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O filme “Entre os muros da escola”: teatro da incompetência de um professor Flavio Farah* Introdução O filme francês “Entre os Muros da Escola” (Entre les murs), dirigido por Laurent Cantet e ganha- dor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2008, baseia-se no livro homônimo de François Bé- gaudeau, professor de francês na vida real que também é o ator principal do filme, fazendo o papel do professor François Marin. A obra retrata o cotidiano de uma escola pública francesa do subúrbio parisiense, focalizando uma classe da 7ª série composta de adolescentes das classes menos abasta- das e de filhos de imigrantes provenientes de ex-colônias francesas da África, Ásia e América Lati- na. A imprensa tem-se referido ao filme como: “um retrato da nova sociedade francesa, onde miscige- nação, desigualdade social e choque cultural confrontam os ideais de liberdade, igualdade e frater- nidade”; 1 “choque de civilizações”, expressão que sintetiza a relação entre o professor e os estu - dantes; 2 o ressalto de uma diferença cultural e social que gera incompreensão e atrito entre as partes; 3 uma obra em que “há um diretor empolado, professores fúteis, discussões inúteis e reu- niões tão enfadonhas que até o público do filme não aguenta”; 4 demonstração de que “a escola transformou-se em um tribunal, em um espaço de jugo e não de pensamento”; 5 um choque entre as culturas africana, árabe, asiática e europeia; 6 uma película que mostra “alunos com diversos proble- mas pessoais e familiares (...), completamente desinteressados em aprender as conjugações do pre- térito imperfeito ou o teorema de Pitágoras”; 7 palco para exibição, por parte dos alunos, de ma- nifestações claras de indisciplina e agressividade, déficits de atenção, hiperatividade”; 8 um filme que exprime “o conflito entre professor e alunos, que questionam e são agressivos, onde é comum o relato de desrespeito ao mestre”; 9 um retrato da tensão entre alunos e professores e do questiona- mento do ensino na França; 10 abordagem de temas tais como o respeito mútuo, os limites, o papel do educador, o papel dos pais e como lidar com comportamentos rebeldes; 11 “desconcertante radio- grafia do processo pedagógico como base angular do regime democrático”; 12 um filme sobre “alu- nos indisciplinados, diferenças culturais, problemas de aprendizado” e sobre “histórias reais, huma- nas”. 13 Talvez o filme seja tudo isso. Todavia, se, por um lado, os alunos ali retratados podem ser acusados de serem mal-educados e agressivos por quem não conhece a psicologia do adolescente, por outro, confesso que, como membro do magistério e professor de Ética e de Relações Humanas, fiquei mui- to incomodado com o desempenho docente de François Marin, o professor de francês que é a prin- cipal personagem da película. Em meu modo de ver, o professor Marin exibe, tanto do ponto de vis- ta pedagógico como no tocante ao relacionamento com os alunos, deficiências tão visíveis que não podem passar sem reparo. Para entender as deficiências de Marin, porém, é preciso antes examinar as características dos adolescentes.

O filme "Entre os muros da escola": teatro da incompetência de um professor

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O filme francês “Entre os Muros da Escola” (“Entre les murs”), dirigido por Laurent Cantet e ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2008, baseia-se no livro homônimo de François Bégaudeau, professor de francês na vida real e também ator principal do filme, no qual interpreta o professor François Marin. A obra retrata o cotidiano de uma escola pública francesa do subúrbio parisiense, focalizando uma classe da 7ª série composta de adolescentes das classes menos abastadas e de filhos de imigrantes provenientes de ex-colônias francesas da África, Ásia e América Latina. No filme, o professor Marin exibe deficiências tão gritantes que não podem passar sem reparo.

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Page 1: O filme "Entre os muros da escola": teatro da incompetência de um professor

O filme “Entre os muros da escola”: teatro da

incompetência de um professor Flavio Farah*

Introdução

O filme francês “Entre os Muros da Escola” (Entre les murs), dirigido por Laurent Cantet e ganha-

dor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2008, baseia-se no livro homônimo de François Bé-

gaudeau, professor de francês na vida real que também é o ator principal do filme, fazendo o papel

do professor François Marin. A obra retrata o cotidiano de uma escola pública francesa do subúrbio

parisiense, focalizando uma classe da 7ª série composta de adolescentes das classes menos abasta-

das e de filhos de imigrantes provenientes de ex-colônias francesas da África, Ásia e América Lati-

na.

A imprensa tem-se referido ao filme como: “um retrato da nova sociedade francesa, onde miscige-

nação, desigualdade social e choque cultural confrontam os ideais de liberdade, igualdade e frater-

nidade”;1 “choque de civilizações”, expressão que sintetiza a relação entre o professor e os estu-

dantes;2 o ressalto de uma diferença cultural e social que gera incompreensão e atrito entre as

partes;3 uma obra em que “há um diretor empolado, professores fúteis, discussões inúteis e reu-

niões tão enfadonhas que até o público do filme não aguenta”;4 demonstração de que “a escola

transformou-se em um tribunal, em um espaço de jugo e não de pensamento”;5 um choque entre as

culturas africana, árabe, asiática e europeia;6 uma película que mostra “alunos com diversos proble-

mas pessoais e familiares (...), completamente desinteressados em aprender as conjugações do pre-

térito imperfeito ou o teorema de Pitágoras”;7 palco para exibição, por parte dos alunos, de ma-

nifestações claras de indisciplina e agressividade, déficits de atenção, hiperatividade”;8 um filme

que exprime “o conflito entre professor e alunos, que questionam e são agressivos, onde é comum o

relato de desrespeito ao mestre”;9 um retrato da tensão entre alunos e professores e do questiona-

mento do ensino na França;10

abordagem de temas tais como o respeito mútuo, os limites, o papel

do educador, o papel dos pais e como lidar com comportamentos rebeldes;11

“desconcertante radio-

grafia do processo pedagógico como base angular do regime democrático”;12

um filme sobre “alu-

nos indisciplinados, diferenças culturais, problemas de aprendizado” e sobre “histórias reais, huma-

nas”.13

Talvez o filme seja tudo isso. Todavia, se, por um lado, os alunos ali retratados podem ser acusados

de serem mal-educados e agressivos por quem não conhece a psicologia do adolescente, por outro,

confesso que, como membro do magistério e professor de Ética e de Relações Humanas, fiquei mui-

to incomodado com o desempenho docente de François Marin, o professor de francês que é a prin-

cipal personagem da película. Em meu modo de ver, o professor Marin exibe, tanto do ponto de vis-

ta pedagógico como no tocante ao relacionamento com os alunos, deficiências tão visíveis que não

podem passar sem reparo. Para entender as deficiências de Marin, porém, é preciso antes examinar

as características dos adolescentes.

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Adolescentes

Características

Adolescência é uma fase de transição entre a infância e a idade adulta. Essa fase se caracteriza por

alterações nos níveis físico, mental e social do indivíduo e significa um afastamento das formas de

comportamento típicas da infância e a aquisição gradativa de características e competências que ca-

pacitarão a pessoa a assumir os deveres e papéis sociais de um adulto.14

As manifestações externas* de conduta do adolescente são culturalmente diferentes. As atitudes e

as ideias, porém, são essencialmente as mesmas no mundo todo. O adolescente em busca de sua

identidade adulta passa por um período turbulento em que comportamentos considerados anormais

ou patológicos em outras fases do desenvolvimento devem ser considerados normais nessa transição

para a vida adulta. Em conjunto, essas várias modalidades de conduta podem ser denominadas sín-

drome da adolescência normal.* 15

A adolescência corresponde a um período de descobertas dos próprios limites, de questionamento

dos valores e das normas familiares e de intensa adesão aos valores e normas do grupo de amigos.

Nessa medida, é um tempo de rupturas e aprendizados, uma etapa caracterizada pela necessidade de

integração social, pela busca da autoafirmação e da independência individual e pela definição da

identidade sexual.16

Nessa etapa do desenvolvimento, o indivíduo passa por momentos de desequilíbrios e instabilidades

extremas, sentindo-se muitas vezes inseguro, confuso, angustiado, injustiçado e incompreendido por

pais e professores, o que pode acarretar problemas no relacionamento do adolescente com as pes-

soas mais próximas do seu convívio social.17

Uma das principais características dos adolescentes é a busca da independência em relação aos pais.

Ao mesmo tempo, eles se tornam extremamente conscientes de como os outros os vêem, principal-

mente seus pares – amigos e colegas – e tentam desesperadamente ser aceitos por seu grupo. Seus

pares se tornam muito mais importantes do que os pais como referência para a tomada de decisão.

Essa busca de independência frequentemente se reflete na diferença de opiniões em relação a pai e

mãe, no distanciamento físico destes, na tentativa de se comportar assertivamente e de se rebelar

contra o controle parental.18

Os adolescentes insistem que estão suficientemente crescidos para serem independentes, ao passo

que seus pais discordam. É comum os pais considerarem que seus adolescentes são adultos o sufi-

ciente para assumir novas responsabilidades mas, por outro lado, tentam mantê-los em uma situação

de subordinação infantil. Em outras palavras, os pais atribuem mais deveres aos filhos, porém sem

lhes concederem mais direitos, o que frequentemente causa conflitos. Esses conflitos apontam no

sentido de que os pais precisam negociar com seus filhos adolescentes as relações entre ambas as

partes, deixando-os participar da tomada de decisão e da fixação das regras que os afetam.19

Os adolescentes não querem ser como seus pais e tentam se diferenciar deles. O motivo é que eles

não vêem mais seus pais como pessoas perfeitas. Em tais condições, os adolescentes se tornam bas-

*grifos do autor.

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tante críticos em relação aos pais e deixam de respeitar sua autoridade parental. Não obstante, eles

também são capazes de expressar aprovação. O que eles mais valorizam é honestidade, confiabili-

dade e coragem. Os adolescentes apreciam principalmente as ações autênticas, desprezando pala-

vras vazias e promessas não cumpridas.20

Muitos pais não entendem porque seus adolescentes às vezes se comportam de modo impulsivo,

irracional ou perigoso. Há uma explicação biológica para esse comportamento. Existe uma região

do cérebro chamada amídala que é responsável por reações instintivas tais como medo e compor-

tamento agressivo. Esta região se desenvolve cedo. Em contraste, o córtex frontal, área do cérebro

que controla o raciocínio e que nos ajuda a pensar antes de agir, desenvolve-se mais tarde. Esta

parte do cérebro continua a se modificar e a amadurecer bem depois da idade adulta. As ações dos

adolescentes são guiadas mais pela amídala do que pelo córtex frontal. Assim, em função do estágio

de desenvolvimento de seu cérebro, os adolescentes tendem a agir por impulso, interpretar errada-

mente emoções e estímulos, adotar comportamentos perigosos e envolver-se em brigas e acidentes.

Assim, é menos provável que eles pensem antes de agir, reflitam sobre as consequências de suas

ações ou modifiquem comportamentos perigosos ou inadequados.21

Nessa fase, é comum os jovens

apresentarem reações e comportamentos impulsivos. Portanto, nem sempre palavras ditas de

maneira agressiva ou arrogante são fruto da falta de educação.22

As mudanças físicas que se desencadeiam a partir da puberdade são experimentadas, em geral, com

muita ansiedade pelos adolescentes. Essas mudanças súbitas e dramáticas deixam-nos muito sensí-

veis em relação à própria aparência. Seu status na sociedade escolar e, pois, seu nível de auto-esti-

ma e auto-confiança ficam intimamente ligados ao seu “visual”.23

Atitude em relação à escola

Os adolescentes normalmente percebem a escola como inútil. O desempenho escolar é percebido

como tendo importância apenas para os adultos, não para eles. Os jovens tendem a evitar o trabalho

duro, a menos que seja realmente necessário. A insegurança deles é aumentada pelo fato de que as

disciplinas das séries pertencentes à segunda metade do ensino fundamental são mais difíceis de

entender. Os jovens em geral não possuem motivação intrínseca para estudar. A maioria não perce-

be o trabalho escolar como interessante ou compensador. A escola é vista como um lugar que apre-

senta algumas características que lembram uma prisão.24

Atitude em relação aos professores

Já foi mencionado que os adolescentes são muito críticos em relação aos pais. Essa atitude crítica se

estende a todas as autoridades, inclusive aos professores. Os adolescentes não aceitam as decisões e

opiniões dos mestres incondicionalmente. Eles não reconhecem autoridades formais. Os jovens

reconhecem apenas o que eles procuram, aquilo que os impressiona e as coisas que eles apreciam.

Se eles aceitarem a autoridade do professor, não será por causa de seu cargo, mas sim em razão de

sua personalidade e de seu comportamento. Os adolescentes gostam de mestres que não declaram a

toda hora sua posição superior ou sua autoridade. Eles valorizam o senso de humor do professor,

sua capacidade de entendê-los e sua disposição em ouvir as opiniões deles. Os jovens tendem a

entrar em conflito com professores que os tratam como crianças.25

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Os adolescentes têm um senso de certo e errado altamente desenvolvido e a expectativa geral entre

eles é de serem tratados com Respeito e Justiça por seus professores, apesar de não terem certeza de

seu valor pessoal, de sua capacidade e de sua inteligência. A maioria dos jovens não deseja mestres

que sejam seus amigos, mas professores que os valorizem e respeitem. Querem que os docentes os

vejam como indivíduos com ideias próprias. Também querem participar de decisões relativas ao

funcionamento da aula de modo que se sintam autores das regras e comprometidos com estas.26

Os adolescentes do filme

Os alunos do professor Marin demonstram possuir praticamente todas as características citadas

acima. Eles exibem a necessidade de autoafirmação e de independência individual e demonstram o

início da definição da identidade sexual por intermédio do interesse no sexo oposto. Eles demons-

tram insegurança e o sentimento de serem injustiçados e incompreendidos. Eles possuem opiniões

diferentes das do professor e exageram no comportamento assertivo, descambando para a agressivi-

dade. Essa agressividade é alimentada por sua percepção de que são “perseguidos” pelo professor, o

qual deseja “vingar-se” deles.

Os adolescentes de “Entre os muros da escola” questionam a todo momento as afirmações do pro-

fessor Marin, cobrando-lhe coerência, equidade e conhecimento. Na medida em que eles percebem,

no discurso do mestre, incoerências ou falta de conhecimento, ou falta de equidade em suas atitu-

des, eles se rebelam contra sua autoridade. Esses alunos exibem a todo momento seu comportamen-

to impulsivo, caracterizado principalmente por falar sem pensar, por interpretar erradamente o que o

professor diz, por envolver-se em brigas e por dar livre vazão a seus sentimentos, ainda que essas

reações lhes criem problemas. Eles demonstram extrema sensibilidade e irritabilidade em relação a

qualquer declaração que lhes pareça ser uma crítica ou uma afirmação depreciativa sobre sua

pessoa. Eles também são muito sensíveis em relação à própria aparência. Por fim, mas não menos

importante, eles demonstram possuir sede de Justiça e de Respeito.

Os alunos do professor Marin percebem a escola como aborrecida. No filme, durante as aulas, em

vários momentos percebe-se alguns estudantes com a cabeça deitada sobre a carteira e outros com o

olhar distante. Em geral, eles não fazem as tarefas de casa que o mestre lhes pede.

O relacionamento do professor Marin com os alunos

A escola retratada no filme

Antes de falar sobre o professor Marin, é preciso ressaltar que ele leciona em uma organização

autoritária, uma escola repleta de regras e normas, fortemente hierárquica, na qual os alunos não

possuem direitos, apenas deveres, devem obediência irrestrita às autoridades escolares e são impedi-

dos de expressar qualquer tipo de crítica. Os estudantes têm que tirar o boné para entrar em sala de

aula; devem entrar em fila, sendo recebidos por Marin, que entra por último; têm que pedir licença

para falar, levantando a mão; têm que pedir licença para sair da sala e para se levantar, ainda que

seja apenas para prestar ajuda a um colega; têm que se levantar para receber o Diretor. É surpreen-

dente encontrar uma cultura escolar como essa na França, país integrante da Europa Ocidental e su-

postamente portador de uma democracia sólida e avançada.

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Na escola do professor Marin, a relação entre professores e alunos é autoritária e fortemente hierár-

quica, pois baseada na obediência e na punição. A culpa por todos os problemas de aprendizagem é

atribuída aos alunos. Em tais condições, e como consequência de uma cultura que nunca pensa em

ajudar, mas apenas em punir, ali não se nota, em nenhum instante, a presença de um psicólogo

escolar. Esse profissional poderia, entre outras atribuições, realizar aconselhamento psicológico

junto aos estudantes e/ou seus responsáveis, bem como orientar os professores no entendimento das

características psicológicas genéricas da adolescência e, quando necessário, na compreensão dos

momentos existenciais específicos de cada aluno, auxiliando, dessa forma, os docentes a lidarem

com os estudantes no dia a dia. Se a escola retratada no filme contasse com a assistência de um

psicólogo, seriam minimizados muitos problemas que afligem a instituição.

Um fato que chama a atenção é a presença de dois representantes discentes nas reuniões do

Conselho de Classe (não confundir com o Conselho Disciplinar) que é presidido pelo Diretor.

Os representantes discentes mostrados no filme são as alunas Esmeralda e Louise. O Conselho

costuma reunir-se para avaliar o desempenho dos alunos por ocasião da emissão dos boletins. Em

uma dessas reuniões, vê-se as representantes conversando e rindo alto durante toda a reunião, sem

que o Diretor tome alguma atitude, adequada ou não. Aliás, é difícil compreender o papel dos repre-

sentantes discentes nessas reuniões. A impressão que se tem é de que eles exercem uma função

meramente decorativa, uma espécie de “verniz” para dar a aparência de democracia a um ambiente

não democrático. Sua presença parece mesmo ser contraproducente pois, durante as reuniões, os

professores emitem opiniões sobre os alunos, e essas opiniões podem facilmente ser mal interpre-

tadas pelos adolescentes. Os acontecimentos que provocaram a expulsão do aluno Souleymane são

um exemplo típico e trágico desse problema. Por outro lado, no filme não se percebe a existência do

representante de classe. A escola, assim, perde a oportunidade de usar o exercício do papel de repre-

sentante de turma como meio de treinamento dos jovens para a cidadania.

Lá não existe justiça para os estudantes. Outra vez, o incidente que resultou na expulsão de Souley-

mane, bem como o próprio processo de expulsão, ilustram bem esse fato. Vejamos.

Durante a aula, Marin diz que Esmeralda e Louise se comportaram como vagabundas na reunião do

Conselho de Classe. Todos os alunos ficam chocados. Segue-se uma discussão áspera. Marin, por

meio de um patético contorcionismo verbal, tenta convencê-los de que não xingou as alunas. Sou-

leymane defende-as. Marin discute asperamente com ele. Os colegas tentam acalmá-lo. Souleymane

fica cada vez mais descontrolado, xinga colegas e professor, pega sua mochila, levanta-se e começa

a se encaminhar para a porta. Marin tenta impedi-lo – porque Souleymane não pediu licença para

sair – e o aluno Carl o segura para evitar que ele cometa uma infração disciplinar. Souleymane tenta

se libertar com um puxão e acaba atingindo a aluna Khoumba no rosto com a mochila. Ela começa

a sangrar. Souleymane sai da sala. Posteriormente, Marin preenche um “Relatório de Incidente” so-

bre o ocorrido mas nele não menciona sua ofensa às alunas.

Na reunião do Conselho Disciplinar para decidir sobre a penalidade a ser aplicada a Souleymane,

estão presentes: os membros do Conselho – inclusive Marin, que faz parte do órgão – bem como o

acusado e sua mãe, que é malinesa e não fala francês. Souleymane tem que traduzir para ela tudo

que os outros falam bem como verter para o francês o que ela diz. Também estão presentes dois

representantes discentes, que, aparentemente, não têm direito a voz nem a voto. O Diretor lê o

“Relatório de Incidente” elaborado por Marin. Depois, concede a palavra ao acusado, que se cala.

Sua mãe, então, toma a palavra e faz sua defesa, argumentando que ele é um bom filho, relatando

fatos sobre seu comportamento exemplar em casa para apoiar sua defesa. Logo a seguir, um profes-

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sor, membro do Conselho, apresenta uma questão de ordem, apoiado por outra docente. Eles contes-

tam o fato de Marin, professor envolvido no incidente, estar participando do julgamento. O Diretor

decide, monocraticamente, rejeitar a questão de ordem e não a coloca em votação perante o Conse-

lho. O Conselho vota, decidindo pela expulsão de Souleymane.

Percebe-se que a decisão foi tomada exclusivamente com base no relatório elaborado por Marin.

Não se instaurou uma sindicância, não se ouviram testemunhas – que seriam os alunos. Não se

considerou a existência de circunstâncias atenuantes. Não se levou em conta o fato de que Khoumba

foi ferida por acidente e que as infrações cometidas por Souleymane foram consequência de sua

tentativa de defender a honra das colegas. Em relação a Marin, cabem três protestos: primeiro, ele

atuou no processo simultaneamente como denunciante e juiz; segundo, embora estivesse de fato

envolvido no incidente, ele não se declarou impedido de atuar no julgamento; terceiro, o Diretor

não colocou em votação a questão de ordem levantada por dois membros do Conselho, decidindo

sozinho o assunto. Provavelmente, Souleymane não quis se defender porque acreditava que a

decisão de expulsá-lo já estava tomada. Ele não tinha um advogado ou defensor para aconselhá-lo.

Como se relacionar com alunos adolescentes

Para entendermos o problema das relações entre o professor Marin e os estudantes, vamos antes

examinar as indicações relativas ao relacionamento com alunos adolescentes. Essas indicações são

baseadas em meus conhecimentos de Ética e de Relações Humanas e em minha prática como pro-

fessor, bem como colocam-se como consequência lógica das características da adolescência descri-

tas anteriormente. As indicações relativas à Ética, isto é, as indicações concernentes ao Respeito e à

Justiça, são incondicionalmente obrigatórias. As outras são apenas recomendações.

Respeite os alunos. Não pratique o assédio sexual tampouco o assédio moral; não seja

agressivo; não ameace fisicamente os estudantes; não os ofenda; não abuse de sua autoridade de

professor – use-a exclusivamente em benefício do ensino; não critique os alunos em público;

não lhes faça gestos de desprezo; não deixe de responder a quaisquer idéias, proposições ou

sugestões deles; não ignore sua presença; não os desacredite nem desmereça o trabalho deles;

não minta para eles; cumpra o que promete; não faça promessas que não pode cumprir; não exija

deles serviço em seu benefício pessoal nem os obrigue a cometer atos antiéticos; não divulgue

dados pessoais dos alunos; não trate os estudantes com sarcasmo, ironia ou escárnio. Não

coloque rótulos nos alunos – por exemplo, não chame o aluno de preguiçoso. Não critique a per-

sonalidade dos estudantes, mas apenas seu comportamento concreto, quando for o caso. Assim

como você, os alunos também têm direitos humanos. Respeite esses direitos, como por exemplo,

a intimidade e o direito de privacidade.

Seja justo com os alunos. Assegure-se de que sejam justas suas decisões bem como as regras

que você estabelecer; assegure-se de que o processo de aplicação de penalidades disciplinares

seja justo; não se recuse, se inquirido, a dar explicações aos alunos sobre suas regras e decisões

– esteja preparado para justificar essas decisões e regras. Se você não for capaz de encontrar

uma justificativa lógica e convincente para uma decisão sua, revogue-a; se você não conseguir

justificar uma regra que você mesmo(a) criou, elimine-a. Trate todos os alunos igualmente, sem

favoritismos ou preconceitos. Dê-lhes as mesmas tarefas. Se você notar que um aluno está mais

adiantado que os outros, ofereça-lhe tarefas mais desafiadoras, porém extra-classe, isto é, fora

do programa oficial.

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Seja educado com os alunos. Aprenda a dizer-lhes “Por favor”, “Obrigado”, “Com licença” e

“Desculpe”. O fato de você ser professor e deles serem “apenas” adolescentes não dispensa a

necessidade de você ser bem educado. Ademais, você tem o dever de dar o exemplo.

Deixe as regras claras. Estabeleça com os alunos um contrato didático que contenha normas

claras e razoáveis. Este contrato deverá conter regras sobre temas como tarefas para casa,

prazos, comportamento e linguagem adequados em sala de aula e ainda respeito pelos colegas e

pelas coisas dos outros. Este contrato deverá ser ampliado ou modificado na medida das

necessidades. Assegure-se de que os alunos entendam plenamente essas regras. Permita que os

alunos expressem suas dúvidas sobre elas e esteja pronto para justificá-las de forma

convincente. Se você não for capaz de justificar de forma lógica e convincente uma regra que

você mesmo(a) criou, elimine-a.

Estimule a reflexão sobre as regras. Estimule os alunos a refletir sobre as regras que você

estabeleceu e sobre as expectativas que você tem em relação a eles. Por exemplo, sobre a regra

de não usar o celular dentro da classe, examine com eles a razão (por quê) e a finalidade (para

quê) da regra, bem como as vantagens e desvantagens de sua adoção. Faça-os imaginar o que

aconteceria se a regra não existisse e ocorresse uma situação-limite.

Economize sua munição. Não declare genericamente que você está em posição superior à dos

alunos ou que você é uma autoridade ou que tem direitos de professor. Os alunos sabem disso.

Se precisar afirmar seus direitos, faça isso apenas quando necessário, isto é, quando ocorrer uma

situação específica. Declare então seu direito em relação a essa situação. Por exemplo, se, em

uma prova, algum aluno questionar o valor das questões, diga que você tem o direito de

estabelecer o valor de cada questão.

Mantenha distância. Não se envolva amorosamente muito menos sexualmente com qualquer

aluno enquanto for seu professor ou tiver possibilidade razoável de sê-lo. Lembre-se: sua rela-

ção com eles deve ser estritamente acadêmica. Não faça nem aceite convites para se encontrar

fora da escola, reservadamente, com qualquer aluno, do sexo oposto ao seu, estando ele(a)

sozinho(a). Seja educado e amigável, mas não amigo(a), muito menos amigo(a) íntimo(a).

Aceite o feedback. Ouça o feedback dos alunos sobre seu próprio comportamento como profes-

sor, reflita sobre esse feedback e tente mudar os aspectos de sua conduta que forem inadequados.

Mantenha a calma. Em sala de aula, evite demonstrações de raiva ou irritação. Mantenha a

calma, ainda que o aluno se descontrole. Como professor, você tem obrigação de manter o

controle. Não caia na armadilha de entrar em uma discussão emocional com o estudante.

Seja sábio. Seja coerente, fazendo aquilo que você prega. Fique tranquilo. Você não tem

obrigação de saber tudo nem de decidir tudo em sala de aula imediatamente. Se necessário, diga:

“Vou pensar no assunto”. Reflita sobre o problema e informe sua decisão à classe na aula

seguinte. Se não souber algo, diga: “Não sei” e procure se informar sobre a questão para esclare-

cê-la posteriormente aos alunos. Você não perderá a autoridade por causa disso. Pelo contrário,

ganhará o respeito da classe.

Seja paciente. Explique com calma, paciência e didática o que os alunos não entenderem ou

entenderem erradamente.

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Trate bem os alunos. Trate os alunos como adultos; ouça, entenda e leve a sério suas opiniões.

Não critique sua aparência física, tampouco seu vestuário ou os adereços que eles usam apenas

porque você não gosta. Aceite-os como eles são.

Não queira ser Deus. Não tente parecer perfeito porque nenhum adolescente acreditará em sua

perfeição e a única coisa que você conseguirá é ficar desmoralizado. Fale sobre algum erro que

você cometeu. Você parecerá humano e modesto aos olhos dos alunos, atrairá a simpatia deles e

os estimulará a falarem sobre seus próprios erros.

Mantenha-se dentro da legalidade. Não apreenda o celular ou outro objeto de um aluno. Em

muitos países, a apreensão e o confisco de bens só podem ser feitos por agentes públicos e com

base em lei ou decisão judicial. Por outro lado, no tocante ao seu relacionamento pessoal com os

alunos, lembre-se que, se mantiver uma relação íntima com alguém que não atingiu a

maioridade, você poderá sofrer um processo criminal.

O relacionamento do Professor Marin com os alunos

Face às características exibidas por seus alunos adolescentes, e face às práticas de relacionamento

indicadas no item anterior, como se comporta o Professor Marin? No ambiente autoritário da escola

em que leciona, Marin se sente totalmente à vontade, pois ele próprio é uma pessoa autoritária.

Como professor autoritário, Marin entende possuir poder ilimitado em sala de aula, um poder que

não é cerceado por qualquer obrigação de natureza ética. Essa sua percepção de poder sem limites é

reforçada, por exemplo, pelo fato de ele, aparentemente, não ter sofrido qualquer condenação moral

dos colegas ou do Diretor por ter chamado duas alunas de “vagabundas”.

Marin não tem consciência ética. Ele não respeita seus alunos. Usa, com frequência, a ironia quando

fala com eles e os ofende, por exemplo, rotulando uma aluna de “insolente” e “histérica”. Em sua

mente, inexiste a igualdade de direitos humanos entre professores e alunos. Em certo momento, em

meio a uma de suas muitas acaloradas discussões com os estudantes, ele lhes diz: “Eu sou professor

e posso falar coisas que vocês não podem!” Quando chamou duas alunas suas de “vagabundas”, ele

se envolveu em uma prolongada batalha verbal com a classe na tentativa de convencer os estudantes

de que não as tinha ofendido, apesar de ter feito essa admissão para a Coordenadora Pedagógica.

Marin não tem consciência de que ele tem obrigação de se desculpar com as alunas não apenas

porque ele considera estar em posição superior mas também porque ele ignora que, na injúria, existe

um elemento subjetivo, que é a percepção da própria vítima de ter sido ofendida. Isto quer dizer

que, se um indivíduo me diz: “Você me ofendeu”, não devo responder “Não ofendi”, muito menos

contestá-lo sob o argumento de que minha intenção não foi essa. Devo, simplesmente, pedir descul-

pas porque apenas o outro é que sabe se ele se sentiu ofendido ou não. Para Marin, porém, a ideia

de pedir desculpas a um aluno deve parecer absurda. Em contraste, ele exigiu que uma das alunas se

desculpasse com ele por ter-se recusado a ler um capítulo de livro. E mais: exigiu que ela usasse as

palavras exatas indicadas por ele e que expressasse as desculpas “com sinceridade”. Isto significa

que ele humilhou a jovem triplamente. Exigir que alguém nos peça desculpas é incabível não ape-

nas porque a exigência humilha o outro mas também porque o pedido forçado de desculpas não

assegura que o outro se arrependeu. A exigência de desculpas, portanto, é um ato antiético e tam-

bém ineficaz em relação ao ofensor. Para ser ético e eficaz, qualquer pedido de desculpas deve ser

espontâneo.

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O autoritarismo de Marin é ilustrado por outras atitudes suas, como por exemplo, na situação em

que os alunos estão redigindo um texto. A aluna Dalla pergunta a uma colega quanto tempo falta

para terminar o prazo dado pelo professor e Marin a repreende: “Dalla, pode perguntar para mim

quanto tempo falta”.

Outro exemplo. As alunas que foram ofendidas por Marin se queixaram para a Coordenadora Peda-

gógica, a qual procurou o professor para confirmar a veracidade da acusação. Marin acabou por ad-

mitir a ofensa e, ato contínuo, dirigiu-se aos alunos que estavam no pátio, reclamando do fato de o

terem denunciado ao Conselho Disciplinar e dizendo que poderiam ter falado com ele antes. Marin,

porém, esqueceu que a conversa que ele desejava já havia ocorrido em sala de aula, sob a forma de

uma áspera discussão. Os alunos, portanto, nada mais tinham a falar com ele sobre o caso. Na

verdade, Marin pensa que eles não tinham o direito de denunciá-lo, como se vê nesta parte da

conversa:

Marin: – Poderiam ter falado comigo antes, não?

Louise: – Os professores fazem isso com os alunos. Fizemos igual.

Marin: – Não, o contrário não vale.

Uma deficiência de Marin no tocante às relações com os alunos é a frequência com que ele “bate

boca” com a classe. Por exemplo, a certa altura, o aluno Souleymane interrompeu a aula e lhe disse:

“Parece que ontem, no Conselho de Classe, o senhor me ferrou”. Em vez de dizer ao estudante ape-

nas: “Vamos conversar quando a aula terminar” e depois aproveitar a oportunidade para explicar-

lhe em detalhes o que aconteceu – ele não “ferrou” Souleymane, pelo contrário, defendeu-o – Marin

começou a discutir com ele. Outros alunos intervieram na discussão e a aula ficou interrompida por

longo tempo, prejudicando o restante da classe.

Não pode passar sem comentário o incidente com a aluna Khoumba. Marin pergunta quem quer ler

um trecho do livro “O Diário de Anne Frank”. Ninguém se apresenta. Ele pede a Khoumba que leia.

Ela se recusa, dizendo que não está a fim de ler. Ele rebate dizendo: “E desde quando a vontade de

vocês é o que vale aqui?” Marin chama-a de insolente e discute com ela. A certa altura da discus-

são, ele diz que tem direito de pedir que ela leia. Ela nega, com a justificativa de que ninguém leu o

livro e ele a escolheu para ler porque quer “pegar no seu pé”. No final, Marin manda-a calar a boca.

Marin poderia ter colocado o tema da leitura dentro do contrato didático. Então, quando ela se recu-

sou a ler, em vez de responder agressivamente, ele poderia ter lembrado a Khoumba que aquilo

fazia parte das regras. Ele não deveria tê-la chamado de insolente muito menos mandá-la calar a

boca.

Outra deficiência sua de relacionamento é o fato de ele criticar os alunos, individual ou coletiva-

mente, como na situação em que ele lhes diz: “Já vi que não conseguem se concentrar numa coisa

por mais de 20 segundos, como [se fossem] crianças de 3 anos. Alunos com 13, 14, 15 anos, como

vocês parecem ter, reponderiam a pergunta em um minuto e pronto”.

Page 10: O filme "Entre os muros da escola": teatro da incompetência de um professor

A pedagogia do professor Marin

Como lecionar para alunos adolescentes

Para entendermos as deficiências pedagógicas do professor Marin, devemos antes examinar as

práticas recomendadas para o ensino de estudantes adolescentes. Essas práticas são fundamentadas

nas características dos adolescentes relacionadas no item 2.1, em sua atitude em relação à escola,

descrita no item 2.2, e em sua atitude em relação aos professores, descrita no item 2.3.27

Lecione conceitos estabelecendo conexões significativas com as experiências de vida dos estu-

dantes, bem como utilizando recursos e atividades diversificados que estabeleçam relações com

essa experiência. Cabe a você descobrir quais são essas vivências.

Use métodos didáticos diversificados que correspondam aos estilos de aprendizagem preferidos

dos estudantes: auditivo, visual e cinestésico. Use estratégias como: histórias, atividades em du-

plas, tríades e grupos, diálogos, debates, apresentações etc.

Invista tempo para identificar e comunicar aos estudantes as razões pelas quais eles precisam

aprender os principais conceitos e habilidades previstos no programa. Cabe a você demonstrar

como esses conceitos e habilidades se relacionam com a vida deles.

Faça os alunos adquirirem habilidades de leitura e interpretação de textos. Ajude-os a estabele-

cerem relações entre as informações contidas nos textos e conceitos que sejam significativos

para eles. Escolha textos interessantes e que sejam desafiadores para eles. Demonstre as habili-

dades que você usa ao ler e mostre como pensar como cientista, historiador, matemático, crítico

literário, artista ou especialista em algum assunto. Ensine-os a pesquisar e obter informações na

internet.

Crie atividades introdutórias que relacionem novas ideias com exemplos e situações que sejam

relevantes ou familiares aos alunos.

Dê feedback aos alunos sobre seu progresso na aprendizagem, seu sucesso no alcance de metas e

sua melhoria em comportamentos que facilitam a aprendizagem. Quando der feedback a eles,

nunca machuque sua auto-estima. Quando lhes fornecer orientação, use uma linguagem direta e

neutra.

Dê um feedback corretivo o quanto antes. Valorize o trabalho dos alunos. Faça com que eles

avaliem suas próprias capacidades e identifiquem suas necessidades de aprendizagem. Por ou-

tro lado, valorize os comportamentos adequados e produtivos. Evite a tendência de focar apenas

os comportamentos negativos.

Invista algum tempo para conhecer seus alunos em relação a seus estilos e necessidades de

aprendizagem, aptidões, características culturais e experiências de vida. Use essas informações

para planejar estratégias pedagógicas que aumentem a motivação e o interesse dos estudantes.

Seu interesse pelas experiências de vida dos alunos será um sinal de que você valoriza os pon-

tos de vista e as contribuições deles.

Page 11: O filme "Entre os muros da escola": teatro da incompetência de um professor

Durante as primeiras duas ou três semanas de aula, passe-lhes o mesmo tipo de tarefa de casa

para que eles entendam a rotina bem como o que você espera deles em relação às tarefas. Pos-

teriormente, comece a variar o tipo, extensão e complexidade das atividades. Quando pedir-lhes

uma tarefa, forneça todos o detalhes relevantes sobre forma e conteudo da atividade e verifique

se os alunos entenderam tudo. Quando a tarefa for mais extensa, acompanhe periodicamente o

andamento do trabalho e sua correção.

Converse com o aluno em particular quando você notar que ele se tornou desatento, ou começou

a faltar ou a se atrasar com frequência, quando você notar qualquer outro indício de desempenho

abaixo do potencial do estudante. Comece recordando o desempenho passado dele e compare

com o presente. Fale de suas preocupações a respeito dele. Pergunte o que está acontecendo e de

que forma você pode ajudar. Se nada mudar, fale com ele outra vez e diga que provavelmente

terá que haver uma reunião com os pais/responsáveis do estudante.

Divida a exposição, a leitura e as atividades individuais em pequenos segmentos. Fixe prazo

para cada um dos segmentos. Mude o foco do ensino periodicamente para manter o interesse dos

alunos. Seja você mesmo organizado para servir de modelo para os estudantes. Em sala de aula,

ministre tarefas e atividades que sejam planejadas, claramente explicadas e com prazos de

execução razoáveis.

Planeje os detalhes de cada aula. Para atrair o interesse dos alunos no assunto que será exa-

minado, comece a aula com uma atividade de aquecimento como resolver um problema ou pe-

dir-lhes a opinião a respeito de uma questão, citação, palavra ou imagem interessante que tenha

relação com o conhecimento prévio dos estudantes sobre o assunto da aula.

No ensino de conceitos, use demonstrações e recursos audiovisuais variados. Use gráficos,

modelos tridimensionais, música, arte, filmes, recursos de internet etc. Crie figuras ou use ima-

gens para demonstrar conceitos de forma não verbal.

Pergunte aos estudantes como eles poderiam ensinar o assunto da aula a outras pessoas. Peça-os

para preparar uma microaula sobre algum tema ou conceito interessante.

Discuta com os alunos seus hábitos de estudo. Ensine-os a avaliar seu próprio desempenho dei-

xando claros para eles os critérios de acerto das tarefas.

Fale sobre o valor do erro e da reflexão sobre ele como fator de aprendizagem.

Crie oportunidades para que os alunos desenvolvam a auto-confiança, o senso de responsabi-

lidade e adquiram habilidades de tomada de decisão e de liderança.

O ensino do professor Marin

Do ponto de vista pedagógico, como se conduz o professor Marin face às recomendações do item

anterior?

A meu ver, a principal deficiência de Marin é sua incapacidade de motivar os alunos. Frente a

jovens que percebem a escola como inútil, que não possuem motivação intrínseca para estudar e que

percebem o trabalho escolar como desinteressante e não compensador, Marin deveria começar por

Page 12: O filme "Entre os muros da escola": teatro da incompetência de um professor

explicar aos estudantes as razões pelas quais eles precisam aprender aquilo que está previsto e como

esse conteudo se relaciona com a vida deles, mas Marin não o faz.

O Currículo escolar visto no filme é inflexível; as aulas de Marin são exclusivamente expositivas;

as atividades, sempre individuais; o professor já traz o conteúdo pronto e o aluno se limita a escutá-

lo. Numa cena que se passa ao final do período letivo, uma aluna diz a Marin que não aprendeu

nada, não compreendeu nada do que foi ensinado; sendo assim, se ela foi aprovada, isto deveu-se à

memorização do conteúdo e não ao seu entendimento.28

Marin leciona o conhecimento de forma desvinculada da realidade e do cotidiano dos alunos. Veja-

mos um exemplo. Trata-se de uma aula em que Marin pede aos alunos que leiam um texto e apon-

tem as palavras que desconhecem. Depois de escrevê-las na lousa, ele lhes pergunta se sabem o que

tais palavras significam e escreve frases contendo esses termos, de modo que os alunos possam des-

cobrir seu significado. Uma das palavras cujo significado os alunos desconhecem é succulent (su-

culento). Marin pede aos alunos que tentem “adivinhar” seu significado. Como ninguém consegue,

ele então escreve na lousa a seguinte frase: “Bill déguste un succulent cheeseburguer” (“Bill se deli-

cia com um suculento cheeseburguer”). Um aluno imediatamente contesta: “Cheeseburguer é uma

porcaria!” As alunas Esmeralda e Khoumba, referindo-se ao nome “Bill”, perguntam por que Marin

escolhe sempre “nomes estranhos”, por que não coloca nomes como Aïssata, Rachid ou Ahmed.

Marin responde que escolher os nomes em função das origens de cada aluno é impossível. Elas

replicam: “Pode pelo menos mudar um pouco!”

Percebemos que a frase escrita por Marin é fraca como exemplo de uso da palavra que os alunos

desconhecem porque pouco tem a ver com a realidade vivida por eles. No caso, a atenção dos estu-

dantes foi desviada do principal, que era o termo “suculento” e seu significado, para se fixar no se-

cundário, que eram as palavras “Bill” e “cheeseburguer”. Marin poderia ter procedido de outro mo-

do: ele poderia ter perguntado a um dos alunos – por exemplo, à própria Esmeralda – qual seu ali-

mento preferido. Então, ele poderia ter escrito na lousa uma frase com a mesma estrutura e conten-

do a palavra desconhecida, porém usando o nome da aluna em vez de “Bill” e o alimento preferido

por ela, em vez de “cheeseburguer”. Aliás, parece que o dicionário não está entre as ferramentas de

Marin para aprendizagem da língua francesa.

Outro descuido de Marin é o uso de expressões de gíria desconhecidas dos alunos, como por exem-

plo, a expressão “com a pulga atrás da orelha”, que eles nunca ouviram. São descuidos que prejudi-

cam a comunicação com os estudantes.

As deficiências pedagógicas de Marin ficam patentes quando ele dá um exemplo de uso do “imper-

feito do subjuntivo”. Os alunos questionam o uso desse tempo verbal e um deles diz que “gente nor-

mal não fala assim”. O mestre concorda, dizendo que só os esnobes usam o imperfeito do subjun-

tivo. Uma aluna pergunta: “O que é esnobe?” Marin se atrapalha ao tentar explicar. Ao final, ele

tenta encerrar a discussão dizendo que o importante é conhecer os diversos estilos de linguagem e

saber usá-los. Uma aluna pergunta como saber qual estilo deverá ser usado. Marin responde que

isso depende de intuição. Outro aluno pergunta o que é intuição. O professor dá uma resposta con-

fusa. Em resumo, Marin mostra-se inseguro e incapaz de fornecer aos alunos um conjunto de crité-

rios de uso dos estilos de linguagem.

O filme sugere que as leituras a serem feitas pelos alunos são baseadas em uma lista de livros

elaborada por Marin. Um desses livros é “O diário de Anne Frank”. A escolha dessa obra é discutí-

Page 13: O filme "Entre os muros da escola": teatro da incompetência de um professor

vel. Pode-se argumentar que o livro é adequado para ensinar história mas não tão adequado para o

ensino da língua materna, uma vez que seu conteúdo está distante da realidade dos alunos. Em sen-

tido oposto, pode-se argumentar que o livro é adequado porque retrata as dúvidas, sonhos e angús-

tias de uma adolescente, e que esses temas são universais. No Brasil, porém, uma professora de por-

tuguês recomenda que, para atrair os meninos para o trabalho com o gênero “diário”, nada melhor

do que o livro “Diário de um Banana”, do autor e ilustrador Jeff Kinney. Na obra, o aluno Greg

Heffley tem 13 anos de idade e sofre com a mesma questão de muitos outros meninos de sua idade:

ele não é popular. Greg registra suas desventuras em um diário espontâneo e engraçado.29

A discussão sobre a adequação do livro escolhido pelo professor Marin, porém, não é a questão cen-

tral. O aspecto que importa ressaltar é que sua lista é inflexível. Ele não a adapta às características e

preferências dos alunos porque ele não os conhece nem tem interesse genuíno em conhecê-los. Se

não fosse tão autoritário, ele poderia ter perguntado aos alunos qual o último livro que leram ou se

tinham curiosidade em ler algum livro e levar as respostas em consideração quando elaborasse a

lista. Ele poderia aperfeiçoar a lista dando preferência às obras mais escolhidas pelos estudantes.

A postura de Marin contrasta fortemente com a da professora Erin Gruwell (interpretada por Hilary

Swank), no filme “Escritores da Liberdade” (Freedom Writers – EUA, 2007), que se baseia em fa-

tos reais. A professora Gruwell começa de modo idêntico a Marin, planejando discutir com os estu-

dantes obras clássicas que ela julga serem as mais adequadas ao aprendizado. Cedo, porém, ela se

dá conta de que a dinâmica tradicional não dará resultado. Começa então a remodelar o conteúdo

para que este se adapte à realidade da turma. Troca os clássicos por uma literatura mais despojada e

ao alcance de todos e passa a utilizar em suas aulas letras de “rap” estreitamente ligadas ao cotidia-

no dos guetos, morada da maioria dos alunos.30

Marin, por seu lado, avalia erroneamente a capacidade dos alunos. No último dia de aula, ele lhes

pergunta o que aprenderam. Esmeralda diz que não aprendeu nada. Marin lhe pergunta se não

aprendeu nada com os livros que leram. Ela responde que todos são inúteis. Nesse momento, Marin,

surpreso, fica sabendo que Esmeralda, por sua própria iniciativa, leu A República, de Platão. Marin

lhe pergunta sobre o que fala o livro. Esmeralda lhe responde que fala de tudo: amor, religião, Deus,

as pessoas, tudo…

Conclusão

Considerando que Marin está longe de ser um professor novato, a repetição dos problemas ano após

ano faz-nos concluir que ele não dedica tempo para planejar as aulas e para refletir sobre sua prática

docente. Por se tratar de um indivíduo autoritário que culpa exclusivamente os alunos pelos proble-

mas de aprendizagem, Marin não concebe que parte das dificuldades possam ter origem nele mes-

mo. Como consequência, ele não reflete sobre seus erros e sobre as críticas e questionamentos pos-

tos pelos alunos, tampouco sobre a possibilidade de haver modos diferentes de lecionar um dado

conteúdo. Marin não aprende com seus erros porque sequer os reconhece, e assim, não muda, não

evolui.

É notável o contraste entre o professor Marin, de “Entre os muros da escola”, e a mestra Gruwell,

de “Escritores da Liberdade”. Ele, autoritário; ela, democrata. Ele, arrogante; ela, humilde. Ele, in-

flexível; ela, adaptativa. Ele, distante dos alunos; ela, próxima a eles. Ele, um docente com vários

anos de experiência; ela, uma mestra iniciante. Ele, portador de métodos pedagógicos cristalizados;

Page 14: O filme "Entre os muros da escola": teatro da incompetência de um professor

ela, ainda em fase de experimentação didática. Ele, projetando nos alunos todas as deficiências; ela,

assumindo a responsabilidade pelos problemas. Ele, perfeitamente confortável com as normas vi-

gentes; ela, desafiando o sistema.

Notas 1 STIVANIN, Taíssa. “Diretor fala sobre ‘Entre os Muros’, filme indicado ao Oscar que retrata nova sociedade

francesa. Disp. em: http://cinema.uol.com.br/oscar/ultnot/2009/01/30/ult4332u980.jhtm

2 SAÇASHIMA, Edilson. “Entre os Muros da Escola” expõe a visão francesa do choque de civilizações. Disp. em:

http://cinema.uol.com.br/ultnot/2009/03/11/ult4332u1035.jhtm

3 Idem.

4 CORTEZ, Glauco. “O filme entre os muros da escola mostra que a escola está isolada e incapaz de resolver os

problemas criados pela sociedade”. Disp. em: http://glaucocortez.com/2010/03/14/o-filme-entre-os-muros-da-escola-

mostra-que-a-escola-esta-isolada-e-incapaz-de-resolver-os-problemas-criados-pela-sociedade/

5 Idem.

6 ASSIS, Diego. “Francês ‘Entre os muros da escola’ aproxima salas de aula de todo o mundo”. Disp. em:

http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL1039085-7086,00.html

7 “Entre os muros da escola”. Disp. em: http://www.portaldecinema.com.br/Filmes/entre_os_muros_da_escola.htm

8 Idem.

9 “Entre os muros da escola”. Disp. em: http://www.recantodasletras.com.br/artigos/2968457

10 NIGRI, André. “O Fim do Iluminismo”. Disp. em: http://bravonline.abril.com.br/materia/critica-fim-iluminismo

11 “Entre os muros da escola”. Disp. em: http://www.cinepipocacult.com.br/2011/08/entre-os-muros-da-escola.html

12 FERREIRA, Reynaldo Domingos. “Crítica do filme ‘Entre os muros da escola’ ”. Disp. em:

http://www.cafenapolitica.com/wordpress/?p=579

13 TADEU, Dimas. “ ‘Entre os muros da escola’: realidade dramática ou drama real?”. Disp. em:

http://outeabout.wordpress.com/2009/03/16/entre-os-muros-da-escola-realidade-dramatica-ou-drama-real/

14 Adolescência. Disp. em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Adolesc%C3%AAncia

15 KNOBEL, Maurício. Visão psicológica da adolescência normal. Em: COATES, Veronica e outros. Medicina do

Adolescente. 2ª ed. São Paulo: Sarvier, 2003. p. 39.

16 PRATTA, Elisângela Maria Machado e Manoel Antonio dos Santos. “Família e adolescência: a influência do

contexto familiar no desenvolvimento psicológico de seus membros”, Psicologia em Estudo, Maringá, v. 12, n. 2,

maio/ago 2007. p. 252.

17 PRATTA, Elisângela Maria Machado e Manoel Antonio dos Santos. Idem. p. 253.

18 Kids Health. “Understanding the Teen Years”. Disp. em:

http://kidshealth.org/parent/growth/growing/adolescence.html#

Page 15: O filme "Entre os muros da escola": teatro da incompetência de um professor

19 LOUKOTKOVÁ, Eva. “Young Learners and Teenagers – Analysis of their Attitudes to English Language Learning”.

Tese de graduação. Disp. em: http://is.muni.cz/th/220921/pedf_m/Loukotkova_Diploma_Thesis.txt

20 LOUKOTKOVÁ, Eva. Idem.

21 American Academy of Child and Adolescent Psychiatry. “The Teen Brain: Behavior, Problem Solving, and Decision

Making”. Facts for Families no. 95. Disp. em: http://www.aacap.org/cs/root/facts_for_families/facts_for_families

22 CAVALCANTE, Meire. “Adolescentes – Entender a cabeça dessa turma é a chave para obter um bom aprendizado”.

Disp. em: http://revistaescola.abril.com.br/crianca-e-adolescente/comportamento/adolescentes-entender-cabeca-

431429.shtml

23 LOUKOTKOVÁ, Eva. Idem.

24 LOUKOTKOVÁ, Eva. Idem.

25 LOUKOTKOVÁ, Eva. Idem.

26 PICCOLO, Louanne. “Teaching Teenagers: How to Motivate and Interest Them”. Disp. em:

http://suite101.com/article/teaching-teenagers--how-to-motivate-and-interest-them-a229340

27 BONGOLAN, Lorraine (Rain) S. e outros. Keys to the Secondary Classroom: A Teacher's Guide to the First Months

of School. Thousand Oaks, CA: Corwin, 2010. pp. 5-16.

28 SOUSA, Linete Oliveira de. “A escola que temos e a escola que queremos: uma análise sobre as teorias curriculares”.

Disp. em: http://meuartigo.brasilescola.com/pedagogia/escola-temos-escola-queremos.htm

29 LUCAS, Gabriela Lara da Cruz. “Querido diário”. Disp. em: http://revistaguiafundamental.uol.com.br/professores-

atividades/87/imprime225010.asp

30 MARTELLO, Dionei José. “A flexibilidade educacional no filme Escritores da liberdade”. Disp. em:

http://www.upf.br/filosofia/index.php?option=com_content&view=article&id=241:a-flexibilidade-educacional-no-

filme-escritores-da-liberdade&catid=1:ultimas-noticias&Itemid=8

*Flavio Farah é Mestre em Administração de Empresas, Professor Universitário e autor do livro “Ética na gestão

de pessoas”. Contato: [email protected]