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“O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape” Entrevista com Gervásio Luz Viegas Fernandes da Costa 1 Eloísa Cristina Souza 2 INTRODUÇÃO Gervásio Luz é a memória viva da imprensa e da história intelectual do Vale do Itajaí a partir da segunda metade do século XX. Nasceu em 1942, no município de Rio do Sul, mas desde a juventude radicou-se em Blumenau, cidade que conhece intimamente. Incorporou o pseudônimo Tessaleno dos seus primeiros escritos ao nome, uma referência clara da sua pena ferina às rochas da grega Tessalônia. Tanto que há, ainda hoje, quem chame por Tessaleno ao Gervásio. Com breves passagens por Curitiba e pelo Rio de Janeiro (cidade esta que lhe conformou a alma”, se me permitem a licença poética), Gervásio Luz dedicou sua história ao Magistério (do qual está aposentado), ao Jornalismo e à Literatura. Como professor, lecionou Língua Portuguesa, Oratória e Literatura em colégios importantes de Blumenau, como o Pedro II, o Santo Antônio e o Pontinho Estudantil. No Santo Antônio privou da amizade de Frei Odorico e dirigiu a Academia de Oratória Mont’Alverne. Foi professor de gerações. Na condição de jornalista, escreveu para os principais jornais do Vale do Itajaí, como Ronda, Tribuna, Vanguarda, A Nação, O Estado e Jornal de Santa Catarina, além de inúmeros jornais de menor expressão. Fundou e editou os jornais Opinião, Entrevista e Pommer Zeitung. Nesta entrevista, Gervásio tece um breve inventário da sua história de vida. Suas experiências no magistério, a amizade com Frei Odorico, sua militância no jornalismo e a candidatura ao legislativo blumenauense. Conta fatos curiosos de uma história pouco conhecida de Blumenau, como o empastelamento do jornal Ronda, a imprensa local nos tempos do Regime Militar e os bastidores da notícia na cidade, além de narrar suas memórias a respeito de personagens fundamentais da história intelectual e política blumenauense, como Norton Azambuja, Frei Odorico, Lindolf Bell, Geraldo Luz, Luís Antônio Soares, Martinho Bruning. Muitos são os personagens desfilam nas reminiscências de Gervásio Luz de forma inédita e íntima. A entrevista foi realizada na residência de Gervásio Luz, no bairro Garcia, em dois momentos, durante o mês de maio de 2013. Foi conduzida pelo historiador Viegas Fernandes da Costa, e acompanhada pela estudante de História da Universidade Regional de Blumenau, Eloísa Cristina Souza, responsável pela transcrição primária, para o site de literatura Sarau Eletrônico, mantido pela Biblioteca Universitária da FURB. Na primeira parte da entrevista também esteve presente o historiador Darlan Jevaer Schmitt. ENTREVISTA Para começarmos. gostaria que falasses da tua família. Quem são teus pais, tuas origens? 1 Viegas Fernandes da Costa: Historiador, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC) e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Regional de Blumenau (FURB). 2 Eloísa Cristina Souza: Acadêmica de História da Universidade Regional de Blumenau (FURB).

O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

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Entrevista concedida por Gervásio Luz a Viegas Fernandes da Costa e Eloísa Cristina Souza em maio de 2013. Temas principais: memórias sobre o jornalismo em Blumenau, história cultural de Blumenau, memórias sobre a educação em Blumenau.

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Page 1: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

“O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape”

Entrevista com Gervásio Luz

Viegas Fernandes da Costa1

Eloísa Cristina Souza2

INTRODUÇÃO

Gervásio Luz é a memória viva da imprensa e da história intelectual do Vale do

Itajaí a partir da segunda metade do século XX. Nasceu em 1942, no município de Rio

do Sul, mas desde a juventude radicou-se em Blumenau, cidade que conhece

intimamente. Incorporou o pseudônimo Tessaleno dos seus primeiros escritos ao nome,

uma referência clara da sua pena ferina às rochas da grega Tessalônia. Tanto que há,

ainda hoje, quem chame por Tessaleno ao Gervásio.

Com breves passagens por Curitiba e pelo Rio de Janeiro (cidade esta que lhe

“conformou a alma”, se me permitem a licença poética), Gervásio Luz dedicou sua

história ao Magistério (do qual está aposentado), ao Jornalismo e à Literatura. Como

professor, lecionou Língua Portuguesa, Oratória e Literatura em colégios importantes de

Blumenau, como o Pedro II, o Santo Antônio e o Pontinho Estudantil. No Santo

Antônio privou da amizade de Frei Odorico e dirigiu a Academia de Oratória

Mont’Alverne. Foi professor de gerações.

Na condição de jornalista, escreveu para os principais jornais do Vale do Itajaí,

como Ronda, Tribuna, Vanguarda, A Nação, O Estado e Jornal de Santa Catarina, além

de inúmeros jornais de menor expressão. Fundou e editou os jornais Opinião, Entrevista

e Pommer Zeitung.

Nesta entrevista, Gervásio tece um breve inventário da sua história de vida. Suas

experiências no magistério, a amizade com Frei Odorico, sua militância no jornalismo e

a candidatura ao legislativo blumenauense. Conta fatos curiosos de uma história pouco

conhecida de Blumenau, como o empastelamento do jornal Ronda, a imprensa local nos

tempos do Regime Militar e os bastidores da notícia na cidade, além de narrar suas

memórias a respeito de personagens fundamentais da história intelectual e política

blumenauense, como Norton Azambuja, Frei Odorico, Lindolf Bell, Geraldo Luz, Luís

Antônio Soares, Martinho Bruning. Muitos são os personagens desfilam nas

reminiscências de Gervásio Luz de forma inédita e íntima.

A entrevista foi realizada na residência de Gervásio Luz, no bairro Garcia, em

dois momentos, durante o mês de maio de 2013. Foi conduzida pelo historiador Viegas

Fernandes da Costa, e acompanhada pela estudante de História da Universidade

Regional de Blumenau, Eloísa Cristina Souza, responsável pela transcrição primária,

para o site de literatura Sarau Eletrônico, mantido pela Biblioteca Universitária da

FURB. Na primeira parte da entrevista também esteve presente o historiador Darlan

Jevaer Schmitt.

ENTREVISTA

Para começarmos. gostaria que falasses da tua família. Quem são teus pais, tuas

origens?

1 Viegas Fernandes da Costa: Historiador, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e

Tecnologia de Santa Catarina (IFSC) e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Regional de Blumenau (FURB). 2 Eloísa Cristina Souza: Acadêmica de História da Universidade Regional de Blumenau (FURB).

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Meu pai, Ademar Luz, advogado, e minha mãe Elga Thieme Luz. Eram de Itajaí,

casaram-se e foram morar em Rio do Sul. Papai formou-se pela Universidade Federal

do Paraná, acho que teve certo receio em iniciar a profissão. Chegaram a Rio do Sul em

1941, eu nasci em 1942, 25 de agosto, dia do soldado, do militar. Papai foi nomeado

pelo Nereu Ramos delegado, na época se exigia que o delegado fosse advogado. mas

que engraçado, o papai foi muito liberal, muito inteligente, foi ele quem me iniciou na

literatura quando achou que chegou a idade de eu ler, apontou autores. Cobrava, mas

soube dosar. Isso me influenciou, inclusive, como professor, de orientar os alunos em

termos de leitura. Bom, o papai citava muito o farmacêutico Guilherme Gemballa...

Um dos fundadores da Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do

Itajaí.

... e o Dr. Erwino Gaertner, primeiro médico de Rio do Sul. Era época da guerra, e era

aquela perseguição. Não se podia falar alemão. Papai ia tomar o seu café da manhã na

rua em que eu nasci, Rua Sete de Setembro, onde tinha o café da Ford. À noite tomava o

seu vinhozinho com esses dois amigos que eu mencionei, o médico e o farmacêutico. E

o promotor da cidade, que era até casado com uma sobrinha de papai, denunciou o papai

como protetor de nazistas. O Guilherme Gemballa e o Dr. Erwino seriam nazistas, e

papai, sendo delegado, deveria prendê-los. Então, o Dr. Erwino procurou papai

desesperado, “Acho que vou ser preso”. Papai disse, “Não, pega o primeiro ônibus, vai

para Curitiba, te apresenta no NPOR3 – papai tinha se formado lá – e podes dar o meu

nome, pede uma declaração de cidadania, brasilidade”. Assim fez o médico, chegou lá,

apresentou-se ao comandante e falou que realmente era de origem alemã, que era

costume falar alemão em casa, mas que ele era brasileiro antes de tudo. O filho chegou

até a ser prefeito, era tabelião em Rio do Sul. Erwino voltou, “Ah, o militar começou a

pressionar ‘mas o senhor não é mesmo nazista?’ – disse – ‘Ontem ouvi na Hora do

Brasil o ministro da guerra – que era o Dutra, depois seria o presidente da República –

em uma declaração”. Percebia-se bem que ele estava oscilando, assim como o próprio

Getúlio, entre se aliar aos americanos ou então ficar com Hitler e seus seguidores. O

comandante já se assustou. Era verdade. Enfim, ele voltou com o título de cidadão

brasileiro. Bom, falaste da UNIDAVI, Universidade de Rio do Sul. Fui convidado ao

lançamento de um livro de uma amiga de vários anos, Beatriz Pellizzetti, historiadora de

Rio do Sul, filha de Ermembergo Pellizzetti, que foi deputado, prefeito de Rio do Sul,

nome de praça na minha terra natal. Eu estava assistindo o lançamento do livro, saí para

fumar um cigarro na Rua Sete, ao voltar, em uma antessala, mas que dava para o

auditório onde ela estava assinando seu livro sobre a colonização italiana – ela é

especialista nisso – , vi um senhor de terno, elegante, sentado, com as mãos já

mostrando a idade com aquelas manchas próprias. Eu disse “O senhor é daqui?” – tinha

cara de jornalista metido. “Não, sou de Curitiba”. O papo teria morrido por aí não fosse

eu falar assim, “Eu nasci nessa rua”, ele “Nasceu aqui? Mas quem é você?” “Gervásio

Luz, filho do Ademar e da Elguinha! O primeiro tapa na minha bundinha foi o senhor

quem deu”. Naquele tempo o médico vinha em casa, meu parto foi feito em casa. Ele

chamou um público e contou essa historinha, ele devia a vida dele ao meu pai, se não

teria sido preso, o médico. Tudo por uma perseguição política tola, porque houve

exagero dos dois lados, os alemães extremados e os brasileiros também, usando de

muito abuso na perseguição. Bom, agora voltando na história, antes de falar de Rio do 3 Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva, órgão do Exército Brasileiro que tem o objetivo de formar

oficiais para a Reserva. (N. de VFC).

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Sul, meu sonho era morar no Rio de Janeiro. Quando terminei o Científico, no Colégio

Santo Antônio, eu vim com 12 anos, em 53 eu estava aqui “[em Blumenau]...

Vieste sozinho?

Não. Papai mudou-se para a Alameda. Até quatro anos atrás eu estava ali. O que

aconteceu, em 60? Terminados os estudos no Santo Antônio, eu tinha que me decidir

para fazer uma faculdade, e queria fazer direito, o meu pai era advogado. Na verdade eu

não tinha certeza. E ainda papai me pressionou, disse “olha a luta que o teu pai

desenvolve”. Só que ele queria que eu estudasse em Florianópolis, para estar mais perto

da família. Mas eu queria cidade grande, na época a cidade era uma província. “Vou

para Curitiba.” Arrependi-me barbaridades, por quê? Porque não gostei do curso, vi que

não era a minha praia.

Na universidade do Paraná?

No Paraná, onde o papai se formou. E aconteceu um episódio muito engraçado, quando

eu vi que tinha que fazer o vestibular. Naquele tempo tinha latim, a minha sorte é que eu

tinha estudado com Frei Odorico quatro anos de latim no antigo ginásio – hoje é o

primeiro grau.

No Santo Antônio o científico, mas também o ginasial?

O ginasial, e ainda tinha um pré-complementar, tinha que fazer o quinto ano.

Em Rio do Sul, onde estudaste?

Estudei na escola Paulo Zimmermann e no colégio Dom Bosco, com os Salesianos. Aí

fiquei desesperado; “latim”. No científico não tinha latim, e corri a Frei Odorico, que na

época tinha sido meu professor. Aquele homem de uma cultura incrível, que me deu

aula de oratória, francês, espanhol, português, latim.

Ele foi uma grande influência na sua carreira profissional, não?

Foi. Sempre declarei que me tornei professor de português por causa dele. Embora não

convidado, iniciei o português no colégio Dom Pedro II por descoberta. É aquela

história, estava conversando com amigos no Palmital, uma churrascaria famosa, com

um grupo de professores do Pedro II, aí disseram “Gervásio, por que não dás aula?

Português, falas tão bem”. Fiz curso em Florianópolis, não havia faculdades aqui por

perto, só em Florianópolis. Depois fiz curso de aperfeiçoamento, vários. Enfim, passei a

lecionar sem ter feito Letras. Aí corri ao Frei Odorico, “Não vai ter tempo para me dar

umas aulinhas de Latim?” “Te dou um conselho, meu filho, decora as Catilinárias4. Lá

fui eu, decorei na ponta da língua. E tinha prova oral. Na escrita me virei. Naquele

tempo tinha sorteio, um monte de papelotes na mesa, o aluno era chamado, eu pego o

meu papelzinho. O professor era Vieira Lins, o inquiridor, Sebastião Vieira Lins,

famoso, formado em Curitiba, partido socialista, foi candidato a Deputado, votei nele.

Ele abriu as Catilinárias. O nervosismo sumiu totalmente, já fui ao primeiro verso e

fiquei nesse primeiro verso. Ele disse, “pode ir embora, dez!”. Frei Odorico é santo. 4 Catilinárias, conjunto de quatro discursos proferidos por Cícero em 63 a.C., nos quais este denuncia o

senador romano Lúcio Sérgio Catilina de planejar derrubar o governo republicano. (N. de VFC).

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Dois anos de Curitiba bastaram, eu não gostava da cidade, não gostei. Tem uma piada

do “Pasquim”, quando encontro um paranaense eu brinco. Curitiba para mim foi uma

decepção em dois termos: o frio no clima e no coração das pessoas. Fiz um amigo lá em

dois anos.

Consideras Curitiba mais inóspita do que Blumenau?

Acho que sim. Mudei depois. E o frio mesmo! A temperatura era de matar. Saía à noite

com dor no peito, e eu detesto frio. Consultei papai, “Papai, quero ir para o Rio de

Janeiro”.

Tinhas quantos anos nessa época, Gervásio?

Vinte e poucos anos. O Rio foi a minha realização. Mas voltando a Curitiba, passei

quinze anos me recusando a ver a cidade, embora tenha parentes lá, tios maravilhosos.

Na revisão que fiz – uma visita – vi que é uma cidade muito bonita, merece o título de

Cidade Sorriso, muito moderna. Mas o Rio foi a minha realização. No primeiro dia já

me senti carioca. Tem uma frase que eu vi atribuída ao Vinícius de Moraes, depois já vi

atribuída ao Millôr Fernandes, depois ao Nelson Rodrigues, não importa o autor, que é

de uma verdade incrível: “Ser carioca é um estado de espírito”. Meu sonho mesmo era

viver lá para sempre. Mas no comecinho de 64, estava chegando a revolução, o golpe,

eu era considerado de esquerda, esquerda festiva, Bossa Nova. Veio a notícia, começo

de 64. Um general do exército, meu tio Donato, veio me comunicar que papai estava

doente, estava com câncer em fase terminal, questão de meses.

Tu não sabias de nada?

Não sabia de nada, foi um choque. Aí me mandei para cá. Ele viveu semanas, um mês.

Eu digo que ele morreu dias antes de desiludir-se fortemente com o golpe militar.

Ficaste quanto tempo no Rio de Janeiro?

Dois anos e meio.

E ali também estudaste Direito?

Não, eu comecei e abandonei de novo.

Ocupaste teu tempo por lá em quê? Tinhas alguma profissão?

Trabalhei no Banco Inco5, fui bancário, uma triste experiência. Profissão horrorosa.

Por quê, Gervásio?

Você lida com dinheiro, sem dinheiro, ganhando pouco. Trabalhava no Banco Inco e

morava na Zona Sul. Para mim Rio de Janeiro era na Zona sul, na Copacabana,

Ipanema, Leblon. No Centro eu ia para trabalhar no Banco de Indústria e Comércio de

Santa Catarina. Como é que eu consegui esse emprego? Papai era muito amigo de 5 Banco Indústria e Comércio de Santa Catarina (INCO). Fundado em 1935 no Vale do Itajaí, foi adquirido

em 1968 pelo Banco Brasileiro de Descontos (BRADESCO). (N. de VFC).

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itajaienses, amigo de diretores do banco, os Miranda Lins. Nunca esqueço que, certo

dia, saí para tomar um café, fazer um lanche, em um boteco que tinha em frente ao

banco. De repente vejo aquela figura, terno branco contrastando com a negrura da pele;

Ataulfo Alves, o compositor. Vê-lo me proporcionou muitas visões, passar pelo Bon

Gourmet em Copacabana, ver Vinícius na calçada, Tom Jobim, Carlinhos Lyra e a Nara

Leão.

E tu não chegaste para conversar com eles?

Não. Era muito tímido, aliás, não tinha dinheiro nem para o show. Era o show dos

quatro, show famoso. Eu parei, fiquei encarando tanto que a “Narinha” olhou para mim

e deu o maior sorriso do mundo, mas era muito tímido naquela época, nem sabia que

iria ser jornalista, porque seria mais afoito. Então o Rio de Janeiro, para mim, foi muita

praia. Mas engraçado que eu dei uma de carioca ao pé da letra. Lá em casa foi assim:

papai se programou de três em três anos. Eu nasci em 42, três anos depois nasceu a

minha irmã Maria Júlia, mora aqui no Bela Vista, 48 nasceu Maria Lígia que mora em

Florianópolis.

E o Geraldo Luz?

Geraldo é primo. A Maria Júlia, minha irmã, apareceu no Rio de Janeiro, na excursão

do Pedro II, ainda quando o Joaquim Floriani era o diretor. Fui convidado, aí que fui

conhecer o Pão de Açúcar e o Corcovado, levado por essas circunstâncias. Se não, se eu

tivesse saído do Rio, saído inesperadamente, aliás, sairia de lá sem conhecer os dois

cartões postais. O que me encantava no meu reduto era a Zona Sul, zona da boemia. Saí

do Rio muito sentido.

Nunca mais voltaste a morar lá?

Não. Voltei depois para fazer um curso. Essa história é engraçadíssima! Com a Maria

Ribeiro, professora, e a professora Gilka Ewald, mãe de dois alunos meus, Marco Ewald

e o Eduardo. Quando eu morava na Alameda, fui a uma pizzaria que hoje não existe

mais, esqueci o nome agora, Napolitana, se não me engano. Esses dois ex-alunos meus,

um é advogado e o outro é médico, quando me viram, eles estavam tocando, trouxeram

até um CD, começaram a tocar Bossa Nova, Vinícius de Moraes principalmente, em

minha homenagem. Bom, aí nós fomos para essa faculdade, era lá em Jacarepaguá, eu

fiquei em Copacabana, a Gilka e a Maria em Ipanema, sacolejando o ônibus em uma

viagem que não acabava mais. Eu fui entusiasmado com o curso, que tinha uma palestra

com Mário Lago. Eu era fã do Mário Lago como compositor, como escritor. Cheguei lá,

isso nos primeiros dias, o Mário Lago não pôde vir, estava doente. Colocaram um

atorzinho da Globo que mal estava começando, não sabia nem falar, prometeram a

presença de um gramático famoso, Cegalla ou o Bechara, e também apareceu uma

figura da qual eu nunca tinha ouvido falar. Dei uma de CDF, quis fazer o curso até o

final. Mas em uma das voltas, terceiro dia eu acho, “Gervásio, nós vamos parar aqui no

Centro, tomar um chopinho, porque nós queremos conversar contigo”. Eu digo, “então

vamos ao Amarelinho, famoso, em frente ao Teatro Municipal, tem mesas na calçada”.

E lá disseram, “vamos abandonar esse curso?” Eu “Vamos, vamos para a faculdade de

Ipanema, pronto!” Estivemos inclusive onde hoje é Rua Vinícius de Moraes, chamava-

se Montenegro, da garota de Ipanema. Tenho fotos da garota de Ipanema, tenho a letra

da música, a partitura está na parede. Foi onde o Tom e o Vinícius viram passar a Helô

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Pinheiro, a famosa garota de Ipanema, onde fizeram a música. Saí com o coração

partido. Jurei que não iria voltar mais. Mas se eu tenho mágoa? Não tenho, porque

Blumenau é a minha paixão. Dizem, “Gervásio, você não é Riosulense?” Eu digo, “não,

nasci lá, não tenho nada contra a minha cidade. Tive uma infância maravilhosa, peguei

o tempo da estrada de ferro, mas a cidade que me possibilitou a realização como

professor, jornalista, depois escritor, foi Blumenau”. Então eu amo essa cidade de

paixão. Aquela história de acharem que eu sou do Rio, por quê? Talvez eu tenha voltado

com trejeitos de carioca. O que aconteceu é que estávamos em plena ditadura e eu

colecionei o Pasquim do primeiro ao último. A enchente levou. O que aconteceu: eu

dava aula no colégio em que estudei. Aluno de português não quer saber dessa matéria.

Não posso começar de uma maneira muito austera. Então entrava na aula com o

Pasquim embaixo do braço, sentava na mesa, lia o melhor texto, o mais engraçado.

Tentava puxar meus alunos com humor, que eu acho que é a melhor forma de

expressão. Acho que ninguém resiste a uma boa piada bem contada. Mostrava uma

charge que desse para mostrar em um colégio de padre, embora nunca tivesse sofrido

nenhuma censura. Eu tinha proteção do Frei Odorico. O que aconteceu? Naquele ano eu

peguei uma terceira série de ginásio, hoje é a sétima. Um garoto perguntou, “professor,

o senhor nasceu no Rio?” Pensei, vou dar uma aula de comunicação maravilhosa,

“Nasci sim”, e continuei a aula. No recreio eles vieram, “Professor, é legal ser carioca?”

“Quem disse que eu sou carioca? Não sou carioca.” “Mas o senhor disse que era do Rio

de Janeiro.” “A pergunta de vocês foi incompleta, problema de comunicação. Se vocês

tivessem me perguntado: professor, o senhor é do Rio de Janeiro, nasceu no Rio de

Janeiro? Eu teria dito que não. Nasci em Rio do Sul, cidadezinha de rio também, Serra

acima”.

Disseste que teu pai te influenciou, primeiramente com a leitura dos clássicos. O

que lias? Quais os textos que primeiro te encantaram?

Papai era muito esperto, se ele tivesse me dado um José de Alencar, hoje eu não gostaria

de literatura. Ele começou com Humberto de Campos, tinha a coleção toda, um cronista

não muito famoso, mas grande escritor. Ele tem um humor... tem um livro, “Brasil

Anedótico”, e aquilo me encantou. Foi o que eu procurei fazer com os meus alunos.

Pegava um Stanislaw Ponte Preta, um Millôr Fernandes, eles adoravam! Eles,

“professor, como é o nome desse livro?”. Depois eu seguia com Alencar, Machado de

Assis, os modernistas principalmente, mas eles já aceitavam, tinham criado gosto pela

leitura. Quando deixei o magistério, achei que iria sentir muito, mas não senti não. As

turmas mudaram.

Creio que fui um dos últimos alunos teus. Em que ano largaste o magistério?

Eu abandonei, digamos assim, em 92. Faltando um tempinho, um ano talvez, para me

aposentar totalmente. Em 92.

O que te levou a abandonar tão intempestivamente o magistério, Gervásio?

Eu estava farto do comportamento dos jovens. Sempre fui muito liberal, de não precisar

chamar de “Professor Gervásio”, “pode chamar de Gervásio. Agora, quero respeito, o

professor respeita vocês”. Pensei que tivesse encerrado a carreira em 92, quando me

aposentei. Em 2004 resolvi dar umas aulas particulares. Bolei um anunciozinho, que

saiu no jornal de Gaspar, O Metas. Eu colaborava com o jornal desde 2002. Estou há 12

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anos no jornal Metas, semanalmente escrevo lá. Escrevia as quatro semanas, até que a

Sociedade de Escritores pediu um espaço, e eu cedi. A quarta semana deixo que eles

escrevam e ocupem o meu espaço na boa. Bolei aqueles cartazes do curso de oratória e

imprimi. Resolvi botar pelo menos um no mural de cada prédio, são três prédios no

colégio Pedro II, onde eu havia lecionado, também me aposentado por lá. Aí fui à

diretora, a Regina Ingletto, mãe da Bianca que trabalha na RBS. A Regina, mulher

muito bonita, inteligente, disse, “não vai botar anúncio nenhum”. E eu, “Vais me

recusar a propaganda?” “Você não vai dar aula particular, você vai lecionar oratória”.

Não sabia que tinha oratória, que era obrigatório no segundo grau. Encheu-me de

turmas de manhã, de tarde e de noite, ano de 2004. Adorei! Dei-me muito bem com as

turmas da manhã, as turmas da tarde, mas à noite era uma bandidada. Eu estava dando

aula para uma das turmas, e de repente um cidadão se levanta, sandália de dedo, mal

vestido, pegou o celular e começou a falar. Eu digo, “o que é isso, meu Deus do céu?” A

essa altura já tinha percebido que eles levavam bebida alcoólica pro fundo da classe.

Lembra daquele filme, “Ao mestre com carinho”6? Aí eu disse, “vou ser

cinematográfico, encerrar a minha carreira aqui, à noite, e é agora”. Eu, “Gente,

atenção, imaginem que o professor de vocês de oratória fosse um diretor de cinema e

estivesse filmando essa sala. O que eu faria a partir de agora? Mandaria a câmera

fotografar este ângulo aqui, daria atenção só para vocês.” Apontei para o marginal e

disse, “onde esse marginal está, me desacatando, seria ignorado. O filme acaba aqui. A

partir de amanhã não dou mais aula à noite”. Estava cheio de gente querendo essas

aulas, acho que foi o Alfredo Scottini quem me substituiu. Mas continuei muito bem

com as turmas da tarde e da manhã. Por que eu não prossegui dando aulas de oratória?

A minha decepção, não com os alunos, com o estado do colégio, as paredes caindo, o

teto, portas sem maçaneta, vidros quebrados, por incrível que pareça até papel higiênico

eu tive que levar, não tinha papel higiênico nos banheiros. Estava abandonado, um caos,

“eu não vou ficar aqui. Quero guardar uma imagem do Pedro II dos bons tempos aqui

que eu havia lecionado”. Então foi só este breve retorno.

Além do Santo Antônio e do Pedro II, chegaste a lecionar em outras escolas?

Bastante. No Pontinho Estudantil...

Sempre Língua Portuguesa, Oratória?

Principalmente Língua Portuguesa, comunicação, aí surgiu a Teoria da Comunicação,

dava para aproveitar e dar umas dicas de oratória. Mas o Colégio do Vale do Itajaí, O

Pontinho, se expandiu. Tinha tanto aluno que foi alugando salas em colégios estaduais.

Então lecionei no João Widemann, na Itoupava Norte, no Santos Dummont. Dei aulas

no colégio dos Barbieri. Existia o colégio Dr. Blumenau, lá no Centro, na rua Curt

Hering, onde dei aulas de português. Dei aulas em outros cursos também,

principalmente os preparatórios para vestibular. Foi um episódio muito engraçado. Eu

estava em Florianópolis, passeando, que é a minha segunda terra. Tirando o Rio de

Janeiro, que está muito longe, me sinto muito bem em Florianópolis. Açorianos, eu

tenho sangue português. Sempre digo que tenho sangue alemão da parte da minha mãe,

mas predomina no meu proceder, no meu sentir, o Luz de Portugal.

6 “Ao mestre com carinho.” (Reino Unido, 1967). Direção e roteiro de James Clavell. (N. de VFC).

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O que poderias falar do Frei Odorico? Sabemos que Frei Odorico foi uma

personalidade não só religiosa, mas também intelectual na cidade, marcando

gerações. Tiveste uma convivência próxima com ele; qual perfil traçarias do Frei

Odorico?

Frei Odorico foi o meu segundo pai, não pela proteção que me deu, mas pela cultura que

transmitiu e pelo que eu pude assimilar. A cultura dele era infinita, sem exageros.

Quem, aliás, me convidou para lecionar no Santo Antônio, foi ele. Eu já tinha alguns

anos no Pedro II, encontro ele na Rua Sete por acaso, e ele, “Gervásio, não queres dar

aula no Santo Antônio? A professora de português do científico, primeiro e segundo

anos, Marina Wollstein, irmã do Rivadávia, vai casar e deixar o magistério. Mas tu vais

com uma condição.” “Qual é a chantagem, Frei Odorico?” “É a seguinte: foste sócio

fundador da Academia de Mont'Alverne em 1959...” Ele queria que eu fosse diretor da

Academia. Ele já estava meio cansado, viajava às vezes, adorava Florianópolis, a terra

dele era Santo Amaro da Imperatriz, perto de Florianópolis, mas estava sempre

presente. Eu nunca me considerei diretor da Academia, considerava-me um subdiretor.

Ele era intocável. Durante todo tempo em que lecionei no Santo Antônio, dirigi a

Academia de Mont'Alverne, que ele fundou em 1959. Não esqueço, convocou as turmas

do científico para um encontro, e era feriado, dia 13, dia de Santo Antônio. Fomos sem

saber o que era, e no salão nobre do colégio foi fundada a Academia de Frei Francisco

de Mont'Alverne. Por que esse nome? Quem foi Frei Francisco de Mont'Alverne? O

Odorico justificou. Era um frade franciscano, o maior orador sacro do império que, já

cego, mas ainda muito lúcido, atendeu a um pedido de D. Pedro II e fez uma oração,

oficiou uma missa a pedido do Imperador. A Academia principiou e hoje está com 54

anos – aí que sinto o peso da idade. Nunca esqueço as minhas duas atuações Lembro até

do terno, a cor que usava. Os rapazes tinham que usar terno, gravata, e as moças trajes

sociais. Tanto que a academia ficou conhecida na cidade, porque as quartas à tarde tinha

essa sessão, e era aquele desfilar pela Rua Quinze de jovens bem vestidos. “É dia de

academia”, o povo já dizia. Meu primeiro discurso foi sobre Humberto de Campos, era

mais pesquisa.

Como aluno, Gervásio?

Como aluno. Tive a impressão que eu tremia que nem vara verde, o sangue fervia

dentro das veias. Digo, “sou um bambu, meu Deus do céu, estou para lá e para cá”.,

Estava de verde ainda por cima”. Fui elogiadíssimo! O Frei disse, “calma, o nervosismo

era psicológico”. Eu me senti melhor para o retorno. Era uma antecipação do futuro

jornalista sem eu saber. Critiquei e abordei uma polêmica aqui em Blumenau, entre um

jornalista do Jornal A Nação, Frederico Allende, um senhor de idade que escrevia bem,

com um português correto, e um jornalista meio desvairado, chamava-se Israel Costa,

que tinha um jornal chamado O Combate. Ele era tão querido!

Qual deles?

Esse Israel Costa, entre aspas.

Querido é uma ironia?

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É que ele se candidatou a vereador, isso é a coisa mais típica de açoriano, brasileiro.

Pegaram um burro e fizeram um desfile com o burro pela Rua Quinze, “Vote em mim,

Israel”.

Foi a própria população que fez?

Alguma facção.

Tu lembras em que época foi isso?

Final da década de 50.

Foi o teu segundo discurso...

“A polêmica” era o título. Então eu mostrava a minha decepção com o desnível da

polêmica. Um homem com mais categoria no jornal diário, vi aquele jornalista

enxovalhado. Frei Odorico ainda... Bom, eu morei no Rio, em Curitiba, e visitava muito

Frei Odorico, quando podia. Depois, como professor, dava aula de manhã, sempre digo

isso, durante trinta anos trabalhei nos três turnos, mas não era ganância, era necessidade,

porque escolhi duas profissões que não dão dinheiro, mas realizam pessoalmente, o

magistério e o jornalismo. Eu dava aulas de manhã no Santo Antônio e à tarde

trabalhava em jornal, O Estado, o Santa, e à noite dava aulas no Pedro II. Às vezes eu

estava saindo quinze para meio-dia, terminava as aulas no colégio Santo Antônio, vinha

o bedel Batista, “O Frei Odorico tem um assunto contigo, importantíssimo.” Eu, “meu

Deus do céu, o que será?”. Eu tinha jornal à uma e meia, ou aula, dependendo da época.

Bom, vamos dar uma passada por lá. Na Academia está tudo bem, não tem sessão

solene, sempre se festejava no dia do aniversário dele ou no meu aniversário, depois em

comum acordo acabamos com aquelas homenagens, só dia 13, dia da fundação, era uma

sessão solene. Cheguei lá com o Frei Odorico, “o que a Elguinha preparou hoje para ti?”

Mamãe Elga. Ele a chamou de Elguinha mais por afetividade, conhecia ligeiramente. Eu

disse, “acho que é uma feijoada”. Aí ele levantava, atrás da mesa e da cadeira dele a

estante cheia de livros, a biblioteca fabulosa, retirava Os Sertões, volume grande,

Euclides da Cunha, e lá estava o Underberg escondidinho. “Não vais sofrer nada com a

feijoada.” E tomava um cálice... Outra feita, dependendo do prato, era uma coisa mais

leve. Então hoje é diferente, foi lá no Larousse, pegou um volume daquele tamanho do

dicionário, tirou duas garrafas. Era um uísque estrangeiro, não lembro se era Johnny

Walker e uma cachacinha de Luiz Alves que tinha sido dada por um aluno que era

produtor. “Diz, o que tu preferes?” Claro que por vontade preferia um uísque

estrangeiro, mas optei pela cachaça porque sabia que ele gostava da caninha, para

agradar. Ele era assim, uma personalidade incrível. Um dia entrei na sala dele, e disse

assim, “Frei Odorico, vi um bloquinho de rifa, o senhor comprou tudo isso?” “Nenhum

bilhete! Uma aluna veio aqui pedir que eu comprasse, é que eu não olhei na hora. Disse,

passe depois, que eu estava ocupado, estava preparando uma prova, mas vou dizer para

a moça. Nenhum bilhete!” “Por que, Frei Odorico?” “Olha o que está escrito ali:

‘contribuição expontânea’. Espontânea com X! Vem do latim Sponte, é com S, em

português espontânea tem que ser com S”! Então ele tem umas passagens hilariantes.

Qual a maior contribuição da Academia de Mont’Alverne?

Page 10: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

Na verdade, depois que deixei de dar aulas, quando encontro e esbarro com ex-aluno,

ex-aluna, que não vejo há anos, eles não perguntam pelo colégio, mas “como vai a

academia, está viva ainda?”. Interessante é que eles tinham pavor na época. Sabe o que

é discursar em público? Não é fácil para qualquer um, treme-se feito vara verde. Mas

passado aquele episódio, o retorno que o aluno tem, seu crescimento, estimulado pela

crítica dos colegas, pelos elogios, ou mesmo algum reparo a sua fala, a sua postura,

veem aquela experiência refletida na vida profissional, um político, advogado, ou

qualquer outro profissional que tenha que falar em público. Hoje em dia é difícil escapar

de falar em público. Aí o agradecimento vem. A academia marcou a cidade, eu me

arrisco dizer que não há similar no Brasil. Não há nenhuma academia de colégio

secundário que tenha perdurado por tanto tempo. Tanto que ela refletiu e outras escolas

tentaram fazer academias, mas de curta duração, não foram longe.

Como o jornalismo entra na tua vida?

O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape. Já disse que tinha voltado

do Rio de Janeiro, forçado não é a palavra. Tinha um grande amor pelo meu pai, mas a

morte dele foi de me ferir e me fez obrigar a ficar aqui.

Por que te obrigou a ficar aqui?

Minha mãe ficou sozinha, já com duas irmãs, elas eram jovens.

E o jornalismo?

No Rio de Janeiro, já em Curitiba, eu era apaixonado por jornais. Acho que isso já

estava prenunciando um futuro professor e um futuro jornalista. No Rio de Janeiro, o

Jornal do Brasil era a minha paixão, que hoje infelizmente não está mais impresso.

Peguei o tempo da Última Hora, Samuel Wainer, uma época de bons cronistas, Antônio

Maria, que é o meu cronista predileto. Ele é mais conhecido como compositor popular,

“Manhã de Carnaval”, pernambucano e virou carioca. Tenho uns pontos de

identificação com o Antônio Maria nesse sentido. Apaixonar-se pelo Rio de Janeiro não

sendo de lá. Ele pernambucano e eu catarina. Também nunca ter pensado em lançar

livro. Paixão era o jornal, e ele só foi impresso, digamos assim, os textos dele, as

crônicas, depois da sua morte. A família estava em dificuldades financeiras, e o Vinicius

de Moraes, Ivan Lessa, Paulo Francis, José Aparecido de Oliveira (que foi Ministro da

Educação do Jânio Quadros) organizaram um livro chamado “O Jornal de Antônio

Maria”, que era o nome da coluna dele nos Associados. Escolheram as melhores

crônicas, e assim que eu soube, ganhei o livro, não sabia que tinha saído. Depois foi

uma estudante de jornalismo, lançou “Com vocês Antônio Maria”. Na base, no fundo

no fundo, a maioria dos textos está no “Jornal de Antônio Maria”. Eu mandava para as

minhas irmãs, recortava. Por exemplo, no Última Hora você abria uma página e era só

cronistas, o Stanislaw Ponte Preta, em cima, ladeado por gente de primeira.

Que também foi uma influência para ti, o Sérgio Porto...

Sim, foi uma influência muito grande na base do humor. Maravilhoso ele. Dizem que o

crítico de literatura é o escritor frustrado. O Stanislaw escrevia muito sobre música e

malhava o mau gosto imperante, mas ele foi uma exceção. Assinou aquele fabuloso

“Samba do Crioulo Doido”. É um primor de humorismo! Ali ele mistura a história toda.

Page 11: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

Cometeu uma pós-modernidade no samba.

Isso aí! Bom, eu mandava aqueles recortes. Já em Curitiba lia muito os jornais.

Qualquer cidadezinha do Vale, onde eu fosse, a primeira coisa que eu procurava era o

jornal da cidade, para ter uma visão da coisa. Acompanhei essa evolução do jornal,

daquela forma tradicional. Por exemplo, na cidade em que nasci, Rio do Sul, tem um

jornal que até hoje em dia vive, o Nova Era. O meu nascimento deu na capa, imagina!

Isso nos dias de hoje não tem sentido. Contei no jornal Expressão Universitária, a

convite da Magali Moser, este episódio do Nova Era, um jornal grande, standard na

época, hoje tabloide. E a capa e contracapa era batizado, aniversário, velório, bodas. O

papai muito gozador, muito irônico, inticava com o diretor do jornal, Pedro Paulo

Cunha. Quando ele saía e encontrava com Pedro Paulo, dizia “Pedro Paulo, me fizeste

perder o dia de ontem” “Como?” “Fiquei sem trabalhar, só lendo o Nova Era.” O que

não abalava a amizade. Bom, cheguei a Blumenau no comecinho de 64, aí surgiu aquela

fofoca que eu teria fugido da militância política.

Tinha essa fofoca? Por quê?

A fama que eu tinha de esquerda, e eu nunca fui, como eu disse. Nunca fui pró-militar.

Também nunca foste filiado a partidos de esquerda?

Não, nunca fui filiado.

Por que, então, a fama?

Não sei, talvez pelas declarações contra os militares. Não contra os militares, mas contra

o que eu considerei um golpe.

Nessa época, ainda não escrevias em jornal?

Pois aí é que está a história... Fiquei frustrado, papai faleceu, o que vou fazer em

Blumenau? Bateu aquela saudade do Rio de Janeiro, do teatro, dos bons filmes

clássicos, praia, aí surgiu a ideia. Mas foi um episódio, o por quê fui parar em jornal e

como. Comecei a sair, passaram-se os meses de luto, jovem, vinte e poucos anos, e a

mamãe viúva, cheguei uma noite um pouquinho tarde. Ela estava aos prantos,

preocupadíssima, que tinha ouvido no rádio – na época era rádio Alvorada, que hoje não

existe mais – uma notícia assim, “foi atropelado um jovem na esquina da Sete...”

Naquele trajeto que eu fazia da Rua Quinze para a Alameda, e não deram o nome do

jovem. Ela ligou para rádio e não tinham dados. Não se dá uma notícia assim sem

fundamento, ou se dá completa com algum dado. Aquilo me motivou, mas como é que

eu iria começar? Tinha um jornal na minha rua, na Alameda Rio Branco, em um prédio

de tijolinho à vista que ficava ao lado do prédio dos correios, em frente ao Cine Bush,

chamado Ronda, do Nagib Barbieri, um gasparense que tinha um temperamento solto,

agressivo, mas uma pessoa maravilhosa, e o jornal dele criticava Deus e todo o mundo.

Mas por incrível que pareça, num estilo altíssimo. Por quê? Porque o redator chefe se

chamava Paulo Jacques, carioca, casou-se com uma paranaense e veio morar em

Blumenau. Era o redator chefe, tinha um estilo lapidar, a fofoca, o menor incidente ele

transformava em notícia em uma linguagem muito elegante. Depois ele se transferiu

Page 12: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

para o jornal A Nação, com o fechamento da Ronda, e assinou por muitos anos uma

coluna chamada Bunker. Estava gozando da cidade, ali do esconderijo tipo nazista. Ele

criticava os políticos com muita elegância, e o Paulo influenciou também. Resolvi

mandar aquele artigo, a timidez ainda estava imperando.

Um artigo?

Um artigo criticando a rádio. Falando do mau jornalismo. Não lembro agora do título

que dei. Aí, eu todo entusiasmado, cheguei para a mamãe e disse, “Oh, mãe, vou estrear

em jornal” “Em qual jornal você vai escrever?” (risos) “Ronda” “Pasquim!” – pasquim

no mal sentido. “De jeito nenhum!” Eu não podia assinar, a única forma de enganá-la

era botar um pseudônimo. Qual pseudônimo vou criar? Ou fico nos nomes mais

comuns, José de Souza, João da Silva, ou vou por algo mais estrambótico. Lembrei de

um amigo meu, no Rio, que tinha o nome de Tessaleno. Então saiu. A coluna era

assinada, por incentivo do jornal. Saiu em cima, até bem exagerado, alto e grande,

“Tessaleno”. Gervásio não aparecia.

Ou seja, viraste colunista a partir da primeira matéria?

Já me transformaram em colunista. Bom, e esse jornal, Ronda, apesar de ter uma seção

chamada Ronda Militar na capa, noticiário sobre o 23º BI, foi empastelado pelo quartel,

e criticando, inclusive, os comunistas.

Fala sobre isso, então. Como aconteceu esse empastelamento?

O empastelamento foi o seguinte, coisa bem provinciana. O jornal criticou um

engenheiro do DER7, que tinha pretensão política, e esse engenheiro era irmão do

coronel, gente importante. O coronel pediu a cabeça, não interessa se estava

perseguindo comunista, se tinha uma coluna elogiando os militares, era empastelado,

fechado.

A redação foi destruída?

Foi só fechada. E as mesmas máquinas de escrever e de composição... peguei essas três

espécies de impressão. A Ronda e a Vanguarda eram ainda tipo por tipo. Pegava um A

da letra A na caixinha e colocava na caixinha, parafusava. Depois veio a linha direta,

que é a linotipo. Depois o offset, peguei os três tipos. Comecei com o mais antigo, mais

primário, mais difícil, digamos assim. O Nagib não se conformou e lançou o jornal

Vanguarda, que durou bastante tempo, com o mesmo diretor, com o mesmo editor-

chefe, Paulo Jacques. Era um jornal de coragem. Por exemplo, uma manchete assim:

“Ingo Hering é visto entregando cheque ao PTB”. Tinha anúncio da Companhia Hering,

ele nem queria saber, o Nagib. O fato tinha acontecido, o Ingo Hering era da UDN,

queria apoio do PTB, que era aliado do PSD, então, teria entregue esse cheque, foi

flagrado ali na Rua Quinze. No mesmo dia o Ingo, com aquele sotaque peculiar, “Seu

Nagib, a partir da hoje, anúncio Hering cancelado” “Eu já esperava!”. Nesse tempo que

eu estava escrevendo para os jornais, já estava dando aulas. Para dizer que não fui

vítima de perseguição injusta, vai entrar em cena agora no meu depoimento o famoso

7 Departamento de Estradas de Rodagem (DER). (N. de VFC).

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Coronel Brandão. Eu estava uma noite com o jornalista Norton Azambuja e outros

amigos...

Tinhas amizade com Norton Azambuja?

Foi amizade fundamental. A morte dele me abalou bastante. Nós tivemos um jornal

juntos, Entrevista.

Aqui em Blumenau?

Em Blumenau. Nós estávamos jantando em um restaurante Chinês, famoso, sempre está

cheio, na frente da Flamingo8. Levantei para ir ao banheiro, e o Brandão estava na outra

mesa, tomando o seu uísque, ele gostava muito de whisky, não fazia mal nenhum. No

que fui passar, ele botou a perna para eu tropeçar, mas pulei.

Ainda assinavas como Tessaleno nessa época?

Acho que não, mas eles já tinham a minha ficha. Só ouvi ele dizer, “muito inteligente,

pena que seja comunista”. E eu, “Barbaridade!” Senti que de repente ele mudou. Nunca

me ameaçou de prisão, nada. É que ele descobriu que os dois filhos, a menina e o

menino, eram meus alunos no Colégio Santo Antônio.

Tu escreves no Vanguarda nessa época?

Já estava no A Nação. Já tinha saído do Vanguarda. Estava no jornal A Nação, coluna

diária. Um dia, era aniversário de uma jornalista já falecida, Ula Weiss, famosa Ula. Ela

me convidou para o aniversário dela no clube Olímpico, Alameda Rio Branco, onde eu

morava. No que eu entro, esbarro com o Brandão já meio alto, tinha tomado uns whisky

a mais, que me abraçou e disse assim, “Gervásio, queria pedir perdão pra ti, porque eu

fui a favor do golpe, mas secretamente era João Goulart”. Dei um empurrão e disse,

“Por favor, mentira não!”. Nem entrei na festa. Mas depois nos tornamos amigos.

Gostava muito de cão também, “cachorreiro” como eu. Quando ele morreu, nos

dávamos bem.

Escrevias sobre o que, Gervásio?

Comecei praticamente com crônicas, falei do rádio, da notícia ruim. O meu segundo

artigo que repercutiu muito. Eu era fã da Bossa Nova e tinha assistido a um show no

Rio de Janeiro do Luiz Henrique da Rosa, um compositor de Florianópolis, chegou a

gravar nos Estados Unidos, foi namorado da Liza Minnelli, trouxe a Liza Minnelli para

o carnaval de Florianópolis. Um boa pinta, bom compositor, mas ele gravou o samba

que era do Zininho9, chama-se “Se amor é Isso”. Ele gravou e tirou o nome do Zininho,

assinou sozinho, e aquilo é apropriação indébita. Fiz um carnaval em cima disso. Logo

depois, uma semana depois, a Neide Maria Rosa, uma cantora de Florianópolis, cantava

muito Luiz Henrique, veio com o Zininho dar um show aqui, em uma boate no Grande

Hotel Blumenau. E os conheci. Eles ficaram chocados, “Você teve coragem? Não é

verdade, esse samba não é do Zininho? Não é seu, Zininho?” “É, sabe como é”, mas

8 Tradicional casa comercial de Blumenau, especializada em roupa de cama, mesa e banho. (N. de VFC).

9 Cláudio Alvim Barbosa, compositor popularmente conhecido por Zininho. (N. de VFC).

Page 14: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

gostando do Luiz Henrique está bom. Perguntaste sobre o que eu escrevia... Virei

colunista, com notas pequenas.

Em qual jornal tu viras colunista?

Colunista foi no A Nação.

Então vejamos, só para entender: começas como colaborador do Ronda. Em que

momento assumes como profissional? É no Ronda mesmo, ou no Vanguarda?

Aí é que está. É até bom relembrar isso daí. Na Nação também era só colaborador-

colunista, até que no ano de 1970 veio o convite para ser diretor da sucursal do Jornal

Estado em Blumenau. Era um jornal que dominava o estado, assim como o Santa, que

nasceu com essa pretensão de ser um jornal estadual, e hoje é um jornal regional. O

único estadual mesmo é o Diário Catarinense. Fiquei dez anos lá, e foi aí que tive

carteira registrada. Depois foi essa passagem pelo Santa. Engraçado, trabalhando dez

anos no jornal O Estado, eu não sabia o que era uma redação, nunca tinha trabalhado em

redação, escrevia à distância. Peguei a época da máquina de escrever, o telex, não havia

computador. No Santa fui editor do Lazer, cinco anos.

Ficaste dez anos no Estado. Quem te fez o convite para trabalhar? Como surgiu

esse convite?

O diretor da sucursal era o Lauro Lara, meu vizinho, pai do Denis. E não sei, ele não

estava dando conta ou algo assim. Acho que o convite veio de Florianópolis, o diretor

superintendente, Marcílio Medeiros Filho, que foi cronista e depois abandonou, hoje

advogado. Marcílio foi meu colega de bancos escolares, aqui no Santo Antônio. Acho

que veio de lá, merece até um agradecimento se alguém me indicou aqui.

No Estado eras diretor e também escrevias?

Eu fazia de tudo, e dando aulas, imagina, tinha que mandar diariamente notícias,

assinaturas, e arranjar comercial. E não me davam repórter, não me davam nada.

Estavas sozinho aqui?

Sozinho. Nos primeiros tempos, não dá para dizer em anos, até que o jornal foi

crescendo, aumentando, viram que valia a pena investir em Blumenau. Então, o que

aconteceu? Surgiram os repórteres. Até citei naquele artigo que escrevi para o Jornal

Expressão Universitária. Então passou por ali o Celso Jânio Moskorz, que também é

médico em Indaial, o Newton Janke, que foi jornalista depois no Santa, trabalhou na

Caixa Econômica Federal, foi juiz federal, hoje é juiz eleitoral, se não me engano. Ele

está trabalhando na administração no Napoleão Bernardes. E todos bons de pena. Eu

dava as coordenadas, dava a pauta, corrigia os textos, dava certa liberdade, mas todos

abandonaram o jornalismo. E tinha esquecido uma personagem, eu era funcionário

ainda, o Santa comemorou não sei quantos anos de vida, 33, e tinha uma festa lá na Rua

Bahia. Assim que cheguei, estava na porta o Nelson Sirotsky, que me disse, “O Marcelo

Rech começou com o Gervásio” “E agora?” Nem me lembrava. Marcelo Rech é hoje

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diretor executivo de redação do grupo RBS10

. “Ele quer te rever, Gervásio, está andando

por aí”. Marcelo recordou que tinha terminado o científico, o pai dele era comandante

do 23º BI11

, e ele tinha sido meu aluno. Formou-se no científico, passou em jornalismo

na PUC de Porto Alegre e foi me procurar aqui na redação, “Professor, só vou iniciar

daqui há tantos meses, passei na segunda turma, o senhor não me dá uma chance como

repórter?”.

Isso no Santa?

Não, no Estado. Então, se ele não me lembrasse, eu teria esquecido desse episódio, uma

passagem muito rápida. Dentro do jornalismo também sempre fui incentivador da

charge. Nos anos que escrevia no Santa, década de 80, estava dando aula no colégio,

Santo Antônio e Pedro II, via um aluno esconder um papel, disse “O que está fazendo?”

“Ah, é um desenho.” “Mas que beleza, posso levar para publicar na minha coluna?”. E

alguns deles se tornaram bons chargistas.

Em que momento vais para o Santa?

No Santa, na década de 80, fui colaborador semanal.

Sais do Estado para seres colaborar do Santa?

Do Estado saí em 80, e no correr de 80-90 tive uma passagem como colunista no Santa.

Perto dos anos 90 fui editor. Funcionário contratado, com a carteira assinada, contratado

para ser editor do Lazer. Mas saí quando o grupo gaúcho comprou. Saí por vontade

própria. Não me dei bem com o editor chefe, chamado Nelson Ferrão, gaúcho, que me

levou a ter trauma do computador. Os gaúchos chegaram e colocaram o computador.

Nesse livro da “Da Olivetti à Internet”, conto essa passagem. Tem uma professora

gaúcha, muito bonita, chamada Jane, jornalista, que nos deu as técnicas para iniciarmos

nossa atividade quando foram instalados os computadores. Acontece que eu tinha, além

de editar as cinco páginas do Lazer, uma coluna diária e ficava naquela aula pavorosa,

já com aversão daquela geringonça. Aquela máquina queria mandar em mim. De

repente eu sumia, ia lá para um quartinho, uma sala, máquina de escrever, batendo a

minha coluna. Aí a Jane me surpreendeu “O que você está fazendo aí?” “Estou batendo

a minha coluna.” “Fazemos o seguinte, ao invés de fazer os exercícios que os outros

fazem, faz a sua coluna lá”. Fui obrigado a me adaptar.

A te renderes ao computador.

É, a uma lata de sardinha que quer mandar em mim. Agora eu gostaria de contar um

episódio engraçado. Eu me indispus com esse redator-chefe, ele queria tudo ao mesmo

tempo, queria que fizesse em dois dias o jornal da semana inteira. Pedi demissão, pois a

Jane foi duas vezes lá em casa pedir que eu voltasse. Mas não. Então, admirei-me

quando em 2004 eles me convidaram para ser cronista semanal. Trabalhei muito bem lá.

A parte engraçada que eu nunca contei, estou louco para escrever, mas ela é minha

amiga. Por enquanto não dá para contar. Não dá para contar em jornal. Eu descia a

10

Rede Brasil Sul (RBS), grupo do setor de comunicações. Abrange mídia televisiva, impressa, radiofônica, além de outros negócios. Retransmissora da Rede Globo de Televisão para os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. (N. de VFC). 11

23º Batalhão de Infantaria. Quartel do Exército Brasileiro localizado no bairro Garcia, em Blumenau. (N. de VFC).

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colina do Santo Antônio, em cinco dias de aula, eu voltava para a casa pela Rua Sete,

mas naquele dia desci pela Quinze, não sei por que, encontro o Aurélio Sada. Ele

escrevia sobre Esportes no Jornal A Nação, já é falecido, figura maravilhosa,

trocadilhista de primeira. Um dia estou na esquina da Floriano com a Curt Hering com

ele, conversando. De repente vem o alfaiate, sobrenome era Machado, Alcides

Machado, abanou para o Alcides, o Alcides se aproximou, “Gervásio, conheces o

alfaiate que faz ternos à Machado?” - e quando ele me irritava, chamava-o de “ossada”,

“ossada, para! Ossada”. Trocadilho é uma forma meio grosseira de humor, mas às vezes

funciona. E o Sadinha disse, “Gervásio, mas tu hein, como editor de Lazer, que fora que

tu deste”. Eu digo, “Que fora?” “Vem ler o Santa de hoje!” “O que houve?” “A

Neusinha era cronista social, ela ressuscitou o Leonardo da Vinci”. Digo “Isso não é

possível. Não tenho culpa nenhuma, e sabe por quê? Assim que assumi a Neusinha não

admitiu que eu fizesse a revisão da página dela”. Ela era toda poderosa, para mim uma

página a menos, melhor, menos serviço. E realmente, quando cheguei à tarde no

escritório, estava lá, no painel do jornalista “A Santa milagreira, Neusa ressuscita

Leonardo da Vinci”. A Basf, eu tinha recebido o convite e tinha noticiado, resolveu

fazer uma exposição itinerante pelo país das obras e dos projetos das máquinas e

criações do Leonardo da Vinci, tudo em ferro, algo assim. Mas a Neusinha, que não

permitia revisão, foi um grande erro dela, começou “O famoso escultor Leonardo da

Vinci, pensador, está convidando para a exposição de suas obras”. Um dia tenho que

registrar isso. Por falar em bate-papo, em entrevista ainda dentro da linha do jornalismo,

quando sou convidado a dar uma palestra, nos tempos de Rio de Janeiro, Fernando

Sabino conta que foi convidado para falar sobre a poesia, dar uma palestra, conferência

sobre a poesia dos primórdios. Primeiros poemas brasileiros, passando por todas as

escolas literárias até os dias de hoje. Passou meses estudando, fazendo pesquisa, era

para as alunas daquele famoso Sacré-Coeur de Marie, colégio de meninas grã-finas, a

elite. Bom, o que aconteceu? Falou, depois deixou livre, esperando uma pergunta

inteligente. Primeiro dedinho que se levantou de uma menininha da alta sociedade

carioca “É verdade, senhor Sabino, que quem escreve a coluna do Ibrahim Sued é o

Henrique Pongetti?” Eu imaginava dar uma aula aqui falando sobre escritores e depois

alguém me perguntar, “É verdade que quem escrever a coluna da Neusinha Manzke é

fulano de tal?”. Não dá. Por falar nisso, conheci bastante o Beto Stodieck, irreverente,

escreveu no Santa. O terreno dele era Florianópolis, ele chamava a Neusinha de “Neusa

Luz Manzkenada”, Mas que nada, um trocadinho infame que por escrito ele registrava.

Não no Santa, lá em Florianópolis, ele esteve no jornal do Beto. Colaborei com ele

também. Então, quando sou convidado para uma palestra, uma conferência, digo

“Gente, bate-papo. Vocês podem me interromper a qualquer momento, mas, por favor”,

aquela palavra ficou na minha cabeça, dar uma palestra e depois ter que engolir uma

pergunta besta dessas.

Na década de 90, quando começo a conhecer o teu trabalho, sempre te via em uma

série de jornais que eu chamaria de “alternativos”. Lembro que tinha o jornal do

Pedro II, O Canal Novo, comentavas, escrevias. Tinha o Hora Ilustrada.

O jornal do Carlos de Freitas.

Sim, e depois em Gaspar. Também disseste que tiveste teus próprios jornais, não é

verdade? Então, primeiramente, como surge essa ideia de criares os teus jornais?

Por que a necessidade de teres teu próprio jornal?

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Pois é, foi um ano depois de eu ter estreado na imprensa aqui, em jornais pequenos, eu

criaria o Jornal Opinião. Um poeta que queria aparecer, Alroino Baltazar Eble, morava

naquele castelo, eu chamo de castelo, em frente à Furb, em frente ao Giassi, onde foi o

restaurante Gruta Azul, que também já se foi. E o Alroino quis criar esse jornal, que

teve dois números.

O Opinião?

É. Era um jornal moderninho, a diagramação totalmente diferente. A gente bolava os

anúncios. Quando o Rubens Heusi deu para nós o anúncio da Óptica Heusi, nunca

esqueço, coloquei um verso antes “Fotografei você na minha Rolleiflex. Revelou-se a

sua enorme ingratidão” – Newton Mendonça, o letrista. Só tentei fazer um anúncio com

a famosa Casa Royal, que era só aquele Standard, só a marca. Bolei um citando

jornalistas, Nagel Milton de Melo, Aurélio Sada, João Vieira – o Mano Jango – , que

não dirigiam, mas se precisassem comprar um carro, seria na Royal. Foi desaprovado,

cortaram o anúncio, não tinha espírito inovador nem criativo. Sei que por falta de

comerciais morreu ali, na casca, o Opinião. Depois fiquei com a fama de criador de

jornal de bairro, de mesa de bar. Aí nasceu o Entrevista.

O Entrevista é de que ano?

Ah, o Entrevista foi na década de 80, 85.

Metade da década de 80.

A coleção toda está no Arquivo Histórico. O Entrevista foi um jornal bem inovador,

bem doido. É influência do Pasquim, claro. A Vera Fischer veio a Blumenau trazer uma

peça, a minha frustração era não ter dado aula para ela, era fã. A primeira vez que ela

veio a Blumenau com uma peça, acho que era a “Negócios de Estado”. Ela deu uma

coletiva no salão nobre da prefeitura. Estava belíssima, loura, no sofá, com jornalistas

de tudo que é tipo de comunicação. Terminou, o pessoal foi embora. Eu disse “Vera,

quero uma entrevista com você, sou seu fã número um”. Ela “Por que não aproveitou”.

“Não quero perguntas de outros, meu jornal chama-se Entrevista e você, a partir de

agora, é a musa do jornal.” Primeira pergunta, com o gravadorzinho, eu disse “Vera,

tenho duas frustrações em relação a você. Primeira, detestei o teu filme de estreia, Sinal

Vermelho, saí na metade”, ela ficou assim (expressa confusão) “Mas por quê?”, “Eu

sou alemão, apesar de descendência portuguesa, tenho a pele clara. Fui a Florianópolis,

estava na praia da Joaquina, tomei um sol exagerado, mas fui assistir ao teu filme, Sinal

Vermelho. E o cinema não tinha ar condicionado, um dia de verão, eu cheio de bolhas,

tive que sair do cinema.” “Mas tu não presta”; e “A segunda tu teres fugido das minhas

mãos. Dei aulas no Pedro II, mas não tive o privilégio de dar aulas para ti”. Enfim,

gostei dela, fui ver a peça. Entrevistei o Taiguara, políticos daqui, o único que fugiu da

minha entrevista foi o Horácio Braun. Marquei entrevista com ele.

Tinhas boas relações com o Horácio?

Nos dávamos relativamente bem. Não era aquela amizade, mas acho que ele foi

‘endeusado’ demais, tenho coragem de dizer isso. Era um bom humorista, bom

cartunista, o lado humano dele é que cativou as pessoas.

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E o Entrevista, era apenas entrevista?

A entrevista era o miolo do jornal, mas tinha seções diversas, colunas diversas e muito

picantes.

Picantes?

Tanto que o refrão era “O Pasquinzinho do Vale”. Seguimos aquela linha de “inticar”

com todo mundo. É um reflexo da história do Nagib com o Ingo Hering. Um dos nossos

patrocinadores era a Rádio Alvorada, se não me engano, na época era do Paulo Gouvêa

da Costa. Não sei que assunto nós abordamos que o Paulo não gostou e cortou o

Entrevista, cortou apoio do anúncio. Aí não tivemos dúvida “Entrevista desgosta Paulo

Gouvêa da Costa”.

- FIM DA 1ª PARTE -

A entrevista foi interrompida neste ponto, e prosseguiu uma semana após, na

residência do entrevistado.

- INÍCIO DA 2ª PARTE -

Poderias falar um pouco mais sobre os jornais que editaste? Como surgiu o editor?

Comecei, como disse, em 64, como colunista. Tornei-me, em 70, colunista de vários

jornais aqui, pequenos. Trabalhei na Ronda, Vanguarda, Tribuna, que era do Germano

Beduschi, um semanário do PTB12

, mas eu escrevia sobre o que eu queria. A Nação,

onde fui colunista diário. Até que, com o Jornal Estado, aprendi a fazer matérias mais

diversificadas e, como eu diria, cheguei a fazer reportagem. Adorava entrevista, o meu

segundo jornal chamou-se Entrevista. Adorava fazer entrevistas com artistas plásticos,

escritores, fosse quem fosse, políticos. Então foi na década de 70 que ampliei meus

horizontes como jornalista, atuando praticamente em todas as áreas, e graças a Deus,

como já citei, tive bons repórteres no jornal Estado. Considerava abacaxi terrenos em

que eu não sentia firme. Por exemplo, esportes nunca foi meu forte, tinha quem o

fizesse. E um episódio engraçadíssimo, o Jornal Estado me telefonou, no tempo que a

comunicação era por telefone, usava-se o Telex. Havia um jogo do Avaí, se eu não me

engano, de Florianópolis, com um clube de Rio do Sul, agora não me ocorre o nome. E

fui designado para cobrir o jogo. Não entendia patavinas. Naquela época não sabia o

que era um pênalti, imagina a minha situação. (risos) E lá fui eu de ônibus, com o meu

fotógrafo, que era o Guido Heuer, hoje famoso.

Quantos anos o Guido tinha nessa época?

O Guido não estava com 20 anos ainda. Era repórter e bancou o fotógrafo naquele dia.

Interessante, com todo o nosso amadorismo e de ônibus, o único gol que houve, e não

me lembro se foi do Avaí, ou do clube de Rio do sul, quem conseguiu a foto foi o

Guido. Pudemos estampar no Jornal Estado. O Santa, com todo aquele aparato, carro

próprio, o fotógrafo não conseguiu a foto do gol. Daí o meu drama, como narrar aquele

12

Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Fundado em 1945 tendo à frente Getúlio Vargas, foi extinto em 1965 pelo Ato Institucional nº 2. Refundado em 1980 pela sobrinha de Getúlio Vargas, Ivete Vargas. (N. de VFC).

Page 19: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

futebol, não entendia nada, nunca gostei. Concordava com o Millôr Fernandes que

dizia, “A solução para o jogo de futebol é uma bola para cada jogador e pronto, acabava

a briga”. Cheguei lá, aquela arquibancada, e vi o Bolinha, Carlos Eduardo Mendonça,

que na época era radialista em Rio do Sul, foi vereador, foi cassado. Pensei em chegar a

ele e pedir instruções, dicas de como narrar o jogo. Depois fiz uma coisa que seria e foi

antiética. O juiz era o Gilberto Nahas, comentarista esportivo do Jornal Estado, onde eu

trabalhava. Eu disse, “Nem preciso prestar atenção nesse jogo, que não entendo

patavinas, vou voltar com o Nahas”. E na viagem ele me descrevendo... Um juiz

descrevendo, sendo parcial, mas não interessa, cumpri a minha missão. Fotografia já

estava garantida. Na viagem fui anotando. Então cheguei a Blumenau em cima da hora,

era a edição de segunda, nunca esqueço, meu ponto era o Cine Bar, dos intelectuais,

Geraldo Luz, Valdir Floriani e outros. Por telefone transmiti o jogo. Nunca mais aceitei

esporte, eu já tinha os repórteres que gostavam de esporte. Foi um episódio engraçado,

digamos assim, tem que contar a verdade. Sem querer, eu fui antiético. Ora, ouvir a

versão do juiz, o juiz é parcial, enfim, cumpri a missão. Economia também nunca foi o

meu forte, e Social nem pensar! Passei aqueles 10 anos no Estado. Foi ali que aprendi a

fazer reportagem, porque os repórteres do Estado, em Florianópolis, frequentavam a

redação. O Dr. Aderbal Ramos da Silva, ex-governador, foi dono do jornal. Pagava para

eles passarem uma temporada no Rio de janeiro aprendendo a técnica da reportagem,

imagina, no Jornal do Brasil. Eles transmitiam os materiais que recebiam. Tanto que eu

não me esqueço, pediram-me também uma matéria sobre o carnaval em Blumenau, que

não existe. Falei do “não-carnaval” de Blumenau. E aqui não funcionavam aqueles

versos do sambista, “Foi sambar até calar o último pandeiro”, não tinha. Depois disso

tentaram ressuscitar, naquela época não tinha nada, salãozinho ou outro. Evidentemente

comprava o Jornal do Brasil, de repente eu olho, cobertura do carnaval de Santa

Catarina, o meu artigo ali. Sinal que eu tinha um texto razoável. Sem mudar uma linha.

Não me deram crédito, mas isso não importa, foi o Marcílio Medeiros filho, que era

diretor superintendente e correspondente do JB aqui em Santa Catarina, mas nunca

comentei, fiquei feliz com o texto no Jornal do Brasil. Bom, vou falar de episódios,

umas historinhas. Pediste dos meus ex-jornais. Eu estreei em 64, mas não foi ideia

minha não, foi um amigo, Alroíno Baltazar Eble. Ele tem um livro chamado “Ameno

abrigo”, existe aí nas bibliotecas, até na Furb deve ter. Era um poeta iniciante e queria

se projetar, então fizemos um jornal bem doido, diagramação ousada para a época, bem

original, diferente, mas durou só dois números, falta de apoio financeiro. Anunciamos o

terceiro com a colaboração do Alceu Longo, Mário Jango, João Vieira, que era cronista

diário da Nação, sua coluna “Espiando a Maré”, e o jornal número três morreu.

Era mensal ou semanal?

Era mensal. Pela metade dos anos 80, surgiu a ideia do Jornal Entrevista, e eu era

amigo, quase irmão do Norton Azambuja. Não lembro se o Norton já estava no Santa,

sei que o Norton queria estudar medicina, mas acabou no jornalismo. Ele admirava

muito meu trabalho. Tornamo-nos sócios e lançamos o Jornal Entrevista, que durou uns

20 números.

Mensal também?

Mensal. Deu uma parada e voltou anos depois, quando o Pedrinho Cascaes foi

candidato a prefeito e eu a vereador no PTB, imagina, empurrado pelo Norton. Eu

nunca pensava em ser candidato. Gostava de escrever sobre política, mas eu político?

Page 20: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

Nunca! Tanto que não fiz campanha, confiei nos meus alunos, só de me verem naqueles

segundinhos, não pedia voto.

Fizeste quantos votos?

Fiz 126 votos. Coincidiu que naquele ano tinha morrido o Norton, não vou dizer que

parei no hospital, mas quase. Foi uma desilusão total, na verdade. Depois nunca mais.

Mas para quem não fez campanha, foram votos de amigos. Nós e os vereadores do PTB

fizemos mais votos que o candidato a prefeito, Pedrinho fez mil votos. Não elegeu

ninguém do PTB. Aí o Entrevista morreu.

Por que morreu?

Talvez por falta de suporte financeiro, por mais que a gente insistisse. Quando me

aposentei em 92, o que eu pensei? Vou lançar o meu terceiro jornal. Mas Blumenau

estava apinhada de pequenos jornais. Tempo do Renato Vianna prefeito. Eu sei que eles

financiavam jornais, cada bairro tinha o seu jornal.

O PMDB13

financiava?

PMDB, Assessoria de Comunicação. Bom, o que vou fazer? Vou lançar em uma cidade

que não tenha, aqui perto. Indaial tinha, Timbó tinha, Pomerode, por incrível que

pareça, não tinha jornal. Procurei um ex-aluno meu, Valdemiro Pedrini, dono de

indústrias grandes, para ele dar apenas um pontapé inicial. Segui aquela orientação do

Pasquim, que nós já tínhamos feito no Entrevista, um expediente maior para o próprio

jornal. Para lançar o Jornal de Pomerode, para agradar aquela cidade considerada a mais

Alemã do Brasil, fomos de alemão, Pommer Zeitung, e embaixo, Jornal de Pomerode.

Comigo na direção, eu era chefe de redação e tinha coluna. Peguei muitos colaboradores

de Pomerode. Foi uma aventura, porque resolvi lançar esse jornal – o Norton já não

vivia, morreu em 88, foi começo dos anos 90. Uma cidade como Pomerode não ter

jornal, não admitia! Mas eu não conhecia quase ninguém por lá, um ou outro ex-aluno.

Então o que aconteceu? Sai o jornal de Pomerode com 80% de anúncios de Blumenau, e

20% de Pomerode, depois inverteu a coisa. Publicava tudo que era coisa de ex-aluno,

dono de borracharia, dono de pizzaria, livraria, todo mundo apoiou o Jornal de

Pomerode, o Pommer Zeitung. Mas acabei me desinteressando um pouco e o jornal foi

assaltado, digamos assim, tomaram-me o jornal. A minha cronista social, ex-aluna,

tomou conta do jornal. Ameacei processar, ela foi na minha casa chorando. Até hoje

existe, mas totalmente diferente.

Qual era a proposta do Pommer Zeitung?

Era um jornal para divulgar a cidade e focalizar aspectos, pessoas que mereciam

destaque. Então, a maioria falava alemão, e eu não sabia patavinas, o Ingo Penz traduzia

para mim. Entrevistamos o seu Egon Tiedt. Quem chegava a Pomerode, ele tinha uma

13

Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), fundado em 1980. Sucedeu ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição consentida durante o regime ditatorial brasileiro. Renato de Mello Vianna foi uma das principais lideranças do PMDB no Vale do Itajaí nas décadas de 1980 e 1990. Eleito Prefeito de Blumenau em 1977 e 1993 e Deputado Federal em 1983, 1987, 1991 e 1999, exercendo ainda o cargo de Vice-Reitor da Universidade Regional de Blumenau no período 1974-1976. (N. de VFC).

Page 21: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

loja de antiguidades, hoje é o museu dele, na frente daquela cervejaria lá de Pomerode.

Não foi fácil conseguir anúncio. Fui na farmácia do Alan, que tinha sido meu aluno, e

consegui. Entrevistei um velho carroceiro que há 40 anos vinha lá do morro com a sua

carrocinha, levando leite, e Ingo, fotógrafo de primeira, imagina as fotos que ele tirava.

Então o Jornal de Pomerode era um “fotaço”, com a cidade, o entrevistado, o carroceiro,

era muito bonito o jornal.

Era quinzenal ou mensal?

Mensal.

E durou quanto tempo nas tuas mãos?

Durou meio ano comigo, eu acho. E aí vem um episódio engraçado, o diretor comercial

era o Nelson Lamin, mas não tinha sorte, por quê? Moreno demais para o gosto.

Notava-se isso, pelo menos na década de 90. Então o que eu fazia: vou ter que dar um

de comercial. Jornal tinha que sobreviver. Nunca esqueço quando fui a uma farmácia, se

não engano, fiz a propaganda do jornal, ele já tinha recebido alguns números. Era um

dia de calor, estava de óculos escuros e o homem disse “Não, não vou dar anúncio!”

Tirei os óculos, “E esses olhos azuis não comovem o senhor?”, saí com o anúncio.

(risos) Levava na brincadeira. Também fui ao Weege. Weege, famoso laticínio, famoso

Kraeuterkaese, aquele queijo em tubo. O cidadão me recebeu muito mal, “Mais um

picareta que vem para cá”. Digo “O senhor está me chamando de picareta? O senhor

nem me conhece” “Não, é que teve um outro jornal aqui, o cidadão cobrou os anúncios

e o jornal nem saiu.” “Eu não vou fazer isso, o senhor está recebendo aqui o seu jornal.

O jornal existe e vai continuar. Se não quer dar anúncio, não dá”. Fui investigar o

porquê dessa reação dele, descobri que o cidadão picareta era o genro dele. Coincidiu

que no final da tarde, na nossa despedida de Pomerode, era no hotel Pomerode, ao lado

do zoológico. Lá estava o professor Webber, tomando a sua cerveja. Distribuímos o

jornal, a despedida era lá da cidade, com as notícias colhidas. E aparece o cidadão, o tal

do Weege, não tive dúvida, todo mundo elogiando o jornal, “O senhor já viu?”, ele

ficou “meio assim”. “Encontrei o senhor Weege, estava achando que esse jornal era de

um picareta, imagina, eu, picareta? Sou um homem honesto” “Passa lá amanhã cedo”.

Enquanto tive o jornal na minha mão, tive o rodapé muito bem pago pelo senhor

Weege. Então são coisas assim, de cidade pequena. Foi uma experiência válida.

Que tipos de notícias publicavas neste jornal?

Notícias variadas. A Prefeitura também dava suporte, claro. Sempre tem que ter esse

lado. Os jornais morreram por aí.

Foram só esses três?

Só esses três, o Opinião, Entrevista e o Jornal de Pomerode, Pommer Zeitung.

Citaste o Norton Azambuja, disseste que vocês tinham uma relação de irmãos. O

Norton Azambuja era uma figura muito polêmica da cidade. O que poderias falar

do Norton? Qual era o seu perfil? Quem era o jornalista Norton Azambuja?

Page 22: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

O Norton Azambuja era muito ferino. Sai da frente que ele não perdoava ninguém. Ele

teve uma guerra muito grande com o Luís Antônio Soares. Luís Antônio era editor

chefe do Jornal de Santa Catarina, e o Norton era colunista. Ele perseguia o Norton a

torto e a direita, e o Norton não se dobrava. Tenho um incidente que considero

engraçado. Nós estávamos no restaurante chinês, o primeiro que ainda existe, ali em

frente a casa Flamingo, em uma mesa de jornalistas, e o Luís Antônio chegou e

começaram a discutir. Ele ameaçando demitir o Norton. Sei que o Norton o chamou de

“Lubke”.

O que seria “Lubke”?

É um cidadão de Blumenau. Esse Lubke foi responsável por um desfalque em uma das

lojas principais. “Estou falando de um Lubke jardineiro, lá na Velha, famoso.” “Mas por

que me comparas?” “Por que você é um podador, vive podando a minha coluna”. Ele

tinha essas saídas magníficas. Então no fundo, o Luís o admirava, como admirava a

mim, embora ele tivesse, o Luís, recebido pauladas, principalmente do Entrevista, o

nosso prato preferido. Ele tinha uma coluna no Santa, Ponto de Vista, que nós

chamávamos de Vista do Ponto, e criou um personagem, o Negão.

Isso o Luís Antônio Soares?

O Luís Antônio, na sua coluna diária, botava na boca do Negão uma observação

qualquer sobre uma situação da cidade.

Ele intitulava o personagem de Negão?

De Negão. Aí não tivemos dúvida, racismo. Achamos um desenho, uma charge, um

acarapinhado, ele ficou uma fera. No Santa ele foi para o Aurélio, alegando que Negão

poderia ser afetivo, e não tinha nada com cor, eu sei que ele saiu-se mal. Nós

publicamos aquele charge com falas que caracterizam a cor dele. E Luís, certa feita,

espalhou, chegou aos meus ouvidos, isso ele não escreveu, não teve coragem, que eu

não era jornalista. “Gervásio não é jornalista, é crítico literário, só”. Não tive dúvidas,

foi o Pasquim de novo. O Fausto Wolff tinha publicado uma página inteira com aquele

linguajar solto do Pasquim, relacionou 50 pessoas, jornalistas, artistas famosos, dizendo

assim “Vinícius de Moraes é bicha” “Tônia Carrero é bicha” “Jaguar é bicha”, “só eu

que não sou bicha”. Mas que coisa. Eu digo “Vou me vingar do Luís”, eu não sou

jornalista. Peguei o expediente do Santa, onde ele trabalhava, comecei “Luís Antônio

Soares é jornalista”, fui pegando umas pessoas de comercial que eram jornalistas coisa

nenhuma. Fui botando todas as pessoas que eu achava que tinham pendor para

jornalismo e não eram jornalistas, no final coloquei “Luís Antônio é jornalista, só eu

que não sou jornalista”. Quem me conhecia sentia a ironia. Aí uma aluna minha veio

para mim, na saída de uma das aulas no Santo Antônio, “Professor, que pena, o senhor

não é jornalista.” “É, não sou, querida. Você leu muito bem o meu artigo, ao pé da letra.

Sabe como interpretar um texto”. (risos) Esse texto saiu em jornais de Brusque, Itajaí,

Gazeta de Gaspar, saiu em jornais daqui da cidade, pequenos. De repente o Luiz Carlos

Nemetz, outro ex-aluno – cada nome que eu citar vai sair ex-aluno. O Mauro Amorim,

jornalista de Florianópolis, quando vinha passar umas temporadas aqui na Oktoberfest,

dizia, “Não dá, Gervásio, cada esquina que para, para falar, é ex-aluno, não escapa

ninguém”. (risos) Acontece que o Luís Antônio, como editor do Jornal de Santa

Catarina, foi espiar o jornal da Furb, o Campus, que era impresso no Jornal de Santa

Page 23: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

Catarina. Gestão do Luiz Carlos Nemetz, e simplesmente tirou o nome dele na última

linha, o que caracterizava a implicância. Tirou, não podia fazer isso. O diretório

acadêmico estava pagando ao Jornal de Santa Catarina.

O jornal era impresso no Santa?

Era impresso no Santa, e ele manipulou. Apesar de tudo, dessas implicâncias, cutucadas

que eu dava, escrevia “de jornalista o Luís tem só ares”, um trocadilho infame. Mas eu

escrevia, ele não tinha coragem. “Não vai responder, Luís?” Ele, “Eu não respondo para

jornal pequeno”. Foi um episódio engraçadíssimo, quando ele lançou o livro dele, e

quando eu lancei o “Rio que Passa em Nossas Vidas”. Ele foi um que estavam na fila

para prestigiar e receber autógrafo. Quando pegou o livro, ele olhou, “Só 76 páginas?”

Eu disse “Luís, graças a Deus, a Fundação é que encomendou o livro, me deu só 76”

“Ah, mas o meu vai ter 300 páginas” “Ótimo! Que o teu tenha 300. Felicidade tua”.

Depois me telefonou e pediu o prefácio. Ele gostava de mim, de todas as minhas

implicâncias e cutucadas que ele nunca respondeu, Mandei uma lauda, se não me

engano, ele telefona e diz “Olha, Gervásio, acho que não preciso daquele prefácio não, o

Moacir Pereira já fez.” Eu disse “Luís, vou analisar esse teu livro de trás para frente”.

Saiu como depoimento, um pedacinho, mas saiu. Na noite do lançamento, o Moacir

Pereira que era meu amigo estava aqui no Carlos Gomes, muita gente, muito

concorrido, cumprimentei, vi ele autografando o livro para o Moacir e para mim nada.

Não iria pedir, eu falando com a Rose, a esposa dele, os filhos, as filhas, tinham sido

minhas alunas, muito queridas. Não iria pagar o livro, tinha feito o prefácio. Passou uma

semana e eu liguei para ele, em um sábado. Disse “Luís, e o livro?!” “Está nas melhores

livrarias do ramo.” Eu digo “Estás enganado, o meu exemplar eu quero hoje, aqui

autografado, ou vou fazer uma outra análise do livro”. De tarde o livro estava lá,

autografado, não fui nem eu que recebi. Pedi para que alguém pegasse o livro, apesar

disso a gente se dá muito bem. Encontramo-nos na rua e é como se não tivesse

acontecido nada, não houve nada. Mas vamos falar...

Do Norton.

O Norton começou no A Nação. Tenho um artigo com a coluna que ele bolou,

engraçado, TLG, era Teatro, Livros e G de Geraldo, não sei. Também era tudo, mas ele

não tinha medo. Quando precisava dar uma fisgada nos reitores da Furb, fosse o

Bráulio, escritor, ou o prefeito, ele escrevia com uma liberdade total. E nós fomos muito

amigos. Tanto que quando o Entrevista ressurgiu nessa edição do Cascaes, que também

ficou só naquele número, voltou triunfalmente e morreu, nós fizemos uma entrevista um

com o outro, contamos as nossas vidas, com participações especiais. Estávamos na praia

de Navegantes, na casa dele, fizemos uma entrevista bem espontânea, tipo o Pasquim.

Um falou da vida do outro, um analisou o outro, foi bem interessante. Ele era de uma

inteligência excepcional, mas morreu muito cedo. Ele também nunca pensou em ter um

livro, já devo ter dito, eu nunca pretendi ser escritor. Quando me convidam, com o

material, eu publico, mas a minha sede mesmo, a minha realização é ver o texto em

jornal impresso. Bom, agora vamos ver como a política pode influenciar a vida de um

jornalista ou aliciar a vida de um jornalista. Vou contar dois episódios que ocorreram

comigo. Como eu disse, trabalhava de manhã no colégio, de tarde jornal, à noite

colégio. E de repente, eu dava aulas no Pedro II. O Geraldo Luz, meu primo, uma

figura, professor de História, aquele professor de História sem decoreba, ele fazia

interpretar a história. Ele queria a interpretação. Que o aluno entendesse o fato histórico.

Page 24: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

Muito calmo, uma maneira de falar muito engraçada, calmo demais. Geraldo, por

exemplo, gostava de tomar um cuba, então era o ritual. Pegava aquele copo, levantava,

dizia umas palavras, colocava o copo na boca. Vai beber ou não vai? Acabava bebendo,

claro.

E da mesma forma era em relação à poesia. O Geraldo era um poeta que

retrabalhava o verso muitas vezes.

Muito, tanto que nos livros que lançou, os poemas voltam reciclados. Ele tem versos

bonitos “Manhã, porém já tarde para um outro despertar”. Outro que eu gosto muito é

“Os que possuem a consciência de cristal, é permitido recriar as leis”. Gostava muito do

meu primo como pessoa, como intelectual, como professor e como poeta. É uma poesia

rebuscada, não é uma poesia fácil. Muito interessante as suas influências, que recebeu

de pessoas, conhecidos, poetas que o influenciaram. O Geraldo Luz, com essa calma

toda, tem um episódio engraçadíssimo. Teve uma eleição da UBE14

. O candidato de

uma das chapas era o Péricles Prade, que vocês já entrevistaram, meu amigo também de

infância. Falando nisso me lembrem de falar dos cronistas sociais. Tenho uma bomba

para contar (risos). Bom, o Geraldo era candidato na chapa como orador, e o comício

foi no Clube Náutico América, hoje tem aquele esqueleto, na época funcionava o clube,

tinha um restaurante, bailes. E o Geraldo, com aquela calma exagerada, foi fazer o

discurso e começou: senhores e senhoras. Deu-se aquele silêncio magnânimo. Senhoras

e senhores, repito, foi esvaziando o público, Péricles perdeu a eleição. (risos)

Como que a política pode influenciar na vida de um jornalista?

Influência não, mas proporciona certas regalias, oportunidades. Eu nunca pensei que o

jornalista não deveria ser de partido político. Eu entrei no PTB por circunstâncias, por

insistência do Norton.

E ele insistiu contigo por quê?

Botou na cabeça que eu deveria ser vereador. Se ele estivesse vivo naquele ano da

eleição, talvez eu tivesse um pouquinho mais de voto. Ele teria ficado pendurado no

telefone, falando para todo mundo. Foi em 88 a eleição, o ano em que ele morreu.

E por que o PTB, Gervásio?

Por amizade com o Cascaes.

O Norton era filiado ao PTB?

Não. Nunca foi filiado a nada. Que eu saiba não. E havia um jornal chamado Tribuna do

Vale do Itajaí. A redação era no escritório do deputado Aldo Pereira de Andrade,

esquina da Nereu Ramos com a Sete, um prédio onde hoje tem um restaurante embaixo,

informática, pé de esquina, cor-de-rosa. Era o escritório do deputado, ele publicou para

divulgar o Aldo, que chegou a sete legislaturas, por pouco ele não recebe o Guinness, de

tantas vezes que foi reeleito. Blumenau não o quis prefeito, não adiantou, mas como

deputado ele sempre se reelegia. 14

União Blumenauense do Estudantes (UBE). Entidade que representa os estudantes secundaristas do município de Blumenau. (N. de VFC).

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Quase um deputado vitalício.

É. Deputado vitalício. O Geraldo era muito moroso, fez uma edição do Tribuna e não

queria continuar, indicou-me. O Aldo, o deputado, teria dito “Mas o Gervásio não vota

em mim”, eu tinha fama de nunca votar na situação. Eu era do contra. “Ele pode não

votar no senhor, vai continuar não votando, mas que ele vai fazer um jornal para o

senhor, ele vai”. O deputado me chamou. “Mas não dá, deputado. Tenho o colégio

Santo Antônio à tarde, e à noite o Pedro II”, acho que na época não estava em jornal

grande. E ele “Dá sim. O que você quer?” “O que eu quero? Queria um tempinho para

fazer o seu jornal”, mas, o jornal quinzenal também não precisa de tanto tempo assim.

“Você vai ser assessor da quarta Ucre”.

Ucre eram as coordenadorias de educação estaduais.

É, ali na esquina do Pedro II com a Alameda. Ele ligou para o Valmor Buss, eu era

professor dos dois filhos do Valmor. Era um “Pois não, deputado? Pois não,

deputado?”. No dia seguinte fui apresentado. Valmor foi de uma sinceridade sem fim.

(risos) Total. “Gervásio, meu candidato, criaram esse cargo de assessor.” “Candidato

não vou ser não.” “Eu iria trazer o Danilo Gomes para cá, mas o deputado quer...” Então

era legal, fui transferido, cedido pelo Pedro II a uma coordenadoria de educação, certo?

Ali fiquei quatro anos, até que mudou o governo, entrou o Pedro Ivo Campos, se não me

engano, entrou o PMDB. Entrou uma nova diretora lá, e eu ouvi um zum-zum que ela

iria me cortar e saí. Claro, fiz a minha queixa ao Renato Vianna, que foi lá e deu uma

bronca nela. Mas eu estava afim de voltar para o colégio. Voltei para o colégio numa

boa. Atitude legal, descansei da sala de aula durante um bom tempo, prestei meus

serviços a Ucre, sempre incentivando a cultura. Levei aos colégios livros, campanhas,

fiz o que podia, até extrapolando minha função. Acontece que veio outra grande

oportunidade de eu ter uma posição boa em um jornal grande. Minha mãe, que eu já

disse, era de Itajaí, Elga Luz, foi ao Rio de Janeiro visitar as irmãs e, no mesmo voo,

estava o Jorge Bornhausen, que na época era governador do estado. Como mamãe era

muito amiga da Marieta Konder Bornhausen, mãe do Jorge, o Jorge perguntou como eu

estava. Mamãe – sabe como toda mãe – “Ele está realizado como professor, como

jornalista, mas ganha tão pouco”. Resultado, mamãe voltou dizendo “O Jorge quer que

você se apresente no Jornal de Santa Catarina”. Até então não tive participação alguma

no jornal. Mais tarde, no final dos anos 80, eu me tornei colunista. Fui lá saber o que é,

“Gervásio, você...” veio me comunicar o Paulo Malburg, que era da direção do jornal,

da Companhia Hering. O Jorge no fundo era o dono do jornal, era governador, botou ali

uns aliados, botou o Flávio de Almeida Coelho.

Mas isso já era na época da RBS?

Não, não tinha comprado. Muito antes, e põe antes nisso. Levei um susto “Editor do

Santa? Mas eu vou topar. Como vou conciliar?” Aí falei “De manhã tenho o Colégio

Santo Antônio, não vou largar o meu colégio, de jeito nenhum.” “É, mas o editor teria

que estar de manhã, e já que o Dr. Jorge quer você, pode vir à tarde.” Veja a força de

um político (risos), achava graça. Fizeram os telefonemas, conseguiram. Imagina só,

que eu fosse cedido pela Secretaria de Educação para trabalhar no Jornal de Santa

Catarina. Tem nada a ver, o escândalo que poderia ocorrer depois. Como governador,

tudo bem, tem força para isso, mas eu não podia aceitar, por uma questão moral, de

Page 26: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

princípio. Sair da sala de aula do Colégio Pedro II e ir para uma assessoria de imprensa,

em um órgão da educação ligado ao governo, é uma coisa, é legal, mas pedir para uma

empresa privada? Ainda o seguinte: eu receberia do jornal e receberia do estado. Tive

que dizer um sonoro não, lamentando muito. Mais tarde, uns dez anos depois, fui

contratado como funcionário, como eu já disse. Editei o Lazer.

Esse episódio do Jorge Bornhausen é de quando?

Foi na década de 80 que ocorreu isso. Fico muito grato ao Jorge, um gentleman, ele foi

gerente de um banco em frente do falecido Cine Bush, tinha um banco. No prédio dos

correios, onde hoje é uma loja, naquele prédio suntuoso. Ele era presidente. Fui lá uma

vez tratar não sei que assunto da mamãe, e ele me tratou muito bem. Tenho admiração

por ele. Mas nunca votei e nunca votaria nele, como eu sempre disse, se está no poder,

Gervásio está do outro lado.

Pediste para abordar a questão dos cronistas sociais...

Talvez influenciado pelo Stanislaw Ponte Preta, talvez não, e também por aqui. Eu

conheci o Luiz Antônio Soares, eu garoto e ele já estava em jornal, era cronista social

aqui da juventude. Nunca esqueço, entrava no Carlos Gomes quando tinha qualquer

acontecimento, ia de fila em fila, tomando nota, olhando as meninas. Mas não foi só o

Luiz Antônio Soares que principiou na crônica social ou na coluna social . A palavra

crônica é boa demais para esse gênero de jornalismo. Lindolfo Bell começou como

cronista social. Péricles Prade começou como cronista social. Marcílio Medeiros Filho,

bom cronista, hoje está afastado, cronista social. Onde é que se vê isso? Existia uma

revista do Vale, Revista Social do Vale, com as colunas assinadas por Péricles, pelo

Lindolf.

Que tratavam do quê?

Era puro registro.

Fotografias, festa de debutante...

Da parte do Bell e do Péricles, que eram de Timbó, eu não esqueço, a grande

reportagem era uma festa junina, pessoal vestido de caipira. Registro simples, noivados,

namoricos, fuxicos, claro que eles não iriam incluir na biografia, se tornaram bons

escritores, poetas. Com o Lindolf Bell eu tive uma relação, não diria de amor e ódio,

porque seria um exagero, mas eu, implicante como eu disse, era muito crítico. Assisti a

entrada do Lindolf em Blumenau. Eu já estava na imprensa. Fomos apresentados e achei

que ele se endeusava demais. Na minha coluna do jornal A Nação, fiz uma nota bem

maldosa sobre ele, “Como poeta, autopromove-se, toma carraspanas de vinho com coca-

cola”. Cutuquei com vara curta, dizendo que ele aparecia mais em crônica social do que

em sessão de crítica literária. Na época, sei que a Elke me pega na esquina, meu Deus,

eram noivos na época, a Elke Hering, “Gervásio, porque insistes tanto em implicar com

o Bell?” Esses anos todos correram e eu não achava o Bell, assim, aquele poeta! Dizia

mesmo, poeta de um verso só, “Eu vim da geração das crianças traídas”. Hoje mudei

totalmente de opinião. Quando ele faleceu, era festa de 60 anos, eu nem iria, mas estava

acompanhando. Nos dávamos bem, ele reconhecia o que eu fazia, ele lançava aquelas

coletivas, fazia aquelas exposições no Carlos Gomes, eu levava os meus alunos, falava

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com o Frei Wilson, pedia autorização. Colegas meus tinham inveja, achavam que era

matação de aula, que nada! Eles iam com questionário. Filho de gente rica, que o

colégio era mais de elite, nunca tinha entrado em uma exposição. No questionário que

valia nota, pedia para visitar toda a exposição, se tivesse algum artista, eles

entrevistavam, falavam com o Bell. Eles tinham que escolher um artista, uma obra, por

que a técnica de construção da obra. O Bell reconhecia isso. Mandava convites para

universitário, não ia ninguém. Aquele grupinho do Santo Antônio religiosamente, todo

ano, batia ponto. Depois que o Bell morreu, quando ele morreu, cheguei à conclusão

que o que eu achava exagero da parte dele, ele estava certo. Ele hoje não seria lembrado

se não tivesse feito aquela mídia toda em torno dele mesmo. Comecei a descobrir versos

realmente bonitos, extremamente líricos, com mensagem, além daquele das Gerações

das Crianças Traídas, que por maldade dizia que era o único verso decente. Nos

tornamos bons amigos, tudo com amadurecimento, como eu disse, coisa de jovem.

O Martinho Bruning, qual a relação que vocês tinham?

O Martinho era um senhor muito reservado. Eu o conheci porque era muito amigo do

Geraldo, ambos eram poetas. Por isso tive pouco contato com o Martinho, mais com a

esposa que era artista plástica. Papai e mamãe eram padrinhos de casamento do

Martinho. Depois que ele faleceu, ela fez questão de me dar toda obra dele. Os haicais

dele são profundos, bom poeta, poeta sério, que retirou do próprio bolso toda a sua obra.

Não foi reconhecido como deveria pelo que ele publicava nos primeiros livros, em

textos nos jornais, alguma editora deveria ter se sensibilizado. Então, só para mostrar

agora, continuando esse papo, uma época escrevi uma nota, faz tempo já, tempos do

Bell, as primeiras exposições artísticas de Blumenau, “Inflação de Poetas”. Todo mundo

em Blumenau era poeta. Aí fui em uma exposição ali da Prefeitura, na Fundação, me vi

cercado por Tadeu e outros “É, tem um cara aí denegrindo nossa imagem.” “Tem um

cara não, sou eu! Alguma coisa contra? Me prove que tem alguém aí. Não tem! Manda

um poeminha para o jornal, publica e é poeta, mesma coisa que mandar uma carta para

o Jornal de Santa Catarina ou para qualquer jornal, ‘eu sou jornalista’. Não dá!”.

Felizmente, no correr dos anos, foram aparecendo bons nomes, hoje é fácil publicar

livros em antologias.

Gostaria de uma leitura tua do jornalismo, continuas jornalista, escrevendo para

jornais de Gaspar, Blumenau, enfim, mas daquele momento em que atuavas de

uma forma ainda mais profissional, quando o jornalismo era o teu ganha pão.

De redação, dia-a-dia?

Isso, redação, edição, ou seja, a década de 70, 80 e o jornalismo que é praticado no

Vale do Itajaí hoje, que comparações, diferenciações tu estabelecerias?

Eu diria, e não me chame, por favor, de nostálgico. Embora eu seja um saudosista de

marca maior. Uma época, antes de assumir como profissional no Santa, editor do Lazer,

5 anos, tinha uma coluna semanal chamada “Tessaleno” mesmo, depois, no final. é que

vinha o meu nome todo. Já estava começando a invasão dos gaúchos. De repente a

minha coluna some no ar, a editora chamava-se Débora Matte, uma gaúcha.

Ela era do Santa?

Page 28: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

Do Santa. Editora do Lazer. Eu telefonei para ela.

O Editor-geral era o...

Pimpão. Altair Carlos Pimpão, da TV Galega. Aí eu reclamei “O que houve?” “Você só

escreve sobre o passado”. Estava entrevistando músicos da época em que estava bem

moderninho, mas, enfim. Fui ao Pimpão. No Brasil, já disse “Amizade é fundamental

em tudo”. A minha mãe, Elguinha, entra novamente em cena, era muito amiga da

Zulma, esposa do Pimpão. E eu conhecia assim... Fui a ele “Mas Gervásio, não posso

fazer nada”. Ele não era aquela mão de ferro, aquele temperamento. Mas a ironia da

vida. Aceitei. Saí porque era saudosista demais, só falava do passado. Um ano depois

Pimpão lança livro “Recordar é viver”. (Gargalha) É de matar, não é? Vou dizer que

aquela época de jornalismo intenso, era uma época romântica da máquina de escrever,

não por isso só, da cata de notícias. O repórter saía doido a procura de uma notícia, e do

tal do furo, que hoje em dia não existe mais, dar em primeira mão uma notícia. Depois,

tenho dois episódios reais que vou ilustrar e que têm relação com a Furb. Hoje não, se

eu for em uma redação de jornal, todo mundo em seu computador, precisa de uma

informação, o próprio aparelho fornece. Não há mais aquela investigação profunda. A

notícia que saí em um jornal, sai no outro, com variação de estilo e pronto. Contando

agora dos furos. Eu trabalhava no Jornal Estado, não tinha repórter na época e me

telefona o editor de política, “Gervásio, tenho uma bomba de Blumenau: ARENA15

de

Blumenau vai romper com Colombo Sales”. Colombo foi o primeiro governador eleito

fora das oligarquias, mas com apoio, claro, se não ele não teria sido nomeado, embora

indicado por militares. Blumenau queria mais representatividade, mais secretarias, não

tinha nenhuma, se eu não me engano. “Tu tens que levantar isso!” Eu digo “Meu Deus,

são seis da tarde!” Era para o dia seguinte. ARENA rompe ou não rompe com

Colombo? Mas não tinha saído nada, em jornal nenhum. Lembrei-me do deputado

federal Abel Ávila dos Santos, que era meu vizinho. Foi várias vezes reeleito, tijucano.

E lá fui eu para a casa do Abel, fundos da Alameda, Rua Amapá. Tinha saído do banho,

pediu que esperasse um pouquinho, eu abri o jogo. “Não tem nada disso Gervásio.”

“Não vá me enganar, e a amizade sua com o meu pai?” O pescador... “É, mas não posso

dizer nada”. Sabia que ele estava com segredo a sete chaves na mão. Penso, “Vou sair

daqui com essa notícia”, “Deputado, é só para mim, tá? Porque não há mais tempo, já

são sete e meia, agora o jornal já está fechando”. E ele caiu na minha isca de pescador.

Dia seguinte o Estado “ARENA de Blumenau rompe com Colombo”, manchete. O

secretário da casa civil era o ex-deputado de Taió, Orlando Bertoli. Diz que ele chegou

de carro, entrou no Grande Hotel Blumenau, onde era a reunião, pegou o Jornal Estado.

Meu Deus, que bomba! Acontece que o Jornal Santa Catarina era arenista, o Estado não.

O Estado sempre foi independente. O Aderbal, apesar de ser político, tinha sido

governador... E eles estavam uma fera. O Santa Catarina, que era do governo, sabia de

tudo, não publicou, ficou esperando a confirmação. Diz que o Luiz Soares batia na

mesa, “Quem foi o fdp que deu a notícia?”. O deputado Abel baixou a cabeça. O Santa

ficou doido, pois havia um acordo de não divulgar a notícia.

E o segundo furo?

15

Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Partido político criado em 1965 para dar sustentação ao Regime Militar que governava o Brasil. Extinto em 1979, com o retorno do multipartidarismo. (N. de VFC).

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O segundo furo não foi bem furo. É mais, como eu diria, sorte. Houve um crime em

Indaial. Pica-pau matou industrial, um bandidinho, cidadão apelidado de Pica-pau,

matou ali no Ribeirão da Mulde. Atrás da igreja assassinou um industrial de Indaial. Eu

saí cedo, de táxi, e o Santa passou com aquele carro de fotógrafos. Sei que quem

conseguiu entrevista com o Pica-pau exclusiva fui eu, porque era amigo do delegado,

não deixaram o Santa falar com o suspeito. Então é sorte.

Havia uma disputa entre o Santa e o O Estado?

Existia, porque o Santa não admitia, não foi lançado como jornal regional, foi lançado

como jornal estadual, tinha a sucursal lá no Oeste, em tudo que era lugar. Hoje ele está

circunscrito ao Vale e ao Litoral, restrito a essa área. Então, não admitia, o Estado já era

meio decadente. O Estado não era offset ainda. Havia essa rivalidade.

Recentemente foste cronista no Santa. Colunista semanal.

Foi em setembro de 2004... acho que comecei.

Alguma diferença em relação ao leitor de agora para o leitor na década de 80, na

década de 70?

Eu notei muita sensibilidade. Interesse pela leitura. Talvez antes eu não auferisse isso.

Quando eu atuava mesmo como repórter do dia-a-dia, não me preocupava tanto com a

repercussão, então era espontâneo, não saía perguntando para as pessoas “O que achou

daquela minha crônica sobre isso?” Não. Às vezes uma velhinha me encontrava “Adorei

aquele seu artigo sobre o cachorrinho”. Eu sentia uma receptividade muito grande em

relação aos leitores, senti que há realmente leitores para cronistas. Aliás, não admitia

que um jornal não tivesse um cronista na parte literária diária. Os grandes jornais

sempre provaram isso, o Globo, Jornal do Brasil, Correio da Manhã. O cronista é a

presença da literatura no dia-a-dia. No jornal a crônica se perde, por isso a maioria dos

cronistas que atuam em jornal, acabam publicando em livros que ficam perenes, quando

o assunto é perene. Factual a gente não inclui em livro nenhum.

Sobre esta comparação...

Que eu acabei não respondendo ainda bem. Eu diria o seguinte, era romântico. Imagina

a situação que vou contar agora. O João Vieira foi um dos jornalistas que me marcou,

foi incentivador. Quando comecei a escrever em jornal, ele tinha o Espiando a Maré, o

Mano Jango. João Vieira era o nome dele, funcionário da Estrada de Ferro de Santa

Catarina, um boêmio, bon vivant, autodidata, leitor de Humberto de Campos, Pitigrilli.

Ele tinha uma coluna diária muito gostosa, se comunicava muito bem, o Espiando a

Maré, uma homenagem as suas origens litorâneas, de Tijucas. Soube há pouco tempo

pelo Bernardo Tomelin, que foi o tipógrafo do Jornal A Nação.

Um mestre tipógrafo

É, um mestre, e depois de aposentado ele foi trabalhar na Fundação Cultural e teve essa

coincidência. As minhas primeiras colunas foram compostas em linotipo pelo Bernardo.

Meu livro foi feito por ele, décadas depois. Fazia com carinho, uma pessoa excepcional,

último guerreiro. O tipógrafo, uma raça em extinção. O Paulo Jacques, também foi outra

Page 30: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

figura, já mencionei, redator-chefe do Jornal Vanguarda e Ronda, e depois teve uma

coluna, Bunker, no A Nação. Portador de um estilo ímpar, carioca que acabou vindo a

Blumenau. Tinha uma fofoca que ele era da “Cenimar”16

, agente da revolução, da

marinha, mas nunca se provou. Sabe-se que ele tinha um bom relacionamento com os

militares, segredos que ele sabia e levava aos jornais. O Paulo era engraçado, isso eu já

escrevi, depois que ele faleceu. Paulo era extremamente gago, era difícil, dependendo

do dia e do nervosismo, entendê-lo. Mas, em compensação, assisti a essa cena, ele

sentado à máquina de escrever, na redação do Jornal Ronda ou a Vanguarda, e o Nagib

Barbieri diz, “Hoje o editorial é sobre o Ivo Silveira, governador”. “A favor ou contra?”

E com a mesma facilidade de escrever a favor ou contra, ele tinha ali na máquina de

escrever um editorial de primeira, vindo de um jornal de grande capital. Tanto que o

Carlos Lacerda esteve em Blumenau, ciceroneado pelo Norton Azambuja. Carlos

Lacerda estava lendo A Nação, viu aquela coluna Bunker, leu e disse “É o melhor

cronista político de Santa Catarina, nunca vi escrever tão bem”. Impressionante.

Também me influenciou muito na maneira de enfocar uma notícia, sondar e noticiar a

notícia. Nunca fui processado, porque sempre tive base. Tenho um caso engraçadíssimo,

isso quase me valeu processo. Ocorreu na redação do Vanguarda, em frente ao cine

Bush, na Alameda Rio Branco. Era um sábado de manhã, estava o Nagib proprietário, o

Paulo Jacques, redator-chefe, o tipógrafo buscando os seus tipos e entra o Osmar

Jacobsen, professor do Pedro II. Ele tinha sido criticado, tinha pretensões de deputado

federal, alguma coisa assim, e o Jornal A Vanguarda tinha torpedeado o militar. Ele

chegou todo fardado com uma varinha que o militar tem, não sei o nome. Entrou, olhou

todo mundo, sério, bateu em uma máquina de escrever, “O que é isso?” O Nagib,

descendente de Turco, não tinha papas na língua, “Máquina de lavar roupa.” “Exijo

respeito à autoridade”, disse o militar. “Para pergunta besta, resposta cretina.” O militar

baixou a cabeça e foi embora. Eu escrevi isso, escrevi essa historinha, saiu nos jornais

em Brusque, aqui, Gaspar, sem repercussão. Saiu no Santa, recebo um telefonema, era o

Nagib Barbieri.

Saiu no Santa, quando?

Na década de 90, a historinha bem completa, nome do major. Diz o Nagib Barbieri, que

tinha sido como dono de jornal um pai para mim, não era funcionário, nem isso,

colaborador, para mim foi um incentivo, além de me dar total liberdade na escrita. Diz

assim, “Que pena, um moço tão inteligente está descendo a colina”, Nagib Barbieri no

telefone. Eu digo “Por que, Nagib?” “O major Jacobsen não gostou daquela história, ele

vai te processar.” “Mas que beleza, Nagib. 35 anos que estou em jornal, intiquei com

Deus e todo mundo e nunca fui processado, mas agora, e ainda por um militar, da

ditadura!”. Ele ficou quieto, “Passa aqui para tomar um cafezinho”. Não deu em nada.

A crítica que fazias ali na década de 80, dizendo que em Blumenau o indivíduo

publicava qualquer coisa e já era poeta, que não vias grandes coisas que valessem a

16

Centro de Informações da Marinha. Durante a Ditadura Militar no Brasil o órgão foi empregado na repressão aos grupos de esquerda. Subordinado ao Ministério da Marinha, desenvolvia investigações, promovia prisões e praticava torturas em presos políticos. Maiores informações na reportagem “Os arquivos secretos da Marinha”, assinada por Leonel Rocha e publicada pela Revista Época, edição de 25 de novembro de 2011. A reportagem pode ser encontrada no sítio eletrônico http://revistaepoca.globo.com/tempo/noticia/2011/11/os-arquivos-secretos-da-marinha.html (N. de VFC).

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pena naquele tempo. Como avalias o cenário cultural, principalmente o literário,

na cidade e região hoje?

Hoje está diferente. Aquele meu ceticismo em relação a valores. Fui aluno em cursos de

preparação para lecionar português, de literatura com o Celestino Sachet. Celestino,

admiro muito, até hoje nos damos muito bem, ele tinha uma visão muito grande, então

ele deu uma aula que foi um show. Até publiquei isso, mas acredito que esses escritos

não existam mais. Ele disse que não existe literatura de Santa Catarina, existe literatura

em Santa Catarina. Por quê? Porque é um estado diferente. Você fala de literatura

baiana. Jorge Amado, João Ubaldo, qualquer autor baiano logo é percebido não só pelas

palavras utilizadas, porque o baiano é único, tem características próprias. O gaúcho,

Érico Veríssimo, Mário Quintana provaram isso, entre outros, o gaúcho tem aquele tipo.

Santa Catarina é uma miscigenação, uma mistura de raças, de imigrantes. Jocosamente

o Celestino desenhou um mapa e tinha a gadolândia, que era a região de Lages, dos

escritores de Lages. A Verafischerlândia era a nossa região, aqui do Itajaí. E para cada

região do Estado ele bolou um nome que caracterizava a influência maior. Quando

deixei de lecionar em 92, se houve um escritor que indicava aos meus alunos – eu

cobrava leitura – foi o Enéas Athanásio, de quem sou muito amigo hoje. Sempre o achei

um ator regionalista de primeira. Acho o Enéas admirável. Ele reverencia o Monteiro

Lobato, mas é um escritor de fôlego. Tem mais de 30 obras, a maioria, grande número,

eu tenho aí, ele me manda sempre. Admiro muito o Enéas Athanásio. Então, nós

tínhamos um autor muito bom. Até uma época publiquei, saiu em um jornal acadêmico,

no tempo do Olsen, da esposa, na época a Maria Odette, saiu uma declaração minha

comparando a nossa literatura à BR 101, em termos de literatura. Um era do Paraná, o

outro no Rio Grande do Sul, zero em Santa Catarina. Não existia literatura aqui, quer

dizer, existia literatura feita em Santa Catarina, por pessoas vindas e outros estados, das

mais variadas regiões, mas não tinha aquela característica genuína “Esse texto é

catarinense”, por essa diversificação cultural. Hoje acho que temos, além da facilidade

de publicar livros, tão difícil quando comecei a escrever jornal. Em jornal não era tão

fácil, tinha poucas editoras. O autor, se ele não tem financiamento, se vira de qualquer

jeito. Enfim, hoje nós temos nomes de expressão na prosa. Admiro muito o Adolfo

Boos Júnior. O Geraldo era amigo dele, era do Banco do Brasil, trabalhava em Brusque.

Geraldo o conheceu em Florianópolis, em um curso que fez. O Amigo Velho, primeiro

livro dele, eu tenho. E coincidiu que fui apresentado ao Aldofo Júnior na rodoviária de

Florianópolis pelo Mauro Júlio Amorim. Falei desse livro, que eu tinha. Contou-me um

episódio engraçado que tinha ocorrido com ele em uma feira de livro. Perguntaram se

ele fazia versos, disse “Não, eu não sou poeta, sou contista, uma vez contista, contista

sempre.” Uma vez cronista, cronista sempre, essa frase para mim serve. Admiro poesia,

mas não sou poeta. Não teve dúvida, no dia seguinte o jornal de Curitiba publica “Uma

vez poeta, sempre poeta”, são coisas incríveis. Nós temos bons nomes em Santa

Catarina.

E no Vale de Itajaí? Qual tua opinião sobre a produção literária contemporânea

no Vale?

Vou me referir só a prosa, que é o meu forte. Não é dor de cotovelo, não é frustração.

Admiro poesia demais, mas não sou poeta, nunca tentei fazer versos. Cometeria versos,

se tentasse, não faria. Então, a minha admiração é a crônica. Nós temos bons cronistas

aqui no Vale do Itajaí. Poderia citar o Maicon Tenfen, como romancista, também

contista. Tem você que eu admiro pelo livro de crônicas, pode ficar na crônica, acho que

Page 32: O jornalismo entrou na minha vida como válvula de escape: entrevista com Gervásio Luz

tens um estilo muito bom que transmite sensibilidade. Eu te saudei, “Salve o cronista”,

quando lançaste o teu livro “Sob a Luz do Farol”. Gostaria de citar a Ana Maria Kovács,

ficaria nesses.

Teu olhar é otimista em relação ao que se produz hoje?

Mais ou menos. Não sou otimista não. Mas espero que apareçam novos valores. Sempre

incentivei. Como professor, quando pegava um texto um pouco diferente, algo criativo,

que fosse do aluno mesmo, publicava com o nome dele, como fiz com chargistas

também. Tenho esperanças. Fomos a Florianópolis, estamos cheios de bons nomes lá,

além do Salim. Tem uma série de cronistas que têm muita qualidade. Um escritor que

eu admiro demais, tornou-se meu amigo, tenho praticamente todas as obras dele, o ex-

monge Júlio de Queiroz, pessoa maravilhosa, me manda todos os livros dele e eu os

devoro todos. Gosto muito das crônicas e dos contos dele.

Repetiste algumas vezes, até nesta entrevista e em outros momentos, que teu lugar

sempre foi o jornal, que é um lugar efêmero. O jornal por si só tem o prazo de

validade de um dia. Entretanto, em 2001, a editora Cultura em Movimento lança

O Rio que Passa em Nossas Vidas, teu primeiro livro.

O Rio que Passa em Nossas Vidas, eu sempre digo que eu não pretendia lançar livro. Aí

aquela ideia do Bráulio de aproveitar os 150 anos, lançar um livro para a editora, e que

tivesse alguma relação com Blumenau. Disse “Bom, vou pegar as minhas crônicas”.

Para mim foi uma coisa muito engraçada, achava que eu era apenas colunista, e

admirando os cronistas. E já estava fazendo textos maiores do que notinhas pequenas.

Quando o Bráulio fez o convite, fui olhar meu material, “bom, mas isso aqui é crônica,

não te valorizavas, está cheio de crônicas aí”. Comecei com uma necessidade visceral

de toda semana escrever um texto que nasce assim, espontaneamente. Deixei de dar

aulas. Quero morrer escrevendo. O Rio que Passa em Nossas Vidas foi um sucesso

porque eu soube fazer mídia. Quando o livro estava pronto para ser lançado, mandei

para tudo que é jornal, tudo que era colunista na Notícia, Estado, saiu em tudo, além

disso, convite para ex-alunos, jornalistas, radialistas, gente de TV. Foi um sucesso, tanto

que eles não tinham confeccionado um número suficiente, e continuou vendendo, saiu

uma segunda edição. Lançado em março, saiu uma segunda edição em novembro, parei

por aí. Foi quando, em 2007, a Cristina Marques convidou-me para lançar, dentro da

coleção Joias Literárias, a crônica, que seria minha. Nasceu “Crônica, Doce Crônica”,

dirigido ao público infanto-juvenil, mais juvenil, e agora estou com esse livro do

Odorico, que quero lançar. É uma biografia.

Poderias falar um pouco do livro que escreveste, que ainda está no original, a

respeito do Frei Odorico.

Só falta colocar as fotos, não vou mexer em mais nada. Ele já faleceu, faleceu em 94 e

não houve lançamento, ninguém se dignou, prestou e se interessou em lançar a vida

dele. E surgiu também por acaso, não tinha surgido ainda o Rio que Passa em Nossas

Vidas, e eu não pensava em ser escritor. Foi quando, lá em Florianópolis, na praia de

Caieira da Barra do Sul, passando umas férias na casa do Mauro Amorim, jornalista,

hoje também escritor, ele disse “Gervásio, o que vais fazer agora, aposentado. Não está

faltando alguma coisa?” “Não está faltando nada, continuo escrevendo jornal.” “Tens

que lançar um livro.” “Um livro?” “É, uma biografia” “Começar logo com biografia? O

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meu forte é a crônica, não me apetece fazer biografia.” “Do Frei Odorico, és a pessoa

mais ligada a ele”. Aí nasceu aquela ideia. Entrevistei familiares, mas fui transferindo, o

livro quase pronto, estou para 14, 15 anos. O que seria o primeiro livro, acabou sendo o

terceiro, porque apareceram esses livros de crônicas. E eu com aquela preocupação

“Será que está bom?” Foi aí que pedi a opinião do Adami, que se tornou o meu coautor.

Ele enxugou o texto, sem mexer em nada dos originais, mas coisas repetidas talvez,

colhi muito depoimento aqui e ali, enxugou o texto. “Odorico, um bem amado – Seu

pensamento vivo”. Tem muita crônica minha, tudo o que eu escrevi sobre Frei Odorico

está ali, mas em compensação também tem muito dele. Peguei uma entrevista que ele

deu para a Folha de Blumenau, jornal já morto. Ele foi entrevistado pelo Enéas

Athanásio, Vilson Nascimento, Carlos Braga Muller, sobre tudo, falou sobre religião, o

magistério, a paixão pela literatura, autores prediletos, etc. Está tudo ali, a palavra dele,

que era de um português lapidar. Também consegui, isso ele me deu ainda em vida, uma

miniautobiografia, em máquina de escrever, letra pequenina, em que diz... Só um

momentinho que vou pegar ali. (O entrevistado busca os originais do livro) O estilo

dele é peculiar. Então, o autorretrato dele, em que ele diz assim, vejam que interessante,

“Nasci a 14 de Março de 1908, na freguesia de Santo Amaro de Cubatão, distrito do

município de Palhoça. A localidade agora é sede do município, chama-se Santo Amaro

da Imperatriz. Batizei-me com o nome de Aluísio”. Qualquer um diria “fui batizado”.

Em primeira pessoa.

Como se ele mesmo tivesse escolhido o próprio nome. “Aluísio, e fui crismado de colo

ainda por Don João Becker, primeiro bispo de Santa Catarina”. Conta nesse estilo

diferente toda a vida dele.

Isto vai estar neste livro que estás escrevendo?

Está no livro. Uma vez ele me convidou. Telefonaram lá do colégio “Gervásio, poderias

acompanhar Frei Odorico? Ele vai a Florianópolis com o carro do colégio oficiar os

últimos atos religiosos. O Aderbal tinha morrido, governador, aí eu digo assim, "O

velho Deba”. Aderbal Ramos da Silva, foi governador de Santa Catarina, morreu.

Apelidado carinhosamente de Deba, tinha nascido em 1911 e se foi em 1985.

Telefonema do colégio pedindo acompanhante, fui a convite dele, Frei Odorico.

Pergunto a ele: com tanto padre em Florianópolis, porque procuraram um em pleno

Vale do Itajaí? Sorriu. Tal o conceito dele, conceito que já era a pedido do Aderbal.

Sorriu, não precisou dizer nada.

Depois de quanto tempo dedicado às Letras, seja como professor, como jornalista

ou como escritor, o que significa para ti esse universo literário?

Por mais percalços e pedras no caminho que existam... e azar. Elas existem. Na

realidade, comparando com as outras atividades que eu tive, bancário, escrevente

juramentado de cartório, professor, nota mil, a minha realização pessoal, o que me dá

prazer é a literatura, é escrever e ser reconhecido. Ao mesmo tempo em que devoto

especial carinho, me realizo, é como se ocorresse comigo mesmo quando vejo um ex-

aluno, uma ex-aluna, um conhecido, uma pessoa de quem eu ouvi falar, escrevendo

bem. Sinal que essa pessoa leu, essa pessoa tem sensibilidade, ama a vida na natureza,

então, é como se fosse um reflexo meu no espelho. Enfim, se ainda há um motivo, por

mais desanimado, por mais depressivo que eu estivesse aos 70 anos, a luz no fundo

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túnel, a minha realização, a minha esperança, a tábua de salvação, a boia em mar

revolto, é a literatura. São os escritos, não só os meus, mas os bons escritos que existem,

não só no Vale do Itajaí, no estado de Santa Catarina, Brasil, no mundo. A literatura é a

minha grande paixão.

Alguma outra coisa que não perguntamos e que acharias importante?

Não, teria tanta coisa para falar, mas, por exemplo, citei a pouco o Maicon Tenfen, me

identifiquei com o Maicon, conheci o Maicon ligeiramente, me identifiquei com ele

porque nós fomos convidados, já tinha lido alguma coisa dele, para a rádio da Furb. Não

me conformava que uma rádio não tivesse locutor, até dei esse registro e o reitor era um

ex-aluno, Deschamps. Prometeu-me que me daria um locutor. Estação de rádio sem

locutor é jornal sem redator, com toda a tecnologia que existe. Eu e o Maicon fomos

convidados para um programa especial pra analisar, ter uma visão da literatura.

Cidadania em debate era o nome do programa.

Então, ele mais ferino do que eu, mais jovem, mais cheio de forças, garras e espadas,

adagas, fomos em cima dos poetas, dos incipientes, como diria o Nascimento

“emergentes”. Com poucas exceções, sei que fomos xingados pelo povo, mas na saída,

ele foi me levar na Rua São Paulo para pegar o ônibus, ele me fez uma consulta.

“Gervásio, tive um convite para escrever diariamente no Santa.” Eu digo, “Tu tens

capacidade, toca adiante.” Ele, “Estou preocupado, porque eles pediram 10 crônicas,

para olhar.” “Eu nunca passei por teste, graças a Deus.” “Censuraram uma.” “Como se

chamava a crônica?” “A poesia de Lindolfo Bell é ruim” “Mas também? Tu querias o

quê? O homem foi endeusado pelo Horácio Braun, e você vai querer minar. Vai

devagar”. Ele acabou dizendo isso de uma forma amena, tempos mais tarde. Então, eu

me identifiquei quando vi o Maicon escrevendo os seus primeiros textos, primeiras

crônicas, e polemizando, inticando, arranjando uma série de problemas. Eu me via

projetado de certo ângulo. Quando jovem, jornalista, queria mexer com o mundo,

achava que iria resolver os problemas do mundo, mas depois fui com bom senso, a

gente vai se acalmando.