23
o milhano Chil conduz a naite· incerta E que 0 morcego Mang ora liberta .:..... testa a hora em que adormece 0 gado, Pelo aprisco fechado. e esta a hora do orgulho e da forya, Unha ferina, aguda garra. Ouve·se 0 grito: Boa caya aquele Que a lei do jangal se agarra. Canto noturno no jongal Nos montes de Seoni, all pelas sete horas daquele dia tao quente, Pai Lobo despertava do seu longo sono, espregui<;ava-se, bocejava e estirava as pernas·para espantar 0 adormecimento das extremidades. Deitada ao seu lado, com 0 focinho entre os quatro filhotes do casal, Mae Loba tinha os olhos fixos na lua, que na- quele momenta aparecia na boca da caverna. - Opa! :E tempo de sair de novo a ca<;a,disse Pai Lobo. E ja ia deixando a caverna quando um vulto de cauda peluda assomou a entrada. - Boa sorte para todos, 6 .chefe dos lobos! exclamou 0 vulto. E tambem boa sorte e rijos dentes para esta nobre ni- nhada, a fim de que jamais pade<;amfome no mundo. Era 0 chacal Tabaqui, 0 Lambe-pratos, que os lobos da India desprezavam por viver a fazer pequenas maldades e a contar mentiras, quando nao anda a fossar 0 monturo das aldeias para roer peda<;osde couro. Mas se 0 desprezavam, tambem 0.. ~emiam, porque era chacal e os chacais facilmente ficam loucos e entao

Os IrmãOs De Mowgli

Embed Size (px)

DESCRIPTION

PRIMEIRO LIVRO DA HISTÓRIA DO MENINO LOBO.

Citation preview

Page 1: Os IrmãOs De Mowgli

o milhano Chil conduz a naite· incertaE que 0 morcego Mang ora liberta .:.....testa a hora em que adormece 0 gado,Pelo aprisco fechado.e esta a hora do orgulho e da forya,Unha ferina, aguda garra.Ouve·se 0 grito: Boa caya aqueleQue a lei do jangal se agarra.

Canto noturno no jongal

Nos montes de Seoni, all pelas sete horas daquele dia taoquente, Pai Lobo despertava do seu longo sono, espregui<;ava-se,bocejava e estirava as pernas·para espantar 0 adormecimento dasextremidades. Deitada ao seu lado, com 0 focinho entre os quatrofilhotes do casal, Mae Loba tinha os olhos fixos na lua, que na-quele momenta aparecia na boca da caverna.

- Opa! :E tempo de sair de novo a ca<;a,disse Pai Lobo.E ja ia deixando a caverna quando um vulto de cauda peludaassomou a entrada.

- Boa sorte para todos, 6 .chefe dos lobos! exclamou 0vulto. E tambem boa sorte e rijos dentes para esta nobre ni-nhada, a fim de que jamais pade<;amfome no mundo.

Era 0 chacal Tabaqui, 0 Lambe-pratos, que os lobos daIndia desprezavam por viver a fazer pequenas maldades e a contarmentiras, quando nao anda a fossar 0 monturo das aldeias pararoer peda<;osde couro. Mas se 0 desprezavam, tambem 0..~emiam,porque era chacal e os chacais facilmente ficam loucos e entao

Page 2: Os IrmãOs De Mowgli

esquecem 0 respeito devido aos mais fortes e petcorrem 0 jangal (*)mordendo quanta animal encontram. Ate 0 tigre foge, ou escon-de-se, quando ve 0 pequeno Tabaqui louco, sendo, como e, aloucura a coisa mais desagradavel que existe para um habitantedo jangal. Os sabios chamam a isso hidrofobia; os animais dizemsimplesmente dewanee - loucura - e fogem.

- Entra, disse-lhe Pai Looo, mas desde ja te digo que naohii nada de comer aqui.

- Nlio haverapara um lobo, respondeu Tabaqui. Para cria-tura mesquinha como eu, um osso velho vale por banquete. Quemsomos n6s, os Gidur-log (chacais), para escolher?.

E, isto dizendo, dirigiu-se, guiado pelo faro, a um canto dacavema onde havia uns ossos de garno com um pouco de came,que se pes a roer alegremente.

- Muito obrigado por este delicioso petisco, disse Tabaquisem interromper 0 servic;o, lambendo os beic;os. E depois; QueUndos filhos os teus, Pai Lobof Olhos assim tlio grandes jamaisvi. Nao negam serem filhos de rei. :

Tabaqui sabia muito bem que e imprudente elogiar crianc;asna presenc;a delas e, se daquele modo elogiava os filhotes dolobo, fazia-o apenas para ver 0 mal-estar causado aos pais. Assim,sempre roendo oseu osso, sentou-se sobre as patas traseiras e fi-cou um instante calado, a gozar a maldadezinha; depois disse commalignidade:

- Shere Khan, 0 maioral, mudou seu campo de cac;a. Vaiagora prear por estes montes, conforme me informou.

Shere Khan era 0 tigre que morava as margens do Waingan-ga, a cinco leguas dali.

--Shere Khan nao tem 0 direito de fazer isso! protestouPai Lobo irritado. Pela lei do jfrngal, nao tern 0 direito de mudarde campo sem prevenir os moradores. A presellc;a aqui de Shere

. Khan vai aterrorizar a cac;a num raio de dez milhas - e eu .. ' e- eu tenho de cac;ar por dois, nestes tempos que cor rem..

(*) "JAngal". em Indostanico, derivado do sanscrito "jangala", deserto, slgniflcadeserto. fioresla. mala vlrgem. Dele t1raram os ingleses a palavra "jungle" com 0 sentidogeral de mata virgem tropical, sobretudo quando apresenla os caracteristlcos das fio-restas que recobrem as terras balxas da {mila (Webster). A pronuncla tanto em inglescomo em indostAnico 6 a mesma - jAngaI. . .

Page 3: Os IrmãOs De Mowgli

..- Nao e a toa' que a mae de Shere Khan !he chama Lun-gri (0 aleijado), disse Mae Loba. Ficou manco duma pata logoque nasceu; por isso s6 se alimenta de gado. Agora como os ha-bitantes humanosdo Wainganga andam furiosos com ele, 0 estu-pido pensa em mudar-se para aqui a fim de tambem enfurecer oshomens desta zona. Vao eles limpar a. floresta quando Shere Khanestiver ausente, e' nos e nossos filhotes seremos fon;ados a corrermuito .quando a relva estiver batida. Bastante gratos devemos to-dos ficar, nao resta duvida, ao tal Shere Khan!

- Posso contar a ele da tua gratidao? perguntou com ironiao chacal.

- Fora daqui! berrou Pai Lobo, enfurecido com a imper-tinencia. Vai ca~ar com teu mestre, que ja nos aborreceste bas-tante por hQje. .

.- Vou, sim, respondeu Tabaqui, muito calmo. Ja estou ou-vindo 0 rumor de seus passos por entre os arbustos.

Pai Lobo espichou as orelhas. De fato distinguiu, vindo dovale por onde corria um riacho, 0 bufo col6rico dum tigie quenada ca~ara e naofazia empenho de que todo <> jangiu soubessedjsso.

- Doido! exclamou Pai Lobo. Come<;:arsua ca~ada notuma.bufandodessa maneira. .. Pensa acaSo que os cabritos montesesdesta zona saD os bezerros gordos do Wainganga?

. - Ele nao esta ca~ando cabrito, nem bezerro, advertiu MaeLoba. Esta ca<;:andohomem ...

Osbufoshaviam mudado para uma especie de rosnar semdire~ao. Esse rosnar sem dire~ao, que parece vir dos quatro pontoscardeais, desorienta os lenhadores e ciganos, que dormem ao re-lento, fazendo-os, as vezes, correr justamente para as goelas dotigre .

.' - Ca<;:andohomem! repetiu Pai Lobo, com os dentes arre-. ganhados. Nao tem esse tigre bastantes ras nos charcos para assimmeter-se a comer gente, e logo em nossos dominios?

A lei do jangal, que nada prescreve sem razoes, proibe a to-dos os animais que comam· homens, exceto quando algum delesesta matando .par~ ensinar aos filhos como se mata. 0 motivodisto e que, quando comem um homem, cedo ou tarde. aparecemno lugar homens brancos montados em elefantes e rodeados de

Page 4: Os IrmãOs De Mowgli

centenas de homens pardos com archotes e gongos, e entao afloresta inteira sofre. Mas a desculpa que os animais apresentampara que 0 homem seja respeitado e que const@tele II mais fracae indefesa de todas as criaturas, sendo portanto covardia ataca-Io.Dizem tambem, e e verdade, que os comedores de homens setornam sarnentos e perdem os dentes.

o rosnar·do tigre crescia de tom, terminando afinal por urnurro, sinal de bote. Em seguida urn uivo de desapontamento.

- Errou 0 pulo, disse Mae Loba. Que tera acontecido?Pai Lobocorreu para forae logo parou, a fim de ouvir

melhor os uivos ferozes de Shere Khan, que uivava como se hou-vesse caido numa armadilha.

- 0 doido atirou-se a uma fogueira de lenhadores e quei-mou as patas, disse Pai Lobo. E Tabaqui esta com ele,comple-'tou depois, adivinhando de longe 0 que se passava. .

- Algo se aproxima, pressentiu de subito Mae Loba, tor-cendo uma orelha. Aten<;ao!

Tamoom ouvindo rumor na folhagem, Pai Lobo ficou de puloarmado para 0 que desse e viesse. Aconteceu entao uma coisalinda: urn pulo que se deteve a meio caminho. Porque 0 loboiniciara 0 pulo antes de saber do que se tratava e, ja no ar, vendoo que era, recolheu 0 resto do pulo, voltando a posi<;ao anterior.

- Homem! exclamou ele. Um filhote de homem!

Bem defronte, de pe, apoiado a um galhinho baixo, haviasurgido urn menino nu, de pele morena, que mal come<;ava a andar:uma isca de gente como jamais aparecera outra em nenhuma ca-verna de fera. 0 menino Qlhava para Pai Lobo, a sorrir.

- Filhote de homem? repetiu de longe Mae Loba. Jama-isvi um. Traze-o Ca.

Acostumados a lidar com as suas pr6prias crias, os lobos sa-bem conduzir um ovo na boca sem 0 quebrar; por isso pode PaiLobo trazer 0 pequeno suspenso pelo congote e depo-Io no meioda sua ninhada, sem the causar 0 menor arranhao.

- Que pequenino! Como esta nu e que valente e! exclamouMae Loba, com temura, enquanto a crian<;a se ajeitava entre oslobinhos para melhor aquecer-se. Ai! continuou a loba; Esta.co-mendo a comida dos, nossos filhos, e e um filhote de homem. ;.

Page 5: Os IrmãOs De Mowgli

Sera que ja houve familia de lobos que pUdesse gabar-se de verurn filhote de homem misturado a sua ninhada?

- Ja ouvi falar de coisa assim, disse Pai Lobo, mas naoem nosso bando, nem em tempo de minha vida. Esta completa-mente sem cabelos e morreria com urn tapinha meu. Mas, veja!Olha-nos sem medo nenhum ...

Nisto a caverna escureceu: a cabe~a quadrada de Shere Khanobstruia-Ihe a entrada. Atras do tigre vinha Tabaqui,dizendo:

- Meu senhor, meu senhor, ele meteu-se por aqui.

- Shere Khan nos faz grande honra, disse Pai Lobo, ama-velmente, a guisa de sauda~ao ao tigre, embora 0 adio dos seusolhos desmentisse a gentileza das palavras. Que deseja, ShereKhan?

- Quero a minha ca<;:a:urn 1ilhote de homemque entrounesta cova, respondeu 0 tigre. Seus pais fugiram. Entregai-mci.

Shere Khan lan~ara-se contra urn acampamento de lenhado-res, exatamente como 0 lobo havia previsto, e estava agora furio-so com a dor das queimaduras. Queria vingar-se no menino queconseguira escapar. Mas Pai Lobo sabia que a entrada da caver-naera estreita demais para dar pasagem a urn tigre e que, portan-to, a calera daquele nao oferecia perigo nenhum. Em vista dissorespondeu:

- Os lobos SaDurn povo livre. Recebem ordens unicamen-te do seu chefe e jamais de nenhum comedor de bezerros. 0 fi-lhote de homem e nosso, para 0 matarmos, se quisermos.

- Se quisermos! repetiu com sarcasmo 0 tigre. Quem falaaqui em querer? Pelo touro que matei, nao posso ficar nesta ca-verna de caes a disposi~ao de tais quer~res. Sou eu, Shere Khan,quem fala, ouviste?

E 0 rugido do tigre encheu a caverna, qual urn trovao. MaeLoba achegou-se dos seus filhotes, fixando nos olhos flamejantesdo tigre os seus olhos vivos como duas luzezinhas verdes.

- Quem responde agora sou eu, disse ela, eu, Raksha, aDemonia. 0 filhote de homem e nosso, Lungri, sa nosso! Nao seramorto por ti. Vivera, para correr pelos campos com 0 ROSSOban-do e com ele ca~ar; e por fim - presta bastante aten~ao, a ca~a-

Page 6: Os IrmãOs De Mowgli

dor decrian~s, 6 comedor de ras e peixe - e por fim te Cayaraa ti, urn dial Vai-te agora! Pelo sambur, veado que matei (porquenao cayO bezerros gordos), val. para tua mae, 0 tigre chamuscadoe mais manco do que nunca! Vai-te!

Pai Lobo olhou-a assombrado. Ja era vaga a sua lembran~ado dia em que conquistara aquela companheira em luta feroz comcinco rivais, no tempo em que a loba vagueava solteira no bandae ainda llao recebera 0 nome de guerra que possuia agora ...,....:.Raksha, a Demonia.

Shere Khan tinha podido sustentar 0 olhar do lobo pai, 'masnao pudera suportar 0 olhar da loba' mae, firme da sua posiyao epronta a bater-se em luta de morte .. Shere Khan retirou da aber-tura da cavema a cabeyorra quadrada para depois duns bufos decolera urrar: .

- Os caes sabem ladrar de dentro dos canis! Havemos dever 0 que pensa a alcateia disso de abrigar e defender filhotes de .

. homem., Esse bichinho e meu e nos meus dentes sera triturado, 6call1bada de ladroes de rabo de espanador!

o tigre retirou-se a bufar e a loba voltou ofegante para 0 ineioda sua ninhada. 0 lobo disse entao gravemente:

- Shere Khan esta com 0 direito neste ponto. 0 filhote dehomem tem de ser apresentado a alcateia para que os lobos de-cfdam da sua sorte. Queres conserva-lo contigo?

- Sim, respondeu de pronto a loba. Ele veio nuzinho, de noi-te, s6 e faminto. Apesar disso, nao mostrou 0 menor medo. Olha!La esta puxando urn dos nossos filhotes... E pensar que porum triz aquele camiceiro aleijado nao 0 matou aqui em nossapresenya, para depois, muito fresco, escapar-se do Wainganga,enquanto os camponeses estivessem ca98l1do em nossas terras'!Conseva-lo comigo? Pois decerto! - e, voltando-se para a crianyanua: Dorme sossegada, pequenina ra. Dorme, Mowgli, pois assimte chamarei doravante, Mowgli, a Ra. Dorme, que tempo hli devir em que CayaraS Shere Khan, comote quis ele cayar inda hapouca.

- Mas que dira a alcateia? indagou Pai Lobo, apreensivo.

A lei do jangal permite que cada lobo deix~ a alcateia logoque se case. Mas, assim que seus filhotes desmamam, os pais temde leva-los ao Conselho, geralmentereunido uma vez por mesdurante a lua cheia, para que os outros os fiquem conhecendo. e

Page 7: Os IrmãOs De Mowgli
Page 8: Os IrmãOs De Mowgli

o~ possam identificar. Depois dessa apresenta<;ao os lobinhos en-tram a viver, livremente, podendo andar por onde quiserem. E,ate que hajam ca<;ado0 primeiro gamo, nenhum lobo adulto temo direito' de matar a um deles, por qualquer motivo que seja. Apena contra esse crime consiste na morte do criminoso. Assime, e a!!;im deve ser.

Pai Lobo esperou que seus fiIhotes desmamassem e, enHio,numa noite de assembleia, dirigiu-se com Mae Loba, Mowgli eseus filhotes para 0 ponto marcado, a Roca do Conselho, umpedregoso alto de montanha, onde cem lobos poderiam ajuntar-se. Akela, 0 Lobo SolWirio, que' chefiava 0 bando gra<;as a suafor<;a e astucia, ja la estava, sentado na' sua pedra,. tendo pelafrente, tambem sentados sobre as patas traseiras, quarenta ou maislob?s de todos os peIos e tamanhos, desde veteranos ru<;os, quep0dem sozinhos carregar um gamo nos dentes, ate jovens de tresanos que .julgam poder fazer 0 mesmo. 0 Solitario, os chefiava,ia fazer um ano. Por duas vezes caira em armadilhas, quando maisjovem, e numa delas viu-se batido a ponto de ficar por terra,como morto. Em virtude disso tinha experiencia da malicia doshomens, suas taticas e jeitos. •

Houve pouca discussao na assembleia. Os fiIhotes que vie-ram para ser apresentados permaneciam no meio do bando, aolado de seus pais. De vez em vez um veterano chegava-se ateeles, examinava-os cuidadosamente e retirava-se. Ou entao umadas maes empurrava 0 pequeno para ponto onde pudesse ficarbem visivel, de modo que nao escapasse as vistas de toda a alca-teia. Do seu rochedo Akela dizia:

- V6s conheceis a lei. Olhai bem, portanto, 6 lobos, para'que mais tarde nao haja enganos;

E as maes, sempre ansiosas pela seguran<;ados filhos, repe-tiam:

- Olhai bem, 6 lobos. Olhai bem.

Por fim chegou a vez de Mae Loba sentir-se aflita. PaiLoboempurrava Mowgli, a Ril, para 0 centro da roda, onde 0filhotinho de homem se sentou, sorridente, a brincar com unspedregulhos que brilhavam ao luar.

Sem erguer a cabe<;ade entre as patas, prosseguia Akela noaviso mon6tono do "Olhai bem, 6 lobos", quando ressoou.pertoo rugldo de Shere Khan:

Page 9: Os IrmãOs De Mowgli

- Esse filhot~ de homem e meu! Entregai-mQ! Que tern 0povo livre com urn filhote de homem? urrava ele.

Akela, sempre impassivel, nem sequer pestanejou. Apenas am-pliou 0 aviso:

- Olhai bern, 0 lobos. 0 povo livre nada tern que ver com-as opini6es dos que nao pertencem a sua grei. Olhai, olhai bem.

Ouviu-se urn cora de uivos profundos, do meio do qual se-destacou, pela boca dum lobo de quatro anos, que achara justaa rec1ama~ao do tigre, esta pergunta: --

- Sim, que tern aver 0 povo livre com urn filhote de ho-mell1?

A lei do jangal manda que, em casos de duvida quanta aodireito de algum ser admitido pela alcateia, seja esse direito de-fendido por dois membros do bando que nao seus pais.

- Quem se apresenta para defender este filhote? gritouAkela. Quem, no povo livre, fala par ele?

Nao houve resposta, e Mae Loba preparou-se para luta demorte, caso 0 incidente tivesse desfecho contnirio ao que 0 seucora~ao pedia.

A unica voz, sem ser de lobo, permitida no Conselho era ade Baloo, 0 sonolento urso pardo _que ensinava aos lobinhos alei do jangal, 0 velho Baloo que podia andar por onde the aprou-vesse porque so se alimentava de nozes, raizes e mel, alem deque sabia pOr-se de pe sobre as patas traseiras e grunhir.

- Quem fala pelo filhote de homem? Eu. Eu me dec1aropor ele. Nap vejo mal nenhum em que viva entre nos. Embora-nao possua·eloqiiencia, estou dizendo a verdade. Deixai-o viver li-vre na alcateia como irmao dos demais. Baloo the ensinani asleis da nossa!vida.

- Outra voz que se levante, disse Akela. Baloo ja falou,Baloo, 0 mestre dos lobinhos. Quem fala pelo filhote, alem deBaloo?

Uma sombra projetou-se no circulo formada pelos lobos, asombra de Bagheera, a Pantera Negra, realmente cor de ebano,com vivos reflexos de luz na sua pelagem de seda. Todos a conhe-ciam eninguem se atravessava em seu caminho. Bagheera eratao. astuta como Tabaqui, tao intrepida' como 0 bUfalo e tao in-

Page 10: Os IrmãOs De Mowgli

cansavel'como 0 elefante ferido. Tinha' entretanto a voz doce co-mo 0 mel que escorre dum galho e a pele mais macia do que 0veludo.

- 6 Akela e mais membros do povo livre! Direito nao te-nho de falar nesta assembleia, mas a lei do jangal diz que, se MdUvida quanta a urn novo filhote, pode a vida dele sercompradapor urn certo prel;q. A lei, entretanto, nao declara quem pode ouquem nao pode pagar esse prel;o. Estou certa?

- Sim, sim! gritaram os lobos mais mOl;os,etemamente es-faimados. Oul;amos Bagheera. 0 filhote de homem' pode sercomprado por urn certo prel;O. :E: da lei. '

- Bern, disse a pantera. Ja que me autorizais a falar, pel;Olicenl;a para isso.

- Fala! Fala! gritaram trinta vozes.

- Matar urn filhotinho de homem constitui·pura vergonha,alem de que ele pode ser muito uti! a todos nos quando crescer.Em vista disso, junto-me a Baloo e oferel;o 0 touro gorUo queacabo de matar a menos de milha daqui como prel;o de 0 receber-des na alcateia, de acordo com a lei. Aceitais a minha proposta?

Houve urn clamor de dezenas de vozes que gritaram:

---'-Nao vemos mal nisso. De qualquer maneira ele morrerana proxima esta~ao das chuvas, ou sera queimado pelo sol. QuedanG nos pode fazer a vida dessa razinha nua? Que fique na alca-teia. Onde esta 0 touro gordo, Bagheera? Aceitamos tua proposta.

Cessada a grita, ressoou a voz grave de Akela:

- Olhai bern, 0 lobos.

Mowgli continuava profundamente absorvido com os seus pe-dregulhos, sem dar nenhuma atenl;ao aos que dele se achegavampara 0 ver bem de perto. Por fim todos se dirigiram para ondeestava 0 touro gordo, ficando ali apenas Akela, Bagheera, Balooe 0 casal de tutores do menino.

Shere Khan urrava de despeito por ter perdido a presa cobi-l;ada.

- Urra, urra! rosnou Bagheera, entre dentes. Urra, que tem-po vira em que esta coisinha nua te fara urrar noutro tom, on na-da sei sobre homens.

Page 11: Os IrmãOs De Mowgli

-.:.. Esta tudo bem, disse Akela. 0 homem·e seus filhotes sacespertos. Podera este vir a ser de muita vantagem para nos umdia.

- Certamente, porque nao podemos, eu e tu, ter a preten-sao de chefiar 0 bando toda a vida, ajuntou Bagheera.

Akela calou-se. Estavaa pensar no tempo em que os chefesde alcateia entram a sentir 0 peso dos anos. A for9a dos musculo"svai em declinio ate que outro surge, que 0 mata e fica 0 novochefe, para decair tambem a· seu tempo.

- Leva-o, disse Akela a Pai Lobo, e trata de bem educa-lopara que seja utilao povo livre.' ,

Eis ,como entrou Mowgli para a alcateia: a custa dum tourogordo e por iniciativa das palavras de Baloo.

Pulemos agora dez anos de descri9ao da vida de Mowgli en-tre os lobos, coisa que daria materia para todo um yolume. Diga-mos apenas que ali cresceu entre os lobinhos, erilbota· todos fi-cassem adultos antes que Mowgli deixasse de ser crian9a. PaiLobo ensinou-Ihe a vida e a, significa9ao das coisas do jangal emtodas as suas miIlUdencias.Os menores rumores nas ervas, 0 mo-vimento das brisas, as notas do canto da cornja, cada arranha-dura que a garra dos morcegos deixa na casca das arvores ondese penduram por um momento, a lambada na agua de cada peixi-nho ao dar pulos na··superficie, tudo significa muito para os ani-mais da floresta. '

Quando Mowgli nao estava aprendendo, sentava-se ao sol pa-ra dorrilir. Depois cornia e, depois de comer, punha-se a dormir denovo. Quando se sentia sujo, ou encalorado, banhava-se nas la-goas do jangal e quando queriamel (Baloo the ensinara que mele nozes constituem alimentos. tao bons como a carne) trepavaas arvores para colM-lo nas colmeias. Com Bagheera aprendera atrepar em arvores. A pantera costumava saltar sobre um galhoe, dizer-Ihe: "Venha, irmaozinho!" A principio Mowgli trePftvaqual 0 bicho-pregui9a; por fim adquiriu a rapidez e destreza dosvelhos macac()s. Um dia come90u a ter 0 seu lugar no Conselho.Sentava-'se entre os lobos e brincava de encara-Ios fixamente, ateque baixassem os olhos. Frequentemente tirava espinhos das pa-tas de. seus irmaos lobos. Tambem costumava descer 0 morro du-rant~ a noite, para apr()ximar-se das ,"aldeias e espiar os homens.

Page 12: Os IrmãOs De Mowgli

Adquirira, entretanto, uma grande desconfianl;a dos homens desdeque Bagheera the mostrou uma armadilha feita em certo pontoda floresta, habilmente oculta por folhas secas. 0 que mais agra-dava a Mowgli era ir com Bagheera aos espessos do jfmgal parahi dormir enquanto a pantera cal;ava. Bagheera ensinou-lhe a ca-l;ar, como cal;ar e 0 que cal;ar. Aos touros, por exemplo, tinha derespeitar, porque devera sua entrada na alcat6ia a vida dum touro.

- Todo 0 jangal e teu; disse-lhe Bagheera, e tens 0 direitode matar sempre que te sentires bastante forte para isso; mas, poramor ao touro ao qual deves a vida, tens que poupar 0 gado, sejavelho ou novo. Esta e a lei do jangal.

Mowgli, que sempre a ouvia respeitosamente, jamais deixoude a seguir naqueles mandamentos.

E assim cresceu, e cresceu forte como todas as criaturas quenao sabem que estao aprendendo as lil;6es da vida e nadamaistem a fazer no mundo alem de comer. >

Mae Loba ~isse-lhe certa vez que Shere Khan. nao eJa cria-tura em quem se confiasse;' e que ele estava predestinado a matarShere Khan. Um lobinllo novo que isto ouvisse 0 guardaria namemoria para 0 resto da vida. Mowgli, porem, que, embora seconsiderasse lobo, era homem, breve 0 esqueceu.

Shere Khan andava sempre a atravessar-se em seu caminho.A medida que Akela envelhecia e se tornava mais fraco, 0 tigremais e mais se achegava dos jovens lobos, que 0 seguiam na cal;apara pegar as sobras - coisa que 0 Lobo Solitario jamais per-mitiria, se ainda pudesse manter a sua autoridade dos bons tem-pos. Por isso Shere Khan costumava elogia-los, admirando-se deque lobos mOl;os e fortes se sujeitassem a chefia dum lobo de-crepito, assistido de urn filhote de homem.

-'- Dizem por ai, intrigava ele, que nas reuni6es do Conse-lho nenhum de vas ousa stlstentar 0 olhar desse menino - e aoser recordado isto todos os lobos rosnavam colericos.

Bagheera, cujos oilios e ouvidos andavam por toda a parte,soube da intriga e por varias vezes avisou Mowgli de que ShereKhan tencionava mata-Io. Mowgli ria-se, respondendo:

- Tenho por mim a alcateia e tenho tambem a ti. E tenhoainda a Baloo, que apesar depreguil;oso dara borts tapas em' mi-nha defesa. Par que, pois, recear Shere Khan?

Page 13: Os IrmãOs De Mowgli

Certa tarde muito quente Bagheera veio com uma nova ideia,que talvez Ikki, 0 Poreo-espinho, the houvesse sugerido. Esta~yam na parte mais cerrada da floresta, Mowgli deitado, com acabec;a em repouso sobre 0 pelo macio da pantera.

- Mowgli, disse Bagheera, quantas vezes, ja te disse qneShere Khane teu inimigo?

- Tantas quantos cocos ha naquela palmeira, respondeu 0menino, que ainda nao sabia contar. Mas que tern isso, Bagheera?Estou com sono, sabes? Shere Khan nao me interessa mais doque Mao, 0 Pavao.

- Nao e tempo de dormir, replicou a pantera. Baloo sabedisso. A alcateia sabe disso. Os veados, louquinhos que sao, sabemdisso. E ate Tabaqui ja te avisou.

- Ora, ora! exclamou Mowgli com desprezo. Tabaqui veioa mim, nao faz muito tempo, com certas impertinencias, comoa de que eu era filhote de hornem. Agarrei-D pela cauda e ma-lhei-o duas vezes de encontro a urn coqueiro, para ensina-Io a sermenos atrevido. .

- Foi imprudencia, porque, embora Tabaqui seja :um mal-feitor mesquinho, ter-se-ia posto a par de algo proveitoso para ti.Abre os olhos, irmaozinho. Shere Khan nao ousa matar-te aquino jangal; mas nao te esquec;as de que Akela envelhece e brevechegara 0 dia em que nao mais podera ele abater urn gamo. Estaraentao no fim da sua longa chefia. Muitos dos lobos a que fosteapresentado no Conselho tamb6m' estao velhos, e a gerac;ao novapensa pela cabec;a de Shere Khan. 'Todos admitem, com 0 tigre,que nao ha lugar na alcateia para filhotes de homem. E dentro empouco seras mais que isso . .. seras hornem ...

- E que e ser homem? Nao, podera urn homem viver comseus irmaos lobos na alcateia? replicou 0 menino. Sou do jangal,tenho obedecido a lei do jangal, e nao existe no bando urn s6lobo ao qual eu nao haja tirado espinhos das patas. Tenho acerteza de que todos me tern como irmao.

Bagheera espreguic;ou-se, com os olhos semicerrados.- Irmaozinho, disse ela, apalpa 0 meu pescoc;o.Mowgli 0 fez e, na sedosa pele do pescoc;ode Bagheera, des-

cobriu urn ponto pelado e caloso.- Ninguem no jfmgal sabe que tenho esta marca, esta marca

de coleira. Sim, meu caro irmaozinho, nasci entre homens e foi

Page 14: Os IrmãOs De Mowgli

entre homens queminha mae morreu, nas jaulas do palacio do'rei de Udaipur. POl'esse motivo e que te salvei na reuniao do Con-selho, quando nao passavas de criancinha nua. Sim, pOl' isso, pOl'tel' nascido tambem entre homens! Anos vivi sem conhecer 0 jan-gal. Era alimentada atraves de barras de ferro, e assim ate 0 diaem que' me senti plenamente Bagheera, a Pantera, e nao mais brin-quedo de ninguem. Quebrei os ferrolhos da jaula com um tapa. Ejustamente porque aprendi'muito com os homens e que me tomeimais temivel no jangal do que 0 propriq Shere Khan. Nao estacerto?

- Perfeitamente, respondeu Mowgli. Todos na floresta te-mem Bagheera. Todos, exceto Mowgli!

- Oh, tu es um filhote de homem, respondeu Bagheera comtemura, e, assim como retomei ao jangal, retomanis um dia paraos homens, para teus irmaos, caso nao sejas morto no Conselho ...

- POl' que? POl' que querera alguem matar-me aqui? inter-pelou 0 menino.

- Olha para mim, respondeu Bagheera.

E 'Mowgli olhou-a firme nosolhos, fazendo com que a pan-tera desviasse a cabec;:aem menos de meio minuto.

-POl' isto, concluiu ela; nem eu, que nasci entre homense teQho pOl' ti' amor, .posso sustentar a forc;:a dos teus olhos,irmaozinho. Todos ca te odeiam porque nao podem sustentar teuolhar, porque es engenhoso, porque sabes a arte de arrancar espi-nhos das nossas patas, p'orque es homem, em suma.

- Eu ignorava semelhante coisa, disse Mowgli com triste-'za, franzindo a testa sobrancelhuda.

- Que manda a lei do jangal? Primeiro, dar 0 bote; depois,cantar a vitoria. Pelo ten desprezo a este mandamento eles conhe-cem que es homem. Mas se prudente! Pressinto que no dia emque Akela errar pela primeira vez 0 bote (e e ja com esforc;:oque ele evita isso), a alcateia inteira se voltara contra ele e contrati. Reunir-se-a 0 Conselho la na Roca e entao ...

Isto dizendo" Bagheera ergueu-se dum salto, excitada. E·con-.tinuou:

- Vai depressa la embaixo, a aldeia, e traze a flor verme-lha que cresce em.toqas' as casas. Assim,qUl:lllqOchegar 0 dia em

Page 15: Os IrmãOs De Mowgli

que· tenhas necessidade dum amigo mais forte do que Ba.gheera ouBaloo, te-Io-as na flor vermelha.

A flor vermelha· para Bagheera significava 0 fogo, esse ele-mento de que as criaturas do jangal tem medo profundo e ad qualnoineiam e descrevem de mil modos diferentes.

,- A flor vermelha! replicou Mowgli, pensativo. A flor ver-melha que cresce nas cabanas durante a noite! Sim, trarei umamuda ...

- Bravo! exc1amou a pantera. Desse modo deve falar umfilhote de homem. Nao te esque<;as de que essa flor cresce empequenos fogareiros. Traze-a e conserva-a num deles, a fim deque permane<;a viva ate 0 momento de a usares.

- Muito bem, disse Mowgli. Mas estas segura, 6 minha caraBagheera - e isto di:z:endolan<;ou 0 bra<;o em torno do pesco<;oesplendido da pantera, olhando-a no fundo dos olho!>-, es~as se-gura de que todo 0 mal provem de Shere Khan?

- Pelo ferrolho que minha pata quebrou,tenho •a certezadisso, irmaozinho.

- Eiltao, pe10 touro que foi dado em troca da minha liber-dade, ajustarei contas com Shere Khan e 0 farei pagar um poucomais do que deve! concluiu Mowgli dando um salto de decisao.

- E um homem, um homem em tudo! murmurou Bagheeraconsigo mesma, enquanto se deitava de novo. Shere Khan, quemau neg6cio fizeste ha dez anos, quando tentaste ca<;ar esta razi-nha nua! ...

Mowgli cotreu pelo jangal com 0 cora<;ao a arder. Alcan<;oua caverna dos lobos ao cair da noite e, tomando folego, lan<;ouos olhos para 0 vale, la embaixo. Os lobinhos estavam ausentes;Mae Loba, entretanto, no recesso da caverna, conheceu logo, pelomodo <;leMowgli respirar, que qualquer coisa perturbava 0 espfritoda sua ra adotiva.

- Que hii, filho? perguntou ela.

- Intrigas de Shere Khan, respondeu Mowgli, acre~Gent1tIl-.do: Vou ca<;aresta noite nos arredores da aldeia, declarou; e afas-tou-se morro abaixo, romo ao vale.

Page 16: Os IrmãOs De Mowgli

Em certo ponto parou, ao sentir que a alcateia andava a ca-l;a; percebeu 0 resfOlego dum sambur perseguido; ouviu depoisos gritos crueis·dos lobos jovens dizendo:

- Akela! Akela! Deixemos que 0 Lobo Solitario mostre asua forl;a. Afastemo-nos todos! Deixemos que 0 chefe avance so-zinho. .vamos! Da 0 bote, Akela!

E 0 Lobo Solitario devia afinal ter errado pela primeira veza bote, porque Mowgli ouviu um bater de dentes em seco e agrito dum gamo que derruba 0 seu assaltante a coice.

Mowgli nao esperou par mais; continuou apressado 0 seucaminho rumo aaldeia, enquanto ao ··longeos uivos e ladridos daalcateia se iam amortecendo na distancia.

- Bagheera disse a verdade, murmurou a menino ofeganteao alcanl;ar a primeira cabana. 0 dia de amanha vai ser decisivopara 0 Lobo Solitario e para mim.

Espiou par uma janela aberta. Viu fogo aceso no fogao::Espe-rou. Viu a dona da casa levantar-se do seu canto para ir atil;a-lo epor mais lenha. E, quando a madrugada veio e tudo fora se fezneblina branca e fria, viu 0 filho daquela mulher levantar-se, en-cher uma vasilha de barro com brasas para subir com ela em dire-l;ao ao curral das vacas.

- E assim? pensou Mowgli. Se um filhote de mulher lidacom a flor vermelha, entao nada ha que temer, e saindo dali foiesperar 0 menino mais adiante, onde pudesse arrancar-lhe das maosa vasilha de brasas para fugir com ela.

Fez isso num relance, deixando 0 rapazinho a berrar de susto.

- Sao eles tal qual eu, murmurou Mowgli, enquanto sopra-va as brasas, como tinha visto a menino fazer. Esta "coisa" mor-rera se nao the dou comida, murmurou depois,pondo sabre asbrasas um punhado de gravetos. A meio morro veio-lhe ao encon-tro Bagheera, com a reluzente lombo negro orvalhado pela nebli-na da manha.

-'- Akela errou 0 bote ontem, disse a pantera. Eles 0 teriammatado nessa hora, se nao desejassem fazer 0 mesmo a ti, paraque ambos acabem juntos. Andaram a tua procura por toda 0jangal.

Page 17: Os IrmãOs De Mowgli

- Estive na aldeia, donde vim armado, veja! e Mowgliapresentou-lhe a panela de brasas vivas.

- Otimo! Muitas vezes vi os homens botarem galhos secossobre isso, fazendo abrirem-se grandes flores vermelhas. Nao tensmedo, Mowgli?

- Nao. Por que teria medo? Lembro-me agora - se nao esonho - que antes de ser lobo costumava deitar-me ao lado daflor vermelha, cujo calor e reconfortante.

Todo aquele dia passou Mowgli sentado em sua caverna, alidar com as brasas, alimentando-as com galhinhos secos, para vercrescerem as chamas, e depois com galhos maiores ate que con-seguir um ti~ao que 0 satisfez. A tarde apareceu Tabaqui a lhedizer, com insolencia, que 0 estavam esperando no Conselho daRoca. Mowgli riu-se tanto ao ouvir a noticia que Tabaqui se reti-rou desnorteado. E foi ainda a rir-se que se apresentou a reuniaodo Conselho.

Viu hl Akela, 0 Lobo Solitario, nao mais sentado em cima,mas ao lado da sua pedra - sinal de que a chefia do bando estavaaberta aos pretendentes. Shere Khan passeava dum lado' para ou-tro, seguido pelos lobos bajuladores. Bagheera veio colocar-se jun-to de Mowgli, que tinha sobre os joelhos a panela de fogo. Quandotodos se reuniram, Shere Khan tomou a palavra, coisa que jamaisacontecera no tempo 'da chefia de Akela.

- Shere Khan nao tem esse direito, cochichou Bagheera pa-ra Mowgli. Dize-lhe isso. Chama-lhe filho de cao. Vai amedron-tar-se, veras.

Mowgli saltou de pe.- Povo livre, gritou ele, entao e certo que vai Shere Khan

chefiar agora a alcateia? Que tem aver um tigre com a nossavida?

- Vendo que a chefia do bando esta aberta e sendo convi-dado a falar ... , come~ou 0 tigre. Mas foi interrompido.

- Convidado par quem? gritou Mowgli. Somos acaso cha-cais, dos que vivem dos teus restos? A chefia do bando e negocioque so a nos diz respeito.

Houve uivos de "Cala a boca, filhote de homem! Deixa-o fa-lar! Shere Khan guarda os preceitos da nossalei". Por fim, oslobos mais velhos urraram:

Page 18: Os IrmãOs De Mowgli

-' Que fale 0 Lobo Morto!

Quando um chefe de bando perde pela primeira vez 0 bote,passa a ser .chamado Lobo Morto ate que the tirem a vida.

Akela ergueu lentamente a velha cabe~a.

- Povo livre, disse ele, e tambem vos, chacais de ShereKhan! Por muitas esta~6es vos conduzi a ca~a e nunca em meutempo nenhurn caiu em armadilha, nem ficou aleijado: Agora con-fesso qlle perdi meu bote, mas vos sabeis da conspira~ao quepara isso houve. Sabeis como tudo foi preparado para que euperdesse meu bote. Foi manha bem hiibil, reconhe~o. Tendes, en-tretanto, 0 direito de matat:'me neste Conselho. Assim sendo, quevenha a mim 0 que vai por termo a vida do Lobo Solitario. Pelalei do jfingal, e meu direito lutar contra todos, um por urn.

Houve urn prolongado rosnar, pois nenhum lobo se atreviaa lutar sozinho com Akela. Shere Khan, entao, urrou:

- Bah! Para que darmos aten~o a este pateta sem dentes?Ele esta condenadoa morrer. Tambem 0 filhote de homem javiveu muito. Povo l~vre, lembrai-vos de que no come~o esse filho-te era meu, minna·comida. Dai-mo agora. Ando cansado de aturarsuas loucuras de homem-Iobo. Vem ele perturbando 0 jangal hadez esta~6es. Entregai-me 0 filhote de homem, ou cac;a-lo-ei semlicen~a, nao vos dando nem um osso sequer. E um hornem, urnfilhote de homem e, pelo tutano dos meus ossos, eu 0 odeio!

Entao metade do bando uivou:

- Umhomem! Um homem! Que tem um homem de comumconosco? Que va viver com os homens.

- Para que toda a aldeia se volte contra nos movida porele? exclamou Shere Khan. Nao! Dai-mo. Ele e homem. Bem sa-.beis que nenhum de nos pode sustentar 0 seu olhar.

Akela ergueu de novo a sua velha cabe~a para dizer:

.,...-;-Mowgli comeu a nossa comida. Dormiu conosco na· ca-verna. Ca~u para nos. Jamais infringiu um preceito da nossa lei.

- Ha aiIlda uma coisa, ajuntou Bagheera. Por ele paguei 0pre~o de um touro gordo, pre~o que foi aceito. 0 valor dumtouro nao e grande, mas a honra de Bagheera vale alguma aten-~ao, concluiu a Pantera Negra com voz macia.

Page 19: Os IrmãOs De Mowgli

- Urn touro! rosnou 0 bando com desprezo. Urn touro pagoha dez anos! Que valem ossos tao velhos?

- E que )rale a palavra de honra? replicou Bagheera mos-trando os dentes alvissimos. Bern, bem, sois 0 povo livre ...

-- Nenhum filhote de homem pode viver com as criaturasdo jangal, urrou Shere Khan. Dai-mo!

- Ele e nosso irmao em tudo, exceto no sangue, gritouAkela, e aindaassim quereis matii-Io! Na verdade sinto que javivi muito. Alguns de vos sois comedores de gado; de outros seique, instruidos por Shere Khan, VaGpela calad!l da noite roubarcrian\(as na aldeia. Covardes, todos, para covardes, estou falando.Sei que preciso morrer e, embora nenhum tenha coragem de ata-car-me, ofere~o minha vida em troca da deste filhote de homem.Pela honra da alcateia, porem, embora honra pouco valha aqui,prometo que, se deixardes queq filhote de homem siga 0 seudestino, nao arreganhareios dentes quando urn de vos vier tomar-me a vida. Morrerei .sem lutar. Isto salvara ao banda pelo menostres vidas. Mais nao posso fazer. Assim, salvar-vos-ei da vergonhaque sera matar urn irmao contra 0 qual nada se alega de criminoso,urn irmao que jll foi defendido neste Conselho e cuja vida foi res-gatada por pre\(o aceito por todos, de acordo com a lei do jangal!

- Ele e urn homem, um homem, um homem! urrou a alca-teia, da qual a maioria apoiava Shere Khan.

Ao ouvir isso,o tigre entrou a sacudir a cauda.- 0 negocio esta agora contigo, disse Bagheera· a Mowgli.

Nada mais temos a fazer, senao lutar.Mowgli ergueu-se de pe, com a pane1a de fogo nas maos.

Estendeu os bra~os, cheio de raiva e magoa de ter sido lobo tantotempo e so agora ~aver percebido 0 quanto os lobos 0 odiavam.

- Ouvi! gritou ele. Basta de discussao de cachorro! Muito jame dissestes esta noite para provar que sou homem (a mim quedesejava ser lobo toda a vida ... ), de modo que estou realmenteconvencfdo de que sou homem. E, como sou homem, nao voschamarei mais irmaos e sitn sag - caes -, como dizem os ho-mens. 0 que ireis fazer ou nao, e la convosco. 0 que farei, ecomigo; comigo, 0 homem, que aqui traz uma bra~ada daquela£lor vermelha que vos, caes, tanto temeis!

Isto dizendo, Mowgli derramou as brasas no c\1ao, ateandoem chamas um tufo de ervas secas. A £lor vermelha ergueu-se

Page 20: Os IrmãOs De Mowgli

violenta, em lfnguas VlvISSlmas,fazendo a alcateia recuar aterro-"rizada, enquanto Mowgli acendia urn feixe de galhos, com 0 qualtra<;ou urn cfrculo de fogo em tomo de si.

- Estas senhor da situa<;ao,murmurou Bagheera em vozbaixa. Salva Akela da morte. Foi sempre teu amigo.

Akela,' 0 severo lobo que jamais pedira favor, lan<;ou urn..olhar de indizivel expressao ao menino do jangal, ao rapazinhonu, de cabelos caidos sobre os ombros, Guja sombra, criada pelaschamas, dan<;avano chao.

- Bern, gritou Mowgli correndo os olhos em tomo. Vejomesmo que san caes. E, como san caes, You-mepara a minha gen-te. 0 jangal ficara fechado para mim;. esquecerei a vossa lfngua ea vossa companhia de tantos anos. Serei, porem, mais generosodo que 0 sois. Porque fui durante dez anos vosso irmao em tudomenos no sangue, prometo que, quando me tomar urn homementre os homens, nao vos trairei perante eles, como me traistesaqui no jangal.

E com estas palavras Mowgli esparramou 0 fogo com 0 pe,fazendo subir ao ceu urn repuxo de faiscas. . •

- Nao havera guerras entre a minha gente e a alcateia, masha uma divida a ser paga antes que me va, gritou dirigindo-se parao lado de Shere Khan, que olhava estupidamente para as chamas.

Mowgli avan<;oupara ele corajosamente, agarrou-o peia bar-ba (Bagheera 0 seguia de perto para 0 que desse e viesse) e disse:

- Levanta-te, cao! Quando urn homem faIa, os caes se Ie-yantam; levanta-te antes que eu fa<;a a flor vermelha crescer emteu focinho!

Shere Khan derrubou as orelhas e fechou os olhos cegadopelo archote de Mowgli.

- Este comedor de bezerros andou dizendo que ia matar-me no Conselho por nao ter podido comer-me quando eu era umacriancinha indefesa. Mas nos, homens, sabemos como bater noscaes. Abre essa goela, Limgri, para que te meta esse facho pelagarganta adentro! berrou 0 menino, dando com 0 fogo na cabe-<;ado tigre, que saltou de lado, tonto de medo e dor. Bah! Vai~teembora, gato fingido! Mas Iembra-te de que na proxima reuniao doConselho, quando eu aqui vier ainda mais homem do que ja sou,trarei tua pelesobre minha cabec;a. Quanto ao mais, que Akeia

Page 21: Os IrmãOs De Mowgli

permane9a livre e que viva como quiser. Ninguem 0 matani por-que eu nao quero, estais ouvindo? Nao quero! E agora ninguemmais fica aqui sentado, .de lingua de fora, como se fossem todosuns grandes personagens. Nao passais de caes que eu toea assim:"Passa fora, cambada! Depressa! Chispa! ... "

E, como a facho de fogo estava no maximo da combustao,Mowgli 0 girou violentamente em redor, dando com ele a direitae a esquerda, fazendo os lobos <sumiraos uivos, com 0 pelo eha-muscado. Apenas permaneceram uns dez, que haviam tornado 0seu partido, alem de Akela e Bagheera. Mas nesse momenta umacoisa esquisita assaltou 0 cora<;ao do menino do jangal. Vieram-Ihesolu<;os de desespero, ao mesmo tempo que grossas lagrimas lhebrotavam dos olhos.

- Que sera isto? exclamou, mal compreendendo 0 seu estado.Nao quero, sinto que nao quero deixar 0 jangal. Que tenho

eu? Estarei morrendo, Bagheera?- Nao, irmaozinho. Estas apenas chorando pela primeira

vez, uma coisa que so os homens eostumam fazer. VejQ disso queja es homem, nao apenas filhote de homern. Q. jangaf esta real-mente fechado para ti, doravante. Deixa que as lagrimas eaiam,Mowgli. Chora, ehora ...

E Mowgli chorou. Sentou-se e ehorou, como se seu cora<;aofosse arrebentar, ele que jamais havia chorado em toda a suavidinha.

- Sim, irei para 0 meio dos hornens, agora. Mas tenho an-tes de dizer adeus a minha mae, murmurou, dirigindo-se para acaverna onde Mae Loba morava com Pai Lobo. La chorou nova-mente, abra<;ado ao corpo peludo da que 0 eriara, enquanto quatrolobinhos novos the uivavam ao lado, de tristeza.

- Nao me esquecereis nunc a? solu<;ou Mowgli.

- Nunca, enquanto pudermos seguir urn rasto, responde-ram os lobinhos. Mas apareee ao pe da montanha, de vez em quan-do. La estaremos para brincar contigo.

- Volta logo, disse Mae Loba, a olhar enternecida para aque-Ie estranho filho nu. E jamais te esque<;as de que te amei a ti indamais do que aos meus proprios lobinhos.

- Virei, sim, respondeu Mowgli, e urn dia apareeerei de no-vo no Conselho envolto napele de Shere Khan. Nao te esque<;as

Page 22: Os IrmãOs De Mowgli

de mim, mae. Dize a todos no jfmgal que jamais se esque9anide mim ...

A manha ia rompendo quando Mowgli deixou a montanha,sozinho, rumo a aldeia, onde moravam as misteriosas criaturaschamadas homens.

Bale osambur, quando desponta a aurora,uma, duas. tres vezes.

E a cor~a dB.um saito ousado, um saIto ousadoAte a lagoa oude bebe 0 veado.Isto eu notei agora

uma, duas, tres vezes.

o sambur bale,se a manha raiar.uma, duas, tres vezes.

E 0 lobo eis que recua e 0 aviso levaA alcateia que espera e, pela treva,Seguimos 0 seu passo, a ladrar, a ladrar,

uma, duas, tres vezes.

Quando desperta a aurora, 0 cIa dos lobos ruge.uma, duas, tres vezes.

Oh, pes no jangal que nao deixam rastros!Olhos que podem ver pela noite sem astros!Voz! Sim! Dai-Ihes a voz! Escuta! Escuta!

uma, duas, tres vezes.

Page 23: Os IrmãOs De Mowgli