5
Seminário Nacional de Saúde Mental e Trabalho - São Paulo, 28 e 29 de novembro de 2008 OS BANCÁRIOS E SEU MISTER NO MUNDO DO CAPITAL EM CRISE Nise Jinkings 1 Os trabalhadores bancários experimentam peculiaridades nas suas condições de existência decorrentes do caráter particular de seu objeto de trabalho: a forma dinheiro da mercadoria. Realizam um conjunto de operações de registro e de controle, transferência e redistribuição dos valores excedentes criados no processo capitalista de produção, atualmente com o suporte teleinformático. É dessa maneira que viabilizam a transformação da mercadoria- dinheiro em capital produtor de juros, num processo fetichizado que toma a aparência de dinheiro que gera mais dinheiro, como assinalou Karl Marx (1985:459). Na crítica realidade contemporânea de mundialização e desregulamentação financeiras, o capital-dinheiro circula velozmente de um ponto a outro do mundo, sob a forma volátil de impulsos eletrônicos. Nesse quadro de crescente expansão e predomínio do capital financeiro nos movimentos da economia, a força de trabalho bancária experimenta de modo particular as tensões e contradições do atual regime de acumulação capitalista. As pesquisas de mestrado e de doutorado que resultaram, respectivamente, nos livros O mister de fazer dinheiro (Boitempo, 1995) e Trabalho e resistência na “fonte misteriosa” (Editora da Unicamp, 2002), de minha autoria, buscaram desvelar as singularidades da atual reestruturação capitalista no universo bancário. O primeiro estudo, realizado entre 1992 e 1994, objetivou analisar as mudanças do trabalho bancário, fortemente marcado por inovações tecnológicas, organizacionais e gerenciais, e sua repercussão no cotidiano e na subjetividade dos trabalhadores dos bancos. A investigação procurou apreender as formas particulares do processo de fetichização do trabalho nos bancos, assim como os mecanismos de resistência dos bancários diante da realidade problemática que vivenciam. 1 Socióloga, doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina.

Oficina 3 - Nise Jinkings -texto

Embed Size (px)

DESCRIPTION

As pesquisas de mestrado e de doutorado que resultaram, respectivamente, nos livros O mister de fazer dinheiro (Boitempo, 1995) e Trabalho e resistência na “fonte misteriosa” (Editora da Unicamp, 2002), de minha autoria, buscaram desvelar as singularidades da atual reestruturação capitalista no universo bancário.

Citation preview

Page 1: Oficina 3 - Nise Jinkings -texto

SSeemmiinnáárriioo NNaacciioonnaall ddee SSaaúúddee MMeennttaall ee TTrraabbaallhhoo -- SSããoo PPaauulloo,, 2288 ee 2299 ddee nnoovveemmbbrroo ddee 22000088

OS BANCÁRIOS E SEU MISTER NO MUNDO DO CAPITAL EM CRIS E

Nise Jinkings1

Os trabalhadores bancários experimentam peculiaridades nas suas

condições de existência decorrentes do caráter particular de seu objeto de

trabalho: a forma dinheiro da mercadoria. Realizam um conjunto de operações de

registro e de controle, transferência e redistribuição dos valores excedentes

criados no processo capitalista de produção, atualmente com o suporte

teleinformático. É dessa maneira que viabilizam a transformação da mercadoria-

dinheiro em capital produtor de juros, num processo fetichizado que toma a

aparência de dinheiro que gera mais dinheiro, como assinalou Karl Marx

(1985:459).

Na crítica realidade contemporânea de mundialização e desregulamentação

financeiras, o capital-dinheiro circula velozmente de um ponto a outro do mundo,

sob a forma volátil de impulsos eletrônicos. Nesse quadro de crescente expansão

e predomínio do capital financeiro nos movimentos da economia, a força de

trabalho bancária experimenta de modo particular as tensões e contradições do

atual regime de acumulação capitalista.

As pesquisas de mestrado e de doutorado que resultaram,

respectivamente, nos livros O mister de fazer dinheiro (Boitempo, 1995) e Trabalho

e resistência na “fonte misteriosa” (Editora da Unicamp, 2002), de minha autoria,

buscaram desvelar as singularidades da atual reestruturação capitalista no

universo bancário.

O primeiro estudo, realizado entre 1992 e 1994, objetivou analisar as

mudanças do trabalho bancário, fortemente marcado por inovações tecnológicas,

organizacionais e gerenciais, e sua repercussão no cotidiano e na subjetividade

dos trabalhadores dos bancos. A investigação procurou apreender as formas

particulares do processo de fetichização do trabalho nos bancos, assim como os

mecanismos de resistência dos bancários diante da realidade problemática que

vivenciam.

1 Socióloga, doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, professora adjunta da

Universidade Federal de Santa Catarina.

Page 2: Oficina 3 - Nise Jinkings -texto

SSeemmiinnáárriioo NNaacciioonnaall ddee SSaaúúddee MMeennttaall ee TTrraabbaallhhoo -- SSããoo PPaauulloo,, 2288 ee 2299 ddee nnoovveemmbbrroo ddee 22000088

Em suas considerações finais, a dissertação aponta algumas tendências

que se esboçam com o processo avassalador de transformações do trabalho

bancário, potencialmente incrementador das manifestações fetichizadas de

consciência que se desenvolvem no mundo do trabalho sob o domínio capitalista.

Assinala que a intensificação do processo informático nos bancos, o aumento da

terceirização, os níveis crescentes de desemprego, as mudanças no perfil do

bancário – com o incremento de gerências nas agências bancárias e a redução de

caixas e escriturários – além das políticas gerenciais “participativas” que mistificam

as relações sociais antagônicas nos ambientes laborais, implicam maiores

obstáculos ao desenvolvimento de uma consciência política dos bancários e de

sua luta coletiva. Ao mesmo tempo, o estudo aponta um movimento de

degradação das condições de trabalho. Permanecem, em grande medida, algumas

das características típicas do trabalho burocrático manual – como o labor

cansativo, rotineiro, repetitivo e empobrecido de conteúdo –, que se somam à

reorganização do trabalho, à automação e às novas formas de gestão para

produzir um aumento do controle e da pressão por produtividade, tornar mais

intenso o ritmo de trabalho e disseminar o medo e a competição nos ambientes

laborais. Nessa realidade contraditória, as formas de rebeldia que emergem no

dia-a-dia de trabalho, mesclam-se com manifestações de subordinação,

resignação ou adesão desses trabalhadores bancários ao ideário patronal e aos

interesses do capital.

A pesquisa de doutorado, desenvolvida nos últimos anos da década de

1990, dá continuidade aos estudos anteriormente desenvolvidos, mergulhando no

modo como a reestruturação capitalista invade os ambientes laborais e as

condições de vida e trabalho dos bancários. O estudo buscou as mediações entre

o trabalhador bancário – seu labor e ação sindical –, os bancos, o sistema

financeiro nacional e o internacional, o mundo do trabalho e o capitalismo

mundializado. Parte do quadro problemático marcado pela adoção de políticas

neoliberais no país e pelo fortalecimento do grande capital privado transnacional

no sistema financeiro brasileiro, buscando desvelar sua repercussão nos novos

padrões de trabalho nos bancos, que se destinam a maximizar a produtividade e,

simultaneamente, a fragilizar as ações coletivas de resistência dos bancários.

A tese mostra que se intensifica o movimento de migração do tradicional

atendimento nas agências para o atendimento eletrônico, enquanto as agências

bancárias apresentam-se cada vez mais como pequenas “lojas” eletrônicas de

Page 3: Oficina 3 - Nise Jinkings -texto

SSeemmiinnáárriioo NNaacciioonnaall ddee SSaaúúddee MMeennttaall ee TTrraabbaallhhoo -- SSããoo PPaauulloo,, 2288 ee 2299 ddee nnoovveemmbbrroo ddee 22000088

serviços financeiros e são desativadas grandes centrais de serviços, compensação

e processamento de dados. As estratégias mercadológicas dos bancos,

direcionadas para a “qualidade do atendimento”, convertem bancários alocados

nas agências e centrais de atendimento em bancários-vendedores dos serviços

financeiros disponibilizados.

Sofisticam-se as práticas do poder organizacional, sintetizadas em

programas de treinamento, de qualidade total e remuneração variável, que

mistificam mais ainda as relações de antagonismo e dominação próprias do

capitalismo, fragmentam e individualizam o trabalho. A análise apresentada sugere

que nos ambientes laborais, ao controle burocrático do trabalho inspirado nos

métodos produtivos tayloristas, sobrepõe-se uma outra forma de autoridade do

capital. Mascarada pela mediação das “leis” do mercado, essa nova estratégia de

controle e disciplina do trabalho tem como portadoras as metas de produtividade e

as avaliações de desempenho funcional, que mensuram e qualificam a atuação

dos trabalhadores.

Nesse contexto de rápida destruição de postos de trabalho, de difusão de

formas precárias de contratação e da disseminação de mecanismos ideológicos de

manipulação da subjetividade do trabalho, os bancários vivem a intensificação do

trabalho e a instabilidade do emprego como fatores essenciais de degradação de

suas condições laborais. No cotidiano do trabalho bancário, a maneira como a

lógica destrutiva do capital e sua reestruturação produtiva repercutem sobre a vida

e a saúde dos trabalhadores revela-se em jornadas extenuantes, ritmo intenso e

sobrecarga de tarefas, ambientes laborais marcados pela ansiedade e tensão.

São ambientes laborais que desestruturam relações solidárias entre

companheiros de trabalho, desgastam a saúde física e mental, intimidam ações

individuais e coletivas de resistência. O crescente índice de manifestações

patológicas e de suicídios, especialmente entre trabalhadores de bancos estatais

em face dos processos de privatização e das mudanças abruptas de suas

condições laborais, é significativo das formas atuais de fragmentação e destruição

da subjetividade do trabalho. Nesse contexto, a expressão do conflito é

problemática, mas não ausente.

O diálogo com os sindicatos

As pesquisas desenvolveram-se na cidade de São Paulo e tiveram um

importante apoio do Sindicato dos Bancários de São Paulo, na cessão e consulta

Page 4: Oficina 3 - Nise Jinkings -texto

SSeemmiinnáárriioo NNaacciioonnaall ddee SSaaúúddee MMeennttaall ee TTrraabbaallhhoo -- SSããoo PPaauulloo,, 2288 ee 2299 ddee nnoovveemmbbrroo ddee 22000088

de documentos e publicações. Esse apoio concretizou-se também em conversas

informais e entrevistas semi-estruturadas com dirigentes sindicais e,

posteriormente, na co-edição do livro O mister de fazer dinheiro, que teve sua

apresentação escrita pelo então presidente do sindicato de São Paulo. O livro foi

lançado em sede do sindicato paulista e em diversos outros sindicatos bancários

do país, com palestras e debates sobre as transformações do trabalho em curso e

suas repercussões na capacidade de luta sindical dos bancários.

Vários desses sindicatos compraram em quantidade o livro, para uso em

cursos de formação. Na imprensa sindical foram noticiados os lançamentos e

palestras e artigos foram publicados nas revistas O Espelho, Informativo da

Comissão de Empresa dos Funcionários do Banco do Brasil (n. 158 e 159, jan-

fev/1997) e Prosa & Verbo, Revista Unificada dos Bancários RS (n. 19, out-

nov/1999). Após a publicação do livro Trabalho e resistência na “fonte misteriosa”

foi publicada longa entrevista em O Espelho (n. 215, maio/2003).

Desde a publicação dos livros, fui convidada a participar como palestrante

de inúmeros seminários, encontros e congressos sindicais bancários. Nesses

eventos pude apresentar os resultados de minhas pesquisas e debatê-los com

dirigentes e militantes. Alguns desses eventos foram extremamente ricos,

articulando reflexão teórica e vivência prática nas análises das mudanças do

trabalho bancário e dos impasses e desafios postos aos sindicatos. Outros foram

também momentos importantes de mergulho na investigação. É o caso do VII

Congresso Nacional dos Funcionários do Banco do Brasil, realizado no Rio de

Janeiro em julho/1996, no qual fui conferencista convidada e onde foram aplicados

questionários que visavam captar as impressões e análises dos sindicalistas e

militantes presentes, em um contexto de intensificação do ataque neoliberal aos

bancos estatais. Os dados coletados orientaram e fundamentaram o

desenvolvimento de minha pesquisa de doutorado.

Nos livros e nas discussões com sindicalistas e militantes venho chamando

a atenção para a ofensiva ideológica que invade os locais de trabalho bancários,

buscando conquistar a adesão incondicional dos trabalhadores ao ideário

empresarial e às estratégias mercadológicas dos bancos. Com o apoio de

sofisticados meios de comunicação, assim como dos seus programas de qualidade

total, remuneração variável e treinamento, os bancos tentam construir um

ambiente no qual os bancários se pensem, não mais como representantes do

Page 5: Oficina 3 - Nise Jinkings -texto

SSeemmiinnáárriioo NNaacciioonnaall ddee SSaaúúddee MMeennttaall ee TTrraabbaallhhoo -- SSããoo PPaauulloo,, 2288 ee 2299 ddee nnoovveemmbbrroo ddee 22000088

trabalho assalariado que se defronta antagonicamente com o capital, mas como o

próprio capital personificado. O discurso institucional do trabalhador

“compromissado”, “empreendedor”, “competitivo”, tenta enfraquecer a noção de

coletivo, defendendo um individualismo exacerbado e buscando legitimar as

exigências de metas de produtividade. Enfrentar essa ofensiva, contrapondo nos

locais de trabalho a crítica bem fundamentada às atuais táticas do poder

organizacional, desvelando as finalidades e os sentidos dos seus programas

gerenciais é desafio importante dos sindicatos, na sua luta por melhores condições

de trabalho e saúde nos dias de hoje. Isto porque essas táticas de poder são

elementos essenciais das estratégias de disciplinamento e controle do trabalho e

são, também, fonte inequívoca de degradação das condições de trabalho e saúde

dos bancários. Neste sentido, a análise crítica das práticas organizacionais e do

modo concreto como elas afetam as relações e condições de trabalho nos bancos,

desenvolvida nos dois livros, pode contribuir para um melhor embasamento da luta

sindical.

Mesmo considerando os enormes impasses e desafios com os quais o

sindicalismo bancário vem se defrontando desde os anos 1990 e o contexto crítico

da atualidade, hostil à ação coletiva, penso que as condições da luta histórica dos

trabalhadores contra a exploração capitalista permanecem presentes nos

ambientes laborais. Pois as tensões e conflitos que ali afloram no dia-a-dia

permitem desmascarar as contradições entre o discurso empresarial e a realidade

de exploração intensa do trabalho.