece que o melhor seja o melhor porque Deus o escolheu. Ver Teodiceia, art. 183 e art. 380. Doravante, Teod. seguido do artigo. A bibliografia indica a edição base.

76 Não estamos aqui a fazer uma depreciação. Estamos a fazer notar aquilo que, a nosso ver, se trata de uma opção consciente de Leibniz, e não, propriamente, de um dolo.

77 A, 1, “Disso se segue que uma razão que sempre força uma mente livre a escolher uma coisa a uma outra (se aquela razão deriva da perfeição de uma coisa, como ocorre em Deus, ou da nossa imperfeição) não elimina nossa liberdade.” Ver também que Leibniz considera possível corrigir a confusão do ponto de vista que, apesar de natural, não é, portanto, originária – não define o homem, define sim a sua quotidianeidade (o hábito e a assunção de que se dominam as coisas, os conceitos e os assuntos – por exemplo, Ensaio, 137 e em diante.

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Da liberdade -18- Cap. II

(de igual modo, a vontade é definida pela perfeição de que é esforço). Percebe-se que a imagem seja apresentada pela superfície do espelho (tal como a vontade depende da imperfeição do humano, da sua confusão, da facticidade da sua existência, enfim, da sua constituição). Mas não podemos dizer que a imagem é causada por nenhuma dessas realidades, tal como a vontade não é necessitada pela inclinação nem pela confusão, apesar de decorrer delas. A imagem é projectada ali, surge, estampa-se. De semelhante modo (a analogia vale o que vale) a escolha surge da inclinação para a perfeição e da constituição da alma, mas não necessariamente. A constituição da escolha é espontânea. Até ao momento da escolha, a vontade não está comprometida com nenhuma escolha, nenhuma escolha existe, apesar de qualquer demonstração que se possa fazer. O ter-se a vontade comprometido com uma escolha e não com outra é puramente contingente78. Uma demonstração (se de tudo se pode dar uma demonstração) seria apenas hipotética79. O contrário seria possível.

Imagine-se, agora, um mundo em que os sujeitos conscientes são espelhos de facto. Um espelho perfeito, mesmo que se visse ao espelho, não o saberia, sobretudo se, ao contrário dos espelhos que conhecemos, não representasse exactamente apenas aquilo que está à sua frente. Imagine-se que esses espelhos reflectiam, cada um à sua maneira, um mesmo objecto que nunca estava mesmo às suas frentes. Imagine-se que esses espelhos se viam a um espelho regular. Que veriam eles? Não veriam, com certeza, que tinham a forma de espelho. Precisamente, veriam outra coisa que a forma de espelho, veriam o conteúdo reflectido nessa forma (por assim dizer). Mas, enquanto sujeitos conscientes de si, por eles não pensava Deus. Ou seja, eram eles próprios que se olhavam nesse espelho sem compreenderem plenamente o que viam, mas sobretudo sem saberem que não o compreendiam. O ponto de vista constituído pelo seu olhar (dum desses espelhos) era o seu ponto de vista, e não o ponto de vista daquilo de que eram imagem. Esse seu olhar surgiria espontaneamente dele, com uma originalidade que só poderia ser dele. Cada um desses espelhos não seria como um canudo por onde o objecto olhava. Pelo contrário, apesar de serem espelhos, cada um seria um olhar absolutamente próprio, incomunicável e original.

S e c ç ã o 7

DA ESPONTANEIDADE

Ora, tendo nós dito que todas as existências (excepto a de Deus) são contingentes e espontâneas, assere-se que a existência das almas e as suas vontades são contingentes e espontâneas, como, aliás, decorre do facto de que Deus escolhe a perfeição porque quer, uma vez que as existências particulares procedem da escolha divina pela perfeição. Assim, toda a existência particular e, de facto, a existência da totalidade das Mónadas, são devedoras e são explicáveis pelo princípio da perfeição. Isto vale para a existência das almas (cuja perfeição inclinou Deus a escolhê-las), e vale para as escolhas das almas humanas (pois é a perfeição da possibilidade que leva a alma a decidir-se por dar-lhe existência). A liberdade é presidida pelo princípio da perfeição. A liberdade humana é presidida, então, pela procura da perfeição que deve ser entendida como a procura da felicidade.80

78 Note-se que tudo o que é contingente (o que pode não acontecer) tem uma existência fundamentada no princípio da perfeição (o melhor vem à

existência). De facto, a vontade é a procura do que é melhor e, nessa medida, reflecte sempre isso que busca. Por outro lado, a vontade não é sempre (e na maioria das vezes não é) capaz de discernir verdadeiramente a perfeição real das coisas. Encontra-se, aí, com o erro. Note-se que, numa perspectiva global, a decisão tomada é sempre a melhor. Este melhor aqui é um ponto de vista supra-humano. Quando um humano cai no erro e julgando estar a escolher o melhor, escolhe algo que não o é para si, não deixa de estar a escolher o melhor do ponto de vista divino (totalitário). Note-se, portanto, que conforme se fala do ponto de vista divino ou humano, também as razões apresentadas serão diferentes. Além disso, a escolha divina é prioritária e define a primordialidade da vontade pela perfeição. Essa escolha, do ponto de vista humano, portanto, segue ainda a perfeição, não vendo assaz claramente as coisas. Assim, o homem julga escolher, por si, o melhor, mesmo quando escolhe o pior; e mesmo quando escolhe o pior, o homem escolhe o melhor dum ponto de vista supra-individual.

79 Carta a Bourguet, 1716, G.P., III, p.588, “a sequência das coisas é sempre contingente, e um estado de modo algum deriva necessariamente de um outro estado precedente […]. A conexão entre dois estados é uma consecução natural, mas não necessária, como é natural à arvore dar frutos, embora possa acontecer por certas razões que os não dê”. Ver a discussão do tema em DM, 50 e seguintes.

80 DM, XXXVI, pág. 85, “Porque a felicidade é para as pessoas o que a perfeição é para os seres”. Ver também que o prazer deve ser entendido como sentimento de perfeição – por exemplo, Ensaio, 137.

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Liberdade, possibilidade e determinismo em Leibniz Luís Mendes Seminário

Da liberdade -19- Cap. II

Apenas a existência de Deus pode ser explicada pela própria definição81. Todas as demais existências são meramente possibilidades entre outras possibilidades que existem meramente em

função da sua própria perfeição. Esta perfeição não é uma perfeição da sua definição. Este ponto é fundamental. Não é porque uma coisa é mais bela ou mais perfeita em si mesma que ela é preferida. Ou, reformulando, a perfeição não reside nas características de uma dada possibilidade em sua própria noção. A verdadeira perfeição deve ser buscada “em uma comparação82 com as demais coisas”83. Significa isto que a perfeição de uma coisa é aferida pelo conjunto das perfeições nas relações estabelecidas84 entre a totalidade das Mónadas (na totalidade do universo).

Esclareça-se que, por totalidade do universo, não se entende a mera soma das Mónadas presentes num dado momento. Também não se entende por totalidade do universo a mera soma das Mónadas que existiram, existem e existirão. Por totalidade do universo entende-se todas as Mónadas na sua referência mútua, quer enquanto existem, quer enquanto existiram, quer enquanto existirão. Há, portanto, duas anotações fundamentais. Por um lado deve referir-se que se tomam em consideração todas aquelas que tomam existência (no passado, no presente e no futuro). Por outro lado, não se trata de uma mera soma, o que significaria um resultado acumulado posteriormente, isto é, o seu sentido resultaria dessa soma e da junção de todas as partes somadas. Pelo contrário, a totalidade do universo é anterior às suas partes, ao sentido de cada uma das Mónadas em particular.

A totalidade do universo é anterior a cada uma das suas partes. A ordem que rege a estrutura sistémica endógena universal é contingente85, espontânea, não no sentido de sem sentido, arbitrária, mas no sentido em que obedece ao princípio da conveniência perfeita86. A inteligibilidade do universo não é matemática, nem é logicamente demonstrável87. Nunca existiu, segundo Leibniz, um nada originário, pois seria pressupor a ordem do tempo antes do tempo. Nunca existiu um caos originário, pois essa originariedade significaria ausência de universo (a ordem no sentido que descrevemos). O mal nada tem de primitivo, e o caos, lugar da ausência da ordem do universo (ausência, portanto, de harmonia ou de conveniência perfeita, ausência de perfeição), portanto, lugar do mal, nada tem de primitivo, nada tem de existência. O erro é um desacordo entre o que se visa e o que é visado. Um erro erra porque falha na conveniência daquele que erra, mas um acerto quando visto dum ponto de vista global. Esta vista global é anterior a toda e qualquer existência. Uma possibilidade vem à existência na medida em que, por uma conveniência perfeita, entendida nos termos que vêm a ser descritos, é preferível a todas as outras que poderiam ocorrer no seu lugar. Portanto, percebe-se agora, todo o universo está em cada uma das suas partes, tal como Deus está em todas as suas criaturas88, apesar de não ser possível que uma substância criada tenha influência sobre outra89.

81 Note-se que, em rigor, Leibniz discorda da tese que da simples definição de Perfeição e de Deus como ser perfeito se deduz a sua existência. A

tese de Leibniz é que, se se mostrar que Deus é possível, então Deus existe necessariamente. Ver DM, 67. Confrontar com Quos Ens Perfectissimum Sit Possibile, G. W. Leibniz, Novembro de 1676. Disponível em http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm.

82 Usando a linguagem normal porque não há outra maneira de o dizer. Obviamente, sendo rigoroso, jamais se pode dizer que existem relações entre Mónadas ou possibilidades de Mónadas. Estas dificuldades criadas com o hiato entre o uso prático e o uso rigoroso da linguagem são das que mais confusões criam entre comentadores. Veja-se art. 51. de Mona.

83 A, 1.

84 Reforce-se a nota de esta linguagem é prática mas não rigorosa. Em rigor, para Leibniz, não existem relações entre seres.

85 Como se disse acima, nada pode justificar o que, por definição, é ausência de razão. Ver Carta a Magnus Wederkopf (Maio 1671).

86 Conveniência perfeita ou harmonia geral. Ver, a respeito, DM, 41, “Daí que não seja preciso duvidar de que a felicidade dos espíritos seja o fim principal de Deus e que ele a realize tanto quanto o permite a harmonia geral”. A harmonia geral é, portanto, princípio ordenador, orientador (ontologicamente anterior à existência individual de cada ser).

87 Pelo contrário, trata-se de um exercício de inteligência (divina). É um axioma metafísico e ontológico. É possível dizer, embora não iremos agora desenvolver a questão, que se trata de um axioma antropológico, escatológico e mesmo praxiológico.

88 Ensaio, 45.

89 Ensaio, 143. Quanto à questão de saber se, então, as coisas existem fora de nós, leia-se DM, 53, “E como esses fenómenos [que se passam em nós] mantêm uma certa ordem conforme à nossa natureza [que é conforme ao universo] ou, por assim dizer, ao mundo que está em nós, donde resulta que possamos fazer observações úteis para regular a nossa conduta, que são justificadas pelo êxito dos fenómenos futuros, e que assim nós possamos frequentemente julgar a respeito do futuro pelo passado sem nos enganarmos, isso bastaria para dizer que tais fenómenos são verdadeiros, sem nos preocuparmos se eles estão fora de nós e se mais alguém também se apercebe deles. No entanto […] as percepções ou expressões de todas as substâncias se entre-respondem […]. […] nada nos pode acontecer a não ser pensamentos e percepções […].”

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Liberdade, possibilidade e determinismo em Leibniz Luís Mendes Seminário

Da liberdade -20- Cap. II

O universo está em cada uma das suas partes por força da sua ordem enquanto totalidade (doadora de sentido) e, assim, é em todo lado como aqui, e sempre e em todo o lado como entre nós90. Tal como “o presente está grávido do futuro e carregado do passado”.91 Assim, tudo está ordenado perfeitamente em harmonia com tudo, na medida em que tudo é compatível com tudo. Tudo está coordenado de uma vez por todas podendo nós – como se diz em PNG, §13, 28 – conhecer todo o universo em cada alma92 se pudéssemos desdobrar todas as suas dobras.93

O universo é, pois, uma unidade. Uma unidade de sentido, de perfeição, anterior a cada uma das suas partes. Uma coisa existe, pois, na medida em que é mais perfeita tendo em conta essa ordem universal. Assim, essa busca do próprio bem que encaminha cada um e da qual não nos podemos desprender94, é determinada por uma ordem mais profunda que cada um desconhece. As decisões erradas que cada um toma não negam essa liberdade de prosseguir o caminho do bem próprio, pelo contrário, confirmam essa busca. A decisão errada, fruto do nosso encontro com as coisas confinado por um hábito que desconhecemos, significa apenas que a vida ocorre dentro da vida, estando por ela determinada. Por outro lado, nós temos as nossas próprias imperfeições da nossa própria natureza limitada95. A nossa limitação reside nessa necessidade de não estar no mesmo lugar, na inquietação, na desatenção própria do ponto de vista ocupado com as exigências do corpo. Esta ofuscação do posto de vista disperso pela curiosidade é maravilhosamente expresso no Ensaio, 123: “Ligamo-nos às pessoas, às leituras e às considerações favoráveis, a um certo partido, não prestamos atenção àquilo que vem do partido contrário e, mediante tais habilidades e mil outras que usamos o mais das vezes sem intenção expressa e sem pensar nisso, chegamos a enganar-nos, ou, pelo menos, a alterar-nos, a converter-nos ou perverter-nos segundo aquilo que tenhamos encontrado”. Isto significa um moldar (o humano é um espelho) àquilo que se encontra. Um moldar que tolda o humano de tomar atenção a todas as considerações relevantes. O humano no seu encontro com o seu mundo que está nele próprio molda-se à imagem do mundo, desviando-se, portanto, do seu próprio bem. Por outras palavras, o ver desaparece na coisa vista. Assim, a lógica da vida pode permanecer impassível no seu passo desviado (na medida em que falha o alvo), e, precisamente enquanto pressupõe deter o sentido da vida (a procura do próprio bem mostra-se sempre referida a algo), não evidencia que possa ocorrer um desvio relativamente à procura que se anuncia (a procura do próprio bem). Na medida em que a vida lançada na procura do próprio bem desliza continuamente nesses objectos continuamente referenciados, não se esclarece o sentido dessa busca, não se evidencia nenhum falhanço, o erro prossegue sem exigir nenhuma reflexão fundamental sobre o sentido da vida.

Esta descaracterização do ponto de vista não deve levar-nos a desconsiderar a amplitude da liberdade. A liberdade não é acertar necessariamente. Uma das possibilidades presentes no jogo é perder. As razões, sejam convenientemente96 lidas ou não, forçam as mentes livres a escolher uma coisa a uma outra. Mas não eliminam a nossa liberdade.97

Entretanto, obviamente, o erro não evidenciado continua em total acordo com a lógica universal. Tal torna-se claro quando se percebe que, apesar de todos os erros que se cometeram na vida, o universo anda para a frente inexoravelmente. Esta facticidade força o humano a conviver com os seus próprios erros. O humano compreende-se então como um momento do mundo. Nesse mundo ele convive com os seus actos, actos que fazem parte dele, que são percepções suas. Que são a sua vida. No entanto, essa convivência pode ser precisamente o motor da reflexão cuidada e atenciosa, a qual evitará erros futuros.

O erro evidenciado, notado, que causa moça e arrependimento leva o humano a considerar que tais actos não foram seus. Tal é, obviamente, falso, segundo Leibniz. Um erro é uma possibilidade tornada existente pelo ponto de vista confuso e desatento. Não nega a liberdade do sujeito, por mais que este afirme que não queria ter feito isso. Pois, a verdade, é que quis. O não querer ter querido surge agora com um entendimento que se considera a si mesmo esclarecido por esses erros de que deu conta. Mas o não querer ter querido não elimina o facto de que se quis. Esse erro

90 Ensaio, 45

91 Ensaio, 30. Reformula-se em PNG, §13, 28, “o presente está prenhe de porvir, o futuro poder-se-ia ler no passado, o remoto exprime-se no próximo.”

92 Ver DM, 46, “[cada alma] exprime, se bem que confusamente, tudo o que acontece no universo passado, presente, ou futuro, o que tem alguma semelhança com uma percepção ou conhecimento infinito”.

93 A existência é, portanto, o desdobramento em próprio. Existir é desdobramento de ser.

94 Ensaio, 110, “é impossível desprender-se do bem próprio”.

95 Mona, 51.

96 De acordo com a procura do bem próprio.

97 A, 1.

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faz parte, irrevogavelmente, da sua essência. O seu ser comporta a totalidade das suas percepções, o que inclui a totalidade das suas acções.

Sendo quem se é, esses erros fazem e sempre fizeram parte do ser que errou. À escolha divina presidiu a anterioridade do melhor dos mundos possíveis, e nessa escolha incluíram-se todas as almas que vieram a errar e todos os seus erros. A justificação primeira para o erro é essa escolha do melhor dos mundos possíveis. Para o melhor dos mundos possíveis exigem-se todos os erros humanos e, de resto, todas as misérias do mundo. Todos os terramotos, todos os flagelos, todos os ditadores, todos os assassinos, todos os suicidas, todos os que se arrependem. E nada disso é necessário, e tudo isso faz parte do melhor dos mundos possíveis. Apenas o mais perfeito existe98.

Ora, parece então que será possível, na ordem dos acontecimentos, encontrar as razões do acontecer das coisas. De dois acontecimentos, se um deles tem que ocorrer, então sabemos que ocorrerá o melhor. Podemos antever qual dos dois existirá. E, de facto, na ordem dos acontecimentos, por vezes avaliamos eficazmente o futuro a partir de considerações passadas.

Diz Leibniz que “na verdade, isso pode ser demonstrado” 99. Ora, pode ser demonstrado pelas razões que permitem a antevisão. Esta antevisão trata-se de uma desocultação. Demonstrar significa, neste contexto, tornar certo. Esta utilização do termo não é idêntica em todos os textos de Leibniz. Aliás, em textos posteriores demonstrar significará quase sempre demonstrar matematicamente. No entanto, ser certo não significa ser necessário. Nestes casos em que se fornecem justificações razoáveis mas não obrigadas pelo princípio de contradição, deve falar-se de necessidade hipotética. A ser necessidade, é uma necessidade em hipótese, uma hipótese que propõe uma necessidade mas que não consegue demonstrá-la matematicamente.

Existe, portanto, uma determinação100 geral de Deus em criar aquilo, e apenas aquilo que é mais perfeito101. Ora, isso significa, como o autor bem compreende e escreve no prefácio da Teodiceia102, que a sabedoria de Deus é fonte de perfeição (por o ter escolhido), que Deus é um criador que organiza tudo perfeitamente, que devemos fazer o nosso dever e contentarmo-nos tranquilamente com aquilo que nos acontecer, pois poderemos resistir às adversidades e confiar no bom mestre do universo (uma espécie de fatum christianum, como lhe chama Leibniz por analogia ao fatum estóico). Ora, deve advertir-se que esta passagem não significa que o homem não tem afinal nenhum poder, apesar da sua liberdade. Não se deve depreender que o humano, por mais que se esforce, esse esforço é inútil.

Leibniz afirma, de um modo muito optimista, que qualquer adversidade pode ser ultrapassada pelo humano (o que é bastante para estar tranquilo mas não contente, como ele diz). Afirma também que nas coisas do mundo lidamos com um bom mestre, Deus (e que isso sim, é bastante para estar contente).

Há também qualquer coisa de muito forte nesse dever de dar o máximo de nós e nos contentarmos com o que acontecer. Isto significa que, quando fazemos um trabalho, o nosso esforço deve ir ao encontro da perfeição. Dar o melhor de nós é fazer o melhor, retirar o melhor do mundo, aproveitar o cerne da vida. Parafraseando Locke, Leibniz concorda que a não perenidade dos prazeres (pequenas perfeições contingentes e efémeras) não é razão para se abdicar deles. Mas esses prazeres não nos deverão desencaminhar do último fim, do último querer da vontade, da forma de toda a liberdade, a saber, a perfeição. A perfeição é concordante com cada um, na medida das suas posses. E é aqui que a compreensão começa a desenvolver-se: na medida do esforço e do poder de cada um (liberdade é, não apenas um conatus, mas também uma facultas), devemos empenharmo-nos (ligar vontade e poder) ao máximo nessa execução de nós próprios. Esta execução de nós próprios (fazer caminho a caminho da perfeição), é a verdadeira finalidade de cada um. E,

98 A, 1.

99 A, 1.

100 Tome-se determinação, por enquanto, no sentido geral de certo mas não necessário. Do que se disse até aqui estamos já em condições de retirar uma elação importante para o futuro. Apresentamo-la em nota para não quebrar o texto principal. Dizer que o sistema é determinado significa apenas que se é capaz de dar a razão pela qual se deu a sucessão entre estados de coisas ou entre percepções (dado que, como já se deve ter evidenciado, cada Mónada é uma percepção). Isto é, significa dar a razão pela qual um certo estado ou percepção deriva de outro (um estado de coisas é, no limite, uma percepção cujo sentido depende do sujeito de que é percepção). Note-se também que se deve entender um sujeito ou Manada substancial no sentido em que é um sistema. O universo é, pois, um sistema de sistemas sendo que, cada sistema é determinado.

101 Como Leibniz diz pratica e textualmente em A,1.

102 Ver Teod., ed. Project Gutenberg, Theodicy, Essays on the Goodness of God, the Freedom of Man and the Origin of Evil, G.W. LEIBNIZ, Edited with an Introduction by Austin Farrer, Fellow of Trinity College, Oxford, Translated by E.M. Huggard from C.J. Gerhardt's Edition of the Collected Philosophical Works, 1875-90, em The project Gutenberg, www.gutenberg.net. Cota [54-56]. Referimos aqui esta edição porque se encontra bem cotada.

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nessa medida, cada um faz-se a si mesmo de acordo com a forma divina (perfeição). Assim, cada um se cumpre, se executa livremente (em acordo com a sua forma originário, a saber, tensão para o absoluto, isto é, para a perfeição de si mesmo). O cumprimento de cada um é a execução plena de si mesmo, como se disse, que deve ser compreendida como execução das possibilidades mais perfeitas de cada um. Cumprir-se é, para cada um, fazer o melhor de si.

Cada substância individual é, como se viu, a totalidade das suas percepções, e nada mais é cada um que as suas percepções. Cada percepção é, antes de existir, apenas uma possibilidade da Mónada. Uma possibilidade é uma hipótese. Cada alma deve empenhar-se em esclarecer a sua vontade de modo a não ser apanhada desprevenida pela confusão natural do seu ponto de vista. Cada ponto de vista deve tentar desanuviar-se (aclarar-se), compreender-se a si mesmo. Como se viu, o ponto de vista deixa-se ir pela sua primeira consideração sobre os estados de coisas. Essa consideração não mostra a evidência de esclarecer o oposto (as demais possibilidades de si mesmo). A vontade esclarece-se, precisamente, desenvolvendo a confusão. Desenvolver a confusão significa reter o olhar de modo a ver. Significa não deixar o ver ser sugado pelas coisas, mas deter esse olhar sobre as coisas, de modo a ver. Esta atenção do olhar desenvolve a confusão, mostra o que se escondia nas suas dobras. Tornando essas percepções claras (apercebendo-se delas), o olhar tem a possibilidade de desocultar as relações entre os estados de coisas e tornar certo o futuro. Este esclarecimento da vontade é fundamental para a liberdade. A liberdade só pode ser compreendida como liberdade se, e apenas se, o esforço de perfeição se encontra com o poder de perfeição numa execução fáctica. Isto é, se se dá existência à possibilidade mais perfeita de nós mesmos. Ser livre é dar vazão à nossa perfeição. Ser livre é construir a nossa perfeição.

Note-se, portanto, que a liberdade não consiste na possibilidade de ter acontecido outra coisa que aquilo que acontece de facto103. A liberdade não é apenas contingência, embora esta seja um requisito necessário daquela. A liberdade consiste em agir em caminho da perfeição segundo o esclarecimento da razão.

A liberdade dá existência ao que é certo, isto é, ao que a razão mostrou ser mais perfeito de entre as possibilidades disponíveis (uma possibilidade é, em rigor, disponível – se não estivesse disponível significaria uma possibilidade não aberta, o que seria uma contradição). Ora, a disponibilidade é o conjunto das possibilidades em aberto que uma determinada alma tem à sua consideração. Esclarecer-se pela razão significa, então, ater-se em abrir a possibilidade do maior número de possibilidades possível. Isto é, ao esclarecer-se, a vontade abre mais o leque das possibilidades que tem à sua disposição. Quer dizer, em rigor, tais possibilidades estavam já, de facto, disponíveis (tal como um rico pode dormir debaixo da ponte), mas não se tinha apercebido delas. Estas possibilidades trazidas à consideração pelo esclarecimento trazem um aumento qualitativo ao ponto de vista aberto (que se apercebe de si mesmo, isto é, que não está em confusão). Na prática isto significa que a diferença entre errar o alvo e acertar pode estar neste esclarecimento. Ou seja, a possibilidade mais perfeita para um sujeito poderia estar em estado de confusão, não apercebida, portanto, dobrada para o ponto de vista que, assim, não a via. A liberdade estava, então, desembarcada, embargada. O esclarecimento desdobra o ponto de vista, abrindo novas possibilidades. O ponto de vista considera então mais possibilidades, de entre as quais há mais possibilidades de se encontrar a melhor.

Ora, então percebemos agora o sentido de que cada percepção resulta da percepção anterior. O estado de coisas provocado por essa execução resultou desse esclarecimento, desse leque de possibilidades em aberto posto à consideração do ponto de vista. A acção seria diferente se o esclarecimento não tivesse ocorrido. Sem o esclarecimento o ponto de vista poderia não ter tido acesso apercebido a essa possibilidade. Mas, note-se, se esse esclarecimento não tivesse existido, o estado de coisas futuro teria resultado desse não esclarecimento. Portanto, em qualquer dos casos, o futuro resulta do presente. Deus saberia. Contudo, o sujeito propriamente dito, não poderia saber isso que, precisamente, estava em definição. Por outras palavras, humanamente não havia nada para saber.

Isto significa que a melhor das possibilidades pode estar confusa, embargada. No entanto refira-se a advertência já feita de que o alargamento das possibilidades é qualitativo. Não há nenhum alargamento quantitativo real. Os possíveis são, de facto, os mesmos. Este aparente paradoxo não o é. Imagine-se um rico. Um rico pode, por princípio, andar pelas ruas roto, passar fome e dormir ao relento. É um possível. É possível ele fazer isso (não implica contradição). Contudo, dificilmente o rico, antes de se deitar, se lembrará da possibilidade de ir dormir debaixo da ponte. Perceba-se que, se o rico, antes de se deitar, esclarece-se as suas hipóteses e percebesse a sua possibilidade de ir dormir debaixo de uma ponte, então sim, esse possível estaria disponível. Pode dizer-se que essa possibilidade já estava disponível. A posteriori

103 Pode confirmar-se isto nas Confessio philosophi (1673). Propõe-se, por exemplo, o confronto com páginas 70ss., ed. Belaval (Confessio philosophi.

La Profession de foi du Philosophe., traduction et notes par Yvon Belaval, 1970, 2ª ed., pp. 8 -144).

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diz-se que se poderia ter feito coisas das quais não nos lembrámos. É, de facto, possível, mas jamais fora uma possibilidade.

Assim, como se vê, o significado fáctico (incontornável) duma possibilidade notada depende do significado dos possíveis não notados. Isto é, a importância do que se mostra depende do significado do que não se mostrou. Daí que Leibniz refira a nossa confusão natural como factor fundamental na constituição das nossas escolhas.

Desta maneira, o acrescento qualitativo não é quantitativo porque o número dos possíveis, em sede divina, é exactamente os mesmos. O alargamento é qualitativo, então, por pelo menos duas razões. A primeira é a mais óbvia: porque se alarga o campo de disponibilidade, isto é, o campo onde a possibilidade mais perfeita pode estar, aumentando a probabilidade de acertar no alvo. Não se trata de um aumento quantitativo porque o que acontece é um aclaramento do ponto de vista (ou seja, limparam-se os óculos). A segunda é menos óbvia: o alargamento abarca as próprias possibilidades que estavam já abertas antes. Ou seja, o alargamento do campo de disponibilidade dá um novo sentido às possibilidades já abertas. Ou seja, o significado de dormir na cama ganha um novo sentido a partir da consideração da nova possibilidade aberta de dormir na rua.

Ora, sendo o esclarecimento fundamental para a liberdade compreende-se que a liberdade suprema ocorra apenas em Deus onde todos os possíveis são possibilidades, e todas as possibilidades estão ao alcance do seu poder (excepto as contraditórias, mas essas também não são possíveis).

O contentamento surge, não da nossa resposta à providência divina104, nem da nossa resposta à natureza das coisas, mas de saber que lidamos com um bom mestre. Ora, este esclarecimento dá um novo sentido ao que foi dito até aqui. Isto significa que o esclarecimento da razão deve desdobrar o que está em causa até apanhar a ordem global das coisas. Isto é, a possibilidade mais perfeita, uma vez esclarecida, deve mostrar-se perfeita enquanto a substância individual da qual é possibilidade, se encontra num sistema universal de substâncias. Ou seja, a possibilidade mais perfeita para uma alma estabelece a conveniência perfeita (no sentido atrás analisado) para essa alma (tendo em vista a totalidade e a forma da perfeição total). Assim, note-se que fazer bem a alguém pode ser uma possibilidade excelente para uma alma, sem que essa possibilidade vise os prazeres105 efémeros e imediatos dessa alma106. Trata-se duma perfeição conveniente, se esclarecida. Isto significa afinal que provocar a felicidade do outro é uma das possibilidades do sujeito. Pode acontecer que essa possibilidade seja a mais perfeita do sujeito. O sujeito, então, provoca a felicidade de outro, sendo esse o factor da sua própria felicidade. O altruísmo é, pois, a felicidade em provocar a felicidade do outro. Em Leibniz não há qualquer coisa como um altruísmo desinteressado. A vontade não pode ser indiferente, como já se disse. O verdadeiro altruísmo é a coincidência entre essas duas perfeições, a do sujeito e a do outro, sendo que a felicidade do sujeito resulta da felicidade do outro. Não há aqui um utilitarismo, ou um oportunismo. Não se trata de provocar uma felicidade ao outro com o intento de aproveitamento, mas de que a felicidade do outro é a razão da felicidade do sujeito.

Outra anotação resultante da conveniência universal é que a possibilidade perfeita de um sujeito é o possível mais perfeito para a totalidade. Portanto, fundamenta-se não num solipsismo (como a teoria das Mónadas poderia levar a supor), nem num egocentrismo, mas na compreensão de que cada um é um sistema que espelha a totalidade e de que a totalidade é um sistema de sistemas que espelham a totalidade dos sistemas. E daqui resulta a impossibilidade de fazer demonstrações matemáticas do futuro, uma vez que essa demonstração iria ao infinito. Ora, o infinito tem sede apenas em Deus que o abarca de um golpe. Não há qualquer possibilidade de esclarecer o infinito. Apesar do infinito poder ser comparado.

O esclarecimento total é impossível, de tal modo que, facticamente, não é possível ao humano existir num ponto de vista teórico absoluto, o que exigiria essa compreensão ao infinito. Ainda assim, a constituição dum ponto de vista finito teórico tem uma função na vida, tem uma função praxiológica, como vimos.

Esta função inclui a compreensão de que tudo o que acontece, acontece para o melhor. Daí que nos devamos contentar com o que nos acontece, mesmo no caso do erro, mesmo no caso de, aparentemente, não nos favorecer. Assim, quer o erro tenha derivado dum não uso da razão, quer tenha derivado dum uso derivado, quer tenha resultado da simples impossibilidade de calcular o infinito, Leibniz afirma que esse erro é simplesmente um erro singular que não tem reflexo um erro total. Os nossos erros são acertos do ponto de vista divino. São erros certos, para nós, dada a nossa

104 Confirmar com o passo de Teod. referido anteriormente.

105 Um prazer é um sentimento de perfeição. Note-se a advertências já feita a este respeito mais acima.

106 Ensaio, 110, “Amar é ser levado a comprazer-se na perfeição, bem ou felicidade do objecto amado […] é impossível desprender-se do bem próprio”.

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limitação natural, e necessários para Deus107, que os vê na sua imbricação global. Portanto, todas as vezes em que supomos que nos enganámos, esta suposição resulta da nossa confusão. Quer tenhamos ou não instituído um ponto de vista teórico, uma coisa é certa, falhámos o alvo, não por não percebermos que iríamos errar, mas por não percebermos que essa escolha era a mais perfeita mas não pelas razões que supúnhamos. Vejamos este exemplo: o senhor X escolhe seguir mecânica. Ele dá-se mal em mecânica. O senhor X percebe, depois, que seguir mecânica foi um erro. Mesmo que o senhor X tenha pensado muito no assunto, o senhor X permaneceu num ponto de vista confuso (ainda que menos confuso que se não tivesse pensado no assunto). Permaneceu num ponto de vista confuso, pensa o senhor X, porque não se deu bem em mecânica. Isto é, o senhor X, quando pensa que deveria ter escolhido outra coisa, permanece num ponto de vista confuso, pois, de facto, as coisas deveriam ter-se passado exactamente da maneira que se passaram. O erro aqui é, pois, julgar que o acto de seguir mecânica é foi um erro. Do ponto de vista global, ter seguido mecânica foi o mais conveniente, ou então Deus não o teria permitido. A perfeição desse acto resulta de todas as perfeições que dele resultam, devido ao facto de que esse acto despoletará outros acontecimentos bons. Devido a esse acto acontecerão mais perfeições do que aquelas que aconteceriam se tivesse acontecido outra coisa no seu lugar. Então, se o senhor X constituísse um ponto de vista esclarecido suficientemente, perceberia que fez o que deveria ter feito, que universalmente, quer para ele próprio em particular. Isto é a afirmação de que de um suposto erro resultam acertos que justificam aquele e, além disso, mostram que afinal não foi um erro. Tendo seguido mecânica, o senhor X vem a aperceber-se que daí resultou ter conhecido a sua futura esposa, ter tido os seus filhos, vir a tornar-se um homem feliz108. Mas pode também acontecer que o ponto de vista não alcance este grau de elucidação. O senhor Y que seguiu física e se arrependeu vive amargurado para toda a vida, apesar de vir a encontrar nesse curso uma saída profissional ambiciosa, uma carreira de sucesso e a inventar coisas de muita utilidade para a medicina. Pode também acontecer uma situação que nos causa mais repulsa, a nós que nos deixamos levar pela primeira impressão do nosso esforço para a perfeição. Essa situação pode acontecer a um senhor Z que, tendo seguido matemática se veio a arrepender e a viver amargurado devido a isso. Assim acabou por perder na depressão todas as possibilidades ambiciosas109 que se lhe deparavam. Assim, não casou, não se satisfez com o emprego, não fez carreira, nunca se sentiu feliz. Ora segundo Leibniz, a sua vida foi a mais feliz possível.

Esta conclusão não tem muito mais para dizer. É, de facto, a posição de Leibniz e não há necessidade de tentar contemporanizar110 a sua posição. Segundo Leibniz é possível e mesmo necessário ao melhor dos mundos que ocorram desgraças nas vidas particulares, como é possível e até necessário que ocorram flagelos da humanidade e acidentes da natureza. Na nossa opinião esta posição não é, propriamente, optimista. O que Leibniz faz é procurar um enquadramento geral, um sentido global e assumir que, por vezes, um estado de coisas bom custa imensas dificuldades, labores e acidentes de percurso. O óptimo exige, também, o mal. Há males necessários, tal como um avanço civilizacional, não raro, é arrancado da escuridão à custa de sangue, sofrimento e morte.

A liberdade deve, portanto, ser compreendida por uma situação de esclarecimento. Contudo, do que se disse ressai, como também já se anotou, que parece que, esclareça-se ou não, tenha-se ou não liberdade, uma acção é sempre aquela que teria que ser. Voltamos a este assunto porque, uma vez que fizemos um avanço na análise dos dados, pode exigir-se também quanto a este ponto uma nova elucidação, a partir do avanço alcançado.

Há, portanto, a dificuldade dessa determinação das coisas. Esta determinação é múltipla.

107 Como já se disse, são necessários para Deus dada a escolha que ele fez. Esta necessidade não deve, portanto, levar-nos a considerar que Deus

não é livre quanto aos fenómenos contingentes do universo. Em Deus todas as coisas são espontâneas, pois se a sua escolha tivesse sido diferente, então sim, o que é poderia ser de maneira diferente. Apesar da sua inclinação para a perfeição. Tal como, apesar da minha inclinação para a Filosofia, eu poderia ter escolhido seguir mecânica. Não há nada de necessário em Deus escolher a perfeição e, portanto, este mundo, nem nada de contraditório em eu ter seguido mecânica.

108 Ensaio, 121, “os homens procuram o que sabem e não sabem o que procuram”.

109 Não há nenhum perjúrio na noção de ambição em Leibniz, muito pelo contrário, é fundamental que possamos tornarmo-nos ambiciosos. A ambição é essa capacidade de antevisão e de focagem em algo que não é presente, mas está distanciado no futuro. Esta capacidade é fundamental para que os humanos possam ressalvar-se das influências presentes e concentrarem-se em bens maiores mas ainda por existir. Ver Ensaio, 139.

110 Isto não significa que os modernos, seus contemporâneos, não tivessem, também, acusado o optimismo de Leibniz de ser inusitado. Leia-se, a propósito duma crítica, o Cândido ou o Optimismo, de Voltaire.

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Da liberdade -25- Cap. II

Em primeiro lugar, Deus, ao escolher livremente a perfeição determina todos os estados de coisas possíveis e existentes111.

Assim, também as almas estão determinadas, quer enquanto totalidade de possíveis, quer enquanto sistema de possibilidades, quer enquanto unidade de pensamentos ou percepções.

Deste modo, todas as nossas escolhas estão determinadas. Como já se disse, todas as coisas que existem devem espelhar-se em cada substância individual. Assim, podemos

resumir o problema dos estados de coisas às percepções. A questão da existência das coisas fora das substâncias é irrelevante, como se mostrou acima.

Dum ponto de vista metafísico a liberdade é assegurada pela espontaneidade da escolha divina. Mas, esta liberdade metafísica, tem um correspondente fáctico. A presciência de Deus resulta do seu claro entendimento das coisas. Assim, para Deus, que não decide com necessidade relativamente às criaturas112, as coisas não são necessárias mas espontâneas. Dizer que a presciência determina é o mesmo que dizer que Newton necessitou a natureza a comportar-se de acordo com as leis da gravidade.

A possibilidade da liberdade é assegurada pela contingência, isto é, pela não necessidade, pela não contradição da existência de percepções diferentes daquelas que existem. Uma dada percepção A existente não é necessária na medida em que, não-A, isto é, qualquer outra percepção, não implica contradição.

Ter-se-ia que mostrar ainda a sua facticidade, a sua incontornabilidade. Sem ser metafisicamente, não se pode falar da necessidade da liberdade. Essa necessidade resultaria sempre da liberdade divina, essa sim, necessária, uma vez demonstrada a necessidade de Deus.

A espontaneidade funda a liberdade. A ausência de causas exteriores funda o fenómeno da liberdade. Mas não a explicita. Todas as alterações nas Mónadas são, por princípio, espontâneas. Ora, nem todas as Mónadas são substâncias individuais tais que sejam consideradas almas. Nem todos os seres espontâneos são humanos.

Temos, assim, que a liberdade é qualquer coisa mais que a espontaneidade das Mónadas.

111 A,2, “Pois Deus, que antevê as futuras razões pelas quais algumas coisas devem existir em vez de outras, as antevê em suas causas com

conhecimento certo. E, na verdade, Ele tem um conhecimento certo delas e formula proposições que são necessárias, dado (supondo) que o estado do mundo, de uma vez para todas, foi estabelecido, ou seja, dada a harmonia das coisas.”

112 A,3.

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As Mónadas e as Almas, A Contingência e a Necessidade, -26- A Determinação e a Liberdade, Cap. III

S e c ç ã o 8

CAPÍTULO III – AS MÓNADAS E AS ALMAS, A CONTINGÊNCIA E A NECESSIDADE, A

DETERMINAÇÃO E A LIBERDADE

A Mónada e a alma são noções que se relacionam complexamente. Isto não significa que não sejam

simples. A Mónada e a alma são substâncias simples, mas complexas.

A SIMPLICIDADE DAS MÓNADAS113

Uma Mónada é uma substância simples, isto é, sem partes, princípio de toda a existência114. É, por assim dizer, a substância elementar do universo. Provindo do grego monas, preserva o sentido de unidade/totalidade.

A alma parece ser o princípio de unidade e acção, centro imaterial de vida na Mónada. Não é uma parte da Mónada. A Mónada não tem partes.

Portanto, a alma é uma unidade complexa (não compósita) que tanto é substância simples como princípio da unidade de um corpo (totalidade).

Praticamente, a alma é um tipo de Mónada específico, a saber, aquelas “cuja percepção é mais distinta e acompanhada de memória”115. A alma é qualquer coisa mais que uma simples Mónada (sem ser mais que uma Mónada, não é simplesmente uma Mónada, tal como o homem não é mais que um animal, mas não é simplesmente um animal – quando se diz que o homem é um animal há a necessidade de acrescentar mais qualquer coisa que não é necessário acrescentar quando se fala de qualquer outro animal).

A alma é uma Mónada específica. Alma e Mónada são substâncias simples. Uma substância simples (para evitar dificuldades) é de tal modo que percebe (pensa) no tempo, isto é,

sucessivamente, as coisas. A sua percepção é um contínuo. Não há paragens. O contínuo não é uma soma de instantes, mas uma continuidade.

Uma substância simples é a sucessão desses momentos, sendo cada momento uma percepção. A Substância simples é, pois, um contínuo de percepções. Cada percepção resulta daquela que a antecede por acção de si próprio (princípio interno). O seu interior jamais pode ser mudado. Trata-se de uma impossibilidade de princípio. É impossível. Uma substância simples não tem portas nem janelas116.

Cada percepção presente de uma substância simples resulta, por princípio interno, do seu estado precedente. De um estado, se isoladamente considerado e analisado, se podem retirar todos os outros. Assim, todo o passado se pode ler no presente, todo o futuro no passado. O presente está prenhe de futuro117. Toda a percepção, como se disse, procede de outra percepção.

Este princípio interno, portanto, determina a totalidade da substância simples. Entretanto, todas as substâncias simples são diferentes. Mas, tendo uma percepção, todas as outras se poderiam determinar certamente.

Note-se que a percepção presente é mais do que aquilo que a alma sabe. A alma espelha o universo, mas na medida em que o espelha, contém dentro de si a sua imagem. Cada alma é um mundo, à imagem do universo. Tudo se pode ver num presente duma alma. Mas essa possibilidade está vedada à própria alma que não pode aperceber-se de

113 Confrontar com Mona.

114 Op.cit. Art. 1.

115 Op.cit. Art. 19.

116 Op.cit. Art. 7.

117 Op.cit. Art. 22.

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As Mónadas e as Almas, A Contingência e a Necessidade, -27- A Determinação e a Liberdade, Cap. III

todas as suas percepções. Um estado presente (a percepção presente) é um infinito de percepções, a grande maioria confusa (não apercebida claramente). O grau da confusão é variável. Há percepções mais ou menos confusas.

A memória não é a simples presença, no estado presente, de todas as percepções passadas. O presente é sempre o resultado do estado passado, retendo-o118. Mas a memória não simplesmente isso. A memória retém percepções passadas de tal modo que ele é apercebido. Fornece, assim, uma consecução à razão, mas não é a razão119. A memória vem das percepções precedentes, percepções que foram repetidas multiplamente, ou bastante fortes. Gera-se, portanto, do hábito, da dor ou do prazer apercebidos no passado (sem que seja necessário que se se aperceba que esta memória resulta destes hábitos ou paixões).

A memória é também atributo dos animais, não apenas do humano. E, por vezes, o humano age ao jeito das bestas. Mas o humano deve usar de razão, do poder esclarecedor. A diferença é, mais uma vez, qualitativa. O humano incumbido das suas ocupações diárias deixa-se levar pela pressuposição de que o sol nascerá amanhã (fruto do hábito de que sempre assim tenha sido até aqui), mas nem o astrónomo sabe isso, nem o ajuíza por razão120. Não está em causa o que se faz mas o modo disso, isto é, a instalação de sentido em que se encontra.

A diferença de distinção da percepção deriva da aplicação da razão e na sua forma apercebida. A sua evidência com capacidade de esclarecimento é fundamental. As consecuções das percepções do humano não se fazem apenas pela memória, mas também pela razão capaz de analisar e sintetizar conhecimento, capaz de tratar a informação, capaz de demonstrações, de dar conta do que é certo, de evidenciar razões e de discernir das verdades necessárias.

S e c ç ã o 9

A COMPLEXIDADE DAS MÓNADAS

A alma humana é, portanto, uma alma racional (portanto, as percepções são mais distintas e mais claras, isto é, aclaradas – posto que existe sempre um uso mínimo da razão). Uma alma é uma Mónada com percepções mais distintas e com memória.

Cada Mónada espelha o universo e, nessa medida, é um mundo. Esse mundo é à imagem do universo, isto é, da totalidade das Mónadas. Esse mundo que cada Mónada é espelha a totalidade de Mónadas.

Por outro lado, cada estado presente de uma Mónada retém o efeito daquele que o precede, isto é, constitui-se, enquanto presente, como efeito do passado. É uma consequência do estado passado. De igual modo, tem como consequência o estado futuro.

Assim, um estado presente é, em si próprio, o resultado de todos os estados passados, e tem como consequência todos os futuros. A Mónada é, portanto, em cada momento, a totalidade das suas percepções passadas, presentes e futuras. De um estado poder-se-iam saber todos os outros. Aquilo que acontecerá numa Mónada num momento futuro já está nela no presente. De facto, toda a totalidade da Mónada está presente no agora contínuo.

Toda a totalidade de cada Mónada está presente em cada momento da totalidade de cada Mónada. Por outras palavras, daquilo que cada um tem presente se poderia saber, se disso se tivesse a faculdade, tudo o que

lhe acontecerá ou aconteceu, e tudo o que acontecerá e aconteceu a cada um, e tudo o que acontecerá e acontecerá a cada uma das Mónadas.

118 Ver, a respeito, Meditatio De Principio Individui, G. W. Leibniz (1º de abril de 1676), “Mas se admitirmos que duas coisas sempre diferentes

também diferem em si mesmas em alguns aspectos; segue-se que está presente na matéria algo que retém o efeito daquele que o precede, isto é, uma mente.” Disponível em http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm.

119 Mona., Art. 26. Para Leibniz a memória é experiência.

120 Cf. Op.cit., art. 28: “Só o astrónomo o ajuíza por razão”. Mas confrontar também com PNG, art. 5: “não há um astrónomo que o preveja pela razão”, pois é apenas uma predição, uma hipótese que “enfim falhará, quando a causa do dia, que não é eterna, cessar.”

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Liberdade, possibilidade e determinismo em Leibniz Luís Mendes Seminário

As Mónadas e as Almas, A Contingência e a Necessidade, -28- A Determinação e a Liberdade, Cap. III

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A CONTINGÊNCIA E A NECESSIDADE DAS COISAS

No entanto, isso não significa que tudo seja necessário. Necessário é aquilo cujo contrário implica contradição. Se A é necessário, então não-A é uma contradição.

2+2=5 é uma contradição. Na verdade, qualquer resultado diferente de 4 implica uma contradição, pois 2+2 é uma definição de 4. A negação de 2+2=4 é contraditório, ergo, 2+2=4 é necessário. 2+2 é traduzível por 4, então 4=4. Esta é a forma das proposições necessárias.

Tome o leitor qualquer acontecimento da sua vida. Do que se disse parece que tal acontecimento é necessário. No entanto, tal não é verdade para Leibniz. Esse acontecimento seria necessário se qualquer outro possível implicasse contradição. Tome o leitor um possível para substituir esse acontecimento. Qualquer coisa que pudesse ter acontecido em vez disso. Como deve notar, a existência desse possível não implica contradição. Poderia ter sido assim. Então o que aconteceu não foi necessário.

Tente-se fornecer um estado de coisas necessário. Não é possível. Na verdade, seria possível que a França surgisse amanhã ao lado da Austrália, que o Sol não nascesse e que as vacas falassem com o nascer do sol todos os natais.

Ora, todos os possíveis que existam e cujo contrário não implique contradição são contingentes. Logo, todos os estados de coisas que existem são contingentes.

Todas as escolhas duma criatura são contingentes, isto é, não é necessário que ajam de acordo com a mais óbvia razão.121 Não pode ser demonstrado matematicamente que sempre ajam assim.

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A DETERMINAÇÃO E A LIBERDADE

Contudo, pode dizer-se que, recuperando os estados passados se poderia prever o estado presente. Nós, na nossa vida diária, fazemos isso constantemente. Olhamos para o passado e vemos a razão do presente. Se estamos a comer batatas fritas, percebemos que isso resultou de uma complexidade de circunstâncias, tais como o terem-se plantado essas batatas, as pessoas que precisavam de plantar batatas para ganhar a vida, nós que decidimos ir comer batatas, o restaurante que não estava fechado, o cozinheiro, o dinheiro, o gás, a fome, a vontade de comer, a rotação da terra, as emissões solares, o facto de existir ainda universo, … A ideia aqui em causa é precisamente essa das reticências.

Segundo Leibniz podem demonstrar-se os acontecimentos, ou melhor, a sua existência. Podem, portanto, demonstrar-se as nossas acções. De igual modo que quanto aos acontecimentos, pode demonstrar-se a escolha de ir comer batatas: a fome, o facto de ter dinheiro mas não ter o suficiente para o camarão, o facto de não ter todo o tempo do mundo, o facto de não saber que o cozinheiro nunca muda o óleo antes de o usar vinte vezes, … A ideia aqui em causa é, mais uma vez, essa das reticências.

Diz Leibniz que eu posso fornecer, em tese, uma demonstração da minha escolha. Contudo, essa demonstração, tal como na demonstração de um acontecimento qualquer, requer uma regressão ao infinito. E não só uma regressão, mas muitas vezes (em rigor, sempre), uma captação das previsões e das projecções do sujeito. O sujeito calculou o tempo que tinha de intervalo para almoçar, contou com o tempo que falta para receber novo ordenado, imaginou que voltaria a desgostar dos feijões daquele restaurante, … Os factores e condicionantes em causa são infinitos. O facto de que essa percepção presente resulta da sua predecessora imediata não facilita as coisas, pois é precisamente nessa

121 Ver, por exemplo, A Contingência, também disponível em http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm.

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Liberdade, possibilidade e determinismo em Leibniz Luís Mendes Seminário

As Mónadas e as Almas, A Contingência e a Necessidade, -29- A Determinação e a Liberdade, Cap. III

percepção imediatamente anterior que reside a complexidade, quer da retenção do efeito das anteriores, quer da projecção para o futuro, quer a imagem da totalidade do universo e de Deus.

É possível dar razões da escolha. Toda a escolha tem razões e elas são anotáveis. Mas, fornecer a demonstração completa é impossível, tal como é impossível traduzir um terço por um número real. Não é possível apresentar uma demonstração do género 4=4, porque um dos lados da indicação é infinito. 1/3=0,33 não é uma identidade. Falta algo no 0,33. De igual modo, a demonstração da escolha redunda apenas numa hipótese, ou melhor, numa demonstração hipotética. A falar-se de necessidade, deve falar-se em necessidade hipotética, pois, apesar da escolha ser uma consequência do estado anterior, antes de ter sido formulada, é apenas hipotética.

Apenas o momento da decisão formula a escolha. Antes disso essa escolha era uma das possibilidades em aberto. Poder-se-ia falar em necessidade hipotética. Isto é, pode demonstrar-se a sua necessidade mas em hipótese. É a hipótese duma necessidade, mas não uma necessidade matemática.

A escolha que o sujeito virá a tomar é certa, mas não necessária. Todos os atributos, todas as percepções do sujeito, sendo predicados, estão contidos nele. O seu ser contém todas

as suas decisões. Portanto, conhecendo-se o ser de César saber-se-ia, mesmo antes de o fazer, tudo o que viria a fazer. Todas as suas decisões, a bem dizer, tudo o que lhe aconteceu estava indubitavelmente no seu ser. O ter atravessado o Rubicão estava já no seu ser quando nasceu. Era, portanto, certo.

De muitos modos se pode mostrar que tudo o que acontece a alguém é certo, seja César ou qualquer pessoa. Mas nada do que lhe acontece é necessário.

Ora, tal como em 1/3=0,33, falta alguma coisa. Tal como por mais 3 se acrescentem à direita da vírgula, faltará sempre algo à demonstração de uma escolha, de um estado, de uma percepção. Isso que sempre resta por apresentar é o factor espontaneidade. Isto é, trata-se da espontaneidade da vontade.

O que acontece numa Mónada é, por definição, espontâneo. Isto é, sucede por princípio interno, sem causa exterior. Mas uma percepção surge de outra. Há, portanto, uma determinação espontânea, uma autodeterminação das Mónadas. Esta autodeterminação é a verdadeira essência da sua autonomia e, portanto, da sua própria noção enquanto Mónadas: o seu ser é autónomo e autodeterminado.

Assim, derivando as escolhas da alma da vontade, elas são regidas pelo princípio da perfeição, princípio interno que espelha o princípio que inclina a vontade divina, mas não sendo uma necessidade lógico-metafísica, mas, portanto, uma necessidade moral, inclina sem necessitar. A vontade é, portanto, intrínseca e espontaneamente ordenada ao melhor.

A liberdade deve, então, ser compreendida como autodeterminação ao melhor, isto é, ao bem próprio. Esta autodeterminação é espontaneidade, é liberdade. A liberdade é, pois, autodeterminação. Ser livre é estar autodeterminado ao melhor. “Ser determinado ao melhor é ser maximamente livre”122.

O fundamento da nossa liberdade, aquilo que a provoca e mantém caso a caso, é precisamente o cuidado em tomar para nós a felicidade, buscando a perfeição. Esta determinação pela vontade, pela inclinação para o bem, pode tornar-se um hábito. A nossa atenção para não nos deixarmos errar e para não tomarmos uma felicidade aparente por uma felicidade real, exercita a nossa reflexão e pode treinar a nossa vontade a escolher acertadamente123. Deste modo a nossa vontade aperfeiçoa-se a si mesmo, conseguindo mais facilmente vencer os desejos. Isto é, a vencer essa atracão das pequenas perfeições imediatas e efémeras, que não raro trazem mais imperfeição que perfeição, lançando o humano de imperfeição em imperfeição. A esta instalação do humano numa sucessão de imperfeições que acabam por subjugá-lo, como se de um círculo vicioso se tratasse, Leibniz chama miséria.

Ora, o percurso da alma deve ser o inverso da miséria. Em vez de deixar a paixão (o desejo) toldar a vontade, isto é, em vez de subjugar a felicidade geral pela felicidade imediata, deve subjugar esta por aquela. Porque, na verdade, a felicidade geral é também o objecto do desejo124. Deste modo, mesmo que não existisse Deus, nem vida depois da

122 Ensaio, 135, “a escolha, por muito determinada que a vontade esteja a seu respeito, não deve ser chamada necessária absolutamente e em rigor;

a prevalência dos bens inclina sem necessitar, se bem que, tudo considerado, essa inclinação seja determinante e não deixe nunca de produzir o seu efeito”. O facto de sermos inclinados pelos bens jamais nos retira a liberdade. “Quem quereria ser imbecil, pela razão de que um imbecil é menos determinado por reflexões sábias de que um homem de bom senso?”

123 Ensaio, 135.

124 Sendo o desejo uma orientação para a perfeição, e a vontade um esforço para a perfeição, só aparentemente não coincidem. Ver Ensaio, 135, “quanto mais nos entreguemos à procura invariável da felicidade em geral, que não deixa de ser nunca o objecto dos nossos desejos, mais a nossa vontade

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Liberdade, possibilidade e determinismo em Leibniz Luís Mendes Seminário

As Mónadas e as Almas, A Contingência e a Necessidade, -30- A Determinação e a Liberdade, Cap. III

morte, uma vida que se ficasse pelo desejo não seria a mais correcta. Uma vida dedicada a pequenas perfeições equivale a uma vida que nega as grandes perfeições. Uma possibilidade executada exclui, por força da escolha, todas as outras que poderiam existir na sua vez. Escolher uma possibilidade é preterir todas as outras. Este carácter da facticidade impõe a urgência da decisão esclarecida. A decisão, para ser livre, deve ater-se a afastar de si a miséria e a preferir a perfeição. Trata-se de criar um hábito de executar a perfeição. Um hábito de afastar o predomínio do desejo para concretizar os nossos verdadeiros desejos. Desejos estes (verdadeiros) que, na maioria das vezes, se encontram confusamente diluídos numa vida descentrada da sua verdadeira inclinação.

Tomando liberdade por aquilo que acontece espontaneamente na alma, a partir do seu próprio fundo, sem mais elucidações, tudo o que uma alma possa fazer é livre. Mas liberdade deve receber um sentido mais específico e rigoroso, como se vem mostrando. A liberdade é a execução da perfeição. A este exercício deve chamar-se concretamente acção. Mas quando essa execução falha o seu alvo, então deve chamar-se-lhe paixão. Note-se que estamos agora a falar de almas humanas. No que concerne ao humano, a sua acção deve ser reflectida a ponto de se fazer dirigir pela vontade e não pelo desejo. A objecção que aqui se poderia fazer é que, para Leibniz, a escolha feita seria sempre a mais perfeita possível. É verdade, dum ponto de vista geral. Mas isto era como alguém ler num horóscopo que se iria suicidar naquele dia e, então, suicidar-se. Analogamente, aqui dir-se-ia que não importa o que se faça, porque faça o que se fizer será correcto. Ora, Leibniz apresenta, em vez disso, um princípio moral que ordena a vontade. Trata-se de descrever o fenómeno da vontade: a vontade segue o melhor. Dum ponto de vista geral, é certo que qualquer escolha será a mais perfeita. Mas isso significa, nada mais, do que, no mundo perfeito, estava previsto determinada pessoa cometer determinados erros. O erro, aqui, consiste em transpor este ponto de vista divino para o ponto de vista humano, da criatura, onde todas as suas escolhas são espontâneas, produzem-se dela.

A acção autêntica é aquela que acerta o alvo, aquela que se executa na sua possibilidade mais própria: executar a perfeição. Só essa merece, portanto, o nome de acção, só essa merece ser considerada livre. Uma acção livre é um pleonasmo.

Por outro lado, só há verdadeira escolha quando a vontade está em condições de se autodeterminar autenticamente. Só há verdadeira escolha quando se esclareceu as possibilidades em aberto, quando se ponderou todos os possíveis em questão. Quando isso não acontece, o desejo predomina. Assim, as pequenas perfeições que mais rapidamente chamam para si, deixam encobertas as demais possibilidades e a vontade não pondera o contrário dessa possibilidade do prazer. Não está, a bem dizer, instalada numa situação de verdadeira escolha, pois o processo de formação está viciado. Deve chamar-se-lhe apenas desejo. Logo, também não há acção, como se disse, mas apenas paixão. Instalada numa situação de confusão, não há propriamente liberdade. De facto, nem deve chamar-se prazer ao que a alma julga aí ganhar. No fundo, visto que essa pequena perfeição acarretará maiores imperfeições, deve dizer-se que a paixão é o encaminhamento para a dor. Dito de outro modo, poderia acontecer que pequenas perfeições levassem a uma grande perfeição, que o prazer provocasse felicidade. De facto, a felicidade parece ser uma grande quantidade de prazer. Portanto, o que está em causa, não é a pequenez da perfeição imediata, mas a miséria em que ela lança a alma. O facto relevante é que essa pequena perfeição provoca mais imperfeição, feito o computo125 geral, que perfeição. Ou seja, a paixão é um encaminhamento para a dor, apesar de, no imediato, ser uma orientação para um prazer imediato. A acção é o exercício da liberdade, a execução da felicidade, apesar de poder acontecer que, no imediato, o sujeito se tenha que sacrificar a um sofrimento. Assim, deve em rigor dizer-se que, não há razão nenhuma para rejeitar um prazer, por mais pequeno ou efémero que seja, senão a visão de um maior ou mais duradouro, mediata ou imediatamente. Isto não significa que se deva rejeitar um bem pequeno se houver um bem maior, mesmo que este traga maior infelicidade no futuro. Pelo contrário, em questão não está a grandiosidade do imediato. Não deve agir-se em função do mero presente, mas ter-se em atenção que este presente pode penhorar o futuro ou, pelo contrário, prosperar no futuro. Empenhar o futuro em prol do presente, aí está um juízo falso, “pois o futuro tornar-se-á presente”126. Se só existisse o presente, aí sim, a maior perfeição imediata deveria comprometer a nossa vontade.

Então, o que acontece quando se tem que avaliar do futuro é que a distância temporal desfoca o ponto de vista. A distância no tempo provoca ilusão. Se o homem ao beber o vinho já provasse as dores de cabeça da embriaguez, diz

se desembaraça da necessidade de ser determinada pelo desejo”. O processo deve, como se disse, ser o inverso, isto é, educar o desejo e o gosto pela vontade.

125 De um ponto de vista global. Não se trata propriamente de um computo quantitativo.

126 Ensaio, 137.

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As Mónadas e as Almas, A Contingência e a Necessidade, -31- A Determinação e a Liberdade, Cap. III

Leibniz, então já não o beberia127. Quanto a isto sim, julgamos, Leibniz é optimista. O nosso autor não parece muito convencido da possibilidade da akrasia128.

No seu Ensaio, Leibniz coloca na boca de Filaleto os conhecidos versos de Ovídeo: “Video meliore proboque,/Deteriora sequor”129. Teófilo apressa-se a esclarecer que isso não se deve a que a vontade não seja inclinada pelo bem maior. Leibniz, pela boca de Teófilo, acusa a confusão do nosso ponto de vista, a nossa ignorância. Afinal, na maioria das vezes raciocinamos por palavras. Isto é, dizemos palavras muito acertadas, mas ver o melhor não vemos.

Na maioria das vezes, os homens não se dão ao trabalho de aprofundar a análise, de se esclarecerem. Para Leibniz, a escolha do pior resulta de sentirmos o bem que ele encerra, sem sentirmos o mal que ele acarreta, nem o bem que está na possibilidade contrária. A carne vence o espírito, porque este não usa ou não sabe usar os seus recursos. Se víssemos a melhor possibilidade, nós a amaríamos com ardor, pois amar não pode deixar de ser apego ao próprio bem. Resumindo, embora muitos digam ver o bem, na verdade, na maioria das vezes, neles predomina a incredulidade. Apesar de afirmarem ver claramente a rectidão, esta é apenas uma ideia ténue.

Feitas todas estas considerações, consideramos estar em altura de delinear uma conclusão final acerca do sentido de liberdade em Leibniz.

Para tal iremos de seguida abordar a questão da instalação natural da alma humana.

127 Ibidem.

128 Não parece muito convencido. Ver Ensaio, 125-126. Nos escritos mais importantes, Leibniz nega a akrasia do ponto de vista, assim como nega qualquer tipo de dupla verdade, etc. Contudo, seria possível, a meu ver, intentar o desenvolvimento duma teoria da akrasia em Leibniz a partir dos seus escritos menos ortodoxos, por assim dizer. Não é aqui o lugar, pois tal tarefa exigiria uma hermenêutica cuidada e longa que não cabe neste estudo. Ainda assim, reconhecemos a importância dum tal estudo para o estudo presente. Julgamos, no entanto, que a ausência desse estudo duma possível teoria da akrasia não tira os fundamentos às conclusões a que este estudo chega.

129 Metamorfoses, VII, 20: “Vejo o melhor e aprovo-o/ Sigo o pior”.

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A forma do ponto de vista -32- Cap. IV

S e c ç ã o 1 2

CAPÍTULO IV – A FORMA DO PONTO DE VISTA

Como a nossa Mónada não consiste unicamente no momento presente, mas na totalidade do seu tempo, quaisquer que sejam os prazeres que nos influenciem actualmente, devemos ter em atenção que o agora é contínuo, isto é, que o tempo se arrasta de modo que o futuro de hoje entrará no agora de amanhã.

O ponto de vista que cada um é deve antecipar-se sobre o que ainda há-de vir. Por outras palavras, a vontade de antecipar-se de modo que, ainda em meio à felicidade presente, sustente a acção, da qual depende o prazer presente, no esforço de executar a perfeição e afaste a privação dela. Assim, a vontade deve cuidar em determinar o espírito pelo maior dos bens.

Ora, esse cuidado sai malogrado na maioria das vezes. Isso não significa que a vontade não esteja inclinada para a perfeição, mas que, na maioria das vezes, não vê correctamente qual seja a possibilidade mais perfeita.

Sendo assim, a situação natural do homem não é acertar. Na maioria das vezes o humano prefere gozar os prazeres que já dispõe do que tornar disponíveis maiores bens ainda distanciados pelo tempo. A situação natural do humano também não é a procura do engano, ou a busca do sofrimento, ou a entrega a qualquer coisa que se pareça com o bem. É natural do homem inclinar-se para a perfeição. Uma vez que ele a veja, por ela é determinado.

A situação originária do humano, natural ao humano, a instalação em que o humano sempre se encontra a si mesmo é a da inquietação. O humano não pode reter-se num instante. Não pode reter-se num momento de prazer. O momento é sempre em fuga. O tempo esvai-se, passa, o agora segue em frente. O que existe passa ao passado, as possibilidades vão sucessivamente passando de potência a acto. No humano, esse movimento de existência é presidido pelo esforço de perfeição. Portanto, a inquietação humana não é uma inquietação qualquer, mas um não poder estar se não em caminho da perfeição.

A procura da perfeição é a forma da vontade. O humano está instalado em caminho da perfeição. Esta é a inquietação humana radical: ser perfeito.

Mas esta inquietação toma muitas formas. Há várias percepções e inclinações130 que influenciam a vontade final, que é o resultado daquelas (pode dizer-se

que existe a concorrência de muitas vontades para a vontade final). Algumas são imperceptíveis e formam, no seu conjunto, uma inquietação notável que impele, mas cujo motivo é confuso. Outros conjuntos orientam para um objecto e podem ser chamados de desejos, ou temores quando afastam de um objecto. Também o desejo se acompanha de uma inquietação que nos impele. As inquietações dos desejos presentes, orientando-se para os prazeres imediatos, impõem-se muitas vezes determinando a vontade a procurá-los. No entanto, a inquietação é essencial ao humano. A inquietação é a essência da estar incompleto do humano, enquanto este não é perfeito. Deve ser vivida como um contínuo ininterrupto de bens progressivamente maiores, como uma aprendizagem.

Dentre as percepções que influenciam a vontade contam-se ainda as impulsões que são inquietações acompanhadas de prazer ou dor. E, de todas estas inquietações resulta o esforço pleno da vontade. A vontade decisiva, consequente, é o resultado final do conflito de todas as vontades anteriores (independentemente da discussão das suas muitas apresentações, quer como simples inquietações, quer como desejos, quer como impulsões). Essas vontades anteriores são modos da inquietação originária do humano para a perfeição. Mas apenas a vontade final representa a vontade consequente, a vontade que factualmente escolhe dar existência a uma possibilidade e excluir da existência todas as outras.

A vontade é comparada por Leibniz a uma balança. Assim, o resultado final, a escolha, pode não ser determinada pela inquietação mais premente, vista isoladamente. Pode acontecer que um conjunto de inquietações forme uma inquietação maior que aquela que é maior isoladamente. Pode mesmo acontecer que prevaleçam ora umas ora outras. Mas, tudo o que se notar à vontade será considerado e pesado e contribuirá para formar essa direcção compósita a que chamamos escolha. O espírito deve, portanto, atentar a cada uma das inquietações e usar de habilidade em relacioná-las, esclarecê-las, antes de proceder à formação da escolha.

130 Em sentido particular. Note-se que a inclinação geral é a inclinação para a perfeição, ou melhor, a forma de todas as inclinações é a perfeição

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A forma do ponto de vista -33- Cap. IV

Mas a liberdade consiste nesta formação quase mecânica (mas não necessária) da escolha. Nesse poder se dar uma direcção final, de dar existência a uma possibilidade.

Depois da escolha, o cumprimento da nossa resolução depende ainda da nossa resolução em cumpri-lo. Isto é, em vencer precisamente o esforço necessário ou suportar o incómodo resultante daí. Disso é culpado o nosso hábito, mas também o nosso temperamento. Muitas vezes voltamos atrás com uma decisão devido à preguiça ou à falta de persistência. A persistência da vontade é fundamental para a execução de uma escolha. Esta persistência consiste numa retoma contínua da mesma escolha, isto é, numa escolha continuada, retomada a cada momento. Este retomar da mesma decisão é confrontado a cada vez com as suas possibilidades contrárias, muitas vezes mesmos custosas. É necessária uma resolução muito forte, uma inclinação segura e empreendedora.

Diz Leibniz que essas propensões contrárias que põem à prova as nossas resoluções estão fora da nossa liberdade. Não podemos decidir, como é bom de ver, sobre essas propensões, sobre o sofrimento causado pelo esforço em prosseguir uma empresa. A liberdade da alma é preservada então por participação da razão que desvia o espírito das agruras do esforço131. Ou, dizendo de outro modo, a razão tem um papel fundamental na forma do olhar sobre essas propensões contrárias. A dificuldade reside no modo de conseguir não dar atenção às propensões que fortemente impressionam o espírito que se esforça. Para isso deve-se treinar o espírito a interligar pensamentos num fluxo racional, de modo a conservar a liberdade. Ou seja, o espírito deve habituar-se a ressalvar-se do refluxo das impressões imediatas. É preciso saber recolher-se, sair “do lugar onde se está” e reconduzir-se ao seu propósito, suplantando as propensões em contrário. Temos que estar preparados para ser capazes de nos mantermos a nós próprias em acção, na acção de escolhemos.

Estando nós em condições de travar a influência das propensões contrárias, ou seja, de os suspender, estamos preparados para os combater. É mediante este processo autodidáctico da vontade que nos tornamos senhores de nós mesmos, pois de nada nos serve sermos livres de escolher o caminho se não temos resistência para o prosseguir.

A liberdade ganha assim uma nova amplitude. Liberdade significa fazer com o tempo aquilo que racionalmente gostaríamos de querer. Isto significa que a liberdade é a execução do próprio ser no tempo, fazer do tempo a execução da nossa possibilidade mais autêntica, a nossa perfeição. O tempo é lugar de ser o que temos de mais perfeito para ser. A liberdade é fazer do tempo um exercício de felicidade.

Mas isso não se alcança por um imaginário poder de indiferença perante as inclinações, como já se disse, como se nos pudéssemos determinar sem motivos determinantes. De facto, a liberdade não consiste em poder dizer não, nem consiste em dizer que não a tudo. Na verdade, uma tal propensão é, também, um possível. Pode acontecer que uma pessoa diga a tudo não, que negue todas as suas inclinações, mas então há pelo menos uma que não nega, a saber, a sua inclinação para dizer não.

Nunca se é indiferente. Tudo o que fazemos decorre da prevalência de uma disposição (da instalação numa inquietação), mesmo que dela não nos apercebamos. Mesmo o simples levantar do braço, ou colocar um pé à frente do outro. Mas damos exercício pleno à liberdade apenas quando há participação da razão e, sobretudo, quando se trata de uma acção de grande monta, isto é, de grande empreendimento da vontade, à qual a vontade é chamada recorrentemente a dar aval perante a concorrência de propensões contrárias, nomeadamente, provocadas pelo próprio esforço em executar a própria escolha.

S e c ç ã o 1 3

DA DISPOSIÇÃO

Nós encontramo-nos a nós mesmos constantemente excluídos de um equilíbrio que nos isente da determinação. A liberdade que nos liberta da necessidade não deverá ser concebida como ausência de inclinação.132

131 Ensaio, 133.

132 Cf.: “Ainsi quoyque nous ayons une liberté d’indifference qui nous sauve de la necessite, nous n’avons jamais une indefference d’equilibre, qui nous exemte des raisons determinantes. Il y a tousjours ce qui nous incline et nous fait choisir, mais sans qu’il nous puisse necessiter. […], nous sommes tousjours portés infalliblement à ce qui nous frappe le plus mais non pas necessairement.” (Carta a Coste, 19. 12. 1707, GP, III, 402 e seguintes)

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A forma do ponto de vista -34- Cap. IV

A existência não pode, pois, deixar de ser um estar e encontrar-se a cada vez tomado por um conjunto de inquietações e inclinações que determinam a nossa decisão sem a necessitar. Este estar e encontrar-se resume o modo de ser a cada vez, isto é, fáctico, incontornável do ser humano enquanto criatura, enquanto infalivelmente reportado ao seu mais querido bem.133

A constituição do humano é de tal modo que a indiferença não lhe é possível. A situação em que o humano sempre se encontra a cada vez é disposicional. A disposição não é qualquer deficiência em que o humano pode cair. Como dissemos, para Leibniz a inclinação do humano é fundamental, bem como a confusão derivada dessa disposição134. O carácter disposicional do ponto de vista implica, claramente, um toldar desse mesmo ponto de vista. Esta obcecação é própria e derivada da sua própria natureza. Por seu lado, esta obcecação, conquanto a já referida complexidade da Mónada, significa um obtusamento desse mesmo ponto de vista. Ora, a situação de obtusamento é constitutiva e não configura uma deficiência específica da humanidade como se se tratasse de um acrescento ao humano, acrescento que, neste caso, se traduziria numa diminuição. Pelo contrário, o obtusamento é constitutivo e define o ponto de vista enquanto humano e, na verdade, enquanto ponto de vista135.

Ponto de vista obtuso é, portanto, uma redundância. Um ponto de vista implica um ofuscamento. Este ofuscar resulta da própria natureza do ponto de vista que é naturalmente aclaramento. Isto é, enquanto o ponto de vista se define, precisamente, pelo ponto de atenção que configura, pela sua apercepção, esta atenção configura, simultaneamente, a confusão do restante. O ponto de vista não pode ser totalizante, precisamente enquanto é um horizonte de familiaridade, precisamente enquanto se encontra a si mesmo instalado num domínio de determinação. Esta instalação disposicional não é fortuita, casual ou patogénica. Não se trata, como se disse, de uma doença, nem mesmo de uma doença incurável. Pelo contrário, é a condição para a existência desse mesmo ponto de vista, na medida em que cada ponto de vista se constitui segundo a sua natureza. Isto é, convém, como não poderia deixar de ser, que um falcão tenha uma visão muito apurada, contudo, tal apuro seria prejudicial a nós que precisamos de celeridade na decisão sob pena de cairmos em indecisão.136

A cada ponto de vista corresponde, portanto, uma certa e adequada situação de determinação constitutiva. E essa é a sua situação natural. Dessa instalação decorre a permanente determinação do ponto de vista à qual chamamos disposição. Ora, afirmar que o humano é, por natureza, disposicional é afirmar que está sempre disposto a esta ou àquela possibilidade. E é este estar sempre disposto a uma ou outra possibilidade que é constitutivo. A alma não pode deixar de ter que ir por aqui ou por ali. Ora, este encontrar-se situado significa, antes demais duas coisas. Que a natureza do humano é a própria determinação no sentido de se encontrar tomado por inclinações e tendências que estabelecem uma ligação a certas possibilidades em detrimento de outras. E que a natureza do humano é a própria determinação no sentido de não poder deixar-se ficar onde já está. Neste sentido, deixar-se morrer de inanição não pode deixar de ser uma acção.137

“A atenção está regulada pela necessidade” 138 de tal modo que o horizonte das possibilidades apercebidas corresponde a um afunilamento. Por outras palavras, o ponto de vista, apresentando-se como horizonte de visibilidade, corresponde a uma distracção universal. Esta distracção universal é, na prática, a forma da imersão na vida. A imersão na vida corresponde, como dissemos atrás, à imersão nas coisas vistas. Mais uma vez, esta característica do olhar não corresponde a uma doença do olhar, mas à própria constituição do olhar atento. A atenção, dirigida pela situação em que a alma se encontra a cada vez, imerge desaparecendo nas próprias coisas vistas. O olhar da atenção, pela sua própria

133 Cf.: “[…] ainsi jamais le cas arrivera, où tout sera parfaitement egal et frappera egalement de parte t d’autre; et quoyque nous ne soyons pas

tousjours capables de nous apercevoir de toutes les petites impressions qui contribuent à nous determiner, il y a tousjours quelque chose qui nous determine entre deux contradictoires, sans que le cas soit jamais parfaitement egal de part et d’autre.” (ibidem)

134 Como já fizemos ver, a inclinação por um dos lados ofusca o seu contrário. O chamamento da possibilidade que mais nos inclina tolda (obceca) o olhar.

135 Não se trata, portanto, de uma condição especificamente humana, mas de um constituinte fundamental da noção de ponto de vista. Não há qualquer coisa como um ponto de vista do universo. É constitutivo de cada ponto de vista, enquanto cada ponto é um ponto de vista, que cada ponto de vista configure uma visão peculiar desse ponto de vista. Cf.: “L’univers n’a point de centre, et ses parties sont infiniment variés”. (ibidem)

136 Por indecisão não se entende indiferença nem indeterminação. Pelo contrário, a indecisão é o conflito entre vontades cujo peso é semelhante. Cf. Ensaio, 56.

137 Como dizia: “Tout le malheur des hommes vient d’une seule chose, qui est de ne savoir pas demeurer en repôs, dans une chambre”. (Pensées, 111, ed. Lafuma)

138 Ensaio, 56. Notar que o sentido de necessidade aqui é o de necessidades animais ou fisiológicas, isto é, no sentido coloquial de precisão.

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Liberdade, possibilidade e determinismo em Leibniz Luís Mendes Seminário

A forma do ponto de vista -35- Cap. IV

natureza, afunila-se na coisa vista. Isto significa que o olhar, para ver, precisa de imergir no visto. Nesta imersão nas coisas da vida o olhar perde de vista a presença das outras possibilidades que, precisamente, não se destacam da confusão. Há, portanto, uma distracção constitutiva da atenção. Esta distracção é natural, é disposicional, é determinante.

O olhar, ao concentrar-se naquilo que o inclina, a totalidade das possibilidades apercebidas139, é constitutivamente um ponto de vista determinado pela sua própria situação. Esta determinação disposicional, nos termos que vimos até aqui, significa uma preterição disposicional (não voluntária, anterior à formação da vontade final) de tal modo que a totalidade das possibilidades apercebidas se mostra a si mesma como totalidade do olhar. É esta diferença criada entre a totalidade apercebida e a totalidade do ponto de vista140 que constituirá, de facto, a posição da vontade.

Destarte, a totalidade das possibilidades apercebidas é apercebida enquanto não distracção, precisamente porque se constitui como olhar atento. Enquanto olhar atento fixa o horizonte do visto de facto. O que fica para além deste horizonte permanece na distracção. A disposição corresponde, então, a uma situação determinante relativamente a um conjunto de possibilidades que se realçam da confusão. Esta determinação não se mostra enquanto tal, isto é, não se mostra enquanto confinada, enquanto parcial, pois o ponto de vista é constitutivamente totalizante141. Aquilo para o que o ponto de vista permanece distraído não se mostra como imerso na confusão. Isto é, o confuso é, em rigor, aquilo que não se mostra como confuso mas que, pelo contrário, não se mostra. O ponto de vista compreende-se então como a totalidade do que há para ver. O que não se vê, não se mostra. Pois o mostrar-se como confuso seria, precisamente, condição necessária para despoletar a curiosidade e o desejo de conhecer. Por outro lado, o que passa distraído não se mostra como estando em falta na totalidade apercebida. Simplesmente, não há apercepção disso. Apesar disso, pode acontecer que aquilo que dirige a atenção permaneça precisamente no horizonte indiscernível. Dito de modo mais simples, é possível que o móvel que nos encaminha durante toda a nossa existência permaneça durante toda a existência oculto à nossa consideração. Neste caso, toda a nossa vida seria um mero ser levado pela situação, um ser dominado pela disposição. Seria mais um ser tomado que um tomar em mãos a nossa própria vida. Por outro lado, não é claro, no sistema de Leibniz e tanto quanto investigámos, que seja possível ao humano estar devidamente certo de ser ter esclarecido absolutamente quanto a isto. O certo é que, para se poder dizer que se tem a nossa vida nas nossas mãos, isto é, que dominamos de facto isso de que se trata quando se trata da nossa vida, é necessário alcançar-se claridade acerca disso que nos dirige.

Ora, disso se pode concluir que a liberdade significa, propriamente falando, determos esclarecimento acerca dos móveis da vontade, acerca das vontades que dirigem a nossa vontade. Ou seja, para sermos livres temos que nos colocar a nós próprios numa situação tal que possamos julgar os vários móveis que nos dirigem. Mas, por outro lado, isso significa também que o ponto de vista está constituído de tal modo que pode ver-se a si mesmo nessa situação sem se encontrar de facto nessa situação. O facto de que o ponto de vista se veja a si mesmo livre na situação que o ocupa decorre dessa possibilidade originário do ponto de vista visar o seu alvo, por assim dizer. Mas, se o ponto de vista se foca naquilo que, dada a sua situação, se destaca disposicionalmente, então existe a possibilidade de que aquilo que se mostra como alvo decorra de uma desfocagem da objectiva, tal como um sistema de espelhos que leva o sujeito a julgar estar a visar em frente quando, de facto, esses espelhos mostram qualquer coisa diferente.

Mas o outro significado de encontrar-se situado remete para outra coisa não menos importante, a saber, a necessidade de estar onde não se está. Estar disposto é estar disposto a sair donde se está. Esta faceta da disposição é facilmente identificável por nós quando nos sentimos invadidos pela curiosidade ou pela vontade de aventura. Outra forma que a disposição toma e que pode ajudar a compreender este seu carácter é a volúpia. Enfim, recordemo-nos da famosa canção de António Variações Só quero estar/ Onde eu não estou. A este carácter nós poderíamos chamar,

139 Sendo que não é necessário, como já se viu, que haja apercepção daquilo que dirige o olhar apercebido. Há inquietações que impelem

confusamente sem que haja apercepção do motivo. Ou seja, aquilo que dirige a minha atenção para isto ou aquilo não é necessariamente aquilo de que eu me apercebo. Ao contrário do que poderia parecer, a disposição não é apenas a situação de ser atraído pelo doce do chocolate para o prazer da doçura esperado de avanço. Na maioria das vezes os móveis são totalidades confusas de inquietações das quais não me apercebo. Contudo deixamos aqui a ressalva: não se retire daqui facilmente uma leitura freudiana de Leibniz. Com isto não estamos a tomar partido quanto a essa matéria, estamos apenas a fazer notar que essa matéria seria um outro trabalho e que este nosso estudo não intenta fazer essa avaliação.

140 A totalidade do ponto de vista compreende, em rigor, a totalidade do universo, nos termos que também já foram analisados neste trabalho.

141 Enquanto imagem do universo visa a totalidade do universo. Esta totalidade permanece, enquanto totalidade, confusa. Contudo, tal como o que o ponto de vista visa é a perfeição, embora confusamente, também o olhar vê formalmente como totalidade. Ou seja, detendo a forma de totalidade, o ponto de vista compreende-se como a totalidade do visto e, nesta tensão de ver, vê-se a si mesmo como a totalidade do que há para ver.

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precisamente, volúpia, ou curiosidade. Poder-se-ia chamar-lhe ainda diletantismo. Ora, como dissemos, Leibniz parece usar sobretudo o termo inquietação, sendo que devemos aqui notar as reservas já apresentadas acima142.

Ora, se a primeira faceta da disposição significa que a disposição se determina a si própria por natureza, no sentido em que se lança com uma determinada visagem, implicando assim que o ponto de vista tenda para se considerar a si mesmo total, ou pelo menos, dominando tudo aquilo que lhe possa interessar – se a primeira faceta da disposição a revelou como determinação do campo do visto, a segunda faceta indica o não poder deixar de ver.

O disposicional foi, portanto, mostrado como determinabilidade excluindo a indeterminabilidade. Agora, este segundo sentido recebe novamente essa elucidação para lhe revelar outro matiz. A não indeterminabilidade, a impossibilidade da indeterminação decorrente da disposição em que o humano sempre se encontra, implica que aquilo que se passa em nós nunca deixe de ser a situação de uma passagem, ou, dito de outro modo, ser disposicional é ser constitutivamente em viagem. É, então, nos termos do que se disse, um andar à deriva.

Então, o conatus, entendido como disposição (ao nível imperceptível), mostra-nos que o humano está determinado intrinsecamente a não ficar parado, a procurar incessantemente a sua perfeição. Esta nova amplitude exige uma reformulação dos conteúdos alcançados até aqui. O próprio conatus enquanto intenção mostra agora uma nova imagem. O humano deve ser compreendido precisamente enquanto in-tenção. O ponto de vista não é apenas atenção, mas também intenção. Enquanto imagem já tínhamos percebido que a realidade do humano dependia precisamente disso de que era imagem, que a sua realização dependia da execução da sua perfeição. Mas agora esclarece-se que ser imagem significa estar nessa suspensão de ser em tenção para. A natureza desta suspensão é a natureza imparável do esforço humano. A acentuação está posta na partícula para, no esforço, no estar em viagem, no ser enquanto se está a caminho de se realizar.

Assim, o esforço humano não é um estado ocasional e passageiro em que o humano se encontra acidental e temporariamente. Pelo contrário, é a forma daquilo que se passa em nós, é o próprio modo como o humano se encontra a si mesmo. Ou, dito de outro modo, é a forma do encontrar-se em si mesmo. Trata-se portanto do campo em que acto e potência se copertencem. A disposição é, não só aquilo que naturalmente determina 143, mas o próprio estar em determinação. Enquanto disposicional, o humano encontra-se naturalmente predisposto144 a ter que ir para algum lado encontrando-se mais disposto a este ou àquele destino. Há aqui dois caracteres distintos e simultâneos (e é necessário reforça-lo145). Isto significa algo de muito importante: premência, urgência.

Isso significa que a vontade de perfeição é originariamente um estar em falta relativamente a si próprio. Esta premência é a impossibilidade de não decidir. Segundo Leibniz a decisão não é uma opção. O humano não pode não decidir. A vida é uma exigência, é premente. O humano não pode deixar de viver enquanto vive. Decidir-se a pôr fim à vida não pode deixar de ser um ter que decidir. A liberdade não é qualquer coisa da qual o homem possa abdicar sem ter primeiro de abdicar de si, sem ter primeiro que abdicar da vida. Perante o medo de errar ficar parado não é uma possibilidade. Ficar parado, em rigor, não é possível. O homem encontra-se a si mesmo, originariamente, numa situação tal que tem que fazer algo com a sua vida, nem que seja, precisamente, pôr fim à vida. Suicidar-se implica uma decisão, uma decisão implica um caminho, uma execução. Perante uma dificuldade, não fazer nada é, na realidade, fazer alguma coisa. Há um compromisso de si consigo tal que o humano não pode ser sem ter que se decidir146.

142 Inquietação deve ser entendida no sentido genérico, isto é, fazendo notar que um móvel apercebido é uma totalidade de inquietações confusas,

um “apetite grande” é composto de inquietações pequenas. E é esta infinidade de inquietações pequenas, das quais não seria útil nos apercebermos totalmente, que depende aquilo “que se passa em nós”. Cf.: “Car nos grandes perceptions et nos grands appétits, dont nous nous appercevons, sont composés d’une infinite de petites perceptions, et de petites inclinations, don’t on ne sauroit s’appercevoir.” (Carta a Remond de Montmort, 1715,Erd., p. 736)

143 Ver Teod. passim.

144 Tal como vimos acima. Note-se que isto acontece também no sentido de predeterminação, ou, como se poderia dizer, proto-determinação: aquilo que distingue uns dos outros, aqueles que se reportam originalmente mais a estes ou aqueles bens, daqueles que se reportam originalmente mais àqueles ou a outros bens. A disposição enforma o olhar desde a origem. Portanto, não se trata apenas da forma do humano (enquanto ser determinado), mas também da determinação ela mesma (cada humano está naturalmente predisposto, uns preferem chocolate branco, outros preferem chocolate preto, uns preferem desporto, outros sentem-se naturalmente impelidos a roubar).

145 Pois poderia acontecer que o humano se encontrasse obrigado a andar e nunca tivesse que andar num determinado sentido, tal como acontece com os robôs capazes de evitar obstáculos: nunca estão parados, ao darem por um obstáculo, mudam de rota, mas esta rota nunca é um destino. Poderia também acontecer o contrário, ou seja, o humano ter um destino sem ter que sair donde está.

146 Perante uma bifurcação, ficar onde está decorre duma decisão. Alguém que assiste a uma agressão e não faz nada para ajudar a vítima tomou a decisão de nada fazer. Esta compreensão é uma compreensão que o humano tem de si mesmo, tal é assim que aquele que decide nada fazer poderá sentir-se culpado por esse nada fazer. Por outro lado, perante uma indecisão, não decidir por nenhum dos lados é também um dos

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Ora, se a disposição mostra a urgência da vida, a premência da decisão, a exigência da execução (e fá-lo com toda a certeza), mostra também que a vida, a decisão e a execução podem tomar a forma de desperdício, de tempo perdido. Uma das possibilidades da vida é perder tempo, uma das possibilidades do tempo é desperdiçar a vida. Pode viver-se uma vida inteira e desperdiçar todas as ocasiões de perfeição. A vida revelou-se em falta constitutiva, na medida em que o humano é em permanente intenção. Uma das possibilidades mais originárias é a falta não ser colmatada. Enquanto execução, a vida pode não chegar a executar-se plenamente. Do alto da sua velhice o humano pode olhar para trás e não se reconhecer na vida que teve, isto é, sentir a falta de perfeição desse preenchimento de tempo.

Portanto, a vida é um constante ter que executar tempo. O tempo não para, decisões têm que ser feitas. E, uma vez feitas, tem que se viver com elas. Estas decisões, derivadas das suas disposições, da sua natureza, derivadas do seu ser constituem a sua vida. A determinação é o carácter fundamental da decisão livre, sendo a decisão o carácter fundamental da construção de si. As decisões de hoje de cada um ficam com cada um e constituem o ser cuja disposição há-de determinar as decisões de amanhã. As decisões que cada um faz concorrem nessa totalidade disposicional que determinará as próximas decisões de cada um.

Ora, a liberdade resulta, precisamente, dessa disposição, pois a liberdade é entendida como esforço determinado. Ou seja, a liberdade reside nessa decisão que escolhe o seu melhor. Em causa está, portanto, escolher para executar a melhor das possibilidades de cada um. A determinação da escolha provém da disposição em que cada um se encontra, sendo esta, portanto, uma motivação intrínseca. Disposição e determinação são, portanto, afinal, fundamento do processo de formação da escolha. Ora, esta disposição é a própria forma e conteúdo disso que se passa em nós. A disposição é o modo como o humano se encontra a si mesmo de cada vez. A disposição é natural, define a natureza de cada um, as suas preferências, as suas ansiedades, os seus medos, as suas inclinações. Por outras palavras, o ser de cada um determina a escolha de cada um.147

Por outro lado, são as escolhas de cada um que ficam com cada um, que fazem cada um. Escolher é, portanto, escolher-se. Cada um, ao fazer uma escolha e ao executá-la, ao levá-la até ao fim, está a escolher-se a si mesmo. Trata-se de escolher, de entre todas as possibilidades disponíveis, a possibilidade mais própria. Isto significa que cada possibilidade disto ou daquilo é, afinal, uma possibilidade do ser de cada um. Fazer isto ou aquilo não é simplesmente uma possibilidade de agir no exterior, uma possibilidade de perder ou ganhar dinheiro, de destruir ou construir um património. Uma possibilidade é sempre uma possibilidade de cada um se executar a si mesmo, se perder ou ganhar a si mesmo, se destruir ou edificar a si mesmo148. Este facto que, aparentemente, é o mais óbvio, permanece, na verdade, oculto na maioria das vezes149.

Encontrando-se a cada vez imerso num lance de si mesmo em que está em jogo a execução do seu próprio ser, o humano encontra-se projectado para possibilidades de si mesmo detido por uma compreensão prévia que se compreende a si mesma como total e completa, pelo menos quanto ao que interessa. A vida tem a forma de distracção universal que está distraída, antes de mais, de si mesma. A primeira coisa com que não conta é a sua distracção. Mesmo que a coloque em hipótese, na maioria das vezes não se dá realmente ao trabalho de elucidar essa possibilidade. O facto de o humano se encontrar sempre já em lance150 imerso nas coisas imerge o olhar nas coisas em que está lançado. O facto de o ser humano se encontrar a si mesmo perante a premência da decisão projecta a noção de liberdade sem que seja claro, para ele, que se encontre, de facto, numa posição livre. O facto de o ser humano se compreender a si mesmo lançado

lados pelos quais se pode decidir. Estas formas de indecisão são também modos da decisão, tanto é assim que delas nos podemos arrepender. Por outro lado, ficar na indecisão não deixa de ser um adiamento que, por sua vez, implica a decisão de adiar. Tal como adiar uma sentença é uma decisão de adiamento. O juiz pode decidir adiar a sua decisão. Mas estas decisões são ainda decisões e podem mostrar-se precisamente como decisões imperfeitas, como erro. Como falta. Podem também vir a mostrar-se a decisão correcta, como quando viemos a descobrir que ambos os caminhos eram errados e que, portanto, fizemos bem em não seguirmos nenhum deles.

147 Poderíamos reformular o provérbio popular desta forma: diz-me quem és, dir-te-ei as tuas escolhas.

148 O indivíduo é o objecto do acto de criação, nomeadamente, do acto de criação própria. Agir é auto-criar-se a cada vez. Notar que, como se disse já, o efeito carrega em si o carácter de ser efeito de determinadas causas. As causas permanecem no efeito enquanto este é resultado daquelas. Assim, um quadrado formado por dois triângulos nunca é essencialmente o mesmo que um outro formado por dois rectângulos, mesmo que as suas medidas sejam idênticas. Em Leibniz, que duas causas resultem num mesmo efeito é uma aparência, pois de facto o efeito mantém em si o carácter de efeito das suas causas. Existe aqui uma concepção que corta com a concepção medieval. A essência é individual e respeita ao indivíduo em si mesmo. A inteligibilidade começa no indivíduo, ainda que o seu sentido reporte, em última análise, à totalidade que o engloba.

149 Ensaio, totalidade.

150 Isto é, o humano dá consigo sempre já em caminho (mesmo que não saiba de quê).

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livremente para possibilidades de si mesmo fá-lo tomar a sua escolha como uma escolha livre, sem escrutinar a precisão de elucidar as condições que destacaram esta possibilidade em relação às demais. Na maioria das vezes basta que uma possibilidade surja para não se mostrar nenhuma possibilidade de ponderar qualquer alternativa. Assim, o humano toma esse engodo por uma escolha autêntica, quando não houve qualquer discernimento, quando não houve qualquer escolha autêntica151.

A presença de várias possibilidades e o facto de uma se destacar torna óbvio, para o humano, que houve escolha e liberdade, sem se mostrar a necessidade de elucidar o que estava aí em causa, tal como se se escolhesse um livro pelos desenhos da capa. Há, portanto, um abandono de si nas coisas da vida, uma imersão da vida no alheamento de si. Entretanto, o humano mantém a crença de que se detém a si mesmo e de que domina a sua própria vida. Diluído em possibilidades de vida não esclarecidas e que não executam a sua possibilidade mais autêntica do seu ser, a perfeição, o humano permanece crente de que, uma vez que se joga continuamente em possibilidades de si ainda não realizadas, está a realizar-se de modo pleno e em pleno acordo consigo mesmo, embora não compreenda qualquer necessidade de se compreender a si mesmo. Ocupado em executar possibilidades ainda não realizadas, o humano retém-se em cada uma de cada vez compreendendo-se a si mesmo a partir delas, uma vez que não ocorre uma configuração de um sentido geral da existência em cada uma delas. O humano, a cada vez, está imerso na situação a cada vez vivida, esgotando-se nela. A vida intensa torna-se nessas mesmas possibilidades que o humano ocupa, como se o humano fosse ocupado pela tenção da vida. A liberdade de sair desta clausura está impedida pela disposição às possibilidades destacadas. As possibilidades que se mostram mostram-se como as únicas possibilidades que há. As possibilidades que se destacam dentro das que se mostram, mostram-se como execução livre de si. Ora, se o humano se compreende ao modo das possibilidades que leva em diante, a compreensão do que seja a execução de si está tomada de avanço. O hábito de viver é um hábito que se veste toldando o espírito. Por isso Leibniz falava da necessidade do treino da vontade e da razão. O hábito de pensar nos assuntos da vida leva ao hábito de pensar à maneira das coisas. Deste modo, a possibilidade mais autêntica de si torna-se uma possibilidade falhada.

A liberdade é toldada de uma forma dificilmente ultrapassável. O desconhecimento de si mesmo que impossibilita o reconhecimento do desvio relativamente a si mesmo, impossibilita, precisamente, o reconhecimento desse desconhecimento. O humano que se desconhece é o primeiro a afiançar que se conhece. Considera que a qualquer momento pode estar na posse de uma compreensão próxima de si, pois está certo de que o seu ser é o que tem de mais próximo. Mas é a sua instalação na vida que constitui a sua identidade e, portanto, esse reconhecimento está, à partida, minado. Na medida em que o humano não pode não se encontrar em algum lado, ele compreende-se precisamente a partir de onde se encontra. Nestas circunstâncias ele depende das possibilidades em que se projecta.

S e c ç ã o 1 4

DA LIBERDADE DE FACTO

Esta é a parte mais difícil do nosso trabalho. Tentamos aqui perceber se podemos saber quando nós estamos numa situação em que somos realmente livres.

Já vimos que a nossa existência é possível, mas nem sequer é necessária. Qualquer possível que seja compatível com outros possíveis, existe152. Mas a demonstração disto é que não é necessária. Isto é, a totalidade da existência é contingente. Poderia não existir. Dada a pressuposição de evidência do nosso ponto de vista, a existência do mundo poderia tratar-se de uma ilusão. O humano, apesar da apercepção de si mesmo, poderia não existir, de facto, a sua

151 O eu, o si mesmo, torna-se então uma declinação. Guiado pelo sentimento do prazer e da dor, pela inquietação que tinge a existência, o eu

torna-se a passagem por onde flúi a vida, a vida que ele vê passar como um espectador sem se fazer de si mesmo o capitão do navio. Isto não significa que a sua vida deixe de lhe pertencer. Pelo contrário, este deixar fugir a vida por entre as próprias mãos só é possível por a sua vida é originariamente a vida que é a sua.

152 Cf. Principium Meum Est, Quicquid Existere Potest, Et Aliis Compatibile Est, Id Existere, G.W.Leibniz, 12 de Dezembro de 1676. Este texto está disponível na Internet no seguinte sítio: http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm.

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existência é problemática 153 . Só podemos estar certos necessariamente das verdades necessárias, o que, aliás, é tautológico. Isto é, os princípios necessários não podem deixar de estar pressupostos na própria análise lógica. Mas a discussão relativa à nossa existência escapa do domínio da liberdade. Seguindo Aurélio Agostinho154, Leibniz considera que é indiferente que as coisas existam, que a existência exista. Tudo o que existe para um ponto de vista é a sua percepção, ou, por outras palavras, quer o mundo exista ou não, quer de facto o sujeito exista ou não, não se pode negar é a percepção. Apesar da nossa existência não ser necessária, os fenómenos dão-se, a aparência mostra-se.

A discussão que aqui se faz é a da possibilidade do ponto de vista poder encontrar-se numa situação tal que possa estar certo da sua liberdade de facto155.

Leibniz considera, como não poderia deixar de ser, que existem vários sentidos do termo liberdade. Assim, o filósofo isola dois usos fundamentais do termo: liberdade pode usar-se no sentido de liberdade de direito e no sentido de liberdade de facto. Ora, a liberdade de direito é aquela que não esteve em questão neste estudo: não se perguntou por ela. Corresponde ao estado social que um determinado código legislativo confere a um cidadão ou a um membro da sociedade. Esta análise seria muito interessante mas não nos adiantaria grande coisa no nosso estudo.

A liberdade de facto reporta ao poder de fazer156 (potência) o que se quer, ou de querer como é preciso157. O primeiro modo da liberdade de facto é a liberdade de fazer o que se quer. Não deve entender-se este modo no

sentido de fazer ou não fazer alguma acção segundo aquilo que se quer158. Isto é, não se trata de um querer independente de qualquer impressão. Este tópico foi já suficientemente esclarecido. De notar é que esta liberdade tem também os seus graus. Assim, um preso dispõe de muito menos possibilidades executáveis do que um homem que é livre de direito. De igual modo a doença nos limita as possibilidades ao nosso dispor. A liberdade, entendida neste sentido, significa o lote de disponibilidade do humano. A liberdade varia então de grau na medida em que o horizonte de disponibilidade é mais ou menos lato. No entanto, pode acontecer que a possibilidade que precisamente nos interessa esteja dentro da nossa disponibilidade. Assim, por exemplo, uma pessoa que, estando fechada dentro do seu próprio quarto, tem aí o seu jogo preferido que já não jogava há imenso tempo. A acção seria então voluntária sem ser livre num certo sentido. Mas é precisamente este certo sentido que é de notar. Ele não é livre no sentido em que um dos possíveis não está disponível, há uma possibilidade que lhe está vedada, a saber, a possibilidade de sair do quarto. Este possível, em rigor, não é uma possibilidade porque não pode ser executado. Assim, a limitação da sua liberdade ocorre pelo impedimento de uma possibilidade. Mas o que está em causa não é a limitação física da porta se encontrar fechada, mas o impedimento da execução de determinadas possibilidades.

A liberdade de facto como liberdade de querer tem dois sentidos distintos. Primeiramente, a liberdade de facto de querer opõe-se à “escravatura do espírito”. Assim, no exemplo atrás

referido, ocorre um afunilamento do ponto de vista que corresponde a uma diminuição da liberdade na medida em que a inclinação para o jogo obscurece as demais possibilidades, nomeadamente as possibilidades não executáveis devido ao facto da porta estar fechada. Note-se que, apesar da porta estar fechada, poderia acontecer que a vontade se inclinasse para uma possibilidade de sair dali. Então a restrição seria não só ao nível da liberdade, mas da própria vontade (o acto não seria voluntário). No entanto, apesar de voluntário, não é livre porque determinadas possibilidades não são executáveis, dado que a porta está fechada. Neste sentido, como também já referiu atrás neste estudo, só Deus é

153 Para Leibniz não é necessário que do eu penso se deduza logicamente que eu existo. A evidência de que o eu pensa exige a elucidação do eu e do

pensar. A clareza inerente à afirmação cartesiana não dispensa a elucidação da relação evidenciada entre esses dois termos. Cf. Carta a Arnauld, LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm, Die philosophischen Schriften, ed. C. I. Gerhardt, 7 vols., Berlin, 1857-1890., Reimp. Hildesheim, 1965: passim.

154 Cf. Discurso contra os Académicos, Aurélio Agostinho.

155 Faremos a seguir uma análise que pode parecer desadequada aqui, na medida em que parece que já deveria ter sido levada a cabo. As considerações metodológicas que nos abstemos de desenvolver neste estudo, visaram escrutinar o sentido próprio de liberdade, o sentido que Leibniz procura encontrar ao longo da sua obra. Julgamos, no entanto, importante que agora, que já alcançámos um certo esclarecimento, seja útil fazer esta análise acerca das maneiras de usar a palavra. De seguida analisa-se, portanto, o trecho do Ensaio, Livro II, cap. XXI, secção 8, página 118. Pede-se ainda o confronto com a versão Garnier Flammarion (a páginas 148) que apresenta o texto francês. O trecho está disponibilizado em vários sites, por exemplo, é acessível no seguinte: http://www.webphilo.com/accueil/index.php.

156 “Puissance de faire”.

157 “Puissance de vouloir comme il faut”. Trata-se de uma formulação impessoal: poder de querer como é preciso. O texto português verte puissance por potência.

158 Este tópico foi já discutido. Cf.: Ensaio, 121.

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plenamente livre. No entanto ocorre, além desse modo de restrição da liberdade ao diminuir o campo de disponibilidade, uma limitação que significa o próprio obtusamento do ponto de vista, nos termos já abordados. Assim, o ponto de vista situa-se numa instalação afunilada pela atenção dada e consumida nesse objecto, neste caso, o jogo que atrai (ou, se quisermos, no desejo que impele159). Esta liberdade, que propriamente convém ao humano, convém-lhe na medida da perfeição e da luz do entendimento e opondo-se à imperfeição e obcecação160. Ora, neste sentido “só o sábio é livre”, diz Leibniz por ironia, pois apenas a Deus é dada a sabedoria plena. Uma grande paixão é uma grande escravatura.

Ora, aqui requerem-se os esclarecimentos dados ao longo do nosso estudo de modo a não cairmos novamente em todas essas contradições e julgarmos novamente, como já o supomos antes, que então, se não há liberdade no homem que está apaixonado, há necessidade. Note-se que no modo anterior se falou propriamente de modos de liberdade. O humano nunca é, em rigor, plenamente livre, mas não é, de modo algum, necessitado.

Desta forma o outro sentido da liberdade de facto de querer opõe-se à necessidade lógico-matemática. Trata-se aqui de um sentido metafísico de liberdade. Esta liberdade é conforme ao humano na medida em que este se encontra sempre numa situação tal que a decisão lhe cabe a si de tal forma que não há contradição entre as possibilidades com que ele se encontra. Ou seja, diz respeito à liberdade pura da vontade entendida em si mesma. Trata-se de uma liberdade anterior à decisão ela mesma, não devendo ser entendida como uma mera liberdade fenomenal. A liberdade fenomenal diz respeito ao modo anterior. Agora delimita-se aqui o sentido fundamental da liberdade, apesar de não ser o sentido único da liberdade humana. A liberdade metafísica reside na não contradição entre as possibilidades dadas à vontade. Esta liberdade é anterior e delimita a própria vontade, isto é, define-a. A vontade, constitutivamente, tem que escolher, isto é, as possibilidades com que se depara são possíveis de igual modo, numa perspectiva puramente lógica. Assim, é a esta forma de liberdade que Leibniz chama especificamente livre arbítrio. O livre arbítrio consiste na determinação não necessária da vontade. Ou, por outras palavras, consiste no carácter não necessário da decisão. Isto significa que qualquer que seja a força das razões apresentadas pelo entendimento, o acto da vontade permanece contingente, de tal modo que o entendimento, podendo apresentar-se em sede da vontade fazendo prevalecer as suas razões certas e declarando-as infalíveis, inclina sem necessitar.

Este esclarecimento alcança algo de novo. Dissemos já que as inclinações confusas podem dominar a nossa vontade, inclinando-a sem a necessitar e que, deste modo, cabe ao entendimento esclarecer a vontade. Agora asseguramo-nos que o entendimento esclarece a vontade inclinando-o sem o necessitar. O esclarecimento da razão pode sugerir-se a si mesmo à vontade, apresentar todas as suas razões e, ainda assim, a vontade deixar-se inclinar pelas razões atemáticas, isto é, pelas paixões. Não implica contradição. O esclarecimento pode não ser suficiente para inclinar a vontade161. Isto não deve ser entendido no sentido de agir sem impedimento. Pelo contrário, como acima se mostrou, o impedimento coloca o humano numa situação em que tem que é posta à prova a sua liberdade. Isto é, um impedimento dá azo à execução da liberdade, na medida em que exige da vontade que plenamente se escolha a si mesma, afirmando o

159 Note-se que o desejo é uma confusão de inquietações que é notada, precisamente, enquanto esse apelo e que se manifesta enquanto impelindo.

É esta dinâmica entre apelar e impelir, entre atracção e projecção que gera, constitutivamente, o sentimento de adesão. Assim a paixão produz pela sua própria natureza a sensação de liberdade. Podemos confirmar isso quando decidimos jogar um qualquer jogo que acabámos de comprar. A nossa adesão ao jogo é de tal modo que a compreendemos como uma decisão nossa sem esclarecermos as condições da nossa intenção, sem nos apercebermos doutras possibilidades que, apesar de disponíveis não chegam sequer a ser ponderadas, dado que são obscurecidas pela luz do desejo de jogar. Assim, possibilidades que à partida estariam disponíveis, tal como o ir estudar, e outras que não estavam disponíveis, tais como voar até à Lua, ficam igualmente obscurecidas no limbo da não consideração, isto é, da distracção. Obviamente que as possibilidades que à partida estariam disponíveis não chegaram a disponibilizar-se, pois só aquilo de que o espírito se apercebe pode chegar a ser considerado. Note-se ainda que isto não significa que não hajam inquietações confusas que são contabilizadas no processo de decisão, mas, precisamente, tratam-se de totalidades de inquietações confusas que impressionam o espírito e por este são notadas na forma dum desejo ou inclinação apercebida.

160 “L’esclavage d’esprit”.

161 Vemos isso na nossa vida sempre que sabemos que o tabaco nos é prejudicial e, ainda assim, fumamos. Retenham-se aqui os esclarecimentos alcançados ao longo do nosso estudo. Assim, devemos ter presente, que esse esclarecimento não é forçosamente pleno. A confusão pode permanecer sob a capa de esclarecimento projectada pela análise. Contudo, a análise pode não ter sido suficientemente esclarecedora. Há uma falta de esclarecimento que não se alcançou. O esclarecimento pleno dar-se-ia instalando, de avanço, o humano na situação opressora de se encontrar tomado pela doença do cancro, situação diminuidora de possibilidades, limitadora do campo de disponibilidade e, aliás, afuniladora do ponto de vista. No entanto, o esclarecimento falha essa tarefa não a esclarecendo suficientemente devido, sobretudo, à instalação originária do humano no agora que o domina. A disposição presente predomina. Deste modo, a pretensão de esclarecer essa situação de cancro permanece mas sem se ter esclarecido a si mesma enquanto predominada pela disposição de agora. Isto é, pretende-se ter alcançado esclarecimento sobre uma disposição em que ainda não nos encontramos, quando não esclarecemos o papel da disposição em que de facto, isto é, incontornavelmente, nos encontramos.

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que afirmou, confirmando a sua decisão. O impedimento não nega a liberdade, pelo contrário, coloca-a à prova exigindo o esforço de se ser livre.

Ora, o problema que doravante nos ocupará será, precisamente, esse da pressuposição de lucidez e a possibilidade do humano se encontrar esclarecidamente numa situação de lucidez. Advertimos que não se discute a legitimidade do ponto de vista. O ponto de vista encontra-se legitimado pelo facto de que, enquanto ponto de vista, vê o que vê. Este ponto também já foi esclarecido e, deste modo, avançamos já para o que propusemos analisar.

S e c ç ã o 1 5

DA PRESSUPOSIÇÃO DA EVIDÊNCIA

Começamos esta secção mostrando o que é mais evidente. Deus surge como o único ser plenamente livre. Ora, o ponto de vista humano é, constitutivamente, distraído, nos termos atrás expostos. Como tal, o ponto de

vista não pode deixar de ser um ponto de vista, ou seja, o afunilamento é constitutivo do próprio modo de ser ponto de vista. Ou seja, o ponto de vista não pode deixar de ser uma visão das coisas. Esta visão não pode deixar de estar situada, de ter um ponto de partida, e uma vista de chegada. O ponto de vista não pode deixar de estar disposto, nos termos atrás analisados.

A importância de Deus é, pois, fundamental e o valor da religião é absoluto162. Deus detém, por definição, a visão da Verdade e, nessa medida, a religião corresponde à possibilidade do esclarecimento em propriedade do ponto de vista originariamente confuso. Deus é a possibilidade da restituição da plenitude ao humano, é a possibilidade por excelência de religar o humano consigo mesmo.

Percebe-se por isso a importância divina, na medida em que Deus corresponde ao ponto de vista que, por definição, é transcendental e conhece puramente, por intuição, as verdades em si mesmas. Deus é o ponto de vista que vê a verdade163. É o ponto de vista total, em propriedade. Não detém a totalidade do universo percebida confusamente, mas claramente. A sabedoria divina é, portanto, a luz. Deus é a Luz que clarifica a confusão, que traz à luz o obscurecido, que cura a cegueira. A obcecação constitutiva do ponto de vista humano encontra em Deus a luz que o ilumina e guia libertando o seu espírito das amarras mundanas. Assim, o humano viveria ao modo propriamente humano em vez de ser sugado pelas coisas do mundo da vida, em vez de se tomar a si mesmo ao modo do mundo, tomaria o mundo ao seu modo. Esta possibilidade constitui a excelência, ou, como diz Leibniz, a perfeição do ser humano. Isto significa que executar a sua possibilidade mais própria coincide com esta existência. Por outras palavras, o humano foi feito para tomar o seu mundo, esse mundo que é único, um mundo à parte só seu – o humano foi feito para tomar o seu mundo ao seu modo. O mundo do humano deve ser o mundo em que executa as suas possibilidades mais próprias. Deve ser o mundo em que se torna o mais perfeito possível. Desse modo ele atingiria a realidade perfeita, tanto quanto uma imagem pode ser clara e distinta.

Mas, apesar disso, no início e na maioria das vezes o humano encontra-se vivendo o mundo ao mundo do mundo, de tal modo que o humano toma a forma das coisas para que se inclina de cada vez. A sua realidade tem a constituição das coisas para que se projecta. Absorvido nas coisas do mundo o humano depende delas. E as coisas do mundo, ao contrário de Deus, são efémeras e não duram. O humano, vivendo mundanamente torna-se mundano ficando nas mãos das coisas. As coisas dominam-no e o seu espírito está delas dependente. Assim se perde na perda mundana e se alegra das alegrias

162 Note-se que haveria também que esclarecer modos disposicionais peculiares em que o humano se pode encontrar a si mesmo que o podem

levar a resvalar para uma situação de esclarecimento próprio e que exigiria uma análise específica. Fenómenos tais como o tédio ou o relacionamento com a morte/imortalidade deveriam ser analisados numa análise da liberdade em Leibniz. Haveria que determinar os modos dessas disposições a partir das exposições de Leibniz e analisar os pontos de vista assim dispostos, bem como os ganhos decorrentes daí. Essa análise, e a própria determinação do que aí haveria a analisar, ultrapassariam a extensão total deste trabalho e aumentariam, consideravelmente, este estudo. Por outro lado, como nos interessa mais o modo como se pode determinar o estado em que se está de facto livre, e menos os modos involuntários que podem ser razão duma instalação involuntária numa situação de liberdade de facto, permitimo-nos não avançar para essas análises. Assim, optámos por não as considerar sequer evitando deste modo trabalhar com resultados cuja obtenção não é exposta.

163 A ideia de cada um dos humanos está verdadeira e formalmente em Deus. Não se trata, como já deve ter ficado claro, da essência abstracta da humanidade, mas da noção das substâncias individuais. Todas as noções de todas as substâncias individuais se encontram em Deus.

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mundanas sem cuidar de que tal vida corresponde mais a um ser levado que a um viver. Em vez de fazer do seu mundo o seu lugar de excelência, molda-se segundo o mundo e as coisas do mundo ordenam mais do que ele. É assim que ele é disposto por esses fracassos e por essas vitórias com as coisas efémeras e se torna uma marioneta nas mãos da paixão. Em vez do mundo ser o mundo da execução da vida própria do humano, o humano declinado pela vida é como que executado pelo mundo. Ora, esta declinação corresponde a uma inautenticidade, na medida em que a forma do humano é viver o seu mundo. Esta inautenticidade significa uma falha relativamente ao alvo. Viver o seu mundo torna-se para o humano declinado um viver arrastado pela vida.

Ora, a questão que propomos é saber como saber que se está, de facto, no caminho da perfeição. O que é necessariamente verdade é a inferência dedutiva, ou mais precisamente, as regras lógicas e matemáticas que permitem transformar os termos duma indicação, num número útil de passos, em identidades sob a forma de interdefinições. Por outro lado, aquilo que se passa em nós pode não corresponder a nada. Pode acontecer que o mundo não passe de uma espécie de alucinação elaborada. Uma inferência cujos termos são incompreensíveis. Note-se, pois, que o que é verdade é a forma do silogismo. No que ao tratamento lógico dos fenómenos diz respeito, a forma é incapaz de avaliar da sua necessidade, dado o prolongamento ao infinito da análise. Entretanto, a análise permanece possível. O alcance da análise, por sua vez, permanece problemático. Esta problematicidade lança sobre a liberdade plena do humano uma névoa. É possível que o humano perpasse a sua existência sem nunca ser de facto livre, sem nunca executar plenamente a sua possibilidade mais própria. A vida do humano pode tratar-se dum erro gigantesco, pois qualquer sentimento de perfeição pode, precisamente, resultar dum erro. A evidência pode resumir-se a uma alucinação que pressupõe a própria evidência.

Isso significa que a forma do nosso ponto de vista estipula uma verdade e um sentido que pode, de facto, não descrever a verdade e o sentido do mundo, o mesmo é dizer que a linguagem do ponto de vista humano não diz nada do seu próprio mundo. Pode objectar-se que o ponto de vista fala do seu mundo e projecta-se no mundo em que leva em diante a vida que é a sua. No entanto, permanece precisamente a possibilidade de que essa projecção falhe o que visa, que esse dizer não diga nada acerca daquilo de que fala, que a busca da perfeição se resuma a uma vida imperfeita e que a noção de que se vive livre se trate, afinal, do domínio duma paixão que se impõe com a aparência de decisão. O próprio acto derivado de se ser declinado por uma inclinação se mostra como escolha decidida dessa intenção. Ou seja, a vontade é, formalmente, um esforço decidido, de tal modo que esse é o modo como se mostra mesmo quando não passa de uma paixão que submete a vontade sem intervenção do entendimento.

A verdade e o sentido do ponto de vista humano, dada a sua formalidade, apenas se poderiam esclarecer numa análise que não poderia ser conclusiva para o ponto de vista humano, pois o que está de facto esclarecida é a sua forma, a qual, aliás, é pressuposta pela própria análise. Uma análise lógica é lógica precisamente na medida em que pressupõe as regras lógicas. O esclarecimento destas é, por definição, impossível164. Mas isto não significa que todo o esclarecimento exija apenas as regras lógicas. Precisamente, naquilo que mais importa, o esclarecimento do domínio da existência humana, as regras lógicas pressupostas fornecem apenas uma forma vazia que não pode ser cabalmente preenchida por um esclarecimento fenomenológico. Pois, precisamente, os fenómenos existenciais são de tal modo que apenas se poderiam esclarecer para um ponto de vista que, de um só golpe, se instalasse disposicionalmente neles e, simultaneamente, os pudesse avaliar em todos os fenómenos que deles viessem a resultar. O caso do fumador que sabe dos malefícios do tabaco e continua a fumar é paradigmático. O que está em causa é confuso. Primeiro há essa impossibilidade do ponto de vista de agora que sabe dos malefícios do tabaco ser o ponto de vista que sofre os malefícios do tabaco. Mas ainda que o ponto de vista conseguisse operar uma tal antecipação em propriedade e experienciar agora, de avanço, essa disposição ainda não instalada, seria necessário, para um esclarecimento cabal, que se fizesse luz sobre todos os demais fenómenos resultantes daí. E isto significaria trazer à luz o sentido de todos esses fenómenos tendo em vista, precisamente, a possibilidade da perfeição. Ora, precisamente o que está em questão é a possibilidade de trazer em próprio, à consideração humana, essa possibilidade de execução.

Ora, do que já foi alcançado as dificuldades são as seguintes: primeiro, que as verdades necessárias estão em nós (são inatas) mas que podem não ter sido apercebidas; segundo, que a apercepção dessas evidências não esclarece o próprio fenómeno da evidência; terceiro, que a evidência é meramente formal, podendo não dizer nada; quarto, que o

164 Quer em absoluto, quer relativamente. Em absoluto porque, precisamente, essas são as evidências primárias sobre as quais nenhuma outra

lança luz, dado que são condições de evidência. Não se pode provar o princípio da identidade, tal como não se pode provar o princípio da contradição, pois qualquer demonstração se faria recorrendo precisamente a eles (que estavam a ser provados). Relativamente, porque a própria evidência manifestada nos enunciados necessários não se apresenta enquanto tal, em próprio, mas na impossibilidade do seu contrário. Ou seja, que A seja necessariamente mostra-se pela impossibilidade de não-A.

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dizer evidente necessitaria ainda de ver esclarecido o seu sentido. Ou seja, a dificuldade reside não só na evidenciação, mas também na evidenciação dessa evidenciação.

Ao leitor que ainda não veja esclarecida a pertença desta temática ao estudo da liberdade, reformule-se o anterior na forma que se segue.

As dificuldades, relativamente ao tema da liberdade, são as seguintes: primeiro, não é claro que o agente da nossa vida sejamos nós; segundo, mesmo que se mostrasse isso ficaria por se mostrar o valor deste mostrar; terceiro, o mostrar-se agente da própria vida é a forma da manifestação da apercepção de si mesmo, portanto, não diz nada quanto a quem é de facto o agente da sua vida; quarto, o esclarecimento da acção precisa ser esclarecido. Enfim, resumindo: é duvidoso que sejamos livres quando agimos sem pensar; mas, mesmo que pensemos, podemos estar a ser levados por pensamentos que não são livres165.

Ora, a liberdade pressupõe vontade, mas também a deliberação. A pergunta pela liberdade consiste, afinal, apenas em questionar se o espírito do homem é livre, e em que isso consiste166. A deliberação deve decorrer do entendimento humano. O treino do entendimento desenvolve, precisamente, o processo de decisão da vontade. A escolha melhora com o treino. E pelo treino, que significa também insistência, o humano aprende a determinar os seus próprios pensamentos pelas suas escolhas deliberadamente formadas, de modo a determinar-se a si mesmo autonomamente, em vez de se deixar determinar e arrastar pelas impressões provocadas heteronomamente. Isto não significa, como já se disse, desenvolver um espírito do contra. Aqueles que dizem sempre não, que depois de considerarem todas as possibilidades, optam pela que menos lhes agrada apenas para mostrarem a independência e a liberdade do seu espírito, deixam-se determinar por essa mesma razão que os impede de se determinarem por aquela razão que o seu entendimento preferiu enquanto melhor. Estes não são livres, mas tão escravos de um capricho ou paixão quanto quaisquer outros e recebem comummente o adjectivo de teimosos.

A liberdade de querer, mostrada acima como conveniente ao humano, não significa também um querer querer, o qual significaria um querer querer querer, e assim ao infinito. A liberdade de querer não pressupõe uma liberdade anterior, a qual, essa sim, seria a liberdade, mas que, nesse caso, colocaria uma outra anterior levando o caso ao infinito. A liberdade de querer é já anterior a essas liberdades de andar ou mexer as pernas, de dizer mal do governo ou ir ao baile de máscaras da faculdade. A liberdade de querer corresponde a um querer fazer o qual implica, como é bom de ver, a resolução ou, como diz Leibniz, o vigor de querer. O vigor de querer é a força de escolher uma certa possibilidade a todas as outras na medida em que essa é a que agrada. Significa, pois, a resolução em deliberar. Ou seja, é precisamente o esforço para a existência. Portanto, compreende a resolução de excluir a não existência dessa possibilidade, ou seja, a resolução de ser nesse esforço e a resolução de permanecer nesse esforço.

O vigor de querer retém esse sentido do esforço do treino, do qual já falámos. Assim, com o tempo de exercitação do espírito, o humano consegue treinar-se a julgar167 e a querer. Isto significa que se treina a resolução nos seus dois sentidos. Treina-se no sentido de desenvolver a tomada de decisão, e treina-se no sentido de desenvolver a perseverança nas decisões tomadas. Este treino consiste em levar o humano a querer e a julgar com o tempo aquilo que

165 Leibniz alerta, precisamente, para a formação de pensamentos involuntários. O involuntário nunca é livre, mesmo que se aceite, sobre

reservas, que há actos voluntários não livres. Ver Ensaio, 120: “De resto, vêm-nos pensamentos involuntários, em parte de fora através dos objectos que impressionam os nossos sentidos [tal como a dor], e em parte de dentro devido às impressões (muitas vezes insensíveis) que restam das percepções precedentes que continuam a sua acção e se misturam com as impressões novas. Nós somos passivos a este respeito e, mesmo no estado de vigília, ocorrem-nos imagens ([…]), como nos sonhos, sem serem chamadas. A língua alemã denomina-as fliegende Gedanken, […], onde há, às vezes, muitos absurdos que fazem sentir escrúpulos às pessoas de bem […]. É como uma lanterna mágica que faz aparecer figuras na muralha à medida que alguma coisa roda no seu interior. […] É verdade que a este respeito os homens diferem muito, tanto segundo o seu temperamento como segundo o modo como exerceram o seu controle, de maneira que um pode vencer as impressões pelas quais outro se deixa arrastar.” Este deixar-se arrastar é, precisamente, o que está em causa: como pode um humano saber quando se está a deixar arrastar por estas impressões, quer vindas de fora, das ocupações e dos obstáculos, quer vindas de dentro, dos desejos e sofrimentos? Quando fugimos de um leão parece-nos claro que não estamos livres (e também esta clareza não implica distinção), mas quando se decide ter um filho a fronteira entre paixão e decisão é ténue. Estará o humano a deixar-se arrastar por uma inquietação que impele confusamente à propagação da espécie? Estará o humano a deixar-se arrastar por uma inquietação que impele confusamente para o prazer sexual? Estará o humano embrenhado numa confusão de inquietações, cujo motivo lhe escapa, e que apercebe como vontade de ter um filho, quando afinal está a ser arrastado por esses dois instintos básicos? Estas questões são retóricas e colocamo-las aqui como forma ilustrativa das dificuldades que nos enfrentam.

166 Op. cit, 122.

167 Julgar é, também, decidir. Cf. Op. cit., 123.

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se desejaria querer e julgar168. O objectivo é querer o que se quereria querer. Ora, este objectivo é, ele mesmo, problemático. O que se quer é, enquanto é aquilo que se quer, aquilo que determina o nosso querer169. Portanto, quando se quer não há um outro querer que pudesse querer outra coisa, como se se quisesse uma coisa querendo-se querer uma outra. Esta expressão vulgar que se tem no dia a dia expressa não um querer querer outra coisa diferente daquela que se quer, mas um conflito entre quereres – digamos assim. Assim, quando Leibniz diz que o treino nos permite querer aquilo que se quereria querer está a dizer-nos que treinamos a nossa vontade a escolher bem, a escolher acertadamente, a escolher esclarecidamente. Ora, isto significa um ganho relativamente ao modo não treinado de querer.

O modo não treinado de querer trata-se daquela instalação do humano em que este se deixa arrastar tomando a forma do mundo. Como diz magistralmente Leibniz, neste situação “Ligamo-nos às pessoas, às leituras e às considerações favoráveis, a um certo partido, não prestamos atenção àquilo que vem do partido contrário e, mediante tais habilidades e mil outras que usamos o mais das vezes sem intenção expressa e sem pensar nisso, chegamos a enganar-nos ou, pelo menos, a alterar-nos e a converter-nos ou perverter-nos segundo aquilo que tenhamos encontrado.”170 Então, de que ganho se trata aqui é o que estamos perguntando. Ou seja, o treino parece permitir-nos ultrapassar esse estar declinado pelas sugestões do mundo, por assim dizer. No entanto, permanece o problema da validade deste segundo momento, deste momento treinado. O que está em causa é saber se isso que se quereria querer não está, precisamente, determinado pelo querer desse mesmo segundo momento, sendo, portanto, este ganho uma alteração do ponto de vista que em nada implica um aperfeiçoamento, na medida em que o ganho é uma pressuposição do ponto de vista treinado.

Ora, a verdade do nosso ponto de vista, adquirida unicamente pela via formal, não pode escrutinar este problema, uma vez que a possibilidade humana é, por definição, contingente. Assim, será sempre impossível demonstrar a necessidade das nossas escolhas, e é igualmente impossível mostrar a identidade entre as nossas escolhas e a perfeição. De resto, se esta demonstração fosse possível cortar-se-ia, por via metafísica, a própria possibilidade da liberdade. A verdade ao dispor do ponto de vista humano permite-lhe apenas distinguir algumas falsidades que, sendo contraditórias, nunca foram possibilidades humanas. Por esta via, portanto, nada se ganha no que diz respeito à liberdade propriamente humana.

Tentando analisar esse treino fomos mostrando que ele consiste numa elucidação que abre a deliberação propriamente entendida enquanto decisão esclarecida. Esta elucidação não pode significar uma transcendência do ponto de vista humano, pois essa transcendência convém propriamente a Deus. Essa transcendência significaria um ver além do olhar, o que não é possível. É no horizonte do olhar que se constitui o ver, ou, dito de um modo mais rigoroso, é no domínio perceptivo que deve constituir-se a apercepção. Apenas o que impressiona o espírito pode ser por ele notado. Ora, se olharmos para a análise que acabámos de fazer notamos que este esclarecimento, enquanto esclarecimento, acrescenta alguma coisa ao ponto de vista não treinado. Tentemos então entender este avanço.

O que um esclarecimento ou análise parece fazer é deter-se ao horizonte em que de facto se encontra, fazendo dele tema de atenção e encadeando pensamentos num seguimento lógico. Ou seja, limita-se à revelação. A revelação não pode, por definição, alterar as coisas. Portanto, o acrescento não é um acrescento de coisas. Esta alguma coisa que se ganha não deve acrescentar coisa alguma, caso contrário não se trata mais de uma revelação, mas de uma criação. Este é o primeiro perigo do olhar temático. O ponto de vista, ao constituir-se em ver teórico, corre o risco de criar novas coisas vistas. Então não se trata mais de uma análise propriamente dita, por melhores que sejam as suas intenções. E o problema é precisamente a intenção do ver teórico: o ver teórico é, constitutivamente, um modo de olhar que se compreende a si mesmo como vendo melhor. Nesta medida, a análise ficcional não se aperceberia dessa criação e pressupor-se-ia fidedigna.

Ora, a revelação não pode, por definição, alterar a disposição das coisas, devendo usar um método adequado, manuseando as coisas na sua recta medida. Este é, portanto, o segundo perigo da análise: tornar-se uma manipulação das

168 Não há outra forma de o dizer. Não é humanamente possível lançar um querer sob um querer, nem é possível escolher não querer, pois,

precisamente, existiria um querer (de não querer). O humano não é livre de não querer, nem dispõe dum querer que queira ou julgue o que quer. Aquilo que o determina, determina-o. Aquilo que ele acha bom, acha-o bom. O que por vezes ocorre é um conflito de vontades (relembrar a formação da decisão como uma vontade final resultante das vontades em conflito). Mas o humano pode treinar-se de modo a vir a querer aquilo que quereria querer. Isto significa que, neste segundo momento, ocorreu uma alteração qualitativa do ponto de vista. Supõe-se, precisamente, que neste segundo momento, o ponto de vista está mais esclarecido, de maneira que escolhe aquilo para que foi treinado, mas mais do que isso, esta escolha está de acordo com aquilo que a sua vontade quereria escolher se lhe fosse possível escolher aquilo que quer.

169 O uso do termo segue, aqui, segue a aplicação prática. Entenda-se, portanto, querer como determinação da vontade, ou se se quiser evitar as redundâncias, entenda-se querer como vontade.

170 Ibidem.

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coisas. Claro que estes modos de o ponto de vista se equivocar têm, eles próprios, vários modos. Esta manipulação pode, por exemplo, resultar do predomínio da preconcepção detida de avanço. Então, quando o ponto de vista pressupõe estar executar a análise elucidando a sua posição, está afinal a sujeitar à sua posição todo o processo. Tudo isso permanece, entretanto, inapercebido.

A revelação deve, portanto, elucidar a sua própria posição, e é isto que está em seu poder. O ponto de vista pode querer esclarecer o horizonte em que se encontra de facto, o horizonte incontornável da sua existência, limitando-se, para isso, a descrever e analisar as formas da situação em que se encontra, isto é, disso que se passa. Ora, aqui reside um novo problema. Nas situações anteriores o ponto de vista pressupõe estar a realizar precisamente esta tarefa. E é esta tarefa que ele falha. É problemático, então, que o ponto de vista saiba que se está a limitar a descrever e a analisar aquilo que se passa. Por outro lado é igualmente problemático que aquilo que se passa e que, portanto, é descrito, possa ser descrito fora das pressuposições disso que é descrito. É problemático que, para proceder à descrição e análise da vida o ponto de vista possa desenvencilhar-se das pressuposições da vida. Assim, é perfeitamente possível que aquilo que é descrito não só ocorra na própria descrição, mas precisamente a enforme. Na medida em que é possível, não há maneira de saber que isso não acontece. E não é possível fazer esta averiguação porque a forma da análise é a forma do ponto de vista. A coincidência entre ponto de vista e mundo na Filosofia leibniziana traz-nos a esta aporia. Não só é possível como é de supor que a análise que o ponto de vista empreende seja determinada pelas formulações que determinam o ponto de vista. Pode concluir-se que o que é analisado (e analisar é uma forma de ver) seja (determine) o próprio acto de analisar. O que está a ser visto é o que está a ver. Na elucidação, por força intrínseca, o elucidado coincide com a elucidação. O ponto de vista resta preso de tal modo que o sentido da descrição permanece na dependência daquele que elucida. Portanto, quando o ponto de vista se confrontar consigo mesmo para validar o treino que exerceu sobre si mesmo e se afiançar a si mesmo de que desenvolveu a capacidade que querer o que quereria querer – nesse confronto está determinado pela sua forma constituinte, de tal modo que permanece questionável que a validade deste ganho seja de algum modo superior ao ponto de vista não treinado.

Ou seja, o ponto de vista, durante a elucidação, permanece refém da disposição em que se encontra. Tornar-se teórico permite-lhe livrar-se de alguns erros mais ou menos evidentes. Mas não terá como saber até que ponto tem que escavar de modo a desenvencilhar-se de todas essas inclinações confusas que o arrastam. Na medida em que são confusas e constituem a disposição que o determina, elas podem permanecer confusas durante o esclarecimento. Nada indica que o esclarecimento, não podendo sair do ponto de vista, possa dar conta das suas declinações.

Anote-se aqui um exemplo: no filme Matrix, Neo apercebe-se de que há algo de errado com o seu mundo. Apesar disso lhe permitir uma consciência de si bastante desenvolvida, jamais pôde, dentro do seu mundo, perceber qual a verdadeira razão da sua escravatura. Apenas quando de fora desse mundo lhe veio a informação é que Neo percebeu o sentido real da sua escravatura. O problema é precisamente esse: como pode o ponto de vista esclarecer-se acerca das amarras que determinam o seu olhar? Note-se que esclarecer-se acerca das amarras que determinam o seu próprio olhar é requisito da abertura da possibilidade mais própria e, consequentemente, da instalação numa situação em que o ponto de vista se encontre disposto livremente. Mas esse esclarecimento é fundamental também para esclarecer a natureza da própria escravidão e, consequentemente, a própria natureza da liberdade enquanto execução da vida de acordo com a possibilidade mais própria do humano. Ou seja, a condição necessária para compreender e atingir a liberdade de facto maximamente desenvolvida é a instalação do humano numa situação livre.

O círculo é vicioso: para se poder alcançar a liberdade é requerido que se esteja previamente livre. Este círculo deve ser esclarecido (e note-se que, fazendo a admissão da advertência que fizemos no início do nosso

trabalho, devemos admitir que o nosso estudo aqui apresentado não se encontra numa posição privilegiada). A elucidação, na medida em que deve revelar, trata-se duma descrição e análise. Esta pretensão a descrever e

analisar o horizonte do ponto de vista, permanecendo, como não pode deixar de ser, nos limites do seu próprio olhar, não significa a possibilidade de deter esclarecidamente a forma e os limites desse horizonte. Isso significa que não só não podemos escrutinar o sentido do descrito, como também não podemos escrutinar os limites do que deve ser descrito, ou, dito de outro modo, não só não sabemos das inclinações que nos arrastam e limitam o olhar, como não sabemos os limites do que realmente é possível para nós, dado o afunilamento provocado, precisamente, por isso que nos declina.

O círculo significa, então, que a possibilidade intrínseca ao ponto de vista, enquanto espelho, de se reflectir, não garante a possibilidade de esclarecer a sua imagem. Ou seja, a possibilidade de descrever e analisar o visto, sendo repetível, permite descrever e analisar a própria análise, e assim por diante, procedendo a sucessivas análises, sem essa reduplicação do ponto de vista implique que se atinja um ponto de vista livre. Precisamente, a possibilidade de revisão, sendo constitutiva do ponto de vista, reduplica o carácter de visão. A revisão é também uma visão. O que está em causa

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não é a possibilidade do esclarecimento, pois este mesmo estudo mostra sua possibilidade, mas pelo contrário, a própria condição que possibilita o esclarecimento contamina-o. O ponto de vista que se esclarece pressupõe o ganho relativamente ao estado anterior, de tal modo que compreende esse ganho não só como um ganho quantitativo, mas também qualitativo. O esclarecimento pressupõe que realizou o esclarecimento que faltava.

O ponto de vista tende, precisamente, para o que visa, de tal modo que imerge no objecto visado esquecendo-se de si. O ponto de vista não se compreende como ponto de vista. O ponto de vista pré-compreende-se como visão tomando o afunilamento do seu horizonte por claridade e distinção. Quanto mais uma coisa o impressiona, mais esclarecido ele se compreende, de tal modo que a sua declinação para as coisas da vida lhe dá a compreensão de si mesmo como livre para essa imersão nas coisas que o arrastam. Ora, o estado em que se encontra é sempre de pressuposição de clareza do ponto de vista. Se pudéssemos comparar o ponto de vista a um óculo seria um óculo que se compreenderia sempre a si mesmo como detendo uma lente absolutamente límpida. O ponto de vista pressupõe sempre a limpeza da sua visão. Assim, a elucidação, conquistando o estado em que se estava, permanece atemático quanto a si mesmo, de tal modo que é possível que algumas amarras anteriores permaneçam e novas se tenham constituído. Se se abriram novas possibilidades, outras se poderão ter esquecido, e outras poderão permanecer ofuscadas pelo brilho das recentemente iluminadas. O que está em causa é, portanto, a forma do esclarecimento. Ou seja, a possibilidade de constituir uma elucidação livre. Mas é essa mesma possibilidade que permanece não esclarecida. E isso devido à própria constituição do ponto de vista enquanto tal, pois este não podendo constituir-se indiferentemente, não está em condições de decidir sobre a liberdade da situação em que se encontra instalado. E isso apesar, ou devido ao facto se supor ter-se instalado nessa possibilidade. Não se passa que o ponto de vista venha a revelar-se como ilusão. O que este esclarecimento alcançou foi a possibilidade dum estado permanente de confusão. Nesta medida, o ganho que o estado de elucidação conquista relativamente ao estado atemático não é substancial. Na verdade, de certa forma, o estado permanece o mesmo. Ou pelo menos a sua forma mantém-se. Ora, a manutenção da possibilidade da confusão significa que ela pode, com toda a legitimidade, ser suposta.

A possibilidade de proceder à correcção do ponto de vista não parece, até agora pelo menos, estar em nosso poder. E isso apesar do treino que se possa exercer sobre a vontade e o entendimento, pois esse treino só seria profícuo se se detivesse de antemão esclarecimento quanto aos exercícios correctos a treinar. Não havendo esse esclarecimento qualquer treino pode não ser mais que um exercitar do erro.

Reformulando os avanços que fizemos numa linguagem que nos permita avançar devemos dizer que, dada a pressuposição da liberdade, não estamos em condições de distinguir um estado de confusão revista confusamente dum estado de liberdade de facto. Apenas distinguiríamos o estado de liberdade de facto estando num estado de esclarecimento bem sucedido, isto é, num estado de confusão. Por outro lado, os estados de confusão pressupõem-se a si mesmos como livres. Nessa medida, quando o ponto de vista se vê como livre não tem como saber se isso se deve a um estado de liberdade de facto ou a um afunilamento e a um estado de confusão.

Uma das possibilidades que se depara no esclarecimento proposto é a da admissão da declinação171.

S e c ç ã o 1 6

O ESTABELECIMENTO DE HIPÓTESES E O ESTADO DE CONFUSÃO

171 Cf. Carta a Burnett, GP, III, 192: “J’appelle Establissement lorsqu’on determine et acheve au moins certains points, et met certaines theses hors

de dispute, pour gagner terrain et pour avoir des fondemens, sur lesquels on puisse batir. C’est propremente la methode des Mathematiciens, qui separent certum ab incerto, inventum ab inveniendo, et c’est ce qu’en d’autres matieres nous ne faisons presque jamais, parceque nous aimons à flatter les oreilles par des beaux discours, qui font un melange agreable du certain et de l’ incertain, pour faire recevoir l’un à la faveur d l’autre.” ; De organo sive arte magna cogitandi, Opuscules,431: “Quoniam vero non est in potestate nostra perfecte a priori demonstrare rerum possibilitatem, id est resolvere eas usque in Deum et nihilum, sufficiet nobis ingentem earum multitudinem revocare ad paucas quasdam, quarum possibilitas vel supponi ac postulari, vel experimento probari potest.”. Ver ainda Carta a Foucher, GP, I, 381-382 : “En matiere de connoissances humaines il faut tacher d’avancer, et quand même ce ne seroit qu’en establissant beaucoup de choses sur quelque peu de suppositions, cela ne laisseroit d’estre utile, cara u moins nous sçaurons qu’il ne nous reste qu’à prouver ce peu de suppositions pour parvenir à une pleine demonstration, et en attendant, nous aurons au moins des vérités hypothetiques, t nous sortirios de la confusion des disputes. C’est la methode des Geometres. […] On doit supposer certaines verités, ou renoncer à toute esperance de faire demonstrations, car les preuves ne sçauroient aller à l’infini”. Finalmente, comparar com Méditation sur la notion commune de la justice, Mollat, 65: “[…] on peut dire qu’il en est de meme du gouvernement des substances intelligentes sous la Monarchie de Dieu ou tout paroist confus à nos yeux”.

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A colocação da hipótese da confusão do nosso ponto de vista corresponde à admissão da distracção, contudo, dado a admissão em esclarecimento trata-se, paradoxalmente, da admissão esclarecida do estado de confusão. Por outras palavras, o ponto de vista, embrenhado nos círculos intermináveis da exposição alcança um certo estado em que o que é, para ele, evidente, é o estado de desorientação em que se encontra.

Apesar de todas as derivações paradoxais que disso se poderiam fazer, na prática metodológica corresponde a algo bem determinado, a saber, à descrição daquilo que se passa consigo mesmo como desorientação. O ponto de vista descreve-se a si mesmo como desorientação. Obviamente, trata-se de uma hipótese, pois essa desorientação é simplesmente estabelecida como compreensão possível, isto é, trata-se de uma hipótese porque se assume a possibilidade de explicar aquilo que se passa. Entretanto, a desorientação do ponto de vista permanece ao nível formal, uma vez que do ponto de vista que procede à descrição o seu próprio estado de desorientação é apenas um modo de, precisamente, se orientar.

Por outras palavras, a tal hipótese admitida não é mais que uma conjectura na medida em que pretende organizar teoricamente aquilo que, precisamente, não é organizável. Ou seja, pretende esclarecer o que não é elucidável, a saber, aquilo que se passa e, mais do que isso, pretende esclarecer o que se passa admitindo que não está em condições de o esclarecer.

Por outro lado, a hipótese avançada é delineada a partir do estado de coisas, do qual pretende ser hipótese explicativa. O ponto de vista, enquanto assume a sua própria orientação não pode deixar de estar, precisamente, em estado de desorientação. O princípio explicativo é estabelecido a partir de qualquer coisa que será uma consequência sua, a saber, a compreensão daquilo que se passa. A determinação desta hipótese, como qualquer outra decisão dum ponto de vista, não pode ser indiferente. Dada a não neutralidade constitutiva do ponto de vista, a inteligibilidade, ou se quisermos, o sentido dessa hipótese é estabelecido pela mesma situação que, precisamente, permite induzir a hipótese. É a pré-compreensão que determina a hipótese que deverá estabelecer a compreensão, tornando-se, portanto, este momento segundo (ou terceiro) de compreensão, efectivamente, uma interpretação. Deste modo a hipótese não pode colocar nada de novo e, de facto, se o fizesse seria uma mera quimera. Mas, ao não poder fazê-lo, não deixa de ser uma conjectura determinada por aquilo que está em causa explicar.

Reformulando, não é admitindo a impossibilidade de esclarecimento que se consegue alcançar um estado de esclarecimento. A liberdade não resulta da instalação numa situação em que o humano suponha a sua confusão. A admissão da desorientação não é um modo de estar orientado. O estado de desorientação estabelecido como hipótese corresponde, isso sim, ao reconhecimento de que a condição do humano não está em condições (não está em posse dos requisitos) de esclarecer (nem sequer de descrever) o que se passa com ele. Mas esse estabelecimento serve de princípio metodológico para afirmar a necessidade de continuar a treinar por uma questão de sobrevivência daquilo que é propriamente humano. A hipótese que está em causa é a do melhoramento contínuo. Ou seja, dado que o esclarecimento, apesar de não conseguir demonstrar o estado de coisas, deve mostrar a necessidade do treino em se esclarecer.

A possibilidade de alguma vez sair da condição de desorientação é problemática, pelo menos, enquanto essa possibilidade resulta dum visar do esforço humano (dado que esse visar não pode assegurar-se de acertar no alvo). Contudo, o que o esclarecimento alcança é um determinado estado que, apesar de poder permanecer em confusão, ganhou precisamente esclarecimento sobre o estado anterior. Ora, não óbvio que o estado presente se tenha desenvencilhado de todas as amarras, tal como não é certo que se tenham sequer mostrado todas as amarras que dominavam o estado antecedente. Mas, apesar disso, a possibilidade ganha permite precisamente submeter à consideração o estado anterior. Supõe-se, precisamente, que houve pelo menos uma correcção parcial.

A objecção que se pode fazer é dura e forte: o ponto de vista não se pode certificar de que o novo estado seja, de facto, melhor, apesar de supor esse esclarecimento. Contudo, de um ponto de vista prático, convém relembrar que o treino é um exercício de resolução, portanto, de tomar decisões em tempo útil. Deste modo, o esclarecimento, sem deixar de se esclarecer dessa possibilidade de permanecer em erro, ao aumentar consideravelmente o campo de disponibilidade, ao fazer luz sobre novas possibilidades e ao elucidar confusões em que se estava, alcança um novo estado em que alguma coisa se conquistou, um novo olhar, um novo olhar que deve explicar pelo menos o que o anterior já explicava, explicando pelo menos algumas condições dessa explicação anterior e deve, além disso, conquistar nova luz sobre o que se julgava já detido e, sobretudo, trazer à luz possibilidades não notadas pelo olhar anterior. A preferência que agora é feita, uma vez que tem ao seu dispor mais possibilidades e possibilidades mais esclarecidas (com as reservas feitas, reservas que são elas mesmas esclarecimentos), deve ser, portanto, uma preferência preferível172. Neste sentido, o

172 Este tipo de formulação é tipicamente leibniziana. Leibniz apresenta várias vezes a confusão do ponto de vista humana sob o ponto de vista

divino, o que, naturalmente, corresponde à apresentação da nossa confusão sob um ponto de vista que não nos é possível. Esta apresentação

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termo preferível da expressão anterior não nos deve levar a concluir de que este olhar que diz esta preferência se trate de um olhar perfeitamente esclarecido. O ponto de vista treinado conseguiu (com esforço, com resolução, com perseverança) colocar-se numa posição em que põe a hipótese prática de ter estabelecido um melhoramento do ponto de vista, dadas todas as considerações que tem ao seu dispor, mas assume essa hipótese, precisamente, no âmbito da admissão da confusão originária da sua posição. Deste modo, o ponto de vista não desiste aí, mas insiste sempre no esclarecimento, mesmo que isso o leve a ter que corrigir erros e a mudar a sua decisão numa tomada de posição que considera mais acertada.

Trata-se aqui da afirmação da necessidade racional de que a decisão humana seja uma deliberação. A decisão humana deve tentar, tanto quanto está ao seu dispor, o treino, evitar a distracção, evitar que as decisões que delineiam a sua vida sejam tomadas distraidamente. O ponto de vista tenta assim, nos limites da sua desorientação, orientar-se. O ponto de vista pretende ser o timoneiro da sua existência, e não um mero passageiro, ou pior, um mero escravo amarrado aos lemes no convés duma trirreme que pode afundar-se a qualquer momento.

Tentando expor o que alcançamos a hipótese que antecipa passa a considerar as coisas de um outro modo, mas não deve pressupor que domina as condições da sua formulação. A hipótese é adequada às ciências, mas quanto à vida humana deve precaver-se de se assumir a si mesma como livre. Há, no entanto, um reconhecimento que se alcançou: reconhece-se agora que o que se passa exige um processo de mediação, ou por outra, um trabalho de mediação. Reconhece-se, pois, de que a instalação imediata junto às coisas sofre constitutivamente de inevidência, ou, por outra, de confusão intrínseca.

Assim a hipótese parece não conseguir alcançar nenhum avanço relativamente ao estado natural e distraído. Mas, apesar dessa aparência, o nosso ponto de vista não pode deixar de ser um ponto de vista de inteligibilidade. Enquanto tal, não pode deixar de se compreender a si mesmo. Não pode deixar de tecer considerações acerca do seu próprio sentido. Destarte, o ponto de vista está sempre lançado na pergunta pela identidade disso que acontece, reconhecendo nessa identidade a constituição do seu próprio ser. O que está em causa é, precisamente, o seu ser e, consequentemente, a decisão quanto ao que não é173. Na medida em que a existência humana é o lugar de decisão, de tal modo que a cada vez o humano se encontra em situação de se decidir quanto ao seu próprio ser, a existência é constitutivamente acção. Isto significa que existir é, para o humano, trazer à luz o seu próprio ser. Este é o sentido do termo facticidade: a incontornabilidade do seu próprio ser. Na decisão joga-se o próprio ser do humano. Assim, o sentido prático demanda a premência da decisão, pois falta de resolução, quer enquanto indecisão, quer enquanto falta de perseverança (pusilanimidade), corresponde então à não existência. A ausência de resolução, ou as formas fracas de resolução implicam uma indecisão quanto ao próprio ser, uma falta relativamente ao compromisso consigo mesmo. A autenticidade deve ser, então, definida como resolução da acção, na medida em que a acção deve ser o exercício pleno da existência, isto é, do trazer à luz o seu próprio ser. Isto significa que a acção é um modo de esclarecimento e que, por outras palavras, a existência é esclarecimento. A existência é, precisamente, o desenvolvimento do ser, sendo que o ser omnicompreende a existência, ou seja, compreende a totalidade de todos os acontecimentos que poderão acontecer ao humano (ao indivíduo humano). O ser de cada um compreende a totalidade da sua existência, sendo a existência um esclarecimento de si mesmo. Deste modo, a existência distraída é, precisamente, um modo deficitário de existência. Trata-se de uma existência menos real no sentido leibniziano, uma vez que a realidade é proporcional à perfeição que se executa. O termo autenticidade, que temos já utilizado, torna-se agora mais claro: a autenticidade significa, precisamente, a existência num compromisso do agente consigo mesmo. Autenticidade significa liberdade, significa esclarecimento, significa existência treinada. Assim, qualquer acontecimento da minha existência não pode ser supérfluo, na medida em que, a cada vez, está em causa, precisamente, a decisão quanto ao meu ser. Existir é esclarecer-se. Ou seja, o humano é,

pode induzir o leitor de que essa posição de esclarecimento é, de facto, uma posição possível para o humano. Mas isso não acontece. O posicionamento humano é constitutivamente afunilado.

173 A pressuposição de que se poderia ter feito algo diferente do que se fez, mantendo-se a identidade – isto é, a pressuposição de que uma decisão diferente não significaria um outro agente não passa de uma pressuposição (de uma pressuposição de identidade onde não há identidade). A decisão corresponde pois ao acto distintivo entre ser e não ser. A decisão descrimina o ser do não ser. Assim, em suspenso na indecisão está, precisamente, a decisão do ser. A indecisão suspende, pois, a possibilidade de ser ou não ser. A pressuposição de que eu sou o mesmo quer faça ou não determinada coisa é um preconceito do espírito que exige elucidação. Note-se, pois, que o ser compreende todos os acontecimentos que podem acontecer-lhe. Neste sentido, a decisão é construção de ser. Esta construção é intrínseca, como já se viu. Assim, o princípio de acção é interno, princípio de autonomia e fundamento da espontaneidade da acção humana. Isto significa que decidir é já uma forma de esclarecimento, na medida em que agir é trazer à luz. Cf. Ensaio, 66: “Somos inatos a nós próprios”. Destarte, o agir autêntico é aquele que se executa esclarecidamente como um exercício de autenticidade. Na acção está sempre premente o esclarecimento de si mesmo, a decisão do próprio ser como um trazer à existência a possibilidade de ser mais autêntica.

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constitutivamente, um ser que cuida de si, quer se aperceba disso ou não. O modo como leva a sua vida em frente corresponde a um modo de compreensão que tem de si mesmo. É, portanto, ao nível desta compreensão que se joga, da facto, a liberdade do humano, ou mais rigorosamente, o grau da liberdade do humano que se compreende deste ou daquele modo, sendo que, a cada vez, ele não pode deixar de desenvolver uma determinada compreensão do seu próprio ser. É essa compreensão que determina o seu modo de ser. O ser determina o modo de ser. Assim, a existência corresponde a modos de ser. Isto significa que, apesar de constitutivamente, o ser compreender todos os fenómenos que podem alguma vez suceder na existência dum indivíduo, de facto, o agente encontra-se a si mesmo instalado na situação de ter que se desenvolver deste ou daquela modo e é nesta incontornabilidade que o humano se pode fazer existir de modo autêntico ou declinado. Ou seja, pertence constitutivamente à existência do humano que ele possa executar-se em liberdade ou deixar-se arrastar pela disposição. Por outro lado, parece que a declinação de si é o modo habitual do humano se desenvolver. E a análise assim o mostrou.

A incontornabilidade da existência demanda, portanto, a decisão enquanto princípio fundador. O humano existe pela decisão. Note-se que a existência humana não é necessária, sendo que este ponto deve estar sempre presente dirigindo a análise. Deste modo não é necessário que a existência humana corresponda a alguma coisa. Pode acontecer que a existência humana não corresponda a mais nada do que a uma ilusão, ao diário de um fantasma. Este tópico será visto adiante.

Apesar da hipótese não conseguir alcançar um lugar privilegiado para decidir da ausência de amarras, o seu papel deve ser compreendido dentro duma lógica de treino, no sentido analisado. Isto é, a hipótese tem um papel prático e não deve servir apenas para adiar a resolução, pois é nesta que parece (assim mostra a análise) residir a própria urgência da vida. O objectivo do esclarecimento não é o de embargar a existência como modo de evitar a existência declinada. O humano não pode deixar de perguntar pelo sentido da sua própria existência e, neste sentido, a execução autêntica do seu ser é o lançamento em possibilidades de si mesmo, sendo que as possibilidades em que ele se decide executar devem ser as mais perfeitas – e é aqui que encontrámos o papel do esclarecimento: no desocultar a perfeição das possibilidades. A hipótese tem, pois, um papel bem delimitado: permitir que o que se vem a querer se identifique com o que se quereria querer (se se detivesse um lugar privilegiado). O problema que surge é que o lugar privilegiado em que se deteria a visão do que se deveria querer de facto não está disponível ao humano. Ou seja, o humano não está em condições de perceber se atingiu esse facto, não porque se compreenda à partida como errado, mas porque a visão do alvo pode estar viciada. O problema consiste em que, para se saber qual é a possibilidade mais perfeita de facto se teria que deter a noção de perfeição em próprio. Ora, o ponto de vista tem sempre uma visão da perfeição que está determinada pela sua situação. Mas é precisamente quando o humano percebe (e pode fazê-lo, pois é o que faz esta análise) que o que está em decisão na sua vida é a sua própria identidade que se torna evidente para o humano a urgência do reconhecimento da sua identidade. Isto porque, precisamente, se tornou evidente que procura o que sabe mas não sabe o que procura. Tornou-se evidente a fragilidade da evidência humana. Sendo a evidência o assentimento do espírito, a análise mostra que esse assentimento pode dar-se de forma confusa. Obviamente que esta evidência pode ter sido alcançada, também ela, por uma forma confusa. Na verdade, como vimos, existe esse reconhecimento: que o próprio reconhecimento da confusão é um reconhecimento confuso, pois se fosse absolutamente esclarecido traria à luz, de modo necessário, o reconhecimento174 da perfeição.

Assim, a questão que está em causa na questão da liberdade é a pergunta pela identidade do humano175. Este reconhecimento é legítimo pois corresponde a uma suspensão. O que está em suspenso é a própria identidade. Assim, o esclarecimento suspende a decisão, por isso não deve ser o fim em si mesmo de si mesmo, mas é legítimo. A colocação da hipótese que pareceu não adiantar nada, permite afinal ao humano preparar-se a si mesmo para se encontrar a si mesmo. O esclarecimento é a forma legítima da existência. A liberdade deve ser um modo esclarecido da existência, pois é a própria forma desta. O nosso ponto de vista não é tal que se mostre a si mesmo como um infinito que não pode ser resolvido. Se assim fosse, não haveria qualquer possibilidade de colocar a própria questão pela identidade, não haveria sequer a possibilidade do esclarecimento. Mas o esclarecimento não só é possível como é a própria forma da existência. Mas o esclarecimento mostra a que o nosso ponto de vista também não se mostra completamente definido, pois nesse caso o esclarecimento da existência seria uma geometria. A hipótese de que aqui tratamos não deve ser ao modo da

174 Reconhecimento: trata-se de reconhecimento porque se tratam de verdades inatas, sendo que, para Leibniz, uma verdade inata não se traduz

necessariamente num conhecimento inato, pois o que se mostrou é que o que constitui o ser da Mónada é percebido por esta confusamente.

175 Da identidade do agente.

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geometria176. A geometria é uma possibilidade da nossa vida, mas a nossa vida não se traduz numa geometria. Aliás, se fosse uma geometria também não haveria lugar para a liberdade, pois então as nossas acções seriam do domínio do necessário. Sendo que a existência em geral, e a humana em particular, é contingente, como se mostrou no início do nosso estudo, e a partir das conclusões aí apresentadas, deve concluir-se que o tratamento da nossa existência ao modo da esfera faria do esclarecimento da vida uma ciência da profecia. A profecia177 não é uma possibilidade humana. A hipótese é, como se disse, uma antecipação, mas esta antecipação não deve ser entendida no sentido duma profecia acerca do que é possível humanamente, pois o que é de facto possível para nós, e as condições desses possíveis, é precisamente o que é confuso para nós. Como vimos, o que é natural do nosso ponto de vista não é o conseguir escrutinar exactamente todos os seus possíveis, mas afunilar-se de tal modo que o que é natural é não saber se se encontra disposto de tal modo que a situação em que se encontra instalado lhe faculte um reconhecimento adequado (que lhe permita estar em condições de determinarmos qual é a possibilidade mais perfeita) das nossas possibilidades (ou das próprias formas do nosso lançamento nos possíveis de que se apercebe). Mas o reconhecimento disto (o reconhecimento da confusão) sendo um fenómeno humano, apesar de confuso, traz consigo um avanço: o nosso ponto de vista não é cego. Ora, estas considerações aparentemente óbvias não devem ser menosprezadas. Leibniz recorre a intensos trabalhos de mediação para estudar o fenómeno da mediação (do esclarecimento), de tal modo que os esclarecimentos obtidos, apesar de aparentarem esclarecer coisas óbvias e que, portanto, já foram ditas atrás neste estudo, devem agora ser vistas à luz do estádio em que os encontramos. O esclarecimento, ao mostrar coisas aparentemente óbvias não deve esquecer que agora elas se mostram, precisamente, esclarecidas. De resto, o que se sabe na maioria das vezes é, precisamente, o que deve ser esclarecido. Assim, aparentando uma repetição, o esclarecimento ganha, precisamente, luz sobre o que é esclarecido. Pesem, embora, todas as ressalvas postas anteriormente quanto ao próprio esclarecimento, elas mesmas postas pelo esclarecimento.

O ponto de vista não se ignora, aliás é constitutivo dele compreender-se sempre de um modo determinado. A visão que detêm não é cega, mas um visto confuso. O ponto de vista não está morto mas em situação de vida. O problema é outro. O problema é a forma da vida. Ora, tal esclarecimento diz intimamente respeito ao ser do humano. Não deve ser compreendido como um fenómeno qualquer. Em causa não está uma possibilidade qualquer, mas a forma em que todas os possíveis se constituem fenómenos. O fenómeno em causa, o reconhecimento da confusão, também não é um fenómeno de fora, mas uma suspeita acerca do próprio modo de reconhecimento. Enquanto tal equivale a uma indecisão, mas a uma indecisão existencialmente funcional na medida em que é parte fundamental do processo de decisão: na medida em que é esclarecimento. Isto é, é algo que se apercebe sob a forma de indecidibilidade mas para ajudar (a permitir) a possibilidade de decisão num sentido. Desta forma, a hipótese deve ser entendida como uma antecipação que permite tratar de avanço uma determinada abertura possível do ponto de vista. A hipótese que assim se abre não pode deixar de abrir um novo domínio de possibilidades, a saber, a preparação, o cálculo de avanço, a mediação. Não estamos já a decidir sobre se vamos ou não fazer uma viagem, mas estamos a decidir antecipar essa possibilidade de execução para avaliar das condições de executabilidade, isto é, a sua adequabilidade com o nosso melhor bem.

Devemos reformular, agora, o nosso exemplo, dado anteriormente, com o Matrix. O exemplo do Matrix mostra a situação de confusão do humano e a impossibilidade do humano elucidar essa confusão (visto que Neo escapa do Matrix por intervenção exterior). Ou seja, ilustra que mesmo que o humano se dê conta da distracção em que está não tem condições de sair dessa distracção178. Agora reformulamos o nosso exemplo, na verdade substituímo-lo por outro: o

176 Ver Carta a Arnauld, GP, II, pp. 38-39: “[…] il faut philosopher autrement de la notion d’une substance individuelle que de la notion specifique

de la sphere.”

177 Não consideramos aqui a possibilidade da revelação divina que, em Leibniz, corresponde à organização do mundo de modo a prevê-la, ou seja, no fundo corresponde a uma não profecia, na medida em que não há propriamente intervenção de Deus, mas uma organização do universo feita de tal modo que isso que pareceria um milagre do conhecimento seria despoletado pelas suas razões ou requisitos anteriores, tal como acontece com qualquer fenómeno em geral. Ou seja, o milagre ou a profecia são meramente termos humanos aplicados a fenómenos de fora ou de dentro para os quais o humano não conhece as razões. Este não conhecer não significa o não existir. Para Leibniz tudo resulta das suas razões, quer se conheçam ou não. Quando não se conhecem, o humano fala de intervenção divina.

178 Note-se que esta elucidação contradiz a noção vulgar sobre a distracção. Vulgarmente julga-se que se estou distraído e se, de repente, tomo conta dessa distracção, a distracção é substituída pela atenção. Contudo, esta análise vulgar esquece de se elucidar. A elucidação que deve fazer é a seguinte: deixando de se estar distraído disso de que se estava distraído, podemos manter-nos distraídos doutra coisa. Numa sala de aula um aluno que está distraído do que o professor está a dizer está concentrado noutra coisa, por exemplo, no que o seu colega do lado lhe está a dizer ou em pensamentos menos próprios. Se o professor o chama à atenção, o aluno deixa passa a estar atento (concentrado) no que o professor está a dizer, mas continua distraído, por exemplo, daquilo que se passa na mesa de trás. Se o colega de trás o chama, ele presta-lhe atenção mas passa a estar distraído de outra coisa qualquer. Aqui nota-se bem como a atenção é, constitutivamente, um afunilamento

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filme Os outros. Neste filme existe uma família aparentemente normal que vive numa casa aparentemente normal. A certa altura parece que a casa está assombrada. Este termo é interessante, pois a sombra é o resultado da ausência de luz. A família sente-se ameaçada por esses outros que assombram a casa. Mas sobre as sombras deve-se fazer luz e a família acaba por perceber algo que ultrapassa as suas mais elementares convicções, as convicções que precisamente estruturam a vida. O que a família acaba por perceber é que, quem assombra a casa é ela, os elementos dessa família, enquanto que os outros são os vivos. Ou seja, aqueles que julgavam estar a ser assombrados eram os que assombravam. Os outros, afinal, eram os vivos que viviam na casa, enquanto que os elementos da família estavam mortos. Os que se julgavam vivos estavam mortos. Ora, o nosso ponto de vista é tal que projecta sobre o que está para além do visto as propriedades do que vê: é em todo o lado como aqui. Esta é uma forma do ponto de vista. O ponto de vista é constitutivamente assim. E, sendo a Mónada uma imagem da totalidade, essa pressuposição é legítima. Em causa estão as condições da amplitude dessa projecção. A nossa vida pode tratar-se de uma assombração. De facto, como se mostrou, é-o no início e na maioria das vezes. Ocupados em viver a vida estamos distraídos da possibilidade de tomar em consideração a vida. Deixamo-nos arrastar: estamos demasiados ocupados com a vida para pensarmos nela. Mas mesmo essa distracção é um pensar. Tudo o que nos pode acontecer são pensamentos. A vida é incondicionalmente um desenrolar, uma elucidação de si própria, mesmo que não passe de um sonho, de um sonho de um fantasma179.

Ora, os encontros infelizes com escolhos que tolhem a felicidade do humano levam-no a dar atenção à sua vida. Esta tentativa de elucidação é legítima uma vez que a própria existência corresponde a elucidação. A existência ocorre sempre em formas de elucidação, em formas de desenrolar. A elucidação é activa, é parte constituinte da decisão. Então, o desenrolar autêntico da existência deve passar por uma elucidação temática da própria existência. Deste modo, a elucidação é uma exigência da razão, é o próprio exercício activo da razão que corresponde, pelo menos, à tentativa dum exercício activo da vida. É a tentativa do agente de se tornar em propriedade o princípio activo da sua própria vida, em vez de se deixar ser arrastado pelo fluxo das coisas180. Porque tudo o que acontece a uma pedra também deriva do seu ser e está compreendido pelo seu ser, mas a pedra é arrastada pelo próprio fluxo interno das razões que não pode inteligir. A inteligência torna essa espontaneidade em liberdade (ou, pelo menos, é a possibilidade disso). A substância é qualquer coisa de pleno e de activo que, mediante a inteligência, é livre. Esta inteligência permite compreender que a totalidade de sentido do que se passa na nossa vida corresponde a uma identidade, à identidade do agente. É o desenvolvimento desta identidade que está em causa na vida.

O reconhecimento disso assume, portanto, que há um sentido que identifica tudo o que se passa. É, como se disse, uma exigência da razão que não deve significar paralisia, indecisão. Pelo contrário, este contentamento da razão fornece ao espírito uma inclinação racional, uma inclinação dada pela via do esclarecimento, exercício activo de si mesmo. Ou seja, sendo o esclarecimento o modo autêntico da existência, esta inclinação fornecida por meio do esclarecimento constitui uma prevalência relativamente às inclinações não esclarecidas, distraídas que, precisamente enquanto confusas, arrastam o humano sem delas se aperceber. Aqui o humano tem a possibilidade de se inclinar (possibilidade, mas não necessidade, como já se disse, uma vez que também o entendimento inclina a vontade sem a necessitar) voluntariamente por uma inclinação apercebida, à qual o espírito dá assentimento. Ora, a vontade que escolhe esta inclinação decide esclarecidamente. Podemos, pois, dizer que a declinação da vontade não é propriamente declinação, mas propriamente deliberação, pois a inclinação que inclinou a vontade foi, precisamente, liberada, aberta pelo exercício do entendimento.

(desconhecendo os seus limites). O que pode acontecer é que uma coisa não notada, mas presente confusamente no horizonte de visão do ponto de vista, chame para si a atenção. Mas, precisamente, nunca se saberá se aquilo que chama a atenção é aquilo a que realmente interessa prestar atenção, e, por outro lado,

179 Cf.: “Ita sequeretur nullam substantiam creatam, nullam animam candem numero manere, nihilque adeo a Deo conservari, ac proinde res omnes esse tantum evanidas quasdam sive fluxas unnius divinae substantiae permanentis modificationes, et phasmata [sic], ut sic dicam”. (De Ipsa Natura, Leibniz, texto original disponível em http://la.wikisource.org/wiki/De_ipsa_natura) As possibilidades em questão vão desde possuir uma realidade substancial e ser uma mera aparição. Fantasma, em latim (phasmata é um erro de passagem do termo phantasmata), significa o que aparece, o que aparenta, aparência.

180 Cf. “Ce petit discours traite une des plus grandes matières, où la félicité des hommes est extrêmement intéressée, car on peut dire hardiment que les

connaissances solides et utiles sont le plus grand trésor du genre humain et le véritable héritage que nos ancêtres nous ont laissé, que nous devons

faire profiter et augmenter, non seulement pour le transmettre à nos successeurs en meilleur état que nous ne l’avons reçu, mais bien plus pour en

jouir nous mêmes autant qu’il est possible pour la perfection de l’esprit, pour la santé du corps et pour les commodités de la vie.” (Discours touchant la

méthode de la certitude et de l'art d'inventer pour finir les disputes et pour faire en peu de temps de grands progrès, disponível em

http://fr.wikisource.org/wiki/Discours_touchant_la_méthode_de_la_certitude_et_de_l'art_d'inventer_pour_finir_les_disputes_et_pour_faire_e

n_peu_de_temps_de_grands_progr ès)

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Advertências -52- Cap. V

S e c ç ã o 1 7

CAPÍTULO V – ADVERTÊNCIAS

Uma objecção que resulta óbvia da própria análise é a seguinte. O contentamento da razão é, por força, um novo contentamento do qual não se está plenamente elucidado. Não se sabe se aquilo que agora nos chama a atenção, enquanto significa um novo afunilamento, não nos distrai precisamente do que é importante. Muitas vezes na nossa vida percebemos que nos enganámos, reformulamos o nosso ponto de vista e voltamos a perceber um novo erro. O facto é a desorientação. A nossa análise parece ter mostrado apenas a desorientação constitutiva de qualquer análise. A mera formulação da confusão não anula a confusão. Aquele que descobriu que afinal não estava a ser assombrado, mas que era ele o fantasma, não deixou, por esse reconhecimento, de ser o fantasma. Mas, o que é igualmente importante, isso significa que não é decidível. Todo o reconhecimento pode tratar-se de uma ilusão. A nova situação descrita pode tratar-se duma nova confusão. Poderemos vir a descobrir que também os outros são fantasmas de outros, e assim sucessivamente. Na impossibilidade de reconhecer a realidade substancial permanece a hipótese de sermos fantasmas.

O ponto de vista, no início distraído, tentou esclarecer-se a si mesmo. Seja porque tenha sido alertado por alguém, por um livro que leu, ou por um acontecimento da sua vida que evidenciou o facto bruto da sua vida como pertença sua – o ponto de vista tentou esclarecer-se. Da presunção de deter uma evidência clara sobre o que se passa, o ponto de vista passou ao esclarecimento num esforço, num trabalho de mediação, numa tentativa de constituir essa mesma presunção (amarra) no sentido adequado ao seu próprio ser. Tentou trazer à luz a evidência própria daquilo que se passa em vez da evidência que se impõe por si mesma. Reconhece-se agora como instalado numa situação total (que acompanha todo o desenrolar da sua existência) tal que toda a evidência se impõe por si mesma, deixando impreciso o sentido desse impor-se (se autêntico, se aparente). Na indistinção que assim surge à consideração, posta como hipótese de trabalho, percebe que a condição desta consideração é, por si própria, indistinta. Impossibilitado de sair dele mesmo, o único sentido que razoavelmente pode assumir é de que deve treinar-se em querer o que um querer transcendente, que ele próprio é impotente de produzir, quereria. O sentido do sentido que ele pode produzir está dependente dum sentido que ele não pode produzir.

Desta forma, o senso comum incauto facilmente julga que mais vale viver com aquilo que sabe do que deitar-se a especular sobre o que não lhe valerá de nada vir a desvendar. Esta presunção de julgamento nada julga pois haveria eu fazer-se a especulação para sobre ela se julgar. Mas acontece que o que levou a cabo este esclarecimento pode, finalmente, julgar que o conhecimento mata e que mais valeria nada saber. Ora, o regresso no esclarecimento não é possível. Não se pode fingir, calmamente, que não se sabe que se vive em permanente estado de confusão. Mesmo que se fingisse ignorar isso, não equivaleria à ignorância. A forma da distracção imediata é, precisamente, imediata e, por isso mesmo, não é reassumível pela distracção esclarecida. O filósofo não pode converter-se em vulgar181. A irreflexão não pode ser, por princípio, reconstituída reflectidamente.

O ponto de vista não pode libertar-se da inclinação, não pode ser indiferente, nem, portanto, libertar-se da necessidade de dar assentimento, ou seja, está refém da necessidade de evidência que, aliás, é a própria condição de possibilidade da liberdade e da obcecação. Aliás, reconhece-se como dependente dela. Sendo, por assim dizer, a forma do reconhecimento da perfeição é, simultaneamente, a origem do acerto e do fracasso182. A situação é, pois, de embargo, ou se quisermos, de perplexidade. Parece haver um paradoxo: o requisito necessário para executar a possibilidade mais própria é, ao mesmo tempo, o requisito necessário para se julgar que se executa essa possibilidade sem que esse seja o caso. A situação de confusão é reconhecida a partir de si mesma, o que significa que a confusão se vê a si mesma. Isto significa um desencontro do agente consigo mesmo que, precisamente, é o contrário da liberdade como concordância consigo mesmo. O paradoxo reside então no facto de que, a existência, enquanto desenrolar do ser do agente, possa

181 Estas observações não são, de facto, feitas por Leibniz. São divagações nossas. De resto este tema não é aqui desenvolvido. Note-se que seria

possível constituir uma situação de regresso ao imediato sem restituir a ingenuidade que, esta sim, é irrestaurável. Nietzsche trata desta hipótese e chega a sugeri-la. O mesmo acontece com Schopenhauer. Também o ramo da epistemologia estudou a possibilidade de restituir uma abordagem imediata dos fenómenos. Por exemplo Kuhn. Também Reid faz esta análise. Por outro lado, podemos ver o seu tratamento hermenêutico e existencialista em Kierkegaard ou Heidegger. Não julgamos que esta matéria seja essencial para o nosso estudo, apesar de considerarmos importante referi-la. Finalmente, fica por abalizar a possibilidade do esquecimento e dos seus modos voluntários e involuntários.

182 A análise do que aqui se diz foi já feita.

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Advertências -53- Cap. V

desadequar-se a esse mesmo ser. Isto é, apesar de o existir ser um desenrolar de si próprio para o agente, este pode encontrar-se, e na verdade encontra-se na maioria das vezes e possivelmente sempre, em discordância consigo mesmo. Sendo intrinsecamente procura de perfeição, a vida torna-se uma procura da perfeição que continuamente encontra apenas imperfeição. Deste modo, sendo o agente inteligente constitutivamente um ser que sabe, ele não sabe o que sabe. A restituição da vida em estado de lucidez (ou vigília) não tem como certificar-se de que não se trata de um equívoco (ou sonho)183.

Outra objecção possível delineia-se assim: o que escapa ao humano é, precisamente, a possibilidade de se deter a si mesmo num ponto de vista total184. Este ponto de vista global é impossível, quer se trate da totalidade dos seus possíveis propriamente ditos, quer se trate da totalidade do universo de que é parte. A perfeição plena é a adequação dessa totalidade universal, da qual a totalidade da identidade individual é um reflexo185. Assim, a perfeição que dá sentido à identidade do agente é devedora da totalidade de sentido universal. A Harmonia universal estipula o que cabe a cada uma das partes, estipula o seu lugar, estipula o seu papel, estipula o que a cada um em particular convém. A conveniência geral é a fonte de sentido de cada Mónada e, consequentemente, de cada humano.

Desta forma, a compreensão do sentido do humano só é possível na hipótese da compreensão do sentido universal: Harmonia. Mas a Harmonia, sendo a conveniência geral, diz respeito ao infinito e, por isso, não pode ser apreendida em próprio pelo humano. O infinito é, por definição, confuso para o humano. Por outras palavras, a perfeição plena é incompreensível para o humano. A perfeição em próprio não é visível para nós. Apenas podemos crer nela. Não temos, pois, nada que nos permita afiançar que exista um treino suficiente para o humano.

Ora, a estas objecções poderiam acrescentar-se outras diametralmente opostas sustentando que Leibniz assegura a necessidade e a suficiência do trabalho da mediação para atingir uma existência corrigida e conveniente ao humano. Ora, as objecções apresentadas dentro deste último registo são facilmente afastadas através das referências de Leibniz à confusão constitutiva do nosso ponto de vista, à distracção natural do nosso entendimento e à falta duma mediação adequada das coisas que nos acontecem, na medida em que o humano, no início e na maioria das vezes, como ele diz, em vez de ser o agente da sua vida se deixa arrastar pelas inclinações confusas. A inquietação, na maioria dos casos, não é apercebida e, por isso arrasta o humano sem que ele se aperceba. De igual modo, a apercepção de determinadas inquietações de maneira nenhuma mostram que se detém um esclarecimento assaz de todas as inquietações.

Quanto às duas primeiras objecções julgamos já ter apresentado suficientes esclarecimentos. A mediação é o trabalho do entendimento no seu esforço de se empossar adequadamente da disposição em que se encontra. Deste modo, a mediação é, precisamente, o enlaço entre o que chamaríamos, hoje, compreensão e explicação186. Trata-se portanto de

183 “Pode ser-se forçado [também] pela consideração de um bem maior, como quando se tenta um homem propondo-lhe um grande negócio,

embora não se costume chamar a isso constrangimento.” (Ensaio, 121) Ter em vista um bem maior não é garantia de que se tenha em vista o bem melhor. Pode precisamente acontecer que se trate de um constrangimento que nos distrai do bem melhor.

184 Apesar de ser imagem do universo, essa imagem é confusa, projectando-se luz apenas sobre uma parte das percepções: a apercepção. Mas, precisamente porque a apercepção é uma parte reduzida da percepção, o sentido da apercepção permanece indeciso, ficando dependente do sentido da totalidade.

185 O nosso trabalho não discute as diversas opiniões sobre os vários assuntos. Há comentadores que concordam que a totalidade é anterior, outros que sustentam que as partes são prévias. Nós apresentámos a nossa leitura e justificámo-la. Não pretendemos fazer uma colecção das opiniões dos comentadores.

186 A delimitação precisa de todos os termos do domínio da mediação não foi feito. Primeiro porque não é claro, para o autor deste estudo, que exista de facto essa delimitação permanente ao longo da obra de Leibniz. Por isso usamos sobretudo o termo esclarecimento enquanto atenção dirigida. Adverte-se que o termo compreensão, em Leibniz, remete sobretudo para a compreensão esclarecida em próprio, isto é, para uma demonstração plena que permita uma demonstração matemática. Este é, precisamente, o objectivo da elucidação: obter essa demonstração. Simultaneamente, a explicação é compreendida como a exposição da demonstração. A elucidação compreende-se, portanto, geralmente, como arrancamento à obscuridade das verdades inatas trazendo-as à luz do entendimento, permitindo assim a demonstração. A aquisição desta capacidade evidencia, precisamente, essa faculdade. Ou seja, evidencia que essa verdade era inata, mas que ainda não tinha sido compreendida. Com a compreensão atinge-se o conhecimento, a visão e, portanto, a possibilidade de demonstração a priori, uma vez que, se foi de facto compreendida, se expôs em termos de identidades. Portanto, o termo elucidação compreende a totalidade destes sentidos, sem perder de vista que se trata de um desenrolar. Daí que a existência humana seja um desenrolar. No entanto, a demonstração permanece impossível para o ser humano, que só a posteriori pode traçar uma história das suas acções. Esta indicação das razões das suas acções não é exaustiva, pois regride ao infinito e, nessa medida, o humano nunca chega a compreender plenamente o sentido das suas próprias decisões. Essa compreensão é possível e real apenas em Deus, cujo entendimento é absoluto. Daí que a existência em geral de todas as coisas seja um desenrolar do ser de Deus, sendo assim Deus a verdadeira substância de todas as coisas. No entanto, dizer isto não mostra uma compreensão plena das coisas, o que, se assim fosse, resolveria o problema da confusão e nenhum crente jamais erraria. O humano mais não pode do que crer em Deus como causa inicial e final, ou na Perfeição universal, pois a demonstração matemática, mais uma vez, é impossível. Pois para essa demonstração seria necessário mostrar a razão da escolha de Deus. Para mostrar isso, seria preciso mostrar que este mundo era o mais perfeito. Para isso seria

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Advertências -54- Cap. V

procurar uma compreensão do sentido da vida, o mesmo é dizer que se procura compreender a identidade que dá unidade a todos os fenómenos da vida. Isto tudo na tentativa duma explicação do que se passa connosco que nos permita, com alguma executabilidade, anteciparmos as nossas acções de modo a nos precavermos de cair em erro.

S e c ç ã o 1 8

A FINITUDE DA VIDA HUMANA E A IMORTALIDADE

Apesar das reservas apresentadas à lucidez e mais especificamente à própria noção de evidência, a esta o humano está condenado. A evidência é o contentamento da razão, a qual fundamenta a vigília. Claro que se mantém o problema de se poder estar em sonho quando se julgar estar em vigília, tal como existe a possibilidade de levar a vida ao jeito do sonho em vez de a levar ao jeito da vigília, ou seja, de viver de modo confuso quando se julgar estar esclarecido. A verdade é do domínio da razão e é uma exigência desta, e é daí que resulta a possibilidade de nos enganarmos a nós próprios, bem como a possibilidade de nos encaminharmos adequadamente.

Mas a evidência é uma exigência da razão. Sem a aceitação da evidência (sem nos deixarmos convencer pelo contentamento da razão) nem a existência de Deus se pode provar, o que para Leibniz constituía um argumento poderoso a favor da evidência187. Se rejeitarmos, de facto, a poder da razão, nada se pode saber, o que se torna contraproducente, pois então nada se poderia construir, nem a prova do cogito, a qual se fundamenta, precisamente, sobre a evidência. Neste sentido, a compreensão que perpassa este estudo é a de que o esclarecimento leibniziano (ou se quisermos, a mediação ou trabalho da mediação) é uma operação do exercício do pensar (enquanto encadeamento dirigido de percepções interiores) como treino de dar resposta à exigência de liberdade humana. Isto é, o esclarecimento visa, sobretudo, esclarecer o que significa para o ser humano ser livre, o que é o mesmo que dizer que a principal preocupação do humano é compreender-se a si mesmo e, consequentemente, colocar-se numa situação de conformidade consigo mesmo. Este esclarecimento deve prevalecer sobre as impressões188.

Se por vezes preferimos o pior, isso acontece devido à nossa preguiça. Vulgarmente julga-se a preguiça por uma resistência à acção imediata. Contudo, a análise mostra que a preguiça é, em rigor, a acção imediata. Os homens são atraídos pela perfeição, se preferem o pior é porque “não se dão ao trabalho de aprofundar a análise”189. Ou seja, o nosso espírito, escravo do presente, deixa-se levar pelas aparências. O erro, contudo, confronta o espírito com as agruras da vida que vêm das decisões erradas. Como as nossas decisões levam a acontecimentos que vemos resultarem de acções mal calculadas, podemos perceber a necessidade da prudência, ou seja, precisamente da suspensão referida acima. A suspensão que insere uma indecisão metódica, uma indecisão prática, uma indecisão que é decisiva para escrutinar o melhor partido. Devemos, pois, precavermo-nos dos pensamentos confusos inserindo um processo de mediação. Não devemos deixar-nos enganar pela nitidez dos pensamentos. É essencial introduzir a mediação, a suspensão de modo a evitar a entrega da nossa vida a decisões baseadas na nitidez imediata dos pensamentos. A nitidez, ou a aparência de evidência não implica a clareza dos pensamentos. Precisamente, o que a nossa análise (segundo Leibniz) mostrou foi que as condições da evidência não são evidentes190. A elucidação é um fazer ver claramente o sentido do que se mostra nitidamente, de modo a aclararmos a validade dessa nitidez. Algo que nos parece evidente pode, então, revelar-se apenas

preciso conhecer todos os mundos possíveis. E ainda conhecer a própria noção de Perfeição. Ora, o conhecimento da Perfeição é o que, em primeiro lugar, nos levou a errar e a perceber a necessidade de esclarecimento.

187 Cf.: Ensaio, 121.

188 Cf.: “o espírito entra, como bem lhe apraz, em certas progressões do pensamento, que o levam a outras. Mas isso é assim quando as impressões internas ou externas não prevalecem.” (op. cit., 120) Note-se que “não há menos conexão ou determinação nos pensamentos do que nos movimentos (ser determinado sendo uma coisa completamente diferente de ser forçado ou impelido com constrangimento).” (ibidem) A determinação da prevalência do esclarecimento não contradiz a liberdade, não é um constrangimento, não contradiz a vontade. Não é, contudo, suficiente para a liberdade, pois a liberdade é vontade com deliberação

189 Op. cit., 126.

190 “Os pensamentos confusos fazem-se sentir muitas vezes nitidamente”, e, pelo contrário, “os nossos pensamentos só são claros em potência”. (ibidem).

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Advertências -55- Cap. V

um erro. Por sua vez, enquanto o julgamos evidente, essa evidência é nítida, ou seja, parece-nos clara. Mas essa aparência, essa nitidez não deve convencer-nos.

Em ordem a preparar o espírito deve existir um treino em afastar o espírito do grande mundo, das suas inclinações imediatas. Não porque sejam necessariamente más. A suspensão não afirma isso, mas coloca a hipótese. Mas como o espírito é inclinado, por vezes fortemente, por essas impressões mundanas, é preciso treiná-lo para a suspensão. Desse modo é necessário instaurar um regime que passe por a diminuição da dependência dos prazeres mundanos191. Note-se que não se trata aqui de preceitos de moral, como Leibniz bem esclarece192, mas de tentar descrever as fraquezas que nos acometem, as paixões que nos escravizam e de nos treinarmos em nos libertarmos delas. Este trabalho é fundamental. Sem ele a elucidação propriamente dita não é possível, pois como já se disse, só se pode descrever convenientemente uma condição que não nos domina. Portanto, só o afastamento das nossas paixões nos deixa lançar sobre elas um pensamento que vê193 (e que não se limita a pensar por palavras).194

É para evitar o caminho mais curto para a felicidade (perfeição), que nem sempre é o melhor, que importa instaurar a suspensão. Com o afastamento das impressões presentes permite a suspensão e permite preparar o espírito para se deixar inclinar por outro tipo de inclinações. A inquietação do humano leva-o a perseguir a felicidade, no entanto, nessa busca da perfeição ele embate muitas vezes com escolhos e obstáculos. O objectivo do afastamento é criar o hábito de se desviar, para poder afinar a pontaria. Com isso começa a desenvolver-se o no espírito o hábito de pensar antes de agir195. Este parar para pensar é também fundamental na medida em que cria essa disposição de abertura para outro tipo de inclinações, pois qualquer regra ou resolução que se fizesse não passariam de palavras vãs se não se desenvolvesse uma sensibilidade adequada. Assim, essa entrega a ocupações menos exacerbadas, seguida da paragem para pensar, permite preparar o espírito para a busca de prazeres mais duradouros, em vez de perfeições imediatas que provocam mais infelicidade que felicidade. Daí que a felicidade e a perfeição sejam tanto mais autênticas quanto a sua duração. De resto, se a existência é precisamente a execução de si mesmo, sendo o fim que essa execução corresponda com a execução da perfeição, o fim da vida humana é, precisamente, a coincidência entre felicidade e existência, isto é, a vida perfeita, a existência excelente, a vida de bem.

Impõe-se, de seguida, portanto, para a execução excelente, o treino do próprio espírito em proceder metodicamente segundo a razão. O treino do espírito é fundamental de modo a treinar-se na arte de esclarecer. Trata-se de elevar o espírito, de sair do tumulto do mundo e ocupar o entendimento. Treinando o raciocínio visamos poder esclarecer a vontade. Para isso é fundamental a análise da situação em que se está e para isso foi fundamental o afastamento. O afastamento corresponde, então, a um sair do lugar onde se está, a libertarmo-nos das amarras do presente, das impressões tumultuosas do mundo. O trabalho de mediação seguinte consiste na descrição e na posterior análise das inclinações com que lidamos (sem prejuízo das advertências já feitas). Instauramos assim um processo que deve ser seguido cautelosamente, com trabalho, com escrúpulo. De seguida devem fazer-se as devidas hipóteses e estudar as suas consequências previsíveis. Com a consciência de nós não somos uma esfera, devemos tratar as hipóteses à nossa medida, tendo em conta que neste trabalho se joga a nossa vida. Devem ter-se em atenção as várias consequências e calcular a felicidade e a infelicidade que cada uma acarreta. Mas tudo isto não deve esquecer a outra vertente da resolução. Não interessa apenas libertarmo-nos das impressões imediatas. As impressões que nos inclinam devem ser afastadas, descritas, analisadas, ponderadas. Deve ter-se sensibilizado o espírito para este tipo de inclinações mediadas, esclarecidas, pois uma inclinação esclarecida num espírito bruto nada mais é que uma hipótese vazia. Mas, além de disso tudo, deve ter-se treinado a persistência. A decisão não termina no acto de proferir a decisão. Pelo contrário, a decisão deve prolongar-se, deve insistir pois só assim fará vir à existência a nossa escolha. Sem essa persistência morre-se na praia, como afirma o dito português. Portanto, depois de ponderados os prós e os contras e escrutinado o melhor dos

191 Leibniz sugere métodos práticos, tais como a diminuição progressiva da bebida, a prática de ocupações que não agarrem o nosso espírito, isto é,

de ocupações inocentes, não demasiado excitantes, pois essas escravizam a nossa vontade. A leitura e a conversação saudável, enfim, actividades que ocupem sem amarrar, sem agarrar, sem viciar (no sentido que hoje lhe damos). Ver op. cit. 127.

192 Ibidem.

193 Por oposição ao pensamento vazio: cogitationes caecas, como lhe chama Leibniz. (op. cit. 126)

194 Como o fumador que diz que o tabaco faz mal. Mas a descrição nos termos do faz mal é impessoal. Quer dizer, faz mal em geral mas a ninguém em particular. O fumador aceita que faz mal sem ver que lhe toque a ele. Deixa-se levar pelo bem que sente no presente sem ver o mal que lhe fará. Esse impessoal do faz mal é uma crença vazia, uma suposição sem conteúdo, um mero recitar, um falar por falar (palavras leva-as o vento). (ibidem: “Supomos e cremos, ou antes, recitamos unicamente com base na palavra de outrem […]”)

195 Op. cit. 128.

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Advertências -56- Cap. V

bens, este será proposto À vontade previamente sensibilizada. Esta, sensibilizada, deverá deixar-se inclinar pela possibilidade esclarecida (que, embora determinando, não necessita nem constrange). A vontade deve então insistir. Este momento, a insistência, é fundamental pois sem ele dá-se azo ao desânimo e ao fracasso. Deve-se prosseguir, também, o afastamento de todas as impressões imediatas que se vão opondo ao esforço insistente. Só no caso de haver um novo esclarecimento que mostre que deve existir uma correcção é que se deve interromper a acção. Caso contrário, a alma deve perseverar, mesmo que para isso tenha que encontrar ocupações que afastem do espírito as impressões contrárias.

Este processo de resolução permite que o humano se torne senhor de si mesmo conseguindo fazer-se pensar e fazer com o tempo aquilo que gostaria de querer e aquilo que a razão ordena196. Isto significa que a liberdade se alcança apenas pela antecipação197. Compreende-se agora tão plenamente quanto possível que a determinação nos seja útil. Por outro lado, compreende-se também o sentido em que é fundamental para a liberdade. É a determinação que nos permite determinarmo-nos a nós mesmos pelo nosso melhor. A determinação permite assim o encontro de nós connosco próprios. A liberdade é essa determinação via esclarecimento, mediante a antecipação de possibilidades nas quais nos lançamos de avanço e que, deste modo, ponderamos. Na antecipação preparamos a nossa acção, estabelecemos leis para nós próprios e regras de acção delineando o nosso futuro e, ao mesmo tempo, fixando um plano de conduta que nos permita resistir aos avanços das dificuldades, desenrascarmo-nos das ocasiões capazes de nos corromper nos nossos projectos198. Para isso é fundamental preparar a vontade, sensibilizá-la para a nossa possibilidade mais perfeita, de modo a que a conclusão final seja determinada pela perfeição esclarecida e não pela perfeição imediata.

O caminho mais longo é o melhor, aquele que convém ao humano. A mediação é o processo pelo qual o humano pode tornar-se senhor de si próprio, é o processo pelo qual pode tornar-se nele mesmo199. E é com essa conclusão final que nos determinamos, perfazendo a liberdade que convém ao humano 200. Na medida em que a perfeição assim esclarecida é maior, isto é, mais duradoira, o esclarecimento cumpre o seu fim e corresponde a uma maior liberdade, pois há tanto mais liberdade quanto maior for a perfeição que nos determina. É por isso que a antecipação cumpre o seu fim, e é assim que se pode, finalmente, compreender de que modo, apesar da impossibilidade de nos livrarmos absolutamente do estado de confusão, e apesar desse reconhecimento, se pode com razão aceitar este treino como melhor do que a sua ausência. O facto da perfeição assim executada ser melhor garante a validade do treino. Na medida em que se executa uma possibilidade mais perfeita do que aquela que se executaria sem o esclarecimento, a nossa acção é melhor, a nossa liberdade e maior. E isto apesar de não termos condições de saber se não existiria um possível mais perfeito. Mas a perfeição plena compete apenas a Deus e o humano tem que se contentar com a maior perfeição que ele conseguir, com o uso treinado das suas faculdades, trazer à luz e executar.

A liberdade é possível, portanto, mediante um treino de afastamento, um treino de suspensão para pensar; mediante um treino de esclarecimento; mediante a antecipação; mediante um treino da vontade para se determinar pela razão. É fundamental o afastamento do presente porque só assim são possíveis os restantes passos, desde o esclarecimento desse presente ao lançar dos olhos no futuro. Mas não devemos relativizar a importância dada ao treino. O treino é fundamental 201 , pois é o treino que nos permite aperfeiçoar a descrição, a análise, a antecipação, a ponderação, a determinação esclarecida da vontade. Por oposição ao hábito e ao costume deve desenvolver-se o treino do esclarecimento.

196 Op. cit. 133.

197 Op. cit. 134: “[…] preparando antecipadamente armas que os combatam [aos desejos]”.

198 Leia-se a magistral descrição em op. cit. 125: “[…] supúnhamos que um homem dado ao vinho considere que, levando a vida que leva, arruína a saúde e dissipa os seus bens, que vai desonrar-se perante outros, atrair doenças e, finalmente, cair na indigência até não ter mais com que satisfazer essa paixão de beber que o possui tão vivamente. No entanto, os acessos de inquietação que ele sente por estar a afastar-se dos seus companheiros de devassidão, levam-no à taberna […]. Não é por falta de lançar os olhos para o soberano bem que ele persiste nesse desregramento […] é essa inquietação actual que determina a sua vontade à acção a que ele está acostumado […]”. Leibniz dá muita importância ao hábito. Segundo ele é fundamental criar um hábito de agir segundo a razão de modo a evitar que se veja o melhor e se siga o pior.

199 PNG, 28: “[…] a própria alma não conhece as coisas das quais tem percepção a não ser na medida em que delas tenha percepções distintas e reveladas; e (a alma) tem perfeição, na medida das suas percepções distintas.” Por este excerto vê-se que Leibniz considera fundamental a elucidação ou revelação. Note-se que a revelação pura só acontece em Deus ou por Deus. A revelação humana resulta do exercício das suas faculdades racionais. Mas, quanto mais esclarecida, mais perfeita, quanto mais perfeita, mais livre. O esclarecimento aumenta a perfeição da alma e assim cumpre o seu papel.

200 Ensaio, 135.

201 Note-se que o treino implica um treino do gosto. Cf. op. cit. 136 e142. O treino do gosto decorre nos termos referidos, ou seja, como afastamento dos desejos mais fortes de modo a evitar que sejamos levados por aqueles que causam dano.

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Advertências -57- Cap. V

Ora, tendo analisado a situação de finitude e a solução possível para o quadro dessa finitude, vamos agora abordar a questão da imortalidade, sem a qual o esclarecimento da noção de liberdade não está ainda completo202. Foi a finitude humana reconhecida como situação de distracção. Somos agitados de muitas formas, e sempre essas formas constituem a nossa disposição determinando-nos num ou noutro sentido. Impossibilitados de esclarecer absolutamente os limites e as condições da nossa disposição, flutuamos na vida. Face a isto o humano pode apenas aspirar a treinar-se em libertar-se das amarras que vai apercebendo. Neste contexto devemos perceber o que é a imortalidade humana. A imortalidade humana não é outra coisa que um fenómeno. O humano está preso num turbilhão de impressões que o arrastam e inclinam iludindo-o e dando-lhe esperança de gozo. A antecipação é a possibilidade de esclarecer esta esperança, é a esperança de compreender as nossas esperanças. Mas a verdadeira liberdade só é conquistada se o humano puder previamente compreender o seu lugar no todo. Ora, quer a imortalidade quer o todo não são compreensíveis para o humano. O ponto de vista humano não vê o infinito, não por não se aperceber dele, mas porque o não pode perceber na sua infinidade. O infinito não é visível para o humano, mas com isto não se pretende dizer que o humano não tem nenhuma forma de dar conta dele. Por exemplo, o número de pi. Sendo que este número corresponde a uma série infinita, o humano não a pode abarcar. O humano pode apenas aperceber-se de uma parte dele e, o que é mais importante, pode aperceber-se do contínuo. Ou seja, o humano não apercebe o pi como sendo 3,14, mas apercebe-se de que o 3,14 se trata de uma apresentação em falta da totalidade de pi. Isto é muito importante, pois significa que o humano tem, de algum modo, uma forma de dar conta do infinito. O humano pode aperceber a falta relativamente a um infinito. Ora, isto só é possível porque o humano tem a percepção da série infinita, pois se assim não fosse não poderia perceber que apenas conhece uma parte.

Este facto resulta de que o humano é uma imagem da totalidade. Assim, sendo imagem da totalidade apercebe-se a si mesmo como falta relativamente a essa totalidade. Neste sentido, o reconhecimento da confusão é o reconhecimento da finitude, é o reconhecimento de que se é em falta. A busca incessante da perfeição resume a falta constitutiva do humano relativamente a si mesmo, pois em si mesmo é imagem da perfeição. Há também o reconhecimento da falta relativamente à totalidade das coisas e de que a Harmonia geral o ultrapassa. Este reconhecimento é o reconhecimento da sua finitude face ao universo reconhecendo, assim, de que a si lhe cabe um papel específico no desenrolar das coisas. E há, igualmente, o reconhecimento de que a apercepção da vida surge dentro dos mesmos moldes. Ou seja, de que a vida que se tem corresponde a um período de tempo que, em si próprio, remete para além de si. Tal como o 3,14 remete para o que aí falta, também esta vida mundana remete para a totalidade infinita. Já falámos disto anteriormente. O horizonte de familiaridade do humano apresenta-se a si mesmo como constitutivamente referido à totalidade infinita203. Por outras palavras, o tempo de vida do humano mostra-se a si mesmo como referido à totalidade do tempo. Este fenómeno mostra, simultaneamente, como também já se disse, que o sentido daquilo que se percebe é devedor da totalidade que permanece confusa. O horizonte de vida humana, na medida em que se mostra como parte de uma totalidade que está em falta na apresentação do que se passa, mostra que o que se passa é muito mais do que aquilo que se apresenta, de modo claro, ao humano. E, ao mesmo tempo, mostra que aquilo que a totalidade daquilo que se passa é doadora de sentido relativamente aquilo que se apresenta. Ou seja, o humano percebe que o sentido da sua vida é devedor do sentido de todas as coisas. A este reconhecimento que o humano sempre tem, mais ou menos confusamente, nós chamamos sentimento de imortalidade, ou, na medida em que para o humano nada acontece que não seja percepção, podemos chamar-se apenas imortalidade. A imortalidade é, portanto, um fenómeno e é um fenómeno confuso. Mas não é tão confuso que nós nunca tenhamos notícia dele. A maioria dos humanos dá-se conta dele e conta com ele. A tese de Leibniz é, precisamente, de que só contando com a imortalidade o humano pode fazer com que a sua vida conte de facto. A verdadeira liberdade conquista-se tendo em vista a imortalidade e não apenas o espaço de tempo a que chamamos esta vida204.

Portanto, a consideração da verdadeira felicidade nesta vida deve ter diante dos olhos o objecto dessa vida futura205. Tendo nós já abordado este tema, vamos agora simplesmente reformular o assunto à luz dos novos desenvolvimentos.

202 Cf. op. cit. 136 e seguintes.

203 Cf. PNG, 28: “[…] cada percepção distinta da alma compreende uma infinidade de percepções confusas, que envolvem todo o universo.

204 Mona., 57: “[…] sendo a Mónada um espelho do universo a seu modo, e estando o universo regulado por uma ordem perfeita, é necessário que haja também uma ordem no representante, quer dizer, nas perspectivas da alma […]”. As perspectivas da alma reflectem a ordem do universo, ou seja, o sentido das perspectivas são dependentes do sentido da totalidade. Note-se ainda que, em rigor não há geração nem morte.

205 Os termos são de Leibniz segundo Ensaio, 136. Esta vida é o tempo de vida em que há apercepção. A morte é apenas entorpecimento, ou melhor, um longo atordoamento. Cf. PNG, 22 e 28.

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Advertências -58- Cap. V

Ora, colocando a hipótese de não existir uma vida futura206, não haveria uma referência pela qual as decisões dos humanos devessem ser consideradas boas ou más. Os humanos lançam-se em ocupações distintas. Uns preferem umas coisas, outros outras. Isto acontece porque cada um se lança naquilo que para si é o melhor. Sem a referência a uma vida futura, a dispersão desta vida não teria nenhum referente, nenhum padrão de avaliação. Então, cada um quereria o que quer e não haveria necessidade de cada um se treinar em querer o que desejaria querer, pois isto que desejaria querer trata-se de um segundo momento relativamente ao querer de facto, segundo momento que, sem a vida futura, não teria lugar. O sentido de que cada um se afunde em diferentes inquietações não teria nenhum outro sentido excepto o facto de cada um julgar o seu próprio desejo como o melhor. Então, não havendo nenhum outro sentido senão o sentido desse querer imediato, não haveria qualquer necessidade de aperfeiçoar o querer. Tudo seria permitido e igualmente bom, de acordo com a preferência de cada um.

Ora, segundo Leibniz, mesmo na hipótese de não existir vida futura e de, portanto, prevalecer apenas a preferência de cada um, sem uma avaliação futura, para além do querer de cada um – mesmo nesta hipótese, como se dizia, o humano tem apenas a ganhar com o treino de si mesmo em se afastar do império das impressões imediatas. Isto porque essas imperfeições imediatas, que no presente o inclinam pelo prazer imediato que sugerem, escondem a dor e a imperfeição que com o tempo trazem ao humano. Assim, mesmo que não existisse a vida futura, o humano deve treinar o seu gosto, a sua vontade e a sua razão, de modo a evitar deixar-se arrastar por prazeres causadores de dores maiores. Deste modo, entregue apenas à sua vida mundana, o humano deveria procurar determinar-se pelas perfeições mais duradoiras, segundo o modo da vida mundana. Ora, os bens que convém à vida mundana são a saúde do corpo e a tranquilidade da alma, por oposição à doença física e à dor de alma. Ou seja, ainda que apenas existisse a vida mundana, o esclarecimento seria essencial de modo a esclarecer o sentido dessa vida mundana, de modo a esclarecer o que convém a essa vida mundana. Em vez de se entregar aos bens aparentes que destroem a vida mundana, o humano deveria esclarecer os modos dessa vida, procurando a melhor maneira de desfrutar dela. Assim, deveria procurar os bens que permitissem alargá-la, em vez de a diminuírem e, ao mesmo tempo, os bens que melhor permitissem estar nessa vida. Ou seja, dado que o tempo de execução de perfeição estaria limitado ao tempo de vida terrena, a vida terrena seria o tempo de execução da perfeição, logo, as acções seriam tanto mais perfeitas quanto mais tempo de vida disponibilizassem e tanto quanto maior prazer permitissem retirar da vida por mais tempo. A máxima perfeição seria a melhor combinação possível entre tempo de vida e gozo da vida, ou seja, seria a vida longa vivida em paz de alma, por assim dizer. A vida longa e feliz. Na medida em que todo o prazer é um sentimento de perfeição, o interesse humano resumir-se-ia em obter o máximo prazer duradoiro possível. Isto se a vida humana se resumisse à vida terrena. Assim, a vida humana seria exclusivamente uma vida do mundo, uma vida entregue à execução das perfeições mundanas. A perfeição consistiria em retirar o máximo de prazer da vida no mundo, sem que isto quisesse dizer uma entrega aos vícios, pois estes destruiriam a vida em vez de a tornarem aprazível. Resumindo, seria fim do humano fazer da sua vida um lugar aprazível para si mesmo. Se só existisse o presente, bastaria contentar-se com o prazer sugerido pelo presente, mas o presente para o humano é um momento da sua vida e, como tal, remete para a totalidade da sua vida.

Por outro lado, o próprio esclarecimento da vida humana não se deixa esgotar na vida mundana, nesta vida. Levando a sua vida mundana, trabalhando a torná-la longa e aprazível, o humano não se esgota em executar as perfeições que se lhe deparam. O humano, constitutivamente, vê-se remetido para além dessa execução mundana. Constitutivamente, o humano apercebe-se a si mesmo como imagem de algo maior do que a execução do mundo. O humano não se apercebe a si mesmo como um ser do mundo, mas como um ser capaz de perfeição. O humano não se mostra a si mesmo como mais um ser desse mundo em que se executa, mas pelo contrário, o próprio mundo se mostra como execução de algo que extravasa os seus limites mundanos. Em cada execução de si o humano sente uma falta constitutiva relativamente a si mesmo. Em cada passo que dá, o humano sente a sua finitude. Esta finitude, esta falta ele a apercebe de forma constitutiva, isto é, não como um mero acaso, mas como algo que vem incontornavelmente de si mesmo. Esta finitude não é tal que ele tenha ao seu dispor o modo de a findar, a falta que ele apercebe não é tal que possa ser reposta. Em cada ocupação o humano executa uma possibilidade do seu ser e, com isso, esgota aquele momento de si, aquele momento de execução que jamais é recuperável. Aquela execução corresponde a um trazer à existência uma potencialidade de si mesmo, ou seja, corresponde a uma escolha que o humano fez relativamente a si mesmo. E nesta

206 A vida futura não é uma reencarnação para uma nova vida mundana. Leibniz refere-se, com esta expressão, à vida fora deste mundo, à vida

junto de Deus fora dos tempos. Trata-se de uma outra realidade distinta desta que nos é oferecida enquanto seres do mundo. A vida futura não pode ser compreendida completamente pelo humano pois que se situa fora do universo. Ora, Leibniz não concebe um fim do universo. Logo, este futuro não tem uma colocação temporal como se se tratasse de um mais tarde. Este futuro refere-se a um depois que não tem referência temporal.

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Advertências -59- Cap. V

escolha não pôde deixar de ficar de fora tudo o resto, todas as suas outras possibilidades. A finitude do humano restringe o seu leque de existências. Das suas possibilidades de ser só algumas virão a existir. Não é indiferente o modo como ocupa o tempo, não basta que o tempo seja ocupado. A incontornabilidade do tempo não significa apenas que o humano se tenha que decidir quanto ao seu próprio ser. A incontornabilidade do tempo exige-lhe que se cumpra.

Ora, é precisamente este cumprir-se que está em causa em cada ocupação, de tal modo que em cada perfeição que executa deverá ter o cuidado de não excluir uma perfeição maior207. Na medida em que cada presente da vida humana é um momento da totalidade que cada um é, o sentido da execução de cada um em cada momento extravasa esse momento e remete em si mesmo para a totalidade da sua existência. Em causa não está a execução de cada momento de per si, nem a perfeição que cada momento pode facultar, mas a própria perfeição de cada momento está comprometida com a totalidade da existência do humano. A perfeição de cada acção é devedora da execução total de si mesmo.

É assim que a perfeição que o humano visa a cada momento não se resume apenas a esse momento, mas ao cumprimento integral da sua própria identidade. Ora, a perfeição da identidade do agente humano não pode ser compreendida nos limites do mundano, pois a própria execução munda de si remete para lá do mundano, remete para uma execução que não cabe nos limites do humano. Em causa não está o prolongamento infinito desta vida mundana. A vida mundana poderia prolongar-se infinitamente que, mesmo assim, o sentido de cada momento dessa existência sempre por terminar remeteria constitutivamente para fora de si, para uma vida futura que não caberia na vida mundana, apesar da sua infinidade.

A compreensão que o humano tem de si, mesmo quando vive tomado pelo mundo, chama-o para fora do sentido desse mundo, para um sentido que não é compreendido pelo mundo. Se os humanos se deixam levar pelo mundo é porque essa compreensão que têm de si próprios é confusa. Essa compreensão é, portanto, uma falsa compreensão, um raciocinar por palavras, vazio e sem apercepção clara e distinta. Mas a elucidação mostra que a condição humana apela constitutivamente para além do mundo que o arrasta na maioria das vezes. Ou seja, a própria condição do humano, que na maioria das vezes o lança no turbilhão das impressões imediatas, o fazem ter uma pré-compreensão, não esclarecida, de si mesmo como não sendo da mesma espécie que os objectos do mundo. O esclarecimento deve, portanto, mostrar ao humano que o seu sentido, o sentido da sua identidade, não se esgota no esgotamento dos prazeres mundanos. Mesmo que o humano pudesse viver esta vida mundana para sempre e esgotar todos os seus bens, permaneceria numa falta constitutiva relativamente à sua possibilidade mais perfeita. De uma forma mais premente poderemos dizer que mesmo que os humanos vivessem para sempre ao modo das bestas, saberiam confusamente que essa vida não lhes bastaria.

Deste modo, o sentimento de imortalidade e o desejo de imortalidade resultam da percepção confusa de perfeição. Isto é, na verdade o desejo de imortalidade não é mais do que a percepção confusa da urgência de perfeição. Falamos aqui de urgência porque essa referência à perfeição não é qualquer coisa que o humano possa deixar para depois, excepto na medida em que a percebe confusamente. Essa referência à perfeição diz, na verdade, respeito ao momento do agora em que o humano se executa, de tal modo que a verdadeira inclinação do humano é que cada possibilidade executada seja parte constitutiva da execução de si mesmo de acordo com a sua perfeição. Isto é, não acontece que a vontade de perfeição seja uma vontade que apenas abarca algumas decisões que nós temos consciência de serem importantes. A nossa perfeição não está apenas em causa quando temos que decidir entre matar ou ser morto, mas, pelo contrário, a vontade de perfeição está presente, dando sentido, a todos os momentos da nossa vida. Então, cada momento da nossa vida é ocasião de perfeição. Contudo, dada a situação de distracção em que o humano se encontra, na maioria das vezes ele só se apercebe dessa urgência em circunstâncias delimitadas em que se evidência a possibilidade de findar todas as ocasiões de se cumprir, como por exemplo quando está em risco de morte. Por outro lado, o humano é confrontado com uma nítida inquietação quando se apercebe de ter deixado escapar uma ocasião de se cumprir. No entanto, na medida em que essa inquietação é apercebida confusamente, na maioria das vezes o humano permanece diletante sem ter consciência daquilo que o deveria determinar. Então, julgando o mal que o acomete como o pior, dada a nitidez daquilo que o presente lhe apresenta, ele tenta escapar desse mal para qualquer outra coisa, caindo assim numa declinação sucessiva (na miséria, como já tivemos ocasião de dizer).

O esclarecimento, contudo, mostrou que a perfeita execução de si mesmo está em causa em cada momento. E cada momento que o humano passa sem esclarecer esta urgência corresponde a uma perda de si próprio que ele sente (confusamente) como inquietação sem saber qual o seu verdadeiro objectivo (a perfeição). Ora, esta perfeição não pode ser executada nas execuções mundanas de si mesmo. Ou seja, esta urgência não pode ser explicada em termos mundanos. A queda sucessiva em diferentes paixões apenas agrava o seu diletantismo. Entretanto, este diletantismo, na

207 Cf. Ensaio, 137: “Como se alguém dedicasse toda a sua vida a atirar ervilhas contra alfinetes para não falhar a enfiá-los […]”

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Advertências -60- Cap. V

medida em que não o satisfaz, abre a possibilidade dele se aperceber da necessidade de se esclarecer a si mesmo. A consciência de que é escravo das paixões mostra-lhe que, não só não é livre, como lhe mostra também que a escravidão da paixão o impede de se executar em pleno acordo consigo mesmo. A paixão não é acção. Então, o humano reconhece-se como tomado pelo mundo. Este reconhecimento implica uma urgência de se tornar agente de si mesmo, de se determinar a si mesmo, não ao modo do mundo, mas ao modo de si mesmo. E esta exigência implica deixar de se subordinar às paixões do mundo e a passar a subordinar o mundo às exigências da sua natureza. Nessa medida, a própria elucidação da vida mundana, revelando a exigência de substituir os prazeres efémeros pela felicidade duradoira, leva à consideração da felicidade perfeita, à execução perfeita de si mesmo, a qual não cabe nos moldes do mundo. Este reconhecimento não nega o mundo, precisamente afasta-o tornando-o objecto de consideração, subordinado à razão, ao esclarecimento.

O humano encontra em si mesmo exigências de perfeição que não cabem no mundo, isto é, que não podem ser executadas mundanamente, nem mesmo num mundo infinito, nem mesmo numa vida mundana infinita. Exigências tais como a justiça e a virtude mostram que a perfeição humana se joga a um nível que não é explicável segundo o mundo. A consideração da mera vida munda não consegue dar conta na urgência de execução de si mesmo que acompanha a existência humana208. A imortalidade do humano portanto não deve ser compreendida como uma continuidade infinita desta vida mundana, mas como uma remissão constitutiva de se mesmo a uma existência que extravasa completamente esta vida, não por uma questão quantitativa, mas por uma questão de grau ou qualidade. A perfeição que convém ao humano não é deste mundo.

Por outro lado, como se disse, isso não significa um abandono da vida como se, então, o humano de devesse deixar morrer de fome, por exemplo. Pelo contrário, a exigência de perfeição é tal que é premente a cada instante da vida. Em cada momento o humano tem ao seu dispor uma ocasião de ser excelente. Isso significa que cada momento é ocasião para o humano se cumprir ou destruir. Não executar a possibilidade mais perfeita significa que se perdeu a ocasião de se cumprir. Essa ocasião não volta. O humano tem o preconceito de que pode adiar inocuamente as suas possibilidades. Ora, isso é um preconceito. O adiamento é uma decisão de adiamento e, enquanto tal, é a execução duma possibilidade de si mesmo. Essa execução exclui todas as outras possibilidades. Adiar a possibilidade mais própria é adiar o cumprimento de si próprio naquele momento. Adiar é não trazer à existência. Do ponto de vista da perfeição do humano, adiar a sua possibilidade mais perfeita é um modo de não existir, é um modo de se perder.

Ora, isto é assim porque o humano é imagem, não só do universo, mas de Deus. O humano, sendo uma alma racional (espírito), é mais do que imagem do universo das coisas209. O humano deve existir de acordo com o que lhe convém, e o humano não é simplesmente um objecto do mundo. Há nele uma referência que não se esgota no mundo das coisas. Há nele uma centelha de infinito, há nele a imagem da suprema perfeição. O mundo do humano, o mundo em que lhe é permitido exercer-se, o humano imita Deus. É deste modo que nele ocorre a liberdade. Pois o humano, regido pelas causas finais, lançado na antecipação, cria-se a si mesmo à imagem da perfeição. Isto se for capaz de se libertar das paixões que o puxam para baixo, para o mundo.

Deste modo, o humano que se deixa arrastar pelo mundo, vivendo ao modo do mundo, torna-se mundo. Mas ao humano está destinado um fim maior. Libertando-se das amarras do mundo, o humano dotado da razão, torna-se capaz de perfeição. Pois não basta ter essa faculdade, é necessário torná-la uma capacidade. Não basta existir, é necessário existir de acordo com a sua verdadeira natureza. A liberdade consiste, pois, para o humano, em viver no mundo ao modo da perfeição. Ou seja, consiste em fazer da sua vida um exercício de si mesmo, em vez de se deixar exercer pela vida. A liberdade consiste em tornar-se senhor de si mesmo, determinando-se ao modo que lhe é intrínseco. E isto significa lançar-se a cada momento na possibilidade mais autêntica de si mesmo. Significa executar a cada vez aquilo que em si há de mais perfeito. O humano livre é aquele que se descobre a si mesmo constitutivamente lançado em possibilidades de ser, tendo a cada vez em jogo a execução da sua própria perfeição. O humano livre é aquele se compromete com a sua perfeição em tudo aquilo que faz. Isto não significa que o humano se possa deter numa situação de perfeição completa, ou de cumprimento terminado, pelo contrário, significa que em cada momento da sua existência urge cumprir-se, que a cada vez que se decide urge tornar-se naquilo que é. Ou seja, ser livre é determinar-se a cada momento pelo nosso melhor, é dar de nós a cada vez o nosso melhor. É fazer em cada momento o melhor que estiver à nossa disposição com a humildade de reconhecer que devemos (e podemos) ser sempre melhores.

208 Cf. Ibidem.

209 PNG, art. 14: “Quanto à alma racional (raisonnable) ou espírito, há alguma coisa mais que nas Mónadas, ou até nas simples almas. Não é somente um espelho do universo das criaturas mas também imagem da divindade”.

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Advertências -61- Cap. V

Assim, o humano para ser livre não deve ser ao modo do mundo mas ao modo de Deus. Ora, este discurso lembra facilmente o discurso medieval, sobretudo de Agostinho. Contudo, é preciso tentar ver o que Leibniz pretende dizer, ou, melhor, o que se diz ao dizer-se Deus. Leibniz usa muitas vezes hipóteses que assume como forma de elucidar um certo assunto por oposição a essa hipótese. Assim, o ponto de vista de Deus surge muitas vezes para realçar a finitude do ponto de vista humano. Mas não devemos escamotear que Leibniz era crente. Nem devemos afastar-nos das suas considerações só porque incluem Deus. Tal como o sentimento de imortalidade ou a exigência de outra vida, também Deus é um pensamento, e um pensamento confuso. A elucidação de Deus esclarece aquilo que se encontra em nós confusamente. E Deus é a infinitude, é a substância suprema. O humano é uma mera imagem. Deus é a realidade. Deus é, portanto, a possibilidade de escapar do mundo em turbilhão. Deus, sendo a substância suprema, é a possibilidade do humano ser imagem realizada. Ou seja, enquanto imagem, o humano é tanto mais real quanto mais real for aquilo de que é imagem. Vivendo ao mundo do mundo, consumindo-se em objectos efémeros, em prazeres mundanos, o humano anda à deriva, de escolho em escolho, como um barco sem rumo pronto a naufragar. A vida diletante é, afinal, uma vida de miséria. Uma vida que o humano parece não controlar. O humano perde-se nas coisas do mundo, deriva pela vida encontrando decepção e fracasso210. Mas em Deus Leibniz vê a possibilidade do humano se direccionar para um objecto que não engana, um objecto perene. Deus é a possibilidade do humano deixar de ser imagem de sombras e se tornar imagem da luz. Sendo eterno e perfeito, sumamente bom, ao contrário dos pequenos prazeres do mundo, Deus oferece ao humano um prazer duradoiro, no qual se pode confiar. Ou seja, Deus é o objecto perfeito para a nossa vontade. É a possibilidade de satisfazer o amor humano. Pois se este amor, esta inquietação constitutiva do humano o obriga a uma vida indigente é porque o humano visa sempre a satisfação absoluta que nada deste mundo lhe pode dar. Chamemos-lhe Deus ou qualquer outra coisa, trata-se da possibilidade de saborear a máxima felicidade e a máxima perfeição, pois se a felicidade que se consegue consiste em saborear prazer nas perfeições daquilo para que se tende, a máxima felicidade consegue-se quando se tende para o ser mais perfeito e mais feliz211.

Deus é, portanto, essa possibilidade que extravasa o domínio do mundo e que pode satisfazer a ânsia humana pela perfeição212. A máxima liberdade alcançar-se-ia, então, quando o humano se determinasse por Deus, pela possibilidade mais perfeita. Esta seria a sua máxima execução de si mesmo, pois então seria autenticamente à imagem de Deus. A vontade ou o amor seria maximamente livre quando tivesse por objecto o mais perfeito dos seres. Pois Deus não nos faltaria, Deus não nos falharia, Deus não nos enganaria. O esclarecimento de si mesmo deve mostrar ao humano que a sua perfeição consiste em determinar-se pela mais perfeita das possibilidades. E, para dizer isto, não seria preciso recorrer a Deus. Leibniz usou os termos da sua época. Se nós neste estudo usámos os seus termos foi por razões metodológicas, pois com isso não quisemos passar nenhuma crença, nem tão pouco nos afirmámos crentes. De igual modo, em Leibniz Deus é um conceito que cumpre essa função: trata-se do objecto mais perfeito da nossa vontade. Ao contrário de todos os outros prazeres, o prazer vindo do objecto perfeito nunca cessa porque nunca seca a sua fonte. Deus é a possibilidade da garantia de que a ânsia da nossa vontade, que não cabe nesta vida nem neste mundo, tem onde caiba, tem um lugar próprio. Trata-se da possibilidade de que o nosso desejo de perfeição tenha um referente real. É a possibilidade de que o nosso amor tenha um objecto à altura.

Por outro lado, isso não significa que para um não crente a Filosofia de Leibniz perca o seu sentido. Permanece válida a hipótese. Porque esta hipótese é a hipótese de que a nossa vontade visa algo que não se mede pelas medidas do mundo das coisas. Ora, sempre que o humano resiste à tentação do dinheiro por uma questão de justiça moral fá-lo porque sabe que as coisas do mundo não satisfazem a sua ânsia de perfeição. O humano sente, ainda que confusamente, que aquilo que a sua vontade não pode ser traduzida apenas em termos de utilidade. Pela esperança o humano projecta-se para além dos limites do presente e a sua vontade inclina-se por algo que não pode ser quantificado, nem explicado

210 Daí a necessidade de buscar o bem supremo. Cf. Nouvelles ouvertures, vers avril, octobre 1686, disponível em

http://fr.wikisource.org/wiki/Nouvelles_ouvertures: “Puisque nous sommes dans un siecle qui tache d’approfondir les choses, il faut que ceux qui

aiment le bien general, fassent quelque effort pour profiter de ce panchant, qui peut estre ne durera pas long temps aux hommes, sur tout s’il se

trouve par malheur ou par leur peu de methode, qu’ils n’en soyent pas fort soulagés, ce qui les feroit retomber un jour de la curiosité dans

l’indifference et enfin dans l’ignorance.”

211 PNG., art. 16.

212 Cf. Reflections on the Souls of Beasts, Translated by Donald Rutherford, disponível em http://philosophy2.ucsd.edu/~rutherford/Leibniz/index.html:

“15. Finally, man is destined by God for a much higher end, namely, for society with him; and so (by virtue of the harmony of the kingdoms of

nature and grace) it has been established that human souls, together with some organic body, are preserved not only in the manner of beasts, which

perhaps slumber for a time after death, but in a more elevated way, such that they retain sensation and consciousness, and are capable of

punishments and rewards.”

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Advertências -62- Cap. V

matematicamente. A vontade e a esperança humanas são infinitas. Não há uma quantidade de dinheiro que satisfizesse o humano. O dinheiro abre novas possibilidades. O que vale no dinheiro são as possibilidades que ele disponibiliza. A vida mundana é um constante passar de possibilidade em possibilidades, esgotando-as e sendo consumido por elas. E a vontade permanece. Podemos imaginar que mesmo que detivéssemos o controlo sobre o mundo inteiro quereríamos ainda mais coisas, nem que fosse exercer esse poder despoticamente. Não se vislumbra nada de mundano que nos possa saciar. Ora, Deus é essa possibilidade, Deus é a possibilidade da verdadeira felicidade. E, nesse sentido, Deus é a possibilidade da verdadeira liberdade, é a possibilidade de nos determinarmos maximamente de acordo connosco próprios. Nesse sentido, Deus é a possibilidade de execução mais perfeita do humano e, amar a Deus é executar a possibilidade mais perfeita. A existência de Deus corresponderia à existência da possibilidade do humano se cumprir plenamente.213 E foi em busca desta possibilidade que tantos humanos crentes e ateus (ou não crente num Deus absoluto) fizeram tantas coisas grandes. Erigiram-se impérios (e não consta que após erigirem impérios os imperadores deixem de ter vontades), escreveram-se livros, fundaram-se religiões. E os grandes feitos nem sempre são mensuráveis. Há qualquer coisa no médico que abdica da paz europeia para ir para África cuidar de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza – há qualquer coisa na sua acção que não cabe neste mundo, que não pode ser traduzida por nenhum número, por maior que seja. Há qualquer coisa na necessidade do humano ser virtuoso que não pode ser contabilizado. E o facto da maioria não abdicar dos números não invalida as acções incomensuráveis. Mesmo que Deus e o infinito real não existam, há na vontade humana algo que não é finito e que projecta sobre a sua finitude um sentido que extravasa o universo, por maiores que sejam as fronteiras deste.

213 Claro que isso não sucederia nesta vida onde a condição do humano não lhe permite livrar-se completamente da situação de

confusão. De resto, reforce-se que o autor deste estudo não afirma aqui nenhuma crença pessoal.

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Conclusão -63- Conclusão

S e c ç ã o 1 9

CONCLUSÃO

udo acontece segundo uma causa que determina o que lhe sucede. Tudo o que existe, existe por uma série de razões. Nada acontece que não tenha uma razão para acontecer. O que é resulta daquilo que o antecedeu. Cada coisa deriva do seu antecedente e levará ao estado seguinte. Mas tudo o que existe resulta das suas causas de modo

espontâneo, pois tudo o que existe são percepções das Mónadas que existem, e as percepções das Mónadas são evanescentes: sucedem-se espontaneamente.

Tudo o que acontece só acontece porque se reuniram os requisitos para o seu acontecimento. Mas apesar da causalidade entre os requisitos e as suas consequências, estas não resultam daqueles de modo necessário. Porque se o que acontece não acontecesse não implicaria nenhuma contradição, pelo contrário, seríamos nós que teríamos que rever as nossas convicções. A relação de causalidade é uma hipótese nossa que vemos que de certos acontecimentos resultam outros. Mas é uma hipótese necessária, pois sem a admissão dos nossos princípios racionais nada poderíamos explicar nem compreender. Tudo o que explicamos se faz por esses princípios, pelo princípio da contradição e pelo princípio dos requisitos ou razões suficientes. Todavia, na ordem natural, tudo o que sabemos é pelo princípio da razão suficiente. Tanto quanto sabemos, tudo o que acontece poderia não acontecer sem implicar contradição. Na natureza nada é necessário. Tudo é contingente para o conhecimento humano acerca das coisas da natureza.

O humano não é uma simples Mónada. Há uma alma no humano. Não uma alma qualquer, mas uma alma racional. Uma alma capaz de se aperceber de si mesma. Uma alma com consciência. Ora, esta consciência faz da espontaneidade liberdade. Porque a espontaneidade que se torna consciente para si mesma tem uma palavra a dizer quando ao futuro. O humano pode antecipar os seus actos, pode prevê-los e, nessa medida, pode tornar-se senhor de si. O humano tem uma vontade que, mediante a razão, se torna o princípio interno da sua própria acção. A acção do humano deriva de si mesmo por um princípio interno. Mesmo que se reúnam todos os condicionantes físicos e psicológicos, para explicar a acção faltará sempre juntar a vontade. Não é o dinheiro que me faz roubar, mas a minha vontade. A justificação da acção faz-se pela decisão. Não são os motivos que são a justificação, mas a minha determinação a um fim. Um motivo só se torna fim, só determina a minha acção se a minha decisão assim o determinar.

Leibniz não nos diz que, apesar da necessidade que nos obriga, a liberdade é um fenómeno antropológico inegável. O que seria uma posição possível214. Mas não, não é essa a tese de Leibniz. O que Leibniz nos pretende dizer é que a necessidade não nos obriga.

Considere-se um estudante no final do secundário. Antes de tomar a decisão de seguir o curso de Filosofia, tal decisão não existe. Antes do momento intraduzível da constituição duma vontade em decisão racional, tal decisão é meramente uma hipótese.

É possível estabelecer uma probabilidade, considerar as condicionantes em causa, ponderar a biografia da pessoa em questão. É possível, desde que na posse dos conhecimentos adequados, fornecer uma decisão provável. Depois de tomada a decisão, podemos olhar para o tempo que a antecedeu e elaborar uma demonstração da decisão tomada. Nos tempos que correm a psicologia já nos habituou a estarmos à espera dessas justificações. Mas a tese de Leibniz é que, uma fracção de segundo que seja, um momento antes de tomada a decisão, tal decisão é ainda e sempre uma hipótese. Se pode demonstrar-se, tal demonstração é meramente hipotética. Antes de existir é meramente uma possibilidade entre outras, uma possibilidade em aberto. Tal como todas as outras que podem vir a existir no lugar dela. O tempo da decisão é constituinte da existência. É só nesse momento singular que uma possibilidade advém à existência.

Quaisquer que sejam as razões apontadas, somadas, relacionadas, analisadas, sintetizadas – a decisão ainda por tomar é uma hipótese à consideração, uma possibilidade da existência.

Podemos sempre dizer que Deus vê a necessidade de tal decisão. Que, portanto, em Deus, onde, afinal, o mais importante se joga, a decisão é necessária. Mas o que é de Deus não pertence ao homem. Se do ponto de vista divino a decisão humana já está tomada, isso é porque em Deus o tempo ocorre na sua totalidade de um só golpe. Se do ponto de vista divino a necessidade das nossas decisões é evidente, isso é uma característica do ponto de vista divino. Não do ponto

214 A posição de Espinosa é esta.

T

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Liberdade, possibilidade e determinismo em Leibniz Luís Mendes Seminário

Conclusão -64- Conclusão

de vista humano. O humano existe. A facticidade tolhe-o. E esta incontornabilidade do tempo contínuo atira o homem no momento decisivo. Do ponto de vista humano a decisão é o acolhimento de uma possibilidade, de uma possibilidade enraizada no nosso próprio ser, na nossa essência. E é no verdadeiro momento da decisão que a alma decide do seu ser, pois o ser de cada um é a totalidade das possibilidades próprias que cada um decide fazer vir à existência.

A Mónada que cada um é, é a totalidade das suas percepções, mais ou menos confusas. A propriedade de cada um consiste no esforço de perfeição. A liberdade de cada um consiste em agarrar as possibilidades do próprio ser que lhe são mais próprias. As possibilidades que executam mais perfeitamente o esforço de perfeição. O humano é uma alma dotada de razão e, nessa medida, ele reflecte sobre si próprio. O espírito é uma alma racional. É imagem do universo e tem a capacidade de se aperceber de si próprio. A reflexão é isso, é a possibilidade de se notar a si próprio. O humano é livre porque é capaz de razão, porque é capaz de notar as coisas, porque é capaz de iluminar o seu mundo. É livre porque não é simplesmente uma coisa no universo, mas se apercebe de si no mundo. É livre porque não é apenas mais uma coisa, mas é capaz de criar, de agir.

O tempo de existência é, para o humano, tempo de se ocupar. Ocupa-se de várias actividades, ocupa-se nisto e

naquilo e na maioria das vezes esquece-se de si mesmo. Esquecesse-se de que a sua verdadeira ocupação deveria ser consigo mesmo. Levado pelo turbilhão das impressões imediatas, procura o que sabe mas não sabe o que procura. É arrastado pelas inclinações mundanas, arrastado para a miséria duma existência em que ele não tem mão. Vivendo ao modo do mundo, torna-se mundo. Amarrado ao presente é declinado. Em vez de ser senhor da sua vida, é escravo das paixões.

A existência do humano é aquilo que ele tem de mais próprio pois é o desenrolar do seu ser. Cada um julga saber o suficiente da sua vida. Mas o sentido da vida escapa-lhe. O que cada um sabe, na maioria das vezes é sabido apenas confusamente. Urge, então, que cada um se esclareça, que pare para pensar. Conhecer-se é conhecer o caminho para a felicidade, o caminho para a liberdade. É através do esclarecimento que cada um pode aspirar a tornar-se senhor de si próprio, senhor da sua própria vida. Porque a liberdade consiste em cada um tomar o próprio tempo para executar o seu melhor bem: a possibilidade mais perfeita de si mesmo. Com a liberdade o tempo torna-se tempo de exercer sobre a própria vida a vontade de perfeição. A liberdade consiste em fazer com o tempo o melhor de cada um.

A liberdade, para Leibniz, é executar o tempo da melhor maneira possível, é trazer à existência as possibilidades mais perfeitas do nosso ser. Porque existir é desenvolver a nossa própria identidade, a liberdade consiste em sermos nós próprios a criarmo-nos. Em sermos nós próprios a autodeterminarmo-nos. A liberdade é a autonomia do agente que se determina a si mesmo de modo conveniente a si mesmo. É neste sentido que liberdade e determinação são conceitos que não se anulam, pelo contrário. A liberdade consiste na determinação do agente ao seu maior bem. Então, a acção de cada um é a execução do tempo de cada um, não ao modo do mundo, mas ao modo de si mesmo. É fazer do mundo o local de execução de si mesmo, subordinando a paixão à reflexão, subordinando a vontade ao entendimento. Então, não é o humano que é declinado pelo fluir da vida no mundo, mas é o mundo que se torna o local onde cada um executa a sua vida de acordo com as suas possibilidades mais perfeitas. Só se é livre quando se compreendeu que não se vive para o mundo, mas que o mundo é o nosso mundo de execução de nós mesmos. Para o humano ser livre é viver consciente do destino de se cumprir a cada momento o que tem de mais próprio, porque o momento é ocasião de se cumprir. Porque em cada momento da nossa vida está em jogo o nosso próprio ser, porque em cada momento da nossa vida se pode ganhar ou perder.

A liberdade consiste, pois, em autodeterminação. Consiste em cada um fazer de si mesmo o melhor ser possível. A liberdade consiste em cada um se comprometer consigo mesmo. A liberdade é para o humano lançar-se a executar a possibilidade mais autêntica de si próprio. Porque o ser de cada um é o que está em jogo a cada instante da existência de cada um.

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Bibliografia LEIBNIZ

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BIBLIOGRAFIA

ABREVIATURAS

Das edições

GP ------------------- LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm, Die philosophischen Schrisften, ed. C. I. Gerhardt, 7 vols., Berlin, 1857-1890,

reimp. Hildesheim, 1965;

Erd. ------------------- LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm, Opera philosophica quae extant, ed. J. E. Erdmann, Berlin, 1840;

Grua ----------------- LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm, Textes inédits d’après les manuscripts de la Bibliothèque provinciale de

Hanovre, ed. Gaston Grua, 2 vols., Paris, 1948;

Opuscules ----------- Opuscules et Fragments inédits de Leibniz extraits des manuscrits de la Bibliothèque royale de

Hanovre, ed. Louis Couturat, Paris, 1903, reimp. Hisdesheim, 1961;

Mollat --------------- Rechtsphilosophisches aus leibniziens ungedruckten Schriften, ed. Mollat, Leipzig, J. H. Robolsky, 1885;

Das obras de Leibniz citadas

A --------------------- De libertate, 1680-1682, disponível em http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm;

B --------------------- De libertate, 1689, disponível em http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm;

Mona. --------------- Princípios da Filosofia, [Monadologia]: Leibniz, Gottfried Wilhelm. Princípios da Natureza e da Graça,

Monadologia. Editora Fim de Século, Prefácio de José Manuel Heleno, Notas de Christiane Frémont,

Tradução de Miguel Serras Perreira, Março, 2002, pp. 39-65;

PNG ----------------- Princípios da Natureza e da Graça fundados em razão: ibidem, pp. 17-32;

DM ------------------ Discurso de Metafísica, Leibniz, Gottfried Wilhelm: Discurso da Metafísica. Edições Colibri, Tradução e

Introdução e notas de Adelino Cardoso, Lisboa, Julho, 1995;

Teod. ----------------- Ensaio de Teodiceia, sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal: disponível em

http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm;

Ensaio---------------- Leibniz, Gottfried Wilhelm. Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano, Edições Colibri, Tradução e

Introdução de Adelino Cardoso, Lisboa, 9 de Novembro, 1993

Obras citadas pela ordem em que são citadas, referidas às fontes usadas e outras versões comparadas

De libertate, 1680-1682: http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm;

De libertate, 1689: http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm;

Princípios da Filosofia, [Monadologia]: Mona.; Leibnitz, La Monadologie, Belagrave, édition annotée par Emile Boutroux, Paris,

1978; http://fr.wikisource.org/wiki/Monadologie; La monadologie (1909), avec étude et notes de Clodius

Piat, Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), Release Date: January 30, 2006, French, online at

www.gutenberg.org; [existem outras versões on-line]

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Bibliografia LEIBNIZ

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Discurso de Metafísica: DM; Discours de métaphysique, Vrin, édition collationnée avec le texte autographe, présentée et annotée

par Henri Lestienne, Paris, 1975; http://www.ac-nice.fr/philo/textes/Leibniz-Discours.htm;

http://fr.wikisource.org/wiki/Discours_de_métaphysique; [existem outras versões on-line]

Novo sistema da natureza e da comunicação das substâncias; http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm; http://www.ac-

nice.fr/philo/textes/Leibniz-Systeme.htm; [existem outras versões on-line]

Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano: Ensaio; http://fr.wikisource.org/wiki/Système_nouveau_de_la_nature

[incompleto];

Princípios da Natureza e da Graça fundados em razão: PNG;

Sobre Belarmino: Grua;

Teodiceia: Teod.; http://fr.wikisource.org/wiki/Essais_de_Théodicée; Theodicy, Essays on the Goodness of God, the

Freedom of Man and the Origin of Evil, G. W. Leibniz, Commentator: Austin Farrer, Translator: E.M.

Huggard, Release Date: November 24, 2005, English; [existem outras edições e versões on-line e muitas

edições do prefácio]

Carta a Bourguet: GP;

Quos Ens Perfectissimum Sit Possibile: http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm;

Confessio philosophi: Confessio philosophi. La Profession de foi du Philosophe., Vrin, traduction et notes par Yvon Belaval, Paris,

1970, 2ª ed., pp. 8 -144 ;

Meditatio De Principio Individui: http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm;

A contingência: http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm;

Carta a Coste: [A Coste,] GP;

Carta a Remond de Montmort: Erd;

Principium Meum Est, Quicquid Existere Potest, Et Aliis Compatibile Est, Id Existere (12 de dezembro de 1676):

http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm;

Carta a Burnett: GP;

De organo sive arte magna cogitandi: Opuscules;

Carta a Foucher: GP;

Meditation sur la notion commune de la justice: Mollat;

Carta a Arnauld: GP;

Nouvelles ouvertures: http://fr.wikisource.org/wiki/Nouvelles_ouvertures;

Reflections on the Souls of Beasts: http://philosophy2.ucsd.edu/~rutherford/Leibniz/index.html.

Ver ainda:

Dialogus: http://www.ulb.ac.be/philo/scholasticon/txtleibnizdialogus.htm;

De Plenitudine Mundi: http://www.leibnizbrasil.pro.br/index.htm.