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MENSAGEM SECRETA Traço estes ideogramas sobre um tablete de argila, como sempre faço por ordem do príncipe. Só que desta vez não se trata de uma encomenda do príncipe. Escrevo por mim, não por ele. Gudea não verá esta mensagem. Sofreria muito. É uma mensagem secreta, não enfeitará as estátuas, nem será conservada no tempo. Eu a guardarei e a levarei comigo para o túmulo. Este é o lado obscuro da minha sabedoria e não quero que seja conhecido nem por meus soberanos, nem por meus contemporâneos. Gudea e eu somos amigos desde criança. Na infância, éramos iguais. Mesmo sabendo que ele era filho de reis e que eu era filho de súditos, na infância não há diferenças. O barro nos sujava, tanto a ele como a mim, a chuva molhava os dois, os dois éramos aquecidos pelo sol. As brigas foram de irmãos, as reconciliações foram de irmãos.

Mensagem secreta (eu, o escriba)

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Page 1: Mensagem secreta (eu, o escriba)

MENSAGEM SECRETA Traço estes ideogramas sobre um tablete de argila, como sempre faço por ordem do príncipe. Só que desta vez não se trata de uma encomenda do príncipe. Escrevo por mim, não por ele. Gudea não verá esta mensagem. Sofreria muito. É uma mensagem secreta, não enfeitará as estátuas, nem será conservada no tempo. Eu a guardarei e a levarei comigo para o túmulo. Este é o lado obscuro da minha sabedoria e não quero que seja conhecido nem por meus soberanos, nem por meus contemporâneos. Gudea e eu somos amigos desde criança. Na infância, éramos iguais. Mesmo sabendo que ele era filho de reis e que eu era filho de súditos, na infância não há diferenças. O barro nos sujava, tanto a ele como a mim, a chuva molhava os dois, os dois éramos aquecidos pelo sol. As brigas foram de irmãos, as reconciliações foram de irmãos.

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Agora já não é assim. Ele é o príncipe e, embora eu seja seu escriba favorito, a igualdade já não existe. Devo escrever suas realizações e suas glórias, que são grandes. Faço-o, mas sei que tudo que é terreno é fugaz, e sei que tudo terminará um dia. Gudea é generoso e criador, conseguiu que o depósito de especiarias de Lagash fosse como o Tigre, quando suas águas estão crescidas. Na casa do tesouro há pedras preciosas, metais nobres e chumbo. A cidade de Lagash é feliz e poderosa e ama seu príncipe. Eu também o amo, como súdito e como amigo, mas sei que as glórias dos reis se acabam. Tudo que é terreno é fugaz, e tudo terminará um dia. As esculturas perderão suas cabeças e os corpos dos reis apodrecerão. Os estandartes guerreiros, os elmos de ouro, as armas, os instrumentos musicais serão corroídos pela umidade e pelo tempo. Os escravos e os soberanos morrerão, mas, se eu disser ao príncipe que ele também é mortal, ele me sacrificará, embora tenhamos sido iguais na infância.

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E Gudea é mortal. Esforça-se em conseguir a benevolência divina e ignora que essa benevolência consiste justamente em dar-lhe o dom de morrer um dia. Gudea perecerá, assim como Lagash perecerá nas mãos dos invasores. Os poderosos temem a morte, mas a morte não teme os poderosos”. Tudo terminará um dia, e até a lembrança e memória terminariam se eu não tivesse o poder de traçar estes ideogramas em uma mensagem secreta. A perenidade das coisas que no futuro serão somente ruínas está na escrita. A majestade dos templos ficará só na palavra, o brilho do ouro ficará só na palavra, o sangue correrá só na palavra, o príncipe ressuscitará só na palavra. O homem volta quando seu nome fica gravado para sempre, mesmo que seu corpo seja somente cinzas.

FIM

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Observações:

Você leu um conto muito bonito, escrito por um escriba sumério. Os sumérios foram um povo que viveu a mais de cinco milênios no sul da Mesopotâmia e, assim como os chineses e os egípcios, também desenvolveram uma forma de escrita. Nesse conto, o escriba reflete sobre a importância da escrita para sobreviver ao tempo, resguardar a memória. Agora pense você também, sobre como a escrita é fundamental para a humanidade. Este texto foi encontrado dentro do túmulo de um escriba. Era o escriba do príncipe Gudea, da cidade suméria de Lagash. Há registros de que esse príncipe e esta cidade realmente existiram. É um texto, de certa forma, profético: “As esculturas perderão suas cabeças...”. Muitos anos depois de este texto ter sido escrito, a estátua de Gudea perdeu sua cabeça durante uma invasão Lagash; a cabeça encontra-se exposta em um museu. (Título original do conto: “Eu, o escriba”. Traduzido e adaptado do livro historias y cuentos del alfabeto, de Eduardo Gudiño Kieffer e Hilda Torres Varela.)

Organizado por: José Arnaldo da silva

Professor de língua portuguesa e estrangeira (inglês).