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MEDICINA TIBETANA Livro 13 Uma publicação destinada ao estudo da medicina tibetana, editada pela Biblioteca de Obras e Arquivos Tibetanos, Dharamsala, Índia

Medicina tibetana 13

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MEDICINA TIBETANA Livro 13

Uma publicação destinada ao estudo da medicina tibetana, editada pela Biblioteca de Obras e Arquivos Tibetanos,

Dharamsala, Índia

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MEDICINA TIBETANA

Livro 13

Dr. Yonten Gyatso Jan Bärmark

Traduzido por : Williams Ribeiro de Farias

Dra. Yeda Ribeiro de Farias

EDITORA CHAKPORI

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Título original: Tibetan Medicine Series 13 ©1991 Biblioteca de Obras e Arquivos Tibetanos, Dharamsala,Índia

1996 Direitos autorais para edição em línguas portuguesa e espanhola

adquiridos pela EDITORA CHAKPORI

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AGRADECIMENTOS À PRESENTE EDIÇÃO

Agradeço ao Sr. Lhasang Tsering, ao Venerável Dagom Rimpoche e seu assistente Lama Tsultrim Dorge, ao Sr. Lobsang Samten, à Srta. Nyingma Sherpa, ao Sr. Tsewang Jigme Tsarong, Diretor do Centro Médico Tibetano em Dharamsala, à Maria do Carmo Chagas Ribeiro e ao Sr. Sérgio Fanelli, que ajudaram a tornar possível a edição destes livros sobre Medicina Tibetana.

O Editor Williams Ribeiro de Farias

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ÍNDICE

A MEDICINA BUDISTA TIBETANA SOB A PERSPECTIVA DA ANTROPOLOGIA DO CONHECIMENTO ....................................................... 8 PARTE 1. A PERSPECTIVA BUDISTA ..................................................................... 8

Um Dia no Consultório de um Médico ........................................................ 8 Uma Mudança Filosófica ............................................................................. 9 Uma Compreensão Interna ........................................................................ 10 Uma Descrição mais Profunda da Medicina Tibetana ............................... 11 A Educação Médica ................................................................................... 12 Sobre as Pílulas Tibetanas ........................................................................ 13 As Características Mentais do Médico ....................................................... 14 Todo o Conhecimento Médico Tem Origem na Sabedoria de Buda .......... 15 A Primeira Volta da Roda do Dharma ........................................................ 16 A Causa Básica de Todas as Doenças ...................................................... 17 Doença é Desequilíbrio .............................................................................. 17 Buda, O Médico Ideal ................................................................................ 18 As Raízes Históricas da Medicina Tibetana ............................................... 18 O Significado da Própria Motivação ........................................................... 21 Bodhicitta ................................................................................................... 22 Lo-jong, Treinamento Mental ..................................................................... 23 Equilíbrio Interno ........................................................................................ 24 Sanidade Básica ........................................................................................ 24 As Doenças Psiquiátricas .......................................................................... 26 Demônios e Insanidade ............................................................................. 29 Uma Escalada Gradual para a Sabedoria e a Compaixão ......................... 29 Mantendo a Mente Atenta, Permanecendo Dentro da Compaixão ........... 30 Tong-len, Dar e Receber ........................................................................... 31 O Bodhicitta Relativo e o Absoluto ............................................................. 32 A Qualidade da Franqueza e da Claridade em Todos os Fenômenos....... 33 A Mente é Inexistente ................................................................................ 34 Mahamudra ................................................................................................ 34 Duas Verdades .......................................................................................... 36 Meditações no “shunyata” .......................................................................... 37 Experiência Não-Dual ................................................................................ 38

PARTE 2: ALGUMAS OBSERVAÇÕES META-CIENTÍFICAS ...................................... 38 Fontes do Conhecimento ........................................................................... 38

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Tranquilizando a Mente e Discernindo o Real ........................................... 40 Tradição e Autoridade ................................................................................ 42 Conhecimento na Medicina Tibetana ......................................................... 42 O Desenvolvimento do Conhecimento ....................................................... 43 Alguns Problemas de Interpretação ........................................................... 45 Os Três Humores ...................................................................................... 45 A Cientificação da Medicina ....................................................................... 46 Algumas Observações Sobre Comensurabilidade ..................................... 47 Uma Visão Relacional do Homem ............................................................. 49 Realismo na Medicina Tibetana ................................................................. 50 Medicina Tibetana como um Programa de Pesquisa ................................. 52 Razão hábil ................................................................................................ 53 Etnociência ................................................................................................ 55 O Significado da Compreensão Prévia ...................................................... 56 Os Três Mundos do Homem ...................................................................... 57 Uma Cultura da Ciência e Uma Cultura da Sabedoria ............................... 58 Harmonia ................................................................................................... 59 Ciência e Sabedoria ................................................................................... 59 Sabedoria Prática, “Phronesis” .................................................................. 60 Um Diálogo Possível Entre o Budismo e a Ciência Ocidental ................... 61

OS SEGREDOS DA FÓRMULA DA PÍLULA NEGRA* ................................ 63 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 63 TRADUÇÃO DO TEXTO: “A ETERNA GEMA PRECIOSA PARA A CLARA REVELAÇÃO DOS SEGREDOS DA FÓRMULA DA PÍLULA NEGRA” ............................................................................ 66 PURIFICAÇÃO DO MERCÚRIO E OS INGREDIENTES PRECIOSOS ............................. 69 A PRÁTICA DA DESINTOXICAÇÃO DOS INGREDIENTES PRECIOSOS ........................ 70 A GRANDE FÓRMULA ....................................................................................... 71 POLIMENTO ..................................................................................................... 76 PARA DETERMINAR UMA INTOXICAÇÃO ............................................................... 80 APÊNDICE 1: TRADUÇÃO DO TEXTO “UM MÉTODO CARACTERÍSTICO DE ADMINISTRAR AS PÍLULAS PRECIOSAS - UMA PRÁTICA DE HABILIDADE” ................ 86 APÊNDICE 2: A ORAÇÃO DE BENÇÃOS ............................................................... 89

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A MEDICINA BUDISTA TIBETANA SOB A PERSPECTIVA DA ANTROPOLOGIA DO CONHECIMENTO

Jan Bärmark

Que eu possa ser o médico e a medicina E que eu possa ser aquele que assiste A todos os seres doentes no mundo Até que todos estejam curados.

Shantideva

Parte 1. A Perspectiva Budista*

Um Dia no Consultório de um Médico Dois pequenos monges indicaram-me e ao fotógrafo Thoma Ljungqvist o caminho para o consultório de Shekar Amchi. Sua sala localizava-se em uma casa próxima ao monastério Khendrup Sherap Ling em Kathmandu. Shekar Amchi estava sentado em uma sala pequena, frugalmente mobiliada, com uma imensa variedade de potes de pílulas cobrindo as prateleiras e a mesa. Sobre a parede estava uma pintura em seda, uma thangka, de Sangye Menla, o Buda da Medicina. Não havia nada que lembrasse a alguém que aquele era o consultório médico. Nenhum instrumento médico. Nenhuma roupa branca. Shekar Amchi (amchi * Este estudo é dedicado a meu professor, Khenpo Tsultrim Gyatso Rimpoche. O Dr. Jan Bärmark recebeu seu Ph.D. sobre a psicologia da ciência e a teoria de Abraham Maslow em 1976. Seu principal campo de estudo é Teoria da Ciência. Atualmente realiza pesquisa em antropologia do conhecimento, ou seja, estudos comparativos sobre conhecimento e cultura.

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significa médico) estava vestido com uma roupa vermelha escura, usada por monges. Nós o reconhecemos do monastério. Ele havia estado lá em uma cerimônia de oferendas, onde textos foram recitados acompanhados pela música de grandes tambores, chifres, trompetas, sinos e címbalos. Naquele momento, nós o encontrávamos ali em seu papel de médico. Com o auxílio de um monge que falava inglês, ele perguntou qual nosso trabalho no Nepal. Dissemo-lhe que estávamos em Kathmandu por um mês para estudar a filosofia budista com o lama tibetano Khenpo Tsultrim Gyatso Rimpoche, em seu recentemente inaugurado centro de estudos chamado Marpa Institute. O intérprete sueco do lama Khenpo, Kicki Ekselius, recomendou que viéssemos consultá-lo para que nos ajudasse com nossos estômagos. Shekar Amchi perguntou-nos alguma coisa sobre os sintomas e sobre o que tínhamos comido e pediu para observar nossa língua. Após examinar também os olhos, ele tomou o pulso sobre o braço muitas vezes. Considera-se que a energia vital, importante para a saúde e a doença, possua um canal através do braço, o que explica o cuidado com que ele toma o pulso. Quando o diagnóstico foi estabelecido, ele nos aconselhou sobre a dieta – para evitarmos carne de galinha, café e álcool – e nos prescreveu pílulas duras e redondas. Devíamos tomar duas pílulas grandes e três pílulas pequenas três vezes ao dia com água morna. A visita ao médico estava terminada. Retornamos para casa e tomamos nossas pílulas e ficamos bem novamente alguns dias depois. Uma Mudança Filosófica Como é possível interpretar e compreender uma medicina incomum como a tibetana, onde tantas idéias e práticas parecem tão irracionais para nós? Ao cruzar com um grupo de crenças que pareçam irracionais à primeira vista, qual deveria ser minha atitude com relação à elas? Nossa visita ao médico tibetano nos trouxe à memória a questão de Steven Lukes: Como podem crenças e práticas

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médicas, que obviamente não estão de acordo com a realidade “objetiva” e com a medicina Ocidental, serem ao mesmo tempo internamente lógicas e mesmo efetivas? Temos que analisar a racionalidade mística e religiosa em termos completamente diferentes e seguindo outro critério daquele que utilizamos quando analisamos a racionalidade científica? Sentimos que poderíamos estabelecer uma identidade com as anotações que John Woodroffe fez há mais de um século quando, no prefácio para seus estudos sobre tantra – uma tradição filosófica indiana frequentemente considerada irracional no mundo Ocidental –, ele escreve: “Quando comecei o estudo deste shastra, estava acreditando que a Índia não possuía mais estúpidos do que os existentes em outros povos. Atrás da prática ininteligível, que sem dúvida existe em alguma extensão em todas as crenças, tive certeza de que deveria haver um princípio racional, uma vez que os homens como um todo não continuariam, através de muitas eras, a fazer o que não possuísse significado próprio e não tivesse resultados.” Uma Compreensão Interna Nosso objetivo é uma compreensão interior da medicina tibetana, uma compreensão em seus próprios termos, o que não é o mesmo que concordar com eles. Podemos também compreender crenças estranhas, tais como a medicina e o budismo tibetano, da mesma maneira que os tibetanos as compreendem? Uma outra questão importante: que espécie de cognição e outras experiências devemos desenvolver antes que possamos declarar com certeza que compreendemos uma cultura estrangeira interiormente? Uma compreensão interna envolve uma duplicação da mentalidade nativa – apegar-se ao ponto de vista nativo, compartilhar seus pensamentos interiores, ser capaz de examinar seu raciocínio na mente do indivíduo. Nós duvidamos que seja possível compreender uma cultura estrangeira exatamente da mesma maneira que um nativo. Podemos chegar muito próximo e até ver a cultura estrangeira sob a perspectiva e

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os preconceitos de um Ocidental. Para chegar tão próximo, devemos seguir os padrões da cultura estrangeira de forma a sermos socializados dentro dela, o que significa prestar atenção aos ensinamentos dos lamas e médicos, fazer meditações, entrevistar lamas e médicos e estudar textos junto com budistas. Pode-se ir ainda mais longe e fazer um refúgio durante três anos, três semanas e três dias para ser um lama, de acordo com o costume da tradição Kagyu do budismo, e até ser um lama Ocidental. No entanto, haverá sempre um intervalo, mas este intervalo na realidade é o local exato do diálogo criativo entre as culturas e seus modos de pensar. Uma Descrição mais Profunda da Medicina Tibetana Este relato de nossa visita a Shekar Amchi é uma descrição superficial da medicina tibetana. Como podemos chegar a uma descrição mais profunda?1 O verdadeiro contexto sócio-econômico no qual Shekar Amchi atua é interessante. Sob a perspectiva da antropologia do conhecimento, a medicina tibetana pode ser vista como um texto com muitas dimensões ou regras para serem interpretadas e explicadas hermeneuticamente. Temos que articular a visão global – as conjeturas, a cosmologia e sua epistemologia, a plataforma filosófica para a prática médica. Uma descrição profunda da realidade clínica na medicina tibetana implica em uma análise da estrutura social da realidade médica. Como são construídas as realidades das doenças? Como o tratamento médico transforma a realidade da doença em saúde recuperada a partir da perspectiva do paciente, na rede social do paciente e do médico? Qualquer que seja a natureza e a causa da doença, quaisquer que possam ser seus processos fisiológicos, bioquímicos ou psicológicos fundamentais, eles penetram no 1Tomei os dois conceitos de descrições “superficiais” e “profundas” de Y. Elkana, A Programmatic Attempt at an Anthropology of Knowledge, Sciences and Cultures, publicado por Y. Elkana e E. Mendelsohn, “Sociology of the Sciences Yearbooks”, 1981, págs. 1-76. Reidel 1981.

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mundo da vida humana e tornam-se objetos da ação humana como realidades significativamente constituídas. A Educação Médica A primeira dimensão, ou regra, na medicina tibetana é a realidade material concreta, o contexto social do ambiente monástico e sua posição e função dentro da mais ampla cultura. Amchi é um médico e um monge. A religião e a ciência médica estão integradas entre si. Amchi foi educado em uma cultura permeada com a filosofia budista, assim como os médicos em muitas outras culturas budistas. Sua educação durou cerca de treze anos, durante os quais ele estudou medicina e aprendeu a reconhecer, coletar e transformar ervas em medicamentos. Como outros estudantes de medicina, ele começava seus estudos às três horas da manhã, com orações a Manjushri, o Buda da Sabedoria. Depois disso, estudava textos sobre medicina e astrologia que recitava e memorizava até as seis horas. Exercícios físicos, um tipo de rathayoga, vinham a seguir e às oito horas eram oferecidas orações para Sangye Menla, o Buda da Medicina. Após o café da manhã havia um horário para instrução individualizada dependendo do nível do estudante. A astronomia e a medicina eram estudadas paralelamente com comentários orais sobre os textos. Exigia-se que os estudantes novos aprendessem gramática e escrevessem poesia. Após o almoço, à uma hora, eram estudadas as medições do corpo, localização das energias corporais sutis e reconhecimento das plantas medicinais. Os estudos continuavam durante o restante do dia até próximo do anoitecer, quando os estudantes se reuniam para debater questões médicas e astrológicas. Testes regulares eram realizados e os estudantes recitavam os textos médicos, astrológicos ou astronômicos que haviam memorizado. Após muitos anos de estudo, permite-se que um estudante treine juntamente com um médico, para que adquira

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habilidade nos diag-nósticos através do exame do pulso, um método que necessita sete anos de aprendizado.2 De volta para o hotel, comparamos nossa experiência da visita ao médico com o que havíamos lido sobre medicina tibetana. O médico não havia levado em consideração qualquer possível influência astrológica sobre nossos estômagos, e também não analisou nossa urina, o que nos desapontou um pouco. É principalmente por causa do exame da urina que a medicina tibetana se fez conhecida. A urina é vista como uma espécie de espelho no qual o médico pode observar a condição interna do paciente. Grande importância é dada ao clima, à estação do ano e à vida sexual do paciente, mas isto não foi comentado durante nossa consulta. Talvez nossas queixas fossem demasiadamente simples para que estes importantes aspectos da medicina fossem necessários no diagnóstico. Sobre as Pílulas Tibetanas As pílulas que recebemos foram feitas de uma certa quantidade de ervas e especiarias. Juntas, eram positivamente para estimular as energias vitais e restaurar o equilíbrio corporal perdido, indicado pela doença. Há muitas centenas de anos, o Tibete tornou-se famoso por seu conhecimento em plantas medicinais. O vale YarLung é famoso por sua riqueza nestas plantas e é mencionado em numerosos textos chineses. Há uma complicada metodologia para a coleta das plantas e preparação das pílulas, com orientações sobre o que e quando deve ser feito. Além disso, a motivação do médico é muito importante. O médico, invariavelmente, deve ser motivado por um forte sentimento de compaixão por todas as criaturas vivas. Durante nenhuma fase do processo de manipulação podem ocorrer quaisquer ações negativas – pois teriam um efeito prejudicial sobre o 2Para uma apresentação posterior do processo educacional na medicina tibetana, ver Medicina Tibetana, de Rechung Rimpoche, Berkeley, Los Angeles, 1973.

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medicamento3. A condição mental do médico representa um papel importante na medicina tibetana. Para ser capaz de prescrever um bom tratamento, é necessário que o médico possua qualidades como sabedoria e compaixão e que utilize seu trabalho para a prática de virtudes como generosidade, paciência, entusiasmo e moralidade. É preciso que o paciente tenha total confiança. As Características Mentais do Médico As características mentais de um médico são mais valorizadas que suas habilidades teóricas. Afirma-se que muitos médicos são bem sucedidos na cura de muitos pacientes graças às suas experiências meditativas, apesar de serem até mesmo iletrados. O papel representado pelas qualidades internas do médico também é salientado. “A crença de que é a pessoa do médico, e não o sistema conceitual ou suas técnicas particulares, o fator de importância decisiva para o processo de cura é também um inquestionável contrato de confiança para a maioria dos pacientes indianos.”4 Sudhir Kakar menciona também a importância dada ao médico que possui qualidades como “mente limpa”. Um médico deve sofrer uma transformação interna tornando possível que ele seja capaz de curar. Na medicina tibetana, o médico deve seguir onze leis. Algumas delas determinam que ele deve ter um grande respeito pelos seus professores e considerá-los como deuses. Ele deve acreditar naquilo que o professor lhe ensina e não deve ter dúvidas em quaisquer de seus ensinamentos. Deve ter grande respeito pelos livros sobre medicina. Deve ter simpatia pelos pacientes. Deve considerar a medicina como uma oferenda do Buda da Medicina e de todas as outras divindades curativas.5 O médico deve, por 3T. Clifford, Tibetan Buddhist Medicine and Psychiatry, Wellingborough, 1984, págs. 115-125. 4S. Kakar, “Shamans, Mystics and Doctors”, New York, 1982, pág. 39. 5Rechung Rimpoche, “Tibetan Medicine”, Berkeley e Los Angeles, 1973, págs. 91-92.

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outro lado, ser capaz de conseguir a motivação necessária para utilizar a sabedoria e a compaixão tornando-se capaz de beneficiar outros. Ele deve ser motivado pela postura do Bodhisattva ideal. O Bodhisattva, por amor a todos os seres sem distinção, sejam reis ou mendigos, promete adiar sua própria entrada no nirvana de modo que possa permanecer no mundo para libertar os outros seres do sofrimento perante si mesmos. O voto e o ideal do Bodhisattva é o caminho do amor. É expressado pelo poeta budista indiano, Shantideva:

Tão duradoura quanto a existência do espaço e Tão duradoura quanto a existência terrena, Que durante este longo tempo minha existência possa ser devotada aos sofrimentos do mundo. Quaisquer que sejam tais sofrimentos, Que possam todos amadurecer em mim; E possa o mundo Ser confortado pelos gloriosos Bodhisattvas.6

Neste ideal não há separação entre as habilidades de cura e o Dharma. Realizando o melhor do Dharma em seu ser e sendo o melhor médico, haverá a dupla natureza da sabedoria e compaixão do Buda, tornando-o mais capaz de compreender as profundezas da ciência médica e de satisfazer as necessidades físicas, emocionais e espirituais dos pacientes. Todo o Conhecimento Médico Tem Origem na Sabedoria de Buda A relação entre o budismo e a cura é inata e extraordinária. Precisa-se apenas reconhecer que o Buda falou da verdade fundamental em termos de uma analogia médica. Afirma-se que todo o conhecimento de Buda destina-se a prevenir o sofrimento. De acordo com Buda, nós sofremos da frustração inerente da existência condicionada, e nosso sofrimento é causado pelo fato de que tudo quanto existe ou pode existir é impermanente e pelo 6Shantideva, retirado de Terry Clifford, “Tibetan Buddhism and Psychia-try”, pág. 25.

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desejo sem fim que surge da ilusão básica da auto-existência do ego. A medicina é o ensinamento, o Dharma, que Buda prescreveu para dominar nosso sofrimento e nossa ilusão. E a essência destes ensinamentos é subjugar a mente e transformar as emoções negativas. A palavra em sânscrito para budismo, dharma, pode ser interpretada com o seguinte significado “o que nos mantém naquilo que é benéfico”, e a palavra correspondente em tibetano, chos, significa “curar”. Tais analogias médicas são extremamente básicas no budismo. Buda é referido como Médico Supremo. A Primeira Volta da Roda do Dharma Quando Buda girou pela primeira vez a Roda do Dharma para dar seus primeiros ensinamentos, comparou-se a um médico, relacionou os ensinamentos à medicina e sua aplicação ao tratamento. Os ensinamentos são propostos da mesma maneira que um diagnóstico médico, de acordo com a tradição Ayurvédica indiana daquela época.

Há uma doença? Do que é constituída? Há uma condição saudável? Como se pode alcançar esta condição?

Em torno da doença, todos os seres sencientes circundam em um ciclo de sofrimento e insatisfação. A causa deste sofrimento está em nossa mente confusa. O estado de saúde e bem-estar é a mente iluminada, livre da confusão e da ignorância. Ignorância, Ma-rig-pa, significa que a inteligência e a claridade natural da mente estão obscurecidas pelas emoções negativas. O modo de remover esta condição é o caminho óctuplo, cujos elementos básicos são moralidade, meditação e sabedoria (ponto de vista correto, intenção correta, ação correta, fala correta, modo de vida correto, esforço correto, atenção correta, meditação correta).

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A Causa Básica de Todas as Doenças De acordo com a filosofia, psicologia e medicina budista, o “apego ao ego” é a causa básica deste estado de confusão mental e, consequentemente, de toda doença e sofrimento. “Não há senão uma causa para todas as doenças, e esta causa é a total falta de compreensão do significado da inexistência da identidade (a não existência de um ego independente). Por exemplo, mesmo quando um pássaro voa a grande altitude, ele não se separa de sua sombra. Da mesma forma, mesmo quando todas as criaturas vivem e agem com alegria, enquanto possuírem a ignorância, é impossível para elas estarem livres da doença.”7 O Dr. Yeshe Dhonden expressa o assunto em termos enérgicos. Todas as pessoas são basicamente doentes. Até que tenhamos atingido a mente iluminada, encontramo-nos em um estado de ignorância. Desde que haja um apego à crença em um “eu auto-existente” inerentemente, nós não estaremos livres da doença e do sofrimento. Na presença das condições necessárias ao seu surgimento, diferentes doenças psicológicas e fisiológicas vêm à tona. A doença latente, por assim dizer, manifesta-se. Doença é Desequilíbrio A doença é um sinal de desequilíbrio entre o microcosmo interno e o macrocosmo externo. No entanto, a doença em si nem sempre é atribuída a causas imediatas ou evidentes. O sintoma que se manifesta é apenas o último estágio de um processo que começa frequentemente algum tempo antes. Fala-se de três estágios no desenvolvimento de uma doença: formação, acúmulo e manifestação. Os tibetanos fazem uma analogia com as nuvens no céu que começam a se acumular imperceptivelmente e atingem uma densidade crítica para fazer cair chuva; mas isso apenas ocorre se as condições atmosféricas assim permitirem, e da

7ibid. pág. 6.

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mesma maneira as estações podem determinar o início de uma doença.8 Buda, O Médico Ideal Com o passar do tempo, Buda tornou-se o modelo do médico-santo, com quem os médicos budistas procuraram se igualar, o ser realizado espiritualmente que ajuda aos outros, curando suas doenças. A analogia médica é estabelecida no sutra chamado “Lótus of the Good Law” no qual Buda afirma: “Nesta comparação, Tathagata deve ser considerado como o grande médico; e todos os seres devem ser considerados cegados pelos erros, como um homem que nasceu cego”9. Toda medicina tibetana tem como base filosófica os ensinamentos de Buda e os mesmos têm origem, segundo os budistas, em uma mente iluminada. As Raízes Históricas da Medicina Tibetana A medicina tibetana tem suas raízes no Ayurveda. As primeiras influências vieram da Índia, no século 6, mas não se estabeleceram até o século 8, assim como a entrada do budismo no país. O rei tibetano Srong-brtsan sgam-po tinha duas esposas, uma chinesa e outra nepalesa. Ambas eram budistas e interessadas em medicina. As duas esposas converteram o rei ao budismo e convenceram-no a mandar buscar médicos da Índia, China e Mongólia. A cada um deles foi requisitado que traduzisse e apresentasse um texto médico ao Rei. No entanto, não havia língua escrita no Tibete daquela época. Conforme o desejo do Rei, tibetanos estudiosos em linguística foram enviados à Índia com a tarefa de criar uma linguagem escrita. Com este objetivo finalmente realizado, textos puderam ser traduzidos, tal como o assim chamado “Quatro Tantras” sobre medicina, escrito por

8Dott. Luigi Vitiello, “Introduction to Tibetan Medicine”, Shang-Shung edizione, 1983, pág. 11. 9T. Clifford, “Tibetan Buddhism and Psychiatry”, pág. 23.

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Chandrananda, conhecido em tibetano como “rGyud-bzhi”. Sessenta textos foram traduzidos do sânscrito. O melhor dentre os muitos eminentes tradutores foi Rinchen Zangpo, que viveu entre 985 e 1055, um importante período em termos de difusão da filosofia budista através do Tibete. Os médicos tibetanos viajavam para a Índia para estudar, e médicos indianos eram convidados para se estabelecerem no Tibete. Do século 8 ao século 17, houve uma intensa difusão da tradição médica da Índia para o Tibete. Influências posteriores vieram da China e da Grécia, estas através da Pérsia. Até o século 17, a medicina tibetana não caminhava inteiramente sobre seus próprios pés. A primeira escola para estudos médicos, Chakpori, foi então fundada nos arredores de Lhasa.10 A Árvore da Medicina Quando um estudante de medicina memoriza os textos, utiliza uma pintura da árvore da medicina, como auxílio pedagógico. A árvore da medicina possui três raízes, nove troncos, quarenta e sete ramos, cento e vinte e quatro folhas, duas frutas e três flores. As duas frutas são a saúde e a longa vida, as três flores são o de-senvolvimento espiritual, a riqueza e a felicidade. A primeira raiz tem duas divisões, uma caracterizando o corpo saudável e a outra o corpo doente. O corpo saudável tem três ramos, os humores, a constituição corporal e as excreções. O ramo dos humores, sobre o tronco do corpo saudável possui três folhas, rLung, mKris-pa e Bad-kan. Estes três, por sua vez, podem ser divididos em cinco tipos diferentes, com sítios e funções específicas. O corpo saudável é caracterizado por um equilíbrio entre os três humores. A doença é causada pelo desequilíbrio. Como esclarece o Dr. Yeshe Dhonden, apesar de todas as pessoas serem basicamente doentes, a doença apenas se manifesta quando há 10ibid. págs. 35-63 e E. Finckh, Foundations of Tibetan Medicine, vol. 1, Londres 1978.

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um desequilíbrio entre os humores. O tronco do corpo doente possui nove ramos. O primeiro é o ramo da causa e o segundo é o ramo da condição, que descreve os fatores que permitirão a maturação e a manifestação da doença. O terceiro ramo é o da entrada. Este descreve os diferentes estágios no desenvolvimento de uma doença, como penetra no corpo e como se dissemina no interior do mesmo. O quarto ramo indica onde a doença finalmente ocorre, dependendo de sua relação com rLung, mKris-pa e Bad-kan. O quinto ramo descreve como a doença de dissemina no corpo. O sexto ramo relaciona o tempo para a ocorrência da doença, o período do ano e o clima característico. O sétimo ramo refere-se às doenças que levam à morte, os oito efeitos colaterais de um tratamento e o nono ramo refere-se ao modo como as doenças podem ser classificadas como “frias” e “quentes”. O ramo da causa sobre o tronco do corpo doente possui três folhas: ignorância-confusão (ma-rig-pa), ódio-aversão (zhe-sdang) e apego-desejo-ânsia (‘dod-chags). Estas três emoções perturbadoras (nyon mongs, em tibetano), ou como são geralmente chamados “venenos psíquicos”, são apontadas como a causa primária de todas as doenças psicológicas e fisiológicas. O princípio da medicina tibetana (assim como ocorre em muitas outras medicinas tradicionais) é de que o semelhante cura o semelhante (similia similibus curantor, o axioma da homeopatia). O apego possui as mesmas qualidades que rLung e, portanto, cria doenças de rLung; a confusão-ignorância possui as mesmas qualidades escuras e pesadas que Bad-kan e, portanto, cria doenças relacionadas com o mesmo e o ódio tem as qualidades de mKris-pa e cria doenças de mKris-pa.11

11Y. Dhonden, Saúde Através do Equilíbrio, Editora Chakpori, São Paulo 1993.

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O Significado da Própria Motivação As virtudes no budismo preparam a mente para uma percepção mais avançada, que é a sabedoria, considerando o fenômeno sem apego. No budismo, podemos encontrar a compreensão da relação entre motivação (as virtudes), o tipo de consciência e a percepção. O propósito da prática do Dharma, ou seja, da aplicação dos ensinamentos budistas em sua própria vida, é livrar-se do sofrimento e da frustração. De acordo com os budistas tibetanos, para alcançarmos este objetivo nós temos que ouvir, refletir e meditar. “Ouvir” significa que precisamos prestar atenção aos ensinamentos que nos são dados por uma mulher ou um homem experientes capazes de transmitir o Dharma de uma forma pura e de uma maneira adequada às nossas necessidades e à nossa capacidade de compreender. Quando escutamos dessa maneira, evitamos três tipos de erros, o erro de ouvir como uma xícara virada com a abertura para baixo, de ouvir como uma xícara com um buraco no fundo e o erro de ouvir como uma xícara na qual algum veneno foi colocado, onde o veneno é o responsável por nossa mente prejudicada. Depois de ouvir, temos que examinar os ensinamentos, como um homem que vai comprar ouro, examinando seu valor. Se encontramos algum valor naquilo que ouvimos, devemos aplicá-lo em nossas mentes através do cultivo mental (meditação), assimilá-lo e fazê-lo nosso. Em tudo isso nossa motivação é da maior importância. A motivação para lutar pela iluminação não deve destinar-se apenas para livrar a nós mesmos do sofrimento, mas deve incluir todos os seres sencientes, “tanto quanto o céu é vasto”. Um homem inferior luta pela própria libertação e apenas para este período de vida. Um homem medíocre luta também pela libertação em sua próximas vidas, mas um homem superior luta pela libertação de todos os seres sencientes.

Ele deseja eliminar Todas as misérias dos outros,

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Porque na correnteza de seu próprio ser compreendeu a natureza da miséria, Este é um excelente homem.12

Bodhicitta O tipo de motivação sobre a qual estamos discorrendo é denominado Bodhicitta (literalmente, “mente da iluminação”, mas pode ser traduzido como “mente dirigida para a iluminação”). Bodhicitta é a mente preciosa que deseja alcançar a iluminação para o benefício dos outros. Diz-se que é a verdadeira base para entrar no caminho do Mahayana no budismo. Um homem ou uma mulher que tenham realizado o Bodhicitta são chamados Bodhisattvas. O ideal para o médico é trabalhar por todos os seres como um Bodhisattva.

Esta intenção de beneficiar todos os seres, Que não surge em outros, mesmo que seja para sua própria salvação, É uma extraordinária jóia da mente, E seu nascimento é uma maravilha sem precedentes.13

Bodhicitta, o desejo de beneficiar os outros, é a verdadeira essência da compaixão no budismo. Está junto com a sabedoria. A compaixão e a sabedoria são semelhantes também às duas asas de um pássaro. Mas nenhuma surge espontaneamente. São habilidades a serem cultivadas. (Recordam-nos o que disse Aristóteles sobre a prática da sabedoria. Virtudes tais como ser um bom homem são habilidades que devemos exercitar). Nós temos que cultivar nossas mentes para desenvolver estas qualidades. Uma palavra tibetana para meditação, “gom”, tem o significado de tornar a mente de uma pessoa familiarizada com algo. Em nosso 12sGompopa,The Jewel Ornament of Liberation, Boulder, 1981, pág.18. 13Shantideva, A Guide to the Bodhisattva’s Way of Life, Dharamsala, Libraey of Tibetan Works and Archives, 1979.

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treinamento mental, devemos deixar que nossas mentes se familiarizem com pensamentos que sejam benéficos para nós e para os outros. Lo-jong, Treinamento Mental Este treinamento mental (em tibetano, lo-jong)14 significa modificar a mente de um estado para outro, acima de tudo, livrar nossos pensamentos de atitudes centradas em si mesmas. Enfim, objetiva libertar nossa natureza inerente de Buda, tornando possível para nós beneficiarmos os outros. Apesar de possuirmos uma mente sombreada por emoções negativas (ganância, aversão, egoísmo e assim por diante) e visões distorcidas (a crença na existência de um Eu inerente), a mente em si tem uma sanidade básica, um potencial para ser iluminada. Toda medicina budista apóia-se na hipótese de que nossa mente por si mesma possui a natureza de Buda, o potencial para ir além do sofrimento e da doença. O treinamento mental aqui mencionado poderia ser comparado ao processo do refinamento do ouro, ou seja, retirando de nossa natureza de Buda, aqui comparada ao ouro, as impurezas, que seriam comparadas às emoções negativas. É um processo que envolve observar tudo o que acontece em sua mente com intensa consciência, mas sem ser levado pelas fortes emoções ou pelo esvoaçar das idéias. Deve-se apenas observar este “murmúrio interno” da mente sem qualquer esforço para julgar, interpretar ou reprimir. Usando a expressão de Krishnamutri, é uma “consciência sem escolha”. Assim, são nossas emoções negativas e perturbadoras os obstáculos para realizar nossa sanidade básica, devemos chegar aos limites com

14Para explicações mais detalhadas sobre lo jong, ver J. Kongtrul, The Great Path of Awakening, Boston e Londres, 1987; G. Rabten e G. Dhargyey, Advice From a Spiritual Friend, Londres, 1977; Sonam Gyat-so, Essence of Refined Gold, Ithaca, 1982.

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nossa própria mente. Você deve ser o mestre de sua própria mente, não seu escravo. Equilíbrio Interno O ponto de vista aqui nos remonta muitas vezes ao antigo filósofo grego. Em ambas as culturas, o equilíbrio interno é visto como um pré-requisito ao bem-estar. Apenas quando o indivíduo não é mais prisioneiro dos sentimentos é que pode ser considerado uma pessoa livre. De acordo com Sócrates, aquele que é escravo de seus sentimentos é mais estúpido que o mais estúpido dos animais. Quando sentimentos tais como ódio, ganância ou apego surgem, devemos agir “como um leão entre raposas”, como diz Shantideva. Portanto, nós devemos trabalhar com as emoções e o melhor caminho para fazê-lo é observando sua substância básica. Sua qualidade, a natureza fundamental das emoções, é apenas energia. E, se o indivíduo é capaz de relacionar-se diretamente com a natureza-energia, não há necessidade de qualquer conflito. O princípio básico para esta prática é apenas estar lá, estar presente.

“Estar exatamente nesse momento, nem reprimindo nem deixando ir abertamente, mas estando precisamente consciente do que você é”,

assim Chögyam Trungpa descreve a prática. Sanidade Básica

Apesar das lâmpadas da casa terem sido acesas, O homem cego vive na escuridão. Apesar da espontaneidade estar próxima e abranger tudo, Para a mente iludida, ela permanece sempre distante.15

15Retirado de T. Allione, Women of Wisdom, Londres, 1984, pág. XV.

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Este poema, escrito pelo iogue indiano Saraha poderia ser lido para dar a mensagem de que enquanto não realizarmos nossa natureza inata de Buda, continuaremos a viver na escuridão, sofrendo diferentes tipos de frustrações e doenças. Todos os seres vivos possuem a natureza de Buda, mas isso não permanece exposto. No Gyu Lama,16 é comparada à manteiga no leite, ao óleo de gergelim na semente do gergelim e uma pequena estátua em um bolo de mel circundado por abelhas. A manteiga, o potencial, deve ser trabalhada no leite para se manifestar. As abelhas em torno do bolo poderiam ser vistas como “emoções perturbadoras”, tais como raiva e medo juntamente com o apego pelas doçuras da vida. Enquanto formos escravos de nossas próprias “emoções perturbadores” não seremos capazes de experimentar nossa natureza mais profunda. Estes aspectos, colocados nas palavras de Shantideva:

Embora os inimigos, como o ódio e o apego Não possuam nem braços nem pernas, E não sejam corajosos nem sábios, Não tenho sido usado por eles como um escravo?17

Todos os ensinamentos de Buda poderiam ser considerados como conselhos pessoais sobre como podemos cultivar nossas mentes para livrar-nos de emoções perturbadoras e visões distorcidas e, portanto, realizarmos nossa própria natureza inerente de Buda. O que é, no entanto, a natureza de Buda? É frequentemente comparada ao céu aberto sem centro ou fronteiras. A natureza da mente é a franqueza e a claridade. É o nada, ou seja, a não existência. A mente não é um objeto. Nada

16Gyud bLama, ou Mahayana Uttara Tantra Shastra foi traduzido para o inglês com o título The Changeless Nature, Samye Ling, Eskdalemuir, 1985. 17Shantideva, A Guide to the Bodhisattva’s Way of Life, Dharamsala, 1979, pág. 39.

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para pegar. Nada para se agarrar.18 Ou, colocando nas palavras poéticas de Kalu Rimpoche:

A essência da mente é o vazio A natureza da mente é a claridade A mente vazia e clara é o campo de Buda O estado de franqueza Estas três qualidades não estão separadas São todas o mesmo Em seres sencientes o vazio não é experimentado A ignorância o é A claridade não é experimentada Os cinco sentidos o são A verdadeira natureza da mente é eterna É inata E imortal E portanto eterna Apenas o corpo morre.19

As Doenças Psiquiátricas Não é nada extraordinário que a psiquiatria ocupe uma posição única na medicina tibetana, porque o ensinamento budista repousa principalmente sobre a natureza da mente. De qualquer modo, não existe para isso nenhuma categoria especial de habilidade médica. A divisão de trabalho e especialização que caracteriza nossa medicina Ocidental está ausente na medicina tibetana. Com relação a todas as formas de sofrimento, somático ou existencial, considera-se que a raiz do infortúnio esteja na confusão do ser humano, suas concepções errôneas sobre sua própria mente. Demasiado ódio, confusão ou apego levam a um desequilíbrio e, portanto, à doença. Porém, em uma perspectiva

18Wisdom Energy 2, Wisdom Culture, Cumbria, 1979, pág. 14. 19Ver T. Clifford, Tibetan Buddhism and Psychiatry, págs. 127-197.

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mais limitada, são apontadas principalmente cinco causas de doenças psicológicas: karma (o resultado de ações realizadas em vidas anteriores), tristeza/aborrecimento, desequilíbrio dos humores, venenos e demônios. As doenças psicológicas podem também surgir em consequência de stress, relações familiares insalubres, problemas com amor, ansiedade e isolamento do mundo. O resultado é uma doença psicológica essencialmente de três tipos, caracterizado por seus sintomas: 1) medo e paranóia, 2) agressão e 3) depressão e isolamento. A base filosófica para todo tratamento psiquiátrico é a natureza inerente de Buda, de que há uma insanidade básica no homem. É possível transformar a confusão e o isolamento através de métodos habilidosos. Para doenças relacionadas com o karma, há apenas um tratamento que auxilia, a prática do Dharma, que tem como objetivo limpar a mente do indivíduo e restaurar sua sanidade básica. A prática do Dharma significa exercitar os seis paramitas, a generosidade, a paciência e assim por diante. De acordo com o budismo tibetano, a prática do Dharma não é apenas uma cura para as doenças que estão se manifestando, mas também uma medida preventiva contra futuros desequilíbrios. Enquanto tivermos concepções irreais sobre a realidade estaremos aptos a cair no abismo dos sofrimentos psíquicos. Todos os fenômenos são impermanentes. Entretanto, é necessário livrar-se das oito preocupações mundanas e realizar que os ganhos e as perdas, a felicidade e a infelicidade, as falhas e o sucesso, as conversas agradáveis e desagradáveis não são algo para apegar-se, todas elas vêm e vão. A renúncia é uma expressão deste discernimento. É a prática do não-apego. Apegos a fenômenos transitórios são “como mel lambuzando o fio de uma navalha”, nas palavras de Shantideva. Trazem apenas frustração e sofrimento. O termo tibetano traduzido geralmente como renúncia possui um significado literal de “emergência definitiva”. Indica uma decisão profunda e sincera para emergir definitivamente das repetidas frustrações e desapontamentos da vida comum. Na realidade, a

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renúncia é uma atitude. Renúncia significa desistir dos apegos às coisas do mundo, um apego por possui-los. O fato de tais fenômenos como felicidade e infelicidade, falhas ou sucessos, ganhos ou perdas serem transitórios e, portanto, o fato de não podermos confiar nossa felicidade em nada, podem, se rejeitados ou reprimidos, criar ansiedade e sofrimento psicológico. Se fizermos deste fato (de que todos os fenômenos são transitórios), um ponto de partida para nossa aplicação do Dharma, isto pode ser o impulso para tentar seriamente a iluminação. Emoções perturbadoras, negativas, podem ser transformadas através de práticas meditativas. No budismo, nunca se fala em “repressão”, mas em “transfiguração” ou “transformação” de emoções, uma vez que são na realidade elementos essenciais de nossa psique. Meditações, visualizações e mantras são os métodos para este processo alquímico, o qual deve ser realizado sob a orientação de um professor experimentado. Os fundamentos da insanidade e da iluminação são os mesmos, assim como samsara (o ciclo do sofrimento) e nirvana (o estado além do sofrimento) são inseparáveis. Mas eles são dois modos distintos de experimentar o mesmo fenômeno. Através da prática do Dharma, realizamos a verdadeira natureza do fenômeno, como franqueza e claridade e podemos permanecer felizes em um mundo onde tudo é impermanente. Na longa trajetória, a prática do Dharma é o melhor medicamento para todas as doenças. Mas também há tratamentos com um caráter mais próximo da terra, para lidar com as necessidades imediatas do paciente. São tratamentos mais breves para doenças psicológicas, por exemplo, medicamentos à base de ervas, massagens, banhos medicinais e exorcismo. Também pode ser prescrito que o paciente, que a pessoa doente, permaneça em um ambiente com pessoas gentis, que fique rodeado por objetos bonitos e que receba livros que possam ser estimulantes. Podemos descrever esta prescrição como um tipo de terapia ocupacional na prática.

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Demônios e Insanidade Os demônios (gdon) são considerados uma possível causa de insanidade. A medicina tibetana interpreta como demônios diferentes tipos de forças e emoções não-visíveis que tem o poder de criar um desequilíbrio. Representam uma imensa variedade de forças e emoções que normalmente estão além do controle consciente e todas impedem o desenvolvimento espiritual e o bem-estar. Também podem estar relacionadas com ligações conscientes tais como a preguiça, a má companhia, demasiada sensitividade, apego às possessões, as oito aflições mundanas já mencionadas, sectarismo ou orgulho. Todos constituem obstáculos ao desenvolvimento espiritual.20 Portanto, demônios são a princípio fenômenos psicológicos associados com uma variedade de obscurecimentos mentais e emocionais. A incrível iogue Ma-chig-la, no século 12, explicou para um de seus discípulos o significado de demônio. Ela descreveu-os como “muito, muito grandes, e totalmente negros. Quem quer que visse um deles ficaria verdadeiramente apavorado e tremeria da cabeça aos pés – mas demônios, na realidade, não existem”. O que podemos compreender disso é que os demônios são reais em um sentido psicológico, como por exemplo, “objetos interiores” mencionados na teoria das relações do objeto em psicanálise. Eles existem da mesma maneira que os sonhos ou como fantasias psicóticas. Os demônios parecem muito reais, mas na verdade, são apenas fabricações mentais. Uma Escalada Gradual para a Sabedoria e a Compaixão

Na prisão do sofrimento da existência cíclica sem limites Vagam os seis tipos de seres sencientes privados da felicidade. Pais e mães que o protegeram com bondade estão lá, Abandonando o desejo e o ódio, medite no amor e na compaixão.

20ibid. págs. 147-170.

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Não deixe sua mente desviar-se, coloque-a dentro da compaixão.

Mantendo a Mente Atenta, Permanecendo Dentro da Compaixão 21 Lam-rim é um caminho gradual no qual podemos treinar nossas mentes para torná-la iluminada. O fundamental são as práticas preliminares nas quais contemplamos o precioso corpo humano, a morte e a impermanência, as ações e seus resultados (karma) e as imperfeições da existência cíclica. Isso significa, entre outras coisas, livrar-se ou abandonar os oito conflitos mundanos, o apego à felicidade e infelicidade, ganhos e perdas, as falhas e os sucessos, as falas amáveis e ásperas. Devemos contemplar tudo isso cuidadosamente e refugiar-nos em Buda, no Dharma e na Sangha. Esta é a base sólida para práticas posteriores.22 Uma vez entrando no caminho gradual, devemos combater nossos principais inimigos internos, o apego à crença na existência independente de um Eu inerente e seus dois principais serventes, a auto-importância e o auto-carisma. Estes inimigos são as causas principais de todo sofrimento e doença. Eles funcionam como “venenos psíquicos” e são as causas fundamentais para as doenças físicas e psicológicas. No treinamento da mente, tudo o que ocorre em nossas vidas pode ser usado como métodos habilidosos para cultivar a sabedoria e a compaixão. Há meditações recomendadas até mesmo para transformar obstáculos em recursos. Os inimigos nos dão a oportunidade para praticar a paciência. Mesmo as doenças físicas 21Kalsang Gyatso, The Seventh Dalai Lama, The Song of the Four Mindfulness Causing the Rain of Achievments to Fall, The Precious Garland and the Song of the Four Mindfulnesses, G & Unwin, 1975, pág. 115. 22Para uma explicações das práticas preliminares ver The Torch of Certainty, Jamgon Kongtrul, Boulder e Londres, 1977

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e os sofrimentos podem ser um auxílio para aprofundar nosso desejo pela iluminação. Podem também nos ajudar a desenvolver a compaixão e a transformar nosso sofrimento em caminho. Tong-len, Dar e Receber O exercício chamado “dar e receber” (tong-len, em tibetano) é um bom exemplo disso. Inicia-se imaginando que nossa própria mãe está sentada em nossa frente. Então, imaginamos todas as coisas boas que ela fez por nós. Depois, imagina-se que durante eras sem princípio todos os seres sencientes em algum momento podem ter sido nossa mãe ou pai e nos dado igualmente muito amor e compaixão. Agora é nossa vez de dar-lhes algo de volta. Agora todos estão passando por diferentes tipos de sofrimentos por causa de sua própria ignorância e confusão. Consequentemente, você deve desejar sinceramente que todos os sofrimentos dos outros venham para si e que todas as suas felicidades sejam também deles. Imagine que os sofrimentos de todos entram em suas narinas na forma de piche negro que é absorvido pelo seu coração. Pense que todos os seres estão livres do sofrimento para sempre. Então, quando exalar, imagine que sua própria felicidade sai das narinas e é absorvida pelos corações de todos. Deseje que todos os seres adquiram o estado de Buda. A importância dessa prática de dar e receber é claramente definida por Shantideva:

Se eu não trocar completamente Minha felicidade pela tristeza do outro, o estado de Buda não se realizará.23

Meditando dessa maneira combatemos nossa própria atitude de auto-estima, nosso costume de sempre colocarmos a nós mesmos e a nossa própria felicidade em primeiro lugar.

23Shantideva, A Guide of Bodhisattva’s Way of Life, citação de J. Kongtrul, The Great Path of Awakening, pág. 15

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Colocando este ensinamento nas palavras poéticas de Shantideva novamente:

Qualquer que seja a felicidade que exista neste mundo Tudo vem do desejo de que os outros sejam felizes E qualquer que seja o sofrimento que exista neste mundo Tudo vem do meu próprio desejo de ser feliz24.

O Bodhicitta Relativo e o Absoluto Bodhicitta, a mente preciosa, pode ter dois significados, relativo e absoluto. Bodhicitta em um sentido relativo significa cultivar os seis paramitas, virtudes como generosidade, paciência, entusiasmo, moralidade, concentração e sabedoria. No sentido absoluto, Bodhicitta implica na completa realização do “shunyata”25. Vamos tomar como exemplo o paramita da generosidade. Generosidade, como explica Shantideva, significa dar tudo, incluindo o pensamento de dar. Em sua essência, é um estado da mente. Mas, que tipo de estado é este? É fundamentalmente um estado onde não há mais qualquer sentido de meu e seu, dar e receber. Todas estas idéias são construções mentais. O ato de dar vem de uma mente onde o apego à idéia de um Eu e meu desapareceu. A generosidade, neste sentido é um tratamento direto para a ganância, o apego às coisas como se estas fossem nos dar felicidade permanentemente. A paciência é, da mesma forma, um remédio para a raiva e a aversão. O Bodhicitta absoluto vem de uma mente que realizou o shunyata, o “vazio”, que todos os fenômenos não possuem uma existência inerente. Tendo realizado isso, podemos tomar para nós mesmos o sofrimento de outros, para sermos um “receptáculo” destes sentimentos como assim define Winnicot, e ao mesmo tempo vermos que os mesmos não são reais em um sentido absoluto.

24ibid. 25J. Hopkins, Compassion in Tibetan Buddhism, Londres, 1980.

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A Qualidade da Franqueza e da Claridade em Todos os Fenômenos A filosofia do “shunyata” é talvez a mais difícil de se apreender em todas as idéias budistas.26 A idéia de que a realidade possui a natureza do “shunyata” nos dá facilmente a impressão de que os budistas são niilistas, negando a realidade que todos nós podemos experimentar como sendo verdadeiramente real. Mesmo na literatura budista, há muitas advertências para evitar a má interpretação do “shunyata”. Nagarjuna afirmou em seu Tratado Fundamental chamado “Sabedoria”:

Analisar o “estado de vazio” erroneamente, Assim como agarrar uma cobra incorretamente, Traz a ruína àqueles de pouca inteligência.27

Há dois erros que podem ser cometidos. Um deles é acreditar que “shunyata” significa uma completa negação do fenômeno, niilismo. O outro erro é pensar que o fenômeno possui uma existência autônoma, que é permanente, eterno. Ainda de acordo com a filosofia budista, as experiências meditacionais levam-nos a verificar que todo fenômeno está em constante mutação, que toda realidade é um fluxo. O budismo é o caminho intermediário entre estes dois extremos, do niilismo e do eternalismo. Os fenômenos não possuem qualquer substância permanente. E isso é que é negado pelo “shunyata”. O significativo é que todo fenômeno carece de um si mesmo inerente. O “shunyata”, portanto, não é uma negação da realidade do fenômeno, mas exprime algo relacionado à maneira como existem os fenômenos. Não existem por si mesmos, 26Garma C. C. Chang, The Budhist Philosophy of Totality, University Park e Londres, 1974, pág. 60. 27G. Rabten e G. Dhargyey, Advice From a Spiritual Friend, Londres, 1977, pág. 40

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independentemente de outros fenômenos. Todo fenômeno surge por causa da interdependência com outro fenômeno e desaparece como consequência das causas. Existem na forma de processos interdependentes. A Mente é Inexistente A mente é vista como uma corrente do processo. Não há entidade permanente nesta corrente que possamos qualificar como um eu, tal como nossa ignorância (ma-rig-pa) nos faz acreditar. A mente também não tem existência independente. Qualquer estado da mente depende de numerosos momentos de consciência e vários fatores mentais. Cada fator mental individual, tal como um sentimento de felicidade ou tristeza, também é dependente de uma variedade de condições, que uma vez reunidas, fazem com que ocorra um sentimento particular. A pessoa também é dependente. A pessoa existe meramente na dependência de componentes físicos e mentais dos quais é constituída. Consequentemente, “shunyata” significa a anulação completa ou a ausência de qualquer existência independente, inerente dentro de um fenômeno. Mahamudra Para tornar este termo “shunyata” mais claro, ele tem sido traduzido como vazio, abertura, etc. A realidade não tem a qualidade de uma coisa. Sua natureza é franca e clara. A filosofia do “shunyata” segue juntamente com um maneira específica de perceber a realidade. Ao invés de enfocar os fenômenos concretos da forma como ocorrem, consideramos o campo no qual surgem, o espaço aberto no qual residem todos os fenômenos.28 Da mesma forma, ao invés de sermos seduzidos por qualquer coisa que ocorra em nossa mente, observamos a abertura e a

28Herbert Guenter, The Dawn of Tantra, Guenther, Chogyam Trungpa. Berkeley e Londres, 1975, págs. 26-33; S. Odin, Process Metaphysics and Hua Yen Budhism, Albany, 1982, págs. 32-52.

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claridade da mente em si. Realizamos mais e mais que a mente em si não tem existência. É aberta e clara. Não há nada semelhante a alguma coisa para apegar-se. A meditação sobre o “shunyata” é o mais poderoso remédio para nosso auto-apego. É por causa deste auto-apego, juntamente com nossa maneira de impor uma auto-existência ao fenômeno, que experimentamos tudo de uma forma distorcida. Os fenômenos ocorrem e podemos experimentá-los, mas enfim eles não existem independentemente de nossos conceitos e imposições. Assim todos os fenômenos possuem o selo do “shunyata”. Isso é chamado Mahamudra (maha, grande e mudra, selo), uma experiência não-dual da “qualidade inerente” de todos os fenômenos, transcendendo todas as conceitualizações. Mahamudra é deixar a mente repousar em seu estado natural, apegando-se a nada.

“No Mahamudra sem objeto, livre de imagens, Os dez mil pensamentos ilusórios são vazios. Uma vez que todos os fenômenos são o conhecimento e a pura consciência Eu vejo minha realidade como Mahamudra.”

Mas devemos fazer um fetiche do “shunyata”, por que este também carece de existência inerente. O “shunyata”, portanto, não é um fim em si mesmo. É apenas um meio para elevar a mente ao prajna, um discernimento transcendental. Aqueles que convertem o “shunyata” em outra doutrina estão, como dizia Nagarjuna, verdadeiramente além da esperança e da ajuda. A realização do “estado de vazio” não é simplesmente um despertar para uma realidade ontológica, mas um passo salvador que liberta o homem de suas frustrações e sofrimentos. A experiência do “shunyata” segue juntamente com a grande compaixão. É uma experiência direta de não-dualidade frequentemente simbolizada por um casal divino enlaçado, geralmente visto na arte sacra tibetana, e ambos inspiram e

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expressam visualmente as experiências e a visualização de meditações.

Exatamente naquele momento quando a Grande Compaixão surge Emerge de forma nua e vívida o Grande Shunyata. Deixe-me sempre encontrar este inconfundível Caminho Duplo-em-Um E praticá-lo dia e noite.29

Duas Verdades Todos os fenômenos, seus e de outros (verdade relativa) compartilham a natureza do “shunyata” (verdade absoluta). As duas verdades são inseparáveis. Realizar a natureza fundamental do “estado de vazio” luminoso é dissolver a distinção entre o samsara e o nirvana. Portanto, todos os fenômenos são concebidos com “percepção pura” como inseparáveis do “estado de vazio” radiante e consequentemente como a expressão sagrada da natureza de Buda. A experiência direta do “estado de vazio” é frequentemente acompanhada por felicidade, e todos os fenômenos são concebidos como o divertimento da divindade do “shunyata”, da abertura e claridade. Como disse o iogue Longchen Rabjampa:

Visto que a mente em si – pura desde o início e sem nenhuma raiz para apegar-se a algo que não seja ela mesma – não possui nenhuma relação com uma causa ou com algo a ser feito, esta mente pode muito bem ser feliz... Visto que tudo é meramente uma perfeita aparição, sendo o que é, não tendo qualquer relação com o bom ou o mal, com a aceitação ou a

29R. Moacanin, Jung’s Psychology and Tibetan Buddhism, Londres, 1986, pág.19.

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rejeição, uma pessoa pode muito bem cair na gargalhada.30

Meditações no “shunyata” A realização do “shunyata” é o resultado de meditações em um caminho progressivo. No início, com sua primeira compreensão, melhor do que um bom senso grosseiro, progride-se através de estágios incrivelmente sutis e mais refinados até chegar à completa e perfeita compreensão. Cada estágio no progresso prepara a mente para o próximo e assim por diante, cada passo está inteiramente integrado em sua própria compreensão através do processo meditativo.31 O caminho graduado para a meditação no “shunyata” tem como objetivo um conhecimento experimental do “estado de vazio”. Combina meditação com raciocínio lógico. Da mesma maneira, cientistas estudam objetos físicos, como flores. A primeira análise grosseira separa a flor em suas partes, pétalas, estame, etc. Uma análise mais refinada separa-a em células, moléculas depois átomos, partículas sub-atômicas. Finalmente, estas partículas sub-atômicas em si perdem sua identidade, tornam-se simples movimento no espaço vazio e a natureza fundamental deste movimento desafia a análise racional. Contudo, a flor permanece ainda vívida e óbvia como sempre. Deve-se aceitar, portanto, que há duas verdades, a relativa e a absoluta. A relativa refere-se a como as coisas aparecem para a consciência comum e não-crítica e a verdade absoluta é a natureza fundamental de uma coisa, estabelecida através da análise precisa e minuciosa da mente racional. A relativa refere-se a simples conceitos e a absoluta é “shunyata”, livre de conceitos.32

30T. Clifford, Tibetan Budhist Medicine and Psychiatry, pág. 29. 31Khenpo Tsultrim Gyatso Rimpoche, Progressive Stages of Meditation on Emptiness, Longchen Foundation, Oxford, 1986, pág. 11. 32ibid. págs. 57-58

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Experiência Não-Dual O objetivo final é uma percepção direta do “shunyata”, livre de conceitos e fabricações mentais. Mas, antes de ser possível uma percepção direta da mente e do corpo, assim destituída de uma existência substancialmente auto-suficiente em si, em primeiro lugar deve estar compreendida conceitualmente a ausência dos mesmos. Os filósofos desenvolvem uma imagem mental de si mesmos até finalmente, através de uma crescente familiaridade com aquela imagem, tornarem possível a percepção direta.33

Compreendendo o trabalho ilusório da mente Que observa todas as coisas como se fossem isoladas umas das outras, A visão penetra o drama ilusório da manifestação e surge o “vazio”. Então livre dos abismos do niilismo e do eternalismo pelo rei das perspectivas abertas como o céu, A mente está repleta de alegria.34

Parte 2: Algumas Observações Meta-Científicas Fontes do Conhecimento Até agora, tentei entrar em harmonia com a perspectiva budista sobre filosofia e medicina. Agora é tempo de representar o papel de meta-cientista e fazer algumas questões epistemológicas. Assim, temos que questionar primeiramente

33Anne Klein, Knowledge and Liberation, Ithaca, New York, 1986, págs. 13-32. 34Selected Works of the Dalai Lama VII, Songs of Spiritual Change, Ithaca, 1982, pág.8.

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sobre a epistemologia da filosofia budista, e depois como isso está relacionado com a medicina. Portanto, quais são as fontes de conhecimento e erro de acordo com a filosofia e a medicina budista? Quais são as conjunturas epistemológicas atrás de tudo isso? As fontes do conhecimento podem ser definidas como sendo socialmente determinadas, como apontado por Elkana.35 Os conceitos centrais em qualquer epistemologia estão relacionados com as estruturas culturais e resultam de um consenso social. Há muitas fontes de conhecimento, e Elkana fornece uma lista parcial: a) experiência, b) evidência dos sentidos, c) idéias claras e distintas, d) tradição, e) autoridade, f) revelação, g) inovação, h) beleza, i) intuição, j) analogia.36 Se aplicamos esta lista à medicina tibetana, podemos notar que a experiência representa um papel central: experiências com a produção de medicamentos, no tratamento dos doentes, da análise dos corpos de pessoas mortas, etc. Aprendia-se através da experimentação de tratamentos. A experiência vem dos sentidos, mas é sempre enfatizado que o indivíduo não deve se enganar tomando ingenuamente por certo apenas o que os sentidos informam. Devemos estar conscientes sobre a atividade dos sentidos, e fazer uma distinção entre o que é visto espontaneamente como estando lá, e o que realmente está lá. Nossa experiência espontânea da realidade pode nos enganar. É típico para uma cultura pré-científica como a tibetana que a experiência esteja unida à percepção, uma percepção imediata da realidade e racionalizações da informação obtida através desta percepção imediata. A ciência Ocidental é distintiva, entretanto, criando deliberadamente novas experiências através da invenção de entidades e modelos teóricos no desenvolvimento de bom-senso na observação. Na ciência Ocidental nós experimentamos a 35Y. Elkana, A Programmatic Attempt at on Anthropology of Knowledge, Sciences and Cultures, E. Mendelsohn e Y. Elkana, Sociology of the Sciences Yearbook, 1981, pág. 19. 36ibid. pág.19.

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realidade através de nossos modelos. No budismo e na medicina tibetana é crucial a percepção mental, enquanto na ciência Ocidental, cruciais são nossos modelos. A experiência na filosofia e medicina budista é pessoal. É um conhecimento pessoal. A ciência Ocidental tende para a despersonalização. O papel das idéias claras e distintas é muito enfatizado na filosofia budista. O papel da lógica e a habilidade de fornecer argumentos racionais é consequentemente central. Desde a época de Buda, tem havido um debate contínuo entre diferentes escolas no budismo sobre epistemologia, assim como problemas lógicos. Mas em geral, podemos dizer que todas as escolas budistas concordam em alguns pontos essenciais.37 Tranquilizando a Mente e Discernindo o Real Desse modo, as análises da mente através de diferentes tipos de meditação são consideradas para fornecer um conhecimento confiável sobre os processos mentais e mesmo sobre a natureza da mente em si. Percepção e conhecimento (blo-rig) é o estudo da consciência, da mente. Compreender a mente é essencial para compreender o budismo tanto em seus aspectos práticos como teóricos, e ainda, para o processo de conquista da iluminação, esta compreensão é sistematicamente a primeira na purificação e intensificação da mente. Dentro da ordem Gelugpa do budismo tibetano, a mente é estudada formalmente no tópico de “Percepção e conhecimento”. É a segunda maior área de estudo realizado durante um curso de treinamento intelectual que termina depois de vinte a vinte e cinco anos de estudos intensivos na obtenção do grau de ge-she, um doutor em filosofia. A consciência é examinada principalmente através da divisão em tipos e subtipos a partir de diversos pontos de vista, por meio do qual um estudante desenvolve uma compreensão das variações da consciência, suas funções e interrelações. Além desses 37Ver, por exemplo, A. Klein, Knowledge and Liberation, Ithaca, New York, 1986.

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estudos teóricos os estudantes também precisam aprender sobre suas mentes através de práticas meditativas. Ao examinar nossa realidade interna e externa devemos em primeiro lugar acalmar nossas mentes para sermos capazes de discernir o que é real. Através do “zhi-ney” tranquilizamos nossa mente e aguçamos sua capacidade analítica. No “lhag-thong” (meditação no discernimento), aplicamos esta agudeza para a análise de fenômenos externos e processos internos. Dessa forma, os diferentes tipos de meditação trabalham como meios efetivos para uma análise de nossas maneiras de “elaborar o mundo”, conforme a adequada expressão de Nelson Goodman. A análise é dirigida para o papel representado por diferentes fatores mentais em nossa percepção do mundo. Mesmo que o objetivo final seja uma percepção não dual, direta, da realidade, além de todas as formas de conceitualizações e fabricações mentais, temos que utilizar conceitos e lógica na direção deste objetivo. Nessa análise lógica e conceitual investigamos quais fatores mentais levam ao conhecimento válido e confiável e quais fatores distorcem nossa percepção do mundo. O método é a purificação da faculdade do conhecimento. A verdade fundamental é não-conceitual. Portanto, o método na escola Madyamika de budismo é para desconceitualizar a mente e para livrá-la de todas as noções, tanto empíricas como a priori. A implicação desse método é que o real é encoberto pelas elaborações de nossas noções e pontos de vista. O real é conhecido através da descoberta do mesmo, removendo a opacidade das idéias, observando-as como o “vazio” da existência absoluta. O intelecto torna-se tão puro e transparente que nenhuma diferença pode possivelmente existir entre o Real e o Intelecto que o apreende. A ênfase aqui é para a atitude correta sobre nosso conhecimento, e não como na ciência, na qual a ênfase é para o conhecido. A mente no budismo não é semelhante à inteligência de Aristóteles, dotada da habilidade para conhecer a existência; longe disso, sua atividade natural ou sua conceitualização é também uma

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obstrução, a qual deve ser tranquilizada e clareada através das meditações mencionadas, antes da verdade estar presente. Tradição e Autoridade A tradição e a autoridade são conceitos centrais no budismo. Os ensinamentos de Buda, por exemplo, são considerados impositivos. A tradição nos dá acesso à experiência coletiva dentro do contexto budista. “Revelação” é uma palavra complicada para ser usada no contexto do budismo. Não se falam de experiências meditacionais como revelações. Elas são contadas como experiências derivadas de análises e observações da mente. Há imagens do conhecimento que falam de competência mais que originalidade, enquanto outras enfatizam a criatividade, a abertura e a inovação. A filosofia budista e a medicina tibetana pertencem a estas tradições, onde a competência é mais importante que a originalidade e a inovação. As analogias, no entanto, representam um papel central na medicina tibetana. Nos ensinamentos sobre filosofia ou medicina, elas são frequentemente utilizadas para esclarecer um assunto, e até mesmo para fazer com que pareçam mais semelhantes. Mas como na ciência, a medicina tibetana não repousa sobre uma única fonte de conhecimento. A experiência e as evidências experimentais, as idéias claras e distintas, as considerações estéticas e as analogias são todas fontes legítimas de conhecimento. Conhecimento na Medicina Tibetana Como em todas as outras áreas da medicina tibetana, Buda é um paradigma também nas questões epistemológicas. Portanto, diz-se que todo conhecimento médico surge da sabedoria dos Budas. A verdadeira base “filosófica” da medicina tibetana, sua imagem do homem e sua cosmologia é um efeito da iluminação de Buda. A medicina tibetana tem seu início em uma tradição de praticantes tecida em uma longa tradição religiosa que tem sofrido alterações muito lentamente. Ao ler livros sobre

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medicina tibetana ou ouvir médicos tibetanos falando sobre medicina, nota-se a riqueza de metáforas, espelhando uma proximidade com a terra, a vida diária e a natureza. Ao mesmo tempo, há uma riqueza de variações na observação e também uma taxonomia rígida. A tradição tem mapeado cuidadosamente as diferentes condições da mente ou do pensamento e das doenças relacionadas por estarem suas raízes fundamentadas nestas condições. De acordo com a medicina tibetana as doenças físicas sempre possuem dimensões “psicológicas” e vice versa. A medicina tibetana pode ser caracterizada por considerações como a habilidade baseada na filosofia budista e influências de numerosas outras culturas e suas medicinas tradicionais, juntamente com suas próprias experiências. O Desenvolvimento do Conhecimento Robin Horton faz uma distinção entre as culturas progressistas e tradicionalistas.38 Em uma cultura progressista há muita ênfase no desenvolvimento do conhecimento. A racionalidade da cultura está unida à idéia de que há um contínuo desenvolvimento do conhecimento. O conhecimento de ontem não é tão relevante e, amanhã, o conhecimento de hoje será superado.39 Em uma cultura tradicionalista, por outro lado, há uma transmissão, de uma geração para outra, do que se considera ser o conhecimento. Há pouca ou nenhuma mudança dentro de uma tradição. Com isso em mente, perguntamos a um médico tibetano sobre o desenvolvimento do conhecimento na medicina tibetana. Como poderia alguém interpretar a afirmação de que todo conhecimento médico originou-se da sabedoria de Buda? Isso poderia significar que todo conhecimento, definitivamente, é completo e disponível, e é transmitido de médico para médico, de uma geração para outra? Nosso informante respondeu 38R. Horton, Tradition and Modernity Revisited, Rationality and Relativ-ism, publicado por M. Hollis e S. Lukes, Oxford, 1982, págs. 201-260. 39ibid. págs. 238-260

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afirmativamente a estas questões. Sua resposta é uma indicação do que Horton chama “conhecimento tradicionalista”. A fonte do conhecimento em uma cultura tradicionalista está nos anciãos e é transmitido através da tradição de pessoa para pessoa. As opiniões são aceitas, de acordo com o conceito de conhecimento tradicionalista, não apenas porque são vistas como antigas, mas porque são consideradas como comprovações pelo tempo. Em uma visão tradicionalista o consenso é enfatizado, enquanto no pensamento progressivista Ocidental a competição é valorizada. Em uma cultura progressista o desenvolvimento do conhecimento é enfatizado através da competição entre teóricos que inventam teorias para derrotar seus oponentes. Como resultado conseguimos uma progressiva separação entre a teoria secundária e a vida prática. Na medicina tibetana não encontramos nada semelhante a esta teoria crítica secundária. O conhecimento médico é transmitido do professor para o discípulo e está próximo ao tratamento prático. Como dissemos anteriormente, é um conhecimento de um praticante de nível elevado. Isso poderia ser entendido, entre outras coisas, pelo fato de que na medicina tibetana não havia até recentemente nada semelhante ao que chamamos de pesquisa. Não havia um grupo de médicos que tinham a tarefa exclusiva de desenvolver novas teorias. Supunha-se que o fundamento verdadeiro já fosse conhecido, e influências de outras tradições eram assimiladas dentro da tradição. Visto a partir do ponto de vista da tradição a qual pertence Rimpoche, a escola Madhyamika no budismo, sua resposta é lógica e racional. A concepção Madhyamika da filosofia, como intuição não-dual, ou sabedoria, evita o progresso e a surpresa. Progresso implica que o objetivo é alcançado sucessivamente através de uma série de etapas em uma ordem, e que pode ser mensurado em termos quantitativos. A sabedoria (prajna) é conhecimento da realidade completa, definitiva. Uma realização progressiva do absoluto é portanto incompatível. O conceito de progresso é aplicável à ciência, não à filosofia budista.

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É possível, no entanto, conceber a eliminação progressiva dos obstáculos que bloqueiam nossa visão da realidade, da forma como aprendemos na abordagem lam-rim. Alguns Problemas de Interpretação Nesta seção gostaria de enfocar algumas questões sobre interpretação. A primeira refere-se à interpretação de alguns conceitos centrais na medicina tibetana. A segunda refere-se ao problema meta-científico clássico da comensurabilidade – por exemplo, é “o mesmo” corpo humano que a medicina tibetana e a medicina Ocidental “configuram” em seus atlas de anatomia e sistemas de conceitos? A terceira questão refere-se à dependência cultural do conhecimento, uma discussão que tem sido geralmente conduzida sob o tema de “etnociência”. Eu questionaria finalmente se a medicina tibetana, em algum sentido, poderia afirmar ser racional, e se afirmativo, em qual sentido. Na discussão do problema da incomensurabilidade, argumentaria contra uma ruptura total entre as culturas e tradições, ou de um lado a incomensurabilidade e do outro lado contra o ideal convencional acerca de um crescimento cumulativo do conhecimento. Entendemos cada um e nos comunicamos através da membrana semi-permeável da tradução de uma cultura para outra. Somos capazes de tolerar a falta de clareza nos significados e temos a habilidade de coexistir em diversas ordens de discurso. O rumo para nosso encontro com outras culturas e seus pensamentos está no diálogo com outros, um diálogo onde podemos testar as conjeturas básicas de nossa própria cultura, no confronto com o modo de pensar estrangeiro. Os Três Humores A dificuldade de interpretar e compreender a medicina de uma outra cultura é exemplificada nos três humores da medicina tibetana. A apresentação da saúde e da doença como uma questão de equilíbrio e desequilíbrio pode ser encontrada em numerosas culturas em países que circundam o Mediterrâneo, na

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América Latina, na Grécia antiga, China e Índia. Encontramos familiaridades em muitas áreas. Afirma-se, por exemplo, em diversas culturas, que o equilíbrio entre os “humores” está relacionado às estações do ano e ao clima, e que os alimentos “quentes” e “frios” podem ter influências mediadoras entre os humores. Outro ponto em comum é a definição de saúde e doença como termos relacionados, isto é, com relação ao desequilíbrio como tendo poder não apenas sobre o doente, mas também entre a pessoa doente e sua família, a sociedade, a natureza e o cosmos. Apesar dessas similaridades, não podemos concluir que as diferentes culturas dão a mesma interpretação para seus conceitos. Devem ser vistos dentro da estrutura de suas cosmologias. Se observarmos a medicina tibetana como um texto a ser abordado de maneira hermética, podemos cortá-la em pequenos pedaços. Vamos descobrir que cada fragmento contém toda a cosmologia budista. Portanto, não se pode comparar os conceitos da medicina tibetana acerca do equilíbrio com Hipócrates sem dar cuidadosamente contextos das extensas descrições dos quais eles são uma parte. A Cientificação da Medicina Uma comparação entre as convicções médicas de diferentes culturas não é suficiente para observar os conceitos das tradições. Devemos observá-las também em seus discursos teóricos e suas práticas sociais e materiais. Devemos buscar o tipo de produção, a divisão de trabalho em sociedade, e como os sistemas e normas, valores e poder são socialmente construídas. A medicina tibetana é uma arte de cura pré-científica e uma análise comparativa do desenvolvimento da medicina Hipocrática e tibetana seria capaz de lançar alguma luz na “cientificação” da medicina em nossa própria cultura. Pode-se ver já nos textos de Hipócrates o verdadeiro embrião da medicina moderna. Hipócrates define a medicina como uma ciência separada da religião e da superstição. Requer que suas hipóteses sejam baseadas em fatos observáveis. Podemos encontrar em seus

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textos uma essência racional de um tipo semelhante à da medicina moderna.40 Quais foram as razões sociais, materiais e cognitivas para que a medicina se tornasse uma ciência nesta época em particular e nesta cultura em particular? No Tibete, a medicina manteve uma habilidade profissional intimamente conectada com a religião. Ela possui a racionalidade das habilidades do médico que a pratica juntamente com o profundo discernimento sobre a mente humana. Retornaremos posteriormente à questão sobre a relação entre a ciência Ocidental e a sabedoria budista, mas primeiro faremos algumas observações sobre comensurabilidade. Algumas Observações Sobre Comensurabilidade É necessária uma compreensão da concepção global para nossa compreensão dos conceitos centrais “rLung”, “mKris-pa” e “Bad-kan” usados. Um médico contemporâneo explicou um ponto de vista moderno dos três Nyes-pas (grosseiramente traduzidos como “humores”) como segue: O humor “rLung” (grosseiramente traduzido como “ar” ou “vento”) é a força vital. É compreendida como estando concentrada no núcleo; controla o metabolismo. O humor “mKris-pa” (grosseiramente traduzido como “bile”) é a energia vital. Entendida como a energia liberada durante a atividade catabólica pelas reações enzimáticas. O humor “Bad-kan” (traduzido como “fleuma”) é compreendido como força anabólica que sintetiza o protoplasma.41 A realidade, de acordo com a cosmologia budista, é formada de cinco elementos ou formas de energia - “terra”, “ar”, “fogo”, “água” e “espaço”. Estes elementos básicos são encontrados também no homem, “terra” corresponde às partes sólidas do corpo, da carne e dos ossos, “água” corresponde ao sangue e linfa, “fogo” à energia e habilidades motoras e “espaço” 40Ver G. E. R. Lloyd, Magic, Reason and Experience, Studies in the Origins and Development of Greek Science, Cambridge, 1979. 41T. Clifford, Tibetan Buddhist Medicine and Psychiatry, pág. 91.

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à mente. Um filósofo da ciência chinês, Lan Zheng, apontou algumas dificuldades na comparação das diferentes tradições em um artigo sobre a medicina chinesa e a Ocidental: “Os conceitos físicos e patológicos encontrados na teoria médica chinesa são sistematicamente diferentes dos ocidentais. Apesar de existirem algumas semelhanças na terminologia, os termos possuem conotações físicas e patológicas completamente diferentes.”42 Por exemplo, de acordo com Lan Zheng, um determinado órgão pode realizar muitas funções que são realizadas por outros órgãos, segundo a medicina Ocidental. Outras funções que a medicina Ocidental considera que seja realizada por um órgão são compreendidas na medicina chinesa como sendo o resultado de cooperação entre muitos órgãos diferentes. Isto porque o modelo chinês observa o órgão, frequentemente, em termos fisiológicos e patológicos do que simplesmente em termos anatômicos. Há correspondências na medicina chinesa, assim como na medicina tibetana, para o fígado, coração, rins e outros, mas eles possuem também outras conotações. Como exemplo, Zheng pega o coração, para o qual são atribuídas as mesmas funções, de muitas maneiras, tanto na medicina chinesa como na tibetana, mas o qual é responsável também por numerosas atividades mentais e emocionais. Complicações correspondentes podem ser observadas na análise simultânea da medicina tibetana com a Ocidental em comparações relacionadas ao coração, o qual é considerado na medicina tibetana a sede da clareza mental. A doença é analisada quanto ao nível celular e molecular na medicina Ocidental, enquanto dentro da medicina tibetana e chinesa, é analisada em grandes unidades. As tentativas de traduzir os ensinamentos yin-yang da medicina chinesa em termos Ocidentais, da mesma forma que as tentativas correspondentes com a medicina tibetana, têm sido infrutíferas. As diferenças teóricas entre as tradições levam a

42Artigo não publicado de uma conferência em Dubrovik, 1987.

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diferentes princípios de diagnóstico e tratamento. A análise de Zheng é convincente e estou preparado para ver sua conclusão, para que seja aplicável à medicina tibetana também.

Creio que os fatos acima mencionados são completamente suficientes para demonstrar a incomensurabilidade das teorias chinesa e Ocidental. Cada uma possui suas próprias estruturas conceituais físicas e patológicas e seu próprio sistema de classificação. Elas interpretam as doenças diferentemente e aplicam métodos de tratamento também diferentes.

Na medicina tibetana, cada diagnóstico deve considerar a estação do ano, quais dos três elementos estão envolvidos, se é uma doença quente ou fria, e quais efeitos proporcionados pela cura na constituição corporal do paciente. Uma Visão Relacional do Homem Na cosmologia budista, o homem é visto como um cosmo em miniatura. Tanto o homem como o mundo onde ele vive são considerados processos de energia ou campos de energia. Considera-se consequentemente que, contanto que haja um estado de equilíbrio entre humores, ou energias, dentro de uma pessoa e entre uma pessoa e seu ambiente social e biológico, haverá um estado de saúde. Quando o equilíbrio é rompido, surge um estado de desarmonia ou doença. Como resultado, é natural que o médico tibetano, com sua abordagem global e relacional, atente para o ambiente social e cultural do paciente. Ele deve saber algo sobre a região na qual vive o paciente e seu equilíbrio com as circunstâncias, incluindo a família e a sociedade. Sudhir Kakar fez as mesmas observações sobre a medicina tradicional na Índia.43

43S. Kakar, Shamans, Mystics and Doctors, New York, 1982.

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Enquanto as modernas ciências Ocidentais do homem concebem a pessoa como de natureza individual (indivisível), que é permanente, fechada, possuidora de uma estrutura interna homogênea, as teorias indianas (como evidenciado nos textos sobre astrologia, biologia, moral e rituais) consideram a pessoa como divíduo, ou seja, divisível. De acordo com Marriot, o divíduo Hindu é aberto, mais ou menos fluido e apenas temporariamente em integração; não é um mônada, mas (pelo menos) binário, derivando sua natureza pessoal interpessoalmente. As pessoas Hindus, portanto, são constituídas de relações; todos os sentimentos, necessidades e motivos são relacionais e seus sofrimentos são distúrbios destas relações.44

Realismo na Medicina Tibetana As medicinas tibetana e Ocidental mapeiam o corpo humano de maneiras diferentes. Seus mapeamentos teóricos possuem termos teóricos e analíticos diferentes. Exatamente como na medicina Ocidental, a linguagem analítica é impregnada de teoria. Os conceitos teóricos tais como Bad-kan, mKris-pa e rLung desempenham uma função dentro de uma teoria e ordenam o fenômeno de forma a possibilitar a explicação, o diagnóstico e o tratamento. Como é o mapa Ocidental do homem com relação ao tibetano? O mapa médico tibetano deve ser visto apenas como irracional, não possuindo conteúdo cognitivo? Pode haver qualquer tipo de verossimilhança nas teorias médicas tibetanas, e se afirmativo, em que sentido? Nossas respostas a questões como estas têm relação com nosso ponto de vista acerca de relativismo e realismo.

44ibid. págs. 274-175.

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Sigo as duas linhas de pensamento de Elkana, de que é possível ser simultaneamente realista e relativista.45 Neste caso, significa que podemos ver ambos os mapas como realistas, de um certo sentido. Tendo escolhido uma estrutura, a medicina tibetana, por exemplo, somos realistas dentro desta estrutura. Se interpretamos a medicina tibetana como sendo realista, em que sentido ela é realista? Quando falamos em realismo, temos que dizer algo acerca de qual tipo de realismo estamos nos referindo. Como pudemos ver até agora, o tipo de realismo que chega mais próximo é aquele que Rom Harre chama realismo referencial.46 Conforme Harre, temos que nos deslocar da cognição para a prática, de forma que o ato de estabelecer a suposta existência ou não-existência estará na dependência de um material prático. O realismo referencial requer que alguns dos termos substantivos em um discurso denotem ou pretendam denotar entidades de várias categorias metafísicas, que existam independentemente deste discurso.47 Esta forma de realismo deve ser considerada como “uma política, a política de buscar entidades suficientemente semelhantes às supostamente existentes, cujas características estejam determinadas na teoria”. Harre acrescenta que um referencial realista seria absurdo se ele necessitasse da possibilidade de ser reconhecido simplesmente pelas propriedades da teoria de que seus termos denotam realmente algo. O realismo referencial implica na não invocação de conceitos tais como verdadeiro ou falso. É diferente de “realismo verdadeiro”. Referência, neste contexto, é estabelecida adquirindo-se uma ligação física entre o cientista personificado (ou o médico, em nosso caso) e a existência em questão. Sua existência está ligada à do cientista. O realismo defendido por 45Y. Elkana, A Programmatic Attempt at an Anthropology of Knowledge, Sciences and Cultures, págs. 3-5. 46Rom Harre, Varieties of Realism, Oxford, 1986, págs. 65-70. 47ibid. pág. 69

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Harre deve ser entendido em termos de práticas materiais, e não através de relações lógicas. O aparecimento de termos que parecem denotar alguma existência extra-analítica (tais como rLung, mKris-pa e Bad-kan, por exemplo) deveria ser considerado como a base para um projeto material, uma busca do mundo real para uma existência que poderia servir como sua referência.48 Considero a ênfase de Harre no “prática material” muito proveitosa. Temos que observar os médicos tibetanos em suas práticas . McMullin possui outro ponto de vista interessante de realismo. Ele sugere que observemos o modelo como funcionando até certo ponto como uma metáfora na linguagem. Ela expressa um pensamento complexo.49 Possui seu próprio tipo de precisão. Possui a precisão de uma poesia. Talvez possamos compreender os “humores” na medicina tibetana como uma metáfora para os complexos campos de energia no interior do corpo. A metáfora aqui poderia, segundo McMullin, agir como uma tentativa de sugestão. Somos convidados a experienciar o corpo humano como um campo de diferentes energias. A metáfora poderia ser um guia para o cientista em seu material prático. Ao mesmo tempo, ele está confiante de que há algum tipo de ligação entre a metáfora e a estrutura do mundo. Medicina Tibetana como um Programa de Pesquisa A medicina tibetana e a Ocidental constituem o corpo de diferentes maneiras. Os mapas são desenhados dentro de duas visões diferentes. Podemos considerar cada um deles como realistas. Os princípios utilizados para desenhar os mapas são muito diferentes, o que dificulta as comparações. Entretanto, não impede que sejam julgados como dois programas de pesquisa (concorrentes), com heurísticas positivas e negativas. Temos que dar uma olhada mais de perto ao “núcleo” de seus “programas de 48ibid. pág. 67-70 49Ernan McMullin, A Case for Scientific Realism, publicado por J. Lep-lin, Berkeley, 1984, págs. 30-36.

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pesquisa” para tornar explícitas suas metafísicas. Este “núcleo” , conforme o conceito de Lakatos, pode ser semelhante ao código do DNA de um gene. Contém os fatores essenciais determinantes da produção do conhecimento. Na medicina tibetana este código conduz a mapas que têm o caráter de narrativas. Na ciência Ocidental, o código dá explicações do tipo dedutivo. Na medicina tibetana, não observamos o tipo de “arrebatamento” epistêmico, a ruptura de nossas experiências espontâneas do mundo sobre a qual referiu-se Gaston Bachelard. O antimorfismo ideal, a idéia de que a Natureza é escrita na linguagem da Matemática, é desconhecida para a ciência médica tibetana, pois é o ideal do experimento. Ao invés de descrever suas teorias em uma linguagem matemática, eles utilizam o idioma da poesia. Ambas as linguagens possuem seus próprios critérios de exatidão. Razão hábil A experiência na filosofia budista significa conhecimento experimental, algo experimentado fenomenologicamente, e não conhecimento experimental como na ciência Ocidental. Não é por causa da sofisticação de nossos modelos teóricos que eles aprofundam o conhecimento sobre, por exemplo, a mente humana, mas através de uma percepção mais avançada.50 Enquanto a razão na ciência Ocidental é epistêmica, ou seja, lógica, dedutiva, objetiva e despersonalizada, a razão na filosofia budista e na medicina tibetana é pessoal, utilizando o que Elkana chama de “razão habilidosa”. “Razão habilidosa”, implica em “um corpo coerente e verdadeiramente complexo de atitudes mentais e comportamento intelectual que combina discernimento, sabedoria, prudência, sutileza da mente, erros, desenvoltura, 50A. Klein, Knowledge and Liberation, Ithaca, New York, 1986; Lati Rimpoche, Mind in Tibetan Medicine, publicado por E. Napper, Lon-dres, 1980; B. Krishna Matilal, R. D. Evans, Buddhist Logic and Epistemology, Dordrecht, 1982

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atenção, oportunismo, várias habilidades e experiência adquirida durante anos. É aplicada a situações que são transitórias, mutáveis, desconcertantes e ambíguas, situações estas que não se prestam a precisar medições, cálculos exatos ou lógica vigorosa.”51 Na filosofia budista e na medicina tibetana há um tipo semelhante de razão que é chamada “recursos hábeis”. O iogue ou o médico habilidoso usa o que quer que venha a suas mãos como habilidade, meios efetivos para gerar as condições corretas para a iluminação ou a saúde. Diz-se que tudo pode ser utilizado como medicamento pelo médico habilidoso. Na ciência Ocidental temos o mesmo tipo de “recursos hábeis” na psicoterapia e psicanálise. Os profissionais precisam trabalhar com a lógica da situação. Precisam penetrar a racionalidade da mente do paciente, da existência do paciente esquizofrênico, por exemplo, e utilizar os recursos corretos para lidar com isso. Terapêutas como John Rosen, de maneira semelhante aos médicos e iogues tibetanos, utilizam comportamento não convencional e a fala aparentemente irracional para “passar através” do paciente ou do discípulo. O iogue tibetano ou o psicoterapêuta, em seu trabalho com um discípulo ou um paciente psicótico, podem utilizar um efeito de choque, o que significa que eles puxam o tapete que está sob os pés do outro para quebrar a resistência antagônica para a mudança. Mudam abruptamente as regras do jogo. O discípulo ou o paciente é confrontado com um conjunto de circunstâncias inteiramente novas e deve mudar a posição de seus pés durante o jogo para lidar com estas novas circunstâncias. Eles devem encarar seu próprio apego aos preconceitos e ao pensamento convencional, e observar que ele está preso na armadilha de suas próprias fabricações mentais.

51Y. Elkana, A Programmatic Attempt at an Anthropology of Knowledge, Sciences and Cultures, pág. 48.

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Etnociência Não estamos abordando um assunto sem preconceitos, com uma tabula rasa. Nossos preconceitos, através dos quais acomodamos nossos problemas e hipóteses, estão impregnados pela cultura científica e filosófica na qual nosso pensamento é moldado. O encontro entre duas culturas, a medicina Ocidental e a tibetana, por exemplo, lança uma luz sobre ambas. Ao aprendermos sobre o modo de pensar de outras culturas aprofundamos nossa auto-compreensão. Tal encontro dá origem a uma enorme quantidade de problemas metodológicos para um antropologista do conhecimento. Devemos, ao mesmo tempo, manter a proximidade e a distância de nosso objetivo. Devemos estar próximos para entrarmos em harmonia com a outra cultura, para conseguirmos vestir a pele, por assim dizer. Ao mesmo tempo, devemos manter a distância para sermos capazes de fazer uma análise teórica de nosso material. Horton relaciona uma variedade de dicotomias geralmente utilizadas para caracterizar a diferença entre a ciência Ocidental e o pensamento “primitivo”. Entre estes opostos estão verdadeiro/falso, racional/irracional, profano/religioso, onde a ciência Ocidental representa o que é racional, verdadeiro e profano. A medicina tibetana é religiosa, mas não necessariamente irracional e falsa. O que é verdadeiro ou falso na medicina tibetana é um problema de investigação empírica. A medicina tibetana pode, como dissemos anteriormente, como muitas outras medicinas de tradição cultural, ser chamada tradicionalista segundo Horton. Mas isso não a torna irracional. Assim como na ciência e filosofia Ocidental, na tradição budista podemos encontrar muitos exemplos de análise lógica e racional. Muitos tópicos de importância central no discurso filosófico Ocidental sobre epistemologia são também postos em jogo na

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tradição budista e talvez tenha chegado o momento de começarmos um diálogo entre as culturas.52 As dicotomias relacionadas implicam em critérios que dão à ciência Ocidental uma posição privilegiada. Quando Horton julga a ciência Ocidental e o pensamento africano, seu ponto de partida é a filosofia da iluminação. A marca de todo pensamento racional é o progresso. Seus preconceitos favorecem a ciência moderna Ocidental. Mas ele está correto quando alerta para o outro extremo, que é a idealização do pensamento da outra cultura, analisando toda a ciência Ocidental como pseudocientífica. Deve haver um respeito mútuo por ambas as culturas. O Significado da Compreensão Prévia Não devemos negligenciar nossos próprios preconceitos como adeptos da iluminação, mas torná-la objeto de reflexão. Devemos, em outras palavras, iluminar a iluminação. O que significa, liberar-nos das falsas crenças e examinar cuidadosamente o preconceito de ser não preconceituoso? A medicina tibetana tem suas raízes em uma cultura onde o desencantamento do mundo Ocidental não ocorreu. Assim como investigamos a medicina tibetana e seu ponto de vista, confrontamos as conjeturas básicas de nossa própria cultura voltando às raízes da filosofia da Iluminação. Precisamos voltar ao século 16 e reler Francis Bacon e sua visão utópica da ciência como uma libertadora da espécie humana. A ciência, segundo

52No espírito de Manjushri, argumentaria que os filósofos colocam obstáculos ou por tendência materialista ou romântica, não importando que difidência possam ter sobre o papel crítico central e a força liberativa da filosofia deveria encontrar um novo encorajamento e inspiração da “luz do Ocidente”, apenas se pudessem tronar-se livres de certas pressuposições implícitas impostas sobre eles pela sabedoria convencional de nossa cultura. R. Thurman, Tsong Khapa’s Speech of Gold in the Essence of True Eloquence, Princeton University Press, Princeton, 1984, pág. 6.

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Bacon, ajuda a dominar e controlar a realidade. Enquanto Bacon volta sua atenção para a realidade física, os filósofos budistas, no Tibete frequentemente denominados “confidentes”, aqueles interessados no mundo interior do homem, enfatizam a necessidade de conhecer mais sobre nossa mente. Bacon quer que dominemos a natureza. Os budistas salientam a importância de dominar nossa própria mente. Falando em termos do conhecimento-interesse de Jurgen Habermas, podemos dizer que a visão de Bacon sobre a ciência implica um conhecimento-interesse tecnicamente orientado. Isto objetiva a criação de ciência e tecnologia. A hermenêutica do conhecimento-interesse implicado pela filosofia budista é dirigido para uma transmissão da tradição, favorável à compreensão do mundo simbólico no qual vivemos. Os Três Mundos do Homem De acordo com antropologistas filosóficos, o homem vive em três “mundos”. Podemos estudar o homem em seu “Um-Welt”, que significa observar o homem no contexto da natureza, o homem como um organismo biológico, um animal entre outros animais. Podemos também investigar o homem em seu “Eigen-Welt” e em seu “Mit-Welt”, seu mundo mental “interior” e sua existência com outros. A medicina Ocidental tem estudado principalmente o homem em seu “Um-Welt”, o homem como um organismo biológico, observando seu mundo mental como um epifenômeno a ser explicado em termos fisiológicos e bioquímicos. A medicina budista tibetana, por outro lado, tem investigado principalmente o homem em seu “Eigen-Welt”, observando-o como um criador de símbolos, vivendo em um mundo significativo. A medicina social e a pesquisa psiquiátrica são exemplos na medicina Ocidental de uma quebra no “Eigen-Welt” e no “Mit-Welt” do homem, mostrando as deficiências de um positivismo reducionista limitado. A pesquisa nos cuidados com a assistência e o crescente número de formas alternativas de tratamento, tais como a arte de cura antroposófica, não delineia limites nítidos

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entre a saúde física do homem (seu “Um-Welt”), seu modo de vida e sua “vida espiritual” (seu “Mit-Welt” e seu “Eigen-Welt). Na medicina tibetana, as três expressões são unidades indivisíveis. Ao encontrarmos tal medicina, temos a oportunidade de articular a filosofia sobre a qual repousa a medicina Ocidental, como observa a saúde e a doença, não apenas medicalmente (no “Um-Welt” do homem), mas também existencialmente (no “Eigen-Welt” e no “Mit-Welt” humano). Uma Cultura da Ciência e Uma Cultura da Sabedoria A medicina Ocidental e a tibetana podem ser observadas como um encontro entre duas culturas. Vamos denominar uma como cultura da ciência e a outra como cultura da sabedoria. A ciência Ocidental é secularizada, a medicina tibetana é religiosa, mágica e fundamentada na experiência mística e na experiência comprovada. Voltando ao século 16, na história Ocidental das idéias, podemos obter um material interessante para esclarecer o encontro entre as duas culturas. Em nossa própria história da ciência, podemos encontrar um paralelo para a confrontação entre uma cultura voltada à ciência e uma cultura voltada para a sabedoria. O filósofo Charles Taylor analisou a tradição de sabedoria inspirada por Platão e sua relação com o desenvolvimento experimental das ciências.53 De acordo com a tradição da sabedoria, o conhecimento pressupõe algum tipo de amor. Há uma íntima relação entre a compreensão de alguma coisa e estar em harmonia com a mesma. Não se compreende a ordem das coisas sem compreender seu próprio lugar nas mesmas, porque se é parte desta coisa. E não podemos compreender a ordem e nosso lugar nela sem amá-la, sem ver sua excelência. Isso é o que Taylor chama de estar em harmonia com a realidade. Para qualquer pessoa com este ponto de vista, de acordo com Taylor, 53C. Taylor, Rationality and Relativism, publicado por M. Hollis e S. Lukes, Oxford, 1982, págs. 87-105.

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há uma tentação para crer em uma ordem significativa, uma ordem que possa ser amada. A ruptura da conexão entre a compreensão e a harmonia era, portanto, uma parte essencial da ciência moderna, experimental. Harmonia A concepção da realidade tão significativa quanto um possível objeto de harmonização era visto como um obstáculo ao pensamento científico. Assim, Charles Taylor distingue entre estudo científico, e seu acessório tecnológico, por um lado, e a atividade simbólica na qual se entra em acordo com o mundo, por outro. A expressão de Taylor “entrar em acordo” parece ser bastante adequada à medicina tibetana. O médico entra em acordo com o mundo mental interior de seu paciente. Também é correto caracterizar a medicina tibetana quanto às atividades simbólicas. Todo o modo de pensar chega muito próximo do que Taylor denomina harmonia. O caminho para esta harmonia é através da meditação, das visualizações e dos rituais de recitações. Segundo a análise de Taylor, conclui-se que haja uma diferença entre a cultura científica e a cultura da sabedoria, mas serão elas compatíveis? Podem elas coexistir? O progresso da ciência, de acordo com Taylor, sempre leva à contribuição tecnológica. Há pouquíssimo progresso científico e desenvolvimento tecnológico na cultura tibetana. Portanto, neste aspecto, a cultura tibetana não é tão avançada como nossa cultura. Ciência e Sabedoria Nossa cultura Ocidental da ciência representa uma compreensão superior do universo físico. Na tradição budista, por outro lado, conhece-se muito mais sobre o universo mental interior do homem, sobre processos mentais e como transformá-los. Em termos budistas pode-se falar sobre conhecimento mundano e conhecimento espiritual. Com relação ao conhecimento mundano, a cultura da ciência é mais avançada e também mais racional.

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Quando chegamos ao “conhecimento espiritual”, entretanto, devemos ir além dos domínios da ciência de forma a encontrarmos algo de valor, a arte, a música, a literatura, a filosofia ou misticismo. Talvez as críticas estejam corretas, quando afirma que temos nos tornado cada vez mais distantes de nós mesmos em nossa civilização tecnológica. Mesmo sendo dessa forma, não negaríamos, segundo Taylor, nossa superioridade científica. Mas poderíamos falar algo da importância da cultura da sabedoria para que o homem se torne menos distante e para que consiga um domínio sobre si mesmo novamente. Além de nossa “filosofia do conhecimento”, segundo Nicholas Maxwell, necessitamos de fato de uma “filosofia da sabedoria”, uma base filosófica para a ciência, dizendo-nos o que vale a pena investigar. Conectar o conhecimento científico sobre a realidade com uma sabedoria de vida é a observação-chave para o programa de Maxwell. 54 Se a ciência é o meio para um mundo melhor, devemos possuir algum tipo de sabedoria sobre como tal mundo deveria se assemelhar. O tipo de sabedoria que necessitamos, penso eu, é aquilo que Aristóteles denomina “phronesis”, sabedoria prática, na filosofia budista, a união de sabedoria e compaixão e não aquele tipo de versão ampliada da filosofia de Popper deniminada por Maxwell de “objetivo orientado ao racionalismo”. Sabedoria Prática, “Phronesis” Hilary Putnam dá uma boa sugestão sobre este tipo de sabedoria. “Penso que Aristóteles estava profundamente correto em afirmar que a ética está relacionada com a felicidade humana e como viver, e também profundamente correto em afirmar que este tipo de conhecimento (“conhecimento prático”) é diferente do conhecimento teórico. Uma visão do conhecimento que admite que a esfera do conhecimento é mais ampla do que a esfera da “ciência” parece ser uma necessidade cultural se desejamos 54Nicholas Maxwell, From Knowledge to Wisdom, Oxford, 1983, pág. 1

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atingir uma visão sadia e humana de nós mesmos ou da ciência”.55 Considero também que um diálogo entre o Budismo e a ciência Ocidental pode nos ajudar a aprofundar nossos discernimentos sobre este tipo de sabedoria prática e ampliar nossos horizontes de forma que sejamos capazes de ir além do objetivismo e do relativismo, do positivismo e do romancismo. A antropologia do conhecimento deveria ser um remédio para nossos apegos “românticos” à crença em um único tipo superior de racionalidade, o Ocidental, o tipo positivista da realidade e também para seu antídoto, o subjetivismo idealista. Há diferentes maneiras de construir a humanidade: a dos cientistas, dos artistas, dos místicos, etc. Todos eles descrevem a realidade de diferentes maneiras. Todos eles têm seus pontos de apoio e de fraquezas.

O místico vence sua dúvida descobrindo a realidade, como consciência, dentro de si mesmo, e tenta persuadir-nos de que ela está localizada aí. O artista constrói uma nova realidade externa e tenta persuadir-nos emocionalmente de que é universal. E o cientista, com sua cabeça matemática, sua língua lógica e seus dedos empíricos prova-nos que a realidade é construída na imagem dos símbolos que ele formula misteriosamente para ela.56

Um Diálogo Possível Entre o Budismo e a Ciência Ocidental Na história das idéias os desenvolvimentos mais proveitosos ocorreram frequentemente naqueles pontos onde duas formas diferentes de pensar se encontraram. O encontro entre a filosofia budista e a medicina tibetana e a ciência Ocidental poderia ser tal ponto de encontro criativo. Para os cientistas, os textos budistas podem ser fontes de discernimento para o 55R. J. Bernstein, Beyond Objectivism and Relativism, Oxford, 1983, pág. 1. 56B. A. Scharfstein, Mystical Experience, Penguin Books, 1974, pág. 98.

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desenvolvimento das teorias científicas – fontes estas melhores, de fato, do que materiais não-científicos, uma vez que a filosofia budista também procura compreender o mundo. Os filósofos budistas podem desenvolver novas idéias utilizando teorias científicas como metáforas-raízes ou como fontes de imagens esclarecedoras; ou podem adquirir consciência de seus próprios postulados. Realmente, tal diálogo entre budismo e ciência Ocidental já está sendo conduzido. Mas como, se budismo e ciência são incompatíveis? Sua Santidade o Dalai Lama respondeu da seguinte forma: “suponha algo que esteja definitivamente comprovado através de investigação científica. Que uma certa hipótese é verificada ou que um certo fato surge como resultado de investigação científica. E suponha que, posteriormente, este fato seja incompatível com a teoria budista. Não há dúvidas de que devemos aceitar o resultado da pesquisa científica. Veja, a posição geral do budismo é a de que devemos aceitar o fato. Mera especulação destituída de uma base empírica, quando possível, não basta.”57

57H. H. the Dalai Lama, The Bodhgaya Interviews, publicado por J. I. Cabezon, Ithaca, 1988. pág. 20.

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OS SEGREDOS DA FÓRMULA DA PÍLULA NEGRA*

Dr. Yonten Gyatso

Introdução A preparação desta preciosa pílula conhecida como “Pílula Negra Preciosa” (Rinchen Rilbu) é a mais elevada expressão da prática farmacológica na medicina tibetana. Envolve uma ampla variedade de técnicas que requerem paciência, precisão e extremo cuidado. Nesta formulação, a parte mais importante e complicada é a preparação do btso-thal, uma mistura de refinados e desintoxicados pós de mercúrio, oito metais e oito minerais que são processados individualmente com técnicas específicas. Este pó é o componente básico ao qual são adicionados outros ingredientes. Há outros tipos de pílulas preciosas denominadas rat-na bsam-’phel, btso-bkru zla-shel e mang-sbyor chen-mo nas quais é adicionado o btso-thal e alguns poucos ingredientes. Haviam outras formas predominantes no Tibete de formular o mercúrio antes do advento da prática do btso-thal. São menos complicados. O mais simples e menos célebre método de formular o mercúrio é ensinado nos textos médicos tibetanos (“rGyud-bzhi”), que dedica um capítulo detalhado sobre o assunto. A época * A pedido do autor, este artigo está sendo publicado como nos foi apresentado. O Dr. Yonten Gyatso foi graduado no Tibetan Medical & Astro Institute, Dharamsala, Índia. Atualmente, trabalha no Departamento de Pesquisa do Instituto, e é um espacialista no campo das plantas medicinais. Seu trabalho mais importante é o desenvolvimento de um moderno herbário de plantas medicinais tibetanas, para o qual tem coletado e fotografado espécimes de diferentes regiões dos Himalaias. Planeja publicar um catálogo da coleção do herbário no futuro próximo.

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e a origem deste texto, apesar de envolto em mistério, indubitavelmente antedata a prática do btso-thal. Esta prática foi trazida ao Tibete no século 13 por O-rgyan-pa rin-chen-dpal (1230-1303) cujas instruções afirma-se que tenha recebido das Vajra dakinis e transmitido para Karma-pa rang-byung rdo-rje, o Terceiro Karma-pa (1284-1339), e a partir daí a transmissão de mestre para discípulo foi ininterrupta, chegando a Zur-mkhar mnyam-nyid rdo-rje (1439-1475) uma centena de anos após a morte de Karma-pa rang-byung rdo-rje. Entretanto, o texto (ver nota 58) não menciona os nomes das pessoas para quem foi transmitida sua linhagem durante este período de mais de cem anos. Quando chegou às mãos de Zur-mkhar mnyam-nyid rdo-rje, este desenvolveu e finalizou a prática, compondo o texto sobre o assunto. Zur-mkhar mnyam-nyid rdo-rje, o fundador da tradição Zur (Zur-lugs), uma das duas principais tradições médicas desenvolvidas no século 15, é um dos grandes representantes da história da medicina no Tibete. Escreveu numerosos textos sobre medicina durante seus poucos trinta e sete anos de vida. Como foi um dos primeiros na linhagem da intrução sobre a formulação da Pílula Negra, somos levados a crer, através de sua afirmação (na primeira linha do texto, após a frase de saudação) que este texto é o primeiro a trazer uma explicação por escrito sobre a fórmula da Pílula Negra. Considero-me afortunado por ter sido encarregado da tarefa de traduzir este texto. A tradução refere-se ao texto encontrado na obra “Rin-chen dngul-chu sbyor-sde phyogs-bsdebs” (“Coletânea de Trabalhos sobre a Formulação do Mercúrio”), publicado pela Library of Tibetan Works and Archives, Dharamsala, em 1986, fólios 1-20. Pode ser encontrado também no “Man-nang bye-ba ring-bsrel” de Zur-mkhar mnyam-nyid rdo-rje (suas Obras Reunidas), publicado em três edições diferentes, dos quais aquele publicado pelo Dr. Tashi Gangpa é utilizado neste trabalho para comparação. Foram observadas as variações na

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ortografia, na estrutura da sentença e, com frequência, no significado. Comparei também diversas linhas com omissão de palavras assim como expressões adicionais ou extras em ambas as edições. Não houve qualquer intenção de fazer menção a cada variação, entretanto, aquelas que observei serem mais concretas e importantes são apresentadas nas notas. Em muitos casos, a tradução para o inglês deixa para trás significados inerentes que são transmitidos pela estrutura da frase ou da palavra utilizada no original tibetano. Em tais casos, palavras usadas para a compreensão que não são mencionadas na versão tibetana são adicionadas e colocadas entre colchetes. Para traduzir os nomes dos ingredientes medicinais no texto, consultei principalmente as seguintes referências: 1. “Bod-ljongs rgyun-spyod krung-dbyi’i sman-rigs”, Mi-rig dpe-skrun-khang, Beijing, 1973. 2. Mia Molvray, “Um Dicionário de Plantas Medicinais Tibetanas”, Medicina Tibetana Livro 11, Editora Chakpori, Brasil, 1996. 3. “Mdo-dbus mtho-sgang sman-ris gsal-ba’i me-long”, Mi-rigs dpe-skrun-khang, Mtsho-sngon, 1976, 2 volumes. 4. A coleção de plantas medicinais do herbário do Tibetan Medical & Astrological Institute’ Plants, Seção de Pesquisas. Anexo a este trabalho está a tradução de um breve texto : “Um Método Característico de Administrar a Pílula Preciosa - Uma Prática Habilidosa” (“Rin-chen ril-bul gtong-lugs khyad-bcos (chos) mkhas-pa’i phyag-len”), com saudações ao primeiro texto e informações de como administrar a pílula preciosa. Este texto também encontra-se no “Rin-chen dngul-chu sbyor-bde phyogs-sdebs”, fólios 26-29, entretanto, o autor não é mencionado e não pude identificá-lo a partir de outras fontes para mim disponíveis. Nesta tradução foram incluídas notas explicativas, de maneira a torná-lo mais útil para aqueles que estão tomando as pílulas preciosas.

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Este trabalho não teria sido possível sem o gentil auxílio dos seguintes mestres aos quais dedico meus sinceros agradecimentos: Mr. Tashi Tsering, Administrador da seção de pesquisa da Library of Tibetan Works and Archives, Dharamsala, o qual, além de encarregar-me desta tarefa, encorajou-me e orientou-me através da mesma; meu professor Dr. Pasang Yonten, atualmente conferencista no Central Institute of Buddhist Studies, Ladakh; Dr. Lobsang Chophel, conferencista no Tibetan Medical Institute (TMI), Dharamsala; Prof. Jampa Gyaltsen Drakthon, astrólogo, e Dr. Lobsang Tenzin (Ragdo Khentrul) do Tibetan Medical Institute, que explicaram-me os termos difíceis do texto. Ao D.r L. T. McDougall, por auxiliar-me com meu inglês. De qualquer forma, sou inteiramente responsável por quaisquer erros que os leitores encontrem neste trabalho.

Tradução do Texto “A Eterna Gema Preciosa para a Clara Revelação dos Segredos da

Fórmula da Pílula Negra” Em homenagem ao Senhor da Água Marinha. Aqui, algumas instruções orais, até este momento não transmitidas de forma escrita, sobre a [fórmula da] Pílula Negra, é registrada a pedido de um amigo muito querido;1 que os mestres e a

1 Segundo o que pudemos encontrar sobre a linhagem da formulação do mercúrio no “Bla-sman o-rgyal bstan-’dzin”, Rin po che ‘i sbyor ba’i brtso bo bdud rtsi bcud rgyal dngul chu gter mdzod, fólios 153-301, e no Rin chen dngul chu sbyor sde phyogs bsdebs (Dngul chu gter mdzod nas referências subsequentes), Library of Tibetan Works and Archives, Dharamsala, 1986, fólios 188:5-192:6; e uma anotação no verso concusivo do mesmo trabalho de Zur mkhar mnyam nyid rdo rje, Ril nag gsangs don gsal byed ‘chi med nor bu encontrado na coletânea de suas obras “Man ngag bye ba ring bsrel” (Bye ba ring bsrel nas referências posteriores), Dr. Tashi Gangpa, SSS volume 58, Leh,

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assembléia de Dakinis possam felizmente conceder sua permissão [para esta transcrição]. Como o mercúrio é o principal componente de todas as Preparações-Frias-Preciosas e seja qual for o mercúrio, superior (rgod-pa) ou inferior (g-yung-ba), excetuando apenas os casos de tratamento de gag-lhog2 entre outras patologias menores individualmente, todas as fórmulas para a extração da essência (bcud-len), a cura e prevenção das doenças (nad-zhi), os processos de purificação, desintoxicação, harmonização, a preparação adequada, etc. são muito importantes. Assim, há um número inconcebível de métodos de resfriamento e limpeza para refinar o mercúrio, cozinhá-lo por um ou dois anos, um ou dois meses ou dias e horas, etc. Com numerosos antídotos diferentes, incluindo constituintes absorventes3 e ligas metálicas4 , etc., e através de métodos

1974, fólio 204:3, é bastante certo que o amigo querido seja seu discípulo chamado Khra- dbon bsod-nams bkra-shis. 2 Este é um nome combinado para duas doenças diferentes denominadas gag-pa e lho-pa que são semelhantes no que se refere às causas, sendo portanto denominadas gnyan (infecção ou microorganismos). “Gag-pa” é uma doença infecciosa da garganta e da úvula (difteria?) onde a obstrução ou o bloqueio da cavidade é o sintoma principal; o nome refere-se a este sintoma. “Lhog-pa” é uma doença do tecido muscular, causada por processo infeccioso, semelhante à água fervente em sua aparência, por isso o nome. 3 Constituintes absorventes, também denominados os Oito Constituintes (Khams-brgyad), consistem de oito componentes rochosos: (i) chu-skhyur-rdo (lit. pedra água-amarga, depósito solidificado formado na primavera e que possui sabor azedo), (ii) lhang-tsher dmar-po (mica vermelha), (iii) gser-rdo (lit. pedra de ouro), (iv) ba-bla (arsênico), (v) khab-len (magnetita), (vi) pha-bang long-bu (amonite), (vii) ldongs-ros (ocre). (viii) dngul-rdo (lit. pedra de prata, é um minério de prata). 4 Ligas metálicas (ching-byed lcags) consistem de oito metais: (i) lcags (ferro), (ii) zha-nye (chumbo), (iii) zangs (cobre), (iv) ra-gan (latão), (v)

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tântricos, o efeito tóxico do mercúrio é extraído e suas qualidades terapêuticas são geradas de várias maneiras. De todos estes métodos o mais relevante e mais profundo que os demais, com as bênçãos mais elevadas das dakinis e uma linhagem ininterrupta na prática de iogues altamente realizados, menos complicada e muito objetiva, é aquela transmitida ao Senhor Supremo dos Iogues, o Oddiyanese (O-rgyan-pa rin-chen-dpal)5 , pelo Conquistador Vitorioso, Vajrayogini:

“O Penetrante, o grande êxtase em forma de lua, [epíteto para o mercúrio] Aquele que Sopra o Calor, o Rei dos Nagas, [epíteto para o enxofre e o chumbo] Através da afinidade do óleo ao calor extremo, Conquista o poder daquele que é Todo Venerado”.

E prossegue:

“Oito tipos de metais, a suprema essência, E móvel-estável6 , e a essência do óleo Quando misturados e ‘expostos ao oposto’ (dgra-dang sprad-pa) Transformarão [em pílulas] preciosas de formas desejadas.”

Prosseguindo:

“Seu significado veio do local da emanação de Oddyiana7 ‘khar-ba (bronze), (vi) gser (ouro), (vii) dngul (prata), (viii) gsha’-dkar (estanho). 5 O principal aluno de Chos-rje rgod tshang-pa mgon-po rdo-rje (?-1256) e Grub-chen kar-ma-pak-shi (1204 ou 1206-1283) que poderia ser chamado talvez de pai da formulação do mercúrio no Tibete. 6 Refere-se ao mercúrio, pois é ao mesmo tempo móvel e estável. 7 Refere-se à cidade de Oddiyana conhecida como Dhu-ma tha-la situada no oeste da Índia, de onde a atual tradição da formulação do mercúrio (btso-thal) predominante no Tibete foi trazida por O-rgyan-pa rin-chen-dpal (1230-1303).

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Com as bênçãos do Senhor da Doutrina, o Senhor Vitorioso dos Seres Sencientes [refere-se ao guru-raiz do autor?], É a essência da profunda instrução das Dakinis. Como podem os discípulos não receptivos compreender? O fluxo mental dos discípulos receptivos deve estar aberto”.

Purificação do Mercúrio e os Ingredientes Preciosos No caso de um “zho”8 de mercúrio, adicione cinco “se-ba”9 de chumbo, uma colher cheia de óleo de crotão ou óleo de gergelim e misture-os juntos. Coloque a substância conhecida como “o que sopra o calor” (tsha-ba’i-dbugs-can) em um recipiente de ferro, quando derretidos sobre um fogo feito com carvão, ambos o mercúrio e o chumbo neutralizam-se um ao outro, e quando adquirirem um só sabor, lave três vezes com o suco da Hippophae tibetana (Schlecht), ou com a urina de vaca, e utilize da maneira como necessitar. Então, devem ser usados ingredientes preciosos, tais como turquesa, lápis-lazúli, pérolas, a mãe-da-pérola, âmbar amarelo, “nal” (coríndon)10, cristal de rocha11, “spug”12, rubi, safira, etc., e também ingredientes constituídos de rochas, vidro, cristal, de natureza não fundível. Qualquer que seja a substância utilizada, se não for conhecido o

8 1 sang = 10 zho; 1 zho = 10 skar; 1 skar = 12 se-ba 9 Ver nota nº 8. 10 Gostaria de estender meus sinceros agradecimentos ao Dr. Barry Clark por esta identificação. Outros minerais identificados pelo mesmo serão reconhecidos nas notas de rodapé, aparecendo como “Dr. Barry Clark” nas referências posteriores. 11 Dr. Barry Clark. 12 Spug: Outro nome de chu’i-nor-bu (literalmente, gema d’água) é considerado neve ou gelo que se torna solidificado após milhares de anos. Há dois tipos: multicolorido e verde-amarelado. Para maiores detalhes ver De’u-dmar-dge-bshes bstan-’dzin-phun-tshogs, “Shel-gong shel-phreng” (abreviado como SG SP nas referências posteriores. Mi-rigs dpe-skrun-khang, Mtsho-sngon, 1980.

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processo de desintoxicação, seu efeito será mais fraco, as ações benéficas não agirão tão rapidamente, e o vigor físico (lus-zung) da fórmula será enfraquecido. Está declarado na “Coletânea do Néctar” (Bdud-rtsi ‘phreng-ba):13

Turquesa, lápis-lazúli, pérola e outros. Todos os ingredientes preciosos formados na natureza: Estáveis, móveis, fundíveis e não-fundíveis Precisam ser separados do veneno para serem utilizados. Serão mais prejudiciais do que benéficos se não separados.

Esta é a razão do significado de tudo o que foi dito [sobre a importância da purificação e da desintoxicação].

A Prática da Desintoxicação dos Ingredientes Preciosos Qualquer que seja o ingrediente precioso [escolhido] para ser utilizado, misture igual quantidade de sal-gema, samambaia comum e broto de carvalho, um terço [desta quantidade] de Gentiana urnula H. S., almíscar suficiente para produzir odor, a mesma quantidade [do ingrediente precioso] de borato de sódio, Terminalia chebula Retz., pó de cauril calcinado em quantidade adequada14, Hippophae tibetana, de preferência em quantidade maior [do que a do ingrediente precioso], e misture uma solução orgânica indicada, retirada de uma criança de oito anos ou de um monge completamente ordenado. Adicione [na mistura acima] o ingrediente precioso triturado em pedaços e cozinhe durante uma manhã. Depois, cozinhe com água limpa e ainda com “chang” de boa qualidade. Após este procedimento, é vital que seja lavado com água limpa. Com relação àqueles ingredientes preciosos de natureza metálica, tais como ouro e outros, devem ser utilizados apenas os pós produzidos pela calcinação com seus respectivos 13 Este é o nome de um texto, no entanto, não pude identificá-lo. 14 A frase tibetana “tsha-’debs-tsam” no texto é traduzida literalmente como: aproximadamente a quantidade de sal colocada no alimento ou cozido, significando, portanto, a quantidade adequada.

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antídotos e separados de suas toxinas. Assim, qualquer que seja o ingrediente precioso utilizado, em primeiro lugar, o processo de desintoxicação é muito importante e deve ser mantido. Agora a seção sobre a formulação médica real será expli-cada a partir do texto “The Practical Instruction for Opening the Secret of Heart to Manifest the Heart Treasure”15 (Thugs-gter gab-pa mngon-du phyung-ba’i lag-len dam-pa snying-gyi gsang-gtol). Possui três seções principais, a grande fórmula, a intermediária e a sucinta, e uma seção sobre instruções secundárias menores.

A Grande Fórmula Misture metade de um “sang” de mercúrio desintoxicado e dois “zho” de enxofre processado da mesma forma que ouro. Misturar completamente durante metade de um dia ou mais até que estejam secos, sobre uma bacia de pedra polida sem retirar do calor. Então, reúna duas mãos cheias de “tsi” em forma de pó (rtsi-bzhin btags: literalmente, pó semelhante à resina, transformado, pulverizado tão fino quanto for possível), Oxitropis lapponica (Wahl) Gay16, coletada antes do solstício do verão e posta a secar na sombra, ou as sementes da planta coletadas no outono, e Hippophae tibetana a quantidade aproximada de uma pequena bola de esterco de carneiro. Adicione estes três ingredientes (a mistura de mercúrio e enxofre, Oxitropis lapponica 15 Alguns leitores podem considerar esta frase como sendo o nome de um texto. No entanto, não penso que o seja. O autor afirma que a verdadeira formulação medicinal explicada aqui é a instrução prática da fórmula da Pílula Negra para manifestar o tesouro estimado, referindo-se à instrução que vem de seu coração. 16 Apesar desta identificação botânica para srad-nag ser proveniente da coleção das espécies do herbário, as quais foram identificadas pelos cientistas do Botanical Survey of India e do The Forest Research Institute em Dehradun, ainda tenho dúvidas acerca de sua precisão. Espero publicar em breve um catálogo da coleção do herbário no qual esta será corretamente identificada.

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Wahl, Gay ou suas sementes e a H. tibetana) à uma solução orgânica extraída de um lactente; a consistência [da mistura resultante] deve ser semelhante à do iogurte mais ralo. Então, movimente a ‘dam-btags [a mistura} por um dia. A ordem de ingredientes preciosos a serem adicionados à mistura é: dois “zho” de ouro, três “zho” de prata, dois e meio “zho” de cobre e ferro, dois “zho” de turquesa antiga de boa qualidade, um “zho” de âmbar amarelo, meio “zho” de pérola ou mãe-da-pérola de boa qualidade, lápis-lazúli, coral, coríndon, rubi, safira, cristal, diamante e concha, [e] um “zho” de khyung-skyug.17 [Deve ser adicionado] um quarto de “zho” de cada um dos seguintes ingredientes na forma de rochas: “sbal-rgyab”18 de boa qualidade, calamina19, magnetita, muscovita fóssil20, minério de ferro, óxido de ferro, calcita, “rdo-dkar-po chig-thub”21, “mdung-rtse dmar-po”22, sal-gema e cinzas de cauril calcinado como antídoto para assimilá-los. Diferentes ingredientes (“bzang-sman”) [a serem adicionados]: três “zho” de Crocus sativus Linn, dois e meio “zho” de “tabashir” (a resina do bambú), Eugenia caryophillus Spregal, Bullock e Harrison, Myristica fragrans Houtt., Elettaria

17 Khyung-skyug é uma pedra preciosa azul semelhante à turquesa e afirma-se que produza uma coloração vermelho-sangue quando friccionada no suco de Curcuma longa Linn. Para maiores detalhes ver SG SP, págs. 93-94. 18 sbal-rgyab, que literalmente significa o dorso da tartaruga, é um tipo de rocha ou pedra utilizada na medicina da qual há dois tipos principais: smug-po sbal-rgyad e dkar-po sbal-rgyab. Para maiores detalhes ver: SG SP, págs. 125-126. 19 Dr. Barry Clark. 20 Dr. Barry Clark 21Rdo-dkar-po-chig-thub; também denominada mdung-rtse dkar-po. Para maiores detalhes ver SG SP, pág.126. 22 Também denominado smug-po chig-thub. Para maiores informações ver SG SP, pág. 126.

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cardamomum Linn., Maton e Amomum sabulatum Roxb. Três “zho” de cada um dos seguintes, “ghi-wam” (gorochan em hindi) de boa qualidade, bile de urso, almíscar, tecido hepático conservado, extraído de uma criança de doze anos do sexo feminino23 que teve morte súbita ou, se não for possível obter, o de uma porca virgem cujo peito seja multicolorido; um “zho” de músculo do antebraço de um homem de meia idade morto por uma facada; meio “zho” de mecônio proveniente de bebê humano, filhote de cão ou de cavalo; um quarto de “zho” de cada um dos seguintes, Cinnamomum camphora Linn., Sieb, Santalum album L., Pterocarpus santalinus L. F., Aquilaria agallocha Roxb., o fluido extraído de onze sementes de Strychnos nux-vomica, raladas com água limpa, e uma dose dupla24 de cada um dos seguintes, córtex de Berberis aristata DC., Rosa macrophyla Lindl., Myricaria germanica L., Desu, e Saussurea hieracioides Hook. F. Ervas [a serem adicionadas]: três “zho” de Aconitun heterophyllum Wall., um “zho” de cada um dos seguintes ingredientes, Aconitum brunnuem Hand. Mazz., Aconitum autumnale, Phytolacca esculenta Van Houtte, e “dpa’-bo”25 selvagem, dois “zho” de “su-mi-dmar-ser” 26 (“su-mi” amarelo e vermelho), dois “zho” de “glang-chen Chig-thub”27 , meio “zho” de cada um dos seguintes ingredientes, Gentiana urnula H. Smith e 23 Uma menina de treze anos, e referido como “stag-lo-ma” (nascida no ano do Tigre) conforme o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 192:5. 24 Uma colher cheia de cada segundo o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 193:2. 25 Dpa’-bo ser-po é ignorado, pois no “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 193:3, encontramos dpa’-po ser-po entre Phytolacce esculenta (dpa’-bo dkar-po) e dpa’-bo (Dpa’-rgod). A linha é a seguinte: “bon-nga dmar-po ser-po dpa’-bo dkar-po ser-po dpa’-rgod zho-re-re”. 26 Dois “zho” ou do su-mi vermelho ou do su-mi amarelo (su-mi dmar-ser gang-yang rung-ba zho-do) no “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 1933. 27 É um tipo de dpa’-bo com raiz de tamanho maior do que os outros. Consequentemente, denominada também de dpa’-bo chen-po (dpa’-bo grande).

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concentrado de Sambucus adnata Wall., um “zho” de cada um dos seguintes28, Corallodiscus kingianus (Craib.) e concentrado de Dryopteris barbigera Moore, O. Ktze. (que cresce em brotos de árvores), uma dose grande de cada um dos seguintes ingredientes, Delphinium brunonianum Royle, Sisymbrum irio Linn., Oxitropis microphylla DC., Lilium tenuifolium Fisch., Gentiana algita Pall. (variedade branca) e Gentiana tibetica King e Hook. F., uma casca de ovo cheia29 de sementes de nabo envelhecidas por uma ano30 e a mesma medida de óleo de sementes de Brassica alba Linn., Boiss, que não tenha sido tocada por mulheres e pela luz do sol, três doses de sementes de Brassica nigra Linn., Koch., e os cabelos da região púbica de um bode, um “zho” de chifre de rinoceronte branco, seis penas de rabo de pavão (na forma de pó calcinado), cinco vértebras de duas polegadas (“sor-zhi-pa”) de porco-espinho, todo o conjunto de fios de bigode de um tigre, e cabelos das axilas e do topo da cabeça de uma menina limpa nascida no ano do Tigre, calcinados com o calor do sol através de uma lente convexa. Os imprescindíveis ingredientes secretos são: mica negra denominada “a-pa-ra”31, a qual é triturada por cinco ou sete dias em uma mistura de solução orgânica extraída do bode, Hippophae tibetana e soro de leite. Despeje [a mistura] em uma bolsa de pele e amasse completamente. Retire-a [da bolsa] e misture com uma quarto desta quantidade (de mica negra) de enxofre que se assemelha a ouro, coloque em um recipiente de cerâmica feito de “zhi-ka” (uma argila especial para cerâmica) e de uma argila resistente ao fogo e que não se quebra, as aberturas do recipiente são seladas e o pote é colocado no fogo durante uma manhã; dois 28 Dois “zho” de cada no “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 193:4. 29 Duas cascas de ovo cheias de cada (sgong kyogs ou skogs) conforme o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 193:6. 30 Doze anos (lo bcu gnyis lon pa) conforme o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio193:5. 31 A-pa-ha-ra conforme o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 194:2.

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e meio “zho” de pó assim preparado [é necessário]. Misture a polpa finamente pulverizada (“rtsi-bzhin btags-pa”) de 21 frutos não estragados e com odor agradável de Terminalia chebula com a solução orgânica extraída de uma criança de oito anos e coloque-a em um recipiente de ferro novo, coberto com um pano limpo e quando o tecido tornar-se negro e seco, adicione manteiga ao pó precioso (o pó de mercúrio purificado) , e cozinhe32 . Então, misture estes dois [preparados] que ficam expostos à luz da lua no décimo quinto dia do mês (conforme o calendário tibetano, quando a lua está cheia)32 ; três bolas de gordura humana e de veado aproximadamente do tamanho de uma semente de quilaia. Dentre os 83 ingredientes medicinais, embora quatro33 deles, tais como coríndon, etc., não sejam encontrados, o restante deve ser coletado em suas medidas exatas de “zho”, em concordância com conjunções planetárias e estrelares. Então, começando com o mais duro deles, pulverize finamente cada um dos ingredientes 32 Estas duas sentenças, e acordo com o “Bye-ba ring-bsrel”, fólios 194:4-195:1, são lidas como: a-ru gser-mdog nyi-shu rtsa-gcig rul-sung med-pa’i sha-rtsi bzhin-btags-pa’i phye-ma phyed-lo brgyad-chu-dang sbyar-la/ lcags-kyi snod-gsar-pa’i nang-du blug-nas gos-gtang-mas byibs/ mdog-nag-por song-ba byas-pa de skams-pa-dang/ phyed rin-po-che’i sder-mar byug-nas tshes-bco-lnga’i zla-’od-la gdugs-pa gnyis-bsres. Tradução: Misture metade do pó da polpa pulverizada como uma resina de 21 frutos de Terminalia chebula, não apodrecidos e sem odor fétido, com a urina de uma criança de oito anos. Depois, coloque-a em um recipiente de ferro novo e cubra com um pano limpo, até que ele se torne preto e seco; então, misture a outra metade com o grupo de ingredientes preciosos, aplicada com manteiga, que tenha ficado exposta à luz da lua no décimo-quinto dia do mês (conforme o calendário tibetano, quando a lua está cheia). Depois os dois preparados devem ser misturados. 32 Ver acima 33 Infelizmente, ambas as edições do texto não especificam quais dos quatro ingredientes não são encontrados, a não ser “nal” ou coríndon.

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nesta ordem [do mais duro ao menos duro]. Misture todos os ingredientes e seque-os misturando durante um dia. Depois, esprema [o pó misturado] através de um pano fino e despeje uma solução orgânica extraída de uma crinça de oito anos neste pó o qual é então misturado à mistura contendo mercúrio [mencionada anteriormente] até a consistência do mais fino iogurte, amasse-a durante dois dias. Despeje duas mãos cheias de suco de sementes de Punica granatum grosseiramente trituradas e amasse continuamente durante sete dias sem interrupção durante as noites. Se não for possível realizar desta forma, deixe [o preparado] com consistência de massa durante a noite. Ao amassar, é importante que esteja com consistência mais fina e deve ser amassada por onze dias34. O ponto perfeito é obtido se [a preparação acima] tornar-se azul como o céu e com a cor de um nanquim de boa qualidade (“rgya-snag”) quando está com consistência semelhante a um iogurte fino35. Se estiver amarelo quando fino e levemente preto quando grosso, está imperfeito. Após [alcançar o ponto de] perfeição, quando a consistência [da preparação] é de uma massa fina, enrole em pílulas aproximadamente do tamanho de ervilhas frescas grandes. Coloque em uma balança para manufaturar [as pílulas] exatamente com o mesmo peso, e torne-as muito redondas, sem ondulações ou rachaduras. [As pílulas] devem ser colocadas sobre uma rede de bambu, semelhante a uma bandeja, coberta com um tecido de fina qualidade deixando-se algum espaço [entre as pílulas e o pano], postas a secar na sombra.

Polimento Quando as pílulas estiverem um pouco úmidas ainda, coloque-as em um pano preto [transformado em um longo saco] e agite suavemente. Quando completamente secas, agite novamente com força, removendo-as quando estiverem brilhando, 34 Quatorze dias, conforme o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 195:6. 35 O mais fino iogurte, conforme o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 195:6.

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emitindo raios prateados. Mergulhe-as por um momento no suco de sementes de linhaça (ligeiramente trituradas?) socadas em água, e depois seque-as novamente. Devem ser conservadas em um agente conservante, Cinnamomum camphora Linn., Sieb.,36 em um bom esquife de material precioso [pedra ou metal], cujos cantos são vedados com cera. É melhor [que elas sejam] dotadas com muitas cerimônias consagradas e abençoadas tanto quanto possível. É essencial que os [ingredientes] medicinais, desde o momento em que são coletados, não sejam tocados por mulheres ou pelo sol – e se forem prescritas para uma mulher, um homem deve administrá-las. Esta formulação é denominada “A Grande Pílula Negra”. Que possa ser conhecida em todo o país, pois possui qualidades [terapêuticas] inexprimíveis. Torna-se o melhor dos elixires se ingerida por uma pessoa saudável que mantém os votos e repelirá os venenos enquanto viver37 . Não há nada que esta fórmula não cure, todas as doenças – por exemplo, as febres crônicas e modificadas, entre outras patologias – que são difíceis de curar por outros meios. Agora, será apresentada a fórmula intermediária. Três “zho” de mercúrio desintoxicado, o mesmo de enxofre processado, triture um “zho”38 de Oxitropis lapponica Wahl, Gay, como anteriormente, dois “zho” de almíscar, dois e meio “zho” de “gi-wam” e bile de urso, um “zho” de cada uma das Seis Drogas Diferentes (“bzang-po-drug”), sete sementes de Strychnos nux-vomica Linn., um “zho” 39 de cada um dos seguintes, Aconitum 36 Ga-bur ‘bras conforme o “Bye-ba ring-bsrel, fólio 196:6, que poderia ser o Cinnamomum camphora e arroz ou o fruto do Cinnamomum camphora, pois a palavra ‘bras significa tanto fruto como arroz. 37 Cada pílula combate os venenos durante toda uma vida (ril-bu-res mi-tshe ‘di-’i dug-thub-ste), conforme o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 197:4. 38 Duas mãos cheias (khyor-ba-gang) conforme o “Bye-ba ring-bsrel, fólio 197: 5-6. 39 Dois “zho” (zho-do) conforme o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 198:1. No entanto, a palavra “re” (cada) está omissa.

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Heterophyllum Wall., Royle, Aconitum brunneum Hand., Mazz., e “su-mi”. O pó calcinado de cinco penas de cauda de pavão, uma casca de ovo de uma galinha jovem cheia de sementes de nabo e Brassica alba Linn., Boiss., Terminalia chebula 40, um quarto de “zho”41 de cada um dos três seguintes: turquesa, âmbar amarelo e coral (uma quantidade superior a esta não é bom), sete peças de pérolas, meio “zho” de pó de mica que deve ser peneirado. Misture com o suco de Punica granatum. O método de enrolar as pílulas e outros é o mesmo do anterior. [A fórmula destes] 27 ingredientes é chamada a “Pílula Negra Intermediária”. [A ação] de cada pílula dura seis meses42 se ingerida por alguém que realiza os votos prometidos. Para o tratamento das doenças, sua ação é semelhante à anterior [a Grande Pílula Negra]. Enfim, a fórmula da Pequena [Pílula] Negra: [Junte] um “zho” de mercúrio desintoxicado e uma igual quantidade ou metade de enxofre, duas mãos cheias de Oxitropis lapponica, meio “zho” de almíscar, uma casca de ovo de uma galinha jovem cheia de Brassica alba, cinza calcinada em três doses de cada um dos Seis Medicamentos Diferentes; pulverize-os como antes e amasse-os, até que a mistura fique semelhante à cor da ferrugem de um espelho (“dam-’thag me-long g-ya’-ltar-byas”), com a solução orgânica extraída de uma criança de oito anos, e enrole as pílulas do tamanho de ervilhas frescas. [A ação medicamentosa] de cada pílula dura quatro meses. Quando utilizada para tratar doenças, a ação terapêutica potencial [da pílula] é semelhante à da formulação anterior. Portanto, [a formulação destes dez ingredientes medicinais43 é conhecida como a Pequena Pílula Negra. Misturar meio “zho” de cinza de 40 Quinze (frutas de) Terminalia chebula Gaertn., Retz. (A-ru-gser-mdog bco-lnga) conforme o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 198:1. 41 Apenas uma quantidade não ausente de cada (ma-chad-tsam re), segundo o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 198:2 42 Um ano e um mês (lo-zla), segundo o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 198:4. 43 Treze (bcum-gsum) segundo o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 199:2.

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cobre calcinado em ambas as [fórmulas] Intermediária e Pequena é unicamente44 uma instrução secreta [adicional] e genuína. As instruções para a administração [da Pílula Negra] nos casos ‘dred 45 e como investigadora (“bya-ra”) [um medicamento utilizado para determinar a doença] no organismo são [as seguintes]: Abstenha-se de uma refeição noturna e tome uma dose de Zanthoxylum armatum DC. À meia-noite, tome uma pílula negra amassada em pó, com um “chang” de boa qualidade. Ao romper do dia, adicione uma dose de bile de urso a um gole de uma solução orgânica retirada de seu próprio corpo ou à manteiga branca aquecida (“mar-dkar btsag-bcad-pa”). Esta administração é vital para a abertura e o fechamento dos canais. O medicamento não terá qualquer poder se o indivíduo não souber desta [instrução].

44 A palavra “apenas” (kho-na) segundo o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 198:4. 45 A palavra está mal escrita – ‘bred, no texto, que deve ser corrigida para ‘dred como pode ser observado em outras edições do texto. Entretanto, lamento não conseguir encontrar uma palavra exata nem uma frase adequada que transmita aqui o significado deste termo complexo ‘dred. No entanto, tentarei explicar o significado a seguir: Esta palavra, literalmente significa escorregar. No entanto, o termo no contexto da terminologia médica é utilizada para definir uma fase pertinaz da doença onde outras formas de tratamento falham em proporcionar uma cura, ou seja, a ação terapêutica “escorrega” e não penetra. Nestes casos,a nona forma de tratamento, que é a Fórmula Preciosa, é utilizada como “log-gnon”. Para uma melhor compreensão da palavra ver: Sde-srid sang-rgyas rgya-mtsho, “Gso ba rig pa’i bstan bcos sman bla’i dgong rgyan rgyud bzhi’i gsal byed bai dur sngon po’i ma li ka, volume IV, Dr. Tashi Yangphel, Leh, Ladakh, 1981, pág. 162:3-5.

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A promessa do indivíduo é – que seja para toda a vida, para um mês46 ou durante o período em que o indivíduo sinta que a pílula está no corpo - a não utilização de qualquer purgativo, emético ou venissecção. Quem toma a pílula deve abster-se de Hippophae tibetana, pera, talo de Rheum nobile Hook. F. & Thoms., “chang” amargo e dietas e regimes comportamentais que causem destruição do mercúrio. Se as restrições dietéticas e comportamentais não puderem ser observadas, repita a medicação.

Para determinar um Envenenamento Não importa qual o tipo de alimento ou bebida ingeridos, [a pílula era] administrada quando o indivíduo eliminava um arroto com odor de almíscar imediatamente antes da digestão [quando ocorre o envenenamento]. Aplique um purgativo e um emético forte. Além disso, para curar o paciente, a princípio, deve ser feito um exame com “Rhino-4”47. Se [o envenenamento] for confirmado48, o tratamento é o mesmo para qualquer espécie de intoxicação. O néctar essencial da instrução sagrada é:

Não deve ser contra-atacada quando não concentrada. Não deve ser limpa quando não contra-atacada. Não deve ser veniseccionada quando não eliminada.

46 Ano, mês, etc. (Lo zla ba sogs) conforme o “Bye-ba rings-bsrel”, fólio 199:6. 47Sua fórmula é: chifre de rinoceronte branco, metade desta quantidade de Su-mi-sman de Mon (Tawang e Butão), metade desta quantidade de rnam-rgyal (o mais raro e a melhor espécie de mirabólano) e metade desta quantidade de almíscar. Ver “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 185:1-2. 48 Administrar o medicamento “Rino-4” para determinar se o indivíduo está sendo intoxicado ou não, os seguintes sinais confirmarão que ele possui o veneno no organismo: diarréia, vômitos e flatulência. Ver “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 185.

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Em caso de envenenamento, a primeira atitude a ser feita é “concentrar” [o veneno que está espalhado no corpo], com a ajuda da “Decocção-13”49 , que é constituída de: quantidades iguais de Sambucus adnata Wall., Dryopteris barbigera Moore, O. Ktze. (encontrada na árvore do carvalho), Myricaria germanica L., Desu., Pterocephalus hookeri Cl., Airy-Shaw e Green, Aleuritopteris argentea (Gmel.) Fee, o córtex da Berberis aristata DC., Hypecoum leptocarpum Hook. & Th., Gentiana urnula H. Smith, Picrorhiza kurroa Royle e Benth., Taraxacum officinale Web., o córtex da Rosa macrophyla Linda., Meconopsis horridula Hook. F. & Thoms., e Selaginalla involvens Spr. Se isto não puder ser reunido [ou colhido], o pó de cinco Terminalia chebula Retz., o mirabólano de cinco-bordas (“a-ru zur-lnga”) e almíscar são adicionados à “Decocção-4”: Sambucus adnata, Dryopteris barbigera, Myricaria germanica e o córtex da Berberis aristata . Deve ser administrada morna, ao meio-dia e à meia-noite50, ou a decocção única concentrada de “su-mi-sman” de boa qualidade crescido na bacia de Mon (Tawang e Butão). Se ocorrerem complicações gástricas e hepáticas, ataques de dor, etc., prepare uma fórmula combinada de contra-ataque e purgação da seguinte forma: Pegue sete pílulas preciosas, cinco pontas do mirabólano de ponta curvada (“a-ru chu-sngung”) e sete sementes de Croton tiglium Linn. Sem pele e semente, pulverize-os em um pó fino e role as pílulas aproximadamente do tamanho de ervilhas com o suco de sete sementes de Cassia fistula Linn. trituradas em “chang”, e depois limpe o organismo exatamente como na prática da purgação intestinal. Depois de contra-atacada e limpa, deve ser administrada uma pílula preciosa em pó até que a doença seja eliminada. Para pacientes com falta de apetite e poder digestivo

49 Um nome mais descritivo seria “Decocção Herbácea-13” (sngo-thang bcu-gsum-pa) conforme o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 210:1. 50 Ao meio-dia e à meia-noite durante alguns dias (gung-gnyis-la zhag-’ga’) segundo o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 201:1.

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fraco, deve ser administrada “Punica granatum-4”51 juntamente [com a medicação anterior]. Estes medicamentos dominam aqueles transformados em compostos prejudiciais, verdadeiros venenos (“dngos-dug”) e todo tipo de toxina, como um leão domina uma raposa. Discutiremos também outras instruções secundárias importantes. Um “zho” de mercúrio desintoxicado desintegrado por um terço de “zho” de enxofre e apresentando a coloração de “rgya- snag” (literalmente: nanquim), três “zho” de brotos em germinação de Oxitropis lapponica ou suas sementes, sementes de nabo ou um concentrado de nabos com aproximadamente o tamanho de esterco de carneiro, uma Terminalia chebula Retz., de tamanho adequado e meio “zho” de almíscar devem ser triturados e misturados com a solução orgânica de uma criança de oito anos. As pílulas são enroladas aproximadamente do tamanho de ervilhas, mas [o método[ de abrir e fechar os canais e as exigências a serem seguidas continuam como as anteriores. [Este preparado é] conhecido como “Salvador do Medo-6”52 . [A potência de] cada pílula dura por um mês – e é uma instrução que não tem falhas. Novamente, em um “zho” de mercúrio desintegrado por um quarto de enxofre, [adicione] três frutos de Terminalia chebula, metade de duas mãos cheias de cada um dos seguintes, Dryopteris barbigera crescido sobre um carvalho, folhas e flores de Myricaria germanica 53 e Sisymbrium rio Linn., e prepare um concentrado em um recipiente de ferro [com os ingredientes acima] com a mistura ou combinação de um número ímpar de 51 Composto de quatro ingredientes: Punica granatum (Se-’bru), Cinnamomum zeylanicum (shing-tsha), Elettaria cardamomum L., Maton. (Sug-smel) e Piper longum Linn. (Pi-pi-ling). 52 Possui outro nome, “O único na suprema armadura” (dbang-phyug go-cha gyon-pa), segundo o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 202:4. 53 Ou as folhas ou as flores da Myricaria germanica L., Desu. (‘Om-bu’i lo-ma-’am me-tog), no “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 202:6.

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diferentes metais (“lcag-sna-kha-yar”) e água de neve, um concentrado de nabo aproximadamente do tamanho de uma semente de quilaia e três doses de almíscar. Durante três dias, amasse-os e misture-os com a solução orgânica extraída de uma criança de oito anos. Se a pílula, com aproximadamente o tamanho de uma ervilha, é administrada, cada uma será eficaz sobre cada tipo de veneno, em especial toda espécie de intoxicação por carne,54 e a proteção não terá falhas. Para aqueles acometidos por intoxicação grave por acônito (Aconitum laciniatum, Stepf.): Prepare uma mistura de excrementos frescos ou não de cão55 ou humano, e aqueça a urina [fresca] tanto quanto possível, e se o paciente tornar-se cambaleante e sentir tontura, ele vomitará e purgará violentamente. Quando a perda da consciência é recuperada, formule antídotos adequados para concentrar, conta-atacar e eliminar [a intoxicação]. Este é o significado de “Pingar um ‘bre’ 56 de néctar [na boca]”, como declarado no “Khu-tshur zhal-’dams”57, que é um texto tão profundo. Com isso, anuncio [os versos conclusivos]: 54 Vinte e um dias cada (zhag nyer-gcig re’i) segundo o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 203:2. 55 De humano ou de cachorro (mi-’am khyi’i) segundo o “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 203:3. 56 Unidade de medida de peso no Tibete. De acordo com H.A. Jaschke, um “bre” é equivalente a aproximadamente 4 pontos. (Ver H.A. Jaschke, A Tibetan-English Dictionary, Frederick Ungar Publishing Co., New York, 1965). 57 Não pude definitivamente identificar este texto. Entretanto, é provável que seja um dos seguintes: a)”Bum-khu-tshur”, por Skyes bu me lha alias Bha ro phyag rdum (extensão?) b) “Zla-ba nag-po’i rgyud-bum khu-tshur” ( na biblioteca do Tibetan Medical & Astrological Institute, Lhasa, Tibete). c) “Bum-khu-tshur ‘dam-pa sum-bcu-pa”, por Lcang-sman sangs-rgyas mgon-po.

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Do passado, sábios com visão extra-perceptiva E mestres realizados da Índia e do Tibete Transmitiram58 estas instruções. As bênçãos se desvanecerão se corrompidas. Assim, convém não serem alteradas – últimas gerações! Aquelas instruções quintessenciais secundariamente ensinadas

também, São evidentemente para fornecer uma crença verdadeira, e

com pouco esforço. Portanto, [elas] devem ser praticadas frequentemente e não

ignoradas. Estão descritas para que a tradição não seja interrompida. Embora mantendo o tesouro de muitas instruções, Não há nenhuma outra que não esta preciosidade que seja

sinceramente apreciada. Não haveria tal instrução vital em tal período decadente, A maioria das pessoas respeitáveis iriam morrer precocemente. Tal refúgio-dependente-da-vida-extremamente-difícil-de-

encontrar É confiado a você59, o melhor amigo, mais íntimo que um filho. Não o deixe desaparecer, pois poderia desencadear a punição

58 Para a linhagem da transmissão da fórmula do mercúrio em detalhes ver: Dngul-chu gter-mdzod, fólios 188:5-192:6; Sde-dge drung-yig gu-ru-’phel, Srid-gsum gtsug-rgyan si-tu chos-kyi ‘byung-gnas-kyi zhal-lung dngul-chu btso-chen-dang rin-chen ril-bu’i sbyor-sde zla-ba-bdud rtsi’i thig le ces bya ba bi dza ram, no texto “Rin-chen dngul-chu sbyor-sde phyogs-bsdebs”,fólios 308:3-310:2; Kong-sprul yon-tan rgya-mtsho, Bdud-rtsi bcud-kyi rgyal-po dngul-chu btso-bkru chen-mo’i sbyor-bas grub-pa’i bsud-len-tu bsgyur-ba’i lag-len rnam-par gsal-ba ‘tsho-byed mkhas-pa’isnying-bcud ces-bya-ba bzhugs-so, também presente no “Rin-chen dngul-chu sbyor-sde phyogs-bsdebs”, fólios 397:6-399:5. 59 Um dos principais discípulos do autor, Khrag-dbon bsod-nams bkra-shis, ou simplesmente Khrag-dbon como escrito no “Bye-ba ring-bsrel”, fólio 206:3.

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da Dakini. A pessoa receptiva para quem este tesouro pode ser aberto é: Aquele que é devotado, diligente, muito compassivo, Que pode manter o segredo e que se mostra perfeito. Dê este texto se um “sang” de ouro (“sang-ra’i-me-tog”)

for oferecido. Pessoas mal agradecidas que desejam a instrução furtivamente

e por meios indiretos. O ganancioso e aquele que não domina as palavras e a lei, Se oferecida a tal tipo de pessoas a lei do ensinamento será

corrompida. Não desvie das palavras de O-rgyan, o Realizado. Na entrada para a residência do Vitorioso, na Parte mais baixa da terra de Kong-po, A caverna da meditação tântrica secreta conhecida como

“O Segredo”, No jardim de flores da feliz floresta solitária dos medicamentos, O Dharma foi escrito, e a iluminação pode ser obtida através

de suas virtudes.

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Apêndice 1: Tradução do Texto “Um Método Característico de Administrar as

Pílulas Preciosas – Uma Prática de Habilidade”1 Em homenagem ao Buda da Medicina, aos sábios e à linhagem. Refere-se ao modo como a Pílula Negra Preciosa deve ser administrada: Em um recipiente de porcelana branca chinesa2,α ,β sem lascas ou rachaduras, colocado sobre um

1 Apesar de distribuir folhetos com instruções simplificadas para aqueles que precisam tomar as pílulas preciosas, nós no Tibetan Medical & Astro. Institute sempre nos deparamos com pacientes tomando as pílulas sem seguir quaisquer das restrições recomendadas, e o benefício completo da pílula não pode ser garantido para estes pacientes. 2 O “chang” forte é utilizado como um veículo (sman-rta) por pessoas saudáveis que tomam a pílula preciosa como um tônico. Há diferentes veículos para a pílula dependendo da doença para a qual esteja sendo tomada. Por exemplo, se o paciente tiver smug-po (úlcera gásrica?) e febre crônica (tshad-rnying), deve ser utilizado chá preto sem sal (os tibetanos usam sal em seu chá); portadores de “chu-ser”α, “grum-bu” (reumatismo?), “Bad-kan skya-rbab”β e doenças de natureza fria devem tomar Cong-zhi ‘khrul-thal, um preparado de pó de calcita calcinada, com “chang” ou com suco de Punica granatum. Para maiores detalhes, ver mKhyen rab nor bu, “Rin-chen ril-bu’i phan-yon dang bstan-thabs gsal-ba’i me-long bi-ha ra-ti ma” (gsal-ba’i me-long nas referências posteriores), ano e editor desconhecidos, Lhasa, sMan rTsis khang, impresso em bloco de madeira, fólio 6b:2-5. α “Chu-ser”, significa literalmente fluido amarelo e está localizado principalmente na pele e nas articulações. De acordo com a medicina tibetana, um resíduo (“snyig-ma”) do sangue armazenado na vesícula biliar é o “chu-ser”. É frequentemente traduzido como fluido linfático e “soro”. Não estou na posição adequada para comentar, mas creio que um estudo comparativo completo dos diferentes sistemas médicos

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crânio [humano] padrão repleto de cevada branca (nas-dkar), um “phu-lu” (ou Phul) de “chang” de cevada forte aos quais são adicionados quatro “se-ba”3 de medicamento precioso. É essencial utilizar uma colher de ferro4 como instrumento para agitar. Cubra [o recipiente] com um pano vermelho dobrado em quatro. Tendo realizadas orações de humildade da linhagem dos Quatro Tantras e rituais consagrados, tome a mistura à meia-noite sem deixar restos. Depois permaneça na cama, aquecido, e durma. Ao romper do dia, os seguintes sinais da ação positiva do medicamento surgirão: perspiração, calor e roncos no estômago e no cólon. Estes são sinais positivos, portanto, não retire as roupas de cama de sobre seu corpo. Nesta fase, [deixe] todas as doenças serem eliminadas [através] da transpiração. Para aqueles portadores de doença severa e vigor físico adequado, a decocção concentrada de treze “a-ru chu-snyung”5 deve ser administrada à temperatura de um chá quente de hora em hora, e deve ser deveria ser feito para identificar os termos médicos tibetanos com a terminologia médica Ocidental. β “Bad-kan skya-rbab”: uma doença causada pela ingestão de dieta com qualidades fria e pesada e no envolvimento com condutas da mesma natureza, resultando em indigestão e portanto a essência do alimento não pode ser processada para formar um constituinte físico (refere-se ao sangue, neste caso) no fígado, transformando-se contrariamente em “sangue prejudicial” e “chu-ser” os quais são espalhados pela ação de “rLung” disseminando-se por todo o corpo. Consequentemente, causa acúmulo de fluidos no organismo. Esta doença tem sido traduzida como edema ou como anemia. 3 Equivalente a uma pílula feita pelo Tibetan Medical & Astro. Institute, Dharamsala, Índia. 4 Pode ser utilizado o dedo anelar limpo também. 5 Em minha tradução do texto “Eternal Gem for the Revelation of the Secrets of Black Pill Formulation”, este ingrediente foi traduzido literalmente como mirabólano curvado e pontudo. É uma espécie de “a-ru” ou mirabólano. Na farmácia do Tibetan Medical Institute são utilizados os frutos da Terminalia chebula.

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fornecida água fervida morna algumas vezes também. Quando a purgação alcança o limite apropriado6 , interrompa a decocção de “a-ru” e beba água fervida com sal (“rgyam-tsha”). [Para a dieta] é essencial ingerir pasta fina de carne e uma alimentação nutritiva (“gsar-bcud”, ou seja, carne fresca, manteiga e “chang”). As ações benéficas descritas no texto7 [para a pílula negra] serão produzidas de acordo. O trabalho preparatório (“bca’-gzhi”)8 deve ser feito de acordo. Devem ser feitas a recitação dos “Sete Ramos”9, as palavras de oração e oferendas à imagem do Buda da Medicina.

6 O ponto de demarcação é determinado pelo seguinte: a) Frequência de evacuações - um a três “bre” [dentro de uma sequência] b) Volume das evacuações - aquosa, esbranquiçada e amarelada. Em resumo, de acordo com as condições de saúde do paciente. Para maiores detalhes, ver “Bdud-rtsi snying-po yan-lag brgyad-pa gsang-ba man-ngag-gi rgyud ces-bya-ba” (um compêndio dos quatro tantras da medicina; “rGyud-zhi” nas referências posteriores, Tibetan Medical Astro. Institute, Dharamsala, 1984, págs. 635:17-636:4. Para maiores detalhes ainda, ver o comentário na obra de sDe srid sang rgyas rgya mtsho, “Ba’i-dur sngon-po”, volume IV, Dr. Tashi Gangpa, Leh, Ladakh, 1981, pág. 196:2-5. 7 Não é possível saber a quais textos o autor desconhecido se refere, mas para maiores detalhes sobre as forças curativas da pílula, aconselho aos leitores o texto “gsal-ba’i me-long”, fólios 3a:2-6a:1. 8 Geralmente relacionado com a realização de rituais. Refere-se a etapas preparatórias antes dos verdadeiros rituais que são a manufatura e colocação de bolos rituais e outros objetos. Inclui a colocação da pílula no copo, a agitação, cobri-la, etc. Uma descrição detalhada desta etapa pode ser encontrada no “Gsal-ba’i me-long”, fólios 6a:4-7a:4. 9 Há diferentes versões para esta citação, e recomendo os leitores à versão mais simples e resumida dos “Sete Ramos”, com tradução tibetana e inglesa encontrada no “Daily Recitations” (Nyin-re’i zhal-

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Apêndice 2: A Oração de Bênçãos Invoque o Senhor da Água Marinha, o Rei de Luz (epíteto ao Buda da Medicina) e imagine o recipiente com o medicamento como a tigela de néctar. Começando com o verso “Rei dos Médicos, o Conquistador Vitorioso...”10 (epíteto ao Buda da Medicina), [e] o mantra11 deve ser recitado sete vezes. Para orar, recite três vezes a oração composta por Zha-dmar chos-kyi grags-pa (1453-1524).

“Em homenagem ao Conquistador Vitorioso, o Deus da Medicina, o Rei da Luz Água Marinha.

Possa o poder da verdade se desenvolver. Incluindo este local de meditação, e em todo o universo, possa

o conhecimento da arte de curar florescer sem degeneração. ’don), Library of Tibetan Works and Archives, Dharamsala, quinta edição revisada, 1987, págs. 39-40. 10 Este é o verso de bênção. O verso completo pode ser encontrado no “rGyud-zhi”, pág.113. 11 Om namo bhagavate bhaishajya-guru-vaidurya-prabha-rajaya tathagatayarhate samyak-sambuddhaya tad yatha: om bhaishjye bhaishjye mahabhaishjye-rajaya-samudgate svaha. Transliterei o mantra de acordo com o livro “Saúde Através do Equilíbrio” na pág. 202. Na nota, a tradução de Birnbaum é a seguinte: “Honro o Senhor Mestre da Cura, o Rei da Radiância do Lápis-lazúli, Tathagata, Arhat, O Perfeitamente Iluminado dizendo: Pela cura, pela cura, pela suprema aclamação da cura!”

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Possam o corpo, a fala e a mente de todas as pessoas experimentar a ausência da doença e do sofrimento.

Possam todas as doenças que estejam ocorrendo ou predominando serem curadas.

Possam todos os fatores de cura ser reunidos juntos. Possa não existir o médico que repudia seus pacientes. Possa não existir o paciente que abandona seu médico. Possam toda dieta, medicamento e comportamento levar

a condições de cura. Possam não levar a condições de morte. Possam as causas, condições e natureza exatas das doenças ser compreendidas – e sendo compreendidas, possam [todas] existir em alegria através da estima [pelo conhecimento

compreendido]. Possam compreender que toda doença origina-se da ilusão

e do karma, Possam todos se unir para eliminá-los. Se a doença sucumbir, possa a motivação ser direcionada através do acompanhamento voluntário do sofrimento de um

outro ser senciente. Possa, especialmente, a doença mental – o desejo, o ódio e a

ignorância – ser totalmente eliminada.”

Recite as linhas acima três vezes e ambos o paciente e o médico devem visualizar o medicamento, e o néctar da cura para as 404 doenças12. [O medicamento] deve ser ingerido pelo 12 As 404 doenças são: 101 doenças menores temporárias (ltar-snang ‘phral-nad), aquelas doenças que têm remissão mesmo sem serem tratadas; 101 doenças causadas por energias prejudiciais (kun-brtags gdon-nad); 101 doenças causadas pelo distúrbio dos próprios humores ou “nyes-pa” (yong-sgrub tshe-nad) que responderão ao tratamento

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paciente. Depois recitam-se os versos abençoadores do Buda da Medicina.13

médico; e 101 doenças causadas por suas próprias ações em vidas anteriores (gzhan-dbang sngon-nad) para as quais a medicina não tem ajuda. 13 Há diferentes versões dos versos abençoadores do Buda da Medicina composto por diferentes lamas.