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A moradora Ana Marcondes (acima), uma das desalojadas pelas obras em Quixabinha (abaixo) de 10 a 16 de dezembro de 2009 5 brasil Escondido, homem enche galão no Canal da Integração, em Jaguaribara (CE): guardas impedem a população de retirar água do local João Zinclar Thalles de Cajazeiras (PB), Mauriti, Brejo Santo e Jaguaribara (CE) ÚLTIMOS DIAS DE novem- bro, ndando o período seco, e o sertão nordestino esban- ja uma caatinga ainda ori- da, com seus tons de verde e roxo, banhada por águas que abundam em açudes e barra- gens à beira da estrada. Não falta água nessas terras, é o que se conclui ao percorrer a região do Semiárido Seten- trional que receberá os eixos norte e leste da transposição do rio São Francisco. Mas, se já há água, por que então uma obra faraônica, com 622 km de canais, 40 km de túneis, 35 reservató- rios, 27 aquedutos, nove es- tações de bombeamento e duas centrais hidrelétricas, que custará aos cofres públi- cos R$ 20 bilhões até 2020 – e mais R$ 93,8 milhões, por ano, em manutenção? Para a esperança “Vai ser muito bom se a transposição vier para cá. Se Deus ajudar e eles cum- prirem com a promessa, vai ter muito peixe aí dentro pra gente pegar”, é o que arma a pescadora de traços indíge- nas Josefa Lourenço. Mesmo residindo às mar- gens da barragem de En- genheiro Ávidos, com ca- pacidade de 255 milhões de litros d’água, localiza- da no município de Cajazei- ras (PB), dona Josefa não tem água encanada em ca- sa. Não tem água encanada nem energia elétrica, ainda que de sua janela seja pos- sível ver os cabos passarem por sobre a casa. Precisa ca- minhar cinco vezes por dia, com um balde de 40 litros na cabeça, para trazer a água da barragem. Sua crença é que, com as obras da transposição, o acesso à água encanada - que mais fácil, ao ser bombe- ada com energia, além de me- lhorar a produção do pesca- do. Expectativa compartilha- da pelo pescador João Bos- co: “Eu acho muito impor- tante para nossa região, por- que vai trazer benefício para os ribeirinhos. Através dessa transposição, todo mundo vai ser beneciado”. Diante de tantas promessas, não há como se opor. Quem seria contra água, infraestru- tura e melhores condições de vida? “É uma promessa gran- de para nós aqui”, continua João Bosco. “Nós vivemos en- volvido nisso aí. Acho que po- de melhorar. Sabe como é a si- tuação do pobre. Pobre sem- pre tem esperança”. Uma esperança que, nesse caso, é alimentada por uma completa desinformação. “Por enquanto, a gente não es- tá tendo garantia de nada”, confessa Bosco, cujo racio- cínio é completado pelo vi- zinho, João Diniz: “Eu acho que eles não estão explicando direito. Eles poderiam dizer para as pessoas como é a ver- dade. Porque se eles explicas- sem para o povo, o povo ia ter condições de se prevenir”. Mesmo sendo um dos locais contemplados pela transposi- ção, a população da vila En- genheiro Ávidos não sabe se precisará sair de suas casas, quanto receberá de indeni- zação, quando as obras come- çarão e quanto terão de pagar pela água que utilizarem. De uma coisa eles sabem: será uma água cara. Uma água cara e de certa forma inútil, já que as águas da atu- al barragem, se bem distribu- ídas, já seriam sucientes pa- ra o abastecimento da popu- lação. Como informa Diniz, “eu não posso entender por- que eles estão trazendo essa água. Porque água favorável nós temos para anos e anos secos. Deve beneciar algum proprietário por lá, mas pro lado de cá não. Benefício por aqui é derrubar casa, é tirar o cara do leito do rio. E vai des- truir muita casa por aqui. Se é como eles dizem, destrói muita coisa”. Água para onde tem água Destruição que já se iniciou no povoado de Quixabinha, em Mauriti (CE). O início das obras obrigou 83 famílias de moradores a abandonarem suas casas. O prédio onde funcionava a escola foi desa- tivado. “Antes, aqui era bom, sossegado, mas, agora, com licença da palavra, aqui virou um inferno. Não tem mais o que a gente fazer”, desabafa a moradora Ana Marcondes. “Eles chegaram e deram 24 horas pra todo mundo deso- cupar as casas. 24 horas!” Sem terem para onde ir – já que as casas prometidas na Vila Produtiva Rural ain- da não foram entregues –, Ana e seus familiares se ve- em obrigados a viver impro- visados numa casa de taipa levantada às pressas no ter- reno do pai. Para piorar a si- tuação, as obras vêm afetan- do seriamente a saúde fami- liar. “Esses caminhões – cer- ca de 200 carregamentos por dia – estão fazendo muito ba- rulho e muita poeira na nossa casa. A gente não está aguen- tando. Meu pai tem 70 anos. Durante a noite nós dormi- mos, meu pai não. Ele passa a noite todinha assoando o na- riz. O que é que ele vai fazer? Nesse rojão ele vai morrer”. Há alguns quilômetros da- li, no povoado Atalho, muni- cípio de Brejo Santo (CE), os moradores também passam por uma situação tão dra- mática quanto emblemática. Mesmo abastecidos com um eciente sistema de irrigação que garante plantio farto de feijão, milho e até capim irri- gado, a população foi intima- da a abandonar suas casas e terras, pois todo o vale onde se encontram será inunda- do pelas águas da transposi- ção. Com indenizações muito abaixo do valor real de suas terras, os moradores se sen- tem enganados e com muitas dúvidas sobre seu destino. “A gente aqui ca muito magoa- do. O cabra sair do lugar da gente é muito ruim” arma José Felipe, agricultor da região. “Eles falam que tem muita gente passando sede, só que aqui não é. Aqui tem água à vontade. Eu acho que quem vai ser beneciado não vai ser gente daqui não, vai ser gente de fora. E eu creio que nós vamos servir de es- cravos pra eles”. E José Felipe não está erra- do. Com apenas 17% de obras realizadas, já é possível cons- tatar o que as organizações e movimentos sociais contrá- rios à transposição há muito alertavam: a trilha da trans- posição é a trilha da irriga- ção, cujo objetivo é fortalecer a infraestrutura hídrica para a expansão do agronegócio de exportação. Do contrário, por que en- tão que no próprio projeto da transposição, em seu Relató- rio de Impactos Ambientais, consta que 70% da águas se- rão destinadas à irrigação, 26% para o setor industrial e centros urbanos e apenas 4% para a população da caatinga? E por que então as localida- des com maior risco de desa- bastecimento estão bem lon- ge dos canais? É o caso do ser- tão central do próprio Ceará e também dos estados do Piauí, Maranhão e Alagoas, conforme dados do mais recente Atlas Nor- deste para Abastecimento Urba- no, da ANA (Agência Nacional de Águas), a mesma que há dois anos demonstrou que, com ape- nas R$ 3,3 bilhões e 530 obras de pequeno e médio porte, se resol- veria o decit hídrico para 34 mi- lhões de habitantes de nove esta- dos do Nordeste e o Norte de Mi- nas Gerais. “Os ricos é que vão desfrutar” “Eu acho que é inconvenien- te trazer essa água para cá, até porque nós não precisamos des- sa água do rio São Francisco. A não ser que ela venha beneciar a pobreza, mas, infelizmente, is- so não está acontecendo. Vai be- neciar a indústria, e a pobreza é quem vai sofrer. Os ricos é que vão desfrutar e nós aqui sofren- do”. Eis o que denuncia Francis- co Saldanha, presidente do Sin- dicato dos Trabalhadores Rurais TRANSPOSIÇÃO Obras no rio São Francisco prometem levar água, mas acabam com a que já existe e causam transtornos e sofrimento por onde passam de Jaguaribara (CE). Tachim, como é conhe- cido na região, tem todo o direito de desconar da transposição. Junto com mais de duzentas famílias, ele reside às margens do Canal da Integração, que recebe águas da barragem do Castanhão – com capa- cidade de armazenamento de 6,7 bilhões de m 3 –, e já está bem calejado quanto às falsas promessas do gover- no. “A gente não tem aces- so de jeito nenhum à água. Aqui o pessoal tira a água escondido. O guarda vem, eles correm. Tem guarda de dia e de noite, tudo armado, e não deixa o pessoal usar a água do canal de manei- ra nenhuma”. Sua comuni- dade, desalojada pela bar- ragem do Castanhão, ainda depende do abastecimento de carro pipa. Tanta água e nem um gole Não foi esta a promessa que eles ouviram oito anos atrás, quando foram reas- sentados. O projeto previa o incentivo à pecuária lei- teira, na qual cada uma das famílias criaria dez vacas dentro de um lote de dez hectares irrigado. A irri- gação nunca saiu do papel, e Tachim foi ameaçado de prisão por mais de uma vez por utilizar a água do ca- nal. “Você acredita que da última vez vieram uns 20 carros de polícia? Eu dis- se: ‘Eu estou tirando essa água para dar para o meu gado, para sustentar a mi- nha família, sabe pra quê? Para não virar marginal. Eu queria que eles fossem criados que nem homem, como eu fui criado, mas parece que não vou poder criar minha família hones- tamente, não’”.

TANTA ÁGUA E NEM UM GOLE

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Page 1: TANTA ÁGUA E NEM UM GOLE

A moradora Ana Marcondes (acima), uma das desalojadas pelas obras em Quixabinha (abaixo)

de 10 a 16 de dezembro de 2009 5

brasil

Escondido, homem enche galão no Canal da Integração, em Jaguaribara (CE): guardas impedem a população de retirar água do local

João Zinclar

Thalles de Cajazeiras (PB),

Mauriti, Brejo Santo e Jaguaribara (CE)

ÚLTIMOS DIAS DE novem-bro, fi ndando o período seco, e o sertão nordestino esban-ja uma caatinga ainda fl ori-da, com seus tons de verde e roxo, banhada por águas que abundam em açudes e barra-gens à beira da estrada. Não falta água nessas terras, é o que se conclui ao percorrer a região do Semiárido Seten-trional que receberá os eixos norte e leste da transposição do rio São Francisco.

Mas, se já há água, por que então uma obra faraônica, com 622 km de canais, 40 km de túneis, 35 reservató-rios, 27 aquedutos, nove es-tações de bombeamento e duas centrais hidrelétricas, que custará aos cofres públi-cos R$ 20 bilhões até 2020 – e mais R$ 93,8 milhões, por ano, em manutenção?

Para a esperança“Vai ser muito bom se a

transposição vier para cá. Se Deus ajudar e eles cum-prirem com a promessa, vai ter muito peixe aí dentro pra gente pegar”, é o que afi rma a pescadora de traços indíge-nas Josefa Lourenço.

Mesmo residindo às mar-gens da barragem de En-genheiro Ávidos, com ca-pacidade de 255 milhões de litros d’água, localiza-da no município de Cajazei-ras (PB), dona Josefa não tem água encanada em ca-sa. Não tem água encanada nem energia elétrica, ainda que de sua janela seja pos-sível ver os cabos passarem por sobre a casa. Precisa ca-minhar cinco vezes por dia, com um balde de 40 litros na cabeça, para trazer a água da barragem.

Sua crença é que, com as obras da transposição, o acesso à água encanada fi -que mais fácil, ao ser bombe-ada com energia, além de me-lhorar a produção do pesca-do. Expectativa compartilha-da pelo pescador João Bos-co: “Eu acho muito impor-tante para nossa região, por-que vai trazer benefício para os ribeirinhos. Através dessa transposição, todo mundo vai ser benefi ciado”.

Diante de tantas promessas, não há como se opor. Quem seria contra água, infraestru-tura e melhores condições de vida? “É uma promessa gran-de para nós aqui”, continua João Bosco. “Nós vivemos en-volvido nisso aí. Acho que po-de melhorar. Sabe como é a si-tuação do pobre. Pobre sem-pre tem esperança”.

Uma esperança que, nesse caso, é alimentada por uma completa desinformação. “Por enquanto, a gente não es-tá tendo garantia de nada”, confessa Bosco, cujo racio-cínio é completado pelo vi-zinho, João Diniz: “Eu acho que eles não estão explicando direito. Eles poderiam dizer para as pessoas como é a ver-dade. Porque se eles explicas-sem para o povo, o povo ia ter condições de se prevenir”.

Mesmo sendo um dos locais contemplados pela transposi-ção, a população da vila En-genheiro Ávidos não sabe se precisará sair de suas casas, quanto receberá de indeni-zação, quando as obras come-çarão e quanto terão de pagar pela água que utilizarem.

De uma coisa eles sabem: será uma água cara. Uma água cara e de certa forma inútil, já que as águas da atu-al barragem, se bem distribu-ídas, já seriam sufi cientes pa-ra o abastecimento da popu-lação. Como informa Diniz, “eu não posso entender por-que eles estão trazendo essa água. Porque água favorável nós temos para anos e anos secos. Deve benefi ciar algum proprietário por lá, mas pro lado de cá não. Benefício por aqui é derrubar casa, é tirar o cara do leito do rio. E vai des-truir muita casa por aqui. Se é como eles dizem, destrói muita coisa”.

Água para onde tem águaDestruição que já se iniciou

no povoado de Quixabinha, em Mauriti (CE). O início das obras obrigou 83 famílias de moradores a abandonarem suas casas. O prédio onde funcionava a escola foi desa-tivado. “Antes, aqui era bom, sossegado, mas, agora, com licença da palavra, aqui virou um inferno. Não tem mais o que a gente fazer”, desabafa a moradora Ana Marcondes. “Eles chegaram e deram 24 horas pra todo mundo deso-cupar as casas. 24 horas!”

Sem terem para onde ir – já que as casas prometidas na Vila Produtiva Rural ain-da não foram entregues –, Ana e seus familiares se ve-em obrigados a viver impro-visados numa casa de taipa levantada às pressas no ter-reno do pai. Para piorar a si-tuação, as obras vêm afetan-do seriamente a saúde fami-liar. “Esses caminhões – cer-ca de 200 carregamentos por dia – estão fazendo muito ba-rulho e muita poeira na nossa casa. A gente não está aguen-tando. Meu pai tem 70 anos. Durante a noite nós dormi-mos, meu pai não. Ele passa a noite todinha assoando o na-riz. O que é que ele vai fazer? Nesse rojão ele vai morrer”.

Há alguns quilômetros da-li, no povoado Atalho, muni-cípio de Brejo Santo (CE), os moradores também passam por uma situação tão dra-mática quanto emblemática. Mesmo abastecidos com um efi ciente sistema de irrigação que garante plantio farto de feijão, milho e até capim irri-gado, a população foi intima-da a abandonar suas casas e terras, pois todo o vale onde se encontram será inunda-do pelas águas da transposi-ção. Com indenizações muito abaixo do valor real de suas terras, os moradores se sen-tem enganados e com muitas dúvidas sobre seu destino. “A gente aqui fi ca muito magoa-do. O cabra sair do lugar da gente é muito ruim” afi rma José Felipe, agricultor da região. “Eles falam que tem muita gente passando sede, só que aqui não é. Aqui tem água à vontade. Eu acho que quem vai ser benefi ciado não vai ser gente daqui não, vai ser gente de fora. E eu creio que nós vamos servir de es-cravos pra eles”.

E José Felipe não está erra-do. Com apenas 17% de obras realizadas, já é possível cons-tatar o que as organizações e movimentos sociais contrá-rios à transposição há muito alertavam: a trilha da trans-posição é a trilha da irriga-ção, cujo objetivo é fortalecer a infraestrutura hídrica para a expansão do agronegócio de exportação.

Do contrário, por que en-tão que no próprio projeto da transposição, em seu Relató-rio de Impactos Ambientais, consta que 70% da águas se-rão destinadas à irrigação, 26% para o setor industrial e centros urbanos e apenas 4% para a população da caatinga?

E por que então as localida-des com maior risco de desa-bastecimento estão bem lon-ge dos canais? É o caso do ser-tão central do próprio Ceará e também dos estados do Piauí,

Maranhão e Alagoas, conforme dados do mais recente Atlas Nor-deste para Abastecimento Urba-no, da ANA (Agência Nacional de Águas), a mesma que há dois anos demonstrou que, com ape-nas R$ 3,3 bilhões e 530 obras de pequeno e médio porte, se resol-veria o defi cit hídrico para 34 mi-lhões de habitantes de nove esta-dos do Nordeste e o Norte de Mi-nas Gerais.

“Os ricos é que vão desfrutar”

“Eu acho que é inconvenien-te trazer essa água para cá, até porque nós não precisamos des-sa água do rio São Francisco. A não ser que ela venha benefi ciar a pobreza, mas, infelizmente, is-so não está acontecendo. Vai be-nefi ciar a indústria, e a pobreza é quem vai sofrer. Os ricos é que vão desfrutar e nós aqui sofren-do”. Eis o que denuncia Francis-co Saldanha, presidente do Sin-dicato dos Trabalhadores Rurais

TRANSPOSIÇÃO Obras no rio São Francisco prometem levar água, mas acabam com a que já existe e causam transtornos e sofrimento por onde passam

de Jaguaribara (CE). Tachim, como é conhe-

cido na região, tem todo o direito de desconfi ar da transposição. Junto com mais de duzentas famílias, ele reside às margens do Canal da Integração, que recebe águas da barragem do Castanhão – com capa-cidade de armazenamento de 6,7 bilhões de m3 –, e já está bem calejado quanto às falsas promessas do gover-no. “A gente não tem aces-so de jeito nenhum à água. Aqui o pessoal tira a água escondido. O guarda vem, eles correm. Tem guarda de dia e de noite, tudo armado, e não deixa o pessoal usar a água do canal de manei-ra nenhuma”. Sua comuni-dade, desalojada pela bar-ragem do Castanhão, ainda depende do abastecimento de carro pipa.

Tanta água e nem um gole

Não foi esta a promessaque eles ouviram oito anosatrás, quando foram reas-sentados. O projeto previao incentivo à pecuária lei-teira, na qual cada uma dasfamílias criaria dez vacasdentro de um lote de dezhectares irrigado. A irri-gação nunca saiu do papel,e Tachim foi ameaçado deprisão por mais de uma vezpor utilizar a água do ca-nal. “Você acredita que daúltima vez vieram uns 20carros de polícia? Eu dis-se: ‘Eu estou tirando essaágua para dar para o meugado, para sustentar a mi-nha família, sabe pra quê?Para não virar marginal.Eu queria que eles fossemcriados que nem homem,como eu fui criado, masparece que não vou podercriar minha família hones-tamente, não’”.