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Lição 9 – 1EM Leia o ensaio abaixo e escreva um texto com as características que cita dos contos que compõem o livro “Venha ver o pôr-do-sol e outros contos”. Atmosferas densas numa narrativa solidária”, de Maria de Fátima Lucena de Oliveira Totoli (E.E. Profa. Clarice Costa Conti, D.E. Americana; Americana) Atmosferas densas numa narrativa solidária Depois de lermos alguns ensaios, entre os quais “Ao encontro dos desencontros” de José Paulo Paes, “A densidade do aparente”, de Sônia Régis, “A bolha e a folha: estrutura e inventário”, de Silviano Santiago e alguns artigos elaborados por escritores consagrados, sobre a obra de Lygia Fagundes Telles, perguntamo-nos se ainda podemos acrescentar alguma observação inédita que venha revelar ou encontrar alguma surpresa nas suas narrativas tão cheias de mistérios, repletas de temas e valores extremamente humanos, nas quais encontramos a sombra que afeta a alma e o mal que a sociedade impregna aos seres humanos. Notamos que quase toda a obra de Lygia está voltada à compreensão das relações e à relativização dos valores humanos, pois a escritora cria personagens que, em suas reminiscências, vivem em função do passado e em função do outro. A morte e a velhice (O Muro); a loucura (A Janela, História de Passarinho); tristezas, tensão, trauma da ausência do pai, homossexualismo, rejeição, fuga, solidão, desestruturação familiar e dissolução de costumes (Ciranda de Pedra); conflito entre pais e filhos, a luta pela maturidade e o desajustamento social (Verão no Aquário); a militância política e o desatino das drogas (As Meninas); a miséria e o desamparo da prostituição (A Confissão de Leontina); a traição e o adultério (O Menino), encontros e desencontros, entre outros que envolvem o homem e imbuem sua alma. São temas que fixam a matéria indecisa da vida, não pela pintura objetiva dos fatos, mas porque capta a dolorosa e quase indizível relação que estabelece entre a consciência do homem, os seres e as coisas que o rodeiam. Mediante isso, pela atualidade dos temas, “pelo tratamento dispensado à matéria-prima de sua ficção – o comportamento humano” (Monteiro, 1980, p.105) – Telles facilita “a discussão sobre forma e conteúdo, mostrando ser impossível separá-los”. (Id., ibid.). O resultado é uma narrativa que prende o leitor do início ao fim. Por conta disso, perguntamo-nos: como não gostar de Lorena, tão bondosa, indecisa e delicada, mas tão necessitada de um mundo de fantasias? Como não ser solidário com Virgínia, que vive num círculo familiar fechado? Virgínia que se sente rejeitada e cuja situação se encontra simbolizada na ciranda dos cinco anões de pedra que enfeitam o jardim da casa. Como deixar de torcer que Raíza encontre o que busca na vida e descubra sua verdade? Raíza, que vive freqüentes discussões com a mãe, e que em suas lembranças aparece um pai dedicado e carinhoso. Percebe-se, portanto, que são personagens desencontradas de si, do mundo e das pessoas com quem se relacionam: Lygia conduz os leitores para uma imensa aventura da vida alheia e da nossa própria vida. É uma obra que se “constrói numa abordagem que olha antes de tudo a mulher, dispondo as diversas facetas que compõem o universo feminino, ambientadas em atmosferas densas e carregadas”. (Id., ibid., p. 102). A escritora “transpõe-nos para um mundo cruzado de percepções e desejos próprios da mulher: desde os menores desejos, da vida tranqüila alcançada com o casamento, comum tanto em Ana Clara como em Leontina, até o desejo de auto-afirmação da condição feminina, de independência e quase de auto-suficiência – é o caso de Lião e Virgínia”. (Id., ibid.) – Lygia demonstra ir “muito além da personagem feminina, permite ao leitor uma reflexão sobre a condição humana e sobre a natureza do Homem”.(Id., ibid.) Isso nos indica que a autora “faz ultrapassar uma possível visão unilateral feminista”(Id., ibid.), uma vez que “a mulher que contemplamos nos seus contos e romances não é o carrasco nem a vítima, mas simplesmente um ser humano com toda a amplitude deste termo”. (Id., ibid.). Através de narrativas de contos tão intensos, Lygia expressa a dinâmica de uma realidade que não pára de se movimentar, pois sua obra possui uma característica importante que é o ponto de vista interior da personagem. A maioria de seus contos é narrada em primeira pessoa. A autora embrenha-se pelas personagens, “emprestando sua voz a elas, de forma que surjam vivas e verossímeis aos olhos do leitor, que as acompanha sem a mediação de um narrador”. (Id., ibid., p. 104). As personagens se apresentam espontâneas, sem conteúdos psíquicos, sem articulação lógica e racional. Observamos que o narrador desaparece e a voz da personagem atinge o limite possível do si mesmo, presente na atividade mental do eu personagem como o único ponto de ancoragem. Os monólogos, na obra de Lygia, não prestam contas a uma ordem lógica, carregando uma tonelada de fatos, um atrás do outro, sem simular nenhuma relação entre si: “[...] Sou mulher, logo só posso dizer palavrão em língua estrangeira, se possível, fazendo parte de um poema. Então as pessoas em redor poderão ver como sou autêntica e ao mesmo tempo erudita. Uma puta erudita, tão erudita que se quisesse poderia dizer as piores bandalheiras em grego antigo. E a lesma ficaria irreconhecível, como convém a uma lesma numa corola de quarenta e quatro anos. Quarenta e quatro anos e cinco meses, meu Jesus. Foi rápido, não? Rápido. Mais seis anos e terei meio século, tenho pensado muito nisso e sinto o próprio frio secular que vem do assoalho e se infiltra no tapete. Meu tapete é persa, todos os meus tapetes são persas...” (Portella, 2001, p. 21). “A lógica, que permite à personagem” de Apenas um Saxofone (1969), “misturar na mesma fala teorias sobre a mulher e o palavrão, o medo à velhice e referências ao mobiliário da sala, é uma lógica interna, própria. É uma lógica que não presta conta à causalidade, o que as personagens dizem não corresponde a uma forma convencional de ver o mundo, mas a uma forma pela qual essas mesmas personagens relacionam-se com a realidade, dela extraindo elementos segundo a importância que eles têm para si; e depois, organizando-os de acordo com o seu estado psicológico naquele momento”. (Monteiro, 1980, 105). O conto A Confissão de Leontina (1949) não se opõe ao texto Apenas um Saxofone: os fatos narrados pela personagem principal não

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Lição 9 – 1EM

Leia o ensaio abaixo e escreva um texto com as características que cita dos contos que compõem o livro “Venha ver o pôr-do-sol e outros contos”.

“Atmosferas densas numa narrativa solidária”, de Maria de Fátima Lucena de Oliveira Totoli (E.E. Profa. Clarice Costa Conti, D.E. Americana; Americana)

Atmosferas densas numa narrativa solidária

Depois de lermos alguns ensaios, entre os quais “Ao encontro dos desencontros” de José Paulo Paes, “A densidade do aparente”, de Sônia Régis, “A bolha e a folha: estrutura e inventário”, de Silviano Santiago e alguns artigos elaborados por escritores consagrados, sobre a obra de Lygia Fagundes Telles, perguntamo-nos se ainda podemos acrescentar alguma observação inédita que venha revelar ou encontrar alguma surpresa nas suas narrativas tão cheias de mistérios, repletas de temas e valores extremamente humanos, nas quais encontramos a sombra que afeta a alma e o mal que a sociedade impregna aos seres humanos.

Notamos que quase toda a obra de Lygia está voltada à compreensão das relações e à relativização dos valores humanos, pois a escritora cria personagens que, em suas reminiscências, vivem em função do passado e em função do outro. A morte e a velhice (O Muro); a loucura (A Janela, História de Passarinho); tristezas, tensão, trauma da ausência do pai, homossexualismo, rejeição, fuga, solidão, desestruturação familiar e dissolução de costumes (Ciranda de Pedra); conflito entre pais e filhos, a luta pela maturidade e o desajustamento social (Verão no Aquário); a militância política e o desatino das drogas (As Meninas); a miséria e o desamparo da prostituição (A Confissão de Leontina); a traição e o adultério (O Menino), encontros e desencontros, entre outros que envolvem o homem e imbuem sua alma. São temas que fixam a matéria indecisa da vida, não pela pintura objetiva dos fatos, mas porque capta a dolorosa e quase indizível relação que estabelece entre a consciência do homem, os seres e as coisas que o rodeiam.

Mediante isso, pela atualidade dos temas, “pelo tratamento dispensado à matéria-prima de sua ficção – o comportamento humano” (Monteiro, 1980, p.105) – Telles facilita “a discussão sobre forma e conteúdo, mostrando ser impossível separá-los”. (Id., ibid.). O resultado é uma narrativa que prende o leitor do início ao fim. Por conta disso, perguntamo-nos: como não gostar de Lorena, tão bondosa, indecisa e delicada, mas tão necessitada de um mundo de fantasias? Como não ser solidário com Virgínia, que vive num círculo familiar fechado? Virgínia que se sente rejeitada e cuja situação se encontra simbolizada na ciranda dos cinco anões de pedra que enfeitam o jardim da casa. Como deixar de torcer que Raíza encontre o que busca na vida e descubra sua verdade? Raíza, que vive freqüentes discussões com a mãe, e que em suas lembranças aparece um pai dedicado e carinhoso. Percebe-se, portanto, que são personagens desencontradas de si, do mundo e das pessoas com quem se relacionam: Lygia conduz os leitores para uma imensa aventura da vida alheia e da nossa própria vida.

É uma obra que se “constrói numa abordagem que olha antes de tudo a mulher, dispondo as diversas facetas que compõem o universo feminino, ambientadas em atmosferas densas e carregadas”. (Id., ibid., p. 102). A escritora “transpõe-nos para um mundo cruzado de percepções e desejos próprios da mulher: desde os menores desejos, da vida tranqüila alcançada com o casamento, comum tanto em Ana Clara como em Leontina, até o desejo de auto-afirmação da condição feminina, de independência e quase de auto-suficiência – é o caso de Lião e Virgínia”. (Id., ibid.) – Lygia demonstra ir “muito além da personagem feminina, permite ao leitor uma reflexão sobre a condição humana e sobre a natureza do Homem”.(Id., ibid.) Isso nos indica que a autora “faz ultrapassar uma possível visão unilateral feminista”(Id., ibid.), uma vez que “a mulher que contemplamos nos seus contos e romances não é o carrasco nem a vítima, mas simplesmente um ser humano com toda a amplitude deste termo”. (Id., ibid.).

Através de narrativas de contos tão intensos, Lygia expressa a dinâmica de uma realidade que não pára de se movimentar, pois sua obra possui uma característica importante que é o ponto de vista interior da personagem. A maioria de seus contos é narrada em primeira pessoa. A autora embrenha-se pelas personagens, “emprestando sua voz a elas, de forma que surjam vivas e verossímeis aos olhos do leitor, que as acompanha sem a mediação de um narrador”. (Id., ibid., p. 104). As personagens se apresentam espontâneas, sem conteúdos psíquicos, sem articulação lógica e racional. Observamos que o narrador desaparece e a voz da personagem atinge o limite possível do si mesmo, presente na atividade mental do eu personagem como o único ponto de ancoragem.

Os monólogos, na obra de Lygia, não prestam contas a uma ordem lógica, carregando uma tonelada de fatos, um atrás do outro, sem simular nenhuma relação entre si: “[...] Sou mulher, logo só posso dizer palavrão em língua estrangeira, se possível, fazendo parte de um poema. Então as pessoas em redor poderão ver como sou autêntica e ao mesmo tempo erudita. Uma puta erudita, tão erudita que se quisesse poderia dizer as piores bandalheiras em grego antigo. E a lesma ficaria irreconhecível, como convém a uma lesma numa corola de quarenta e quatro anos. Quarenta e quatro anos e cinco meses, meu Jesus. Foi rápido, não? Rápido. Mais seis anos e terei meio século, tenho pensado muito nisso e sinto o próprio frio secular que vem do assoalho e se infiltra no tapete. Meu tapete é persa, todos os meus tapetes são persas...” (Portella, 2001, p. 21). “A lógica, que permite à personagem” de Apenas um Saxofone (1969), “misturar na mesma fala teorias sobre a mulher e o palavrão, o medo à velhice e referências ao mobiliário da sala, é uma lógica interna, própria. É uma lógica que não presta conta à causalidade, o que as personagens dizem não corresponde a uma forma convencional de ver o mundo, mas a uma forma pela qual essas mesmas personagens relacionam-se com a realidade, dela extraindo elementos segundo a importância que eles têm para si; e depois, organizando-os de acordo com o seu estado psicológico naquele momento”. (Monteiro, 1980, 105).

O conto A Confissão de Leontina (1949) não se opõe ao texto Apenas um Saxofone: os fatos narrados pela personagem principal não

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seguem uma ordem lógica, pois “sempre que possível, o narrador mantém-se afastado, deixando todo o espaço livre para as personagens se movimentarem” (Monteiro, 1980, p.104) e falarem por si; “e, raramente são resumidas ou interpretadas por um terceiro”. (Id., ibid.). Quem ler Lygia “recebe diretamente as falas e o silêncio das personagens, captando toda a riqueza e incoerência do monólogo interior. (Id., ibid.). Nos dois textos, os monólogos são ininterruptos. À vista disso, “As palavras jorram com facilidade, assim como as emoções se manifestam, sem que força alguma as reprima para censurar-lhes a incoerência, para exigir-lhes esta ou aquela organização”. (Id., ibid., p.105).

O conto “A Confissão de Leontina” é escrito numa linguagem descontraída, próxima da fala, e bastante coerente com a personagem marginalizada, degradada – trata-se de uma prostituta acusada de assassinato – expressando-se livremente tudo o que aconteceu com ela, desde a infância que permanece tão recente em sua memória, como o episódio do vestido marrom. Os pensamentos da personagem fluem sem abolição das imagens do passado, “das coisas antigas que se entranham no presente, do ontem que está no hoje e de uma espécie de fracasso que fica pela impossibilidade de fazer parar a roda do tempo e começar tudo de novo. Não é à toa que a protagonista-narradora de Apenas um Saxofone vive se interrogando”: (Monteiro, 1980, p.103) – “Onde agora? Às vezes eu fechava os olhos e os sons eram como voz humana me chamando, me envolvendo, Luisiana, Luisiana! Que sons eram aqueles?” (Portella, 2001, p .21). Como não identificar isso, também, em Rodolfo, do conto Verde Lagarto Amarelo? – “E a voz da minha mãe vindo das cinzas: ‘Rodolfo, por que você há de entristecer seu irmão? Não vê que ele está sofrendo? Por que você faz assim?’” (Portella, 2001, p.15).

Não é só o discurso desordenado que caracteriza a fala de algumas das personagens da escritora: se elas falam como pensam, logo falam à medida que pensam. A linguagem que elas usam é parecida com a que se usa no dia a dia. Não há palavras difíceis, nem frases esmeradas. “O vocabulário das personagens de Lygia é o de todos nós. Até mesmo os palavrões estão presentes, sempre que exigidos pela realidade da personagem”. (Monteiro, 1980, 105) É o que nos permite Leontina: “Puxa vida que cidade. Que puta de cidade a Rubi vivia dizendo. E dizia ainda que eu devia voltar pra Olhos D’Água porque isso não passa de uma bela merda e se nem ela que tem peito de ferro estava se agüentando, imagine então uma bocó de mola que nem eu. Mas como podia eu voltar?” (Telles, 2001. p. 5-6)). A oralidade dos textos de Lygia parece ser imensa, “talvez mesmo porque a narração em primeira pessoa seja freqüente”. (Monteiro, 1980, p. 105). As personagens tomam a palavra e contam a sua própria história, “interrompem a narração com perguntas, deixam frases incompletas, vão enfileirando uma série de períodos curtos, que formam um longo parágrafo cheio de repetições e inserem exclamações que quase nos fazem ver gestos e expressões do corpo”.(Id., ibid.).

Através do monólogo, na obra de Lygia, abre-se a “diegese à expressão do tempo vivencial das personagens, diferente do tempo cronológico linear que comanda o desenrolar das ações. É fundamentalmente no romance psicológico moderno que se assiste a uma incursão nesse tempo subjetivo: as análises de Bérgson sobre o tempo psicológico , a reflexão de William James sobre o fenômeno psicológico que designou pela expressão corrente da consciência (stream of consciousness) e a exploração freudiana do inconsciente delimitam em traços largos o contexto cultural que condicionou o aparecimento desse tipo de romance” (Reis e Lopes, 2002, p. 266). Evidenciamos, em suas narrativas, um discurso mental não articulado, possivelmente um discurso sem ouvinte, cuja enunciação acompanha as idéias e as imagens que se desdobram no fluxo da consciência das personagens.

A autora insere com destreza o pensamento da personagem no interior da narração. Assim, averiguamos na obra de Telles uma certa fluidez sintática, uma pontuação escassa, um hábil jogo de associações lexicais. A seqüência dos pensamentos, muitas vezes desordenada, é traduzida através do fluxo da consciência, oferecendo independência ao desenvolvimento da personagem, dando-nos acesso aos seus pensamentos sem que o narrador seja mediador.

Um dos efeitos mais interessantes, na obra de Lygia, é o “fluxo irreversível da experiência humana, apreendida não por via intelectiva, mas de forma intuitiva. A teoria da durée bergsoniana” (Reis e Lopes, 2002, p. 296) que “sugeriu a progressiva constrição da duração ficcional coberta pelo romance coincidindo com a expansão da duração psicológica das personagens” (Mendilow, 1972:150, apud Reis e Lopes, 2002 p. 296). Suas narrativas expressam uma temporalidade excessiva, sem limites nem balizas, indicando-nos a possibilidade de um tempo denso e relativista em relação à consciência das pessoas/personagens. Mesmo mencionando esse tempo humano, Lygia aparentemente não conta histórias, não analisa estado de alma nem descreve costumes, mas invoca a vida, refletindo sobre a condição humana, revelando-nos desse modo o meio temporal em que o homem se debate. Como não identificar esse estado de alma na personagem do conto, O Muro? (1979), pois quando surge a enfermidade da vida, tudo é visto por um caleidoscópio, na memória: o sonho e as lembranças de um homem que se debate na hora da morte.

No conto, As Formigas, encontramos essa intuição de espaço tenso cristalizado, materializado e contundente, representando os grandes impulsos da vida, de modo arrefecido e condensado, uma espécie de moral fechada e com um conjunto de regras e de hábitos, através dos quais a sociedade assegura em sua conservação: “as formigas em trilha... disciplinadas como um exército em marcha exemplar.”(Telles, 1997. p. 38). Imaginamos de que se trata de uma moral conformista, de um código de deveres que garante, dentro de seus limites, a sobrevivência cotidiana e a ordem de um povo. O desespero, o medo, o conflito, a tentação do egoísmo – todos eles, perigos que as formigas, reduzidas ao instinto, ignoram, mas que a inteligência faz inevitavelmente surgir na sociedade humana.

As narrativas de Telles acolhem, ao mesmo tempo a intensidade e a densidade, situando as personagens em conflitos de ordem social, sem buscar causas profundas nem recorrer à analogia psíquica ou sentimental: “Ana Clara”, no romance As Meninas, vive sérios problemas existenciais, cujas raízes estão na infância pobre de menina sem pai e mãe prostituta. Nas coisas que diz, o real e o imaginário se confundem a todo o momento: dependente de drogas pensa ascender socialmente através de um casamento, possui um comportamento próximo à autodestruição. “Lorena” do mesmo romance, vive num mundo de sonhos sem idealizações, imaginando um romance com um homem mais velho e casado, um misterioso “M.N.” de suas divagações, mas que nunca se realiza; fica a remoer coisas do passado, revivendo fatos que só a fazem sofrer: a morte do irmãozinho que foi assassinado pelo outro irmão, a loucura do pai, a vida de prostituição que a mãe levava e os problemas relacionados à sua vida sentimental.

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A ação das personagens criadas por Lygia exprime uma ação interna e se passa na consciência sem existir uma ação externa. A onisciência do narrador é densa quanto ao encadeamento rápido das ações narradas por Lorena, o que dá uma idéia do ritmo veloz que o fluxo da consciência fixa ao romance mais famoso da escritora: As Meninas. É um livro com fortes lastros psicológicos, mas voltado para o retrato interior das três protagonistas: Lião, Lorena e Ana Clara.

Alguns de seus contos, A Caçada, Seminário dos Ratos e A Consulta, “giram em torno de protagonistas masculinos”. (Monteiro, 1980. p. 102) – personagens principais – “confirmando que mais do que preocupada com o homem ou a mulher, Lygia usa seus textos para criar seres humanos.” (Id., ibid.). As personagens representam pessoas conflituosas, desencontradas de si ou do mundo, como André de Verão no Aquário, o protagonista de A Janela, ou o rapaz de Apenas um Saxofone. Percebemos que “Luisiana”, deste mesmo conto, e tia “Graciana” de Verão no Aquário, já perderam a juventude, mas aparentam ser tão inseguras quanto as jovens protagonistas de As Meninas: “Lião”, “Ana Clara” e “Lorena”. E parece que nem as crianças são poupadas: no conto, O Menino e Antes do Baile Verde, contrapõe-se no garoto a alegria de ir ao cinema e a dor de descobrir a infidelidade da mãe, surge um sentimento de cumplicidade com ela, e ao mesmo tempo, de solidariedade com o pai, descobrindo e incorporando, talvez, o gosto e o peso da traição pelo resto da vida.

O universo fictício oferecido por Telles, constitui-se de relatos tão intensos, em que o narrador assume atitudes diretas, referentes à natureza humana e procura ser tão explícito, quanto possível. É o que verificamos em Antes do Baile Verde, quando “Tatisa” se arruma para ir ao baile de carnaval, enquanto o pai agoniza no quarto ao lado. “Lu”, que a ajuda nos preparativos, tenta fazer com que ela compreenda que o pai está morrendo e “Tatisa” lhe responde: “Morrendo coisa nenhuma, Lu. Você estava sem os óculos quando entrou no quarto, não estava? Então não viu direito, ele estava dormindo”. (Telles, 1997. p. 68). Afigura-se uma vontade enorme de viver, manifestada num presente sem fim. Talvez, a representação de um caminho “louco” e “longo” que é o da aventura humana na terra, contrapondo-se com a finitude da vida. A personagem tenta criar uma outra realidade, engendrada com a falta de consciência que ainda não possui.

Lygia Fagundes Telles narra pequenos incidentes banais em que a intensidade e a densidade aparentes caminham lado a lado, utilizando-se de fatos e detalhes para compor um clima de tensão e expectativa de um drama iminente e por vezes trágico. A definição que a personagem “Ed” faz de “Daniela”, no conto O Jardim Selvagem, numa clara alusão à personalidade incomum e ao comportamento rebelde que ela possuía, revela-nos que o caminho mais difícil de ser trilhado é o desconhecido caminho do universo humano. Ainda há narrado com esses pequenos incidentes banais, a história de um noivo que tem medo de parecer louco ao esquecer do casamento, buscando tentativas inúteis de descobrir quem é a noiva (O Noivo). Há também uma mãe que atravessa o rio numa barca (Natal na Barca) – é natal – e conta para a narradora como o filho mais velho morreu: “Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar!” (Telles, 1997. p. 22). E sente medo de perder o outro filho. A travessia do rio com sua água verde e quente. O rio retratado como forma de marcar o cenário onde decorre a ação trazendo a esperança, através da água que vem da fonte quente e verde, – a água do rio, esse elemento da natureza, será o elemento exato da união entre a mãe e o filho – a vida cotidiana, retomando a imagem do rio, é a fonte e a desembocadura de todas as atividades espirituais do homem. Presenciamos, também, no conto Biruta, a solidão de Alonso, menino órfão, que encontra no cachorro “Biruta” a única companhia na vida. E a recompensa de todo o sofrimento do menino é amar o cão, mas logo vem o golpe da separação, causando forte impacto à sensibilidade do leitor. Assim como, “Alice”, no conto Emanuel (1980), que é alcoólatra e em seus delírios de embriaguez, sonha com um amante, casado, que espontaneamente lhe dá o nome de “Emanuel”; o mesmo tem olhos verdes e lhe dá um Mercedes branco.

Noutra narrativa de Lygia, Seminário dos ratos (1977), encontramos a metáfora precisa do que acontecia no período do governo militar: uma personagem a certa altura, diz que a situação estava sob controle; nesse instante, um rato atravessava a sala. Nesse mesmo livro encontramos, também, o conto Pomba enamorada ou uma história de amor, em que a princesa do baile de primavera encontra “Antenor” pela primeira vez, “[...]o coração deu aquele tranco, o olho ficou cheio d’água e pensou: ‘acho que vou amar ele pra sempre. [...]”(Portella, 2001, p. 67.). Antenor não queria namorá-la e lhe pedia que o tirasse da cabeça. Denota uma encruzilhada – dois caminhos que partem em direções diferentes – que supõe uma escolha transcendente (além de todos os motivos). As possibilidades oferecidas, no decorrer de toda a ação são falsas, transpondo todas as atitudes da personagem para o espaço da experiência psicológica. A própria linguagem de que se serve é reveladora. A probabilidade de ser amada é uma ilusão. O ato executado não é possível, exatamente como se fala no “romantismo”, ou como dizia Shopenhaeur: é “O sentimento humano das pessoas, na banalidade cotidiana das relações humanas.” Desvela-se nas entrelinhas do texto um impulso humano em direção à felicidade e ao amor com suas incompreensões. Todas as situações de encontro são conflituosas, ficando apenas a experiência do fracasso e uma fidelidade em si mesma, prisioneira de seus sentimentos. Não é contrário, também, o esforço inútil de aproximação da menina do conto “Herbarium”, que na sua solidão se confessou com uma inesperada coragem: “Fui andando solene porque no bolso onde levara o amor levava agora a morte”. (Portella, 2001, p. 64.)

O título do romance “As Horas Nuas” (1989), como escreveu José Paulo Paes em seu ensaio, “Ao encontro dos desencontros” sobre a obra de Telles, “condensa, em metáfora, os lances de strip-tease emocional de Rosa Ambrósio, lances que se vão entretecendo ao longo da narrativa numa espécie de exame de consciência ou balanço da vida”. (Cadernos de Literatura Brasileira, L.F. Telles, Instituto Moreira Salles, 2002, p. 80-81). Exaltando o título do romance, observamos no segundo capítulo que “o desnudamento de Rosa Ambrósio é literal e não metafórico. Ali vemo-la despir-se diante do espelho do banheiro para admirar o próprio corpo e esconder com tinta os fios grisalhos que já começam a repontar-lhe nas têmporas e no púbis”. (id., ibid.). Todo esse reflexo da personagem é acompanhado “não apenas pelos olhos do leitor voyeur, mas também pelos olhos de Rahul, o gato de estimação de Rosa Ambrósio. Um gato pensante e metempsicótico, cujos fluxos de consciência nos fazem saber que ele tem vislumbres ocasionais de pelo menos duas de suas vidas anteriores, com que se ilustra parodicamente a crença popular nas sete vidas dos gatos”. (Id., ibid.). Rosa Ambrósio leva o leitor de Lygia a se sentir um ser caracterizado por uma unidade fundamental das relações entre a alma e o corpo – a consciência e o corpo – diante do espelho, o espetáculo de “mim”, oferecido a outrem; e nessa complexidade, se os espelhos

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não existissem, não seríamos levados a cair na ilusão da dualidade corpo-espírito.

Em “Venha ver o pôr-do-sol”, Telles cria uma personagem obstinada às circunstâncias, “Ricardo”. Enciumado e abandonado por “Raquel”, age irrefletidamente, adotando uma conduta voluntária, prendendo a ex-amante em um mausoléu, numa vingança friamente calculada. O jovem não agüenta o peso da traição, ser substituído por outro que tem melhores condições financeiras. Ele faz o jogo do disfarce, da mentira e da hipocrisia.

No conto “A Ceia”, “a esposa implora ao ex-marido: ‘[...] ao menos você podia ter esperado um pouco mais para me substituir, não podia?’ E o marido rebate seus argumentos de forma fria e calculada: ‘Temos que nos separar assim mesmo, sem maiores explicações, não adiantam mais explicações, não adiantam mais estes encontros que só te fazem sofrer...’ “Assumir a própria idade significa assumir o seu próximo desaparecimento do mundo.”(id., ibid. p. 104). Há um desvelar, nesse conto, de uma situação afetiva da realidade humana. À vista disso, ninguém foge da armadilha do envelhecimento. Mesmo se delineando para um futuro, não temos escolha. Mascaramos esse resultado inevitável e o representamos sob a forma de banalidade impessoal. Essa tragédia da condição humana, da subjetividade, apresenta-se, na narrativa, numa dimensão de retrospectiva, num colorido de impotência e de abandono ao mesmo tempo.

“Configurando o romance urbano psicológico, e também, o conto”, (Monteiro, 1980, p.103) Lygia procura ambientar seus textos em grandes cidades, trazendo para primeiro plano membros de uma sociedade aristocrática que decaiu quando a cultura cafeeira foi arruinada. “Na memória de quase todas as personagens, há fazendas, cavalos, escravos ou criadagem dedicada, o hábito fino das fraulein, os álbuns de família com fotografias compostas e amareladas, os costumes elegantes”.(Id., ibid.). As personagens contemplam gravuras e fotografias como se estas refletissem, na imobilidade de suas figuras, uma parada no tempo, impossível na vida real.(Id., ibid., p. 24).

A literatura de Lygia reflete a vivência das grandes cidades, de multidões e solidão na alma. A escritora cultiva “o romance urbano com um enfoque intimista, tratando temas e personagens de forma profunda e visceral, interessada, sobretudo nos ângulos psicológicos e afetivos das pessoas/personagens. O que está fora do homem – lugares, objetos, roupas, cheiro, sensações – importa apenas uma medida em que constituem índices e pistas e um modo de ser interior”. (Id., ibid.). É nesse sentido que o narrador de Ciranda de Pedra nos informa que “Virgínia mantinha o rosto voltado para a noite, mas sentia na sua cabeça aquele olhar que já conhecia bem. Sorriu. Apenas desta vez ele não a perturbava nem a obrigava a recuar. ‘Besouro...’– Lembrou-se escondendo o sorriso. Besouro [...]” (Telles, 1974, p. 75).

A obra de Lygia se apresenta como um testemunho da vida social de seu tempo. “As pessoas vivem em sociedade; e, é na interação com as outras, na aceitação ou na recusa dos costumes de seu tempo, na forma como encara os problemas de sua época que se vai configurando seu modo de ser. Assim, nas cenas, ao longo dos contos e romances de Lygia, vai emergindo um panorama, às vezes esgarçado, às vezes fragmentado, mas nem por isso menos vivo da sociedade de nossos dias”. (Monteiro 1980. p. 104). Aparentemente é um testemunho do comportamento cotidiano do homem como começo e fim de toda a ação humana.

Imaginamos que Lygia navega dentro do universo humano carregado de problemas existenciais. Segundo Sartre (filósofo francês do pós-guerra) “O homem deve ser responsável, pois é livre projeto de si mesmo, porque escolhe livremente seus fins e futuro. Ele deve assumir a situação, com consciência orgulhosa de ser seu autor, sem desculpas ”. Mediante isso, assumimos a situação em que estamos mergulhados, o mundo, a vida, que nos calemos ou nos revoltemos, devemos assumir nosso papel diante da existência. E “O senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas. Afinam ou desafinam ”. ( Rosa. Grande Sertão:Veredas, 1986, p. 21). A personagem Riobaldo, ajudando-nos a compreender que as personagens criadas por Lygia, podem ser representações do ser humano; seres efêmeros em transição para o absoluto, vivendo pluralismo. Telles nos faz refletir, ao longo de suas narrativas, a respeito da luta interior do homem e sobre a natureza humana.

Além de Ciranda de Pedra, outros textos de Telles abordam problemas do homossexualismo, e a própria escritora nos diz: “O amor tem que ter uma liberdade absoluta! Nada pode interferir nessa liberdade. A vida é muito provisória. As pessoas precisam ter espaço para a felicidade. Eu também sou favorável ao casamento entre homossexuais.” (Cadernos de Literatura Brasileira, L.F.Telles, I. M. S., 2002, p. 40). Vemos bem que o amor é o tema dos líricos e épicos; e, se os poetas falam de amor, nesse caso, ele é um fato inegável e se trata de algo possível, pois esse sentimento possibilita o artista a trabalhar com a verdade e a liberdade; isso, provavelmente, não objetiva o sofrimento, apenas o vive.

Os três contos do livro Invenções e memória – Que se Chama Solidão, O Menino e o Velho e História de Passarinho – “são Lygia em seu melhor estilo. Mas com uma nuance – embora tenham traços inconfundíveis da escritora, na linguagem e nas tramas, eles ainda são capazes de revelar algo que soa como novidade, mesmo para o mais experiente leitor de Telles... Esses contos ratificam que ela atingiu o estágio de escritora clássica. Clássico é o estatuto dos escritores que conseguem ser plurais mantendo sua identidade”. (Id., ibid.).

O conto Que se chama solidão traz a mesma forma habilidosa de narrar, o mesmo ritmo impetuoso que o fluxo de consciência fixa a tantos outros textos de Telles. O narrador utiliza-se de um discurso desordenado, sem sobressaltos, interpondo diferentes vozes. Parece haver um registro de emoções vividas pela personagem, permitindo-lhe uma certa visão do modo de ver humano. Todas as lembranças (no caso da infância) retornam à consciência sem uma articulação lógica.

No conto, O Menino e o Velho, acompanha a marca da literatura de Lygia: a crueldade; contudo, qualquer leitor “se surpreenderá com o ritmo preciso e atordoante que ela impõe à narrativa do garoto que, à primeira vista, descobriu um “avô” num restaurante de praia”

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(Id.,p. ibid., p. 59). – o mar, esse elemento da natureza, de purificação e transformação que simbolicamente determina o destino dos homens, identificado com a serenidade e a violência, imaculado e cheio de culpa, – um menino de sorriso tão oblíquo quanto o mar. Poderíamos fazer uma observação semelhante em relação à “História de Passarinho”, que fala de um homem que fica louco e desaparece de casa. “Tudo parece tão familiar – e ao mesmo tempo, desesperador”. (Id., ibid).

As personagens das narrativas de Telles são a transfiguração de uma realidade humana, existente no plano comum da vida, ou imaginada em algum lugar, transportada para o plano da realidade literária, envolvendo o leitor em uma efabulação fragmentada ou retrospecta (flash-back). São personagens que se revelam através das complexidades, perplexidades, impulsos e ambigüidades de seu mundo interior. Aparentam-se interiormente dinâmicas e permitem-se serem desvendadas pelo seu comportamento psicológico mais profundo. Aparentemente são atingidas pela escritora em seu ser existencial. Manifestam-se como personagens nem boas nem más, generosas ou egoístas. É como se fosse uma reprodução do ser humano em diferentes graus de seu mistério interior. Virgínia de Ciranda de Pedra hesita entre duas realidades: uma luminosa, idealizada por ela, onde ela é amada e sua mãe saudável e outra sombria, para a qual é arrastada por Luciana e Margarida. O ambiente em que vive é hostil. Ao retornar do internato, as feridas do passado reabrem-se, levando-a a pensar, inclusive, em suicídio.

Lygia está sempre colocando o espelho em suas narrativas. O espelho que mostra o fluxo da consciência misturado a uma realidade dura, vivenciada pelas personagens e não o espelho da alma, como faz Machado de Assis no conto O Espelho, ou Oscar Wilde em O Retrato de Dorian Gray, em que o jovem Gray deixa que as marcas do tempo e da vida afetassem apenas o seu retrato; ao contrário de Telles, o espelho surge em algumas de suas narrativas, representando as imagens duras da realidade vivida. As imagens que surgem e não apagam as marcas da existência das personagens, no tempo e no espaço. Por conseguinte, ao lermos algumas obras da autora, descobrimos que há uma espécie de intuição imediata, uma inteligência que está representando o mundo como instrumento do querer-viver essencial. Segundo Shopenhaeur, “O mundo como representação da realidade do ser” e, ao mesmo tempo, representado como um mero espelho em que essa realidade se contempla, captando todas as imagens nas quais a própria existência rodeia. O futuro e o passado são apenas representações mentais, “só o presente é à força de toda a vida ”.

A patética figura da Tia Graciana de Verão no Aquário, encontra-se mergulhada na lembrança de um passado idealizado e rodeada por objetos envelhecidos, faz-nos perceber que “os objetos oscilam” na obra da ficcionista como “elementos de composição de um drama tão importante como uma atitude, um esgar, uma fala. O isqueiro que a mulher envelhecida afasta, porque lhe ilumina cruamente o rosto, e que mais tarde o amante esquece à despedida, faz parte de um olhar, e é o prolongamento (tão aconchegado ou aconchegante), de certa mão. Temos intimidades insuspeitas com as coisas, como com as palavras. Elas dizem mais do que aquilo para que pretendemos usá-las [...]”. (Lopes, Folha de S. Paulo, 04.04.71, apud Cadernos de Literatura, L. F. Telles, I. M. S., 2002, p.118).

O estabelecimento de analogias entre personagens e objetos demonstra ser um recurso comum na obra de Lygia. Os objetos parecem flutuar como partes da consciência da existência, numa experiência originária de coexistência, do mundo das sensações, do mundo subjetivo das aparências imediatas que remetem ao leitor às disposições fisiológicas como sujeito espectador em detrimento ao mundo real construído pelo entendimento: o mundo comum a todos os homens despertos e lúcidos. Esse espetáculo dos objetos, faz-nos esquecer esse espectador invisível – que é cada um de nós, que é a consciência pensante. É revelar ao leitor essa consciência constituinte para a qual e pela qual os objetos existem.

A ficção de Telles “insere-se no domínio do mítico, e percebemos em suas narrativas os anseios, as frustrações, os temores e as esperanças que assaltam a mente do homem, tudo expresso pela tessitura enigmática da linguagem simbólica. O paraíso e a queda, a morte e a ressurreição, todas as grandes antíteses e contradições da alma humana tomam forma de tramas criadas pela ficcionista. Sua obra apresenta homogeneidade, seu mundo poético é bastante nítido em seus contornos. Repetem-se personagens, situações, cenários e gestos”. (Silva, 1985, apud Cadernos de Literatura Brasileira, L. F. Telles, I.M.S., 2002, p. 116).

Poderíamos dizer que um dos temas importantes da obra de Lygia é o “desencontro humano como inevitável”. O desencontro das personagens, em que narra as fraquezas humanas, impedindo as vias da redenção. “Todos os temas abordados giram em torno de um conflito central: o relacionamento personagem/mundo e as conseqüências que esse relacionamento trás para as camadas mais profundas do ser humano. (Monteiro, 1980, p. 104). “E quando a intensidade da situação esgota a capacidade de resistência, o mundo se transfunde em mistério, produto de magia, em seara de encantamento.”(Lucas, 1970, apud Cadernos de Literatura Brasileira, L. F. Telles, I. M.S., 2002, p. 119)”.

O conflito das personagens na obra de Lygia vai se delineando ao nível do sugerido, do que no nível superficial, revelando complexidades e introspecção, trazendo à tona o mundo da memória, dos sonhos, das divagações, dos monólogos interiores, dos lapsos de linguagem e das associações involuntárias. Podemos dizer que a autora trouxe novidades à literatura numa posição diferente de outros escritores, com suas narrativas dinâmicas e a velocidade de pensamento das personagens, desvelando a vivência realista do seu imaginário. Vejamos o conto, A Caçada, “um verdadeiro apelo para a imaginação, um mergulho no inconsciente, num passado que pode alimentar-se da biografia quanto da história da humanidade.”(Lucas, 1970, apud Cadernos de Literatura, L. F. Telles, I.M.S., 2002, p.119).

“Talvez possamos afirmar que se ergue um realismo imaginário, limitado ao norte pela agilidade textual, pela eletricidade discursiva, e ao sul por uma espécie de resistência subjetiva, difícil de ser encontrada nos tempos da modernidade avançada, quando se verifica o progressivo esfacelamento da vida interior. Esse perigo mais ou menos previsível, esse precipício latente, Lygia neutraliza, mediante sucessivos enlaces narrativos. A celebração interpessoal encarrega-se de evitar a mera reprodução do indivíduo insular, indiferente ao outro, e conseqüentemente vulnerável às armadilhas do isolamento. As suas personagens buscam incessantemente a parceria; reúnem-se, na esperança de uma construção solidária”. (Portella, 2001, p. 7). A emoção criadora desvela-se aos nossos olhos, nas obras de Lygia, inventando valores, frutos de um amor que não conhece limites, exercendo uma certa sedução, uma atração que desperta no

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leitor a generosidade num impulso vital. Temos impressão que a escritora faz da inteligência, antes um meio de ação que um verdadeiro conhecimento; conhecimento esse construído pela inteligência que se manifesta misteriosamente.

Mas o que é a literatura de Lygia senão a literatura do sentimento das pessoas, na banalidade das relações humanas? A literatura de Porões e sobrados. De uma sociedade que condena uns e prestigia outros, reforçando a idéia de pobreza e miséria – a literatura do aqui e agora. A história vivida e sofrida pela multidão de seus leitores, criada através de uma imaginação ancorada na realidade, que explica a realidade-humana: a velhice e a morte que ocultamos. Entre a morte e a vida, – como no conto, O muro – move-se um passado que surge contundente em uma dimensão retrospectiva radical, conferindo impotência, abandono, solidão e, ao mesmo tempo, o fim de tudo. É a literatura dos tais “laços afetivos”, da relação afetiva carregada de constrangimentos e desencontros, do amor expresso cotidianamente. As personagens que amam se suicidam e o leitor comunga com o narrador, “a consciência reflexiva”: O amor é um mistério, a vida é um mistério, a morte é um mistério. O mistério metaproblemático em que as personagens se inserem, trazendo-nos uma imagem atroz do que é o destino humano, através das relações afetivas da consciência e da vida.

Num percurso semiótico de sua obra, encontramos a marca de certo desencanto com os seres humanos de modo geral. Vivemos em busca de uma resposta que dê sentido à vida. Procuramos uma forma de interagir com esse mundo que nos cerca, tentando conciliar as necessidades do “eu” com os papéis que a sociedade nos força a viver. Percebemos nas entrelinhas dos textos de Telles que, o que fica para os leitores é uma busca incessante do amor piedade, do amor compaixão e da solidariedade.

Definitivamente, a literatura de Lygia não é uma literatura romântica, é uma literatura de mergulho e de reconhecimento nos outros e do próximo. “Ou em nós e de nós”. E se lhe perguntarem qual a função do escritor, ela responde: “A função do escritor? Escrever por aqueles que muitas vezes esperam ouvir de nossa boca a palavra que gostariam de dizer. Comunicar-se com o próximo e, se possível, mesmo por caminhos ambíguos, ajudá-lo no seu sofrimento. Na sua fé. Isso requer amor – o amor e a piedade que o escritor deve ter no coração”. (Monteiro, 1980. p. 6). Lygia é mistério; e, cumpre seu desígnio de amor e de solidariedade para com o próximo em suas narrativas solidárias.

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