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Ser ou não ser um docente-artista? - Questões sobre os currículos das licenciaturas em teatro no RS Autora: Taís Ferreira 1 1. Questionando currículos de licenciaturas, perguntando sobre identidades docentes Este é um texto de perguntas, não de respostas. Seu título: a mais famosa das questões dramáticas. Pode parecer lugar comum este título, assim como poderão parecer as perguntas propostas nesse artigo. No entanto, me parece que o exercício de questionar possibilita a abertura de espaços para o debate, para a discussão, para a reflexão. E este é um momento eminentemente propício a estes exercícios na universidade brasileira, já que sentimos e vivenciamos, em nossos corpos e cotidianos, talvez (ouso dizer) as transformações mais radicais que a universidade pública brasileira tenha sofrido desde seus primórdios. Este, portanto, é um texto tecido pelas dúvidas que atravessam minha prática como professora, como atriz, como pesquisadora, como coordenadora de um curso de licenciatura em teatro. E, possivelmente, sejam dúvidas pertinentes aos diálogos que desenvolveremos (alunos/as, professores/as, funcionários/as) na construção deste novo curso: a graduação em Teatro- Licenciatura da UFPel, que é hoje um “working in progress na cena contemporânea 2 ”. Muito tem se falado, escrito, pensado e discutido acerca dos currículos escolares no último meio século. Muito tem se dito acerca da escola como instrumento disciplinar e de seus dispositivos de controle dos corpos e mentes infantes e púberes. Muito tem se pensado sobre como se constituem identidades docentes e identidades discentes. Muito tem se articulado em nome de uma transdisciplinaridade desejável e de uma desconstrução das lógicas cartesianas e disciplinares de organização curricular. Muito, muito, muito. Destarte, percebemos uma proliferação de teses, dissertações, monografias, artigos, livros, periódicos, congressos, simpósios, palestras e toda série de mecanismos acadêmicos disponíveis que problematizam as questões curriculares no Brasil e no mundo. Os currículos de graduação também têm sido objetos de análise, assim como projetos político-pedagógicos de universidades e cursos. As licenciaturas no Brasil vêm se 1 Coordenadora do curso de Teatro – Licenciatura da UFPEL e coordenadora da área de Teatro no PIBID/ UFPEL 2009. 2 Livro de Renato Cohen, constante nas referências bibliográficas deste artigo.

Ser ou não ser um docente? Questões sobre os currículos das licenciaturas em teatro no RS

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Capítulo publicado no livro Currículo e Projeto Pedagógico, Estágio e Formação Continuada: Outros Olhares, Outras Reflexões. Pelotas: Editora da UFPEL, 2010.

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Ser ou não ser um docente-artista? - Questões sobre os currículos das

licenciaturas em teatro no RS

Autora: Taís Ferreira1

1. Questionando currículos de licenciaturas, perguntando sobre identidades docentes

Este é um texto de perguntas, não de respostas. Seu título: a mais famosa das questões

dramáticas. Pode parecer lugar comum este título, assim como poderão parecer as perguntas

propostas nesse artigo. No entanto, me parece que o exercício de questionar possibilita a

abertura de espaços para o debate, para a discussão, para a reflexão. E este é um momento

eminentemente propício a estes exercícios na universidade brasileira, já que sentimos e

vivenciamos, em nossos corpos e cotidianos, talvez (ouso dizer) as transformações mais

radicais que a universidade pública brasileira tenha sofrido desde seus primórdios. Este,

portanto, é um texto tecido pelas dúvidas que atravessam minha prática como professora,

como atriz, como pesquisadora, como coordenadora de um curso de licenciatura em teatro. E,

possivelmente, sejam dúvidas pertinentes aos diálogos que desenvolveremos (alunos/as,

professores/as, funcionários/as) na construção deste novo curso: a graduação em Teatro-

Licenciatura da UFPel, que é hoje um “working in progress na cena contemporânea2”.

Muito tem se falado, escrito, pensado e discutido acerca dos currículos escolares no

último meio século. Muito tem se dito acerca da escola como instrumento disciplinar e de

seus dispositivos de controle dos corpos e mentes infantes e púberes. Muito tem se pensado

sobre como se constituem identidades docentes e identidades discentes. Muito tem se

articulado em nome de uma transdisciplinaridade desejável e de uma desconstrução das

lógicas cartesianas e disciplinares de organização curricular. Muito, muito, muito. Destarte,

percebemos uma proliferação de teses, dissertações, monografias, artigos, livros, periódicos,

congressos, simpósios, palestras e toda série de mecanismos acadêmicos disponíveis que

problematizam as questões curriculares no Brasil e no mundo.

Os currículos de graduação também têm sido objetos de análise, assim como projetos

político-pedagógicos de universidades e cursos. As licenciaturas no Brasil vêm se

1 Coordenadora do curso de Teatro – Licenciatura da UFPEL e coordenadora da área de Teatro no PIBID/ UFPEL 2009. 2 Livro de Renato Cohen, constante nas referências bibliográficas deste artigo.

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(re)pensando na medida em que praticamente todos os cursos com mais de 10 anos de

funcionamento sofreram drásticas mudanças curriculares com a extinção das modalidades

licenciatura plena e licenciatura curta e a partir da Lei de Diretrizes e Bases para Educação

Básica de 1996. Para além deste fato, hoje vivenciamos no Brasil uma expansão jamais vista,

com o aumento considerável dos cursos de licenciatura (presenciais e à distância),

incentivados por programas do governo federal como PROUNI3 (que concede bolsas em

universidade particulares), REUNI4 (programa de reestruturação e expansão universitária) e

UAB5 (propostas de cursos de graduação à distância). Outros programas de incentivo

específico às licenciaturas como Prodocência6 e PIBID7 têm dado visibilidade aos cursos que

se propõem à formação de professores. Enfim, as atuais políticas públicas de incentivo à

educação superior e ao acesso à educação, bem como à formação de professores, são um

outro capítulo da história da educação brasileira a ser escrito e desenvolvido nas próximas

décadas por pesquisadores do campo educacional.

2. Mapeando as licenciaturas em teatro no Rio Grande do Sul

Mas partamos agora para a pergunta que nos trás a esta escrita: ser ou não ser um

docente-artista? Brevemente apresentado o contexto no qual estão inseridas as licenciaturas

no Brasil contemporaneamente, este artigo intentará articular uma pequena análise da

composição dos currículos dos quatro cursos de Teatro – Licenciatura oferecidos no estado

do Rio Grande do Sul, no que tange à formação de um docente-artista em teatro. Por que esta

análise se faz pertinente, devem se perguntar alguns leitores? Respondo contextualizando a

implantação e situação atual destes cursos do extremo Sul do Brasil.

Por muitos anos (desde a década de 70), no estado do Rio Grande do Sul, contamos

com duas licenciaturas em artes cênicas, uma na UFSM8 e outra na UFRGS9. Em 1996 a

3 Programa Universidade para Todos, ligado ao PDE (Plano de Desenvolvimento da Educação), informações no site: <http://siteprouni.mec.gov.br/>, acesso em 02/03/2010. 4 Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, ligado ao PDE (Plano de Desenvolvimento da Educação), informações no site: <http://reuni.mec.gov.br/>, aceso em 02/03/2010. 5 Universidade Aberta do Brasil, vinculada a CAPES e ao MEC, informações no site: <http://www.uab.capes.gov.br/>, acesso em 02/03/2010. 6 Programa de Consolidação das Licenciaturas, da CAPES, informações em: <http://www.capes.gov.br/educacao-basica/prodocencia>, />, acesso em 02/03/2010. 7 Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência, da CAPES, informações em: <http://www.capes.gov.br/educacao-basica/capespibid>, aceso em 02/03/2010. 8 Universidade Federal de Santa Maria, localizada na região central do estado do RS. 9 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, localizada na capital do estado do RS, Porto Alegre.

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UFSM opta por manter somente um curso de bacharelado em artes cênicas, fato decorrente

do demérito que as licenciaturas em artes sofreram em todo o Brasil durante várias décadas,

com a desvalorização concomitante do trabalho docente nas escolas e dos cursos de

licenciatura em artes nas universidades. Esta situação que “minorizou” as licenciaturas em

artes e seus alunos, bem como seus egressos, começou a ser paulatinamente revertida com a

LDB de 1996, que regulamenta a necessidade de professores com formação específica em

cada uma das quatro linguagens artísticas a serem contempladas na educação básica: música,

artes visuais, dança e teatro. Assim, currículos são reformulados, licenciaturas em educação

artística de caráter polivalente e licenciaturas curtas são extintas e são fortalecidos os cursos

de artes visuais, música, teatro e dança na modalidade licenciatura. Por muitos anos a

UFRGS foi a única responsável pela formação de professores de teatro no estado, contando

com o número ínfimo de 15 ingressos anuais para alunos de licenciatura no Departamento de

Arte Dramática do Instituto de Artes.

Já nos anos 2000 o governo do estado do RS propõe a fundação de uma universidade

estadual, a UERGS10. Esta, em parceria com a FUNDARTE11, torna-se responsável pela

abertura de cursos de Pedagogia da Arte, que posteriormente viriam a ser nomeados de

licenciaturas, nas quatro áreas já citadas (música, artes visuais, teatro e dança). Portanto,

passam a ser dois os cursos de formação de professores de teatro no estado. A situação atual

da UERGS em todas as áreas e em todo estado é nebulosa, com unidades e cursos sendo

arbitrariamente fechados e outras penando com falta de docentes, funcionários e estrutura

básica para seu funcionamento. O ingresso de novos alunos nestes cursos de licenciatura em

artes da UERGS não acontece há alguns anos, sendo que a justificativa que se encontra no

site da instituição na internet é: “Curso em convênio com a FUNDARTE, aguardando

provimento de vagas para docentes por concurso público para novas turmas12”. Contudo,

apesar das visíveis agruras pela qual passa a UERGS, na página de divulgação da educação

formal da FUNDARTE ainda constam os quatro cursos de licenciatura promovidos pela

parceria entre as duas instituições e no site da UERGS, em campo referente às vagas abertas

para edital de ingresso 201013, a informação a qual se tem acesso é a de que há disponíveis

10 Universidade do Estado do Rio Grande do Sul, multicampi. 11 Fundação de Arte do Município de Montenegro, pertencente à Região do Vale do Caí. 12 Dado obtido em: <http://www.uergs.edu.br/index.php?action=cursosLocais.php>. Acesso em 26/02/2010. 13Informação constante em : <http://www.uergs.edu.br/index.php?action=vestibular&subaction=cursos&int_ano=2010&cod_vestibular=21>, acesso em 10/03/2010.

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20 vagas para o curso noturno de graduação em Teatro – Licenciatura. No entanto, a

efetividade do início das aulas está condicionada ao provimento das vagas docentes.

Já o REUNI é responsável pela abertura dos dois novos cursos de licenciatura em

teatro no estado: no ano de 2008 a UFPel abriu as portas para sua primeira turma de teatro e

em 2010 a UFSM retoma as atividades na licenciatura em teatro, abrindo 20 vagas para o

ingresso neste novo curso, concomitantemente aos 20 ingressos anuais que já oferecia em seu

bacharelado. Desta forma, contamos, oficialmente (segundo dados dos sites das

universidades), no ano de 2010, com quatro cursos de Teatro – Licenciatura em terras

gaúchas. Contabilizando: são 20 vagas da UERGS/FUNDARTE, 50 vagas da UFPel, 20

vagas da UFSM e 15 vagas da UFRGS, num total de 105 ingressantes anuais. O número

parece pequeno, se levarmos em consideração o fato de que toda a escola de ensino

fundamental e médio deveria contar com pelo menos um professor de teatro. No entanto, ao

pensarmos que durante mais de 10 anos somente 15 vagas eram abertas no estado para

licenciandos em teatro, temos um considerável avanço promovido, fundamentalmente, pelas

políticas de ampliação do ensino superior do atual governo federal, e isso em curtíssimo

espaço de tempo. Regionalmente, temos contempladas a Região Metropolitana, o Vale do

Caí, a Região Sul e a Região Central do estado, se pensarmos em áreas atendidas pelas

universidade que oferecem tais cursos.

Assim, podemos vislumbrar no panorama da educação superior gaúcha a existência

de quatro cursos de licenciatura em teatro: um já consolidado e em funcionamento há mais de

três décadas (caso da UFRGS) e outros três jovens cursos, que se encontram em fase de

estruturação e de formação de seus quadros docentes e funcionais, o que certamente

acarretará que sejam feitas determinadas escolhas na construção de seus currículos e,

conseqüentemente, nas identidades destas graduações e de seus egressos.

3. Perguntas aos currículos: o que fala e o que cala

Apresentei brevemente, portanto, quatro cursos de teatro que se propõem a formar

professores. Por conseguinte, surgem questões: que professor é este que queremos formar?

Quais os conteúdos e práticas básicos para aquisição da linguagem teatral? Quais os

conteúdos e práticas necessários à formação de um educador? É preciso fazer teatro para

ensinar teatro? O que é necessário para formar uma artista-docente? Que saberes devem ser

“postos em movimento” para forjar este profissional? Ou melhor: é possível (em quatro anos,

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oito semestres e com uma média de 3.000 horas de atividades obrigatórias) formar um

docente-artista ou um artista-docente?

Emergem, como documentos destes processos criativos (SALLES, 1998), os

currículos: documentos de identidade (SILVA, 1999)? Documentos que organizam,

classificam e dividem o conhecimento em tempos-espaços específicos, que normatizam o que

deve ou não ser aprendido, pensado, debatido ou calado. Que dão a luz a determinados

conhecimentos e a negam a outros, que, esquecidos, jazem no subsolo do teatro. No entanto,

seria ingênuo pensar em um currículo que abrangesse tudo que se possa relacionar ao campo

teatral (ou a qualquer outro campo do conhecimento), já que, para que possamos falar em um

campo, devemos assumir que em processos sociais e culturais algumas convenções foram, ao

longo dos tempos, sendo conhecidas e reconhecidas como aquelas que definem as

características (materiais e simbólicas) dos artefatos classificados como literatura, teatro,

dança, música, cinema ou ligados ao macro campo das artes (BOURDIEU).

E mais uma vez trago a questão inicial: ser ou não ser um docente-artista? Esta tem

sido uma questão amplamente debatida na construção dos currículos dos cursos de teatro no

Brasil. Priorizam-se os conhecimentos específicos (teóricos e práticos) da linguagem teatral?

Abarca-se a possibilidade do discente experienciar conhecimentos técnicos do campo

(entendo como tal as atividades de iluminação, sonoplastia, figurinos, maquiagem,

cenografia, contrarregragem, etc.)? Como desenvolver a vivência e o aprendizado

pedagógico necessários ao exercício docente? Quais as questões que devem ser debatidas e

tornadas relevantes pelo currículo no que concerne ao campo da educação? Como e através

de que mecanismos seria possível formar um artista que pudesse exercer o magistério e um

professor que pudesse vivenciar e exercer as funções artísticas?

Parece-me quase um consenso que grande parte dos currículos das licenciaturas em

teatro tenta abarcar estas duas dimensões: a artística e a pedagógica. O imbricamento entre

estas é que difere nas construções curriculares, conforme tentarei explicitar a seguir a partir

de exemplos retirados dos quatro currículos das licenciaturas em teatro no estado do RS, que

me parecem ser uma amostragem significativa dos modelos seguidos também por outros

cursos de graduação em todo o Brasil.

Obviamente as escolhas na constituição de um currículo não são arbitrárias e não

dependem somente da vontade de determinado colegiado ou corpo docente. Há documentos

que as normatizam e regulamentam, nestes casos sendo os dois principais a Resolução 4, de 8

de março de 2004 da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação,

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que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Teatro

(bacharelados e licenciaturas) e a Resolução CNE/CP2, de 19 de fevereiro de 2002, que

institui a duração e carga-horária dos cursos de licenciatura plena. Ambos os documentos

balizam, obrigatoriamente, os currículos que ora analiso. Somente a análise destes

documentos já propiciaria amplas discussões, já que ambos foram concebidos por comissões

de especialistas na área de teatro e de educação, respectivamente; ou seja, por pares.

Sendo estas as diretrizes e resoluções que regulamentam os cursos, percebo em uma

primeira mirada sobre estes quatro currículos, que muito eles têm em comum, principalmente

no que concerne ao quadro de disciplinas obrigatórias, que, seguindo a Resolução CNE/ CES

4 de 2004, traz um conjunto de disciplinas de caráter teórico (história do teatro, estética,

crítica, dramaturgia, entre outras), outro de caráter prático-teórico (atuação, encenação,

corpo, voz, metodologias e fundamentos do ensino do teatro), bem como disciplinas

estritamente ligadas ao campo da educação (sociologia, psicologia, filosofia e história da

educação, organização da educação no Brasil, entre outras), estas sendo oferecidas pelas

faculdades de educação das universidade federais nos casos da UFRGS, UFSM e UFPel, bem

como os estágios docentes (400 horas obrigatórias segundo a Resolução CNE/CP2 de 2002)

e um grupo de disciplinas voltadas à pesquisa e projetos de conclusão de curso (envolvendo

monografias ou trabalhos práticos).

No entanto, o que diferencia estes currículos? O que lhes dá caráter único? Como

cada um destes currículos responde às questões já anteriormente propostas neste texto, que

dizem respeito à formação de um docente-artista, que é o que parecem promulgar as leis que

normatizam e regulamentam as licenciaturas em teatro no Brasil? Voltam-se mais ao artista

futuro ou ao futuro docente? Quem ganha este “cabo-de-guerra” que (infelizmente) se coloca

em muitas realidades acadêmicas de cursos de licenciatura, entre os conhecimentos/práticas

específicos da área e os conhecimentos/práticas pedagógicos? Como construir uma

articulação entre dois campos nos processos de ensino-aprendizagem de um licenciando?

Como formar um docente-artista ou um artista-docente que consiga articular organicamente a

arte e a docência?

Posso inferir, a partir de uma análise preliminar e superficial das grades curriculares

destes quatro cursos de graduação, que todos eles atendem às exigências dos documentos

acima citados, compreendendo núcleos de disciplinas ligadas à prática teatral, à teoria teatral,

à pesquisa acadêmica, à prática educacional e à reflexão pedagógica, bem como um conjunto

de créditos de formação livre e/ou caráter optativo e as atividades complementares de ensino.

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No entanto, relativamente à distribuição espaço-temporal de proposta destes currículos, que

envolve as dimensões de carga-horária e de seriação, há diferenças que também falam sobre

este docente-artista que os currículos pretendem formar e como ocorrerá este processo

formativo.

Uma tabela comparativa preliminar guiou algumas análises que aqui apresento. Esta

tabela desdobrou-se em pequenas tabelas que sugeriam algumas categorias analíticas, e é

partir delas que tecerei alguns comentários comparativos acerca destes quatro currículos que

pretendem a formação de um docente-artista em teatro.

3.1 Distribuição de cargas-horárias: em busca de autonomia na formação do

licenciando?

Conforme já foi dito anteriormente, a distribuição das cargas horárias dos cursos

obedece a leis, normativas e resoluções específicas do MEC. A tabela abaixo demonstra que

há equiparação, pelo menos no que concerne ao quesito quantitativo, no número de horas a

serem cursadas pelo licenciando a fim de integralizar a graduação. São também semelhantes

as horas de atividades complementares (estipuladas em carga mínima de 200 horas pela

Resolução CNE/CP2 de 2002) e as horas de estágios curriculares docentes (estipuladas em

carga mínima de 400 horas pela mesma resolução). Somente a UFRGS ainda não adequou

sua carga-horária de atividades complementares à exigência do MEC.

No que concerne à carga-horária dedicada às modalidades de disciplinas optativas,

eletivas ou de formação livre (as nomenclaturas divergem e não há normas que

regulamentem esta nomeação), percebemos que os currículos tendem a abrir espaço de

escolha para o acadêmico, possibilitando que este opte entre um elenco de disciplinas

oferecidas e indicadas pelo próprio projeto pedagógico do curso (caso da UFRGS e da

UERGS) ou dentro das ofertas de todos os cursos da universidade, desde que aprovada a

escolha do aluno pelo colegiado de curso (casos da UFPel e da UFSM).

A inclusão de parte da grade curricular como optativa ou de formação livre tem como

finalidades: a) promover a mobilidade acadêmica, prevendo que intercâmbios de alunos em

cursos de outra universidades do Brasil sejam parte integrante da sua formação e b) gerar

autonomia, possibilitando ao discente traçar seus percursos formativos, buscando cursar

disciplinas e atividades que satisfaçam seus desejos e necessidades, ligando estas escolhas às

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suas vontades investigativas e de atuação social, ou seja, vinculando o ensino à pesquisa e à

extensão.

Muito tem se dito acerca desta modalidade de atividades de ensino que compreendem

formação livre e elencos de disciplinas optativas. Para que se efetivem escolhas produtivas,

há a necessidade de acompanhamento da construção do currículo deste aluno pelo colegiado

de curso ou pela figura de um professor orientador. No entanto, sabe-se que a estrutura

universitária nem sempre dá conta de atender a estas demandas, tornando-se mais fácil

indicar um elenco de disciplinas pré-estabelecidas entre as quais o aluno poderá escolher

cursar algumas, mas não se abrindo completamente as possibilidades de escolha. Assim

sendo, há uma movimento contraditório dentro deste espaço que deveria ser de escolha

consciente e individual, pois ao estabelecer restrições, volta-se à rigidez promovida pelos

currículos fechados. E esta contradição é fruto do despreparo técnico e da falta de recursos

das instituições para construir redes de escolha amplas e irrestritas aos seus alunos.

É importante salientar que a construção curricular passa também pelas restrições

burocráticas e materiais decorrentes da situação das instituições superiores de ensino no país.

Não é somente do desejo de formar identidades docentes específicas que se constrói um

currículo: uma série de fatores o atravessa e vai transformando suas questões ideológicas e

políticas também em problemas e entraves técnicos, burocráticos e físicos a serem resolvidos.

As linhas de poder que atravessam um currículo podem ser insidiosas, reticulares e

invisíveis, no entanto, adquirem forma, cor e som ao materializarem-se como algumas das

carências e dificuldades enfrentadas nos últimos 50 anos pelas universidades públicas

brasileiras.

Tabela 1. Comparativa entre cargas-horárias nos currículos das licenciaturas em teatro no RS:

Carga-horária

Licenciaturas

Carga-horária disciplinas obrigatórias

Carga-horária disciplinas eletivas (formação livre)

Carga-horária atividades complementares

Carga-horária total do curso

Turno das aulas

UERGS 2640 horas 180 horas 200 horas 3020 horas noturno

UFPel 2533 horas 200 horas 200 horas 2933 horas noturno

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UFRGS 2640 horas 150 horas 90 horas 2880 horas diurno

UFSM 2460 horas 180 horas 200 horas 2840 horas diurno

Outros fatores devem ser levados em consideração ao analisar-se um currículo,

como o perfil dos ingressantes desejados, que se caracteriza já na proposta de turno de

funcionamento do curso. Aliado a este fator, podemos também pensar na distribuição

das atividades de ensino por semestre e de sua respectiva carga-horária. Ao optar por

serem cursos noturnos, a UFPel e a UERGS abrem espaço tanto para o aluno

trabalhador da empresa formal como para aqueles professores do ensino básico que já

trabalham com teatro e carecem de formação específica na área ou até mesmo ainda não

possuem nenhuma graduação.

O número de horas total dos currículos ora analisados pode parecer reduzido

(quando comparado a cursos na área da saúde, por exemplo), ficando em torno de 3.000

horas nas quatro licenciaturas em teatro do estado (200 horas somente a mais do que

indica a Resolução CNE/CP2 de 2002 como carga-horária mínima para uma

licenciatura: 2.800 horas). Entretanto, a possibilidade de integralização da graduação em

quatro anos é imprescindível para o público de alunos trabalhadores e/ou carentes

financeiramente, sendo que os primeiros cursam a graduação com grandes esforços, por

vezes abdicando de diversas esferas de suas vidas, e os segundos necessitam ingressar

no mercado de trabalho o quanto antes, sendo a conclusão do ensino superior a primeira

possibilidade de terem aberta esta porta.

3.2 Trabalhos de conclusão de curso formam pesquisador, artista ou professor?

Tabela 2. Atividades de trabalhos de conclusão de curso.

Atividades

de ensino

Licenciatura

TCC prático

(coletivo ou

individual)

TCC teórico

(monografia)

Montagem final

(coletiva)

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UERGS X (em atuação)

UFPel X X

UFRGS X

UFSM X X

No que concerne aos trabalhos de conclusão de curso em relação à prática

teatral, percebemos um interesse em alguns destes currículos em propiciar aos seus

alunos ocasiões de prática teatral levada a público, como no caso dos cursos da UFSM e

da UFPel com suas montagens coletivas (espetáculos dirigidos por professores nos

quais todos alunos licenciandos tomarão parte da prática artística, como atores e ou em

alguma outra função do espetáculo) e no caso da UERGS com um trabalho de conclusão

de curso prático na área de atuação, ou seja, um trabalho de conclusão muito semelhante

àqueles dos bacharelados em interpretação teatral.

Já o curso da UFRGS privilegia a monografia final, teórica, baseada em trabalho

de pesquisa individual do formando, como trabalho de conclusão de curso. Esses

projetos de graduação da licenciatura em teatro da UFRGS são levados a público (tanto

como os projetos de bacharelado em atuação ou direção teatral) através dos Painéis da

Licenciatura, que ocorrem semestralmente junto com a Mostra Teatro DAD, que

engloba a apresentação de trabalhos de formandos em artes cênicas desta instituição.

Assim, do mesmo modo que os trabalhos de prática teatral são de conhecimento

público, as práticas e teorias (teatrais e pedagógicas) investigadas nas monografias dos

licenciandos, sejam elas atreladas ou não ao campo da educação, também se tornam de

conhecimento público, já que apresentadas e debatidas em sessões abertas. A UFSM e a

UFPel também propõem em seus currículos monografias finais de curso, mas nenhuma

turma ingressante alcançou este estágio de sua graduação ainda, por serem cursos

novos. Portanto, as diretrizes que os TCCs seguirão nestes dois cursos ainda não estão

estabelecidas.

Posso inferir, a partir das características apresentadas por estas propostas de

trabalhos de conclusão de curso de graduação, que a dimensão investigativa coloca-se

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tanto no âmbito da formação teatral como no da formação pedagógica, propiciando ao

aluno experiências práticas com a linguagem teatral, espaços de reflexão e articulação

teórica e iniciação aos caminhos de pesquisas individuais e/ou coletivas. Deste modo,

estágios docentes obrigatórios, projetos de pesquisa (teóricos e/ou práticos, almejando a

não dissociação entre estas duas esferas) e investigações cênicas articulam-se na

constituição dos percursos formativos dos futuros professores de teatro, buscando

contemplar, pelo menos através das atividades obrigatórias nos últimos três semestres

de graduação, a formação de um docente-artista em teatro que possua ferramentas para

pesquisar em sua área de atuação.

O cabedal de disciplinas que abordam questões metodológicas e de iniciação à

pesquisa também demonstram o interesse destes currículos em promover (para aquém

ou para além das possíveis experiências como bolsistas de iniciação científica, por

exemplo) o acesso ao conhecimento acadêmico ligado à dimensão da pesquisa, assim

como as horas de atividades complementares e de formação livre privilegiam

contemplar as atividades de extensão, compondo assim o triângulo “ensino, pesquisa e

extensão” que está na base da constituição e da ação das universidades públicas

brasileiras.

Certamente a efetividade das intenções e propostas trazidas por um currículo só

se dá na prática, só se concretiza no dia-a-dia de um curso, nas relações professor-aluno,

aluno-aluno, aluno-funcionário, aluno-instituição, entre tantas outras que compõem os

meandros universitários. Cumpre notar, contudo, que os currículos devem ser estruturas

relativamente cambiantes, abertas ao debate e à incorporação das necessidades locais,

regionais e, inclusive, pessoais dos sujeitos envolvidos em sua execução. Devem,

também, em meu ponto de vista, ser estruturas pré-dispostas à desestrutura (ainda que

estruturadas e estruturantes), já que o fracasso é parte integrante de qualquer projeto, de

qualquer proposta que se coloque em prática. E aprender com o que não funciona,

deslocando aqueles saberes aos quais estamos agarrados e que julgamos serem os

únicos cabíveis, é parte profícua e saudável dos processos de construção de um

currículo, de um curso e dos sujeitos neles envolvidos.

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3.3 É possível articular (organicamente) teatro e educação?

Quatrocentas horas de estágios docentes obrigatórios levam as quatro licenciaturas

analisadas, ou seus currículos, a contar com no mínimo três atividades de estágio. Tanto a

UFRGS como a UERGS possuem em seus currículos disciplinas de introdução ao estágio e

dois estágios obrigatórios, um no ensino fundamental e outro no ensino médio. A UFPel e a

UFSM contam com três estágios obrigatórios em sua grade curricular, sendo que um deles

voltado à educação informal, ou seja, aos trabalhos com aulas de teatro direcionados aos mais

diversos públicos e comunidades. A UFPel abre, inclusive, a possibilidade de que seus alunos

realizem um dos estágios em escolas de educação infantil, bem como nas séries iniciais do

ensino fundamental.

Esses “estágios na comunidade”, como vêm sendo comumente chamados nos

currículos, apresentam-se como uma ponte necessária entre o futuro docente-artista e as

conjunturas e espaços nos quais atuará, já que é notório e parte do processo histórico-cultural

do Brasil que aulas de teatro e/ou a formação de grupos teatrais sejam constantes em projetos

sociais, em comunidades, em associações de bairros, em ONGs, em projetos extra-classe, em

espaços de convívio e de promoção do bem-estar social voltados aos mais diferentes públicos

e faixas-etárias. Asilos, abrigos da FASE, presídios, casas de passagem, associações de

bairro, creches, entre tantos outros espaços, recebem as conhecidas “oficinas de teatro”. Isso

sem falar na longa tradição brasileira de grupos de teatro amador e estudantil. E essa

realidade não pode ser negada na construção de um currículo de uma licenciatura em teatro,

já que os espaços fora do ensino regular básico são muito mais numerosos e mais abertos à

atuação de um docente-artista em teatro do que as instituições escolares propriamente.

Portanto, torna-se premente o “peso” que adquirem tais atividades de estágios dentro

da integralização curricular destes licenciandos, que passarão por volta de 15% da carga-

horária obrigatória de suas graduações envolvidos com os estágios docentes. Isto vai ao

encontro de outra exigência da Resolução CNE/CES 2 de 2002, que torna obrigatórias nas

licenciaturas no mínimo 400 horas de atividades de práticas educacionais, estas para além

dos estágios. Essa exigência obriga a existência de disciplinas e/ou atividades curriculares de

caráter pedagógico não puramente teóricas, que coloquem o aluno frente a frente com as

metodologias, práticas e realidades das escolas e ambientes educacionais os mais

heterogêneos. No entanto, cumpre notar que não é em todas as propostas que a formação

deste profissional possuidor de experiências artísticas e pedagógicas possibilita uma

Page 13: Ser ou não ser um docente? Questões sobre os currículos das licenciaturas em teatro no RS

incorporação orgânica destas etapas, que deveriam estar imbricadas e indelevelmente

relacionadas na formação de um artista-docente ou docente-artista.

Como se pode visualizar no quadro abaixo, as quatro licenciaturas em questão

ofertam disciplinas de cunho pedagógico a seus alunos desde o primeiro semestre da grade.

Porém, as disciplinas nas quais se propõem uma articulação mais direta e prática entre o

teatro e a educação só vão figurar em alguns currículos a partir do quinto semestre da

seriação, ouse seja, quando o aluno tiver integralizado mais de 50% do curso de graduação,

como no caso da UFRGS. A UFSM e a UERGS propiciam aos alunos desde o terceiro

semestre de curso disciplinas com este caráter, bem como a UFPel desde o primeiro ano de

curso.

Parece-me que esta desarticulação (ou articulação precária) entre o teatro e a

educação em alguns currículos de licenciaturas em teatro deve-se à herança dos antigos

currículos de curso “4+1 ou 3+1” 14, nos quais os alunos recebiam uma formação artística

absolutamente desvinculada de sua futura prática pedagógica, promovendo improváveis (ou

impossíveis) construções de sentidos nas atividades curriculares pedagógicas, que “surgiam”

dentro da seriação completamente dissociadas dos conteúdos específicos, como um “deus ex-

machina” capaz de “salvar” a vida profissional destes egressos com o título de licenciados,

que lhes daria o direito a serem professores em suas respectivas áreas, não sofrendo, desta

forma, as agruras de uma carreira artística. O magistério surge não como uma opção

consciente, mas como uma possibilidade de subsistência, tão somente.

As colocações anteriores não se apresentam aqui como uma forma de julgamento

arbitrário, e sim buscam problematizar os traços herdados de um passado muito recente na

educação brasileira, já que grande parte dos professores que hoje atuam nos cursos de

licenciatura no Brasil é oriunda desta formação em que imperava a absoluta desarticulação

entre a educação e as áreas de conhecimento específico, com a evidente supremacia destas

sobre aquela. E não foi o campo das artes o único a sofrer com este modelo: disciplinas como

biologia, física, química, matemática, história, geografia, filosofia, português, entre outras,

sofreram (e possivelmente sofram) as conseqüências nefastas destas estruturas curriculares.

14 Neste formato curricular, os alunos cursavam três ou quatro anos de um bacharelado, para depois, em mais um ano, cumprirem as exigências curriculares obrigatórias para receberem também o diploma de licenciados. Assim, estes bacharéis-licenciados formavam-se com poucas possibilidades de construir articulações entre a educação e suas áreas de atuação/ formação inicial.

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Tabela 3. Atividades de estágios docentes e disciplinas articulando teatro e educação.

Atividades

de ensino

Licenciatura

Número de estágios e área de abrangência

Semestre de início disciplinas pedagógicas

Semestre de início disciplinas teatro e educação

UERGS 2 (EF e EM) + disciplina de introdução ao estágio

1º 3º

UFPel 3 (EI, EF, EM e comunidade) 1º 2º

UFRGS 2 (EF séries finais e EM) + disciplina de introdução ao estágio

1º 5º

UFSM 3 (EF, EM e comunidade) 1º 3º

4. Interessa-nos o que está guardado no porão do teatro?

O porão é lugar que para muitos pode ser insalubre, úmido, sujo, escuro e, por isso

mesmo, passível de esquecimento. É para onde vai aquilo que não nos serve mais, aquilo que

se quer esconder (mesmo sabendo que não se pode simplesmente desfazer-se destes objetos e

de seus sentidos e significados). O porão é também o lugar da memória, do saudosismo, do

passado. Para as pessoas do teatro e para as crianças o porão pode ter um sentido diverso: é

território fértil. É no porão que se escondem não somente aranhas, ratos e coisas velhas: é no

porão que se escondem histórias, ditos e não-ditos do passado que podem ser presente

quando evocados.

Assim sendo, não só o que é posto nestes currículos, mas o que é silenciado (ou seja,

as dimensões não contempladas), também fala. Aquilo que foi armazenado, empilhado,

guardado no porão também é parte, ainda que latente, dos currículos. Não trabalho aqui a

partir de hipóteses de currículos ocultos, ou teorias semelhantes, somente julgo pertinente

levantar algumas temáticas e/ou pontos de vista que não constam (ou constam parcamente)

Page 15: Ser ou não ser um docente? Questões sobre os currículos das licenciaturas em teatro no RS

nestas grades curriculares e que fazem parte das discussões contemporâneas tanto no campo

educacional como no campo teatral.

Uma formação humanístico-pedagógica contemporânea se faz com quantas

disciplinas? Esta me parece uma questão pertinente em tempos culturalistas. Onde estão,

nestes currículos, categorias como gênero, raça, etnia, nacionalidade, sexualidade, classe

social, faixa-etária, enfim, todas estas dimensões exaustivamente abordadas pelos estudos

culturais? Há espaço nestes currículos para o debate acerca destas temáticas que emergem na

quase totalidade dos discursos contemporâneos? Estão estes currículos contemplando o

debate atual (e necessário) acerca destas questões?

Alguns podem responder que estes temas deveriam atravessar as discussões em todas

as instâncias, disciplinares ou não, de um processo de formação docente contemporâneo.

Creio que sim, porém se estas forem silenciadas já na composição dos currículos, como

lançá-las à luz do dia? Como retirá-las do porão e torná-las histórias do presente? Como

discutir religião, mídia, novas tecnologias, meio-ambiente, ética, consumo e saúde como

protagonistas na história de um docente-artista, e não como meros coadjuvantes em sua

formação?

Não pretendo responder a estas questões, mas, mais uma vez, problematizar aquilo

que é (praticamente) silenciado nestes currículos que ora analiso. Há presentes algumas

disciplinas dispersas que tratam de temas como educação especial, educação inclusiva e

LIBRAS (disciplina agora obrigatória por lei em todas as licenciaturas do Brasil). A ética

profissional e a identidade docente também se fazem presentes nos títulos de algumas

propostas disciplinares. Educação indígena, de jovens e adultos e quilombola não parecem

figurar no quadro disciplinar. Outra ausência significativa em quase todos os currículos é a

de disciplinas que debatam a mídia e as novas tecnologias em sua relação tanto com o teatro

como com a educação, debates estes presentes em ambos os campos.

Por fim, percebemos disciplinas de caráter técnico de aprendizagem teatral relegadas

ao plano de optativas e/ou formação livre. É óbvio que um curso que tem quatro anos como

ideal de integralização para obtenção do grau de licenciado não pode inserir em sua grade

curricular obrigatória todos estes conhecimentos aqui elencados como necessários, e todos os

outros que este próprio texto silenciou, já que trabalhamos na tênue linha entre o possível e o

desejável. É o ponto de vista de um sujeito único, que através de seus horizontes de

expectativas em relação ao teatro, à educação e à formação de docentes-artistas guia este

Page 16: Ser ou não ser um docente? Questões sobre os currículos das licenciaturas em teatro no RS

texto. Atravessado este ponto de vista, por diferentes discursos, pelas muitas vozes que

constituíram e constituem esta professoratriz que sou, esta docente-artista em construção.

Ficam as questões, na esperança de que elas abram espaços de debate e dêem a pensar

a todos aqueles que constroem e vivenciam em seus corpos estes currículos e, portanto, estes

cursos de licenciatura em teatro do sul do Brasil.

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Page 17: Ser ou não ser um docente? Questões sobre os currículos das licenciaturas em teatro no RS

Taís Ferreira é professora de teatro, atriz e pesquisadora. Bacharel em Interpretação Teatral

e Mestre em Educação pela UFRGS. Foi professora nas graduações em teatro da UFRGS,

UFSM e atualmente é coordenadora do curso de Teatro – Licenciatura da UFPel e da área de

teatro no PIBID/UFPel 2009. Foi professora em vários projetos sociais e no curso de

Formação de Atores da UCS. Atuou em diversos espetáculos e publicou artigos e livros sobre

teatro. Contato: [email protected] ou http://historiadoteatroufpel.blogspot.com/