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O lugar das práticas pedagógicas na formação inicial de professores Yoshie Ussami Ferrari Leite

Trabalho de reposição_ii

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O lugar das prticas pedaggicas na formao inicial de professores

Yoshie Ussami Ferrari Leite

O lugar das prticas pedaggicas na formao inicial de professores

Conselho Editorial Acadmico

Responsvel pela publicao desta obra

Alberto Albuquerque Gomes Divino Jos da Silva

Ftima Aparecida Dias Gomes Marin

Gilza Maria Zauhi Garms

Maria Suzana de Stefano Menin Mauro Betti

Paulo Csar de Almeida Raboni

Renata Junqueira de Souza

Yoshie Ussami Ferrari Leite

O lugar das prticas pedaggicas na formao inicial de professores

2011 Editora UNESP

Cultura Acadmica

Praa da S, 108 01001-900 So Paulo SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br [email protected]

CIP Brasil. Catalogao na fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

L556Li

Leite, Yoshie Ussami Ferrari

O lugar das prticas pedaggicas na formao inicial de professores / Yoshie Ussami Ferrari Leite. So Paulo : Cultura Acadmica, 2011.104p.

Inclui bibliografia

ISBN 978-85-7983-217-8

1. Professores Formao. 2. Prtica de ensino. 3. Acompanhamento na formao de professores . 4. Educao Estudo e ensino (Estgio). I. Ttulo.

11-8071.CDD: 370.71

CDU: 37.02

Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP)

A todos aqueles que acreditam na possibilidade de uma escola pblica de melhor qualidade...

Sumrio

Apresentao9

Introduo 19

1Sobre a escola e os professores

de que falamos 27

2Sobre a formao do professor 37

3Sobre os estgios nos cursos

de formao de professores 45

4Sobre as normatizaes legais e as

prticas pedaggicas: novas possibilidades? 57

5Sobre a formao de professores

em Portugal e os estgios pedaggicos 69

6Concluindo89

Referncias bibliogrficas 97

Apresentao

O presente texto corrobora a viso crescente de que a formao dos professores constitui uma das principais estratgias para quali-ficar o sistema de ensino escolar gerenciado por qualquer nvel do poder pblico.

De fato, as polticas de formao de professores se desenvol-veram ao longo da segunda metade do sculo XX e ganharam es-pecial relevncia nos seus anos 1990. Em pleno processo de globalizao, um amplo fenmeno econmico, cultural, social, tec-nolgico, de reconfigurao mundial do modo de produo capita-lista, os chamados Estados nacionais promoveram suas reformas de modo a se adaptar s novas exigncias da matriz terica e pol-tica neoliberal. Em geral, as ditas reformas implementaram velhas/ novas polticas sociais, em detrimento, quase sempre, de ganhos anteriores das classes trabalhadoras.1 No quadro das reformas, a educao no ficou esquecida e passou a ser focada tambm em nvel mundial. Os temas educacionais foram objeto de fruns in-ternacionais e, na prtica, os sistemas nacionais de ensino sofreram

1. Cf. Silva Jr., 2002, e Sanfelice, 2008.

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intervenes das orientaes de agncias como ONU, Unesco, OIT e FMI, por exemplo.Nos dias de hoje, amplia-se, de forma considervel, a ateno dos estudiosos e pesquisadores preocupados em entender e dimen-sionar o conjunto de transformaes globais que o modo de pro-duo capitalista vem implementando. As mudanas so to profundas, por todos os lados e em vrias dimenses, que no h ser humano que no se sinta atingido por elas. Na essncia, as so-ciedades capitalistas continuam sendo o que sempre foram, ou seja: sociedades nas quais o capital explora o trabalho; sociedades que defendem com unhas e dentes a propriedade privada dos meios de produo; sociedades que geram riquezas por meio do trabalho so-cial de muitos, mas que so apropriadas por poucos; sociedades de elevado consumo e de profundas desigualdades.

Sempre reproduzindo a mesma essncia, as sociedades capita-listas so impelidas a novas conjunturas que avivem as chances da prpria manuteno. E, de crise em crise, o modo de produo ca-pitalista alonga sua permanncia, fadada a se exaurir um dia.

Em 1966, a Unesco, juntamente com a OIT, convocaram a Conferncia Intergovernamental Especial sobre a Situao dos Do-centes dos Pases Membros. Do referido evento herdou-se o docu-mento Recomendao relativa situao do pessoal docente, com amplas diretrizes sobre poltica de educao, planos de es-tudo, formao docente, emprego, condies de trabalho, e partici-pao dos professores na tomada de decises (Rodrigues & Vargas, 2008, p.39-40). Alm do reconhecimento do papel dos docentes na educao, na formao das pessoas e na sociedade como um todo, props-se um detalhado programa de formao geral, integral, tc-nico-pedaggico, continuada e gratuita.

No Brasil, a ditadura civil-militar imposta pelo denominado Movimento de 64 implantou reformas educacionais que atendiam objetivos da internacionalizao da economia. O ensino superior foi reorganizado pela Lei no 5.540/68 (Brasil, 1968), e a Lei no 5.692/71 (Brasil, 1971) modificou os antigos ensinos primrio e mdio, agora denominados de primeiro e segundo graus. Desapa-

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receram as Escolas Normais, de formao de docentes, e se ins tituiu a Habilitao Especfica de 2o grau para o exerccio do magistrio de 1o grau (HEM), dispersa entre outras.As mudanas econmicas mundiais se aceleraram e muitas perdas de direitos nos Estados de bem-estar se configuraram. Nas ditaduras semeadas pela Amrica Latina, nem os direitos humanos essenciais eram respeitados.

Nos anos 1980, com o crescimento da influncia dos neolibe-rais2 em muitos governos, a prioridade da poltica econmica passou a ser o investimento em infraestrutura para garantir a am-pliao dos ganhos do capital. O mundo capitalista deixou de ter a concorrncia dos pases socialistas em derrocada e se sentiu mais liberado para ampliar a sua lgica de funcionamento onde quer que fosse. Os pases perifricos da globalizao passaram a ser moni-torados pelo Banco Mundial, que, emprestando dinheiro para o pagamento de suas dvidas, exigia cortes nos gastos sociais, espe-cialmente nas reas da sade e da educao. Foram tempos de pri-vatizao dos servios pblicos, de ampliao do desemprego estrutural e de flexibilizao do trabalho. A lgica de mercado tornou-se soberana, nas mais diferentes instncias das sociedades afetadas, e muita pobreza passou a constituir o cotidiano de mi-lhes de seres humanos. A globalizao demonstrava que nem todas as sociedades ganhariam algo de bom com ela.

A dramaticidade dos problemas relacionados educao em muitos pases acabou se refletindo nas agncias e nos eventos inter-nacionais. A Conferncia Mundial sobre Educao para Todos, realizada em 1990, em Jontien, Tailndia, um exemplo. Do docu-mento Declarao mundial e um marco de ao, assinado por 155 pases, surgiam polticas educativas relacionadas educao bsica e s questes docentes.

Em 1996, em Genebra, a 45a Reunio da Conferncia Interna-cional de Educao, patrocinada pela Unesco e destinada a minis-

2. Cf. Corra, 2000.

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tros de Educao, teve como tema central o papel dos docentes em um mundo em processo de mudana. Pouco antes, os ministros de Educao da Amrica Latina e do Caribe, reunidos em Kingston, Jamaica, elaboraram o documento Educao, democracia, paz e desenvolvimento, com vrias recomendaes relacionadas aos do-centes. Em 1997 e 2000, OIT/Unesco fizeram tambm suas ma-nifestaes voltadas aos docentes do ensino superior.

Sintetizando as temticas das agncias e dos fruns internacio-nais, podem-se citar, entre outras, as seguintes: formas de contra-tao e carreira dos docentes, participao nas decises, formao, a situao da mulher docente, a deteriorao do trabalho, profissio-nalizao, formao permanente, desempenho, salrio, imagem so-cial, formao em servio.

Documentos resultantes de novos eventos regionais ou interna-cionais continuaram sendo produzidos e destacando o papel dos docentes no sucesso das reformas educativas promovidas pelos Es-tados. Apenas menciono alguns deles: encontro de Santo Domingo, 2000, com a participao da Amrica Latina, Caribe e Amrica do Norte, que produziu o documento Educao para todos nas Am ricas: marco da ao regional, assinalando o comprometimento dos Estados em melhorar as condies de profissionalizao dos pro-fessores; ainda em 2000, o Frum Mundial de Educao, realizado em Dacar, Senegal, que avaliou o cumprimento das metas estabele-cidas em Jontien e estabeleceu novos alvos at o ano de 2015, des-tacou a necessidade de melhorar as condies sociais, o nimo e a competncia profissional dos docentes, bem como a formao de qualidade; na Primeira Reunio Internacional do Projeto Regional de Educao para Amrica Latina e o Caribe Havana, 2002 , a Declarao de Havana prope que o lugar de formao de profes-sores a Universidade.3

Em estudo bem acurado, Beech (2008) demonstra a influncia que as agncias, com seus fruns regionais ou mundiais e os docu-

3. Cf. Rodriguez & Vargas (2008).

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mentos neles produzidos, tiveram sobre as reformas da formao docente na Argentina e no Brasil. A viso de mundo e o iderio dos reformadores e governos locais espelham o que elas impingem quase mundialmente.

O autor citado lembra que um dos pressupostos da viso uni-versalizada a afirmao de que os docentes devem ser flexveis e adaptveis, de forma a se adequar s mudanas permanentes no currculo e nos mtodos. Como a atual formao do docente no o prepara para tanto, nem para acompanhar a evoluo permanente do conhecimento, faz-se necessria a formao continuada a fim de que ele tenha autonomia e seja responsvel pelo seu trabalho. Tambm no lhe pode faltar a criatividade para que se constitua como um guia do aluno que constri o seu prprio conhecimento. preciso que saiba trabalhar em equipe e que sua formao tenha sido prtica.

Tambm nas polticas educativas gerais o Brasil reflete aquilo que as agncias tornaram orientaes hegemnicas: descentrali-zao, autonomia da escola, currculo baseado em competncias, sistemas centrais de avaliao de resultados e a profissionalizao dos docentes.

possvel observar que se disseminou uma crtica generalizada

formao docente que vinha sendo praticada. A proposta, agora, de uma formao permanente do docente o responsabiliza por obt-la. Acrescenta tambm a ideia de que ele deve estabelecer vn-culos com a comunidade e a se tornar o responsvel pela aprendi-zagem dos alunos, incluindo aqueles de menor rendimento.

Beech (2008) se mostra surpreso com a legitimao que as pro-postas das agncias receberam por aqui e, posso acrescentar, tor- naram-se absolutamente hegemnicas.4 Entre outros aspectos, a legitimao e a hegemonia do iderio das agncias na nossa legis-lao tornam quase invivel que se pensem possibilidades dife-

4. Cf. Neves (2005).

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rentes para a educao, para a formao docente e para a sociedade. Obteve-se, de modo at subliminar, um consenso.Traduzo a seguir, de forma livre, a principal crtica de Beech (2008, p.78) s propostas das agncias, com a qual concordo:

A crtica fundamental que se pode fazer s propostas das agncias internacionais se centra na ideia de que um modelo universal de educao pode ser promovido como soluo da maioria dos pro-blemas educativos em quase todos os contextos do mundo. O su-posto que est implcito na ideia que a educao pode ser entendida como um aspecto independente da realidade social e que, portanto, as solues educativas podem se transferir de um contexto a outro, sem maiores problemas.

Na prtica, as propostas universais acabam por ignorar as espe-cificidades regionais e/ou locais, as reinterpretaes dos discursos, as resistncias e a base material para a qual deveriam se voltar. Os resultados esperados podem no ser alcanados e tambm, s vezes, desastres podem ser provocados.

Mais recentemente, percebe-se que os docentes em formao, ou em ao no cho da escola, esto lanados prpria sorte. A maioria dos que se encontram em formao frequenta escolas pri-vadas e, portanto, precisa arcar com todos os custos da empreitada. A qualidade bsica da formao geral ou especfica um n a ser desatado. Quem est em ao induzido a prover sua formao continuada/permanente e viver sob a ameaa dos novos sistemas de avaliao que impactam tambm os proventos, hoje, se no avil-tantes, pelo menos muito inferiores aos das profisses equivalentes.

A complexa situao dos profissionais docentes nos dias de hoje, quando os nveis escolares inferiores vm se universalizando, bastante delicada. Pesam sobre eles inmeras crticas e verda-deiras campanhas miditicas de desabono. As relaes com os po-deres pblicos ou privados setor onde reina a educao mercantil

so dificlimas no que diz respeito a planos de carreira, salrios e condies de trabalho. Mais difceis ainda, a cada dia, por conta da

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pouca mobilizao da prpria categoria. O encontro dos docentes com os alunos em sala de aula, ou com as famlias em outras ativi-dades, no vem sendo exatamente a convivncia em um paraso.

O desafio atual discutir as questes candentes para que a reflexo coletiva vislumbre as possibilidades do magistrio e seus significados na sociedade contempornea em mutao, mas, na es-sncia, ainda a mesma.5

A autora deste livro decidiu enfrentar parcela de tamanho de-safio. O seu texto original fez parte dos requisitos para a realizao de concurso de livre-docncia junto Faculdade de Cincias e Tec-nologia da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, Campus de Presidente Prudente SP, realizado no trans-correr do ano de 2011 e bem-sucedido.

Pode-se dizer que Leite (1994) realista. A educao no Brasil teve avanos, como na universalizao e no acesso ao ensino funda-mental, mas ainda permanece marcada pelas caractersticas hist-ricas e sociais das nossas inmeras diferenas e desigualdades. A educao escolar como um todo continua necessitando de muita qualificao, e a figura do professor terica e praticamente ne-vrlgica para o processo. Mas h uma realidade gritante e, apesar da importncia que se passou a atribuir ao tema da formao inicial dos professores, o cotidiano desse profissional revela os seus limites, tanto para o exerccio educativo das crianas das escolas estatais, quanto para se assumir como agente de aes transformadoras do ensino e da prpria sociedade.

Onde estaria o n central da questo? Nos programas de ensino das disciplinas das licenciaturas distanciadas da prtica e da rea lidade da escola, burocratizados, acrticos e submetidos a uma ra cionalidade tcnica. preciso, ento, antes de tudo, superar tal modelo, substituindo-o por outro de base reflexiva e de carter tico. No , portanto, um referendo viso predominante, j indi-cada por mim anteriormente.

5. Recomendo enfaticamente a leitura do Documento Final do Conae, 2010, em especial o Eixo IV: formao e valorizao dos/das profissionais da educao.

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Com um somatrio de elementos tericos e prticos amealhados no transcorrer do seu estgio de ps-doutoramento na Faculdade de Educao da USP e, parcialmente, na Faculdade de Psicologia e Cincias da Educao da Universidade de Lisboa, Leite (1994) reflete sobre a funo social da escola estatal no Brasil, denomi-nando-a de escola pblica. Quer compreender o verdadeiro papel do professor naquela instituio, para melhor poder pensar sua for-mao inicial. O uso de slidos tericos, que olham para as trans-formaes mais recentes da instituio escolar estatal com bons olhos, traz esperanas aos seus docentes. preciso entender histo-ricamente as ltimas ocorrncias.

Como a formao inicial dos docentes exige uma resposta que viabilize ao professor saber lidar de forma ampla com os contextos especficos em que vai atuar, as sugestes reflexivas e crticas da autora para os cursos de formao so bastante provocativas. Des-taca, em especial, o problema fulcral dos estgios nos cursos de for-mao e assinala a necessidade de redefini-los conceitualmente. A relao teoria e prtica , ento, pensada parcimoniosamente.

Por ltimo, Leite (1994) faz um percurso sobre as normatiza-es legais que ocorreram nos ltimos anos e que definem a con-cepo dos cursos de formao inicial em vrios dos seus aspectos, comentando avanos e recuos observados. A impresso que os avanos so maiores.

A questo das prticas de ensino e estgios retomada de forma a se observar como ela vem sendo tratada em instituies forma-doras de Portugal, com as quais seria proveitoso estabelecer inter-locues.

O leitor encontrar aqui um clamor da autora s instituies for-madoras de professores para que se empenhem de forma radical na organizao de seus cursos de licenciaturas, de tal modo que possam assumir a responsabilidade social da formao dentro das condies complexas dos dias atuais. Os professores formados em novo mo-delo, por sua vez, tero maiores instrumentos tericos e prticos para responder aos desafios de ensino da escola estatal infantil, funda-mental e mdia, qualificando-a cada dia um pouco mais.

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Com a proposta de formao inicial formulada por Leite (1994), e com a qual o leitor poder se familiarizar no transcorrer da leitura, aclara-se uma perspectiva crtica e prospectiva. Professores em exerccio e professores em formao, com certeza, muito se benefi-ciaro do presente texto que, felizmente, no se inspira nas polticas de formao docente das agncias.

Prof. dr. Jos Lus Sanfelice6

6. Professor titular em Histria da Educao na FE/Unicamp. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Histria, Sociedade e Educao no Brasil (HIS-TEDBR). e-mail: histedbr.fae.unicamp.br ou [email protected].

Introduo

Nas ltimas dcadas do sculo XX, o Brasil deu passos impor-tantes no sentido de universalizar o acesso ao ensino fundamental obrigatrio. Essa democratizao do acesso e as tentativas de me-lhoria desse nvel de escolaridade esto acontecendo num contexto marcado pela redemocratizao do pas e por profundas mudanas nas expectativas e nas demandas da sociedade contempornea.

A situao educacional brasileira no se dissocia do quadro po-ltico, econmico e cultural mais amplo, que ainda marcado por desigualdades sociais e regionais significativas, apesar dos avanos registrados nas ltimas dcadas de nossa histria.

Para o alcance real da melhoria da educao bsica, e mesmo dos anos iniciais do ensino fundamental, apresentam-se inmeros desafios educacionais, entre os quais destaca-se a formao dos professores, que sempre foi considerada um dos elementos princi-pais para intervir na qualidade do ensino ministrado nos sistemas educativos, nos mbitos nacional, estadual ou municipal.

A figura do professor assume importncia mpar entre os vrios atores do espao educacional que promovem a educao necessria para as crianas da escola pblica, e, portanto, como agente de um processo de transformao da realidade social. Apesar da relevncia

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de seu papel, muitos estudos1 tm mostrado que os professores no esto sendo suficientemente bem preparados pelas agncias forma-doras para enfrentar os desafios do processo de ensino-aprendi-zagem apresentados no cotidiano da sala de aula. Os programas de ensino das diferentes disciplinas dos cursos de licenciatura esto, em geral, sendo trabalhados de forma independente da prtica e da realidade das escolas, caracterizando-se por uma viso burocrtica e acrtica, baseada no modelo da racionalidade tcnica.

Os cursos precisam se organizar de forma a possibilitar aos do-centes, antes de tudo, superar esse modelo, substituindo-o por outro que lhes assegure uma base reflexiva para sua formao e atuao profissional.

Diante da complexidade de sua tarefa, imperioso que as agn-cias formadoras de professores percebam que, alm do conheci-mento da disciplina que ir ensinar, o docente precisa ter preparo para compreender os desafios inerentes ao processo de ensino--aprendizagem e assegurar-se da importncia dos princpios em relao ao carter tico da sua atividade. E esses saberes docentes, necessrios ao professor, constituem ainda conhecimentos novos para as instituies e para os pesquisadores que atuam na formao desse profissional.

1. B. A. Gatti, E. S. S. Barreto (Coord.). Professores do Brasil: impasses e desafios. Braslia: Unesco, 2009. Y. U. F. Leite, A formao de professores em nvel de 2o grau e a melhoria do ensino da escola pblica. Campinas, 1994. Tese (doutorado em Educao) Faculdade de Educao Universidade de Campinas. V. M. Machado, Curso de Pedagogia: espao de formao de professor como intelec-tual crtico reflexivo? Marlia, 2003. Dissertao (mestrado em Educao) Fa-culdade de Filosofia e Cincias UNESP. C. S. C. Nunes, Os sentidos da formao continuada: o mundo do trabalho e a formao de professores no Brasil. Campinas, 2000. Tese (doutorado em Educao) Faculdade de Edu-cao/Unicamp. M. I. Almeida, O sindicato como instituio formadora dos pro fessores: novas contribuies ao desenvolvimento profissional. So Paulo, 1999. Tese (doutorado em Educao) Faculdade de Educao/USP. S. Pimenta, Professor reflexivo: construindo uma crtica. In: S. G. Pimenta, E. Ghedin (Org.). Professor reflexivo no Brasil: gnese e crtica de um conceito. So Paulo: Cortez, 2002. p.17-52.

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A partir da promulgao da Lei de Diretrizes e Bases da Edu-cao Nacional, em 1996 (Brasil, 1996), a rea da formao de pro-fessores vem passando por um perodo de grandes mudanas, dispostas nos instrumentos de legislao que a regulamentam. V-rios decretos, pareceres e resolues buscam regularizar e finalizar uma etapa de proposies para a reforma educacional nesse campo. Dentre os principais textos legais, destacamos a Resoluo CNE no 1/2002, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formao de professores de educao bsica em nvel superior, no curso de licenciatura de graduao plena (Brasil, 2002).

Essa resoluo apresenta os princpios orientadores amplos e as diretrizes da poltica de formao de professores que iro nortear a organizao e a estruturao de todos os cursos, em quaisquer dos loci institucionais universidade, centro universitrio ou instituto superior de educao , de rea de conhecimento e ou etapa da es-colaridade bsica.

O Parecer no 28/2001 (Brasil, 2001) e a Resoluo CNE no 2/2002 (Brasil, 2002) estabeleceram a durao e a carga horria m-nima dos cursos de licenciatura, indicando que no deveriam ter menos de 2.800 horas, desenvolvidas, no mnimo, em trs anos le-tivos, das quais quatrocentas horas deveriam ser de prtica como componente curricular, vivenciadas ao longo de toda a graduao, e mais quatrocentas horas para o estgio supervisionado, a partir do incio da segunda metade do curso.2

Essa determinao de um total de oitocentas horas de prticas pedaggicas constituiu um dos aspectos mais marcantes e emble-mticos dentre as diretrizes estabelecidas, e que mais polmica e impacto poderia ter causado nos cursos de formao de professores, uma vez que caberia s instituies de ensino superior a elaborao

2. A anlise e as distines dessas atividades prtica como componente curri-cular e estgio supervisionado sero realizadas ao longo do estudo, no ca-ptulo 4, denominado Sobre as normatizaes legais e as prticas pedaggicas: novas possibilidades?.

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dos projetos pedaggicos dos cursos, considerando a carga horria acima referida.Considero como prticas pedaggicas o conjunto composto pelas oitocentas horas, divididas igualmente entre prtica como componente curricular e estgio supervisionado, que, conforme as normatizaes do Conselho Nacional de Educao, deveria estar contemplado de maneira rigorosa e compromissada no projeto pe-daggico dos cursos de licenciaturas em todas as instituies de ensino superior do pas. Esse espao previsto na formao inicial significaria a possibilidade de o futuro professor iniciar sua sociali-zao profissional e sua insero nos contextos econmico, social, cultural, cientfico, educacional e at mesmo pessoal que vo per-mear a ao docente. Enfim, a oportunidade de desenvolver pro-cessos reflexivos sobre a teoria e a realidade socioeducacional em que os licenciados iro atuar. A fim de atender a essas determina-es legais e planejar essas atividades, os cursos de licenciatura teriam que efetuar uma rdua tarefa de reestruturao curricular de seus projetos pedaggicos. E, mesmo assim, os resultados seriam duvidosos.

A escolha do tempo verbal usado no pargrafo anterior inten-cional, pois indica o que seria se outras normatizaes legais aprovadas mais recentemente no tivessem alterado, em parte, a determinao da carga horria de oitocentas horas s prticas peda-ggicas.

Esta pesquisa se situa nesse contexto, buscando responder questes que h muito acompanham os educadores e os pesquisa-dores, e que ainda carecem de respostas mais convincentes.

Qual a importncia dos cursos de formao inicial para me-lhor preparo e atuao do professor na escola pblica de hoje? Qual o lugar, o papel ou a funo das prticas pedaggicas no processo de formao dos professores?

Tendo em vista essas questes, esta pesquisa teve por objetivos:

O lugar das prticas pedaggicas 23

analisar o papel do professor na atual escola pblica;

investigar os problemas do processo de formao do pro-fessor para atuar nessa escola;

analisar a importncia das prticas pedaggicas na formao e atuao docente.

Os caminhos metodolgicos percorridos pelo presente estudo possuem caractersticas de uma pesquisa de cunho qualitativo, tanto pela natureza dos objetivos que se pretendeu buscar, em uma perspectiva de se compreender os fenmenos, quanto pelos proce-dimentos usados. Baseou-se essencialmente em estudos bibliogr-ficos, incorporando-se tambm a coleta de dados por meio da anlise da legislao educacional, de documentos e de entrevistas realizadas.

Como estudo bibliogrfico, entende-se a organizao, sistema-tizao e sntese de dados e de ideias a partir da contribuio de vrios autores e pesquisadores, da anlise de textos legais e de do-cumentos das instituies escolares, com apoio da qual se produziu uma elaborao terica das ideias aqui apresentadas.

Foi com esse propsito que busquei realizar a pesquisa no Es-tgio de Ps-Doutoramento realizado na Faculdade de Educao da USP, sob a orientao da professora doutora Selma Garrido Pi-menta, no perodo de 2003 a 2004. Fiz parte do Projeto Integrado, coordenado pela minha supervisora junto ao CNPq, e participei das atividades desenvolvidas no contexto dos estudos e debates ocorridos no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Formao do Educador (Gepefe/FEUSP), tambm por ela coordenado.

Tendo em vista a justificativa e os objetivos da pesquisa, parte das atividades foi realizada em Portugal, na Faculdade de Psico-logia e Cincias da Educao da Universidade de Lisboa, entre se-tembro a novembro de 2003, sob a co-orientao do professor doutor Joo Barroso.

A deciso de buscar analisar a experincia de formao de pro-fessores naquele pas se deu porque algumas instituies portu-guesas j contemplavam, na organizao do curso de formao

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inicial, a presena das prticas pedaggicas. As atividades reali-zadas durante minha permanncia em Portugal me permitiram:

conhecer as orientaes legais que configuram o cenrio dos cursos de formao de professores;

consultar e analisar a bibliografia e a produo cientfica re-ferente formao de professores e o papel das prticas peda-ggicas nos cursos de formao docente;

recolher documentao para identificar e compreender os problemas envolvidos na formao de professores e na cons-truo do projeto pedaggico que contempla uma prtica pe-daggica relevante;

conhecer e analisar a percepo dos diversos docentes e in-vestigadores acerca da prtica pedaggica no processo de for-mao de professores;

trocar experincias com docentes e pesquisadores sobre v-rios temas referentes a uma melhor poltica de formao de professores para a educao bsica.

importante salientar que este trabalho no tem o intuito de esgotar o assunto, mas de apontar alguns aspectos que provoquem a discusso em torno da importncia e da necessidade de se rever e ressignificar as questes do estgio, da relao universidade e es-cola bsica, da articulao da teoria com a prtica na formao dos professores e da relevncia das prticas pedaggicas no processo formativo do docente.

Para tanto, acreditamos ser interessante, em primeiro lugar, considerar o papel do professor nos dias de hoje, o significado de sua tarefa em sala de aula, partindo da compreenso do sentido e do papel da escola pblica, para mais bem compreender as ques-tes relacionadas formao do profissional docente. Em seguida, buscamos refletir sobre uma nova concepo de formao de pro-fessores e o papel do estgio dentro desse conceito de formao docente e, ainda, analisar como as recentes normatizaes da pol-

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tica educativa tratam dessa questo. Por fim, procuramos consi-derar como a prtica pedaggica est sendo trabalhada nos cursos de formao de professores em Portugal, de modo a contemplar e assegurar uma melhor formao dos docentes.

1

Sobre a escola

e os professores de que falamos

Retomar e compreender a funo social da escola pblica no Brasil, bem como o papel do professor e o sentido de sua tarefa em sala de aula, constituem aspectos importantes, essenciais e necess-rios para se pensar os desafios da escola pblica brasileira, de modo que ela possa se tornar realmente uma escola democrtica, exigente e de qualidade para todas as crianas e adolescentes.

Pensamos que, sem uma compreenso da escola pblica, no se consegue avaliar o verdadeiro papel do professor e, consequente-mente, no haver condies de refletir as questes referentes formao inicial dos docentes, a partir do modelo que se apresenta hoje, a fim de propor novos sentidos para o processo formativo desses profissionais e refletir sobre os saberes docentes necessrios construo de sua profissionalidade.

Em que tipo de organizao escolar atua o professor?

certo que, nos ltimos anos, ainda que tardiamente, o Brasil avanou significativamente no sentido de universalizar o acesso ao ensino fundamental obrigatrio, promovendo o atendimento de quase todas as crianas nesse nvel de ensino. A escola pblica para poucos do passado cedeu lugar escola para muitos, no presente. O crescimento do nmero de matrculas provocou, segundo Beisiegel (2006), o processo de democratizao de ensino. Concordo com ele

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quando diz que essa nova realidade no merece a crtica radical e conservadora que lhe impingem, acusando-a de ter contribudo para a perda da qualidade e a deteriorao da escola, como se a que havia no passado, seletiva e propedutica, que fosse excelente.

A escola no perdeu a qualidade medida que se estendeu aos setores mais amplos da populao. Na verdade, ela mudou radical-mente, porque sua clientela mudou. Ao mesmo tempo, tornou-se local de encontro de todos os setores da populao e espao de repercusso de todas as tenses que conturbam a vida coletiva na sociedade moderna.

Beisiegel (2006) afirma que preciso aceitar a escola como ela existe hoje, o que significa, sobretudo, aceitar o novo contingente da populao que a ela teve acesso. A escola hoje ganhou quali-dade, uma vez que se abriu tendencialmente totalidade da popu-lao (Beisiegel, 2006, p.121), j que no se pode pensar em qualidade de ensino no pas em termos que no sejam quantita-tivos (Beisiegel, 2006, p.121). Corroborando esse pensamento, Cortella (1998, p.14) afirma que a qualidade na Educao passa, necessariamente, pela quantidade. Em uma democracia plena, quantidade sinal de qualidade social e, se no se tem a quantidade total atendida, no se pode falar em qualidade. Tambm para Leite & Di Giorgi (2004, p.136), no h a menor dvida de que esta expanso um avano democrtico essencial e que, diante dele, absurdo qualquer saudosismo em relao situao em que apenas uma pequena parcela da populao tinha acesso a ela.

Embora essa universalizao do acesso escola tenha ocorrido num contexto histrico marcado pela redemocratizao da socie-dade brasileira e por algumas mudanas no atendimento de de-mandas educacionais, a escola pblica ainda no tem conseguido garantir a oferta de um ensino de qualidade para todos os alunos. Sabemos que a ampliao quantitativa de vagas, embora se cons-titua num avano democrtico relevante, no veio acompanhada de aes capazes de garantir a melhoria qualitativa do ensino minis-trado nessas escolas (Leite & Di Giorgi, 2004).

O lugar das prticas pedaggicas 29

Nesse contexto, cabe-nos esclarecer que, quando utilizamos o termo escola pblica, estamos nos referindo a

[...] escolas organizadas e mantidas pelo Estado, isso significa que cabe ao Poder Pblico se responsabilizar plenamente por elas, o que implica a garantia de suas condies materiais e pedaggicas. Tais condies incluem a construo ou aquisio de prdios espe-cficos para funcionar como escolas; a dotao e manuteno nesses prdios de toda a infraestrutura necessria para o seu adequado funcionamento; a instituio de um corpo de agentes, com desta-ques para os professores, definindo-se as exigncias de formao, os critrios de admisso e a especificao das funes a serem de-sempenhadas; a definio das diretrizes pedaggicas, dos compo-nentes curriculares, das normas disciplinares e dos mecanismos de avaliao das unidades e do sistema de ensino em seu conjunto. (Saviani, 2005, p.3-4)

justamente nesse referencial que se torna relevante explicitar o papel ou a funo poltica, social e pedaggica da escola pblica.Percebe-se que intelectuais, pesquisadores, pessoas em geral, a comunidade e os meios de comunicao costumam emitir muitas crticas negativas escola, principalmente contra a escola pblica, como se o processo de democratizao do ensino o tivesse lanado numa crise. preciso, portanto, analisar, avaliar e refletir sobre esses juzos negativos, tentar compreend-los e ressignific-los, para que possamos entender o verdadeiro sentido da escola pblica e do papel do professor nos dias de hoje. Se a escola que antes no era para todos abriu suas portas para aqueles que a ela no tinham acesso, temos, ento, uma nova clientela e novas necessidades a serem atendidas.

Como tornar a escola pblica um espao capaz de garantir a in-cluso social de todas as crianas, espao de direito no somente dos professores, mas tambm dos alunos, filhos de trabalhadores que adentraram essa escola?

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Afirmamos em outro estudo que

[...] uma escola pblica preocupada em realizar uma verdadeira in-cluso social deve educar todas as crianas e os jovens com qua lidade, proporcionando-lhes uma conscincia cidad que lhes assegure condies para enfrentar os desafios do mundo contem-porneo. Da mesma forma, ser preciso, a partir da anlise e da va-lorizao das prticas existentes, criar novas prticas no trabalho em sala de aula, na elaborao do currculo, na gesto e no relacio-namento entre a equipe escolar, alunos, pais e comunidade. Temos, portanto, alm de uma nova clientela, a necessidade de assumirmos novas caractersticas organizacionais e pedaggicas frente s atuais demandas oriundas do processo de desenvolvimento econmico, cientfico e tecnolgico. (Leite & Di Giorgi, 2004, p.136-7)

Sabe-se que a escola, hoje, chamada a responder a diversos de-safios novos, em razo de vrios fatores, entre os quais se inclui o fato, historicamente indito, de quase todas as crianas em idade escolar terem acesso ao ensino fundamental, o que faz com que se exija dela o desempenho de um papel mais amplo do que aquele que historicamente lhe era atribudo.

Uma srie de atribuies est sendo direcionada escola. Perre-noud (2000) aponta algumas delas, dizendo que no cabe escola apenas ensinar os alunos a ler, a escrever e a contar. sua funo tambm ensinar os alunos a respeitar e a tolerar as diferenas, a co-existir, a comunicar, a cooperar, a mudar, a agir de forma eficaz, e a desenvolver a curiosidade, a autonomia e o rigor intelectual. Essa lista de tarefas que a escola tem assumido ao longo do tempo vem se tornando objeto de vrios estudos, nos quais ela avaliada, e as inadequaes de seu papel, denunciadas.

Freire (1961), por exemplo, aponta os problemas da nossa es-cola primria nos anos 1960 dizendo que ela dava nfase apenas memorizao e sonorizao da palavra. Destaca que a tarefa da escola primria deveria ser a de oferecer conhecimento bsico a seus alunos para que pudessem se identificar com seu meio e nele

O lugar das prticas pedaggicas 31

atuar criticamente. Sem a insero em seu verdadeiro contexto so-cial, essa escola no cumpre seu papel. Afirma o autor que

Talvez nunca tenhamos tido em nossa histria necessidade to grande de ensinar, de estudar, de aprender, mais do que hoje. De aprender a ler, a escrever, a contar. De estudar Histria, Geo-grafia. De compreender a situao ou as situaes do pas. (Freire, 1961, p.29)

nessa direo que defendemos a relevncia da funo da es-cola pblica hoje, uma escola que realmente provoque mudanas, que supere as desigualdades, que transforme o contexto social. Enfim, como diz Saviani (1999, p.42), que funcione como espao de luta para garantir aos trabalhadores um ensino na melhor qua-lidade possvel nas condies histricas atuais.

Pimenta & Gonalves (1992, p.85) j afirmavam que a funo social da escola a socializao do saber historicamente acumulado, garantindo a todos a posse de conhecimentos que foram e esto sendo construdos pelos seres humanos ao longo da histria, alm de ser uma das condies essenciais para que todos se beneficiem igualitariamente das riquezas sociais acumuladas pelo trabalho dos prprios seres humanos. Dessa forma, ela seria capaz de instru-mentalizar os alunos para a luta pela transformao da sociedade brasileira, que distribui de maneira desigual a riqueza social cons-truda por todos. No entanto, para que a escola concretize essa funo, fundamental que se torne um lugar de anlises crticas e de produo de conhecimentos que possibilitem a atribuio de significado informao, pois o dominado no se liberta se ele no vier a dominar aquilo que os dominantes dominam. Ento, do-minar o que os dominantes dominam condio de libertao (Sa-viani, 1999, p.66).

Para Tardif & Lessard (2005), a escola uma instituio que se dirige para a educao e a formao de seres humanos. Nela pre-domina a prtica interativa, com forte presena das relaes inter-pessoais, ao se trabalhar com o ser humano, sobre o ser humano e

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para o ser humano. Ela funciona essencialmente como um espao de humanizao.Enfim, a escola realiza a prtica educativa que envolve a pre-sena de sujeitos que ensinam e aprendem ao mesmo tempo, de contedos (objetos de conhecimento a ser aprendido), de objetivos, de mtodos e de tcnicas coerentes com os objetivos desejados (Libneo, Oliveira & Toschi, 2003, p.168). E sua funo de formar cidados crticos e reflexivos s ser possvel se a escola se tornar um espao capaz de integrar, aos objetivos convencionais, compe-tncias como:

[...] desenvolvimento do pensamento autnomo, crtico e criativo, formao de qualidades morais, atitudes, convices s exigncias postas pela sociedade comunicacional, informtica e globalizada: maior competncia reflexiva, interao crtica com as mdias e multimdias, conjuno da escola com outros universos culturais, conhecimento e uso da informtica, formao continuada (aprender a aprender), capacidade de dilogo e comunicao com os outros, reconhecimento das diferenas, solidariedade, qualidade de vida, preservao ambiental. (Libneo, 1998, p.7-8)

nesse contexto de complexidade das novas atribuies da es-cola que os professores desenvolvem o seu trabalho e a partir dessa perspectiva que so cobrados por toda a sociedade. Muitas vezes so responsabilizados pelos fracassos e insucessos da escola e do sistema de ensino, como resultado de uma anlise aligeirada, pontual e linear da situao educacional de nosso pas, que no considera as fragilidades do sistema educacional, as precrias con-dies de trabalho do profissional docente e dos problemas refe-rentes sua formao inicial.

Os professores no so os nicos responsveis pelo fracasso escolar. Assim como os alunos, eles tambm so vtimas de uma poltica educacional que no promove o seu desenvolvimento pro-fissional e da falta de empenho da sociedade na construo de sua valorizao profissional, que pode ser traduzida em salrios dignos,

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programas adequados de formao inicial e de formao contnua em servio e condies materiais para as escolas.Qual o papel do professor nessa escola?

Esteve (1995) afirma que algumas mudanas afetam direta-mente o sentido e o significado da profisso docente, entre elas a ampliao de suas atribuies, a inibio educativa de outros agentes de socializao, o desenvolvimento de fontes de informao alternativas escola, a ruptura do consenso social sobre a educao e a menor valorizao social do professor.

O contexto econmico e social em que trabalha o professor tornou-se complexo e diversificado, e, para a formao dos alunos, no basta apenas a mera transmisso de conhecimentos. O docente, conforme Imbrnon (2001), exerce atualmente outras funes, como a luta contra a excluso social, a participao na comunidade, a ani-mao em grupos, as relaes com estruturas sociais e com a co-munidade. Para o autor, diante da complexidade do mundo atual, o professor no pode ser considerado um mero executor de ino vaes prescritas, mas um profissional que deve participar ativa e criativamente do processo de inovao e mudana, a partir de seu contexto, numa relao de ensino-aprendizagem dinmica e fle-xvel. Desse modo, ele precisa estar preparado para as dvidas, para a falta de certezas e para a divergncia, assim como para re-fletir em grupo, buscando regular as aes, os juzos e as decises sobre o ensino.

Canrio (2001) afirma que uma das mudanas mais significa-tivas no campo da formao profissional refere-se passagem de uma previsibilidade em relao ao mundo do trabalho para outro tipo de relao marcada pela incerteza. Para ele, essa nova relao de incerteza coloca em pauta dois elementos que foram as bases de outra relao antes percebida como harmoniosa:

O primeiro elemento corresponde a conceber a relao entre os sis-temas de formao e o sistema de mercado de trabalho de acordo com um modelo de adequao. O segundo elemento corresponde a ler a articulao entre a formao e o desempenho profissional de

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acordo com um modelo de adaptao funcional. (Canrio, 2001, p.3)

Esses dois elementos, j postos em causa pela relao de incer-teza no mundo social, de acordo com Canrio (2001) ainda no esto presentes nos projetos dos cursos de formao inicial de pro-fessores. Essa perspectiva mantm a concepo de uma formao capaz de responder de maneira relativamente estvel s necessi-dades do mercado de trabalho e de proceder transferncia quase automtica das aquisies realizadas durante a formao para o campo profissional. Na impossibilidade de cumprir esse desgnio, o autor defende a construo de uma relao estratgica entre a for-mao e o trabalho, na qual o essencial seja a capacidade de desen-volver uma reflexo permanente sobre a aprendizagem que permita identificar o que necessrio saber e aprender com a experincia.

Segundo Alarco (2003), o professor deve ser reflexivo em sua prtica educativa, pensar no que faz, ser comprometido com a pro-fisso e se sentir autnomo, capaz de tomar decises e ter opinies. Ele deve ser, sobretudo, uma pessoa que entenda os contextos em que trabalha, os interprete e adapte sua atuao a eles. Os contextos educacionais, todavia, so extremamente complexos e no h um igual ao outro. Um professor pode ser obrigado, numa mesma es-cola, e at numa mesma turma, a utilizar prticas diferentes de acordo com o grupo. Portanto, se ele no desenvolver a capacidade de analisar e refletir sobre sua prtica, pode tornar-se um tecno-crata e no atender s necessidades das demandas apresentadas.

Enfim, na escola pblica atual, o professor deve ter como atri-butos e preocupaes:

estar comprometido com as crianas que finalmente conse-guiram adentrar as escolas;

ser capaz de desenvolver um trabalho docente de qualidade numa escola para todos;

ser um profissional com capacidade de inovao, de criao e de interveno nos processos de tomada de decises e

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de produo de conhecimento, e no um simples tcnico, reprodutor de conhecimentos e/ou monitor de programas preelaborados;

ter vivenciado um processo formativo que lhe tenha garan-tido o acesso ao saber, ao saber fazer e ao saber ser (conheci-mentos, habilidades, atitudes, valores...);

saber que o seu papel fundamental e imprescindvel para a construo de uma escola pblica de qualidade.

Nesse cenrio, torna-se essencial pensar o processo de formao inicial dos professores se desejamos uma escola realmente demo-crtica e exigente. O saber profissional especfico dos professores no pode ser compreendido e considerado se no tivermos definido a funo social e poltica dos docentes, ou seja, a responsabilidade de ajudar a promover o desenvolvimento humano dos alunos nas suas vrias dimenses: cognitiva, afetiva, psicomotora, relacional, tica, lingustica e esttica. Essas novas necessidades, portanto, oriundas das transformaes sociais, polticas, econmicas e educa-cionais, apontam para a urgncia de se repensar a formao inicial de professores, de modo a melhor atender as reais necessidades do ensino atual. De que forma esses professores esto sendo formados?

2

Sobre a formao do professor

Como j afirmamos na introduo deste trabalho, vrios es-tudos tm mostrado que, nas diversas instituies formadoras, os profissionais professores no esto sendo adequadamente for-mados nem vm recebendo preparo suficiente para enfrentar a nova realidade da escola pblica e as demandas hoje existentes, tampouco para assumir as novas atribuies que deles passam a ser cobradas nos dias de hoje.

Para Tedesco (1998), a formao inicial do professor se apre-senta de forma insuficiente e aligeirada, no sendo capaz de suprir os desafios do novo contexto, que exige dos profissionais uma srie de capacidades e habilidades (pensamento sistemtico, criativi-dade, solidariedade, habilidade de resolver problemas, trabalho em equipe, entre outros) que no estavam presentes nos cursos de for-mao.

Pimenta (1999, p.16) afirma que as pesquisas j desenvolvidas em relao formao inicial dos docentes,

[...] tm demonstrado que os cursos de formao, ao desenvol-verem um currculo formal com contedos e atividades de estgio distanciadas da realidade das escolas, numa perspectiva burocr-

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tica e cartorial que no d conta de captar as contradies presentes na prtica social de educar, pouco tm contribudo para gestar uma nova identidade profissional.

Os programas de ensino das diferentes disciplinas dos cursos esto estruturados curricularmente e, de modo geral, vm sendo trabalhados de forma desarticulada das demandas da prtica e da realidade encontrada nas escolas, caracterizando-se por uma con-cepo burocrtica e acrtica, baseada no modelo da racionalidade tcnica. Na verdade, os cursos de formao de professores devem possibilitar aos docentes, antes de tudo, superar esse modelo, a fim de lhes assegurar uma base reflexiva em sua formao e atuao profissional, como apontam Contreras (2002), Pimenta (2002), Li-bneo (2002), Ghedin (2002) e Giroux (1997).

O que significa isso? preciso superar um modelo de formao que considera o professor apenas um transmissor de conheci-mentos, preocupado com a formao de atitudes de obedincia, de passividade e de subordinao nos alunos, que os trata como assi-miladores de contedos, a partir de simples prticas de adestra-mento que tomam como mote as memorizaes e repeties de conhecimentos que pouco tm a ver com a realidade dos alunos. Urge substituir essa concepo de funo docente reduzida atuao meramente tcnica, mecnica e burocrtica, em que teoria e prtica so concebidas de maneira dicotmica.

Segundo Contreras (2002, p.90),

[...] a ideia do modelo de racionalidade tcnica que a prtica pro-fissional consiste na soluo instrumental de problemas mediante a aplicao de um conhecimento terico e tcnico previamente dis-ponvel que procede da pesquisa cientfica.

Inspirada em Contreras (2002), afirmo que necessrio cami-nhar em outra direo e construir a base reflexiva da atuao pro-fissional com o objetivo de entender a forma como realmente se abordam as situaes problemticas da prtica. Assim, o professor

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precisa ser capaz de compreender o contexto social no qual ocorre o processo de ensino/aprendizagem espao onde se mesclam dife-rentes interesses e valores , bem como de examinar criticamente o processo da educao escolar existente no pas.

Cabe aos cursos que formam professores assegurar que o pro-fissional docente saiba lidar com o processo formativo dos alunos em suas vrias dimenses, alm da cognitiva, englobando a di-menso afetiva, a educao dos sentidos, da esttica, da tica e dos valores emocionais. Para tanto, preciso que os professores tenham oportunidades de constante atualizao e preparo para desenvolver e utilizar novas metodologias, como o trabalho coletivo e inter disciplinar, condies imprescindveis para o desenvolvimento da capacidade de romper com a fragmentao das disciplinas, hoje trabalhadas isoladamente. Alm disso, exige-se ainda uma for-mao que promova a participao ativa do professor na construo do projeto pedaggico da escola, na solidariedade com os colegas e com os alunos e no compromisso com a emancipao do nosso povo.

A escola o espao privilegiado para a socializao do saber sis-tematizado, construdo pelos homens. No entanto, no deve ser resumido simples transmisso de informaes ou de verdades acabadas, difuso de conhecimentos dados ou de inovaes tec-nolgicas. Isso tudo pode ser feito com mais agilidade e eficincia pelo jornal, pelo rdio, pela televiso, pelo cinema, pelo compu-tador e pela internet.

Em conformidade com o que afirma Coelho (2003), acredi-tamos que, escola e aos cursos de formao inicial de professores, competem formar seres humanos, cidados, pessoas que saibam e que gostem de ler, de estudar, de trabalhar com os conhecimentos, de questionar a tecnologia e de criar outros saberes e outros m-todos mais rigorosos.

Conforme o autor,

[...] o saber ser ensinado como realidade viva, provocante, apaixo-nante, expresso de buscas, de tropeos, de equvocos e de achados

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realmente novos e interessantes, feitos por seres humanos finitos e limitados, mas estudiosos e que, em sua poca e contexto, duvi-daram, interrogaram e questionaram o saber e os mtodos consa-grados como verdadeiros, produzindo outros que os separaram. Assim, as cincias, a tecnologia, a filosofia, as letras e as artes perdem o seu suposto carter de realidades enfadonhas e ente-diantes, alheios ao mundo dos homens, das crianas e dos jovens, recuperando seu sentido e gnese historicamente determinados. (Coelho, 2003, p.50)

Nessa perspectiva, os saberes deixam de ser ensinados como dogmas a serem simplesmente aceitos e assimilados pelos alunos, ultrapassando a concepo do ensino apenas como uma tcnica de transmisso do saber, do conhecimento convertido em informao, da verdade acabada e dos contedos a serem consumidos pelos alunos. Tal posicionamento implica, portanto, pensar o ensino como dimenso essencial do processo de criao de sujeitos da cul-tura, de pessoas que interrogam, que pensam e recriam a realidade, o mundo e a existncia humana.

Segundo Giroux (1997, p.163), o essencial para o professor a necessidade de tornar o pedaggico mais poltico e o poltico mais pedaggico. A primeira parte da assertiva significa considerar a educao escolarizada como parte do projeto social mais amplo, com o objetivo de ajudar os alunos a desenvolver atitudes que visem superao das injustias econmicas, polticas e sociais. Tornar o poltico mais pedaggico, por sua vez, pressupe utilizar formas de ensinar que incorporem os interesses polticos de natu-reza emancipadora. Implica tratar o aluno como agente crtico, capaz de problematizar o conhecimento e de utilizar o dilogo cr-tico, argumentando em prol de um mundo qualitativamente me-lhor para todas as pessoas.

Nesse sentido, a formao dos professores precisa ser pensada a partir do contexto de seu trabalho, no podendo conceb-la desco-lada ou distanciada da reflexo crtica acerca da realidade da escola. preciso refletir sobre essa dimenso atravs de propostas curricu-

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lares, de atividades que permitam a compreenso da dinmica e das relaes que se estabelecem no contexto do trabalho docente.Diante dos vrios problemas relacionados educao, concor damos com Zeichner (1993) em que a reflexo crtica sobre o con-texto de seu trabalho pode ser o caminho que permitiria aos docentes ultrapassar uma viso baseada no senso comum. Para ele:

Los profesores y maestros que no reflexionan sobre su ejercicio do-cente aceptan, con frecuencia de manera acritica, esta realidad coti-diana de sus escuelas, y centran sus esfuerzos en descubrir los medios ms efectivos y eficaces para alcanzar los fines y resolver problemas en gran medida definidos por otros para ellos. A me-nudo, estos maestros y profesores pierden de vista el hecho de que su realidad cotidiana slo constituye una alternativa de entre mu-chas, una serie de opciones de un universo de posibilidades mucho mayor. Con frecuencia, pierden de vista los objetivos y fines hacia los que dirigen su trabajo, y se convierten en meros agentes de ter-ceros. (Zeichner, 1993, p.45-6)

Zeichner (1993) busca em Dewey a definio de ensino refle-xivo, fundamentando-se no livro How we think, publicado em 1993:

Dewey defina la accin reflexiva como la accin que supone una consideracin activa, persistente y cuidadosa de toda creencia o practica a la luz de los fundamentos que a sostiene y de las conse-cuencias a las que conduce. Segundo Dewey, la reflexin no con-siste en un conjunto de pasos o procedimientos especficos que hayan de seguir los profesores. Es, en cambio, una forma de afrontar y responder a los problemas, una manera de ser como maestro. La accin reflexiva constituye tambin un proceso ms amplio que el de solucin lgica y racional de problemas. La refle-xin implica intuicin, emocin y pasin: no es algo que pueda acotar-se de hacer algunos, y ensear-se como un conjunto de tc-nicas para uso de los maestros. (Zeichner, 1993, p.46)

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Libneo (2001) tambm defende o aprofundamento do estudo sobre a formao inicial e continuada de professores, considerando--se a busca de respostas aos desafios decorrentes das novas relaes entre sociedade e educao a partir de um referencial crtico de qualidade de ensino. Isso envolve uma concepo de formao do professor crtico-reflexivo, pautada no entendimento da prtica como referncia da teoria, e da teoria como o nutriente de uma pr-tica de melhor qualidade. Implica a utilizao da investigao-ao como uma das abordagens metodolgicas orientadoras da pesquisa e a adoo da perspectiva sociointeracionista do processo de ensino e aprendizagem. O autor ressalta ainda a necessidade do desenvol-vimento de competncias e habilidades profissionais em novas condies e modalidades de trabalho que ultrapassem as responsa-bilidades de sala de aula e envolvam um trabalho coletivo, a partir do qual se discutam as concepes, prticas e experincias, tendo como elemento norteador o projeto pedaggico da escola.

A formao do professor tem, assim, a perspectiva de preparar um profissional que seja, ao mesmo tempo, agente de mudana, fruto de ao individual e coletiva, e que saiba o que deve fazer, como tambm por que deve fazer, o que coloca em relevncia a im-portncia da atitude do professor ao planejar e atuar em sua tarefa docente. Para isso, o processo formativo h de contemplar estrat-gias de pensamento, de percepo, de anlise e de estmulos dife-rentes. Trata-se de formar um professor como profissional crtico e reflexivo, que se defronta com situaes de incerteza, contextuali-zadas e nicas, e que recorre pesquisa e reflexo como forma de decidir e intervir em tais situaes.

Imbrnon (2001, p.39) contribui para a reflexo acerca das novas necessidades para a formao de professores afirmando que esse processo:

[...] deve dotar os professores de conhecimento, habilidades e ati-tudes para desenvolver profissionais reflexivos ou investigadores. Nesta linha, o eixo fundamental do currculo de formao de pro-fessor o desenvolvimento da capacidade de refletir sobre a pr-

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pria prtica docente, com o objetivo de aprender a interpretar, compreender e refletir sobre a realidade social e a docncia.

O autor chama ateno tambm para o fato de que a formao inicial do professor, alm de se preocupar com os processos cogni-tivos, deve incluir tambm os afetivos, pois ambos, de algum modo, se interpenetram, determinando a ao do professor. Ressalta a necessidade de uma formao que considere as atitudes to impor-tantes quanto os contedos, j que o professor possui tanto co-nhecimentos objetivos como subjetivos e que, atualmente, os conhecimentos so considerados to importantes quanto as ati-tudes. A formao deve considerar que esse processo de aquisio amplo, complexo, adaptativo, experiencial e no linear e propicia um componente de adaptabilidade s realidades diferentes que o professor encontra em seu trabalho.

Pimenta, Fusari & Almeida (2005) propem que a formao de professores no se d mais nos moldes de um currculo fragmen-tado, em que primeiro se apresenta a cincia, depois a sua aplicao e, por ltimo, um estgio que se supe o espao em que os alunos aplicam os conhecimentos tcnico-profissionais recebidos. Para as autoras, o profissional formado dentro desse modelo tradicional no consegue dar respostas s situaes que emergem no dia a dia profissional porque estas ultrapassam os conhecimentos elabo-rados pela cincia e respostas tericas que poder oferecer ainda no esto formuladas (Pimenta, Fusari & Almeida, 2005, p.19).

Em face das reflexes apresentadas, com base na contribuio dos diferentes autores citados, concordamos que, no processo for-mativo do profissional docente, cabe ao estgio um papel funda-mental na construo de sua identidade profissional, considerado, portanto, espao privilegiado para a formao do docente, na pers-pectiva da concepo do professor crtico-reflexivo.

3

Sobre os estgios nos cursos de formao de professores

Embora alguns cursos de formao de professores venham ten-tando desenvolver o estgio como o momento de articulao da teoria com a prtica, concordo com Ghedin (2005) quando afirma que esse espao ainda se tem mostrado insuficiente para que o pro-fessor d conta da complexidade dos problemas que ele precisa en-frentar no espao escolar. O autor, assim como Pimenta & Lima (2004), ressalta que o estgio atualmente desenvolvido nos cursos de formao de professores tem se caracterizado, fundamental-mente, por uma cultura de cunho tecnicista. Sob um modelo tc-nico e cientfico, baseado quase exclusivamente na informao, tem a memria como habilidade cognitiva bsica e, como base do conhecimento, a descrio dos dados e o relato da experincia.

Concordo com os autores quando afirmam que, assim estrutu-rada, a atividade de estgio ineficaz para a formao de futuros professores, pois no d conta da complexidade do conhecimento que o docente precisa dominar para responder s necessidades da sociedade do presente. A nfase na racionalidade tcnica, ao negar a dimenso poltica inerente esfera de atuao docente, tem con-tribudo para destituir os cursos de formao de uma perspectiva crtico-reflexiva, necessria a uma educao emancipatria.

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Alm disso, gera conformismo e contribui para a conservao de hbitos, ideias, valores e comportamentos pessoais e sociais legi-timados pela cultura dominante, uma vez que o estgio se reduz observao de professores em aula, sem envolver uma anlise cr-tica fundamentada teoricamente e legitimada na realidade social em que o ensino se processa. Dessa forma, essa concepo no va-loriza a formao intelectual do professor, como afirmam Pimenta & Lima (2004).

O modelo em que tradicionalmente os estgios so desenvol-vidos nos cursos de formao de professores no tem, pois, possibi-litado a anlise crtica da prtica docente em sala de aula, nem mesmo a construo de uma atitude docente que supere a cultura escolar ainda carregada dos vcios de uma perspectiva tecnicista e conservadora da educao.

Assim, ao chegar escola, como profissional recm-formado e/ou concursado, o novo professor no consegue instituir prticas inovadoras nem adaptar-se complexidade de sua realidade. A nosso ver, essa situao pode ser decorrente, ao menos em parte, da falta de consistncia epistemolgica que lhe d suporte para resistir e enfrentar o modelo cultural que a escola assume como seu.

Maria Izabel Noronha, presidente da Apeoesp/SP, em entre-vista dada Folha de S. Paulo, no dia 21/3/2011, declara que os professores novos abandonam as aulas e deixam o magistrio de-vido, alm das prprias falhas da rede, formao oferecida na universidade, que no satisfatria. Os cursos de licenciatura tra-balham com uma escola irreal, de alunos perfeitos, e no conse-guem constituir uma identidade profissional necessria escola de hoje (Takahashi, 2011).

Para Ghedin (2005), o estgio deve tomar por base e como prin-cpio formativo a reflexo na ao e sobre a reflexo na ao, em que o conhecimento faz parte da ao, numa apropriao de teorias que ofeream uma perspectiva de anlise e de compreenso de con-textos histricos, sociais, culturais, ticos, polticos, estticos, tc-nicos, organizacionais, e dos prprios sujeitos como profissionais, para que eles possam elaborar propostas de transformao da es-

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cola como espao de construo da identidade profissional vincu-lada produo do conhecimento com autonomia do professor.O autor prope que, na modalidade de estgio curricular, o estagirio, juntamente com o professor orientador, busque com-preender o exerccio da docncia, a valorizao e o desenvolvimento dos saberes dos professores como sujeitos e intelectuais capazes de produzir conhecimento, de participar de decises e da gesto da escola e dos sistemas educativos.

Por meio do estgio e da prtica de ensino em classes de edu-cao infantil, ensino fundamental e ensino mdio, o futuro pro-fessor dever desenvolver-se para a docncia, preparando-se para efetivar as prticas de ser/estar professor, na complexa dinmica da realidade da sala de aula da educao bsica. Assim, a atividade poder oferecer ao aluno da licenciatura condies para que com-preenda o professor como um profissional inserido em um deter-minado espao e tempo histrico, capaz de questionar, refletir e atuar sobre a sua prtica, bem como sobre o contexto poltico e social em que ela se desenvolve.

Dessa forma, teoria e prtica passam a ser consideradas ele-mentos indissociveis da atividade docente, uma vez que, para re-fletir sobre o seu trabalho e as condies sociais e histricas de sua ao, o professor precisa de referenciais tericos que lhe possibi-litem uma melhor compreenso e o aperfeioamento de sua ativi-dade educativa.

Em concordncia com Pimenta & Lima (2004), entendemos que, dentro dessa perspectiva, as teorias exercem um papel funda-mental na prtica docente, pois iluminam e oferecem instrumentos e esquemas para anlise e investigao, atravs das quais possvel questionar as prticas institucionalizadas e as aes dos sujeitos e, ao mesmo tempo, as prprias teorias.

Num outro trabalho, Pimenta (1999) destaca que as prticas do-centes possuem elementos extremamente importantes, citando a problematizao, a intencionalidade para encontrar solues, como tambm a experimentao metodolgica, o enfrentamento de situa es de ensino complexas e as tentativas mais ricas e sugestivas de

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uma didtica inovadora, elementos essenciais para a construo crtica da prtica do professor em sala de aula.Muitos estudiosos, entre os quais Nvoa (1992), Pimenta (1999) e Tardif (2002), tm pesquisado os saberes necessrios docncia do professor. Esses estudos revelam que o saber docente plural, heterogneo, temporal, proveniente de fontes variadas, e exerce um papel importante no contexto de sua profisso e na sua con-duta em sala de aula.

Numa tentativa de dar conta do pluralismo do saber profis-sional dos professores, Tardif (2002) o apresenta, subdividindo-o em: saberes pessoais dos professores (adquiridos pela histria de vida), saberes provenientes da formao escolar anterior (adqui-ridos ao longo da escolaridade), saberes prprios da formao pro-fissional para o magistrio (adquiridos pela formao), saberes provenientes dos programas e livros didticos usados no trabalho (adquiridos pela utilizao do material) e saberes oriundos de sua prpria experincia na profisso, na sala de aula e na escola (adqui-ridos pela prtica do trabalho).

No ato de ensinar, segundo o autor, o docente deve mobilizar essa ampla variedade de saberes, reutilizando-os no trabalho para adapt-los e transform-los pelo e para o trabalho. Os saberes ad-quiridos pelo professor na experincia do trabalho cotidiano cons-tituem o alicerce da prtica e da competncia profissional e so, portanto, condio para a aquisio e a produo de seus prprios saberes profissionais, espao onde se torna possvel a reflexibili-dade, a retomada, a reproduo e a reiterao daquilo que se sabe naquilo que se sabe fazer, a fim de produzir a sua ao profissional.

No entanto, Freire (2002) afirma que, desse repertrio de sa-beres, os cursos de formao docente e os prprios professores, muitas vezes, negligenciam aqueles que so demandados pela pr-tica educativa em si mesma. Nessa perspectiva, o autor destaca que ensinar no transferir conhecimentos, mas criar possibilidades para a sua produo ou para a sua construo. O ato de ensinar, alm de exigir do professor rigor metdico, pesquisa, respeito aos

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saberes dos educandos, criticidade e tica, implica ainda que ele es-teja disponvel para conhecer a realidade dos alunos.A formao dos professores, portanto, deveria insistir na cons-tituio dos saberes necessrios profisso docente, considerando a influncia inegvel que o contorno ecolgico, social e econmico em que vivemos exerce sobre ns.

Marcelo Garca (1995) tambm enfatiza que a caracterstica socioeconmica e cultural do local onde se ensina, assim como a das pessoas a quem se ensina, um componente obrigatrio dos conhe-cimentos que os docentes tm de adquirir para se tornar profes-sores. Ressalta, ainda, que esse tipo de saber s se constri por meio das interaes com os alunos e com escolas reais. Por isso, as pr-ticas de ensino e os estgios supervisionados deveriam configurar--se como oportunidades mais adequadas para promov-lo.

Nesse sentido, consideramos essencial que nos cursos de for-mao de professores seja assegurado um contato mais efetivo com a realidade educativa, de modo que os futuros professores possam conhecer os sujeitos e as situaes que iro enfrentar em sua prtica docente e, assim, construir seus conhecimentos e formar a sua identidade profissional.

Entendemos a prtica de ensino e o estgio supervisionado, por-tanto, como elementos extremamente importantes na formao de professores, pois possibilitam o contato dos futuros docentes com o contexto especfico do trabalho, a partir do qual a teoria pode ser realimentada ou reelaborada diante das situaes reais nele encontradas.

Trata-se, nessa perspectiva, de conferir prtica a mesma impor-tncia da teoria no processo de formao docente. Diferentemente do que se observa hoje na maior parte dos cursos de licenciatura, teoria e prtica no podem ser dicotomizadas: h que se atribuir um espao vivncia de ambas, pelos alunos, para que possam construir os saberes necessrios ao docente.

De modo geral, porm, os cursos de formao de professores ba-seiam-se no modelo de racionalidade tcnica, segundo o qual as dis-

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ciplinas de contedos especficos so ministradas antes daquelas de cunho pedaggico, relegando, em regra, a parte prtica ao final do curso, quando a maior carga dos contedos tericos j foi estudada. Assim, o contato do professor com a realidade escolar acontece so-mente depois de ele ter passado pela afirmao terica, tanto nas dis-ciplinas especficas como nas pedaggicas (Libneo, 2001).

Isso revela que os cursos de formao de professores, tal como se encontram organizados atualmente, no consideram a prtica como elemento central no processo formativo.

Ao contrrio, nesse modelo, compreende-se que, conhecendo a parte terica, o professor pode melhor aprender a tcnica para utiliz-la na soluo de problemas enfrentados durante o exerccio profissional (Gonalves & Gonalves, 2001).

Segundo esses autores, a falta de uma prtica efetiva, a partir da qual o futuro professor possa ter contato com os alunos e com a complexidade do ambiente escolar, uma lacuna percebida pelos licenciandos quando se defrontam com o ambiente natural das aulas. Nesse momento, eles se deparam com a diferena entre a fundamentao terica que a academia lhes proporcionou e a pr-tica que passam a vivenciar como docentes. Esse distanciamento entre os conhecimentos adquiridos no curso de formao inicial e a realidade cotidiana do trabalho docente denominado por Veenman (1984) como o choque da realidade, que caracteriza a primeira fase da carreira docente.

Fiorentini, Souza Jnior & Melo (1998) acreditam que o dis-tanciamento e o estranhamento entre os saberes cientficos e os prticos decorrem do tipo de relao estabelecida entre os profes-sores da rede e os professores universitrios, marcada, por um lado, por uma cultura profissional que supervaloriza o conhecimento terico e, por outro, pelo pragmatismo ativista que exclui da for-mao a reflexo terica e filosfica necessria.

De acordo com esses autores, os cursos de formao inicial de professores:

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[...] no podem continuar dicotomizando teoria e prtica, pesquisa e ensino, e, contedo especfico e pedaggico. Aquilo que outrora era considerado apenas como ponte entre a formao especfica e a pedaggica, deve ser, na verdade, considerado como o eixo prin-cipal da formao profissional do professor. Este eixo, portanto, aquele que articula a teoria e a prtica do ensino e promove ativi-dades que contribuem para a formao do professor-pesquisador numa perspectiva de formao contnua. (Fiorentini, Souza Jnior & Melo, 1998, p.332)

Para Pimenta (1999), o processo de formao inicial s pode ocorrer atravs da aquisio da experincia pelos formandos, to-mando a prtica existente como referncia para a formao, e re-fletir-se nela. Considera que o futuro profissional no pode constituir seu saber fazer, enquanto elaborao terica, seno a partir de seu prprio fazer.

Segundo Imbrnon (2001, p.64), como um elemento relevante para a inovao das prticas de ensino, a dimenso prtica estaria sempre presente nos cursos de formao e sua reformulao in-cluiria as seguintes preocupaes:

As prticas nas instituies educativas devem favorecer uma viso integral das relaes do aluno com a realidade escolar e devem levar necessariamente a analisar a estreita relao dia-ltica entre a teoria e a prtica educativa.

As prticas devem ser o eixo central sobre o qual gire a for-mao do conhecimento profissional bsico do professor.

As prticas devem servir de estmulo s propostas terico--prticas formais, de maneira a permitir que os alunos in-terpretem, reinterpretem e sistematizem sua experincia passada e presente, tanto intuitiva como emprica.

Considerando a ntima relao entre a teoria e a prtica, Pi-menta (1999) destaca a necessidade de os cursos de formao inicial propiciarem aos alunos, alm de investigaes sobre a atividade do-

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cente, a possibilidade de desenvolver com eles atividades de pes-quisa sobre a realidade escolar, objetivando instrumentaliz-los para a atitude de pesquisador nas suas atividades docentes.

Assim, por meio de trabalhos e pesquisas no cotidiano escolar que possibilitem o contato do futuro professor com o contexto da escola e dos alunos a partir de uma formao que prepare o pro-fessor para conviver com suas prprias limitaes e com as produ-zidas pelo entorno, seria possvel, em parte, superar a dicotomia existente entre a formao inicial e a realidade da sala de aula.

Gonalves & Gonalves (2001) defendem que uma prtica efe-tiva ao longo do curso de formao possivelmente contribuiria tambm para a construo do conhecimento pedaggico do con-tedo, pois possibilitaria a ocorrncia de constante avaliao e dis-cusso dos contedos que estivessem sendo trabalhados, discutindo os problemas decorrentes das facilidades e dificuldades de ensino e aprendizagem encontradas, assim como facilitaria a formao de conhecimentos estratgicos, que buscada na experincia.

De acordo com Liston & Zeichner (1991, apud Contreras, 2002), os professores precisam de um fundamento social que no se baseie em opes pessoais, para identificar, organizar seus prop-sitos e escolher as estratgias pedaggicas e os meios mais ade-quados para atingir seus objetivos. Para os autores, os professores devem ser capazes de teorizar e produzir conhecimentos sobre suas prticas, considerando as condies institucionais, sociais e hist-ricas do ensino que realizam.

Na mesma linha terica, Contreras (2002) aponta a necessidade de uma compreenso crtica do contexto social no qual se desen-volve a ao educativa, sugerindo que o professor no pode limitar a pesquisa sobre a sua prtica apenas aos problemas pedaggicos que geram as aes particulares realizadas em sala de aula.

Segundo o autor, a reflexo dos professores, deixada ao seu pr-prio curso, pode se restringir experincia e aos crculos viciosos em que ela se encontra inserida. Diante disso, mister dispor de uma anlise terica, de uma teoria crtica que permita aos profes-sores compreender a sua limitao.

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Segundo Beyer (1989 apud Contreras, 2002), o docente precisa analisar o sentido poltico, cultural e econmico que a escola detm, saber de que forma tal sentido influencia os fatos que ocorrem no ensino e a maneira como se introjetam os padres ideolgicos sobre os quais se sustenta essa estrutura educacional. Alm disso, como consequncia da anlise anterior, importante que o docente reflita sobre o sentido poltico que reorientar a sua ao.

Refletir e investigar o ensino como prtica social e analisar as possibilidades transformadoras da ao educativa e da sociedade so caractersticas que definem o intelectual crtico-reflexivo. Nas palavras de Contreras (2002, p.157):

Conceber o trabalho dos professores como trabalho intelectual quer dizer, portanto, desenvolver um conhecimento sobre o ensino que reconhea e que questione sua natureza socialmente cons-truda e o modo pelo qual se relaciona com a ordem social, bem como analisar as possibilidades transformadoras implcitas no con-texto social das aulas e do ensino.

De acordo com Kemmis (1987, 1985 apud Contreras, 2002), a diferena entre o profissional reflexivo e o profissional enquanto intelectual crtico-reflexivo que o primeiro est preocupado em refletir sobre suas prticas e as incertezas que delas decorrem, sem, contudo, analisar e questionar as estruturas institucionais em que trabalha. J o intelectual crtico-reflexivo pretende problematizar o carter poltico da prtica reflexiva, analisando as condies sociais e histricas do contexto sob as quais devem se constituir os modos de entender e de valorizar a prtica educativa.

Nessa perspectiva, ao pretender ir alm das condies que j marcam a prtica educativa e tentar desvelar sua origem scio-his-trica e os interesses a que serve, pode-se considerar que o que move realmente a reflexo crtica a emancipao, a busca por su-perar as vises acrticas dos pressupostos, hbitos, tradies e cos-tumes no questionados e as formas de coero e de dominao que

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tais prticas supem e que, muitas vezes, ns mesmos sustentamos, em um autoengano (Contreras, 2002).A autonomia dos professores, segundo Nvoa (1992), implica a postura reflexiva e crtica sobre o ensino, que tem como ponto de partida o questionamento sobre os resultados e a pertinncia de seu trabalho. Para tanto, fazem-se necessrios os referenciais tericos que lhe possibilitem melhor compreend-lo e aperfeio-lo, por meio de suas prprias investigaes e reflexes.

Por esse prisma, entendemos que a formao do professor como um intelectual crtico-reflexivo e pesquisador de sua prtica no pode prescindir da aproximao da teoria com a prtica.

Por isso defendemos que os cursos de licenciatura invistam numa formao que assegure essa vinculao desde o incio do curso, a partir de pesquisas, de atividades e de um efetivo estgio no interior da escola, que permitam a reflexo e o confronto dos ensinamentos tericos com a realidade encontrada.

Essa proposta, porm, ainda est longe de se concretizar, como demonstra a pesquisa realizada recentemente por Gatti & Nunes (2008), pela Fundao Carlos Chagas e com o apoio da Fundao Victor Civita, em 165 cursos de licenciatura do pas. As autoras afirmam que, em relao aos 71 cursos de Pedagogia includos no estudo, alm de diversas outras constataes a que chegaram a partir da anlise dos projetos pedaggicos, so bastante preo cupantes os dados que levantaram sobre as atividades de estgio neles propostas.

Os projetos pedaggicos e as ementas dos cursos no fornecem in-formaes sobre como eles so realizados, supervisionados e acom-panhados. No esto claros os objetivos, as exigncias, formas de validao e documentao, acompanhamento, convnios com es-colas das redes para a sua realizao. Essa ausncia nos projetos das IES e nas ementas pode sinalizar que os estgios ou so conside-rados como uma atividade parte do currculo, o que um pro-blema, na medida em que devem se integrar com as disciplinas formativas e com aspectos da educao e da docncia, ou sua reali-

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zao considerada como aspecto meramente formal. Alm disso, as observaes largamente difundidas sobre o funcionamento dos cursos de Pedagogia nos autorizam a sugerir que a maior parte dos estgios envolve atividades de observao, no se constituindo em prticas efetivas dos estudantes de Pedagogia nas escolas. (Gatti & Barreto, 2009, p.120)

Observam tambm haver um desequilbrio na relao teoria--prtica, em favor do pretenso tratamento de fundamentos e teori-zao. Concluem que a escola objeto quase ausente nas ementas, o que leva a pensar numa formao de professor de carter mais abstrato e pouco integrado ao contexto real em que o docente deve atuar. Encontraram referncias explcitas palavra escola em apenas 8% das 1.498 ementas de disciplinas analisadas em seu es-tudo. As concluses descritas pelas autoras referentes aos cursos de Pedagogia parecem no ser diferentes das encontradas nas demais licenciaturas.

Tal constatao causa-nos perplexidade e nos leva a indagar qual o papel das diversas disciplinas dos cursos de licenciatura, e que tipo de profissional elas realmente pretendem formar.

Visando articulao entre teoria e prtica, Canrio (2001) des-taca que a aproximao da escola de formao e os contextos reais da prtica docente deve se basear em um novo relacionamento, no qual a escola seja considerada ambiente fundamental de aprendi-zagem profissional e no como simples espao de aplicao.

Conforme o autor, a aceitao desse pressuposto implica que o contato estreito com a realidade escolar, em vez de ficar restrito apenas a uma etapa final do curso de formao de professores, es-teja presente desde o incio e permanea durante todo o processo formativo.

Uma modalidade de estgio dessa natureza s poder ser assu-mida por uma instituio de ensino superior, seja ela universidade ou instituto superior de educao, que esteja comprometida com a formao e o desenvolvimento profissional do professor. Ela de-ver ser capaz de propor uma formao docente que tenha por base

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projetos emancipatrios, elaborados com a responsabilidade de tornar a escola parceira no processo de democratizao social, eco-nmica, poltica e cultural do pas, podendo, dessa forma, cumprir seu papel na busca e na construo de uma sociedade mais justa e igualitria.

Enfim, preciso considerar um processo formativo no qual o estgio tenha por objetivo formar o docente como um profissional crtico e reflexivo, apto a compreender e atuar na realidade edu cacional contempornea, propondo alternativas pedaggicas, por meio de reflexes e discusses oriundas da teoria trabalhada e da prtica do estgio realizado.

No entanto, cabe considerar que, embora as discusses cami-nhem para perspectivas mais promissoras na formao de profes-sores, na realidade, ainda permanecem as concepes de estgio baseadas na observao de modelos educativos, na crtica aos pro-fissionais observados e no mero cumprimento burocrtico da carga horria.

As consideraes aqui apresentadas permitem-nos perceber, ainda mais, a necessidade e a importncia de se conceber o estgio como campo de conhecimento indispensvel formao docente, buscando superar, definitivamente, as prticas que o tratam como uma formalidade curricular.

Para tanto, preciso ter clareza quanto importncia, ao sen-tido e aos objetivos dessa atividade no processo de formao dos professores, para que em seu planejamento e execuo sejam consi-deradas as contribuies que pode oferecer construo da iden-tidade do futuro professor, bem como de seus saberes, atitudes, valores e posturas.

No captulo seguinte, buscar-se- analisar se as polticas educa-tivas atuais abrem novas possibilidades de formao do professor, de modo a abarcar as caractersticas tericas necessrias apontadas neste estudo.

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Sobre as normatizaes legais e as prticas pedaggicas: novas possibilidades?

preciso assumir que a formao inicial de professores em cursos de licenciatura padece de uma ausncia de fundamentao terica bem trabalhada e de reflexo sobre as prticas didtico-pe-daggicas mais articuladas para cumprir sua tarefa de constituir os saberes docentes necessrios superao da dicotomia teoria e pr-tica e do distanciamento hoje existente entre a formao inicial e o cotidiano escolar. Da ser urgente e necessrio, poltica e etica-mente, efetivar mudanas profundas, a fim de superar essa proble-mtica, de modo que o futuro docente seja preparado a intervir de forma diferente na sala de aula.

Como a questo da formao de professores comparece na nova legislao educacional do pas?As discusses em torno da Lei de Diretrizes e Bases da Edu-cao Nacional (Lei no 9.394), de 1996 (Brasil, 1996), comearam bem antes de sua aprovao, tendo como princpio bsico a busca da transformao social por meio do debate democrtico. Com a participao de diversas instituies, rgos e instncias educacio-nais de composies ideolgicas distintas e divergentes, durante todo o processo de tramitao ao longo dos anos tentava-se elaborar uma lei coerente com a realidade brasileira e que pudesse contri-buir para o avano da educao.

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A Lei no 9.394/96, conhecida como LDB, trata da formao de professores para a educao bsica em um captulo especial, com o Ttulo VI, Os profissionais da educao, que abrange os artigos de 61 a 67, e, tambm, no artigo 87 das Disposies transitrias. Dentro dessa legislao, a questo institucional da formao de professores tratada especialmente nos artigos 62 e 63, e a questo curricular, em especial nos artigos 61 e 65.

A comparao desse novo texto com as Leis no 5.540/68 (Brasil, 1968) e no 5.692/71 (Brasil, 1971) aponta para uma maior preocu-pao com a formao do profissional da educao, um significa-tivo avano, que pode ser observado em seus artigos.

Laranjeira (2003) afirma que, no que se refere questo institu-cional da formao de professores para a educao bsica, a LDB apresenta, nos dois artigos citados, cinco medidas muito impor-tantes:

extingue a licenciatura curta, ao definir a necessidade de for-mao de professores em cursos de graduao plena;

cria os Institutos Superiores de Educao como estruturas organizacionais especficas para a formao de professores oferecida fora das universidades;

concebe a formao de professores em cursos prprios, ao de-finir a especificidade da licenciatura no bojo da graduao;

aponta que a formao dos professores de educao infantil e de sries iniciais do ensino fundamental se dar nos cursos normais superiores;

admite a formao em nvel mdio como exigncia mnima para a atuao na educao infantil e nas quatro primeiras s-ries do ensino fundamental.

Em relao ao currculo, a LDB apresenta como fundamentos bsicos a necessidade da articulao entre teoria e prtica, o apro-veitamento de experincias e estudos e a ampliao da carga horria destinada prtica de ensino, durante o curso, para trezentas horas. Com essas determinaes, a LDB busca acolher a ideia da impor-

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tncia e da complexidade do processo de formao de professores e promove importantes mudanas no quadro da formao docente para a educao bsica de todo o pas. Dessa forma, representa, sem dvida, um grande avano em relao s leis anteriores, uma vez que estabelece como meta formar os profissionais da educao b-sica em nvel superior, em cursos de licenciatura plena.

Se tais preceitos fossem cumpridos, poderia isso representar um verdadeiro salto na qualidade do ensino ministrado no pas?Afirmamos, neste momento histrico, que o disposto na lei ainda est longe de apresentar um resultado satisfatrio, necessi-tando ainda de muitos estudos, discusses, dedicao e reivindi caes por parte de todos os que atuam nos diferentes nveis de ensino, a fim de que se possa contribuir para um ensino pblico democrtico e de qualidade.

A partir da promulgao da Lei de Diretrizes e Bases da Edu-cao Nacional de 1996, novas polticas foram sendo regulamen-tadas por meio de vrios textos legais, no mbito do governo federal, atravs do Conselho Nacional de Educao e do prprio Ministrio da Educao. Essa normatizao, que se apresentava com a justificativa de responder questo da formao inicial do professor, tentando superar os problemas j encontrados e apon-tados nas pesquisas acadmicas, bem como as dificuldades decor-rentes do cotidiano da sala de aula, buscava regularizar e finalizar uma etapa de proposio para a reforma educacional no campo da formao de professores.

Dentre os textos legais analisados, este estudo ressalta, inicial-mente, o Parecer CNE/CP no 9/2001 (Brasil, 2001) e o Parecer CNE/CP no 28/2001 (Brasil, 2001), seguidos, respectivamente, da Resoluo CNE/CP no 1/2002 (Brasil, 2002) e da Resoluo CNE/CP no 2/2002 (Brasil, 2002), que reconhecem uma especifi-cidade prpria para os cursos de licenciatura como espao de for-mao de professores, fundamentam e estabelecem os princpios norteadores de todos os cursos de licenciatura do pas.

O Parecer CNE/CP no 9/2001 (Brasil, 2001) e a Resoluo CNE/CP no 1/2002 (Brasil, 2002) tratam das Diretrizes Curricu-

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lares Nacionais para a Formao de Professores da Educao B-sica, isto , interpretam e normatizam as exigncias relativas formao desses profissionais, estabelecendo-lhe um novo para-digma. Sua elaborao foi resultado de um amplo debate com pes-quisadores e representantes de grande nmero de entidades ligados educao escolar, conforme relatado no prprio Parecer, nas p-ginas 1 e 2.

Esses documentos reafirmam que a formao de professores da educao bsica deve ser realizada em nvel superior, em cursos de licenciatura, de graduao plena. Apresentam tambm os prin-cpios orientadores mais amplos e as condutas que devem nortear a organizao e a estruturao dos cursos de formao inicial. In-cluem ainda a discusso de competncias e de conhecimentos necessrios para o desenvolvimento profissional, a organizao institucional da formao de professores e as diretrizes para a estru-turao da matriz curricular.

Essas normas deveriam ser observadas em todos os cursos de for-mao inicial de professores em nvel superior, em qualquer locus institucional universidade ou instituto superior de educao , rea de conhecimento e/ou etapa da escolaridade bsica. Conforme as orientaes legais, cabe a cada instituio a responsabilidade pela construo do projeto pedaggico do curso, de modo a traduzi-lo em uma proposta curricular inovadora e criativa.

preciso destacar que, com as diretrizes curriculares apro-vadas:

a licenciatura ganhou funcionalidade e integralidade prpria em relao ao bacharelado, constituindo um pr