2
O autor deve respeitar o leitor Flavio Farah* As obrigações do autor para com o leitor Ao escrever um livro não ficcional, isto é, um livro técnico, científico ou universitário, o autor deve cum- prir duas obrigações para com o leitor. A primeira obrigação diz respeito à forma do texto. A segunda re- fere-se ao seu conteúdo. É sobre esses deveres que quero falar. Conteudo da obra Primeiro, o conteúdo da obra. Existem muitos autores que eu chamo de “papagaios”. São os que reprodu- zem sem nenhum pudor coisas ditas por outros sem ao menos procurar entender o que significam. Um livro técnico tem que ter conteúdo, isto é, tem que apresentar uma contribuição original do autor para o conhecimento humano, por pequena que seja essa contribuição. Um indivíduo só deveria escrever um li- vro quando tivesse algo a dizer. É inaceitável que um autor se limite a repetir o que outros disseram. Ain- da que se trate apenas de esclarecer o conteúdo de outras obras, ordenar o que outros escreveram para fa- cilitar o entendimento ou comentar o que foi dito por terceiros, a obra deve acrescentar algo ao patrimô- nio intelectual da humanidade. Tenho em meu poder um livro, escrito por dois pesquisadores e professo- res universitários, que é totalmente constituído de citações de outros autores. 1 As idéias contidas na obra também devem ter um mínimo de consistência, de solidez, de utilidade, de fun- damentação. Muitos livros são como cascas sem conteúdo, produzindo no leitor a sensação frustrante de ter perdido um tempo enorme lendo um amontoado de frases vazias, fúteis, inúteis. Uma obra técnica tem, ainda, a obrigação de entregar o que promete. É falta de Ética enganar o leitor dando ao livro um tí- tulo atraente, mas que não corresponde a seu conteúdo. Forma do texto A segunda grande obrigação do autor para com o leitor refere-se à forma do texto. O autor tem obrigação de produzir um texto correto, claro e conciso. Correção quer dizer obediência à gramática. É inaceitável trazer a público um livro cujo texto esteja cheio de erros gramaticais. Como, entretanto, as editoras, em geral, possuem preparadores e revisores que cuidam para que o texto não contenha falhas de gramática, a maior preocupação recai sobre a clareza e sobre a concisão. Clareza é uma qualidade do texto que permite ao leitor captar rápida e facilmente as idéias do autor. Tex- to claro é o que se entende facilmente, sem esforço, no próprio ato da leitura. Evidentemente, dependendo da natureza da obra e do público-alvo ao qual ela é dirigida, quem escreve pode permitir-se puxar pelo ra- ciocínio do leitor, fazendo-o refletir e tirar conclusões. Mas o autor deve tomar cuidado para não exagerar no nível de dificuldade da leitura, pois, se isto ocorrer, o leitor poderá ficar frustrado por não conseguir alcançar o sentido do texto mesmo após uma série de tentativas. O dever de produzir um texto claro para o leitor torna-se muito mais imperativo quando quem escreve é um professor ou instrutor de treinamento. Afinal, esses profissionais supostamente dominam a escrita e a didática. Embora a clareza seja uma obrigação, tenho lido uma grande quantidade de textos que não con- sigo compreender à primeira leitura e que, em vez de me estimularem a fazer um esforço de entendimen- to, causam-me aversão. Vejamos um exemplo. O trecho que segue foi extraído de um livro escrito por um consultor que pretende informar o público a respeito de um novo método didático de treinamento: 2 “Uma problemática dialética serve de enquadramento geral. Tende a trabalhar tanto o contexto da operação, a lógica usada pelos grupos, como as contradições que surgem durante as discussões. A didática apóia-se na existência em cada um de nós de um esquema conceitual, referencial e operativo, chamado de ECRO, que é transformado dialeticamente durante o processo.”

O autor deve respeitar o leitor

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Ao publicar um livro não ficcional, isto é, um livro técnico, científico ou universitário, o autor tem obrigação de produzir um texto composto de idéias consistentes, úteis e fundamentadas, que seja correto, claro e conciso, cujo título seja fiel ao conteúdo, e que apresente boa diagramação, impressão e encadernação.

Citation preview

Page 1: O autor deve respeitar o leitor

O autor deve respeitar o leitor Flavio Farah*

As obrigações do autor para com o leitor

Ao escrever um livro não ficcional, isto é, um livro técnico, científico ou universitário, o autor deve cum-

prir duas obrigações para com o leitor. A primeira obrigação diz respeito à forma do texto. A segunda re-

fere-se ao seu conteúdo. É sobre esses deveres que quero falar.

Conteudo da obra

Primeiro, o conteúdo da obra. Existem muitos autores que eu chamo de “papagaios”. São os que reprodu-

zem sem nenhum pudor coisas ditas por outros sem ao menos procurar entender o que significam. Um

livro técnico tem que ter conteúdo, isto é, tem que apresentar uma contribuição original do autor para o

conhecimento humano, por pequena que seja essa contribuição. Um indivíduo só deveria escrever um li-

vro quando tivesse algo a dizer. É inaceitável que um autor se limite a repetir o que outros disseram. Ain-

da que se trate apenas de esclarecer o conteúdo de outras obras, ordenar o que outros escreveram para fa-

cilitar o entendimento ou comentar o que foi dito por terceiros, a obra deve acrescentar algo ao patrimô-

nio intelectual da humanidade. Tenho em meu poder um livro, escrito por dois pesquisadores e professo-

res universitários, que é totalmente constituído de citações de outros autores.1

As idéias contidas na obra também devem ter um mínimo de consistência, de solidez, de utilidade, de fun-

damentação. Muitos livros são como cascas sem conteúdo, produzindo no leitor a sensação frustrante de

ter perdido um tempo enorme lendo um amontoado de frases vazias, fúteis, inúteis. Uma obra técnica

tem, ainda, a obrigação de entregar o que promete. É falta de Ética enganar o leitor dando ao livro um tí-

tulo atraente, mas que não corresponde a seu conteúdo.

Forma do texto

A segunda grande obrigação do autor para com o leitor refere-se à forma do texto. O autor tem obrigação

de produzir um texto correto, claro e conciso. Correção quer dizer obediência à gramática. É inaceitável

trazer a público um livro cujo texto esteja cheio de erros gramaticais. Como, entretanto, as editoras, em

geral, possuem preparadores e revisores que cuidam para que o texto não contenha falhas de gramática, a

maior preocupação recai sobre a clareza e sobre a concisão.

Clareza é uma qualidade do texto que permite ao leitor captar rápida e facilmente as idéias do autor. Tex-

to claro é o que se entende facilmente, sem esforço, no próprio ato da leitura. Evidentemente, dependendo

da natureza da obra e do público-alvo ao qual ela é dirigida, quem escreve pode permitir-se puxar pelo ra-

ciocínio do leitor, fazendo-o refletir e tirar conclusões. Mas o autor deve tomar cuidado para não exagerar

no nível de dificuldade da leitura, pois, se isto ocorrer, o leitor poderá ficar frustrado por não conseguir

alcançar o sentido do texto mesmo após uma série de tentativas.

O dever de produzir um texto claro para o leitor torna-se muito mais imperativo quando quem escreve é

um professor ou instrutor de treinamento. Afinal, esses profissionais supostamente dominam a escrita e a

didática. Embora a clareza seja uma obrigação, tenho lido uma grande quantidade de textos que não con-

sigo compreender à primeira leitura e que, em vez de me estimularem a fazer um esforço de entendimen-

to, causam-me aversão. Vejamos um exemplo. O trecho que segue foi extraído de um livro escrito por um

consultor que pretende informar o público a respeito de um novo método didático de treinamento:2

“Uma problemática dialética serve de enquadramento geral. Tende a trabalhar tanto o contexto da operação, a lógica

usada pelos grupos, como as contradições que surgem durante as discussões. A didática apóia-se na existência em cada

um de nós de um esquema conceitual, referencial e operativo, chamado de ECRO, que é transformado dialeticamente

durante o processo.”

Page 2: O autor deve respeitar o leitor

O parágrafo acima fala de dialética. É de se perguntar: a quem a obra é dirigida? A profissionais de ges-

tão de pessoas? Essas pessoas sabem o que é dialética? Sabem aplicar a dialética a situações concretas?

É realmente indispensável que um livro sobre didática do treinamento use um conceito difícil como dialé-

tica, que poucos conhecem?

Segundo definição de uma autora,3 textos que não têm clareza são os textos “autistas” e os textos “de

vaidade”. Texto autista é o que só tem significado para o próprio autor. Só este consegue entender o que

escreveu. Texto de vaidade é aquele escrito não para ser entendido, mas para o autor demonstrar erudição,

para impressionar o leitor com seus conhecimentos sobre o assunto. Eu acrescentaria ainda os textos “cor-

porativos”. Textos corporativos são aqueles escritos para a corporação a que pertence o autor. São textos

que só podem ser entendidos pelos colegas do autor, que possuem formação idêntica à dele e compreen-

dem os termos usados na obra.

Qualquer pessoa que pretenda escrever um livro técnico deve ter em mente que, para o comprador, o ato

de ler será como uma aula expositiva na qual ele não poderá nem desejará fazer perguntas ao professor.

Ainda que o autor ponha seu e-mail na orelha da capa do livro, o leitor dificilmente lhe enviará uma men-

sagem pedindo esclarecimentos sobre esta ou aquela passagem do texto. O autor, portanto, deve ser claro

da primeira vez, pois não terá chance de corrigir a má impressão que sua falta de clareza causou no leitor.

É preciso ressaltar, ainda, que o texto deve ser claro para o público-alvo. Isto exige que o autor escreva

pensando nas pessoas a quem a obra é dirigida. Este é um aspecto muitas vezes negligenciado por quem

escreve. Para saber se o texto está claro, o autor não deve exibi-lo a seus pares. O que ele deve fazer é

submeter o texto a pessoas que façam parte do público-alvo da obra. Por exemplo, em um livro escrito

por um doutor em Psicologia Escolar,4 a apresentadora da obra, também doutora em Educação, afirmou

que o texto possui um “estilo claro, objetivo e crítico”. Claro para quem? Com certeza para ela, que é co-

lega do autor e tem a mesma formação que ele. Mas e para aqueles a quem o livro é dirigido? Não se sa-

be. A obra não contém indicações sobre o respectivo público-alvo.

A outra qualidade de um texto é a concisão. Ser conciso significa dizer muito com poucas palavras. Um

texto conciso permite alta produtividade para o leitor, que poderá conhecer todas as idéias do autor em

pouco tempo. Ser conciso significa não repetir as idéias, não se desviar do assunto, simplificar as frases,

evitar palavras supérfluas e adjetivos desnecessários.

No livro sobre didática do treinamento que citei acima, o autor não se limitou a expor um método didáti-

co, mas resolveu contar, em detalhes, uma parte de sua vida, a história de como ele veio a criar o que cha-

mou de “didática operativa”. Ele relata todos os bate-papos que teve com amigos, as bebidas que tomou,

os seminários de que participou, as dúvidas que o assaltaram etc. etc. etc. Isto em 360 páginas. Se ele ti-

vesse sido conciso e objetivo, talvez seu livro possuísse metade do tamanho ou menos, com economia de

papel, preço mais baixo e menor gasto de tempo para lê-lo.

Conclusão

Um livro técnico com idéias consistentes, úteis e fundamentadas, cujo texto é correto, claro e conciso, cu-

jo título é fiel ao conteúdo, e que apresenta boa diagramação, impressão e encadernação. Tudo isto com-

põe um produto de qualidade, que tem valor para o público-alvo, isto é, para os clientes potenciais.

Notas (1) O título do livro e os nomes dos autores foram omitidos por razões éticas.

(2) O título do livro e o nome do autor foram omitidos por razões éticas.

(3) BELLOTO, Sonia. Você já pensou em escrever um livro? São Bernardo do Campo, SP: SAMM Editora, s/d.

(4) O título do livro e os nomes do autor e da apresentadora foram omitidos por razões éticas.

*Flavio Farah é Mestre em Administração de Empresas, Professor Universitário e autor do livro “Ética na gestão de pessoas”. Contato: [email protected]