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O Utilitarismo FILOSOFIA 2012 JORGE NUNES BARBOSA iBooks Author

Utilitarismo

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O Utilitarismo

FILOSOFIA 2012

JORGE NUNES BARBOSA

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CAPÍTULO 1

Jeremy Bentham

Todos nós somos comandados pelos sen-timentos de dor e de prazer. São os nos-sos mestres soberanos. Eles comandam tudo o que fazemos e determinam igual-mente o que devemos fazer.

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SECÇÃO 1

O Utilitarismo de Bentham

Jeremy Bentham (1748-1832) foi taxativo relativamen-te à questão dos direitos fundamentais e do dever. Es-carneceu da ideia dos direitos naturais, chamando-lhes disparate sobre andas. Com efeito, exerce até hoje uma influência poderosa no pensamento dos decisores políticos, dos economistas, dos executivos de empresas e dos cidadãos comuns.

Bentham, filósofo moral e reformador do Direito in-glês, fundou a doutrina do utilitarismo. A sua ideia prin-cipal é simples e intuitivamente apelativa: o princípio máximo da moralidade é a maximização da felicidade, o equilíbrio geral entre prazer e dor. Segundo Bentham, a coisa certa a fazer é aquela que maximize a utilidade. Por utilidade refere-se àquilo que produz pra-

zer ou felicidade, e àquilo que evita a dor ou o sofrimen-to.

Bentham chega ao seu princípio através da seguinte li-nha de raciocínio: todos nós somos comandados pelos sentimentos de dor e de prazer. São os nossos mestres soberanos. Eles comandam tudo o que fazemos e deter-minam igualmente o que devemos fazer. A norma do que é certo e do que é errado está presa ao seu trono.

Todos nós gostamos do prazer e detestamos a dor. O fi-lósofo utilitarista reconhece esta facto, e faz dele a base da moral e da vida política. A maximização da utilidade é um princípio não só para os indivíduos como também para os legisladores. Ao decidir que leis e políticas pro-mulgar, um governo deve fazer aquilo que maximize a felicidade da comunidade como um todo. Mas, o que é a comunidade? Segundo Bentham, é um órgão fictício composto pela soma dos indivíduos que o constituem. Os cidadãos e os legisladores devem pois fazer a si pró-prios esta pergunta: se somarmos todos os benefícios desta política, e subtrairmos todos os custos, obtere-mos mais felicidade do que a alternativa?

O argumento de Bentham a favor do princípio de que devemos maximizar a utilidade assume a forma de

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uma asserção corajosa, a de que não existem razões pos-síveis para o rejeitar. Todos os argumentos morais, afir-ma ele, devem implicitamente basear-se na ideia de ma-ximização da felicidade. As pessoas podem dizer que acreditam em determinados deveres ou direitos categó-ricos absolutos. Mas não teriam qualquer fundamento para defender esses deveres ou direitos, a menos que acreditassem que o respeito dos mesmos maximizaria a felicidade humana, senão para sempre, pelo menos a longo prazo.

Quando um homem tenta combater o princípio da uti-lidade, escreve Bentham, é com razões que, sem se aperceber, vai buscar a esse mesmo princípio. Todas as querelas morais, em verdade, são divergências sobre como aplicar o princípio utilitarista da maximização do prazer e da minimização da dor, não sobre o princípio propriamente dito. Será que um homem pode mover a Terra?, pergunta Bentham, Sim, mas primeiro tem de encontrar outra Terra onde se firmar. E a única Terra, a única premissa, o único ponto de partida para o argu-mento moral, segundo Bentham, é o princípio da utili-dade.

Bentham considerava que o seu princípio da utilidade proporcionaria uma ciência da moralidade que podia servir de base à reforma política. Propôs uma série de projectos destinados a tornar a política penal mais efici-ente e humana, no seu entender. Um foi o Panóptico, uma prisão com uma torre de vigia central que permiti-ria ao supervisor observar os reclusos sem que eles o vissem. Sugeriu que o Panóptico fosse administrado por uma empresa privada (de preferência sua), que geri-ria a prisão em troca dos lucros do trabalho dos presos, que trabalhariam 16 horas por dia. Embora o plano de Bentham acabasse por ser rejeitado, parece avançado para a época, uma vez que nos últimos anos se tem as-sistido a um revivalismo, nos Estados Unidos e na Grã Bretanha, da ideia de externalizar as prisões a empre-sas privadas...

Outro projecto de Bentham era um plano para melho-rar a gestão dos indigentes mediante a criação de um asilo autofinanciado para os pobres. O plano, que pre-tendia reduzir a presença de mendigos nas ruas, forne-ce uma imagem nítida da lógica utilitarista. Antes de mais, Bentham observou que encontrar mendigos nas ruas reduz a felicidade dos transeuntes de duas manei-ras: 1) nas pessoas de bom coração, a visão de um men-

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digo gera a dor da compaixão; 2) nas pessoas insensí-veis, gera a dor da repugnância. Seja como for, encon-trar mendigos reduz a utilidade do público em geral. As-sim, Bentham propôs retirar os mendigos das ruas e confiná-los a um asilo.

Algumas pessoas poderão ficar preocupadas com o fac-to de a construção e administração do asilo constituí-rem um encargo para os contribuintes, reduzindo a sua felicidade e, por conseguinte a sua utilidade. Mas Bentham propôs uma forma de fazer com que o seu pla-no de gestão de mendigos fosse totalmente autofinanci-ado. Qualquer cidadão que encontrasse um mendigo te-ria o poder de o deter e levá-lo para o asilo mais próxi-mo. Uma vez confinado, cada mendigo teria de traba-lhar para pagar o seu sustento, o qual seria registado numa conta de autolibertação. A conta incluiria comi-da, roupa, cama, cuidados médicos e uma apólice de se-guro de vida, para o caso de o mendigo morrer antes de a conta estar saldada. Para incentivar os cidadãos a da-rem-se ao trabalho de deter mendigos e levá-los para o asilo, Bentham propôs uma recompensa de vinte xelins por detenção - a juntar, claro está, à conta do mendigo.

Bentham aplicou igualmente a lógica utilitarista à dis-tribuição de quartos no interior das instalações, de modo a minimizar o desconforto causado aos reclusos pelos seus vizinhos. Ao lado de uma classe de que se re-ceie qualquer inconveniente, colocar uma classe que não seja susceptível a esse inconveniente. Assim, por exemplo, ao lado de loucos delirantes, ou pessoas com discurso libertino, colocar surdos... Ao lado de prosti-tutas e mulheres promíscuas, colocar as mulheres de idade. Já agora, quanto às pessoas terrivelmente defor-madas, Bentham propôs alojá-las ao lado de reclusos cegos.

Por mais severa que a sua proposta possa parecer, o ob-jectivo de Bentham não tinha um carácter punitivo. Vi-sava simplesmente promover o bem-estar, resolvendo um problema que reduzia a utilidade social. O seu pla-no para a gestão dos indigentes nunca foi adoptado. Mas o espírito utilitarista que o inspirou continua actualmente vivo e de boa saúde.

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SECÇÃO 2

Objecções

1. Direitos Individuais

Para muitas pessoas, a fragilidade mais óbvia do utilita-rismo é o facto de não respeitar os direitos individuais. Ao preocupar-se apenas com a soma das satisfações, pode desrespeitar os indivíduos. Para os utilitaristas, os indivíduos importam, mas apenas na medida em que as preferências de cada pessoa devem ser contabili-zadas juntamente com as de todas as outras. Só que isto significa que a lógica utilitarista, quando aplicada de forma consciente, pode aceitar formas de tratar as pessoas que violam aquilo que consideramos ser as nor-mas fundamentais da decência e do respeito

Exemplos:

Lançar os cristãos aos leões

Na Roma antiga, lançavam os cristãos aos leões no Coli-seu para divertimento do povo. Imagine como seria o cálculo utilitarista: sim, o cristão sofre dores agonizan-tes quando o leão o abocanha e devora. Mas pense no êxtase colectivo dos espectadores que enchem o Coli-seu e que dão vivas. Se houver um número suficiente de romanos a retirar prazer suficiente do espectáculo violento, haverá motivo para um utilitarista o conde-nar?

Tortura de Terroristas

Será legítimo torturar um terrorista para obter informa-ções a respeito do lugar onde colocou uma bomba pron-ta a explodir? Segundo os utilitaristas, sim. A tortura é legítima neste caso. Mas alguns utilitaristas são generi-camente contra a tortura porque reconhecem que rara-mente funciona, não sendo, por isso, útil.

Nos tempos actuais, algumas formas de utilitarismo al-cançaram níveis de cinismo que, nem Bentham supu-nha ser possível: por exemplo, considera-se mais útil não atacar as grandes fortunas, embora seja em menor

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número o conjunto de pessoas que seriam afectadas, porque das grandes fortunas resulta mais utilidade para a comunidade do que da soma de todos os outros rendimentos; por outro lado, penalizam-se os pobres e a classe média, porque, embora correspondam a um maior número de pessoas afectadas, a sua dor somada é menor do que o prazer obtido pela soma das grandes fortunas. (As coisas não são ditas explicitamente assim; mas são assim que são feitas).

2. Uma Moeda Comum de Valor

O utilitarismo afirma proporcionar uma ciência da mo-ralidade, baseada na medição, agregação e cálculo da felicidade. Pesa as preferências sem as julgar. Todas as preferências têm igual importância. É este espírito acrí-tico que é a fonte de muito do seu encanto. E a sua pro-messa de fazer da escolha moral uma ciência está subja-cente a muito do raciocínio económico contemporâneo. Mas para agregar as preferências é necessário medi-las numa escala única. A ideia de utilidade de Bentham for-nece essa moeda comum.

Mas será possível traduzir todos os bens morais numa única moeda de valor sem que nada se perca na tradu-ção? A segunda objecção ao utilitarismo duvida que as-sim seja. Segundo esta objecção, não é possível apreen-der todos os valores numa moeda comum de valor.

Para analisar esta objecção, vejamos como a lógica utili-tarista é aplicada na análise custo/benefício, uma for-ma de tomada de decisão que é amplamente usada por governos e empresas.

Os Benefícios do Cancro do Pulmão

A empresa tabaqueira Philip Morris obtém grandes lu-cros na República Checa, onde fumar continua a ser po-pular e socialmente aceitável. Preocupado com os cres-centes custos que isso acarreta para o sistema de saú-de, o governo checo ponderou recentemente aumentar os impostos sobre o tabaco. Na esperança de fugir ao aumento fiscal, a Philip Morris encomendou uma análi-se custo/benefício dos efeitos do tabaco. O estudo reve-lou que, na realidade, o governo ganha mais dinheiro com o tabaco do que perde. Pela seguinte razão: embo-ra os fumadores comportem custos médicos mais eleva-dos para o orçamento enquanto estão vivos, morrem prematuramente e, consequentemente, poupam ao go-

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verno montantes consideráveis a nível de cuidados de saúde, reformas e alojamento para idosos. Segundo o estudo, depois de considerados os efeitos positivos do tabaco - incluindo receitas do imposto sobre o tabaco e a poupança resultante da morte prematura dos fumado-res - o lucro público para o erário público é de 147 mi-lhões de dólares por ano.

Alguns utilitaristas diriam que este tipo de estudo não corresponde verdadeiramente à forma de pensar utilita-rista, porque defendem que nem todos os valores po-dem ser traduzidos em termos monetários. No entanto, numa sociedade, ou empresa, em que os valores são tra-duzidos em termos monetários, este tipo de estudos é uma consequência da perspectiva utilitarista da moral.

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CAPÍTULO 2

John Stuart Mill

Considerámos, até aqui, duas objecções ao princípio da maior felicidade de Bentham - não confere a devida impor-tância à dignidade humana e aos direitos individuais e reduz erradamente tudo o que tem importância moral a uma única escala de prazer e dor. Em que medida es-tas objecções são pertinentes?

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SECÇÃO 1

A Defesa da Liberdade

John Stuart Mill considerava que as objecções, dirigi-das contra o utilitarismo de Bentham podiam e deviam ter uma resposta. Uma geração depois de Bentham, Mill tentou ressuscitar o utilitarismo, remodelando-o como doutrina mais humana e menos calculista.

As obras de Mill podem ser consideradas uma tentativa empenhada de reconciliar os direitos individuais com a filosofia utilitarista que herdou do seu pai e adoptou de Bentham. O seu livro Sobre a liberdade é precisamente um exemplo clássico do conceito de liberdade individu-al no mundo anglófono. O princípio central é que as pessoas devem ser livres para fazerem o que quiserem, desde que não prejudiquem ninguém. O governo não pode interferir na liberdade individual para proteger

uma pessoa de si própria, ou para impor as crenças da maioria sobre a melhor forma de viver. As únicas ac-ções pelas quais uma pessoa é responsável perante a so-ciedade, afirma Mill, são aquelas que afectam terceiros. Desde que não prejudique ninguém a minha indepen-dência é, por direito, absoluta. O indivíduo é soberano de si mesmo, do seu corpo e da sua mente.

Seria de esperar que esta exposição firme dos direitos individuais tivesse uma justificação mais forte do que a simples utilidade. Senão vejamos: uma grande maioria que despreza uma pequena religião pode desejar que esta seja proibida. Não será possível, mesmo provável, que a proibição da religião produza maior felicidade para o maior número de pessoas? Se este cenário é pos-sível, então a utilidade parece ser um fundamento frá-gil e duvidoso para a liberdade religiosa. Seria de espe-rar que o princípio de liberdade necessitasse de uma base moral mais forte do que o princípio de utilidade de Bentham.

Mas Stuart Mill discorda. Segundo ele, a defesa da liber-dade individual baseia-se inteiramente em considera-ções utilitaristas. É conveniente declarar que renuncio a qualquer vantagem que possa advir para a minha

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argumentação da ideia do direito abstrato como inde-pendente da utilidade. Considero a utilidade como últi-mo recurso em qualquer questão ética; terá de ser, po-rém, a utilidade no sentido mais amplo, baseada nos interesses permanentes do homem como ser progres-sista”, diz Mill.

Stuart Mill acha que devemos maximizar a utilidade, não caso a caso, mas sim a longo prazo. E afirma que, ao longo do tempo, o respeito da liberdade individual conduzirá à maior felicidade humana. Permitir que a maioria silencie os dissidentes ou censure os livre-pen-sadores poderá maximizar a utilidade hoje, mas, a lon-go prazo, tornará a sociedade pior - menos feliz.

Por que razão devemos presumir que a preservação da liberdade individual e do direito de discordar irá pro-mover o bem-estar da sociedade a longo prazo? Mill apresenta várias razões:

1. A opinião discordante pode revelar-se verdadeira e, desse modo, proporcionar uma correcção à opinião dominante;

2. E mesmo que a opinião discordante não se venha a revelar verdadeira, submeter a opinião dominante a

um aceso debate de ideias irá impedir que esta se consolide em dogma e preconceito.

3. Uma sociedade que obriga os seus membros a adop-tar costumes e convenções tem maior probabilidade de cair num conformismo absurdo, privando-se da energia e da vitalidade que desencadeiam a melho-ria social.

As especulações de Mill sobre os efeitos salutares da li-berdade são de grande qualidade. Mas não proporcio-nam uma base moral convincente para os direitos indi-viduais por, pelo menos, duas razões:

1. O respeito pelos direitos individuais a bem da pro-moção do progresso social faz com que os direitos fi-quem reféns da contingência. Se uma qualquer socie-dade atinge uma espécie de felicidade de longo pra-zo através de meios despóticos, não seria o utilitaris-ta levado a concluir que, numa sociedade desse géne-ro, os direitos individuais não são moralmente exigí-veis?

2. Basear os direitos em considerações utilitaristas não tem em conta que a violação dos direitos de alguém

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é lesiva para o indivíduo, seja qual for o seu efeito no bem-estar geral.

Stuart Mill era um daqueles filósofos que merece ser apreciado pela sua clarividência e honestidade intelec-tual. Numa tentativa de responder a estas críticas, Mill transpõe, de facto, os limites da moralidade utilitarista. Obrigar uma pessoa a viver de acordo com os costumes ou convenções ou opinião dominante é errado, explica Mill, porque a impede de alcançar o fim maior da vida humana: o desenvolvimento pleno e livre das suas fa-culdades humanas. Segundo Mill, o conformismo é o principal inimigo da melhor forma de viver. Na prática, Stuart Mill, com este argumento, aceita, por convicção, não basear completamente a sua moral no princípio da utilidade.

O elogio fervoroso que Stuart Mill faz da individualida-de é o contributo mais importante da obra Sobre a li-berdade. Mas também é, de certo modo, uma heresia para o utilitarismo. Com efeito, faz apelo a ideais mo-rais que transcendem a utilidade - ideias de carácter e prosperidade humana. Esta fundamentação não respei-ta verdadeiramente o princípio de Bentham, apesar das afirmações de Mill em contrário.

Prazeres Superiores

A resposta de Mill à segunda objecção ao utilitarismo - facto de reduzir todos os valores a uma escala única - também se apoia em ideais morais independentes da utilidade. Em Utilitarismo (1861), um longo ensaio que escreveu pouco tempo depois de ter escrito Sobre a li-berdade, Mill tenta demonstrar que os utilitaristas con-seguem distinguir prazeres superiores de prazeres infe-riores.

Para Bentham, prazer é prazer e dor é dor. A única base para dizer que uma experiência é melhor ou pior do que outra é a intensidade e a duração do prazer ou da dor que produz. Os chamados prazeres superiores ou virtudes mais nobres são simplesmente aqueles que produzem prazer mais intenso e mais duradouro. Sen-do igual a quantidade de prazer, escreve Bentham, o jogo do alfinete (jogo de crianças) é tão bom como a po-esia.

Parte do encanto do utilitarismo de Bentham, para mui-tos no nosso tempo, é precisamente este espírito acríti-co. Aceita as preferências das pessoas tal como são, sem fazer juízos de valor sobre o seu valor moral. To-das as preferências têm igual peso.

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A recusa em distinguir os prazeres superiores dos inferi-ores está ligada à crença de Bentham de que todas as coisas podem ser medidas e comparadas numa escala única. Pensemos na crueldade de atirar os cristãos aos leões na Roma antiga; pensemos nas razões que levam muitas pessoas a condenar as lutas de cães ou de galos como desumanas, apesar proporcionarem prazer a quem gosta de assistir a elas e só afectarem animais ir-racionais. O que é que pode levar a que a nossa consci-ência não se satisfaça com esta ideia de que os prazeres podem ser todos medidos pela mesma moeda?

Ora, Stuart Mill tenta defender o utilitarismo desta ob-jecção. Mill começa por jurar fidelidade à doutrina utili-tarista. As acções são correctas na medida em que ten-dam a promover a felicidade e erradas consoante ten-dam a produzir o contrário da felicidade. Por felicida-de entenda-se o prazer e a ausência de dor e por infeli-cidade a dor e a ausência de prazer. Afirma igualmen-te que a teoria da vida na qual esta teoria da moral se baseia - nomeadamente, que o prazer e a ausência de dor são as únicas coisas desejáveis como fins; e que to-das as coisas desejáveis ... são desejáveis ou pelo pra-zer inerente a si mesmas, ou como meios para a pro-moção do prazer e a prevenção da dor”.

Apesar de insistir que o prazer e a dor são a única coisa que importa, Mill reconhece que alguns tipos de pra-zer são mais desejáveis e mais valiosos do que outros. Como podemos saber que prazeres são qualitativamen-te superiores? Mill propõe um teste simples: de dois prazeres, se houver um ao qual todos ou quase todos os que tiveram experiência de ambos dão uma clara preferência, independentemente de qualquer obriga-ção moral para o preferirem, esse é o prazer mais de-sejável”.

Mas não será comum preferirmos experiências pouco exigentes (como ver televisão sentados num sofá) por-que nos dão maior prazer, apesar de não lhe reconhe-cermos verdadeira utilidade?

Para pensar:

Edward Thorndike, psicólogo social, tentou provar, em 1937, aquilo que o utilitarismo pressupõe: que é possí-vel traduzir os nossos desejos e aversões aparentemen-te díspares para uma moeda comum de prazer e dor.

Realizou um inquérito a jovens que recebiam subsídios governamentais (por não terem meios próprios de sub-sistência), perguntando-lhes quanto lhes teriam de pa-

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gar para serem sujeitos a várias experiências. Por exem-plo: Quanto teriam de pagar para lhe

• retirarem um dente incisivo superior

• cortarem o dedo mindinho do pé

• comerem uma minhoca viva de 15 centímetros

• esganar um gato vadio até à morte com as próprias mãos

• viver o resto da vida numa quinta do Kansas, a 16Km de qualquer cidade

Vejamos a lista de preços médios obtidos por Thorn-dike:

Dente - 4 500 dólares

Dedo do pé 57 000 dólares

Minhoca - 100 000 dólares

Gato - 10 000 dólares

Kansas - 300 000 dólares

Segundo Thorndike, esta lista confirma que todos os bens podem ser medidos. Mas o carácter ridículo da lis-ta sugere o absurdo de tais comparações.

A ideia de que tudo tem um preço talvez não seja, afi-nal, uma grande ideia.

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CAPÍTULO 3

Libertarismo

Poderíamos pensar que, numa lógica utili-tarista, de maximização da felicidade, a redistribuição da riqueza poderia ser uma mdedida muito justa: tirar um mi-lhão de dólares a Bill Gates e distribuí-lo por 100 pessoas carenciadas (10 000 a cada uma) geraria mais felicidade geral e seria, por isso, uma medida justa.

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SECÇÃO 1

Introdução

A lógica utilitarista poderia ser alargada no sentido de apoiar uma redistribuição bastante radical da riqueza; dir-nos-ia para transferir dinheiro dos ricos para os po-bres até ao último dólar tirado a Gates o prejudicar tan-to quanto ajudaria quem o recebesse.

Este cenário Robin dos Bosques é passível de, peloo me-nos, duas objecções - uma interna ao pensamento utili-tarista, a outra exterior a ele. A primeira objecção teme que impostos elevados, sobretudo sobre o rendimento, reduzam o incentivo para trabalhar e investir, conduzin-do a um declínio de produtividade. Se o bolo económi-co encolher, deixando menos para redistribuir, o nível geral de utilidade poderá baixar.

A segunda objecção considera estes cálculos irrelevan-tes. Alega que tributar os ricos para ajudar os pobres é injusto porque viola um direito fundamental. De acor-do com esta objecção, tirar dinheiro a Bill Gates sem o seu consentimento, mesmo que seja por uma boa cau-sa, é coercivo. Viola a liberdade deles de fazer com o seu dinheiro o que lhes aprouver.

Os libertários - pessoas que se opõem à redistribuição da riqueza por estes motivos - defendem os mercados livres e são contra a regulação governamental, não em nome da eficiência económica, mas sim em nome da li-berdade.

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SECÇÃO 2

O Estado Mínimo

Se a teoria libertária dos direitos estiver correcta, então muitas actividades do Estado moderno são ilegítimas e violam a liberdade. Somente um Estado mínimo - que faça cumprir os contratos, proteja a propriedade priva-da do roubo e mantenha a paz - é compatível com a teo-ria libertária dos direitos.

O libertário rejeita três tipos de políticas e leis que os estados modernos geralmente praticam:

1. Paternalismo. Os libertários são contra leis que se destinam a impedir que as pessoas façam mal a si próprias. As leis relativas ao cinto de segurança são um bom exemplo, bem como as leis relativas ao uso obrigatório de capacete por parte dos motociclistas.

2. Legislação dos Princípios Morais. Os libertá-rios são contra o uso da força coerciva da lei para promover noções de virtude ou para exprimir as con-vicções morais da maioria. A prostituição poderá ser moralmente condenável para muitas pessoas, mas isso não justifica leis que proíbem que adultos res-ponsáveis se dediquem a ela.

3. Redistribuição do rendimento e da riqueza. A teoria libertária dos direitos exclui qualquer lei que exija que algumas pessoas ajudem outras, inclu-indo a tributação para fins de redistribuição da rique-za. Por muito desejável que seja que os ricos ajudem os menos afortunados - subsidiando os seus cuida-dos de saúde ou alojamento ou educação -, essa aju-da deverá ser deixada à discrição de cada indivíduo, e não ordenada pelo governo. Para os libertários, os impostos redistributivos são uma forma de coerção e, inclusivamente, de roubo.

A filosofia libertária não está bem delimitada no espec-tro partidário. Os conservadores que defendem políti-cas económicas de laissez-faire muitas das vezes afas-tam-se dos libertários em questões culturais como o aborto e as restrições à pornografia. E muitos defenso-

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res do Estado-providência têm opiniões libertárias so-bre questões como os direitos dos homossexuais, os di-reitos reprodutivos, a liberdade de expressão e a separa-ção entre o Estado e a Igreja.

Durante a década de 1980, as ideias libertárias salienta-ram-se nas políticas pró-mercado e antigoverno de Ro-nald Reagan e Margareth Thatcher. No livro Capitalis-mo e Liberdade (1962), o economista americano Mil-ton Friedman (1912-2006) afirmava que muitas activi-dades estatais amplamente aceites são violações ilegíti-mas da liberdade individual. A Segurança Social, ou qualquer programa de aposentação obrigatório, é um dos exemplos principais: Se um homem prefere, consci-entemente, viver para o presente, usar os seus recur-sos para se divertir agora, escolhendo deliberadamen-te uma velhice de privações, com que direito podemos impedi-lo de agir assim?”, pergunta Friedman.

Friedman é contra as leis relativas ao salário mínimo por motivos semelhantes. Os requisitos em matéria de licenciamento profissional também interferem, segun-do Friedman, indevidamente na liberdade de escolha. Se eu quiser fazer uma intervenção cirúrgica, por exem-plo, devo ter a liberdade de contratar quem quiser, cer-

tificado ou não com o diploma de médico, para fazer o trabalho.

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SECÇÃO 3

Filosofia de Mercado Livre

No livro Anarquia, Estado e Utopia (1974), Robert No-zick apresenta uma defesa filosófica dos princípios li-bertários e uma contestação das ideias comuns de justi-ça distributiva. Começa por afirmar que os indivíduos têm direitos de tal maneira fortes e vastos que levan-tam a questão sobre o que é que o Estado pode fazer, se é que pode fazer alguma coisa. Conclui que só se jus-tifica o Estado mínimo, limitado à fiscalização do cum-primento dos contratos e à protecção das pessoas con-tra a violência, o roubo e a fraude; um Estado mais amplo viola os direitos das pessoas de não serem for-çadas a fazer certas coisas e não se justifica.”

Entre as coisas que ninguém deveria ser forçado a fazer está ajudar as outras pessoas. A tributação dos ricos

para ajudar os pobres coage os ricos. Viola o seu direito de fazerem o que quiserem com as coisas que possuem.

Segundo Nozick, a desigualdade económica não é erra-da. A mera constatação de que os 400 da Forbes possu-em milhares de milhões de dólares, enquanto outros não têm um tostão não lhe permite, a ele, Nozick, con-cluir seja o que for sobre a justiça ou injustiça da situa-ção.

Objecções ao mercado livre

1. A primeira objecção sustenta que, para quem tem al-ternativas limitadas, o mercado livre não é assim tão livre. Vejamos um caso extremo: u sem-abrigo que dorme debaixo de uma ponte pode ter escolhido, de certa forma, fazê-lo; mas não podemos, sem mais, considerar que a sua escolha foi livre. Para saber se a escolha dele reflecte uma preferência por dormir ao ar livre ou uma incapacidade de pagar um aparta-mento, temos de saber algumas coisas sobre as cir-cunstâncias dele. Fá-lo por opção própria ou por ne-cessidade? A mesma pergunta pode ser feita em rela-ção às escolhas de mercado em geral, incluindo em relação às escolhas que as pessoas fazem quando

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aceitam diversos trabalhos. Fazem-no por opção ou por necessidade?

2. A segunda objecção relaciona-se com as noções de virtude cívica e de bem comum. Uma das declara-ções mais famosas do argumento cívico foi proferida por Jean-Jacques Rousseau, o teórico político ilumi-nista do século XVIII. Ele afirma que transformar um dever cívico num bem comercializável não au-menta a liberdade, muito pelo contrário, debilita-a. A forte noção de cidadania de Rousseau, e a sua vi-são prudente dos mercados, podem parecer distan-tes dos pressupostos políticos dos dias de hoje. Te-mos tendência para considerar o Estado, com as su-as leis e regulamentos obrigatórios, como o domínio da força, e os mercados, com as suas transacções vo-luntárias, como o domínio da liberdade. Rousseau diria que é exactamente o contrário.

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