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Organizador: José Maria Vig

Vigil Opcao Pelos Pobres

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Organizador: José Maria Vigil

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Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Opção pelos pobres hoje / José Maria colaboração de Pedro Casaldaliga.. — São Paulo: Ed. Paulinas, 1992. -

1. Igreja e pobres I. 1928-111. Série.

92-2410

Vigil

Vigil (coordenador); [et ai.]; tradução Mar

- (Igreja dinâmica)

, José Maria. 11. Casaldaliga,

CDD-261.

com a i Berg.

Pedro,

83456

índices para catálogo sistemático:

1. Igreja e pobres: Teologia social 261.83456 2. Pobres e Igreja: Teologia social 261.83456

José Maria Vigil (Coordenador)

OPÇÃO PELOS POBRES HOJE

Com a colaboração de: Pedro Casaldaliga Victor Codina Giulio Girardi Júlio Lois Jorge Pixley Jon Sobrino Leonardo Boff

EDIÇÕES PAULINAS

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Título original da obra SOBRE LA OPCIÓN POR LOS POBRES © José Maria Vigil

Conselho Editorial Nalália Maccari Luzia Sena Maria Belém Neri Emílio Stein Elide T. Pulita

Tradução Marli Berg

Revisão e preparação dos originais Mônica Guimarães Reis

Editor de arte Céll& Ysaya/na

Capa São Pedro

Produção gráfica Luiz C. Araújo

EDIÇÕES PAULINAS Av. Indianópolis, 2752 04062-003 - São Paulo - SP (Brasil)

© Edições Paulinas, São Paulo, 1992

Apresentação

A Opção pelos Pobres (OP) nunca foi uma moda passageira nem é, hoje, uma simples teoria já ultrapassa­da. A OP, com tudo que sofre, é, sem dúvida, o aconteci­mento mais importante que teve íugar nas Igrejas Cristãs desde a Reforma Protestante do século XVI. Nas Igrejas Protestantes, alguns a chamam de "a Nova Reforma". Em todas as Igrejas, a OP se converteu numa "quaestio dispu­ta-ta" e conflitiva. A OP inaugura um novo ecumenismo que, por sua vez, inaugura uma nova fronteira e comu­nhão, adiante, inclusive, das mesmas Igrejas. A OP é uma comoção que sacode a vida cristã a partir de seus funda­mentos e envolve uma nova forma de ver e sentir, crer e amar e, principalmente, atuar. Por outro lado, quanto mais refletimos teologicamente sobre o tema e nos aprofundamos na Palavra de Deus, mais aparecem novos fundamentos, insuspeitados, que falam da veracidade bí­blica, teológica e pastoral da OP.

Muitos dos que não são mais jovens, confessam ter "redescoberto" o cristianismo à luz da OP e tratam de aprofundá-la, porque ela se lhes revela não somente im­portante, mas também essencial para um cristianismo que

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se pretende fiel ao Evangelho. No entanto, outros, apesar de declarações formais de aceita-lo nu alguns casos, re­jeitam a OP e a vêem como um perigoso cavalo de Tróia que tivesse se introduzido nas Igrejas,

O presente livro se insere neste contexto difícil de diálogo e busca fundamentação. Qis reunir abordagens especializadas em torno de diferentes aspectos deste tema crucial. O tratamento teologicamente interdisciplinar do assunto tornará mais fácil a tarefa do* leitores para encon­trarem alguma resposta às muitas perguntas que inquie­tam a todos. Em todo caso, os autores, com a maior boa vontade, pretenderam levar sua colaboração ao diálogo, à busca, ao aprofundamento. O conjunto do livro quer abor­dar todos os aspectos essenciais da OP, de forma que nenhum dos questionamentos mais profundos fique fora de reflexão, uma vez que as últimas "novidades" registradas neste campo sejam apresentadas de forma acessível.

Por sua concepção o complemento pedagógico, o livro poderá servir, em primeiro lugar, para a leitura e estudo pessoal, mas também seráÍ útil como material bási­co para um trabalho de formação e estudo realizado em grupo.

José Maria Vigil

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OPÇÃO PELOS POBRES: SÍNTESE DOUTRINAL

Júlio Lois

Primeira definição: O que é a OP?

A OP consiste na decisão voluntária que leva a unir-se ao mundo dos pobres, para assumir, com realismo his­tórico, sua causa de libertação integral.

Sujeito da opção: Quem deve realizar a OP?

Todos os que crêem, qualquer que seja sua condi­ção sócio-econômica.

Há quem faça a objeção que "a OP é um luxo ape­nas de quem não é pobre, porque os pobres já são pobres, não podem fazer a OP". Não é correto. Também os que já são pobres farão a opço, pois esta tem como um de seus elementos essenciais o assumir consciente e ativo da cau­sa dos pobres e esta atitude subjetiva não se deriva, auto­mática nem necessariamente, do fato de ser realmente pobre. Nem todos os pobres, pelo simples fato de sê-lo, assumiram, consciente e ativamente, sua própria causa, a qual é elemento essencial da OP.

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Há, não obstante, uma diferença digna de nota entre a opção de quem não é pobre materialmente e a de quem o é: a este não afeta a exigência de união sociológica ou de identificação com o mundo dos pobres, porque já a realiza de antemão.

A OP pode ser feita por um sujeito pessoal-indivi-dual ou por um indivíduo comunitário-eclesial. Dito de outra maneira, os sujeitos da OP são os crentes considera­dos individualmente, em grupos ou comunidades cristãs em geral, os diferentes setores eclesiais e a Igreja em seu conjunto. Uma e outra opção se distinguem. Enquanto se pode e até se deve interceder na opção do crente realizada a título pessoal — por exemplo, através da presença ativa em partidos políticos ou organizações populares concretas — este caminho está impedido para a Igreja em sua totali­dade ou em suas realizações locais.

Como sujeito da OP, a Igreja deve defender e apoiar, evidentemente, o direito que o povo oprimido ou pobre tem de se organizar para lutar a serviço de sua causa. Mais ainda, a Igreja deve denfender e orientar suas lutas sociais e políticas, envolvendo-se nos processos (ainda que sem cair numa identificação total e não crítica, o que suporia de fato renunciar ao exercício de sua própria tare­fa evangelizadora e incorrer numa confusão não desejável nem para a Igreja nem para as próprias organizações po­pulares).

No caso de um crente individual que faz a OP, é preciso falar de outra maneira: já não se trata somente de apoiar, defender e orientar, mas também de pertencer às organizações populares, como um membro a mais que se organiza junto a todos os outros, crentes ou não, embora

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este pertencer não deva supor a renúncia à crítica objetiva e leal nem à contribuição com os elementos específicos que levam à fé.

Destinatários da Opção

A opção é pelos pobres reais, os injustamente em­pobrecidos e usurpados, porém não isolada, mas coletiva e dialeticamente considerada. Trata-se dos pobres reais, tal como existem e são criados pelos "mecanismos opres­sores" (Gutiérrez).

É uma opção pelos pobres direta e imediata, no sen­tido de que a Igreja, tradicionalmente, se ocupava em ajudar os pobres aliando-se às classes ricas e ficava, as­sim, com os pobres, em forma de assistência, ajuda, cari­dade... A relação da Igreja com os pobres era uma rela­ção intermediada: passava pelo rico para alcançar o pobre. Com a OP, a Igreja busca uma relação direta e imediata (L. Boff).

Na OP, a "melhor parte" não se dirige simplesmen­te aos pobres, mas aos "usurpados que contribuem ativa­mente para que seu estado de coisas termine", às "maio­rias populares organizadas", ou a "todos aqueles que, or­ganizados ou não, se identificam com as justas causas populares e lutam em seu favor". Quer dizer, aos usurpa­dos, enquanto constituem um coletivo social e são consci­entes dele, aos "pobres com espírito" (Ellacuria).

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Conteúdos Fundamentais da OP

A OP contém vários elementos fundamentais:

1. Um elemento de ruptura que se expressa em "tro­ca de lugar físico ou social", "êxodo e desidentificação com o 'status' do poder", "ruptura" com o mundo cultural próprio e com seus critérios específicos de valoração. Trata-se de uma ruptura que corresponde, logicamente, aos que, sem serem inicialmente pobres, optam por sê-lo.

2. Um elemento de personificação e identificação que se expressa em "ir à periferia", "sair ao encontro do outro", entrar no mundo do pobre e assumi-lo como pró­prio. Este momento já afeta a todos que fazem a opção, inclusive os materialmente pobres, que nem sempre to­mam como seu, de coração, o mundo dos pobres. Trata-se de uma conversão inicial e tem caráter assintótico e vai do viver "com" os pobres (mais além de viver "para" os pobres) até o viver "como" os pobres.

3. Um elemento de assunção consciente e ativa da causa dos pobres: "solidariedade ativa com as lutas e prá­ticas populares", "defesa ativa dos direitos dos pobres", "compromisso com sua liberação integral", "afirmação incondicional da vida e rejeição incondicional da injusti­ça"... Nestes elementos, repousa a maior novidade da OP, enquanto que o assumir a causa dos pobres se con­verte em práxis histórica da libertação.

4. Um elemento de assunção do destino próprio dos pobres, que, no terceiro mundo, passa, normalmente, pela perseguição e, não raras vezes termina, historicamente, com a morte "prematura e injusta". Este elemento se con-

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verte em critério de verificação da autenticidade da perso­nificação no mundo dos pobres e da defesa ativa de sua causa. O martírio não é visto como algo conveniente, mas sim, como auge da perseguição e esta é vista como prepa­ração e modo incipiente de martírio.

Características da OP

1. Preferencial: com este termo, se pretende salvar a universalidade da mensagem cristã, mas destacando, ao mesmo tempo, que tal universalidade só pode se afirmar e realizar evangelicamente a partir da singularidade dos po­bres. "Quer dizer que ninguém deve se sentir excluído de uma Igreja com essa opção, mas que ninguém pode pre­tender ser incluído na Igreja sem essa opção" (Sobrino).

2. Solidária: este termo demarca o sentido da op­ção, tirando-lhe possíveis ambigüidades e o sabor de in­clinação paternal ao pobre que alguns poderiam lhe atri­buir. Deste modo, se acentua melhor um compromisso real com os sofrimentos e as alegrias, as lutas contra a injustiça e os anseios de libertação dos pobres (Gutiérrez). Indica também a assunção da causa objetiva dos pobres, a defesa ativa de seus direitos, o compromisso real contra a pobreza injusta...

Níveis de Significação da OP

A OP tem, como primeiro objetivo, uma dimensão histórica, porque representa o que a realiza na história real, no mundo histórico concreto dos pobres e sua pobre­za injusta, com e intenção necessária de eliminá-la. Esta dimensão histórica lhe confere uma clara significação po-

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lítica, no sentido de que situa o que a realiza num lugar determinado na correlação de forças sócias existentes, em solidariedade com os povos e oprimidos, como coletivo organizado que luta por sua libertação.

Tem, também, uma significação ética evidente, já que supõe a rejeição da situação tal como está configura­da, a indignação ante a injustiça escandalosa da pobreza, o interesse claro pelos pobres que a sofrem e o compro­misso pela transformação estrutural da realidade. Supõe, em definitivo, um "não" incondicional à pobreza injusta e um "sim", também incondicional, à luta pela justiça.

Tem, finalmente, uma significação religiosa, que po­demos desdobrar em três aspectos. Uma significação espi­ritual: no sentido de que aquele que opta pelos pobres e é coerente com sua opção, vive a história segundo a reali­dade de Deus. A OP se constitui em espaço previlegiado ou matriz, de onde pode brotar uma nova experiência de crença, uma nova espiritualidade. Na OP "se revela o mistério do Pai, se aprova a exemplaridadc definitiva da filiação de Jesus e se realiza a ação do Espírito, que segue desencadeando vida à maneira de Jesus... É uma opção teológica, porque nela aparece a própria história de Deus" (Sobrino). A OP tem, também, uma significação eclesio-lógica e teológica, porque dela brota uma nova maneira de ser Igreja, a Igreja dos pobres c uma nova maneira de interpretar a fé: a nova teologia, a teologia da libertação.

Motivações e Fundamentação da OP

1. Uma fundamentação puramente ético-racionai. É preciso afirmar que a opção pelos pobres pode estar sufi­cientemente motivada pela simples reflexão ética da reali-

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dade escandalosa e injusta dos pobres que existem de maneira concreta. A indignação ética que tal consideração pode provocar com a exigência que se segue da realiza­ção da justiça pode motivar com força a OP.

2. A honestidade em direção à realidade. A solida­riedade ativa com o pobre e o oprimido surge "do reco­nhecer a realidade latino-americana tal como é e de fazer-lhe justiça, quer dizer, de não aprisionar sua verdade com a injustiça". Quando se procede com honradez com a rea­lidade, escutam-se os clamores que vem das maiorias empobrecidas e se toma posição: "a honradez com o real se realiza não somente ao reconhecê-la como tal, mas também ao corresponder à exigência que provém desta realidade primária. A realidade tem seu próprio peso e, por isto, sua própria exigência. Uma leitura ética honrada da realidade pode e deve fundamentar e motivar de forma satisfatória a OP. Aquele que opta, respeita a verdade da realidade, se coloca no lugar que pode permitir uma cap­tação mais profunda desta verdade e participar com au­tenticidade na história real. E, ao contrário, a falta de honestidade com a realidade, impede de escutar o desafio dos pobres e sentir a urgência da opção e se relacionar corretamente com a história (Sobrino).

3. No entanto, para os que têm fé religiosa, a moti­vação última, mais decisiva e plena, para optar pelos po­bres é a que proporciona a fé: uma motivação teologal. É o que C. Gutiérrez afirma com contundência: "Digamo-lo com clareza: a razão última desta opção está no Deus no qual cremos. Dizemos razão última para o discípulo de Cristo porque pode haver, e há, outros motivos válidos: a situação do pobre hoje, o que a análise social deste estado de coisas pode nos ensinar, a potencialidade histórica e

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evangelizadora do pobre etc. Mas, em última análise, a razão da solidariedade com os pobres — com sua vida e sua morte — está ancorada na nossa fé em Deus, no Deus da vida. Trata-se, para aquele que crê, de uma opção teocêntrica, baseada em Deus".

4. Acrescentaríamos uma fundamentação pneumato-lógica da OP. A opção cristã pelos pobres está baseada na afeição de Deus por eles, expressa na própria opção de Jesus, que continua sendo normativa para todos os que crêem. Mas também está na presença atual do Espírito de Jesus, que nos leva a escolher hoje mediações concretas diferentes das que podia e oferecia a situação histórica da Palestina do século I da nossa era. A afeição de Deus pelos pobres se expressa agora sacramentalmente na OP, vivida pelos que crêem que, conduzidos pelo dinamismo do Espírito, seguem as pegadas de Jesus num contexto histórico diferente. Desta forma, a opção pelos pobres nos introduz na vivência do mistério trinitário, na vida de Deus na história: optando pelos pobres em virtude da for­ça do Espírito, vivemos como filhos (no Filho, quer dizer, no seguimento de Jesus) de Deus Pai.

Motivação sem fé religiosa e Motivação cristã da OP

A OP pode ser praticada e vivida segundo concep­ções ideológicas diferentes. Todos nós conhecemos pes­soas que, sem nenhuma motivação cristã, optam pelos pobres, entrando em seu mundo e defendendo sua causa, dando até a vida por serem coerentes com sua opção.

A opção cristã pelos pobres é motivada pela fé, teo-logicamente baseada e esclarecida pelo espírito das bem-

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aventuranças, o qual além de lhe conferir especificidade cristã, lhe dá elementos importantes para a realização da opção: a libertação dos injustamente empobrecidos.

As motivações que a fé proporciona àquele que crê, para optar pelos pobres, não excluem as outras motiva­ções que, sem dúvida, aquele que crê tem, como assinala Gutiérrez, nem as outras que se unem a elas como novas parcelas de uma soma. Talvez fosse mais correto dizer que todas as outras motivações, vistas à luz da fé, sem perder sua consistência própria, readquirem nova face e ganham perfil teológico: situação intolerável de injustiça se converte em realidade que se opõe ao plano de Deus, em pecado; a luta pela justiça, em missão a serviço do reino de Deus; a força histórica do pobre se relaciona com a estratégia salvífica de Deus sempre intermediada por sua afeição pelo pobre... A fé dá, assim, plenitude e radi-calidade suprema e qualquer outra motivação e propor­ciona uma nova e decisiva fundamentação que, sem dúvi­da, torna mais premente a mesma opção. Os valores espe­cificamente cristãos, precisamente por serem cristãos, po­dem ser universais e não exclusivos dos cristãos batizados.

Significação política da OP

A OP tem uma dimensão política, porque inclui o elemento já citado de solidariedade com os pobres e luta contra sua pobreza injusta. A OP não se esgota na entrada no mundo dos pobres e na identificação com sua vida (viver com e/ou como os pobres); se fosse assim, a OP teria uma significação de inclinação evidentemente teste­munhai. A OP supõe, também, assumir ativamente a cau­sa dos pobres e partilhar seu destino. Isto inclui:

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O esforço por conhecer a realidade em profundida­de, analisando-a segundo os métodos mais corretos que as ciências sociais proporcionam, tratando de identificar as causas básicas, os mecanismos geradores e os canais reprodutores da pobreza injusta. Só se pode lutar eficaz­mente contra o que se conhece.

A solidariedade real com o coletivo dos pobres por quem se opta: solidariedade com seus justos interesses objetivos, com suas práticas orientadas à consecução des­ses interesses e com as organizações que planejam e reali­zam estas mesmas práticas.

Naturalmente que, assim delineada, a OP se conver­te numa decisão política que coloca a pessoa ou institui­ção que a aceita num lugar concreto da correlação exis­tente de forças sociais, ao lado dos pobres, assumindo sua práxis histórica de libertação, em confronto com os inte­resses objetivos dos ricos-opressores, isto é, dos estrutu­ralmente responsáveis pela pobreza injusta combatida.

OP e nova experiência política

O compromisso libertador, através do qual a OP se faz historicamente operante introduz o cristão que opta numa experiência política nova e conflitante, com exigên­cias também novas de racionalidade científica. O cristão se choca com a autonomia e densidade próprias do mun­do do político e suas exigências, espaço daquele que ti­nha, habitualmente, se sentido à margem em muitas oca­siões, inclusive por ser, supostamente, coerente com sua condição de crente.

O "êxodo", o "sair ao encontro do outro", a "ruptu­ra com nossas categorias mentais e com nosso mundo

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cultural em geral" se concretizam neste nível num "situar-se de maneira clara no mundo do político" (Gutiérrez). A OP conduz a uma nova experiência política.

A primeira característica desta nova situação con­siste empossar de uma concepçãoparcializante ou setorial do compromisso político a outra mais englobante e totalizadora. O político deixa de ser um setor ou campo limitado da existência humana (ao lado de outros espaços, como o familiar ou profissional) ou uma atividade para momentos livres ou para profissionais e se transforma numa dimensão que abrange e condiciona toda a ocupa­ção do ser humano. "Hoje, os que optaram por um com­promisso libertador experimentam o político como uma dimensão que abrange e condiciona de forma exigente toda a ocupação humana. É o condicionamento global e o terreno coletivo da realização humana" (Gutiérrez).

A segunda característica da nova situação é a exi­gência captada de um conhecimento rigoroso da realida­de, derivado do uso dos instrumentos de análise que pro­porcionam as ciências sociais. A OP e o compromisso libertador em que esta se traduz não podem se realizar sem pretensões de eficácia histórica, pois o que está em jogo é a erradicação da pobreza injusta. A indignação ética não é suficiente, nem o conhecimento meramente intuitivo da realidade.Uma moral social de princípios con­cretizada em expressões como "a raiz de todos os males é o egoísmo", "é preciso construir uma sociedade justa, igualitária e fraterna" etc; é insuficiente e desligada dos contextos reais concretos, deixando-nos completamente desarmados frente à tarefa de transformação do político. "Uma formação insistentemente principista e não históri­ca levou os cristãos a serem pouco sensíveis em geral e

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até hostis aos propósitos de racionalidade científica que abrem caminho no campo do político. No entanto, aque­les que se encontram comprometidos na luta por uma sociedade diferente, sentem a urgência de conhecer, com o maior rigor possível, os mecanismos da sociedade capi­talista... Só isto tornará sua ação eficaz. Os vagos e líricos chamados à defesa da dignidade da pessoa humana, que não levam em conta as causas profundas da atual ordem social e as condições concretas da construção de uma sociedade justa são totalmente extemporâneas e a longo prazo, acabam sendo maneiras sutis de enganar e se enga­nar" (Gutiérrez).

Gutiérrez adverte, com razão, que "custou muito e custa, todavia, aos cristãos, entrar nesta mentalidade". É, contudo, freqüente encontrar nos grupos e comunidades cristãs pessoas que acham que, para enfrentar a realidade e atuar no mundo do político, basta o Evangelho e os princípios éticos que se derivam dele. O resto — dizem — é mera aplicação à realidade mutante. Também são muitos os que pensam que acorrer à mediação das ciênci­as sociais é acorrer a empréstimos ilegítimos que condu­zem, inevitavelmente, a contaminações ideológicas inad­missíveis.

A terceira característica que traça o perfil da nova experiência política é a conflitividade. "Estamos pouco acostumados em ambientes cristãos, a pensar em termos conflituais e históricos. Ao antagônico, preferimos uma ecumênica reconciliação, uma evasiva eternidade." O cer­to é que o processo libertador que leva à dinâmica da OP é um processo inevitavelmente conflitivo, dada a conflitividade que configura a realidade atual dos pobres: "o terreno do político, tal como se apresenta hoje, implica

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confrontos... entre grupos humanos, entre classes sociais com interesses opostos. Ser artesão da paz não apenas dispensa de se estar presente nesses conflitos, como tam­bém exige que se tome parte neles se se deseja superá-los a partir da raiz" (Gutiérrez).

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A OPÇÃO PELOS POBRES E O DEUS BÍBLICO

Jorge Pixley

Introdução

—Há muitos cristãos que pensam que a OP é algo moderno, uma novidade destes últimos dez ou vinte anos, algo que surgiu com a Teologia da Libertação e sua espi­ritualidade. A Bíblia confirma este modo de pensar?

— A expressão "Opção pelos pobres" é, na verda­de, uma expressão moderna. Mas a realidade que se assi­nala com tal expressão está no próprio coração da Bíblia, ou, talvez devêssemos dizer, está no próprio fundamento da Bíblia. Toda a Bíblia parte da revelação de um Deus que fez opção por camponeses que eram camponeses opri­midos; uns, em Canaã, oprimidos pelos reis de várias ci-dades-estados que ali havia e outros, no Egito, pelo gran­de imperador Faraó. O próprio Deus, o Deus da Bíblia, se revela, pela primeira vez, como o Deus que opta por estes pobres específicos, camponeses e trabalhadores da cons­trução. Esta é uma opção no sentido mais estrito da pala­vra: toma partido a favor deles e contra seu opressor.

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— Então, a visão da Bíblia como algo puramente espiritual, que só nos fala da graça de Deus e é alheia a todo conflito social e, conseqüentemente, a todo conflito político, não é uma visão realista da Bíblia ?

— Sempre existiu, tanto nos tempos bíblicos como nos modernos, um setor da população de qualquer nação que trata de negar a existência de conflitos de profundida­de na área da religião — como na área do centro de trabalho ou de qualquer outra área da vida. Esta religião, que ignora ou pretende ignorar o conflito que é parte da vida social como a conhecemos desde o princípio da his­tória, também está na Bíblia, pois se usa Jeová, o Deus da libertação, para legitimar uma nova e opressora socie­dade.

Por exemplo, quando Salomão constrói o templo, obriga os camponeses a dedicarem vários meses do ano ao trabalho de sua construção e lhes diz que este é um templo para Jeová, o Deus que os libertou da servidão ao Faraó egípcio. Salomão se apresenta, então, como repre­sentante de um Deus, Jeová, que já não tem conflitos. Teve conflitos em outra era, com um Deus estrangeiro, mas agora representa todo o povo, o povo camponês e o da capital, Jerusalém, e os da capital têm que organizar e supervisionar o trabalho dos camponeses que vão cons­truir este enorme templo para o Deus Jeová que, em outra época, libertou seus pais da opressão. Assim, nega a reali­dade da opressão que estão vivendo em nome da unidade nacional sob o Deus que os libertou.

—Podemos dizer que, para entender a Bíblia, para captar sua mensagem mais profundamente, necessitamos também estar atentos à infra-estrutura sócio-econômica e

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sócio-política do povo de Israel dentro do qual Deus se revelou ? E assim ?

— Realmente. Não poderemos entender os vários níveis de significação na Bíblia — como em qualquer outro texto da antigüidade — sem analisar o contexto social no qual surgiu. No caso da Bíblia, descobrimos, neste século, especialmente na segunda metade, esta rea­lidade. Sabia-se há dois, três século, que existem diversas correntes teológicas e políticas dentro da Bíblia que não fazem parte de um só todo. Gerhard Von Tad, o famoso especialista alemão em Bíblia, fala de "teologias" da Bí­blia. O que descobriu, mais recentemente, é que não são simplesmente correntes paralelas, mas que, freqüentemente, quando se analisa o contexto social no qual surgiram, resultam ser teologias em conflito. Não apenas teologias diferentes, mas teologias em conflito.

A OP no começo da revelação bíblica

— Vendo que há, na Bíblia, estas correntes parale­las e, não poucas vezes contrapostas e até mutuamente excludentes, vamos nos remontar ao princípio: tratemos de procurar qual é a corrente primeira, a original, a "primeira teologia" ou a manifestação primitiva de Deus, que, teve de se produzir nas origens do povo de Israel, não forçosamente junto aos relatos da criação, que apa­recerão muito depois... Como foram essas origens do povo de Israel e esta primeira manifestação de Jeová Deus na história ? Estas origens e esta primeira manifestação têm algo a nos dizer em relação à OP?

— É importante reconhecer o que disse das narrati­vas sobre a criação. Mas elas são criadas quando já há um

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mundo construído e é preciso explicar quem é o Deus que construiu este mundo. A construção do "Mundo", estou agora me referindo à construção de uma sociedade orde­nada, que corresponde a um mundo, é anterior à necessi­dade de explicar suas origens.

No caso de Israel, a visão que se impôs na segunda metade do século XX e que hoje é amplamente aceita no terceiro mundo (eu diria: na América Latina, na África do Sul, na Coréia, nas Filipinas...) é, no entanto, uma cor­rente minoritária dentro do academicismo do primeiro mundo. Esta corrente reconhece na Bíblia que o povo de Israel nasce de um movimento de revolta na sociedade cananéia.

Em Canaã, nos séculos XIV e XIII antes de Cristo, havia uma organização social com múltiplos reis de cida-des-estados. Cada rei tinha seu Estado, às vezes, indepen­dente e, às vezes, sujeito a um imperador — na maioria dos casos, em Canaã, ao rei do Egito, o Faraó. Estes reis viviam da acumulação da produção dos camponeses, que eram organizados em aldeias controladas pelos respecti­vos reis. Chegou um momento — talvez o século XIV ou princípios do século XIII — em que a estabilidade desta ordem foi se desmoronando por conflitos entre os reis e por problemas no império egípcio que se refletiam em Canaã. Sabemos pouca coisa de concreto a respeito de como se deram as revoltas que aconteceram na raiz do desmoronamento da ordem social anterior. Mas sabemos que, destas aldeias submetidas a reis, surgiu um movi­mento bem amplo de camponeses que deixavam suas ter­ras para inaugurar terras até então não cultivadas na serra. Terras que eram menos atraentes, porque estavam nas encostas das serras e não na superfície plana das planí-

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cies, mas que ofereciam uma forma de fuga aos proble­mas de exploração que havia na planície.

Este movimento, relativamente desordenado, rece­beu sua expressão religiosa e ideológica quando um gru­po de escravos chegou a Canaã procedente do Egito e que tinha tido uma experiência de Jeová. Jeová Deus foi co­nhecido pelo grupo em sua revolta contra as condições de opressão sob as quais o rei do Egito estava fazendo suas obras. Isto foi no tempo do Faraó Ramsés II. Eles também eram camponeses e haviam sido obrigados a realizar tra­balhos forçados. Rebelaram-se contra esta exploração, mas sua rebelião não foi meramente política — se é que algu­ma vez existiu tal coisa. Não sabemos se a rebelião das aldeias camponesas de Canaã foi meramente política, mas sabemos que o grupo se rebelou contra o Faraó do Egito como se fosse uma cruzada religiosa, como movimento encabeçado pelo profeta de Jeová, Moisés, que interpreta­va a vontade de Jeová como sendo a de libertar seu povo.

Os grupos que se rebelaram no Egito não eram, contudo, povo. Chegaram a ser povo na experiência de rebelião contra as condições de opressão que sofreram no Egito. O grupo saiu do Egito e não podia estabelecer-se perto de suas fronteiras, por medo e também porque o deserto de Sinai não oferecia boas condições para campo­neses. Então se transferiram às terras férteis mais próxi­mas, que eram as mesmas zonas nas quais os camponeses cananeus abriram novas terras de trabalho nas serras.

Em Canaã, estas duas correntes se encontraram. E formaram um povo que se chamou Israel. Sendo assim, "Israel" é um nome que surge das aldeias de Canaã, en­quanto que o Deus de Israel era "Jeová", que é o nome do Deus da libertação do Egito. Esta dualidade entre um povo

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que se chama "Israel", mas que se considera o povo de "Jeová", reflete a realidade desta experiência: que eram dois movimentos de libertação de grupos camponeses, que se encontraram e descobriram que sua luta era parecida e encontraram em Jeová, o Deus que Moisés havia interpre­tado e nas leis que Moisés lhes havia dado em nome de Jeová, o que eles acreditavam em comum, mesmo os que não haviam conhecido Jeová antes. Sua experiência de vida tinha sido muito parecida, já que era a experiência de vida dos que saíram do Egito. De forma que, os que saí­ram do Egito e antes talvez se chamassem "levitas", quando chegaram a Canaã, assumiram o nome de "Israel" dos que já estavam em Canaã, enquanto que os de Israel, que talvez antes chamassem Deus de "Ele" — nome que está contido como parte de "Israel" — agora reconheciam que Ele não era exatamente seu Deus, mas Jeová, o Deus que o profeta Moisés tinha interpretado.

— Então poderíamos dizer que Jeová não se mani­festou pela primeira vez revelando conteúdos teológicos ou dogmáticos, nem revelando alguma doutrina ou mo­ral, mas que a ação reveladora primeira do Deus bíblico, a ação reveladora primeira do Deus no qual, os que crê­em, consideram a Bíblia como Palavra de Deus é uma incitação à liberdade feita aos pobres oprimidos?

— Correto. E as doutrinas — que eram mais leis para ordenar a vida social e que hoje são encontradas no Pentateuco, no Decálogo, por exemplo —, brotam tam­bém de uma experiência sociopolítica de libertação, uma experiência que é, verdadeiramente sócio-política, em vez de religiosa.

— Fala-se dos "ápiros". Quem eram? "Ápiros" e "hebreus" representam o mesmo grupo?

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— A palavra "ápiro" existe em várias formas nos diversos idiomas semíticos da antigüidade. "Ápiro" e "hebreu" são variantes da mesma palavra em idiomas aparentados. Houve muita discussão, mas parece que, atualmente, chegou-se ao consenso de que esta palavra era usada para pessoas que se colocavam ou eram coloca­das fora da ordem social estabelecida. Em alguns casos eram, certamente, salteadores: simplesmente isto, bandi­dos. Mas, em outros casos, eram como os que se rebelaram no Egito contra o Faraó, sob a liderança de Moisés: um grupo organizado, com um plano de ação, só que, do ponto de vista dos egípcios, eram ápiros, hebreus... A partir de um certo momento eles mesmos assumiram a palavra "ápiro". A palavra se usava tanto no Egito como em Canaã e na Mesopotâmia. Hoje ficou reduzida ao nome do idioma. Não era, originalmente, termo lingüístico, não se referia a um idioma, mas a um movimento ou a diversos movimentos de rebelão.

O "Projeto de Deus"

—Esta "incitação à liberdade" de seu povo, com a qual Jeová começa sua revelação na Bíblia não olhava simplesmente para o passado (fugir da opressão), mas também para o futuro: para criar um projeto de socieda­de alternativa às sociedades opressoras do Egito e de Canaã, uma sociedade fratena e igualitária segundo a vontade de Deus, onde não houvesse sequer a possibili­dade de injustiça e opressão... Como era este "projeto de Deus" para os pobres, para seu povo?

— Bem, o que sucedeu quando estes dois grupos se encontraram e formaram o povo que chamaram de Israel

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foi sua organização em tribos, em alianças de tribos. No fundo, mais importante que a tribo era o clã, que era uma grande família, de primos, netos e até mais do uma famí­lia de três gerações. Cada família ou clã podia ser dono de uma região, de um vale, de uma colina ou podia ter sua al­deia, onde se reunia e onde o patriarca ou os patriarcas dirigiam a vida do clã.

O interessante do " projeto" é que os clãs procura­vam estabelecer a igualdade entre si. Um primeiro requi­sito, em especial, para pertencer a Israel era jurar lealdade exclusiva a Jeová, a nenhum outro Deus e a nenhum ou­tro rei, porque Jeová é rei. Diferente dos deuses do Faraó e dos deuses de Canaã, que também acreditavam que Deus era rei, Israel acreditava que, sendo Jeová rei, era rebelião pretender ter um rei humano: já tinham seu rei em Jeová. A primeira pedra da constituição política da lei revelada do Sinai era o mandamento "não terás deuses estranhos diante de mim", que era dirigido contra aqueles que pu­dessem pretender cultuar deuses que admitiam ter seus lugar-tenentes nos reis das cidades cananéias ou do impé­rio egípcio.

Um dos pontos, o primeiro, o fundamental, da nova ordem era este. Já disse algo sobre a igualdade entre os clãs: não havendo rei, os anciãos de cada clã, quando fosse necessário, por algum motivo de interesse para vá­rios clãs, se reuniam em assembléia e, coletivamente, de­terminavam, por consenso, a postura que se deveria assu­mir. Para se defender, não criaram um exército, mas se organizavam em milícias de camponeses. Para organizar a vida social contra os anti-sociais — pessoas que mata­vam ou roubavam ou adulteravam — serviam-se de um sistema jurídico popular de justiça, onde os anciãos ou

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pais de família ouviam os casos e determinavam as penas. Não havendo prisões, os castigos podiam ser administra­dos pela própria comunidade. Dessa forma, organizou-se uma vida igualitária. (Compreendo, neste caso, por "igua­litária", a igualdade entre famílias, porque tratava-se não só de indivíduos que acreditavam em Deus, mas também de famílias que viviam dentro do sistema de tribos e de clãs que era Israel. Ou seja, que a diferença da ideologia política da revolução francesa que conhecemos em tem­pos modernos, onde a igualdade quer dizer igualdade de cidadãos, no caso da igualdade que aconteceu em Israel era de famílias ou clãs).

— Este "projeto de Deus" conseguiu se realizar socialmente em algum momento?Durante quanto tempo?

— O "projeto", realmente logrou se realizar. E, mais ou menos, como projeto excludente de outros projetos alternativos, durou uns duzentos anos: do momento da fundação de Israel, que foi, aproximadamente no ano 1200 antes de Cristo até o aparecimento de Saul e David como reis de Israel. Geralmente se pensa que Davi surgiu como rei no ano 1000, mais ou menos. Durante estes duzentos anos, o projeto teve vigência restrita. Depois, continuou existindo por muito mais tempo como rebeldia, exigência de renovação. Mas, durante duzentos anos, foi o projeto realizado de Israel.

— Podemos pensar que a instauração da monar­quia foi o começo do abandono do projeto de Deus?

— Creio que havia condições quase naturais que levaram a romper a igualdade que se desejou com as leis naturais e com a religião de Jeová. Certamente alguns clãs, por contigências da vida, se apropriaram de vales

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mais férteis ou planícies melhores, onde a chuva caía mais abundantemente, ou foram mais trabalhadores, fizeram melhores semeaduras ou não houve tanta erosão destruin­do suas terras... Por uma ou outra razão, certos clãs fo­ram ficando mais ricos, mais poderosos que outros e as leis que defendiam a igualdade não puderam, com sua simples força legal e ideológica, preservar Israel destas diferenciações normais. Deste modo chegou um momento em que um clã importante, como o de Efrata e uma famí­lia como a de David, que surgiu dos clãs, conseguiram impor-se não somente sobre a tribo de Judá, que era sua região, mas sobre todas as tribos. O que não se deu pro­priamente sem conflitos.

O Projeto de Jesus

—Desta época até Jesus, o espaço de tempo é mui­to grande, mas poderíamos ligar uma coisa à outra, lem­brando que Jesus retoma o "projeto de Deus" que ele chama Reino de Deus... "

— Realmente, o espaço de tempo é muito grande. São mil anos. E em mil anos muitas coisas se modificam, até numa sociedade tradicional, na qual não se modifica­vam tão rapidamente como no mundo moderno...

No tempo de Jesus existia um império, o império romano e um sistema social completamente desconhecido na época dos clãs e das tribos de Israel. É o sistema da polis ou a cidade greco-romana, helenística. Havia na Pa­lestina, no tempo em que Nosso Senhor viveu, um grupo importante de cidades helenísticas. Eram cidades organi­zadas de latifundiários. Os cidadãos de uma cidade helenística eram, cada um, chefes de família e possuíam

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terras; embora não vivessem nelas eram quem as explora­va. Havia um mordomo* que talvez se encarregasse de administrá-las, como vemos nas parábolas de Jesus. Nes­tas, a vida que se reflete não é uma vida tradicional de clãs, embora Jesus vivesse na Galiléia que era, justamen­te, uma das regiões mais tradicionais da Palestina. Mas, apesar disto, Jesus conhece uma atividade rural que já está organizada a partir de famílias autônomas, mas com base nos latifundiários, que contratam jornaleiros e que têm mordomos que vigiam o trabalho dos jornaleiros.

Então, a situação que o povo de Israel vive na época de Jesus, em certos aspectos, difere, profundamente, da situação social do tempo de Moisés. No entanto, o papel de Jesus tem semelhanças com o de Moisés. O que Jesus fez foi organizar um pequeno movimento com a intenção de influenciar a vida das aldeias da Galiléia. Não fez experiência nas cidades. Ele era de Nazaré e os lugares por onde andou eram povoados de pescadores como Bethseda, em Carfanaum, ou aldeias de serra, como Na­zaré e Canaã. Seu campo de ação foram estes povoados, que ficavam muito perto de cidades greco-romanas nas quais, até onde sabemos, hoje, foi onde ele entrou (só se menciona Cesaréia de Filipe como um lugar por onde passou, mas é o único lugar, a única cidade helenística da qual temos notícia dentro da qual Jesus atuou). Isto signi­fica uma estratégia através da qual Jesus se ocupa de influenciar a vida destas aldeias, nas quais vivem jorna­leiros que trabalham nas fazendas dos cidadãos das cida­des greco-romanas...

* Mordomo: administrador de terras.

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O público que ouve Jesus também abrange jornalei-ros das parábolas, que trabalham nas fazendas dos cida­dãos das cidades gregas, embora Jesus não tenha entrado em tais cidades no curso normal de sua atividade. Não se nota, na prática de Jesus, um propósito de restaurar a família.Ele procurou criar um movimento no qual todos fossem irmãos. Neste sentido, seu movimento está um pouco mais perto da modernidade que no tempo de Moisés. Ele usa algumas expressões que soam, inclusive, antifamiliares: "aquele que ama pai ou mãe, ou filho ou filha mais do que a mim não é digno de mim..." (MT 10,37), e outras expressões de que todos nos lembramos. O que indica que ele não via a família como base social, mas o grupo dos que aderiam ao que ele chama de "Reino de Deus".

"Reino de Deus" é sua idéia da sociedade que adere ao projeto de Jeová. No tempo de Jesus, já não se usava o nome de Jeová. Teria sido excessivamente escandaloso, porque se considerava irreverente (não só irreverente, mas blasfemo) mencionar o nome de Jeová. Mas o Deus de Jesus, quando ele fala do "Reino de Deus" é um Deus tirado da experiência bíblica, das origens de Israel. Desta forma, deveríamos pensar que, se ele tivesse tido a liber­dade de usar este nome, teria falado do reino de Jeová. Não era sua intenção reproduzir exatamente o que existiu há 1.200 anos, a não ser as novas condições de desorgani­zação das famílias e das aldeias, quando montanhas intei­ras se tinham transformado em fazendas, propriedades de latifundiários. Nestas novas condições, Jesus está tratando de renovar, de tornar vigente, o "projeto do Reino de Jeová", que foi o projeto de Moisés, Josué e Gedeon ti­nham liderado há uns 1.200 anos antes de Jesus.

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— Quer dizer que a "Boa Nova para os pobres", o "Reino de Deus" que Jesus prega é, na realidade, aquele mesmo projeto de Deus", aquele "Reinado de Jeová" — reinado direto, sem reis intermediários exploradores — que constituía a utopia da sociedade alternativa, frater­na, igualitária, para cuja consecução, Jeová se revelou àqueles marginalizados —oprimidos ("apiros") no Egito e os encitou a se rebelar e a se libertar...

— E isto tem um sentido de conflito com o Deus do templo e com os deuses do império. Conflito que se des­faz na Galiléia com os fariseus, que representam o Deus do tempo, em Jerusalém, com as próprias autoridades do templo (os sacerdotes, escribas, o Sinédrio de Jerusalém) e com Pôncio Pilatos, que era o procurador de toda a província, que tinha sua sede em Cesaréia. Jesus nunca foi à Cesaréia, mas Pôncio Pilatos chegou a Jerusalém, coincidindo com a chegada de Jesus, por ser tempo da festa de Páscoa.

OP e Conflito

— Você falou do conflito com os deuses do império. Isto lembra o tema dos "outros deuses". Na Bíblias está o Deus Jeová, mas também estão os outros deuses. O tema da idolatria...

— Por um lado, na própria origem da religião bíbli­ca, já na primeira manifestação de Jeová, os outros deuses por excelência são, no Egito, o Faraó, que se considera Deus e, em Canaã, os reizinhos e o Deus Baal, que servia de legitimação destes reis. No tempo de Jesus, ele fala do Deus Mamón, que é uma expressão peculiar de Jesus que parece querer referir-se não somente a deuses religiosos,

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mas também a deuses que se apresentam, como diríamos hoje, "seculares", por exemplo, o dinheiro. É um fenôme­no que não é moderno, embora tenha se agravado nos tempos modernos, quando a vida e a morte dos trabalha­dores se submete à concorrência. Jesus, que não tinha ainda possibilidade de fazer uma análise sociológica, re­conheceu, todavia, a presença do deus dinheiro em seu meio. Assim, aquele rico que o amou e que lhe havia perguntado o que devia fazer para herdar o Reino de Deus, é obrigado a ir e vender seus bens, dá-los aos pobres, voltar e seguir a Jesus, se deseja herdar o Reino de Deus (Mc 10,17-22). Ou um, ou outro.Não podia ter dois se­nhores.

— Você falou de duas correntes na Bíblia, a cor­rente profética do Deus Jeová e a corrente mais institucional, mais sacerdotal, que torna legítima a mo­narquia... Esta duplicidade de correntes teológicas en­contradas está presente ao longo de toda a Bíblia?

— Creio que sim, que em todas as partes do Antigo Testamento encontramos aqueles que querem pegar a fé popular e colocá-la a serviço de projetos antipopulares e isto está sempre encoberto por uma linguagem religiosa que pretende separar Deus do povo. Mas, se se examina a estrutura religiosa que se construiu, damo-nos conta de que não é uma estrutura a serviço dos interesses do povo. Encontramos isto, por exemplo, no caso de Salomão, que mencionamos antes, confrontado com Jeroboão e Ajias. Encontramos isto também no caso Jeremias, que ataca o templo, dizendo que "fizestes da casa que leva meu nome um covil de ladrões" (Jr 7,11). E o encontramos em Jesus, quando cita estas palavras de Jeremias ao questionar a

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legitimidade do Templo, porque vê o Templo como um projeto que não está a serviço do Reino de Deus, que ele entende que é o "projeto" do Deus verdadeiro. Foram as autoridades do Templo, em combinação com as autorida­des imperiais, que crucificaram Jesus.

— O conflito destas duas correntes que atravessam toda a Bíblia é, na realidade, o mesmo conflito que Jesus também viveu: o Templo, os fariseus, os sacerdotes e as autoridades romanas contra o anúncio do Reino de Deus, contra o "projeto de Jeová", opostos à construção de uma sociedade alternativa, justa, fraterna, igualitária, participativa...

— Exato. Os inimigos de Jesus estavam contra o "projeto de Jeová" que ele estava retomando, que era um projeto popular, igualitário, de serviço de um para com o outro, onde "a ninguém chameis Pai, porque tendes um só Pai" (Mt 23,9). Jesus poderia igualmente ter dito — em­bora não fosse um problema naquele momento — "a nin­guém chameis de rei, porque só tendes um rei..."; "e vós os chamareis de irmãos e irmãs". É um projeto igualitário que Jesus promove e o nome que ele dá ao projeto é "Reino de Deus", onde, como dissemos, entende-se que Deus é o Jeová que promoveu a saída dos escravos do Egito.

— Vamos concluir. Houve um conflito entre Jeová e o Deus Baal, entre os ápiros e os reizinhos de Canaã, entre a monarquia e o profeta Natan, de Jeová... Estas correntes permanecem em conflito no Antigo Testamento e Jesus é vítima do mesmo conflito. Poderíamos dizer que o conflito que vivemos hoje é um prolongamento?

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— Talvez a palavra "prolongamento" não fosse a mais acertada. Poderíamos dizer que é outra "manisfesta-ção" do mesmo fenômeno, isto é, do fenômeno de que, por um lado, temos a fé de um povo que luta porque se recusa a viver oprimido para sempre e que crê que Deus, tampouco, quer que viva para sempre oprimido e, por outro lado, temos o projeto de alguns que vêem a vida como algo onde os conflitos são estimulados por agentes provocadores e não refletem interesses em conflito. Neste segundo caso, Deus vem a ser um Deus que bendiz as estruturas sociais, que se compreende não serem produto­ras de conflito em si mesmas, já que conflitos nascem quando chegam agentes estranhos para desencadeá-los.

Estas duas correntes, a de um Deus que oculta os conflitos de interesses, sempre em benefício que vivem do trabalho dos outros, e a de um Deus que excita as lutas do povo para livrar-se das opressões às quais vivem sub­metidos, continuam estando presentes hoje em dia e seu conflito adquire manifestações diferentes.

Dentro da Igreja, o conflito se produz entre os que veneram o Deus da alienação e tranqüilidade e os que veneram o Deus do compromisso e libertação, mas é o mesmo conflito que vemos fora da Igreja, nas lutas dos operários contra os patrões, dos guerrilheiros revolucio­nários contra forças repressivas... Dentro da Igreja, esta mesma luta, que se reflete nas esferas seculares, assume características próprias e é também a mesma luta que se refletiu na religião e na sociedade do tempo de Salomão; mas não deixa de ser o mesmo conflito.

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OPÇÃO PELOS POBRES E SEGUIMENTO DE JESUS

Jon Sobrino

O amor e os pobres na Igreja

Creio que é verdade que sempre se manteve, na autocompreensão da Igreja, que o principal é o manda­mento do amor ao próximo e que, moralmente, este pró­ximo foi considerado como o necessitado, colocado, às vezes, claramente, como o pobre. Que o mandamento do amor é aquele que dá identidade ao cristão e fica claro a partir de Jesus, porque ele o diz explicitamente. Também Paulo e sua teologia enfatizam, no capítulo 13 de sua primeira carta aos coríntios, que nesse amor se joga a identidade cristã. Certamente, a primeira carta de João e a primeira de São Tiago o reafirma e o torna concreto, ain­da mais entre os pobres. Isto é muito claro, desde o prin­cípio.

Também é claro que, em diversas épocas da história da Igreja, este amor ao próximo foi enfatizado como amor aos pobres e aos fracos e, como se sabe, há, a respeito, inúmeros textos de Padres da Igreja. É claro também que santos importantes, renovadores, como, por exemplo, São Francisco de Assis, voltaram-se para ele.

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Mas, por outro lado, acredito que tenha havido dois tipos de desdobramento em geral, na história da Igreja, que tenderam a relativizar o que é a prática do amor e, de concreto, a prática do amor ao próximo, o que hoje cha­mamos OP.

Um primeiro desdobramento seria a ortodoxia. Pela necessidade de esclarecer quem realmente é Deus, quem é Jesus Cristo etc, colocou-se a ênfase — principalmente para afastar-se das heresias — em formular a fé correta­mente e em elevar esta formulação correta à doutrina. Quase sem sentir, embora nunca se tivesse negado que a identidade cristã vem da prática do amor, sabemos que se deu uma impotância muito grande, eu diria excessiva, isto é, pouco dialética, ao aspecto doutrinai, com relação à prática do amor.

O outro desdobramento era o de constituir-se como uma Igreja forte e poderosa, que tem seu aspecto pecami­noso, é óbvio, mas também tem seu aspecto positivo, ao menos na intenção. Quer dizer, como constituir uma igre­ja forte e poderosa para criar uma cultura cristã, um tipo de sociedade cristã através da qual a fé pudesse se trans­mitir com mais facilidade. Para isto, a Igreja, procurou ter, ao longo da história, meios, e isto a introduziu — consciente ou inconscientemente — no mundo do poder, dos meios poderosos, o que, objetivamente, a distanciava dos pobres deste mundo. Sem dúvida, isto — que é falado de forma muito generalizada — explica por que, pouco a pouco, a prática da caridade e, mais concretamente, a prática da caridade com o pobre, foi-se desviando, ou, mais ainda, mantendo-se como problema concreto regio­nal, ético da Igreja, mas não como problema central, não como realidade teologal.

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Então, neste contexto, é preciso valorizar o que ocorre hoje, voltar a pôr em primeiro plano a OP e de ir à origem para fundamentá-la. Esta origem está, sem dúvida em Jesus de Nazaré.

Jesus, os pobres e Deus

Como ver a OP em Jesus de Nazaré e como ver a centralização da OP no próprio Jesus? Creio que não se trata, fundamentalmente, de encontrar alguns textos, em­bora, certamente existam, para ver se Jesus fez ou não a OP. Creio que a OP de Jesus está num nível muito mais profundo e fundamental. Na própria visão que Jesus tem de Deus, aparece esta relação, essencial entre Deus e os pobres deste mundo. Como bom judeu, Jesus herdou o melhor das tradições deste povo e nisto se pode encontrar, como é do conhecimento de todos, o acontecimento fun­damental do êxodo como revelação de Deus, de maneira que ele se revela não só com oportunidade, mas através de um povo de pobres. Em toda a tradição do Antigo Testamento, especialmente nos profetas — inclusive lingüisticamente, quando, através dos profetas fala de "meu povo" — não se refere a todo o povo de Israel, mas àquela parte do povo que são os pobres, os oprimidos, os órfãos e as viúvas.

O que se quer dizer é que, para Jesus, os pobres estão em sua própria concepção de Deus. E, paralelamen­te a isto, os pobres estão presentes no mais fundamental de sua visão.

Como é hoje do conhecimento de todos e reconhe­cido, a missão de Jesus foi anunciar a iniciar o Reino. Este Reino é proclamado por ele como a Boa Nova e

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aparece principalmente em Lucas. E esta Boa Nova se dirige explicitamente aos pobres deste mundo. Os textos estão em Lucas: "Vim anunciar a Boa Nova aos pobres", diz no discurso de abertura. Em Lucas e em Mateus, quando Jesus diz aos discípulos de São João Batista: '"Olhem o que está acontecendo, anuncia-se a Boa Nova aos pobres". E também, sob a formulação do Reino de Deus, isto aparece claramente nas bem-aventuranças em Lucas: "Felizes vós, os pobres, porque o Reino de Deus será vosso". Então os pobres aparecem como os destina­tários primeiros da Boa Nova de Jesus, como os destina­tários primeiros da missão de Jesus. Em linguagem orde­nada pode-se dizer que existe uma correlação transcedental entre Reino de Deus e pobres. Para eles é o Reino de Deus.

Quem são os pobres?

É aqui, sem dúvida, que a pergunta deve surgir: O que Jesus entendia por pobres quando dizia que a Boa Notícia é para eles? Quando dizia que para eles é o Reino de Deus?

Sobre isto há muitos estudos, mas me parece que hoje, na atualidade, a grande maioria dos exegetas estão de acordo em que os pobres aos quais Jesus se refere são, antes de tudo — vou dizê-lo, com palavras atuais, que logo explicarei — os chamados pobres sócio-econômicos. Assim como no passado, atualmente alguns exegetas que­rem ver nestes pobres, os pobres espirituais, quer dizer, as pessoas que estão abertas a Deus. Que Jesus admire e louve este tipo de pessoas é evidente. Mas o que se quer ressaltar, aqui, é que não se refere a eles quando fala do

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Reino de Deus. Por isto, eu os chamo de pobres "sócio-econômicos", embora saiba que a linguagem é difícil.

Por que os chamo, em primeiro lugar, pobres "eco­nômicos?" "Economia" vem de "oikos", a casa. Quer di­zer, pobres econômicos são aqueles para os quais a casa, o lar, o símbolo do que é o mínimo de vida não está assegurado.

Pobres econômicos são aqueles para quem o fato de viver é um fardo pesado. Para Jesus, este tipo de pobres estaria personificado na viúva (naqueles tempos não ha­via seguro social para as viúvas); nos órfãos (viver é duro para eles); nos doentes (que não têm acesso à saúde)... Pobres está simbolizado pelo nu, o que está à mercê das intempéries etc. Tudo isto é o que quero dizer quando falo do "pobre econômico": aqueles para os quais viver é um pesado fardo.

E os chamo pobres "sócio-econômicos", pobres so­ciais, quer dizer, aqueles para quem viver em sociedade é também um fardo pesado, aqueles a quem a sociedade priva da dignidade elementar de pessoas, de seres huma­nos. No tempo de Jesus, este tipo de pobres era simboli­zado pelas crianças, pelas mulheres, pelos que tinham profissões desvalorizadas, os bêbados, as prostitutas, os que aparecem no Evangelho como pecadores, mas não pecadores do tipo opressor, e sim gente pobre que infrin­gia a lei. O que resulta de tudo isto é que socialmente, sobrevém a indignidade: são os marginais, os desvaloriza­dos.

Então, numa visão de conjunto, os pobres, para Je­sus, são aqueles a quem a vida é negada ou muito dificul­tada e a quem é negada a dignidade que vem de viver em fraternidade.

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Tinha Jesus uma visão estrutural da sociedade?

Pode-se perguntar se Jesus tinha uma visão estrutu­ral do que é pobreza e suas causas e do que são os pobres. Seria, sem dúvida, anacrônico, procurar teorias modernas estruturais em Jesus sobre pobres e pobreza. Pode-se di­zer, em minha opinão, algo de importante.

Chama-me muito a atenção o fato de que nos Evan­gelhos, com grande freqüência, se usa plurais "Felizes vós, os pobres", "ai de vós, os ricos", "ai de vós, escribas e fariseus"... Jesus usa o plural. Ao menos pode-se dizer que está se referindo a grupos, grupos sociais, não tanto a pessoas concretas. Os pobres são felizes como grupo so­cial. Há algo que lhes é comum e que os torna felizes. Os ricos, os escribas, os que governam este mundo: nestes plurais aparecem grupos sociais e há algo neles que faz com que sejam reprovados por Jesus. Não creio que se possa tirar do uso destes plurais um argumento para uma teoria social em Jesus. Mas tampouco creio que se possa minimizar tal uso. Mesmo sem ter uma teoria explícita, Jesus capta, como capta qualquer pessoa de bom senso, que a sociedade está estruturada em "plurais". E Jesus diz: defendo um tipo destes plurais, os pobres, e os defen­do de outro tipo de plurais, que são os que têm algum tipo de poder, sobretudo o da riqueza, da lei da ciência etc.

Estes grupos sociais coexistem, segundo Jesus, de maneira justaposta, ou há entre eles algum tipo de confli­to fundamental para não falar já de luta de classes?

E preciso dizer, de novo, que é anacrônico procurar explicações deste tipo em Jesus, mas não é anacrônico ver que pelo menos Jesus cantrapõe entre si estes plurais,

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estes grupos sociais. Ele certamente disse: "felizes vós, os pobres, ai de vós, os ricos". Na bonita parábola do rico e Lázaro, o mínimo que se pode dizer é que Jesus contra­põe dois tipos de existência: uma, a dos que têm tudo e outra, a dos que não têm nada. Do pobre Lázaro se diz que sua vida e sua morte dependem dos outros, pelo me­nos das migalhas que lhe dêem. Creio que em Jesus não é tão forte quanto nos profetas de Israel, a causalidade que existe entre pobreza e riqueza. Entre os profetas de Israel, isto parece formulado de maneira mais clara. Por exem­plo: o profeta Amos disse que tudo começa com a acumu­lação de terras que fazem os latifundiários e que isto produz a pobreza. Mas me parece que não é exagerado dizer que Jesus também vê, na atuação destes grupos sociais pode­rosos, o motivo da existência dos pobres. Em nível de pobreza e riqueza, deve-se acrescentar a palavra de Jesus quando classifica a riqueza de injusta. E os exegetas di­zem hoje, com clareza, que o adjetivo "injusta" não é uma possibilidade entre outras, como se a riqueza pudesse ser justa ou injusta, mas que tal adjetivo classifica, essencial­mente, a riqueza.

Também está claro que, quando Jesus condena ou­tros grupos poderosos e os denuncia por sua hipocrisia, dá também o motivo da maldade suprema destas atitudes: escribas e fariseus não somente são maus porque são hi­pócritas, mas porque seu coração está cheio de injustiça. "Injustiça" é um termo de relação: o injusto é aquele que não faz justiça aos outros, é aquele que oprime os outros. Ou, quando Jesus diz que colocam fardos intoleráveis, estes fardos se colocam sobre outros e estes outros são os que ficam encurvados pelo peso destas cargas. Ou quando diz que levaram a chave da ciência significa dizer que

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privam os outros do conhecimento. Ou quando diz que são guias de cegos, isto é, que conduzem outros de ma­neira ruim. Então, não se deve pensar em teorias estrutu­rais em Jesus, mas sim que é preciso ver que ele capta a sociedade dividida em diversos grupos sociais, em diver­sos "plurais", como dissemos, e também capta que por causa da atuação de uns, segue-se o tipo de vida pobre, miserável e indigna de outros.

O que fez Jesus frente a estes pobres e seus opressores. Os Sinais.

Jesus falou disto, sem dúvida. Em primeiro lugar, ele teve a experiência da palavra. Na liguagem de hoje, seria uma "prática conscientizadora" através da experiência da palavra: dava esperança a uns, condenava a outros. Além desta experiência da palavra, Jesus teve algumas atividades concretas que é o que chamamos sinais do Rei­no de Deus. Quero esclarecer que estes sinais são sinais e apenas sinais, isto é, não são atividades com intenção de mudar a estrutura da realidade, mas sim para dizer que é possível mudá-la e qual o caminho que levará a esta mu­dança. Os milagres de Jesus, as narrativas de milagres, devem ser, como diz Schillebeeckx, tradições muito anti­gas que ficaram na memória dos pobres. Isto é, um mila­gre, principalmente em forma de cura, é um modo de mostrar que o Reino de Deus tem poder para libertar da doença e, como naquela época a doença costumava ser vista como produto de algum poder opressor — entenda­mos isto hoje de forma mágica ou não —, o fato de curar alguém significava colocar um sinal de que a libertação era possível. Isto se vê com mais clareza quando Jesus

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expulsa demônios. É um sinal para dizer: a libertação da possessão do maligno é possível. Quando Jesus acolhe o pecador é uma forma de dizer: é possível superar a indig­nidade social à qual estas pessoas, tidas como pecadoras, estão submetidas. Quando Jesus come com gente tida por indigna, está querendo dizer: é possível superar o despre­zo social. E assim sucessivamente.

O que quero dizer é que estas atividades de Jesus são dirigidas a dizer que o Reino de Deus é possível, a libertação de opressões concretas também é possível, se bem que como atividades que não são dirigidas a mudar a sociedade, mas colocar sinais de possiblidade desta troca. O sentido das parábolas de Jesus é defender sua própria atuação em benefício das pessoas pobres e frágeis. Os adversários de Jesus não aceitam que seus sinais dêem preferência e caminhem imediatamente em direção aos pobres e frágeis. E Jesus quer defender sua atuação. Em termos finais, sua defesa é a seguinte: eu atuo assim, opto pelo pobre deste mundo, porque Deus é assim.

A Práxis

Mas além destas atividades de Jesus já menciona­das, ele teve outros tipos de atividades que se aproxima­riam mais ao que, na liguagem de hoje, chamamos práxis. Quer dizer: fazer com que a sociedade como tal se trans­forme. Isto que chamo práxis de Jesus acontece, principal­mente em níveis de sua palavra, no que chamamos con­trovérsias, descaramentos e denúncias. O que ele quer mostrar, através de tudo, é que existem, na realidade, po-deres que a configuram de uma maneira opressora. Des­mascarar e denunciar estes poderes é uma forma, a partir

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do negativo, de querer transformar a realidade em que se vive. Jesus quer que estes poderes opressores desapare­çam e que a realidade seja diferente e oposta à de agora. Creio que, quando Jesus analisa estes poderes opressores, tal como o Evangelho os refletem, não se fixa tanto no poder político, embora faça algumas denúncias, principal­mente no final de sua vida ("não façais vós como os que governam, que colocam fardos intoleráveis", diz a seus discípulos); em geral, se fixa mais no poder econômico e, principalmente, no poder religioso; como usam a lei, a religião, a ciência teológica da época para oprimir o povo. Daí, o fato de suas imprecações mais duras serem contra os fariseus, que representariam o poder, digamos, da exemplaridade, e contra os escribas, que representariam o poder da lei e sua interpretação.

Estas denúncias, desmascaramentos, controvérsias de Jesus podem ser consideradas como uma autêntica práxis, porque estão destinadas a mudar a realidade através da palavra. Isto, creio eu, para citar um exemplo atual, é parecido ao que fazia Monsenhor Romero, que estava muito interessado em mudar toda a realidade salvadorenha. Sua atividade não era meramente uma soma de atividades próprias, mas uma práxis, porque era voltada para isto. E o meio que ele tinha para concretizar essa práxis era a palavra e não outra forma como têm outros grupos so­ciais.

A Conflitividade

Há um ponto a considerar que é, em si mesmo, evidente, mas que, às vezes, parece ser questionado. Je­sus, quando realmente trata de defender os pobres de seu

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tempo, quando trata de lhes dar uma esperança, a espe­rança de que o Reino de Deus é possível, quando trata de desmascarar os poderes que estão na raiz de uma socieda­de opressora, provoca um conflito, se mete num conflito...

Para mim, é evidente. Em primeiro lugar, meteu-se num conflito porque assim está estruturada a sociedade, seja hoje, no tempo de Jesus e antes de Jesus. Novamente, não há que procurar palavras explicitamente no Antigo nem no Novo Testamento sobre a luta de grupos ou a luta de classes, ou, como diz a instrução vaticana, sobre "con­flitos muito agudos"; mas, na própria concepção de Deus, aparece que na realidade há um conflito. O primeiro man­damento diz: não adorem outros deuses rivais. Isto signi­fica que, como a teologia latino-americana o disse muito claramente, existem vários deuses, o verdadeiro Deus e os ídolos, que estão na realidade e necessariamente em luta, agrade isto ou não. Jesus o disse de maneira simples e sábia: não se pode servir a dois senhores, porque se al­guém serve a um, abandonará o outro e vice-versa. É preciso escolher. O que se deve ressaltar é que estes dois senhores não somente são diferentes mas que estão em luta. E, se alguém serve a um deus, os adoradores do outro deus reagirão e farão algo em oposição.

Que toda a vida de Jesus se realiza em conflito está bastante claro. Nos sinópticos já se fala nisso, desde o princípio, talvez de forma um pouco anacrônica. Depois do discurso original de Jesus na sinagoga de Nazaré, Lucas conta que queriam matá-lo. E, depois das controvérsias de Jesus, que estão no início do Evangelho de Marcos, con­ta-se que fariseus e herodianos se juntaram porque queri­am eliminá-lo. E o que Jesus havia feito para que quises­sem eliminá-lo? Apenas defendeu o oprimido que tinha a

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mão seca, a seus discípulos, que tinham apanhado espigas de um campo alheio no Sábado, porque tinham fome. Esta defesa do fraco acarreta, automaticamente, uma rea­ção do forte. Em linguagem atual, esta defesa do oprimido acarreta, automaticamente, uma reação do opressor.

O Evangelho de João mostra, com fartura, este am­biente de conflito durante toda a vida de Jesus. É incon­testável que a razão histórica pela qual matam Jesus é por ele ter tomado parte neste conflito de um lado e não do outro. Quando acusam Jesus de blasfemo e de agitador político no tribunal religioso e político, enganam-se nas razões concretas que dão: Jesus não andava amotinando o povo de forma concreta, nem impedindo que pagasse im­postos a César ou, muito menos, blasfemando etc. As razões concretas que dão são falsas, mas o que está por trás dos tribunais é profundamente verdadeiro. Acusam Jesus no tribunal religioso porque dizem que quer destruir o templo de Jerusalém. Suponho que Jesus não tivesse nenhum interesse em destruir as pedras do templo, embo­ra quisesse destruir o significado do templo, quer dizer, o centro de um poder religioso, financeiro, político, econô­mico que, em seu conjunto, configurava a sociedade de seu tempo como uma teocracia. Jesus via que este conjun­to de fatores era opressor e queria terminar com ele. En­tão, no aspecto religioso, os poderes eclesiásticos da épo­ca viam em Jesus uma ameaça.

No tribunal político fica também muito claro que o condenam quando exigem que Pilatos escolha entre Jesus e César. O que isto significa é que Pilatos tem de escolher entre o império romano, a paz romana ou o ideal que Jesus representa, que é o Reino de Deus. Então, fica bem claro que Jesus viveu num conflito e que, ao tomar parti-

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do neste conflito a favor dos fracos deste mundo, o agra­vou; que contra ele reagiram os que defendem outros in­teresses, os poderosos, e que, por isto, em última análise, Jesus é assassinado. Para mim, como para tantas pessoas, é realmente surpreendente que um exegeta do porte de Bultmann pudesse dizer que a cruz de Jesus foi um erro lamentável. Indubitavelmente foi um erro, e não apenas um erro, mas uma mentira, o conjunto de acusações con­cretas que lhe faziam, mas não havia erro quando o poder religioso, principalmente, e o poder político, viam em Je­sus uma grande ameaça e, por isto, queriam eliminá-lo. Em nossos tempos, Monsenhor Romero o disse com mui­ta clareza: quem prega a verdade da Palavra de Deus, quem defende de verdade os preferidos de Deus, os po­bres, este incomoda e é preciso eliminar aquele que inco­moda.

A Opção pelos Pobres e Jesus

Com isto se quer dizer que, em Jesus, há uma OP, mas não só que ela existe, como é algo fundamental, tanto em sua visão de Deus como na prática que conduz em sua vida. Não é que Jesus já tivesse uma idéia de Deus, que soubesse que tinha que pregar o Reino de Deus e que, depois lhe aparecesse a pergunta: o que vamos fazer com os pobres?... Esta pergunta não é secundária. Está inte­grada no principal e, por isto, a OP, por assim dizer, não a inventou em Puebla nem Medellín, nem é somente um problema pastoral de como a Igreja há de atuar, nem ape­nas um problema quantitativo (quanto tempo, quantos re­cursos dedicamos a uns e a outros...), mas é um problema teologal. Quem crê no Deus de Jesus, por essência, tem de fazer esta OP.

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Aos que não são pobres, pedem-se duas coisas: se são opressores, que deixem, simplesmente, de sê-lo. E en­tão, a Boa Nova do Reino também será para eles, verda­de. E aos que não são formalmente opressores, mas tampouco pertencem, formalmente, ao mundo dos pobres, pede-se que sigam Jesus para defender os pobres. Neste sentido, é verdade que a mensagem de Jesus é para todos os seres humanos, mas de forma diferente. Num primeiro momento, é a favor dos pobres e contra os opressores. E, para estes, como já disse, a salvação, o fato de Jesus e Deus serem a Boa Nova, supõe deixar de serem opresso­res.

Sem dúvida, o que chamamos OP tem este funda­mento cristológico que acabamos de ver. Mas encontra-se isto não apenas em Cristo, mas que em Cristo isto tam­bém é fundamental, pelo que eu disse antes de que assim era sua concepção própria de Deus, como um Deus par­cial para os pobres deste mundo e assim era sua missão. A pergunta está, então, naturalmente, em como foi possí­vel que isto, que para mim é evidente, deixasse de sê-lo.

Parcialidade e Universalidade

Creio que por razões teóricas, aparece no Novo Tes­tamento um processo de universalização da fé que é ex­tremamente correto, mas que pode ser usado precipitada­mente. No Novo Testamento se diz, com razão, que Deus é um Deus de todos, que Deus quer a salvação de todos, ao contrário, que somos todos pecadores, que estamos todos convidados... Então isto é realmente certo, mas pode-se deixar passar de maneira superficial esta universalização na concepção de Deus e na concepção do

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ser humano, pode-se ignorar o que deu origem à fé em Deus e à concepção do ser humano. No Antigo Testamento está claro, hoje, que o primeiro livro é o Gênesis, onde se fala da relação de Deus com toda a criação, com todos os seres humanos. Mas, como bem se sabe, não foi assim a origem histórica. Na origem da fé em Jeová a relação de Deus com um povo se manifesta, ocorre, algo concreto e, além disso, uma relação com o povo enquanto oprimido, isto é, algo parcial. E, a partir daí, pensaram que este Deus era universal.

O que quero dizer é que é preciso ver a universali­dade que o Novo Testamento nos propõe em termos um pouco mais dialéticos. Segundo Jesus, Deus quer a salva­ção de todos. Para aqueles que são, digamos, opressores, a salvação que se lhes oferece (veja o exemplo de Zaqueu, que, creio que é, certamente, o único deste tipo) passa por sua conversão aos pobres, por deixarem de ser opressores. A salvação que Jesus oferece a outros seres humanos — que talvez fossem ou não pobres, por exemplo, aqueles que chama para segui-lo — passa pelo caminho de conti­nuar a obra e a missão de Jesus em favor dos pobres.

A mesma coisa deve-se dizer do pecaminoso: todos somos pecadores, incluindo os pobres. Ou, pelo menos, todos somos pecaminosos. Mas em Jesus há uma diferen­ciação do pecado fundamental,de acordo com sua posição mais ou menos próxima da opressão e morte do pobre. O que quero dizer é que, no processo de universalização da fé, passou-se por cima da parcialidade origional. Creio que esta é uma das razões pelas quais o evidente deixou de sê-lo.

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, Opção Preferencial e não exclusiva

Isto também pode, talvez, esclarecer o que possa significar que a OP é preferencial e não exclusiva. Jesus não foi exclusivo ao oferecer salvação: ele a ofereceu a todos. O que acontece é que a ofereceu de formas diferen­tes. A uns, aos pobres, de forma direta, dizendo-lhes que há uma esperança, que o Reino de Deus vai se aproximar. A outros, dizendo que, para entrar neste Reino de Deus que vai se aproximar, têm que se converter de uma ma­neira específica: deixando de ser opressores.

Isto, para a pastoral de hoje, é extremamente impor­tante. Não se trata de dizer e quantificar que porcentagem de nosso tempo será para ajudar os pobres e que porcenta­gem será em benefício dos não pobres. Não. Toda a ação pastoral da Igreja será de opção pelos pobres, mas, tendo em conta os setores sociais, deve ser feita de maneira diferente: para os pobres, defendendo-os diretamente e, na medida em que eles também vão se elevando a uma categoria superior, ajudando-os a introduzir espiritualida­de em sua realidade, em suas lutas e em sua causa, para que também não degenerem. E, aos que são opressores, exigindo, ajudando e forçando-os a deixarem de sê-lo.

Opção pelos Pobres, conceito e pecado

Quero, finalmente, responder a questão sobre se a OP é o máximo que nós, seres humanos, podemos e deve­mos fazer e seremos julgados por ela.

Creio que, na atualidade, a OP é uma reformulação adequada do que Mt 25,31-33 disse do juízo final. Em última análise, se nossa vida se colocou em defesa da

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vida dos pobres, se nosso sacrifício, nossa abnegação se colocou a serviço de que haja menos sacrifício, menos dureza, menos cruz, se nosso próprio conflito, as perse­guições que podemos sofrer, a cruz em que podemos ter­minar, se tudo isto se colocou a serviço de que os pobres desçam da cruz, não há dúvida de que, no dia do juízo, escutaremos aquelas palavras de Jesus: "Venham, bem-aventurados de Meu Pai".

Há outra pergunta relacionada a isto, que é teórica e prática, e para explicá-la vamos lembrar o que se dizia há alguns anos. Quando se redescobriu que a oração não é apenas um fenômeno individualista de ficar num lugar afastado e pôr-se em relação com Deus, mas que também na vida deve-se ficar em relação com Deus, chegou-se a dizer: "A vida é oração", o que a princípio, está muito certo. Outros disseram: "Toda a vida é oração". Mas ou­tros responderam com uma sabedoria acumulada, não hi­pócrita (embora também se pudesse dizer hipocritamen­te): "pode ser que toda a vida seja oração, pode ser que nada seja oração". O mesmo pode acontecer com a OP: tudo pode ser OP, mas, no pior dos casos, nada é OP. O que quero dizer?

A OP é algo necessário, justo, bom e santo. Mas é levada a cabo por seres humanos, isto é, seres nos quais atuam também a concupiscência, a pecaminosidade e, dito em outras palavras, seres que, na opção pelos outros, po­dem estar procurando, sutil ou ostensivamente, a si mes­mos. Assim é a condição humana. Pode ser que, por um lado se faça a OP e, se esteja buscando o estrelismo, isto é: que se sujeite a OP a ser eu, meu grupo, minha Igreja, meu partido político, minha organização política ou mi­nha organização popular que lidere, a que pode ter a satis­fação ou o orgulho de dizer: "Nós temos sido".

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Pode ser também que na OP, já que são necessárias condições e mediações de todos os tipos (sociais, econô­micas, políticas e teológicas), o dogmatismo se introduza. Na medida em que a OP é uma análise, uma tentativa para encontrar e sendo a que melhor explica a opressão que sofrem os pobres e sua libertação, pode-se chegar ao dogmatismo, isto é: é esta teoria, é esta visão necessaria­mente. Repito, pois, que isto sempre rodeia e ameaça os seres humanos.

Então, quero dizer que na OP o pecado também se pode introduzir e que, de alguma maneira, se introduz. Isto não é de admirar, nem é motivo para se alarmar. É, isto sim, um alerta para se ter cuidado com o pecado.

Então, a OP envolve dois elementos. Por um lado, uma materialidade e visibilidade satisfatórias do que se faz: que possa ser verificada, que os próprios pobres a compreendam como algo que se faz a seu favor... Mas, por outro lado, é preciso conduzi-la com um espírito que possa curar os inevitáveis subprodutos negativos de toda prática — incluída a OP —, mas para isto, lhe dê a possi­bilidade. Em palavras sistemáticas, Ignacio Ellacuría fala­va de pobres materiais com espírito de misericórdia, lim­peza de intenções, reconciliação e paz. Pois algo deste tipo deveria ser dito da OP: é preciso fazê-la material­mente, não idealisticamente, mas é preciso fazê-la também com um espírito que, no fundo, é o Espírito de Jesus. Resumindo, é preciso fazer o que faz Jesus e é preciso fazê-lo com o Espírito de Jesus.

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OPÇÃO PELOS POBRES E ESPIRITUALIDADE

Pedro Casaldaliga

OP: A própria espiritualidade cristã

A OP, para o cristão, é a própria opção pelo Reino de Deus neste mundo submetido, estruralmente, ao anti-reino, neste mundo maltratado de Deus.

A OP não é apenas um rasgo de espiritualidade cris­tã. É a própria espiritualidade cristã, se entendemos que o Reino é a opção de Jesus, porque é a vontade do Pai. O Reino, visto do lado de cá, é desafio, conquista, prática, resposta nossa... Visto do lado de lá — onde já não have­rá nem ricos nem pobres — o Reino será pura gratuidade, puro dom: o Pai acolhendo a todos nós.

O Filho de Deus, o Verbo, para contestar o anti-reino que o pecado do mundo vinha estabelecendo na terra dos filhos de Deus, não apenas "se faz homem", não apenas se faz humano, mas também se faz pobre, coloni­zado, incompreendido, perseguido, proibido, excluído, excumungado, executado, maldito... A OP de Jesus é a Kénosis de Cristo. E a OP é a atitude Kenótica de todo cristão. Repito: sempre que estejamos de acordo que a

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espiritualdade cristã é a opção pelo Reino: a vontade do Pai que Jesus anuncia, assume, realiza e sofre e pela qual, na qual, para qual e a partir da qual ressuscita.

Fundamento Teológico

Este é o fundamento teológico da OP. Mas ainda podemos dizê-lo de outra maneira.

A teologia cristã se fundamenta na palavra, na atitu­de, na vivência, na morte e ressurreição de Jesus. Por isto, é teologia "cristã". Quando falamos de Jesus, falamos, ou devemos falar, automaticamente, do Deus de Jesus. En­tão, se este Deus de Jesus envia seu próprio Filho para consertar o Reino maltratado, para reanunciá-lo, para que a humanidade possa esperá-lo de novo e colaborar, como deve, em sua construção, é evidente que a vontade de Deus sobre a humanidade é a finalidade da humanidade. Não pode ser outra.

Para nós, cristãos, na atual conjuntura e contingên­cia da humanidade, Deus não opta pela humanidade, opta pelos pobres na humanidade. Respondendo aos que, no privilégio, no luxo, no consumismo, na capacidade de escravizar, de dominar... negaram a condição de irmãos — e, portanto, a condição de filhas de Deus — aos ou­tros. Respondendo aos que construíram um anti-reino neste mundo que já deveria ser uma realização de seu Reino, antecipando em esperança a plenitude futura.

Por isto, a Boa Nova é anunciada aos pobres. A bem-aventurança se realiza nos pobres. Este é o funda­mento da OP.

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OP, Kénosis e encarnação

Recordemos a palavra de Paulo: ele, Cristo Jesus, sendo rico, por nós se fez pobre (Fl 12,6ss). "Se fez": nos desapegamos totalmente desta palavra se pretendemos entendê-la num sentido apenas espiritual. Que significa "se fez"? É uma palavra encarnacional, evidentemente. Supõe todo um processo histórico: seu modo de vida,seus conflitos, sua determinada situação geopolítica, cultural... tudo o que ele realmente viveu.

As implicações desta opção, as exigências desta es­piritualidade também têm origem no próprio seguimento de Jesus. Se opto pela maioria dos filhos de Deus, subme­tidos a uma vida de anti-reino, impedidos em sua condi­ção de seres humanos — em sua condição de irmãos e de filhos —, devo, automaticamente, aproximar-me deles, conhecê-los, senti-los, compadecer-me de sua situação, me comover por sua realidade, participar de seu próprio sofrimento, em seu grito, em sua pobreza, em sua luta, em seu processo. A Kénosis, antes de tudo e sobretudo, é a humilhação, a descida, a entrada, a encarnação... Assim, pois, uma espiritualidade da OP é uma espiritualidade encarnacionista no mais puro sentido da palavra.

Alguns tiveram medo da palavra "encarnacionista", como se o encarnar-se supusesse prescindir do histórico, do político... O Filho de Deus não se encarna nas nuvens: encarna-se num ser humano, num povo, numa cultura, numa estrutura, numa conjuntura...

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OP: espiritualidade profética, revolucionária e utópica

Supõe, também, por outro lado, a partir da opção pelo Reino de Deus, a partir do seguimento de Jesus, a contestação profética, a revolta profética, a indignação profética frente a esta situação que nega o Reino, que impede os irmãos de serem irmãos, que impede os filhos de serem filhos. Todos os profetas de Israel, o grande profeta Jesus, as palavras categóricas e indignadas do Evangelho... Esta atitude profética e de revolta nos ilumi­nam no seguimento de Jesus, na medida em que nos com­penetramos da pobreza dos pobres, maldizemos a pobreza maldita dos pobres. A Cruz de Cristo nega a cruz. Ele se faz maldição na cruz justamente para acabar, de uma vez, com todas as cruzes malditas. Ao menos em sua própria pessoa e em esperança para todos nós.

Esta encarnação, esta compaixão, compenetração, este assumir a miséria, o sofrimento, a indignação, a re­volta, o processo de liberação dos pobres, a vontade de sair do estado em que vivem, nos colocará, automatica­mente, numa postura política — revolucionária, inclusive — de tranformação radical de uma sociedade que não responde à vontade de Deus, ao projeto do Reino. E nos confrontará, automaticamente, com todas as forças e po-deres que submetem a maioria dos irmãos à miséria, à dependência, à não-vida, a este mundo que está no peca­do, colocado no maligno, como diz Paulo. Não estamos negando, de modo algum o pecado pessoal: pelo contrá­rio, estamos dizendo que reconhecemos os pecados pes­soais acumulados numa estrutura de pecado, que é anti-reino visível, diário. As implicações políticas desta postu-

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ra devem ser tão conjunturais como estruturais, tão diá­rias como utópicas.

Uma verdadeira espiritualidade da OP é uma espiri­tualidade revolucionária, dissemos. Por isto mesmo, é uma espiritualidade utópica. Este mundo que está aqui não ser­ve aos filhos de Deus, não serve aos irmãos, contradiz o Reino de Deus: queremos outro! Entramos, inevitavel­mente, no processo de transformação da sociedade, no processo da revolução.

OP e solidariedade

Os teólogos da libertação lembram, com freqüência, que a própria contemplação, a oração dos espirituais da liberação se expressa, se traduz — se comprova, princi­palmente — nas práticas não apenas sociais, mas nas prá­ticas explicitamente políticas.

Para que a caridade não permaneça em "compai­xão" (distante) ou em "benevolência" intermitente ou transitória, deve ser solidariedade política. Somente assim será caridade verdadeira. Só assim amará o irmão na rea­lidade na qual o irmão vive.Só assim ajudará ao irmão de um modo eficiente. Na melhor das hipóteses, o sacerdote e o levita da parábola, ao passarem para o lado do grave­mente ferido, tiveram certo sentimento de compaixão. Não sabemos se deixaram alguma esmola. O importante, o dramático, o que lhes foi condenado é que não fizeram a ação concreta de transformar a realidade na qual ele vivia, a ação concreta de levar sua solidariedade até as últimas conseqüências. Só se leva a solidariedade até as últimas conseqüências quando alguém faz todo o possível para que o irmão saia da situação em que está. O próprio Deus

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não nos teria demonstrado que nos amava se tivesse fica­do longe em sua infinita compaixão... Tivemos necessi­dade de que saísse de sua compaixão e fizesse o gesto extremo... Por isto, digo que Jesus é a própria solidarie­dade de Deus em pessoa, a solidariedade que vai até as últimas conseqüências.

Doutrina e mística da OP

A doutrina e a mística desta espiritualidade da OP será, evidentemente, em primeiro lugar, uma atitude de discernimento, sensibilidade, percepção, crítica, auto-crí-tica, descodificação da realidade, de análise, inclusive po­lítica, da própria realidade. Será uma espiritualidade que ande pelo mundo dos pobres, no meio das maiorias proi­bidas e oprimidas com os olhos abertos. Há bispos, sacer­dotes, visitantes cristãos, pessoas muito boas, que vêm do primeiro mundo, visitam nossas cidades, visitam nossas Igrejas e não descobrem estas imensas "maiorias" da América Latina, do Terceiro Mundo, do mundo inteiro, que vivem realmente proibidas. Assim pois: os olhos abertos à realidade, a atenção ao "brado" dos pobres (Medellin e Puebla nos lembraram que o brado está aí e é lamentável que até há pouco tempo, a Igreja não tenha descoberto que é um brado coletivo, estrutural e que cada vez é mais estrondoso...)

Em segundo lugar, a compaixão, a comoção, a com­penetração que deve levar à convivência: estar-em, estar-com, seguir, acompanhar os pobres, assumir suas próprias privações, seus perigos...

Esqueceu-se muito o próprio texto de Puebla (1134), que fala de uma opção "clara" e "solidária" pelos pobres. "Clara": diríamos que com uma consciência clara, inclu-

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sive politicamente, para ser integralmente clara. E "soli­dária": a palavra vem de "in solidum", que significa em bloco, com, junto com. Então, uma opção pelos pobres "solidária" exige estar com o pobre, conviver com o po­bre, passar mal com o pobre, se aventurar com o pobre... e, às vezes, mudar de lugar social e, inclusive, de lugar geográfico — na medida do possível — para estar no meio dos pobres.

Em terceiro lugar, supõe assumir os processos dos pobres, as decisões dos pobres, caminhar em seu próprio andar, respeitando seu ritmo, entrando em suas próprias reivindicações. Poderemos optar pelos pobres com todo o espírito crítico necessário, com toda a lucidez da fé, mas nunca "à distância". Só opta pelos pobres aquele que se aproxima deles e caminha com eles.

Isto exigirá, necessariamente, uma grande capacida­de de carregar a cruz, a cruz da privação da pobreza, da renúncia, do risco, às vezes do silêncio, da conflitividade.

E, ao mesmo tempo, suporá uma grande capacidade de paciência, de esperança, no sentido pleno da palavra, aquela esperança de que falava Paulo. Se alguém não quer chegar ao desespero, à pura indignação sem sentido, sem saída, diríamos à blasfêmia, este alguém deve levar em si uma grande força de esperança. Penso que quanto mais perto se vive da miséria, do sofrimento, da morte, mais a esperança deve ser expressão cotidiana, quase es­pontânea de nossas vidas. Nisto os profetas nos ensinam tanto o anúncio do Deus vivo e verdadeiro e de seus planos e projetos, como a denúncia dos ídolos, dos antiprojetos que contradizem o projeto de Deus, como também a atitude da consolação: "consolai meu povo" (Is 40,1).

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E evidente que esta espiritualidade exigirá uma grande dose de oração, de contemplação. Somente cami­nhando sempre muito a descoberto, muito abertamente, com o Deus vivo, o Deus e Pai de Jesus, o consolador dos pobres, o "Pater pauperum", pai dos pobres... se poderá viver a espiritualidade da OP com equanimidade, dando o testemunho que se deve dar e de uma forma construtiva.

Parece-me que é muito importante que a OP saiba, também, ler, louvar, assumir as expressões culturais dos pobres. Este seria um traço muito característico: sua ale­gria, sua festa, a capacidade de hospitalidade, de partilhar, a resistência passiva em muitas circunstâncias, estes lon­gos silêncios dos pobres em suas lutas, nas boas "táticas", em seu processo de liberação, nas próprias revoluções populares, a capacidade que o pobre tem de agradecer aos próprios irmãos e a Deus.

Penso que toda a Igrej'a (seria um verdadeiro erro falar somente da Igreja do terceiro mundo) não pode ter outra missão do que a própria missão de Jesus — e isto é a OP —, "o Espírito do Senhor está sobre mim para..." Quer dizer, na medida em que o Espírito do Senhor esteja sobre nós, dentro de nós, este "para" se fará realidade: anunciaremos a Boa Nova aos pobres, ajudaremos a libe­rar os cativos, proclamaremos o ano da graça, que é a versão, inclusive temporal, histórica e até política e eco­nômica do Reino... na expectativa, claro, da plenitude do Reino.

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Igreja e OP

—O que seria uma Igreja popular?

Quero lamentar, mais uma vez, que se tenha perdi­do a liberdade e até a alegria de usar esta expressão. Várias vezes se "reclamou", a nossos teólogos, que, por uma docilidade explicável no meio de certas perseguições que estes bons teólogos da América Latina vêm sofrendo, se viram obrigados a renunciar a uma expressão cheia de sentido e de legitimidade.

Se dizemos "Igreja hierárquica", com mais razão podemos falar em "Igreja popular". Por dois motivos: a Igreja "tem" hierarquia, mas "é" povo, povo de Deus. A hierarquia é minoritária na Igreja, é um serviço à Igreja e a partir da Igreja, ao mundo. Enquanto que o povo, este povo de Deus, é a imensa n.aioria.

Por outro lado, falar de Igreja popular significa falar de uma "Igreja na base", onde estão os pobres. Uma Igre­ja no lugar onde Jesus se colocou. Uma Igreja no povo que se reconhece, que recupera sua identidade, que assu­me seu processo.

Para nós, nesta América Latina, falar do povo é, praticamente, falar do povo no processo histórico. Mais ainda, povo no processo histórico de liberação. No Brasil, por exemplo, nos encontros de pastoral, de teologia ou de trabalho popular etc; distinguimos, normalmente, entre "massa" e "povo". Massa, povo, comunidade, liderança...

Biblicamente falando, o povo de Deus, "o povo que não era povo e agora é povo"... "Eles serão meu povo e eu serei seu Deus"...

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Enfim, trata-se de uma expressão tão bonita que faço votos para que seja recuperada, sem rubores, sem ceder a incompreensões, que poderão partir da melhor boa vontade, mas que certamente não partem de lucidez teológica nem de visão pastoral comprometida e que, pos­sivelmente, sem querer, estão fazendo o jogo dos que não querem que o povo seja povo, os que não querem que a Igreja seja povo, os que não querem que o povo se faça Igreja...

Eu diria alguns sinônimos de Igreja popular: Igreja comunitária, Igreja participativa, Igreja realmente não cultivada, Igreja autóctone. Creio que se trata de valores indispensáveis na verdadeira Igreja de Jesus.

— Igreja popular e Igreja dos pobres seriam ter­mos semelhantes?

Igreja popular seria a Igreja dos pobres conscientes, que se organizam, em processo, em fermento de libera­ção...

Leonardo Boff diz que a Igreja popular não se opõe à Igreja hierárquica, mas à Igreja burguesa...

Evidente. E não se opõe também à Igreja clerical, no sentido pejorativo da palavra (uma Igreja clericalizada). A Igreja popular acaba sendo a Igreja do povo de Deus, que opta realmente pelos pobres, que se opõe em seu lugar, que toma partido por eles, que assume sua (5ausa e seus processos. Uma Igreja que trata também da hierar­quia e do clero, da teologia, da liturgia, do próprio direito canônico e os faz baixar numa Kénosis histórico-pastoral ao lugar em que Jesus realmente se colocou, que é o próprio povo.

— "Igreja burguesa" seria uma contradição?

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Evidentemente, sim.

—Não pode existir uma Igreja burguesa?

Pergunto: qual seria o real código canônico evangé­lico da Igreja? E respondo: o novo mandamento, as bem-aventuranças. Numa Igreja burguesa, Igreja de privilégio, Igreja de exploração das maiorias, Igreja de expulsão das maiorias... cabem as bem-aventuranças? Uma Igreja bur­guesa já não seria a Igreja de Jesus.

— O batismo, a conversão, exigiriam mudar de classe?

Pergunto: o batismo não é, por acaso, um mergulhar na Páscoa, na morte, na ressurreição? Este mergulhar na morte de Jesus, evidentemente, há de ser a morte do ego­ísmo, a morte do privilégio acumulativo e que exclui. E, neste sentido, a morte a uma vida burguesa. Uma vida burguesa é uma vida pecaminosa, estruturalmante peca­minosa.

— O que responderia à objeção de que a Igreja é para todos, que está acima das opções políticas?

Responderia que Cristo também veio para todos e optou pelos pobres. E condenou os ricos. E recusou o privilégio. E foi condenado, torturado, executado e colo­cado na cruz pelos poderes do latifúndio, da lei, do impé­rio.

Não é possível pensar que o Evangelho seja igual para todos. O pior que se poderia dizer do Evangelho é que o Evangelho é neutro. Eu ouso dizer: o Evangelho é para todos, a favor dos pobres e contra os ricos. E expli­co: a favor dos pobres no que eles têm de pobreza evan­gélica e contra a marginalidade e talvez o desespero em

5. Opção pelos pobres hoje 65

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que lhes toca viver. E contra os ricos, contra a possibili­dade, a capacidade que eles têm de viver num privilégio que espolia a imensa maioria dos irmãos, contra a capaci­dade de explorar estes irmãos, contra a insensibilidade em que vivem, contra a idolatria a que estão submetidos.

O rico, normalmente falando, está exluído do Reino dos Céus. Só pode entrar nele se deixa de ser rico.

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OPÇÃO PELOS POBRES: PREFERENCIAL E NÃO EXCLUDENTE?

José Maria Vigil

No princípio se falou de "opção pelos pobres". Logo, alguns fizeram uma diferenciação: opção "preferencial" pelos pobres. Outros diferenciaram ainda mais e disse­ram: opção "preferencial e não excludente" pelos pobres. Há, inclusive, quem fala simplesmente de "amor prefe­rencial pelos pobres", dizendo que é o mesmo que a OP. Quem pensa assim tem razão, ao menos em algum senti­do. Efetivamente, uma OP que fosse entendida estrita­mente como "preferencial" e totalmente como "não excludente" (que não excluísse nada nem ninguém) aca­baria sendo um simples "amor preferencial", que em nada se deferenciaria daquele que a Igreja teve aos pobres na Idade Média. Assim, a opção pelos pobres, "preferencial e não excludente" não seria mais do que um belo nome da moda para significar o mesmo de sempre. Um nome va­zio e definitivamente inútil.

Mas, pode-se aceitar, sem maior discernimento, que se use o termo "opção pelos pobres" como sinônimo de um simples "amor preferencial"? Não há aí um claro equívoco? Não se trata claramente de uma domesticação da liguagem? E a pergunta central: estamos seguros de que a OP é, sem dúvida, "preferencial e não excludente?

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Damos como certo que a OP, em algum sentido, indica ou implica uma "preferência" e que não quer ex­cluir ninguém da Salvação. Mas também cremos que, em seu sentido mais profundo, a OP não é simplesmente "preferencial" e que, em algum outro aspecto,a OP é in­transigentemente "excludente" (de atitudes, não de pes­soas). Pensamos que isto pertence à própria essência da OP, de tal forma que, ocultar estes aspectos e sublinhar até à saciedade os contrários (uma OP sempre e só "prefe­rencial e não excludente") acaba convertendo a OP sim­plesmente neste "amor preferencial" tradicional do qual falamos, ou, o que é a mesma coisa, acaba negando a própria OP — se é que desta maneira nos é lícito entender algo mais do que o que na Idade Média se podia entender por "amor preferencial".

Neste sentido, pretendemos reivindicar o que acre­ditamos mais genuíno da OP. Não negamos — dizemos já de entrada — que a OP seja, em algum aspecto, preferen­cial e não excludente, mas reivindicamos que, em outro sentido —• o mais genuíno e essencial — não o é.

As origens

Começa-se a falar seriamente da OP nas Igrejas a partir da América Latina, nos anos imediatamente ante­riores a Puebla. Um brado unânime surge, nestes anos, em grupos e comunidades que faziam a experiência espi­ritual que depois chamamos de "espiritualidade da liber­tação". Estes grupos percebem, cada vez mais claramente, que o chamado à conversão que Deus faz à Igreja Latino-Americana nesta hora histórica, tem um nome, e que este nome é "opção pelos pobres".

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O tema cresce com tal evidência, tal força evangéli­ca e espiritual, que não demora em se constituir, por si mesmo, num dos pilares centrais desta espiritualidade da liberação. Dá-se uma consciência majoritária de que dian­te da OP estamos frente a algo novo, a um salto qualitati­vo, a uma etapa nova da história dos cristãos, ante a uma autêntica bomba do tempo, que no momento certo, vai desencadear tensões e conflitos, não somente em nível latino-americano, mas também em nível da Igreja Univer­sal. Descobre-se também que a OP, ainda sem este nome, estava presente na Igreja latino-americana há anos antes, como o testemunhava seu já fecundo martirológio. A OP acabava de ocorrer violentamente na consciência espiri­tual da América Latina.

A reação não se fez esperar. Puebla seria a primeira prova pública, eclesiástica, oficial, que a OP ia sofrer. Já a identificando, certamente, com a teologia da liberação, a resistência ideológica à OP apresentou-se, em Puebla, com toda sua artilharia. Era a primeira vez na história moderna que uma teologia concreta fazia vibrar e como­via diversos setores da sociedade, a ponto de suscitar po­lêmicas na imprensa ou manifestações nas ruas. A OP havia sido —já antes, com o documento de Rockefeller e ia ser depois, com o documento de Santa Fé — preocupa­ção dominante da administração estadounidense frente à teologia da liberação.

A OP passou por Puebla com muitas dificuldades. Foi aprovada, oficialmente, mas não da forma como a apresentava a base eclesial latino-americana. Introduiziu-se alguma modificação, que a muitos desprevenidos, pa­receu uma "ligeira diferenciação", ou, inclusive, um "en­riquecimento": a OP é "preferencial" (1134ss) e "não

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excludente" (1165, 1145 etc). Na realidade, tratava-se de uma intenção de correção.

A situação era tensa naqueles momentos para insis­tir no problema. Pareceu, a muitos teólogos, que era me­lhor adotar uma atitude de possibilidade e não discutir as nuances introduzidas. Talvez fosse, então, o melhor. Mas não resta dúvida de que aí se introduz uma confusão, que depois foi-se manifestando quando setores eclesiásticos reacionários se autoproclamaram defensores da OP, mas de uma OP "preferencial e não excludente" na que logo se adverte que foi reduzida a um "amor preferencial".

Qual é a diferença essencial entre as duas formas de entender a OP? Qual é a mensagem subliminar que se transmite nesta OP "preferencial e não excludente?" O que nós, cristãos, que sentimos como imperativo de cons­ciência fazer nossa OP em toda sua exigência evangélica podemos ou devemos fazer? Vamos tratar de responder a estas preguntas.

Preferencial?

Basta ouvir aqueles que a defendem explicar em que consiste a OP "preferencial não excludente" para se dar conta de que tal opção está demarcada dentro de uma determinada análise da realidade que se costuma chamar de "funcionalista". Quer dizer, uma análise da realidade através da qual se percebe a realidade social do seguinte modo: "o mundo que nós, homens, organizamos está bem feito, não há falhas essenciais nele, apenas abusos ou de­feitos corrigíveis. Todos cumprimos nossa função na so­ciedade e todas as funções são boas (também a função do capital e a dos ricos), embora alguma função (a dos po­bres, por exemplo), seja muito desagradável e, por isto,

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devemos fazer por estes uma opção preferencial (lhes conceder alguma vantagem). Mas o sistema é bom e há que mantê-lo; inclusive há que melhora-lo".

Para os que adotam esta análise da realidade, optar pelos pobres não significa optar por outra coisa do que por uma preferência. "Certamente — pensam — como não se pode fazer tudo ao mesmo tempo, nem se pode atender a todos por igual, é preciso estabelecer uma or­dem de preferência. Ninguém vai levar a mal se dermos preferência a alguém. E, já que os pobres têm sido tão maltratados pela vida, é certo que os ricos — que têm tantos meios e precisam muito menos de nós — não vão levar a mal se dermos preferência — não excludente, cer­tamente — aos pobres. É apenas uma questão acidental: questão de ordem, de prioridade, de preferência. Serve para suavizar as desigualdades do sistema. Não significa nada mais: o mundo continua como está e nós onde está­vamos."

A OP preferencial não excludente não transforma nada. Aí já fica domesticada e "descafeinada". Fazer ou não fazer a OP não significa nenhuma diferença real.

Os que fazem esta análise funcionalista da realidade a vêem como a mais natural do mundo e pensam que tal análise se deduz do Evangelho. Com freqüência, não es­tão conscientes disto, nem sequer sabem que, entre o crente e o Evangelho acontece a mediação de uma análise. Esta análise funcionalista corresponde, normalmente, às clas­ses endinheiradas e burguesas, às classes dominantes, ao capitalismo e a muitos pobres — os pobres alienados — nos quais o sistema soube introjetar a visão e os interesses dos ricos, com a colaboração, muitas vezes, de uma religião que somente dá "preferência" aos pobres.

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Existe outra forma de entender a OP que depende de outras análises da realidade, de outra forma de olhar o mundo. É a análise que se costuma chamar de dialética. Este tipo de análise olha a realidade sob outra perspecti­va. "O mundo não está bem. O sistema mundial não fun­ciona e não pode funcionar. Não é que esteja mal, mas que é radicalmente mau e não serve. Não é que no mundo há pobres e ricos, mas que há pobres porque há ricos. Há — para falar mais claramente — empobrecidos e enrique­cidos. Entre a pobreza e a riqueza há uma relação causai (nem fatalista ou providencial, mas estrutural, humana, histórica, transformável). Há explorados e exploradores. E, por isto, esta organização do mundo deve ser destruída e substituída por outra."

No atual sistema de desigualdade social, as coisas vão bem para os poderosos. Por isto, é lógico que julgam que o sistema é bom e que tratem de consolidá-lo. Para os exploradores, as coisas vão mal neste sistema e é lógico que queiram modificá-lo, porque consideram que é mau. Só os explorados e os que se colocam em seu lugar social podem ver a perversidade do sistema. Fora deste lugar não é possível dar-se conta: a maldade do sistema — que é ruim mas muito inteligente — está muito bem dissimu­lada. Somente no lugar dos pobres é que se dá a perspec­tiva que deixa ver sua maldade, sua injustiça, sua negação radical da vontade de Deus.

Este tipo de análise, chamada de dialética, é a dos pobres, dos explorados, das classes dominadas e a de to­dos aqueles que embora não pertençam à camada social dos pobres, se colocaram em seu lugar solidários com eles e olham a realidade a partir desta perspectiva.

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Levando em conta estes dois tipos de análise, estas duas formas de entender a sociedade e de situar-se frente a ela, estamos em condições de explicitar mais concreta-mente as exigências que uma genuína OP sofre a respeito.

Quem faz a opção pelos pobres, entre estas duas perspectivas contrárias e incompatíveis, destas duas for­mas de entender a sociedade, destes lugares para olhar a sociedade e dela participar, escolhe a perspectiva e o lu­gar social dos pobres, a forma que estes têm de entender a sociedade.

Optar pelos pobres é tembém (por envolvimento) renunciar ou rejeitar a perspectiva dos ricos (vêem o sis­tema como bom e desejam que permaneça e se consolide e o defendem, inclusive, à custa dos pobres). A opção pelos pobres tem implicações ideológicas, tanto como as tem a opção pelos ricos, enquanto que, tanto uma quanto outra, incluem a opção por um modelo de análise da reali­dade social.

Optar pelos pobres significa escolher o lugar social dos pobres e olhar a vida, a sociedade, a história, a liber­dade, as próprias possibilidades, tudo a partir deste lugar, desta perspectiva dos pobres, em função de seus interes­ses de troca da sociedade, e não em função dos interesses de sustentação e consolidação do sistema que beneficia aos que têm interesses contrários aos dos pobres.

Optar pelos pobres não é, pois, questão de "prefe­rencia" (prefiro os pobres, embora não deixe de optar pelos ricos), mas uma questão de alternativa excludente: quem opta pela perspectiva e o lugar social dos oprimidos não pode partilhar, por sua vez, a perspectiva e o lugar social dos opressores.

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Quando se tem a visão e a análise própria da OP, normalmente se tem mentalidade crítica, quer dizer, se é consciente de que há outros que têm outra análise, a aná­lise funcionalista, análise que faz com que não vejam as estruturas de injustiça no mundo. Os partidários da OP, normalmente (pela própria natureza da OP), fizeram um trajeto intelectual no qual se tornaram conscientes de que o Evangelho não nos dá instrumentos de análise da reali­dade. Descobriram que, qualquer análise da sociedade é uma ferramenta metodológica, uma mediação entre nós e o Evangelho.

"Não se pensa igual nem se lê o Evangelho de for­ma igual numa choupana e num palácio." A vida, nossa situação nela, nosso lugar social... influem em nossa for­ma de pensar e ler a realidade e o Evangelho. Lendo o Evangelho com uma análise funcionalista, deduzem-se al­gumas conseqüências e, lendo-o com outra análise, dedu­zem-se outras conseqüências diferentes.

Se leio o Evangelho com uma análise da realidade funcionalista, direi que há pobres e ricos, que isto é assim "porque sim" (porque Deus o quer, por fatalidade, porque é irremediável, por subdesenvolvimento social...) e, por­tanto, direi que o máximo que posso fazer é ser muito "caridoso" e fazer tudo que possa pelos pobres, sempre dentro do que o sistema dá (quer dizer, na linha assistencial ou reformista): esta é a OP preferencial, não excludente.

Se, ao contrário, leio o Evangelho com outra análi­se, direi que há "pobres porque há ricos"; mais ainda, direi que, em realidade, o que há é "enriquecidos à custa dos empobrecidos", explorados e exploradores; que isto não é fatal; que não é o que Deus quer, mas algo que depende do homem, algo histórico e estrutural que há de

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mudar radicalmente na linha da fraternidade e do amor e que esta é a vontade de Deus. Nesta perspectiva, a única atitude coerente com minha fé cristã será optar pelos po­bres, o que significará olhar o mundo a partir de sua ótica, rejeitar a ótica dos interesses dos poderosos e me unir à luta libertadora dos pobres para mudar a sociedade.

Muitas formas de falar da OP, "preferencial não excludente", se evidenciam devedoras de um tipo de aná­lise funcionalista.

Se lemos o Evangelho a partir de uma análise funcionalista tiramos dele todo caráter profético e trans­formador e não conseguimos deduzir, a partir dele, mais do que atitudes de assistencialismo ou de reformismo, quer dizer, atitudes que só servem para mitigar ou corrigir os "abusos" do sistema, deixando-o intacto em sua injus­tiça essencial. Nesta situação, o que se consegue de defi­nitivo é converter o Evangelho em legitimador de um sistema social injusto. Com isto, se converte Deus e a religão em ópio para os pobres.

Não excludente?

O qualificativo de "não excludente" que se aplica à OP vai na mesma linha que o qualificativo de "preferen­cial" e é muito mais confuso.

Há uma evidência aparente que pode raciocinar as­sim: "É claro que Deus não exclui ninguém, nem sequer seus inimigos. O próprio Jesus, tampouco, excluiu os ri­cos: aí está o caso de Zaqueu. Logo, está claro que a OP não pode excluir ninguém. Não se pode optar pelos po­bres e não optar pelos ricos. Há que optar por todos: o máximo que se poderia fazer seria optar pelos pobres pre-

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ferencialmente, mas sem excluir ninguém, quer dizer, sem deixar de optar pelos ricos..."

Mas isto é um sofisma. Não pelo que diz explicita­mente, mas pelo que dá a entender implicitamente.

A OP, com efeito, não pode ser excludente com ninguém, nem ninguém quis torná-la excludente de pes­soas, nem de ricos nem de pobres. A OP, estabelecida na América Latina, não quer orientar sobre quem vamos ad­mitir e quem vamos excluir da Salvação. A Salvação é de Deus e é ele quem quer salvar a todos. Que alguns cris­tãos façam a OP, não significa que queiram entender que Deus exclui de sua Salvação uma parte da humanidade.

Optar pelos pobres não significa optar pela pessoa do pobre em si, nem excluir a pessoa do rico. Optar pelos pobres é optar por sua causa, sua perspectiva, seus inte­resses, sua forma de ver a sociedade, tornado-se solidário com eles ao participar de suas lutas e compartilhar da utopia que os anima em seu compromisso liberador. Por­tanto, optar pelos pobres significa — isto sim — excluir a perspectiva dos ricos, excluir seus interesses de classe, sua forma de ver a sociedade, seus interesses privados e privatizantes, seus projetos de consolidação do atual siste­ma que lhes favorece na base da exploração dos pobres.

A OP é, certamente, excludente, mas não de pes­soas. Não se exclui ninguém. Mas se exclui algo.

A OP não exclui nunca as pessoas dos ricos, porque a Salvação é oferecida a todos e a Igreja se deve a todos em seu ministério, mas se exclui o modo de vida dos ricos, verdadeiro insulto à miséria dos pobres e também se exclui seu sistema de acumulação e privilégio, que,

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necessariamente, espolia e marginaliza à imensa minoria da família humana, povos continentes inteiros.

Jesus não excluiu os ricos nem rejeitou Zaqueu, mas excluiu seu pecado de opressão aos pobres. Convidou o jovem rico a segui-lo, mas com a condição de deixar de ser rico. Foi o jovem que, por preferir as riquezas se auto-excluiu. A OP de Jesus pelos pobres foi "excludente", não no sentido de excluir os ricos de sua oferta de salva­ção, mas no sentido de excluir radicalmente do Reino as atitudes de poder e de exploração. A OP de Jesus não foi "preferencial" no sentido de que, tendo sido ele aberto e dedicado a todos, indiscriminadamente, simplismente se dedicara um pouco mais aos pobres, lhes dera certa prefe­rência.

Neste sentido, a OP de Jesus não foi preferencial, mas alternativa: escolheu um dos dois modos alternativos e mutuamente excludentes de situar-se frente à realidade, elegeu o estar definido inequivocamente ao lado dos po­bres, a favor da justiça, a favor da mudança estrutural que o próprio Deus vai trazer em favor dos pobres.

Jesus não sentiu necessidade alguma de matizar a parcialidade do texto de Isaías 61,1-2: "Fui enviado a dar a Boa Nova — preferencialmente, embora não de um modo exclusivo — aos pobres". Nem Lc 7,18ss nem Mt 25,3l ss refletem uma atitude em direção aos pobres "ape­nas preferencial e não excludente"... Por isto, ele já nos previniu frente a possíveis conflitos e escândalos por sua OP quando disse: "Feliz aquele que não se escandaliza de mim". E exultou no Espírito, dando graças porque o Pai revelou estas coisas (do Reino) aos pequenos e aos po­bres.

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Pode ficar claro, à luz destas explicações que, quan­do no discurso teológico se quer introduzir estes matizes que parecem ser "universais, evidentemente evangélicos e muito imparciais e equilibrados", na realidade, está-se fa­zendo outra coisa:

— Está-se levando a OP do plano de uma opção vital frente à realidade (opção pela perspectiva e os inte­resses e as lutas dos pobres) a outro plano desvirtuado, que consistiria simplesmente em dar uma certa preferên­cia de atenção aos necessitados. São duas coisas total­mente diferentes.

— Está-se introduzindo uma análise funcionalista sob aparência puramente religiosa. Talvez sem estar cons­ciente disto, introjeta à análise da realidade dos grupos poderosos, o instrumento socioanalítico das classes domi­nantes. Quer dizer: como um novo cavalo de Tróia, se emprega a OP "preferencial não excludente" para intro­duzir e introjetar de forma oculta a opção contrária, a opção dos poderosos;

— em algum sentido se pode dizer que a OP, "pre­ferencial e não excludente", não é uma das tantas defor­mações que a OP possa sofrer, mas sua própria negação.

Concluindo

As duas formas de conceber a OP dependem de duas análises da realidade: a dos ricos e a dos pobres. Nenhuma das duas é dogma de fé. Nenhuma das duas se deriva diretamente do Evangelho. Entram melhor dentro do âmbito ideológico do sócio-político-econômico.

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Por isto, quem deseja fazê-lo, pode adotar a análise dos poderosos e continuar falando de OP "preferencial não excludente". Mas os cristãos que têm visão crítica e detectam o que esta OP oculta, os cristãos que optaram pela análise da realidade dos pobres, sabem que têm todo o direito do mundo a optar por ela e que ninguém lhes imporá outra e, principalmente, que ninguém queira lhes impor de forma oculta, por via de discurso religioso ou de autoridade eclesiástica.

O magistério esclesiástico não tem nenhum direito de impor uma análise da realidade concreta (como não pode impor um modelo biológico ou astronômico). Tampouco a Teologia da Liberação tem alguma autorida­de para fazê-lo. Trata-se mais de uma opção que cada cristão fará, por seu próprio discernimento cristão, com base em sua própria experiência da realidade.

Nós, cristãos da América Latina, depois de um discernimento atento, estabelecemos, nestes últimos anos, a opção pelo método de análise tradicional dos pobres porque:

— dá conta de si próprio em nível racional e cientí­fico;

— é o que melhor se enquadra com Jesus;

— é o que melhor ajuda a analisar a realidade a partir dos interesses dos pobres;

— é o que mais ajuda a transformar a realidade;

— e é o dos pobres.

Temos, portanto, todo o direito do mundo de rejei­tar a OP, "preferencial não excludente", com a análise

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que sofre, de denunciá-la publicamente para despertar os desatentos. Temos todo o direito de proclamar nossa OP. esclarecendo que estamos conscientes de que a opção que fazemos é entre dois termos alternativos, mutuamente in­compatíveis e que por isto, não é preferencial e que assim mesmo, nossa OP não é excludente dos ricos, mas o é de suas atitudes e de seu modo de vida — e até de sua teologia e de "sua opção preferencial e não excludente pelos pobres".

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ASPECTOS GEOPOLÍTICOS DA OPÇÃO PELOS POBRES

Giulio Girardi

O que é, para você o mais importante na opção pelos pobres?

— Creio que é importante aprofundar o sentido da OP dizendo que é uma opção pelos pobres como sujeitos históricos. Quer dizer, não é apenas uma solidariedade, uma forma geral de amor o que se afirma com esta opção, mas é uma afirmação de que os pobres (quer dizer, as classes populares, os povos oprimidos, os setores margi­nalizados da sociedade) são chamados a serem sujeitos de sua história, sujeitos da sociedade. E, ao optar pelos po­bres neste sentido, se opta também por um projeto de sociedade no qual estes setores que até agora ficaram marginalizados, se convertem em sujeitos, em protagonis­tas.

Entendida deste modo, a OP é, ao mesmo tempo, uma opção subversiva e uma opção utópica.

É subversiva porque questiona radicalmente a orga­nização da sociedade na qual os pobres se encontram marginalizados e é utópica enquanto apresenta uma alter­nativa de sociedade cuja possibilidade não se fundamenta

6. Opção [H-lns pobres hoje 81

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cientificamente, mas que implica numa espécie de aposta baseada numa confiança ousada nestes setores populares. Digo uma confiança ousada, porque vai mais além das aparências e, muitas vezes, vai além, inclusive, do próprio nível de consciência destes setores populares, o que im­plica a capacidade de ter, neles, uma confiança mais forte do que a que eles têm em si mesmos. Mas trata-se de uma confiança que intui e antecipa as possibilidades e aspira­ções dos pobres, contribuindo, assim, para despertá-las, para despertar neles esta nova consciência, para fazer com que as possibilidades que têm cheguem a ser realidades, forças históricas.

Como formularia a relação da OP com o geopolí-tico?

— A opção política pelos pobres, quando é assumi­da até as últimas conseqüências, chega a ser geopolítica. Os pobres, em nível mundial, são também "os povos", os povos oprimidos, que, na organização atual do mundo, têm uma posição subordinada aos impérios. Optar pelos pobres é, então, também, optar pelos povos como sujeitos históricos, optar por uma organização do mundo na qual os povos sejam sujeitos, quer dizer, por uma organização do mundo que rompa esta estrutura imperial.

Neste sentido, a "opção pelos povos" é, todavia, de um modo mais profundo e amplo, uma opção subversiva, porque questiona toda a organização do mundo e é uma opção utópica, porque propõe uma era dos povos, um mundo dos povos, sem ter segurança científica de sua possibilidade, dando uma espécie de salto ousado em di­reção ao futuro, apostando em possibilidades desconheci­das.

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Teologicamente, esta proposta é uma leitura do pro­jeto de Jeová e de Jesus, uma leitura que extrai todas as conseqüências do que Jeová quer dizer e revela ao mundo no Egito, tomando partido dos escravos e impelindo uma multidão de escravos a se converter em povo, a tomar as rédeas de sua história, a imaginar uma sociedade alterna­tiva à do Egito e alternativa ao tipo de sociedades que circundavam o Egito. Portanto, é uma interpretação revo­lucionária do projeto de Jeová e da própria concepção do povo de Jeová.

Povo de Jeová, nesta perspectiva, é um povo que optou pela liberdade, um povo que vai construindo sua história, de um modo autônomo, estimulado por sua fé em Deus, um povo que decide construir uma alternativa às sociedades de classe, às sociedades opressoras que ti­nham conhecido, um povo que chega a ser vanguarda de um movimento de libertação destinado a ser universal e, na perspectiva de Jeová, a mobilizar todos os povos do mundo.

— Que pensar da posição que afirma que, na ver­dade, no amor e na Igreja há que ser neutro, que nestes campos não se deve optar nem pelos ricos, porque a ver­dade é objetiva, o amor é imparcial e a Igreja é univer­sal...?

— Creio que quem dá a resposta é o próprio Jeová quando, para expressar seu amor universal em direção aos homens, se encontra na necessidade de optar. Porque não se pode amar os escravos sem optar por eles, quer dizer, sem enfrentar e lutar contra o opressor.

Creio que com isto o êxodo instaura, ao mesmo tempo, uma nova concepção da religião e uma nova con-

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cepção do amor. É uma religião que questiona as religiões dos faraós, que questiona os deuses aliados da opressão. É uma religião que questiona os deuses que consagram a ordem estabelecida, que desde o primeiro momento se apresenta como subversiva, conflitiva e, portanto, revela a natureza do amor de Deus como um amor que quer reno­var a paz na terra e que, para renová-la, tem que enfrentar toda resistência, toda forma de opressão.

Neste mesmo sentido, os membros deste povo, que têm que viver sua própria história, em sua própria dinâmi­ca a nova concepção do amor, são chamados a tomar partido na história, a tomar partido pelos escravos, a to­mar partido por todos os oprimidos, enfrentando, então — para realizar a universalidade do povo de Deus — todos os setores que querem que a vida seja privilégio de uma elite, todas as estruturas da sociedade onde se pode reali­zar a universalidade do amor porque há uma casta, uma classe, um grupo social, que confisca a vida, monopoliza a riqueza, serve a si mesmo com o poder.

—A OP poderia ser, simplesmente, um "amor pre­ferencial?"

— Depende muito do sentido desta "preferência". Caso se considere a preferência somente como uma forma de grau de amor, creio que não expressa a substância da opção cristã. Esta substância se situa dentro de um con­texto no qual a maioria das pessoas está sendo oprimida e reprimida e, portanto, optar por elas, significa tomar par­tido num conflito. Então, opção preferencial é uma opção revolucionária, uma opção subversiva.

Creio que esta é a razão pela qual não se chega a uma convergência entre os cristãos, que partem de uma

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afirmação geral de opção pelos pobres, mas, que logo se separam quando fica explícito o aspecto necessariamente conflitivo desta opção. Separam-se quando esta opção se defronta com uma estrutura opressora da sociedade e a questiona radicalmente. Separam-se quando esta opção questiona esta organização do mundo. Separam-se quan­do esta opção manifesta seu caráter subversivo ao explicitar a contradição entre uma opção radical pelos pobres e uma organização do mundo que foi realizada, em grande pro­porção, com o apoio e a bênção do cristianismo.

Neste momento, a OP significa questionamento de toda uma prática cristã, de toda uma estrutura cristã que se adaptou profundamente às estruturas da sociedade. E isto explica que a OP, que parece ser, à primeira vista, um elemento unificador de todos os cristãos, pode chegar a ser um elemento de divisão e de ruptura.

— Que dizer do "lugar social" a partir do qual vemos a realidade?

— A OP, no sentido forte de opção pelo povo como sujeito histórico, não é apenas uma opção política, mas é, também, uma opção cultural. Quer dizer: colocar-se no ponto de vista dos pobres como sujeito significa mudar, radicalmente, a visão do mundo, a visão da história.

Por que motivo? Porque vivemos, justamente, num mundo que tem uma organização imperial, onde o ponto de vista dos mais fortes domina não somente o plano da política e da economia, mas também a cultura. O que quer dizer que, sem estar consciente disto, a grande maioria dos cristãos está pensando, olhando a história, focalizan­do os problemas a partir do ponto de vista dos mais for­tes, que, muitas vezes, em nível dos problemas geopolíti-

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cos, quer dizer o ponto de vista etnocêntrico, o ponto de vista eurocêntrico.

Optar pelos pobres quer dizer, em primeiro lugar, tomar consciência de que toda nossa cultura está penetra­da por uma opção pelos ricos, por uma opção pelos pode­rosos e que estamos dominados pela cultura imperial. E, ao dizer que "estamos dominados", quero dizer que estamos sem sabê-lo, sem estar conscientes disto, porque a cultura domina também nossa consciência, nosso in­consciente e subconsciente. Tomar consciência de que nossa visão do mundo é eurocêntrica, imperial e está esta­belecida a partir do ponto de vista dos mais fortes, signifi­ca restabelecer os problemas a partir deste novo ponto de vista, que é o ponto de vista dos povos, o ponto de vista dos pobres, o ponto de vista dos oprimidos.

Este ponto de vista não somente é mais justo moral e politicamente, mas também epistemologicamente, e mais fecundo culturalmente.

Os mais fortes, os impérios, os grupos dominantes, para justificar sua condição de dominadores, para justifi­car a opressão que estão impondo à outra parte do mundo têm que encobrir muitos aspectos da realidade. Têm que falsear a realidade. Às vezes têm que apresentar uma visão do mundo ao contrário, onde os oprimidos apareçam como opressores e os opressores como oprimidos. Neste senti­do, o ponto de vista dos mais fortes, o ponto de vista dominante, o ponto de vista dos vencedores, na ótica da verdade, é um ponto de vista inferior, menos apto para conhecer o sentido das coisas, o sentido da realidade. A OP, como opção epistemológica, como opção cultural, se fundamenta, justamente, no convencimento de que uma atitude pessoal e coletiva, moralmente mais reta, mais

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justa é, também, culturalmente mais verdadeira e mais fecunda, porque permite olhar a realidade sem máscara. É preciso olhar a realidade sem máscaras. Porque isto per­mite, ainda, descobrir potencialidades, capacidades que o ponto de vista dos mais fortes costuma reprimir e enco­brir: as capacidades e potencialidades dos pobres, dos oprimidos, capacidades e potencialidades que séculos de história tinham reprimido e destruído e que queremos li­bertar nesta etapa da história.

Mas para libertá-las é preciso descobri-las. E para descobri-las, é necessário procurar caminhos novos, tam­bém em nível intelectual. Há que ter uma nova ousadia. É preciso ter uma nova confiança em possibilidades desco­nhecidas. E esta é a radical troca epistemológica que se nos impõe dentro de cada sociedade, assim como em ní­vel de toda a visão do mundo. E, neste sentido, a cons­ciência dos países chamados periféricos, que despertam ao descobrir suas possibilidades e seus direitos, que to­mam em suas mãos as rédeas de seu destino... É um lugar epistemológico extraordinariamente rico em possi­bilidades e perspectivas.

Por isto, estou convencido de que se entende muito melhor e mais profundamente o sentido da história e da vida, situando-se nestes países chamados periféricos, a partir, principalmente, do momento em que estes países rompem com a passividade de sua história e começam a descobrir sua vocação de serem sujeitos.

Neste sentido também creio que este lugar é teolo-gicamente mais fecundo, porque é o lugar onde se mani­festa, mais claramente, esta súbita invasão do Deus liber­tador na história. É o lugar onde se torna mais possível descobrir esta novidade da revelação, a revelação de uni

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Deus que rompe os esquemas da escravidão e mobiliza o povo, mobiliza o mundo para que opte pela liberdade, para que transforme sua história na direção de um com­promisso libertador.

Desta forma, a opção geopolítica pelos pobres é, também, uma opção teológica. E acredito que é a opção que caracteriza a Teologia da Libertação em nível metodológico.

— Você acha que se pode entender a OP sem senti­do geopolítico?

— Sim, porque na medida em que não se chega a ver que os pobres também são os povos, mas que se con­sidera os pobres meramente como indivíduos, ou se con­sidera os pobres como grupos sociais, mas limitando-se a uma sociedade particular, chega-se a uma opção política, mas não se chega a ver que há uma organização no mun­do na qual os pobres estão marginalizados. Há, aí, dois saltos: um de opção ética pelos pobres e uma opção polí­tica pelos pobres, quando se esclarece que estes pobres, pelos quais se opta, são sujeitos potenciais e sujeitos de direito da história da sociedade; e esta opção política se converte em geopolítica. Outro, quando esta perspectiva dos pobres como sujeitos não se limita ao âmbito de uma sociedade particular mas se converte numa perspectiva de organização do mundo e, portanto, num questionamento da organização imperial.

—Está dando a entender que o passso de uma OP ética em um nível político e geopolítico não é algo estra­nho, mas um aprofundamento de sua mesma dinâmica interna ?

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— Sim. Na medida em que se toma consciência das raízes da pobreza como fato individual, na medida em que se procuram as causas da pobreza individual, chega-se a descobrir que estas causas estão, fundamentalmente, nas estruturas da sociedade e que então, o amor aos po­bres tem que se defrontar com estas estruturas. Então se passa, necessariamente, de uma opção simplesmente mo­ral ou ética a uma opção também política. E quando se amplia o horizonte e se vê que as raízes da pobreza não são apenas as estruturas de uma sociedade, mas são as próprias estruturas do mundo e que cada vez mais não se pode fazer a libertação dos povos sem questionar a orga­nização do mundo, então a opção moral,ética e política pelos pobres se converte numa opção por um mundo novo, uma opção por um mundo onde os pobres sejam sujeitos e é, já neste sentido, uma opção geopolítica pelos pobres.

—Já faz alguns anos que você escreveu: "O senti­do da vida não se pode definir sem se situar de frente aos pobres". Poderia explicá-lo à luz do que estamos dizen­do?

— Não se pode definir o sentido da vida sem definir o sentido da história, sem situar a própria vida na história. E o sentido da história se descobre tomando partido em seu conflito fundamental, que é o conflito entre os povos e o império. Optando pelos povos, contra o império, se opta pela força do direito, contra o direito da força. Se opta por uma organização do mundo onde o amor, o di­reito à justiça se convertem numa força histórica transfor­madora. E o sentido da vida se realiza, justamente, no compromisso para fazer este mundo novo, na aposta pela realização desta utopia histórica.

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— O não optar pelos pobres eqüivaleria a optar — ainda que inconscientemente —pelos ricos opressores?

— Sim, evidentemente, porque a organização do mundo e a organização de nossa cultura é um fato frente ao qual já nos encontramos. Não é um fato que temos de construir. E nos encontramos dentro de um mundo que está dominado pelos impérios. Encontramo-nos dentro de uma cultura que está dominada pelo direito do mais forte e, embora não o saibamos, vivemos, pensamos e optamos nesta perspectiva. Então, ou bem chega em nossa vida, em nossa história, um momento no qual tomamos consci­ência disto, questionamos esta visão de mundo (o que quer dizer: questionamos toda nossa história, todo nosso passado, toda nossa cultura) e começamos um novo cami­nho, ou nem se chega a este momento de ruptura, a este momento de conversão e se continua pensando e atuando — sem sequer sabê-lo — nas categorias dominadas pela lei do mais forte.

Ao não fazer esta opção de ruptura, mantém-se as opções que a cultura dominante fez por nós e não as introjetou, que são opções a partir da perspectiva dos po­derosos.

Isto significa, também, optar por orientações dentro da mesma Bíblia. Há toda uma corrente bíblica de opção pelos pobres que se opõe à outra, à opção mais sacerdotal, mais do templo... As duas correntes estão presentes na Bíblia. E muito difícil, mas é necessário chegar a esta tomada de consciência. Para aprofundar o sentido da OP é necessário chegar também a ver que ela é uma opção não somente a partir da Bíblia, do Evangelho, mas uma opção também entre tradições bíblicas. Falamos da tomada de

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consciência, de uma confrontação que existe também den­tro da Bíblia, entre concepções da religião, entre concep­ções do culto, entre concepções de Deus.

— Nesta alternativa, a opção dos profetas é a op­ção pelos pobres. Seria permanente esta convergência entre o profetismo e a opção pelos pobres?

— O profetismo é, justamente, uma destas tendên­cias bíblicas. O profetismo é o propósito de resgatar, constantemente, o projeto de Jeová, a revelação primitiva reveladora, contra as intenções do clericalismo, de institucionalização, de organização monástica, de organi­zação classista... Há toda uma série de reinterpretações da religião da aliança e do projeto de Deus que o colocam a serviço dos poderosos. Também a luta de Jesus não é somente questionar uma organização opressora da socie­dade, mas também uma organização opressora da reli­gião, uma interpretação opressora de Deus, do culto. Isto estabeleceria, teologicamente, a necessidade de um ques­tionamento permanente da Igreja, da religião, sempre que voltar a retomar as estruturas opressoras, classistas, da sociedade.

— Que presença evangelizadora ou profética seria hoje mais urgente neste mundo tão dividido em seus inte­resses e formas de ver a realidade?

A presença mais urgente e missionária, hoje, seria a que se identifica com estes movimentos de surgimento dos novos sujeitos e que testemunha a presença de Deus e a presença da revelação nestes movimentos, que redescobre que este é o projeto de Deus, que este é o projeto de Jesus e que reconstrói a unidade que a história rompeu entre

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religião e movimentos de libertação, entre adoração a Deus e libertação dos homens e povos, entre Deus como sujeito da história e os homens e os povos como sujeito.

O projeto primitivo de Deus era, justamente, a uni­dade destes pólos, destas realidades, destes movimentos, mas esta unidade se rompeu através da história. Os movi­mentos de libertação tiveram de se realizar questionando a religião e esta se integrou muito mais nas estruturas opressoras, chegando a justificá-las e a ser um instrumen­to de opressão. O Kairós da época atual é a possibilidade de redescobrir a unidade primitiva, de voltar a realizar este encontro entre o projeto de Jeová e a paixão pela liberdade, que está ressurgindo na consciência dos ho­mens e dos povos.

O papel missionário fundamental de vanguarda é o de despertar a consciência destas novas possibilidades que nossa época está abrindo à revelação de Deus e de Jesus.

A alternativa entre as duas interpretações da OP, quer dizer, a opção pelos pobres como objeto de assistên­cia e de amor, e a opção pelos pobres como sujeitos histó­ricos, como protagonistas da nova história, me parece uma alternativa fundamental para caracterizar muitos conflitos que existem hoje na Igreja e na sociedade.

Esta alternativa caracteriza duas concepções da mo­ral, uma que considera o amor pelos outros como expres­são de procura do bem do outro e outra que concebe o amor aos outros, fundamentalmente, como procura da li­berdade do outro, promovendo sua iniciativa e seu cresci­mento como pessoa.

Eu diria que a diferença repousa numa concepção assistencial do amor e outra concepção participativa. Es-

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tas duas concepções do amor e da moral também influem nas implicações políticas desta presença do amor na his­tória. Numa perspectiva assistencial, pode-se muito bem ligar intimamente a OP com uma sociedade repressiva,com uma sociedade classista. Em troca, quando se concebe a OP em termos participativos e os pobres são sujeitos da nova história, o questionamento de uma sociedade repres­siva ou classista se faz fundamental. Assim entendida, a OP implica uma perspectiva utópica, uma alternativa radi­cal que não está envolvida na opção assistencial pelos pobres.

O mesmo vale em nível geopolítico. Há uma solida­riedade com os povos, com os pobres, com o terceiro mundo, que indica uma vontade de ajudá-los em sua pro­cura para participar no desenvolvimento. E há solidarie­dade que reconhece como sujeitos históricos, que questio­na a ordem imperial, que sofre uma alternativa radical não somente na visão da sociedade, mas em toda a orga­nização do mundo.

Estas duas concepções do amor também implicam duas concepções da história, porque uma visão assistencial do amor é compatível com uma concepção da história fundamentada na lei do mais forte, que é uma concepção da história que aceita a inevitabilidade da lei da violência e, dentro desta exigência, reconhecida e aceita, tenta abrir espaços, mas que são espaços de alternativa parcial, nos quais há preocupação em respeitar as pessoas, em criar condições de vida de alternativa para os pobres, mas não se questiona toda a lei histórica que faz com que os pode­rosos, os impérios, tenham a direção da história e sejam aqueles que a dirigem. Assim, pois, há aqui uma alternati­va entre duas concepções da história.

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Também aqui se dividem duas concepções do cristi­anismo. Creio que muitas das divisões que sofremos em nossas igrejas, nestes anos, surgem desta dupla interpreta­ção da OP: uma igreja que se preocupa, sobretudo, em manifestar seu amor assistencial aos pobres e que por isto não se opõe em contradição com a sociedade de classes nem com a organização imperial do mundo e, por outro lado, uma igreja que opta pelos pobres como sujeito e entra, inevitavelmente, em conflito com a organização imperial do mundo.

Da mesma forma, estas duas opções significam duas concepções opostas da mesma organização da Igreja, do sentido que tem a hierarquia, do sentido que tem o sacer­dócio, a eucaristia, que tem a leitura Bíblica, o papel prin­cipal que tem o povo ou, simplesmente, seu reconheci­mento com interlocutor previlegiado.

Por último, seria importante colocar em evidência que estas duas concepções do amor também dividem a Bíblia. Quer dizer, há uma ruptura importante, um confli­to entre duas concepções da religião que atravessa a Bí­blia, não apenas a história da Igreja. A concepção de Deus que se revela proclamando a libertação dos escravos é, justamente, uma concepção de Deus que está profunda­mente vinculada ao reconhecimento e a promoção do povo como sujeito e esta visão é a que caracteriza Jeová no momento em que se manifesta pela primeira vez e irrompe na história, no Egito. Esta visão implica a vinculação da revelação de Jeová com a de um projeto popular, com a de um projeto revolucionário. Implica uma concepção do povo de Deus como um povo alternativo, que se distingue não somente por sua relação com Deus, mas por toda sua concepção da sociedade, das relações entre os homens desta época.

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No entanto, esta revelação de Deus se defronta com a evolução da sociedade num sentido autoritário e classista, que provoca, também, uma transformação da religião, que se converte em religião do templo, numa religião hierár­quica, numa religião sacerdotal, na que o povo deixa de ser sujeito para converter-se em objeto de assistência, ob­jeto de interesse por parte da religião e, muitas vezes, em objeto de submissão e de opressão. Este conflito entre o que eu chamaria a religião do templo e a religião do povo atravessa o Antigo Testamento. Os profetas são os teste­munhos da presença insistente de Jeová através da histó­ria, que quer reafirmar e recordar seu projeto libertador, mas são também testemunhos de que este projeto conti­nua traído, sendo abandonado pela aliança que se estabe­lece entre os poderosos, a monarquia absoluta, que se vai estabelecendo e os sacerdotes, que reinterpretam a reli­gião, reinterpretam o projeto de Jeová em termos classistas, em termos hierárquicos e portanto traem esta inspiração.

Creio que o sentido profundo da mensagem de Je­sus é, precisamente, sua intenção de reatualizar a revela­ção de Jeová, de repelir a mensagem de que Deus se revela libertando os cativos e, potanto, é um traçar sobre os alicerces já construídos, a planta de uma obra já estu­dada e projetada da religião como promotora de libertação, como promotora do povo como sujeito histórico. Por sua vez, este traçar, sobre os alicerces já construídos, entrará em contradição com a organização da sociedade, com o império, e, nesta contradição, se relizarão processos de readaptação da religião de Jesus às exigências do império, que irão desenvolvendo um novo projeto de religião cristã muito parecido à religião do templo que Jesus e os profe­tas haviam questionado.

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Assim, vejo também na história do cristianismo a importância que esta opção fundamental tem, que é, tam­bém, a luta dos deuses. O Deus que corresponde ao Deus libertador é muito diferente do Deus que corresponde ao projeto de ordem, ao projeto de obediência, à organização imperial da sociedade.

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VIDA RELIGIOSA E OPÇÃO PELOS POBRES

Victor Codina

—Que relação você vê, Victor, entre a vida religio­sa e a opção pelos pobres?

— Vamos situar-nos numa perspectiva histórica e eclesial, mais do que teórica.

Desde os primórdios da Igreja houve cristãos que levavam o Evangelho muito a sério. Nos primeiros sécu­los foram, sobretudo, os mártires. O Evangelho os levou a um seguimento radical de Jesus, até as últimas conse­qüências.

Quando o martírio desaparece, há um grupo de ho­mens que vai ao deserto para poder viver a vida radical, a fraternidade cristã e compartilhar os bens... De alguma forma, também, colaborar com os pobres. Muitos deles eram pobres.

A partir da Idade Média, quando já aparecem com clareza as categorias sociais de uma pequena burguesia incipiente, a Vida Religiosa marca um novo caminho de ir à periferia para estar com os setores mais populares, como os franciscanos, os mendicantes etc.

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E, na época moderna, também, podemos dizer que todas as regras, todos os grandes ciclos da vida religiosa se caracterizaram por ir a estes lugares onde há sofrimen­to, onde há dor, onde há enfermos, onde há jovens sem instrução, onde há escravos, onde há situações de subde­senvolvimento — como se a chamou.

De forma que a vida religiosa compreendia a radi-calidade da consagração a Deus por uma radicalidade de entrega aos irmãos, sobretudo aos irmãos mais necessita­dos e pobres. Então, podemos dizer que há uma espécie de identidade e uma correlação íntima entre vida radical, vida religiosa, Evangelho vivido em radicalidade e entre­ga aos pobres, ao serviço dos mais necessitados.

— A OP na vida religiosa, nestes últimos tempos, adquire a face da "inserção". Que relação há entre OP e inserção?

Parece-me que o tema da OP é, no fundo, um tema bíblico. Os religiosos, indo aos lugares mais pobres, dei­xando o centro da cidade em busca da periferia, do cam­po, das minas, das vilas — miséria, das favelas, dos su­búrbios... ou trabalhando com setores étnicos oprimidos, realizaram, histórica e praticamente, o que em nível ofi­cial se formulou na Igreja como OP. Poder-se-ia dizer que a vida religiosa foi uma realização histórica e existencial do que formulou, de forma teórica, como OP. Podemos dizer que, em alguns casos, a vida, a práxis, antecedeu a reflexão, enquanto que em outros, foi a reflexão que le­vou os religiosos a viverem com os pobres. De fato, há documentos do magistério nos quais o próprio Papa exor­ta os religiosos a irem escutar o brado dos pobres. Por exemplo, o documento "Evangélica Testificatio" de Paulo

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VI. Em outros documentos é ao contrário. Por exemplo: no documento de Puebla se constata que nos religiosos houve uma descentralização, um êxodo em direção ao lugar dos pobres e que isto levou a um novo conceito de comunidade, de inserção na Igreja local, a uma nova espi­ritualidade. No fundo, a vida religiosa encontra seu lugar eclesial e social quando se aproxima, de novo, do mundo dos pobres.

—A inserção se entende, normalmente, como inser­ção nos meios populares, inserção na cultura etc. Que novas fronteiras haveria na América Latina para a OP? Quais seriam os desafios, as últimas fronteiras ainda pendentes para a vida religiosa na América Latina no que se refere a OP? Em que novas frentes? inserir-se até onde?

Fico um pouco envergonhado em falar disto porque, em primeiro lugar, numericamente, as pessoas mais inseridas são as religiosas. São elas que, quantitativamente — e creio que qualitativamente também —, levaram mais a sério esta inserção.

Esta inserção começou primeiro com uma troca de lugar, uma troca geográfica. Logo se viu que isto levava a uma espécie de solidariedade social, podemos dizer "só-cio-política-histórica" com os pobres. Pouco a pouco, viu-se que isto levava à entrada no mundo cultural e antropo­lógico dos pobres, que é um mundo muito difícil. E, final­mente, o outro passo foi dar-se conta de que isto supõe participar da mesma dimensão religiosa da religiosidade popular dos pobres.

Parece-me, pois, que estamos no início e que, nos poucos anos em que isto está se realizando, já se começa

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a ver mudanças, mudanças na forma de entender a vida religiosa, os votos, o trabalho apostólico, a missão, a co­munidade... Tudo fica impactado por esta proximidade.

Um problema que permanece é que, ao final, estes religiosos sempre são estranhos a este mundo. São sem­pre estrangeiros que fazem um esforço para se aproximar deste mundo dos pobres, porque muitos deles não nasce­ram, ou pelo menos não se educaram neste mundo.

O passo seguinte seria que os mesmos pobres dos lugares urbanos, camponeses, das mesmas etnias etc; não apenas entrassem na vida religiosa tradicional, mas fos­sem capazes de encontrar sua forma de vida religiosa ra­dical dentro de sua própria cultura, em seu próprio habitat, sem necessidade de entrar em outras organizações que, que pelo fato de serem, muitas delas, européias, ou por muitas terem uma estrutura muito "ocidental", não dei­xam de ser estranhas a este mundo.

Portanto, estamos numa situação muito incipiente.

— Disse que também se deveria inserir nas lutas populares...

— Naturalmente. Quer dizer, na medida em que se está com o povo, é preciso acompanhá-lo neste grande processo de sua libertação econômica, social, política, cultural etc.

— Num certo sentido, podemos dizer que a vida religiosa esteve inserida num meio ou em outro. Por que houve uma vida religosa inserida nas classes dominantes, na cultura burguesa... É uma contradição com a radica-lidade evangélica inserir-se nas classes dominantes, tal como se fez classicamente?

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— Para não fazer jogo de palavras, quando falamos de "inserção", nos referimos à inserção em lugares "po­pulares". Então eu diria que a vida religiosa que freqüen­temente nasceu nestes setores, ou para estes setores, ou em função destes setores populares, com o tempo, ficou como que domesticada pelos setores dominantes, que se apropriaram dela e aconteceu como que uma mudança de lugar social, a partir dos locais populares ao da burguesia. De maneira que quando a vida religiosa volta aos lugares populares, no fundo está fazendo mais que voltar a seu centro teológico, ao lugar espiritual e eclesial que lhe corresponde, a seu lugar profético. A vida religiosa sem­pre se situa à margem, na periferia, no deserto, na frontei­ra. E quando se situou no centro do poder, do prestígio, foi, no fundo, infiel a seu carisma original e a sua radica-lidade.

Evidentemente isto não quer dizer que se deva abandonar outros lugares. O problema está em a partir de onde se deve evangelizar outros lugares, outras pessoas. Mas, em todo caso, a evangelização dos setores não po­pulares somente poderá ser evangélica quando for feita a partir desta solidariedade, a partir desta inserção, inclusi­ve física, com estes setores populares. Do contrário, pre­judicam-se os setores burgueses, porque se os batiza e legitima em sua situação, que não é evangélica e, na América Latina, normalmente é injusta e pecaminosa. E é por isto, justamente porque não é possível evangelizar estes setores sem dar uma grande sacudidela profética, que não se poderá fazer sem esta inserção nos lugares populares.

— Poder-se-ia dizer que a vida religiosa ou vive a OP ou deixa de ser radical?

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— Por trás de toda esta marcha em direção aos pobres, creio que tem que se procurar qual é sua funda­mentação autêntica. Muitos pensam que isto é uma moda, ou uma influência marxista. Outros acreditam que é uma conjuntura terceiro-mundista e que somente vale para es­tes países tão pobres...

Creio que estes motivos, embora possam influir e afetar, não são definitivos. A razão definitiva é, estrita­mente teológica e, com mais veemência, eu diria que é espiritual, "teologal". Quer dizer, foi Deus quem fez a opção pelos pobres. Ele é aquele que se deixou comover frente ao gemido do pobre, que se deixou conhecer frente ao gemido do pobre. Foi Deus que desde Abraão até Je­sus, desde Moisés até os profetas escutou o brado dos pobres e quer responder a este clamor.

E o seguimento de Jesus, enfocado a partir da pers­pectiva do Reino, leva a ficar com os marginalizados. A radicalidade da OP não é sociológica, política, econômi­ca, cultural... mas estritamente teológica, teologal, reli­giosa, mística... Seguir o caminho de Jesus, seguir o ca­minho do Reino, a prática das bem-aventuranças passa pela cruz de descer aos infernos, poderíamos dizer, para ressuscitar, para levar esta vida nova a estes lugares nos quais realmente não se leva uma vida humana. Mas isto, seguindo o caminho de Jesus e seguindo a trajetória de Deus em todo o Antigo Testamento e a tradição da Igreja — não apenas da vida religiosa, mas de toda a Igreja —. Sempre que a Igreja se aproximou dos pobres foi uma Igreja evangélica. Sempre que a Igreja se separou dos pobres, perdeu seu carisma, sua profecia, seu espírito, sua dimensão evangélica.

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OPTAR PELOS POBRES DEPOIS DA CRISE DO "SOCIALISMO REAL"

Glulio Girardi

Tratando de descrever a crise

A derrubada do comunismo nos países do Leste não é, em minha opinião, o eixo da crise atual. É, simples­mente, um elemento a mais dentro de uma crise que tem raízes muito profundas e antigas. A crise teve início quan­do uma geração de militantes, em várias partes do mundo, começou a duvidar fortemente de um conjunto de certe­zas com as quais o marxismo havia alimentado sua militância. Os acontecimentos do Leste europeu, que sig­nificam a queda de um certo modelo de comunismo, assi­nalam o auge deste questionamento. E a isto se acrescen­ta, com mais força ainda, a derrota eleitoral do sandinismo na Nicarágua, porque representa, ou pode representar, ao menos, o questionamento de uma possibilidade que sem­pre tinha ficado aberta, apesar da crise de outros modelos de marxismo, como possiblidade de um marxismo humanista, pluralista, democrático. Pareceria que, ao re­jeitar esta experiência com seu voto, o povo nicaragüense estaria desautorizando este propósito.

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Se queremos analisar o que a crise significa, temos de buscar suas raízes em aspectos mais gerais, mais fun­damentais, para ver sem demora como estes últimos acon­tecimentos vêm completar o quadro.

As certezas entram em crise

Para delinear corretamente o problema da crise, te­mos de partir de um conjunto de certezas com as quais o marxismo alimentou sua militância. Que certezas?

No fundo de tudo está uma espécie de otimismo histórico, quer dizer, um convencimento de que a história se desenvolveu na direção do progresso. Tratava-se de um progresso julgado pelo critério das classes populares, de sua libertação, quer dizer, por um critério diferente ao do positivismo, que se contenta em ver no progresso o avanço tecnológico e científico da humanidade e que, por hipótese, se encarna concretamente no fortalecimento da burguesia. Com Marx e Engels, realiza-se uma virada neste sentido e o progresso da humanidade passa a ser identifi­cado com o progresso da libertação das classes populares e, em última análise, na realização de uma sociedade so­cialista e comunista, com a vitória ou triunfo do proleta­riado.

Este otimismo histórico gerava a certeza de que a história se desenvolvia na direção da derrubada do capita­lismo, que ia gerar, naturalmente, o surgimento de uma sociedade qualitativamente superior, quer dizer , o socia­lismo e depois o comunismo. Esta certeza, segundo Marx e Engels, estava inscrita nas leis do desenvolvimento his­tórico cientificamente verificáveis. Eram "certezas cientí­ficas". Os militantes das esquerdas, em nível internacio-

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nal, com ou sem esta referência marxista, sempre se ali­mentaram de certezas deste tipo. É verdade que sempre lutaram admitindo a possibilidade de não assistir ao triun­fo de sua causa, mas estavam convencidos que, de todo modo, a classe, o movimento, a causa, triunfariam final­mente na história.

Parece-me interessante ver como na Nicarágua este otimismo histórico se apresenta no pensamento de Sandino. Ele se compromete numa luta completamente despropor-cionada contra um exército poderoso, o norte-americano, contando com as forças de seu "pequeno exército louco", mas com a segurança de triunfar. E que certeza lhe dava esta segurança? Não era uma certeza fundamentada numa análise econômico-científica, como no caso de Marx e Engels,mas a certeza que fundamenta um postulado mo­ral. Com efeito, Sandino está convencido de que a causa da justiça está destinada a triunfar principalmente por duas razões: em primeiro lugar, porque pode contar com a sen­sibilidade dos operários e camponeses que, em última análise, vão-se abrir a esta certeza e, portanto, a esta luta. Em segundo lugar, porque Deus dirige a história e a orienta em direção ao triunfo final da justiça e da liberda­de, que se manifestará com a derrota do imperialismo e a realização de uma comunidade mundial de povos liberta­dos.

As causas da crise das certezas

Por que estas certezas entram em crise num deter­minado momento que, para muitos países da Europa, pode se situar na segunda metade dos anos setenta? Por que este otimismo histórico entra em crise, esta certeza de que

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é possível uma alternativa ao sistema capitalista, de que para realizar este projeto se pode contar com a força das classes populares, e, em primeiro lugar, da classe traba­lhadora? Vários elementos intervém nesta crise.

Primeiro, as derrotas do movimento operário e po­pular, que dão ao movimento a sensação de que a correla­ção de forças não é favorável à construção de uma alter­nativa e de que, portanto, a capacidade do sistema capita­lista de se renovar e fortalecer está longe de ter-se esgo­tado.

Outro elemeto que influi muito nesta crise das cer­tezas é a dificuldade ou a impossiblidade de apresentar um modelo de socialismo que satisfaça, efetivamente, as exigências da alternativa a que o movimento popular as­pira. Não se pode apresentar, em nenhum dos países que se chamam "socialistas", um modelo que seja satisfatório. A crise do que se chama socialismo "real", do socialismo "realizado", contribui muito para questionar o socialismo ideal, o socialismo como projeto.

A este conjunto de argumentos acrescenta-se, nos últimos anos, a série de regimes que caem sob forte pres­são popular. A queda destes regimes marxistas e comu­nistas é vivida como um processo de libertação. Certa­mente, isto não se pode considerar, simplesmente o colap­so do comunismo e do marxismo, mas, de certo modelo, de comunismo e de marxismo. Mas, em todo caso, este fenômeno não deixa de questionar a possibilidade de uma alternativa, porque a dissolução do campo socialista, que é a conseqüência mais imediata deste desmoronamento, faz com que os movimentos de libertação, populares, se sintam muito mais fracos no confronto, na correlação de forças com o imperialismo; faz que se sintam sós e dimi-

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nuam as possibilidades de êxito numa luta que já era, por si só, tão difícil.

O último golpe vem da derrota eleitoral do sandinismo que, certamente temos interpretado — creio que com muito fundamento — como devida não só à insuficiência ou limites do projeto sandinista, como à vio­lência que o impediu de realizar seu projeto e propô-lo frente a uma opção verdadeiramente livre. Mas esta nossa interpretação não elimina o problema, porque deixa em aberto o ponto de interrogação de que, se não se pode prever o que qualquer tentativa, por mais democrática e humanista que seja, irá provocar, justamente, por estas razões, a mesma reação tão violenta da parte do imperia­lismo torna, material e fisicamente, impossível a realiza­ção de uma alternativa. Estas dúvidas estiveram muito presentes nestes meses passados no debate nicaragüense: que sentido tem hoje a luta anti-imperialista? É possível continuar a luta anti-imperialista no contexto histórico atual do Império, quando os movimentos se sentem sem o apoio que podiam ter em outras ocasiões da parte da União Soviética, da parte do chamado campo socialista?

Estas são as razões que levaram a questionar aque­las certezas e possibilidades que antes se acreditava serem bem fundamentadas.

A certeza do projeto e a certeza do sujeito

Mais concretamente, quais são as certezas que estão ameaçadas e, até para muitos militantes, superadas?

Creio que podem ser identificadas, fundamental­mente, em dois níveis. Pode-se falar da crise do projeto de alternativa e da crise dos sujeitos da alternativa.

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O projeto se centraliza, precisamente, na possibili­dade de construir um tipo, um modelo de sociedade que seja autenticamente alternativa ao capitalismo, que rompa com o "direito do mais forte", que domina o sistema capi­talista. E a dúvida que abala este projeto não pode se separar da que se refere ao projeto mais geral, quer dizer, a dúvida sobre a possibilidade de um mundo livre do imperialismo,um mundo no qual os povos libertados, pos­sam se realizar livremente, como sonhava Sandino. A possibilidade deste fica fortemente abalada com o fortale­cimento do imperialismo que se registra na atual correla­ção de forças mundiais.

A outra dúvida refere-se aos sujeitos da alternativa, aos sujeitos da nova sociedade. Segundo o marxismo — e também segundo o sandinismo — estes sujeitos seriam as classes populares, os operários e os camponeses. Em Marx, e também em Sandino, há um pressuposto implícito: os operários e os camponeses, ao tomarem consciência de seus interesses objetivos, vão se converter em militantes desta causa. Pensa-se numa transição muito natural da tomada de consciência à tomada de partido.

Pois bem, a experiência de todos estes anos nos levou a duvidar muito, ao menos do caráter automático desta transição, porque se viu que os interesses que mais fortemente orientam as tomadas de partido, especialmente para as classes populares, são os interesses econômicos imediatos, muitas vezes corporativos. Estes interesses não levam, facilmente, à tomada de partido, porque esta supõe o estabelecimento de uma reforma intelectual e moral, uma superação dos interesses puramente econômicos para valorizar motivações de tipo moral, de tipo ideal, que implicam uma certa tensão utópica. O que temos tido de

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reconhecer é que, ao contrário, as classes populares vi­vem fortemente dominadas, em nível cultural, pela ideo­logia liberal. Apesar desta ideologia estar em contradição com seus interesses fundamentais, a hegemonia em nível internacional da burguesia e do imperialismo, não obstante, é tão forte, que chega a impor a interiorização de seus valores à grande maioria dos setores populares.

E vejo aqui um dos problemas mais sérios para a construção de uma alternativa, porque somente se pode restabelecer a possibilidade desta alternativa construindo sujeitos capazes de desejá-la, capazes de se compromenter em sua construção. Encontramos o obstáculo mais forte aqui, na interiorização da ideologia liberal por parte dos setores populares. E é aqui, onde creio que há de se esta­belecer certas perguntas muito sérias sobre a incapacida­de da teoria marxista de conquistar este consenso popular. Não nos causa estranheza que a teoria marxista não se haja imposto na burguesia, precisamente porque questio­na muito fortemente a hegemonia burguesa. Mas tem que nos causar estranheza o fato de que a teoria marxista, elaborada a partir do ponto de vista do proletariado, das classes populares, não tenha conseguido, em nenhum lu­gar, conquistar o consenso majoritário da classe operária, das classes populares. Por quê?

E em relação à Nicarágua é preciso que se faça a mesma pergunta com respeito ao sandinismo: por que o sandinismo, sendo como é, a expressão do ponto de vista das classes populares, dos operários e camponeses, não conseguiu conquistar e manter o consenso da maioria dos operários e camponeses?

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Uma crise de civilização

Pareceria que, com esta apresentação da crise do socialismo, do marxismo e do sandinismo, a atual crise global já estaria devidamente assinalada. E isto é o que faz a ideologia liberal-democrata, que descreve a situação atual como a conclusão de uma luta histórica que durou dois séculos, o XIX e o XX, entre comunismo e capitalis­mo, entre marxismo e liberalismo e que chega agora a sua conclusão com o desmoronamento do comunismo e o tri­unfo do capitalismo. Esta é a interpretação que a ideolo­gia dominante quer impor em nível mundial.

Mas esta análise é gravemente redutora. Além disto, é expressão de certo cinismo, porque só se pode justificar uma análise deste tipo caso se abstraia todo o terceiro mundo, caso se abstraia a maior parte da humanidade. Falar do "triunfo do capitalismo" significa afirmar que os fatos estão demonstrando que o capitalismo teve êxito, enquanto que o socialismo, o comunismo e o marxismo fracassaram. E apresenta-se, unicamente, como prova desta afirmação, o capitalismo central, os países europeus, Es­tados Unidos, Japão... que são os lugares do triunfo do capitalismo e se abstrai todo o terceiro mundo, o capita­lismo periférico. Quer dizer: dispensa-se a maior parte da humanidade. Toma-se como critério, para valorizar o êxi­to de um sistema social — do capitalismo — a realização, o fortalecimento, o enriquecimento de uma parte mínima da humanidade e se abstrai de tudo que isto sofre, em termos de custo humano para o resto da humanidade.

Com este critério, pode-se dizer que o capitalismo não está em crise, que o capitalismo está avançando, que está descobrindo novas possibilidades, especialmente de-

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pois que se abriram para ele os mercados do Leste euro­peu e da União Sociética...

Mas caso se tome como critério o ponto de vista dos oprimidos, dos marginalizados, dos pobres como sujeitos, então o conceito resulta ser totalmente diferente. Neste caso, há que dizer que o capitalismo está atravessando uma crise muito profunda, uma crise mortífera, que signi­fica a morte lenta, mas segura, de uma grande parte da humanidade e que, portanto, esta crise é ainda mais grave do que a que abalou o mundo marxista, porque tem um impacto muito mais forte, muito mais mortífero sobre a evolução da humanidade e porque, além disto, parece muito mais difícil a libertação deste tipo de violência, deste tipo de opressão, porque é uma violência mais escondida, mais sutil e, portanto, mais trágica em seus efeitos. Creio que há de se falar abertamente de uma crise de toda uma civilização.

A razão derradeira da crise

É a crise de uma civilização que se fundamenta na lei da violência, quer dizer, no princípio do mais forte, que se encarnou e segue encarnado, fundamentalmente, no sistema capitalista, em suas estruturas, em suas leis, na organização imperialista do mundo que o marxismo ten­tou questionar e derrotar com suas análises e com sua proposta alternativa, mas sem conseguir sair da lei da violência. Portanto, se agora nos propomos procurar alter­nativas a esta crise, creio que o ponto de partida tem de ser procurar alternativas à civilização da violência. Procu­rar os caminhos que possam abrir a possibilidade de cons­truir uma civilização não violenta.

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Talvez um ponto de partida para orientar a procura destas alternativas pudesse ser a constatação de que o marxismo, o socialismo e o comunismo estão em crise porque não conseguiram realizar seu projeto, não conse­guiram realizar seus ideais fundamentais — por razões que seria interessante analisar, mas o que é certo é que o socialismo que chamamos "real" não pôde realizar o pro­jeto socialista —. Em troca, o capitalismo está em crise porque pôde se realizar e porque se realizou até as últimas conseqüências, conseqüências que se manifestam com mais clareza no terceiro mundo do que no capitalismo central.

Se partilharmos desta análise, a conclusão é que não se pode procurar a saída da civilização da violência den­tro da lógica capitalista. Não se pode procurar sem violar a lógica capitalista. Em troca, fica aberta a possibilidade de se interrogar sobre as razões do fracasso dos propósi­tos de alternativa socialista e comunista, fica a possibili­dade de traçar este projeto sobre novas bases e, em pri­meiro lugar, esta procura de uma alternativa ao sistema capitalista. Mas tem de ficar muito claro que uma alterna­tiva ao sistema capitalista só se pode procurar como alter­nativa a essa civilização da violência.

E os cristãos?

Para os cristãos, especialmente para aqueles que ha­viam chegado a uma identificação com a causa socialista ou com o projeto sandinista, a partir de uma opção pelos pobres, é natural que possam viver esta crise como um questionamento desta opção, como um questionamento de interpretação, em sentido político e geopolítico, que deram a esta opção que inspirou e caracterizou sua militância.

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Para um cristão da geração do Concilio e de Mede-llín, questionar-se sobre esta crise e sobre a relação entre a opção pelos pobres e a crise do marxismo, significa questionar-se também sobre a validade de todo este pro­cesso que, especialmente a partir do Concilio e de Mede-llín, levou a toda uma geração cristã, tanto na América Latina como além da América Latina, a comprometer-se na história, a descobrir a necessidade de tomar partido nos grandes conflitos, na luta de classes, na luta geopolítica entre o Norte e o Sul,que os levou a identificar no marxis­mo — e na Nicarágua no sandinismo — uma teoria e uma estratégia que permitia dar a estas aspirações éticas, a estas intuições cristãs, uma eficácia histórica. Então, no momento da crise, no momento da derrota, estas institui­ções, que não foram somente programas políticos, mas também projetos de vida, projetos históricos, parecem questionadas. E é toda uma evolução, uma história de vida que também pode parecer questionada por esta crise.

Constato que na Nicarágua, neste período pós-crise, a reação de muitos cristãos foi muito sadia. O golpe foi efetivamente muito duro: uma espécie de terremoto cultu­ral, psicológico... Para muitos, efetivamente, um trauma. Mas deu-se uma reação muito sadia. Por exemplo, para muitos cristãos que haviam se comprometido na revolu­ção a partir de uma opção de inspiração na vida comuni­tária da Igreja popular, agora, no momento da derrota, da crise, no momento de traçar a rota de suas certezas, sen­tem a necessidade de voltar às fontes, de se questionarem por que se haviam comprometido nesta luta e redescobrem sua inspiração cristã e, às vezes, os lugares onde sua ex­periência cristã se tinha desenvolvido.

8. Opção pelos pobres boje 113

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Digo que esta reação é muito sadia porque é o mo­mento no qual todo militante tem de reconstruir o sentido de sua militância voltando a sua inspiração fundamental, às razões que o fizeram chegar a este compromisso. E, para muitos cristãos, isto significa, concretamente, redescobrir o sentido da opção pelos pobres como sujeitos históricos e, portanto, pelas classes populares e pelos po­vos oprimidos em nível internacional. E isto significa também se questionar sobre a derrota eleitoral que vive­ram, o desmoronamento de certas experiências, de certos modelos de alternativa ao capitalismo, questionar a vali­dade de sua opção.

Os fundamentos de nossa opção

Parece-me importante reafirmar, neste contexto, que a opção fundamental que nos inspira, nos move, é do tipo moral. Ela se fundamenta no princípio de que a causa, pela qual lutamos, é justa, e não que esta causa tenha cer­teza ou probabilidade de triunfar historicamente amanhã.

Creio que ficou implícito muitas vezes na teoria marxista este elemento, isto é, a certeza de que as classes populares são as vencedoras de amanhã e estão destina­das, por condições objetivas, a assumir a direção da mu­dança e da sociedade futura, embora sejam as perdedoras de hoje.

Esta perspectiva pode levar muitos militantes a apostarem nas classes populares, por causa da certeza que tinham que tais classes seriam as vencedoras de amanhã. Logicamente, no momento da derrota, esta motivação se dissolve e, na medida em que tenha sido a motivação cen­tral, a mesma opção fundamental pode entrar em questão.

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Se, em troca, a motivação fundamental é do tipo moral, se a motivação é uma opção pela Justiça, pelo Direito, pelo Amor, pela identificação com os oprimidos — porque são oprimidos, porque são marginalizados pela sociedade, porque são objetos de injustiça... se esta é a razão de uma opção pelos pobres — a solidariedade com os oprimidos — então esta opção pelos pobres não perde seus motivos no momento da derrota, mas ao contrário, encontra razões mais profundas, razões ainda mais vivas e atuais.

Este é o caso dos cristãos. Em nossa opção pelos pobres como sujeitos, não podemos esquecer uma dife­rença que, em certas circunstâncias, pode chegar a ter grande importância prática: tomamos partido pelos explo­rados enquanto classes oprimidas de hoje e lutamos com eles para que sejam a classe dominante de amanhã, mas nossa opção não se fundamenta na certeza de um triunfo histórico.

Neste momento, pois, as perguntas com as quais há de traçar nossa opção pelos pobres são, por exemplo, a de entender se as críticas que fazíamos, ao sistema capitalis­ta, a denúncia que fazíamos de sua incapacidade de solu­cionar os problemas das grandes maiorias, a denúncia de sua lógica marginalizadora e opressora das grandes maio­rias... se todas estas críticas deixaram de ser válidas ou se continuam sendo. Isto é, se as razões que nos impuseram a procura de uma alternativa deixaram de ser válidas ou se continuam sendo mais do que nunca. E creio que uma reflexão serena sobre estes questionamentos nos leva à conclusão de que estas razões são hoje mais atuais, mais certas que naquele momento em que assumimos nosso compromisso. Por isto, impõe-se, com mais força que

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nunca, a renovação, o traçado, o aprofundamento de nos­sa opção.

Em resumo: optamos pelos pobres, não porque se­jam os mais fortes, mas porque são os mais fracos e opri­midos; não porque sua causa seja a que triunfa na histó­ria, mas porque é justa; não porque eles são os vencedores de amanhã, mas porque são os vencidos de hoje.

Isto não significa, certamente, que nossa luta liber­tadora ao lado dos pobres não aspire a triunfar; lutamos para vencer, mas nossa fidelidade não depende de nosso êxito. Na hora da derrota e da crise é quando o cristão e o militante verificam a autenticidade e profundidade das opções que os inspiram.

Fiéis à utopia

Certamente, a opção pelos pobres também tem de se readaptar a um contexto que se apresenta como de insegurança. Creio que sobre este ponto, impõe-se uma troca cultural e também uma troca psicológica para a militância. Isto é, nós, pela formação que recebemos, ten­demos a fundamentar nosso compromisso sobre certezas, sobre a certeza de que ao menos algum dia nossa Causa, a Causa dos pobres, a Causa das classes populares, vai tri­unfar brevemente... temos de imaginar a hipótese de que isto não se verifique, porque creio que as experiências destes anos, que dividiram acentuadamente estas certezas, não vão se reconstruir.

Portanto, se nossa militância quer seguir sendo pro­funda, se quer ir em frente tendo forte certeza, tem de tratar de abrir uma brecha entre as certezas e o desespero. E esta brecha é justamente a de um compromisso funda-

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mentado numa tensão utópica, entendida como hipótese histórica fecunda, isto é, uma tensão que não está segura da possibilidade de realizar o que procura, mas que está segura de que este horizonte, este sonho, esta perspectiva, é uma fonte de inspiração continuamente renovada para buscar caminhos novos, para inventar formas de convi­vência humana mais fraternas e para estimular a imagina­ção. Tem de descobrir caminhos que nunca encontraria caso se pusesse na perspectiva de pensar que não pode­mos sair das fronteiras do sistema capitalista.

Digo que esta hipótese é fecunda no sentido de que há muitas coisas que não se descobriram e que, portanto, não se fariam na sociedade atual, se não tivesse estímulo, se não se tivesse esta perspectiva de que é possível rom­per estas barreiras, de que é possível ultrapassar estas fronteiras. Isto supõe uma nova psicologia nos militantes, uma nova maneira de entender também o que chamamos de Homem Novo, o Povo Novo, esta capacidade de con­viver com a incerteza, mas sabendo que esta incerteza sobre o êxito da luta se fundamenta na certeza do valor moral, humano e, portanto, também político desta opção. E que por isso, entre as riquezas que comporta, está tam­bém o sentido que dá à vida do militante, que volta a descobrir um grande sentido para sua vida e seu compro­misso.

Deus Libertador, fundamento supremo de nossa opção pelos pobres

O fundamento supremo de nossa opção pelos po­bres é o Deus Libertador, que irrompe na história do Egito e do mundo, tomando partido pelos escravos, impelindo-

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os a se rebelar e se mobilizar, para se converterem em senhores de sua própria história. Nossa fidelidade ao Deus Libertador não se pode separar da fidelidade à utopia que ele comunica ao povo, no próprio momento em que se manifesta.

No entanto, ao lhe comunicar sua utopia e ao provocá-lo para que se comprometa a realizá-la, não lhes garante, em momento algum,o êxito histórico da luta. Ao contrário, Deus sabe perfeitamente que ele mesmo poderá ser derrotado com seu povo e, realmente o será, muitas vezes. Mas a saída da escravidão do Egito, quer dizer, o surgimento do povo como sujeito, ficará na história de Israel como o acontecimento gerador, como o signo da convergência entre a revelação de Deus e o compromisso libertador do povo. Nos momentos de derrota, os profetas levantarão sua voz no meio do povo, para chamá-lo à fidelidade a seu Deus e a sua vocação de liberdade.

Este chamado à dupla fidelidade é a essência da mensagem e do combate de Jesus, que se manifesta ao mundo, ao lado de Jeová, anunciando a libertação dos pobres (Lc 4,16-30). Além disso, na perspectiva de Jesus, como na de Jeová, anunciar a libertação não é somente comunicar uma notícia, mas lançar um movimento. Quan­do Jesus proclama a "Boa Nova", quando "evangeliza" o que pretende — como demonstra toda sua prática — lan­ça um movimento libertador, colocando no centro de seus compromissos um trabalho de educação do povo para a liberdade, o qual significa resgatar a carga utópica de suas origens, para que volte a ser, efetivamente, o povo de Jeová.

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Ser discípulos de Jesus, hoje em dia, significa, en­tão, compartilhar sua opção pelos pobres, seu projeto de libertação, lutando até o fim para sua realização, mas as­sumindo, constantemente, o risco da derrota. A cruz de Jesus fica na história como o símbolo de sua identificação total com a causa dos escravos, como o símbolo de sua opção pelos pobres; mas também como símbolo de sua derrota. A ressurreição significa que, segundo o conceito de Deus, a causa de Jesus era justa e que sua derrota não tinha sido definitiva; significa, além disso, que para sua luta e a dos pobres do mundo, se abria uma nova fase e uma nova esperança.

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OPTAR PELOS POBRES: SÍNTESE DE ESPIRITUALIDADE

José Maria Vlgil

1. A opção pelos pobres (OP) não é um tema teóri­co. A realidade é quem o põe em execução. O mundo real está marcado pelo signo da desigualdade e a injustiça entre os homens e entre os povos. Trata-se de uma das dimensões mais profundas e conflitivas da realidade, que atravessa permanentemente a história.

2. Nesta realidade marcada nascemos e somos con­vidados a nos desenvolver como pessoas, como numa cir­cunstância inevitável que nos forma. Construir a vida à margem dela é, simplesmente, construí-la fora da história real. Não se pode construir uma existência autenticamente humana sem se manifestar frente a ela.

3. É necessário, antes de tudo, abrir os olhos a esta realidade: dar-se conta de que estamos num mundo no qual as três quartas partes da humanidade sobrevivem mal, vivendo na pobreza e na miséria, enquanto uns poucos vivem em ilhas de bem-estar e até de opulência; é preciso dar-se conta de que para a imensa maioria da humanida­de, o simples fato de sobreviver diariamente é uma aven­tura difícil.

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4. Para ser pessoa, realmente situada neste mundo, faz-se iniludível definir-se frente aos pobres. Mais ainda: a realidade é tão grave e injusta que a pessoa não seria realmente humana se não comprometesse, solidariamente, seu destino com o destas maiorias oprimidas. Não se pode encontrar um sentido valioso para a vida humana se não for a partir da OP.

5. Frente à realidade injusta, muitas pessoas experi­mentam, em um ou outro momento de sua vida, uma profunda indignação ética. Esta indignação ética se con­verte, para muitos homens e mulheres, na experiência hu­mana e religiosa fundamental de sua consciência moral. Pode-se descrevê-la em seu núcleo mais fundamental como: o sentimento de que a realidade da injustiça é tão grave que merece uma atenção iniludível; a percepção de que a própria vida perderia seu sentido se fosse vivida de costas à compaixão e misericórdia em direção aos pobres; a eleição da Causa dos pobres como a Causa da própria vida, como a Causa pela qual viver e morrer; a decisão incorruptível de consagrar a própria vida de uma forma ou outra a erradicar a injustiça.

6. Uma indignação ética coerente deve conduzir o aprofundamento do conhecimento da realidade: a captar que a realidade não é transparente, mas disfarçadora dos mecanismos de opressão. A lançar mão de instrumentos de análise e tratar de conhecer as raízes da injustiça. A descobrir que a injustiça mundial não é casual, mas provocada; não é fatal, mas solucionável; não é natural, mas histórica; não é inocente, mas pecaminosa. Adquirir uma consciência crítica faz parte dos deveres da pessoa humana em direção à si mesma (sua própria realização) e em direção aos outros (para um serviço mais efetivo e realista).

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7. Os pobres têm de ser descobertos como uma rea­lidade coletiva (não uma mera soma inorgânica de indivi­dualidades), conflitiva (dialética, causada, vítima de in­justiça) e alternativa (com um projeto social próprio). Os pobres podem deixar de ser massa e converter-se em "povo", em sujeito histórico, pela tomada de consciência de si mesmos e assunção de seu próprio destino.

8. A realidade não é homogênea. Tem lugares so­ciais e perspectivas diferentes. O lugar que ocupamos na realidade marca nossa percepção e até, de alguma manei­ra, nos forma. Não se pensa nem se atua igual numa cabana e num palácio. O lugar social dos pobres é um ponto de vista que dá uma perspectiva mais fecunda para contem­plar a história, a realidade, seus mecanismos e o sentido da vida. Optar pelos pobres significa uma ruptura episte-mológica.

9. Optar pelos pobres implica optar pelo "lugar so­cial" dos pobres, olhar a realidade e a história a partir da perspectiva dos pobres, defender seus interesses, optar por sua Causa, assumir seu destino, querer fazer valer, efeti­vamente, o peso da própria vida — por pequeno que seja — a seu favor no jogo de correlação de forças da socieda­de. Isto pode comportar a exigência de realizar algum "êxodo" (mental, afetivo, cultural, político ou, inclusive, físico). Pode significar, para alguns, uma iniludível trai­ção a sua própria classe.

10. Optar pelos pobres implica unir-se a seu próprio protagonismo, aceitando-os como sujeitos de seu próprio destino e não como beneficiários de uma ação assistencial. Deixar de viver "para" os pobres a partir de um âmbito de referência que não é o dos pobres e se passar para seu terreno, a suas fileiras, unindo-se a seu projeto. Não para

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dirigi-lo, mas para apoiá-lo, para pôr-se a seu serviço. Passar a viver já "com" os pobres, em comunhão de luta e de esperança. Significa, pois, optar pelos pobres rebeldes e organizados, os pobres que saem de sua alienação histó­rica para passarem a ser sujeitos de sua própria história.

11. Uma OP madura e completa inclui optar geopo-liticamente dentro do conflito histórico que afronta os po­vos (empobrecidos, submetidos ou obrigados à dependên­cia) com o sistema de dominação imperial. Optar geopoli-ticamente significa não aceitar viver desorientadamente, sem coordenadas geopolíticas, mas orientar a própria vida, o trabalho, a profissão, o coração, os interesses, a solida­riedade... com uma bússola segura que indique, constan­temente, o Sul dos pobres, sempre sobre o terreno concre­to das coordenadas geopolíticas, nunca sobre as nuvens de uma universalidade alheia ao espaço e ao tempo histó­ricos.

12. Optar pelos pobres implica sair da ingenuidade, da passividade, da indiferença e manifestar-se frente à história: tomar posição, definir-se e intervir no drama maior da história. Não passar ao longe, desapercebido, distraído ou alienado em tarefas superficiais ou acidentais. Não gastar a vida em tarefas que não são as mais oportunas, urgentes e eficazes frente à libertação dos pobres.

13. Se se entende em seu sentido complexo e am­plo, emglobando todas suas dimensões (ética, política, geopolítica e religiosa) a OP pode bem expressar e encarnar a opção fundamental da pessoa humana.

14. Ao longo da história, dentro e fora das religiões convencionais, a OP foi e é, para muitos homens e mulhe­res, uma verdadeira experiência religiosa, inclusive no

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estabelecimento mais moderno do ateísmo formal. A in­dignação ética frente à pobreza e à injustiça, vivida em referência à própria opção fundamental da pessoa é, em si mesma, de natureza religiosa, porque chega a expressar na consciência pessoal os valores absolutos da fraternida­de e a justiça, pelos quais a pessoa se sente julgada e aos que presta, existencialmente, uma adoração reverente.

15. A experiência fundamental da revelação bíblica do Antigo Testamento coincide com esta experiência reli­giosa universal: o Deus bíblico se revelou, originalmente, como uma indignação que não se pode conter frente à opressão que o povo de Israel sofria, indignação que o fez tornar-se presente na história e declarar o caráter absoluto da fraternidade e justiça.

16. O Deus bíblico se revelou, originalmente, no ato histórico de promover a formação de um povo libertado, formado por camponeses marginalizados e oprimidos sob o feudalismo cananeu e o imperialismo egípcio. O Jeová bíblico se revelou e foi conhecido, originalmente, neste ato de libertação dos oprimidos. Israel se constituiu na opção de Deus pelos pobres.

17. O Jeová bíblico é o Deus dos oprimidos margi­nalizados ("ápiros") que se erguem para se libertar da opressão do sistema que tem Baal como seu Deus. Inspi­rados por Jeová, os camponeses rebeldes se erguem con­tra Baal e o sistema feudal — imperialista, para construir um novo sistema de fraternidade segundo o "projeto de Jeová", um sistema igualitário e fraterno, onde a exploração não seja possível.

18. A partir da experiência paralela do grupo mo­saico no Egito, a teologia do êxodo deu expressão teoló-

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gica a esta revelação constitutiva original: Jeová é o Deus que escuta o clamor do povo, que se faz presente na histó­ria para livrá-lo da escravidão, que o incita a se libertar, que lhe abre um espaço com sua promessa para construir o futuro, que tem um projeto de fraternidade para a histó­ria e não tolera que se adore a outros deuses propiciadores da injustiça e opressão.

19. O mandamento de não ter outros deuses se tra­duz em eleger como Deus unicamente o Deus bíblico, e não querer adorar a nenhum dos outros deuses, os que não salvam da escravidão, os que não libertam, os que não escutam o brado dos oprimidos, os que alienam os homens, separando-os da história e de seus irmãos. A tentação constante de Israel consistirá, precisamente, em adorar a outros deuses, abandonando o projeto de frater­nidade e justiça. Os profetas se levantarão, simultanea­mente, em defesa do pobre e em reivindicação da fideli­dade a Jeová, porque "conhecer a Jeová é praticar a justi-ça".

20. O conceito de Deus não é alheio ao conflito histórico. O próprio conceito de Deus, por seu caráter absolutizante inclui, em si mesmo, a referência a uma ordenação social que incluirá, necessariamente, a relação entre pobres e ricos. Toda imagem de Deus, consciente ou inconscientemente, determina e legitima um determi­nado tipo de relação social. Neste sentido, toda imagem de Deus se enlaça com os interesses de um e outro dos grupos humanos em conflito. Todavia, o Deus suposta­mente apolítico e puramente espiritual, tem repercussões políticas, sociais e econômicas (por omissão, por cumpli­cidade ou por apoio tácito).

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21. O Deus bíblico está explicitamente comprometi­do com uma OP. E o está essencialmente, isto é: a parcia­lidade em direção ao pobre não é uma de suas caracterís­ticas acidentais ou subseqüentes, mas que deriva de sua própria natureza, tal como nos foi revelada. A OP é essen­cial ao Deus bíblico.

22. Optar pelo Deus bíblico implica, necessariamen­te, optar pelos pobres. A OP consiste, em primeiro lugar, em imitar a Deus, compartilhar com ele a compaixão e a misericórdia que lhe são essenciais. Por isto, não é uma opção simplesmente ética, nem somente religiosa, mas "teologal". A OP tem um fundamento teologal.

23. A OP mais explicitamente religiosa inclui a ex­periência de Deus nos pobres, a de experimentar a Deus presente em meio das lutas históricas dos oprimidos, sen­tir-se solidário com ele em sua luta a favor dos pobres, rastrear todos os dias as pegadas, os sinais, as vozes, os gritos de Deus na vida dos pobres, procurar Deus onde ele se encarnou: no reverso da história, na história dos pobres, nos pobres da história.

24. Jesus se eleva como um novo profeta, o profeta definitivo, que retoma o projeto de Jeová. Jesus faz deste projeto de Jeová, sua Causa, "o Reino de Deus" e o apre­senta inequivocamente como anúncio aos pobres da Boa Nova da Libertação. Em Jesus, Jeová Deus volta a se revelar com toda sua força original como o Deus Pai par­cial em relação aos pobres, que pretende um mundo de igualdade e fraternidade filial, a Libertação Total, inclusi­ve mais além da morte.

25. A OP de Deus se revela em Jesus desde seu princípio na encarnação: em Jesus, Deus não se fez gene-

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ricamente homem, mas concretamente pobre e historica­mente marginalizado, oprimido, perseguido, excluído, proibido, excomungado, capturado, condenado, executa­do. "No ventre de Maria, Deus se fez homem e na oficina de trabalho de José, Deus se fez também classe." Deus se fez servidor em Jesus porque somente a partir dos servi­dores se pode desmontar o ídolo da opressão e do egoís­mo.

26. Jesus se identifica com o pobre até o ponto de constituí-lo no único sacramento universal necessário e em critério escatológico de salvação (Mt 25,3 lss). Jesus, na linha dos profetas, dessacraliza a religiosidade judaica, centralizando o culto e a adoração"em espírito e em ver­dade" de Deus pelo anúncio e construção do Reino me­diante a prática do amor.

27. A OP é uma prática de seguimento de Jesus : é querer continuar sua luta. Fazer o que ele fez. Assumir seu projeto. Dar a vida pela mesma Causa que ele. Consu­mir-se e desgastar-se como ele para aproximar o Reino de nós, o projeto de Deus, Boa Nova para os pobres, salva­ção para todos os homens.

28. A parcialidade de Deus em direção ao pobre expressada em Jesus suscita o conflito com os interesses dos inimigos da Causa dos pobres. O próprio Jesus é vítima, na cruz, desta conflitividade, e anuncia a seus discípulos sua participação inevitável nesta mesma cruz.

29. Optar pelos pobres significa, também, assumir a cruz que Jesus anunciou como derivada de seu seguimen­to. Suportar a cruz da própria conflitividade que Jesus suportou. Aceitar a cruz que os poderosos impõem ao que luta contra a cruz imposta aos humildes e aos pobres,

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àquele que proclama a verdade e denuncia a mentira, aos pobres que tomam consciência de sua situação e lutam, decididamente, por libertar-se.

30. A OP, como a fé, mostra sua maturidade e sua profundidade na medida em que não se apoia em interes­ses egoístas, em teorias explicativas ou em motivos estra­tégicos, mas unicamente no amor a todos os homens e no amor a Deus, que os amou primeiro. A fidelidade à OP em tempos de crise e de obscuridade é uma participação na fidelidade de Jesus, que se manteve fiel a sua opção pelo Pai e pelos pobres mesmo no fracasso da cruz, frente ao triunfo do Templo e do Império.

31. A ressurreição de Jesus é, na fé, a garantia do triunfo escatológico de Deus e do homem, no Mundo Novo que esperamos e que apaixonadamente tratamos de ir construindo na história.

32. A identidade cristã não se apoia na aceitação in­telectual de alguns dogmas ou crenças, nem no cumpri­mento moralista de uma lei, mas na realização efetiva da vontade de Deus como uma tarefa histórica: a construção do Reino de Deus, deste projeto de Deus que é Boa Nova para os pobres. Assim, ser cristão, seguir a Jesus, traz consigo, sem dúvida uma dimensão de parcialidade para os pobres, com toda a dimensão de politicidade que sem­pre acompanhou esta parcialidade na história.

33. A não-parcialidade para o pobre, ou, inclusive, a parcialidade para os ricos, não é apenas um dos defeitos em que pode ocorrer a vivência cristã, mas uma negação de sua própria essência.

34. A realização desta identidade cristã concreta im­plica, inevitavelmente, a conflitividade, já que é tomada

4. Opção pelos pobres hoje 129

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de posição dentro de um mundo de interesses contrários e em conflito.

35. A tentação permanente da Igreja, como a do po­vo de Israel, é a de deixar entrar o Deus Baal sub-repticiamente, sob a invocação cristã, de forma que a mensagem bíblica e cristã perca sua parcialidade e se con­verta em legitimadora de fato de sistemas sociais toleran­tes com a injustiça e desigualdade, seja abertamente ou pela via dos espiritualismos.

36. Sempre que a Igreja cristã não for inteiramente fiel ao Reino, a este projeto de Deus que a julga, terá cabimento, dentro dela, com toda legitimidade, a vocação profética que lhe lembre sua fidelidade devida ao projeto original. Quando sob a invocação do Deus cristão ou do projeto de Jesus se introduzem, de fato, elementos ou rasgos do Deus legitimador da injustiça, as correntes pro­féticas introduzirão, com sua denúncia, a conflitividade dentro da Igreja.

37. Fora da Igreja há Salvação. Fora da Salvação não há Igreja. Fora da Igreja há Reino. Fora do "para o Rei­no" não há verdadeira Igreja de Jesus. Fora do "para os pobres" não há "Boa Nova".

38. A unidade da Igreja é um valor do Reino que de­vemos procurar com esforço e entrega. Não se trata, no entanto, de uma simples unidade material, mas da unida­de que Jesus desejava para ela, a saber, a unidade em torno da Causa de Jesus, em torno das bem-aventuranças, Boa Nova para os pobres. Fora da OP a unidade da Igreja não seria cristã. Uma unidade da Igreja que não fosse "pelo Reino" não seria a unidade que Jesus queria.

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39. Optar pelos pobres implica aceitar também a conflitividade na Igreja, a reatualização da perseguição que as autoridades religiosas de seu tempo desencadearam contra Jesus por ser livre, por proclamar a parcialidade de Deus para os pobres sem se submeter às autoridades que queriam impedir, por colocar sempre a proclamação do Reino acima de todo interesse institucional religioso, por curar no Sábado, por ligar-se aos pobres e às prostitutas, por ensinar sem autorização, ainda que com autoridade, por não aceitar ser assimilado pela instituição, por não concordar com uma reconciliação com os fariseus nem com os inimigos do povo...

40. Optar pelos pobres é uma ação de dar a cada um a chance de contribuir para a conversão da Igreja, para sua conversão ao Reino, para consecução de sua unidade verdadeira, ainda que esta entrega à unidade possa ser colocada como demônio por outros, como destruidora da unidade, como conflitiva etc.

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OPÇÃO PELOS POBRES, TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

E SOCIALISMO HOJE

Leonardo Boff

A implosão do socialismo, a queda do muro de Berlin, a introdução da perestroika e da glasnost na URSS e a crise geral do pensamento das esquerdas, trouxeram uma série de interrogações também para a prática e a reflexão das igrejas. Pretendo elaborar algumas pondera­ções a partir da perspectiva que caracteriza os teólogos da libertação, vale dizer, a perspectiva que toma em alta con­sideração as vítimas e as grandes maiorias da humanidade que são oprimidas. Evidentemente, não alimento nenhu­ma pretensão de ser completo.

1. Como fica a teologia da libertação depois da implosão do socialismo?

Muitos dizem e sabemos que assim pensam altos dignitários da Cúria romana: com a implosão do socialis­mo, dasaparecerá também a teologia da libertação. Como teoria ela se fundava no marxismo e como prática tinha o socialismo como modelo. Quer pensar desta objeção?

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Devemos sempre acolher os fatos e aprender suas lições. O socialismo de fato implodiu. Não estamos tristes com isso. Pelo contrário, achamos que ele tinha em sua teoria e em sua prática o germen da própria derrocada. No Leste europeu, ele veio de fora para dentro, de cima para baixo e foi montado sem a participação da população. Ele foi beneficiente mas não participativo. Foi autoritário e patriarcal, não permitindo a democracia e a liberdade. Sa­bemos que nas intuições dos fundadores, socialismo era o verdadeiro nome para a democracia real, aquela das maiorias.

Venceu o capitalismo, a ideologia liberal e o merca­do total? Alguém deste país, euforicamente, anunciou: "Veni, vidi, Deus vincit"! Certamente é um apressado. Outra voz autorizada respondeu: Não seria mais realista reconhecer: "Veni, vidi, mamona vincit"? Provavelmente.

Sou da opinão, partilhada por muitos, de que a que­da do socialismo só aparentemente representa uma vitória da capitalismo e da economia de mercado. Na verdade, é muito mais uma vitória da ânsia de liberdade dos povos que viviam na área socialista e o resultado das próprias contradições mal administradas, especialmente econômi­cas e políticas dos regimes socialistas, marcados pela ex­periência leninista e pela perversidade stalinista. A estra­tégia leninista do partido único que informa toda a socie­dade e organiza o Estado é totalitária. E como tal viola a vontade ontológica do cidadão de querer participar da his­tória e ser sujeito livre na construção do destino pessoal e coletivo.

Mas sejamos também justos: socialismo fez a revo­lução da fome. Alguém vindo do primeiro mundo não se

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dá conta do que isso significa. Vistos a partir do desen­volvimento do primeiro mundo, os países socialistas eram atrasados e as sociedades burocraticamente pesadas. Mas considerados a partir do terceiro mundo, o socialismo fez uma revolução que até hoje o capitalismo, em sua globalidade, ainda não fez e deve à humanidade: repito, o socialismo fez a revolução da fome. Em qualquer país socialista, seja em Cuba, seja na URSS ou na Síria, não encontramos o fenômeno que escandaliza, o fenômeno das favelas, das milhares de crianças esmolando pelas ruas, dos velhos abandonados ao lado da riqueza de pou­cos e do luxo de minorias. No socialismo, o social possui a centralidade. por isso há melhor saúde em Cuba que em qualquer país capitalista; morrem menos crianças em Habana do que em Washington.

As sociedades socialistas são mais igualitárias. Ve­jam um exemplo: a China é maior que o Brasil em mais de 1 milhão de KM2. Possui 10 vezes mais população que o Brasil (1 bilhão e cento e cinqüenta milhões de habitantes para 150 milhões do Brasil). Apresenta pratica­mente o mesmo produto interno bruto que o Brasil (340 bilhões de dólares). E, contudo, a China mostra um qua­dro social consideravelmente mais equilibrado e saudável que o brasileiro. Dificilmente se vêem favelas na China, enquanto que no Brasil 18 milhões de pessoas vivem em favelas. As crianças na China são alimentadas e têm esco­las. No Brasil existem 23 milhões de crianças abandona­das, das quais 8 milhões diretamente vivendo na rua; 60 milhões comem apenas uma vez ao dia. Na China se come três vezes ao dia. No Brasil há 40 milhões de analfabetos absolutos e metade da população é analfabeto funcional, vale dizer, sabe apenas escrever seu nome e soletrar.

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Não podemos negar: na perspectiva do terceiro mundo, o socialismo criou relações mais igualitárias, com um sentido de internacionalismo e solidarismo que não encontramos na área capitalista. Não se nutria da explora­ção dos pobres, como o faz o capitalismo, não se fazia presente no mercado internacional que, na perspectiva dos países empobrecidos, é um navio de piratas.

Mas ele não fez a revolução da fome. Bem escreveu Roberto Retamar, escritor e poeta cubano: o ser humano é habitado por duas fomes: a fome de pão que é saciável, a fome de beleza que é insaciável. O socialismo não fez a revolução da liberdade. Não atendeu à fome de beleza. E quem pode afirmar que a liberdade é incompatível com a produção, com a eficiência e com a criatividade artística? Ele controlou, reprimiu e assassinou a milhares que bus­cavam a liberdade. É a causa última da queda do socialis­mo. Mas não identificamos socialismo com stalinismo como não igualamos a Igreja de Cristo com a santa inquisição ou com as atuais agressões à liberdade do atual ex-santo Ofício.

Triunfou o capitalismo com seu mercado? De modo algum. Trata-se de um sistema que nunca deu certo. Den­tro do capitalismo não há salvação para os pobres, mesmo nos Estados Unidos, onde o número de pobres está cres­cendo. Para nós ele não é uma utopia, mas um castigo. Seria uma ilusão pensar que ele existe para todos. Ele existe para os capitalistas. Depois, as sobras caem para os lázaros que jamais são comensais com os capitalistas.

Para se ver o que significa a perversidade do modo de acumulação capitalista, basta olhar lá onde se impôs no terceiro mundo. 3/4 partes da área capitalista na Ásia, África e América Latina vivem um capitalismo depen-

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dente e associado. Aí predomina a pobreza da maioria da população e condições de vida muito piores do que no tempo da escravatura, em termos da dieta, da mortalidade infantil e da expectiva de vida, pelo menos, no meu país, o Brasil. Ontem os pobres se sentiam oprimidos mas ti­nham esperança. Hoje continuam oprimidos e por causa da opressão que sempre cresce, muitos se sentem sem esperança.

Ele somente funciona nos países hoje já capitalistas e industrializados, mas com um tipo de desenvolvimento acelerado e delapidador da natureza que jamais poderá ser universalizado, caso não quisermos introduzir um holocausto coletivo.

E a teologia da libertação? Devemos dizer clara­mente que a teologia da libertação, desde o princípio, jamais colocou no centro de sua prática e de suas refle­xões, o socialismo, mas os pobres coletivos e conflitivos. Somente como mediação para fazer avançar a causa dos oprimidos se ocupou com o socialismo, enquanto alterna­tiva histórica ao capitalismo sob o qual nossas populações tanto sofrem. Mas o socialismo jamais foi colocado como modelo a ser imitado. Cada povo devia construir o seu caminho para o socialismo. Por isso não conheço nenhum teólogo da libertação que se tenha inscrito no partido co-munista-socialista. O socialismo era visualizado apenas como uma referência histórica que não se podia desco­nhecer. As raízes verdadeiras da teologia da libertação estão num outro lugar.

A teologia da libertação nasceu de uma dupla expe­riência, uma política e outra teologia. Politicamente, per­cebeu que os pobres fundam um lugar social e epistemo-lógico, quer dizer, sua causa, seus interesses objetivos,

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sua luta de resistência e de libertação e seus sonhos per­mitem uma leitura singular e própria da história e da so­ciedade. Essa leitura é inicialmente denunciatória. Ela de­nuncia que a história atual é escrita pela mão branca e conta as glórias dos vencedores. Ela recalca a memória gritante dos vencidos. Ela não tem consciência das víti­mas e por isso é cruel e sem misericórdia.

Mas ela é também visionária. Sonha com transfor­mações possíveis e com relações humanas nas quais o ser humano é amigo do outro ser humano e não o seu carras­co. A prática social pode transformar o sonho em realida­de histórica.

Podemos seguramente dizer: todas as grandes ques­tões que moveram e movem ainda hoje as religiões, os projetos de transfomação e os processos revolucionários estão ligadas aos sonhos dos oprimidos e à justiça neces­sária.

A teologia da libertação acolheu este fato, pois os militantes cristãos estavam na mesma trincheira que os pobres, nos sindicatos, nas lutas populares e até na insurgência guerrilheira. Neste contexto se perguntavam: como anunciar que Deus é vida e é pai num mundo de miseráveis? Somente transformando esta anti-realidade em realidade digna, resgatamos a verdade da fé: Deus é pai e mãe de todos e padrinho dos pobres. A partir disso se entende a necessidade de inserção e de militância dos cristãos e também dos teólogos, nos processos de mudança.

A segunda experiência, a teológica, nasceu aprofun­dando esta primeira. As comunidades cristãs de base aprenderam que a melhor maneira de interpretar a página da escritura é confrontá-la com a página da vida. Neste confronto aparece uma verdade que atravessa as Escrituras

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cristãs de ponta a ponta: a íntima conexão que existe entre Deus e os pobres e a libertação. Deus é testemunhado como o Deus vivo e doador de toda a vida. Ele não é como os ídolos que são mortos e exigem sacrifícios. Esse Deus, por sua própria natureza vital, se sente atraído por aqueles que gritam porque se lhes está tirando a vida pela opressão. Ele faz sua a luta de resistência e de libertação dos oprimidos.

O Deus bíblico é alguém que escuta o grito,seja dos judeus no cativeiro egípcio, libertando-os, seja de Jesus que grita na cruz, ressuscitando-o, seja hoje, dando legiti­midade à luta de libertação dos milhões que já não acei­tam sua opressão e buscam vida e liberdade. Deus opta por eles, não porque são bons, mas porque são oprimidos. Eles podem contar com Deus. O projeto de Deus passa pelo projeto dos pobres.

Esta intuição criou uma espiritualidade, uma prática de inserção nas lutas populares e uma teologia. A teologia da libertação bebe de seu próprio poço. Foi a partir de sua luta ao lado do oprimido que esta teologia incorporou algumas categorias da tradição marxista. Elas ajudavam e continuam ajudando a desmascarar a lógica perversa da acumulação à custa da miséria e desumanização das maiorias. A partir do sofrimento sob a ordem capitalista (que é ordem na desordem) os cristãos inspirados pela teologia da libertação colocavam a questão do socialismo democrático como alternativa histórica possível para se chegar a formas mais dignas para o trabalho e mais gera­doras de vida para todos.

A América Latina é o único continente no qual os teólogos são vigiados pela polícia, são presos, torturados e assassinados, como recentemente nossos irmãos jesuítas

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em El Salvador. Que existe nesta teologia que mete tanto medo ao sistema do capital e que os leva a participar do destino mortal de tantos de seu povo?

A América Latina é um continente marcado pelo cristianismo, imposto junto com a colonização. Exatamente porque é um continente, penetrado de referências cristãs, ocorrem assassinatos de teólogos. O que se teme não é o marxismo. A sociedade e a própria Igreja conservadora têm medo é de Deus. Desse Deus que liberta, que legiti­ma a luta dos oprimidos e dá coragem para o último sacri­fício. Não se aceita que a opção pelos pobres contra a sua pobreza nasça do coração da fé cristã e da essência do próprio conceito bíblico de Deus. Gostariam que nascesse do marxismo e das ideologias de esquerda. Esta é a incompreensão e a calúnia que as autoridades doutrinais de Roma propalam pelo mundo afora. Eles temem que um cristão diga: por causa do Deus da ternura dos pobres, por causa de Jesus Cristo, por causa do Evangelho e da fé dos pais tenho todas as razões para postular uma transfor­mação da sociedade, na qual os próprios pobres sejam protagonistas. Pelo fato de eu ter feito esta mesma exi­gência às relações internas na Igreja romano-católica, que padecem de falta de liberdade, é que sofri um processo doutrinário em Roma e fui também punido.

Esta visão libertária que nasce da bagagem da pró­pria fé, rompe com o monopólio que o marxismo tinha das utopias revolucionárias. Um cristão pode ser um re­volucionário. Mais ainda. Esta idéia libertária livra o cris­tianismo do cativeiro conservador a que a ordem capita­lista o submetera, fazendo-o um inimigo permanente do marxismo e das práticas mudancistas. O debate teológico em torno à teologia da libertação é irrelevante. Ele, na

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verdade, esconde o real debate que é político: de que lado se situa o cristianismo no equilíbrio de forças históricas hoje, no lado dos que querem manter a ordem porque os beneficia ou do lado dos que querem mudá-la porque cas­tiga demasiadamente os pobres. As igrejas novas do ter­ceiro mundo, em sua grande maioria, entenderam: se não ficarmos do lado dos condenados da terra, somos inimi­gos de nossa própria humanidade; perdendo os pobres, perdemos também a Deus e a Jesus Cristo que fizeram uma opção pelos pobres. E com isso perdem também qualquer relevância histórica.

Enquanto houver oprimidos neste mundo, haverá sempre espíritos atentos que irão lutar pela liberdade. E farão do cristianismo não um totem ligitimador dos pode-res elitistas deste mundo, mas uma mística de libertação para os muitos oprimidos. E os que pensarem esta prática farão teologia da libertação.

Que futuro terá o socialismo? A partir de nossa perspectiva, das vítimas, respondemos: as questões que há duzentos anos fizeram surgir o socialismo perduram ainda e em nível mundial até se agravaram. Para os po­bres, para os que são mantidos no subdesenvolvimento, para a democracia social, para os direitos humanos como direitos a partir do direito à vida e aos meios de vida para todos, não há salvação dentro do capitalismo. Na América Latina, o capitalismo com eleições ou sem eleições não é democrático. Quando as elites percebem que a ordem ca­pitalista é posta em jogo, chamam os militares. E estes para salvar o capitalismo violam todos os direitos pes­soais, sociais e políticos.

Devemos buscar outra esperança. E voltarmos ao sonho socialista. Não será a crise de um tipo de socialis­mo que irá pôr a pique ideais tão nobres e humanitários.

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Os ideais socialistas estão enraizados nas camadas mais profundas deste animal político que é o ser humano. Eles alimentam perigosas visões. Fora do poder hegemônico e purificado dos vícios de sua cristalização histórica, o socialismo democrático encontrará, certamen­te, o seu lugar natural nas nações periféricas e oprimidas do terceiro e quarto mundos.

Eu diria mais: os problemas humanos de forma crescente estão se mundializando. As soluções deverão ser igualmente mundiais, quer dizer, mais e mais serão fruto de um imenso processo de socialização e de demo­cratização que terá também sua dimensão ecológica e cós­mica. Devemos aprender a conviver com as pedras, as plantas, os animais e as estrelas como os novos cidadãos da cidade humana.

O socialismo, que por sua natureza coloca o coletivo como eixo de sua articulação, poderá significar a grande alternativa da humanidade naturalizada que decidiu sobre­viver num espaço de fraternidade e de solidariedade.

Recuso-me a pensar que os seres humanos estejam condenados a se explorarem mutuamente, a viverem obsessionados pela acumulação à custa da miséria dos outros e serem condenados ao egoísmo.

2. Em busca de uma modernidade alternativa e integral

Inegavelmente a desintegração do chamado campo socialista, a inauguração da glasnost e da perestroika e o fim da guerra fria trouxeram uma crise para o projeto de mudança da sociedade. Sentimos a crise nos intelectuais de esquerda e perplexidade nos movimentos de base po-

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pular. Ao mesmo tempo, é indisfarçável o júbilo dos agentes da ordem capitalista. Sentem-se triunfantes, pois, dizem, a história nos deu razão. O grande tema é o merca­do. Tudo passa pelo mercado. Ele é a grande realidade total. É a nova divindade. Quem está fora do mercado não existe. Quem não se firma no mercado, deve desaparecer. Fala-se do fim da história. De qual história? O mito euro­peu é falar de modernidade e pós-modernidade. Não só ocorre a transnacionalização mas está em curso a mundialização como planetização do processo produtivo e do sistema de comunicação e de trocas. Ninguém mais fala de imperialismo. É fora de moda.

O que, na verdade, ocorre? Um novo imperialismo! Digo-o sem rebuços. É o novo império daquele tipo de racionalidade, de desenvolvimento e de sentido de ser que se forjou no bojo da classe burguesa no advento da modernidade e que hoje se expande sobre todo o planeta.

Qual é a alternativa para o desenvolvimento senão levá-lo até os confins mais recônditos da Amazônia, da índia ou da Polinésia? A mesma lógica que destruiu as culturas-testemunho da América Latina no século XVI continua sua obra devastadora até os tempos atuais. O projeto colonial ibérico, em 80 anos, de 1519 a 1595 re­duziu a população do México de 25.200.000 habitantes a 1.375.000. Foi o maior genocídio da história na propor­ção de 25 por um. Escutemos o testemunho do profeta maia Chilam Balam dos primeiros anos da evangelização: "Eles, os colonizadores, vieram nos ensinar o medo; vie­ram fazer as flores murchar; para que unicamente sua flor vivesse, destruíram todas as nossas flores".

Hoje, em nome da modernidade, nossos governos latino-americanos atualizam a lógica da dominação, me-

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diante os grandes projetos das multinacionais japonesas, alemãs, italianas e norte-americanas. A custa disto, da dívida externa impagável, continuam as mortes; só no Brasil morrem de fome 1.000 crianças por dia. Nunca houve tanta fome e mortes prematuras como nos dias de hoje, por causa do desemprego, dos baixos salários, das doenças e da violência nas relações sociais. As dezenas de nações indígenas estão desaparecendo. E, assim, per­deremos para sempre formas de humanidade de que tanto precisamos.

Bem nos recordava um dos nossos grandes indigenistas, Villas Boas: "se entendermos que o sentido de nossa passagem pela terra consiste em acumular rique­za, então não teremos nada a aprender de nossos indíge­nas. Mas se buscarmos integração nas gerações, uma aliança de paz com a natureza e um equilíbrio entre a produção e o prazer, então teremos lições sábias a aprender de nossos indígenas".

Não somos contra a modernidade nas duas cristali­zações históricas que encontrou: a modernidade burguesa que criou a sociedade industrial, o mercado e o consumo bem como a democracia Hberal-representativa e a modernidade proletária que inaugurou um novo sujeito histórico na hegemonia da sociedade, os trabalhadores e projeto do socialismo, hoje em sua versão marxista-leninista, em decomposição. Estas duas formas de modernidade se antagonizaram durante decênios. Hoje importa construir uma convergência. Nós postulamos uma modernidade alternativa e integral que incorpore o imen­so cabedal de ciência e de técnica (fruto da modernidade burguesa), com democracia social, em benefício de toda a humanidade (o sentido da modernidade proletária), numa

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consciência ampliada de um destino comum de toda a humanidade.

Para que isso aconteça precisamos de uma nova re­volução mundial. Quem fala hoje no primeiro mundo de revolução? Essa palavra está no limbo dos pensadores políticos e dos chefes de partido. É uma moeda que não tem mais curso. E por que iria tê-lo? Por que colocar em risco nosso bem-estar, depois de tantas guerras, nos di­zem militantes do primeiro mundo, muitos deles da es­querda arrependida? A idéia de revolução foi colocada no museu arqueológico da política. E apesar deste desprestígio há de se falar de revolução, como exigência da miséria das grandes maiorias.

Mas o primeiro mundo não contém a pólvora neces­sária para incendiar a idéia de uma nova revolução, hoje de amplidão universal. Perdão, se o digo sem palpas na língua: por aqui não passa a esperança. A esperança resi­de na reprodução do bem-estar atual e na manutenção de um desenvolvimento garantido. Portanto, é um pensamento da ordem vigente e não de sua possível alternativa. É o pensamento da ordem, por mais progressista que seja, é sempre politicamente conservador. Ser conservador hoje em dia, implica aceitar a condenação à exclusão e até à morte da grande maioria da humanidade que está fora da modernidade e de seus benefícios.

Podemos fazer da índia, da China, da América Lati­na o que é hoje uma Alemanha ou uma Itália? O modelo de desenvolvimento e de sociedade hoje imperantes não são universalizáveis. E, contudo, devemos sobreviver como humanidade. Para isso se fazem necessárias transforma­ções mundiais profundas que passam por uma nova or-

10. Oj\ã° |H'Iiw pobres hoje 145

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dem econômica, por um novo regime de propriedades, por relações sociais e ecológicas distintas, em fim, por um novo humanismo.

3. O baricentro do mundo: os 2/3 pobres

Quem são os portadores de uma nova esperança? Os pobres coletivos e conflitivos. Os pobres do mundo são condenados a serem historicamente o húmus de uma nova esperança. Eles não têm mérito nenhum nisso. É sua missão histórica a ser realizada em nome de todos e em benefício da inteira humanidade. Pois só eles têm condi­ções de sonhar. O presente não lhes pertence. Seu passa­do é o passado de seus senhores que eles tiveram que internalizar. Só lhes resta o futuro.

Talvez estranhem que fale de sonhos e de utopias. Sim. Precisamos resgatar a eminente importância social do sonho e da fantasia criadora. Ela é, na linguagem de Pascal, a louca da casa. Mas esta louca não é oposta à razão. Pelo contrário, ela representa uma razão maior, a razão não domesticada dentro dos sistemas e não contro­lada pelo poder. Podemos dizer que a razão moderna está cativa nas malhas do poder econômico e político. E pela fantasia que a sociedade e os oprimidos conseguem trans­cender a prisão e entrever um mundo distinto deste per­verso que lhes nega participação e vida. Esta fantasia está ligada aos famintos, aos doentes, aos oprimidos por mil amarras. Esta fantasia tem seu sujeito histórico, o conjun­to das forças que compõem o universo dos 2/3 de margi­nalizados e de negados socialmente. Da periferia eles gri­tam para o centro. Querem que diminuam as distâncias, que haja um minímo de eqüidade sem a qual deixamos de

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ser humanos e, por fim, para que se chegue a superar o dualismo entre o norte e o sul, entre ricos e pobres, na direção de uma humanidade que finalmente se reconcilie consigo mesma.

Estes são os sonhos dos oprimidos. Não são os so­nhos de serem grandes potências e de dominarem os ou­tros. Nem são sonhos de um consumo sem freios e por isso sem solidariedade. Seus sonhos estão ligados às es­truturas básicas da vida e da reprodução da vida enquanto vida humana, portanto, ligados ao trabalho, à saúde, à moradia, ao lazer mínimo, à cultura necessária para a co­municação humana. Ora, tais bens mínimos poderiam tec­nicamente ser acessíveis a todos; não o são por falta de vontade política mundial.

Hoje com a superação do confronto leste-oeste, ca-pitalismo-socialismo e com a transposição das relações norte-sul (países industrializados e ricos-países mantidos no subdesenvolvimento e pobres) há a possibilidade de que o dasafio mundial dos pobres constitua o baricentro da política. Eles constituirão certamente o ponto de equi­líbrio do mundo, porque eles poderão significar a grande ameaça a qualquer sistema de exclusão.

Seria insuportável para qualquer ética assistir ao agravamento do dualismo mundial: de um lado uma cres­cente acumulação de meios de vida e de desfrute consu-mista ilimitado e por outro a miséria e a desestruturação cada vez mais avassaladoras de 2/3 da humanidade. Se não houver aí pontes de solidariedade e políticas de equi­líbrio mundial, os países opulentos se sentirão obrigados a construir inúmeros muros de Berlim para defender sua sociedade da abundância contra a invasão dos famintos que batem à porta e querem apenas participar, junto com os

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cachorros, das migalhas dos ricos epulões. Cálculos nos dizem que em 20 anos 13% da população mundial se concentrará nos países ricos e 87% nos países pobres do grande Sul. Se os pobres não forem atendidos em sua necessidades mínimas que garantia de paz e de desfrute haverá para os ricos?

Por isso, ao invés de se mundializar o mercado e as formas de acumulação, importa mundializar outros hábi­tos culturais de solidariedade, de compaixão coletiva para com as vítimas, de respeito a suas culturas, de partilha de bens, de integração emotiva com a natureza, de sentimen­tos de humanidade e de misericórdia para com os humi­lhados e ofendidos.

Poderá parecer utópico? Lógico que é. Mas o utópi­co pertence à realidade; não é fuga dela, mas as descober­ta de que não estamos no fim da história, de que a história está sempre aberta e de que é possível um convívio mais feliz. O ser humano, homem e mulher, não é filho e filha da necessidade escravizadora, mas da alegria libertadora. É desejando o impossível que nos abrimos à concretização do possível.

Os antigos romanos alimentavam um ideal ecumê­nico, o de poder conferir a todos os habitantes do império, gregos ou bárbaros, a dignidade de ser cidadão romano com as vantagens sociais que isso trazia para todos. Hoje devemos postular o reconhecimento de humanidade a to­dos os habitantes da terra, porque a grande maioria são tratados como não-pessoas pelo fato de terem chegado tarde ao tipo de desenvolvimento que o Ocidente inven­tou e de no mercado serem considerados zeros econô­micos.

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Para que isso aconteça se faz urgente uma glasnost e uma perestroika no capitalismo. Que qualidade de vida produz? Que tipo de democracia projeta? Aquela que se isola nas instituições políticas, no voto, no campo dos direitos mas que não entra na esfera da economia, prote­gida pelo equívoco da livre iniciativa e pelo mercado? A democracia liberal pára na porta da fábrica. A proprieda­de privada é desligada do sentido do bem comum.

Vejo que a mundialização do destino humano abre a urgência de colocarmos a questão mais fundamental que o próprio socialismo, a questão da democracia. A demo­cracia, não apenas como uma forma de governo, mas como um espírito e um valor universal. Por esse caminho será possível visualizar um futuro para a humanidade. A de­mocracia, como está sendo pensada em tantos círculos latino-americanos, se fundamenta na articulação e coexis­tência de cinco forças fundamentais: a participação, a so­lidariedade, a igualdade, a diferença e a comunhão.

Antes de mais nada importa garantir a participação. Mais que buscar diretamente uma sociedade igualitária, busca-se hoje uma sociedade participativa em todos os níveis possíveis. A participação não se reduz a uma integração no status quo, mas participação na criação de novas relações e na criação do ainda não experimentado.

Em segundo lugar é importante a solidariedade em todos os níveis, especialmente, na perspectiva internacio­nal: é a capacidade de incluir os outros em seu próprio interesse e entrar no mundo diferente para fortalecê-lo, especialmente aqueles que a vida e a história penalizou, os mais necessitados.

Em terceiro lugar, com efeito da participação e da solidariedade, surge uma maior igualdade social. As so-

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ciedades históricas são marcadas pela desigualdade e pela exclusão. Na medida em que as pessoas participam e vi­vem a solidariedade emergem relações mais simétricas e por isso mais humanizadoras.

Em quarto lugar, cabe reconhecer, promover e de­fender as diferenças. Elas são a riqueza de cada indivíduo e das culturas. Excelente é o samba. Mas ao lado dele, existe a chanson, o country, o rock, a ópera, o canto gregoriano e a sinfonia. Não seria uma desgraça se dissés­semos que a única música legítima fosse o heavey metal? A diversidade dos gêneros musicais constitui a riqueza da música. A participação e valorização das singularidades faz com que as diferenças não decaiam em desigualdades e discriminações. O modo de pensar e de agir capitalista tende a enfatizar as diferenças a ponto de fazê-las desi­gualdades. O socialismo, por sua vez, tende a abolir as diferenças, porque as vê como desigualdades e homoge­neizar tudo, matando a criatividade.

Por fim cumpre enfatizar a comunhão. A comunhão é a capacidade de estabelecer relações intersubjetivas, de alimentar a espiritualidade, no sentido que Gorbatchev difundiu em suas intervenções, como apreço às dimen­sões éticas, estéticas, religiosas, que são fatores construto­res da sociabilidade humana. A comunhão é antes uma categoria antropológica que religiosa. Ela dá conta da transcendência viva do ser humano que não se exaure no teatro social, mas que se abre sempre de novo para cima e para os lados na construção de sentidos novos de vida.

A construção da democracia se dá na família, na escola, na fábrica, nas associações de classe, nas igrejas, no Estado e na sociedade. É um projeto sempre aberto e inacabável. Queremos uma humanidade mais digna da

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vida e mais sã. Por isso queremos mais democracia. Com mais democracia, construída sobre estas forças poderosas, podemos crer num futuro mais esperançoso para os opri­midos do mundo e para todos.

Os pobres clamam. É a sua força e o seu direito. Quem escuta hoje o clamor dos oprimidos que sobe do coração da terra? Precisamos de uma revolução mundial nas nossas mentes, uma revolução mundial nos nossos hábitos, uma revolução mundial em nossas sociedades para que o clamor seja ouvido efetivamente e atendido.

Se as igrejas cristãs e as religiões hoje possuem alguma relevância social consiste exatamente nisto: não permitir que fiquemos surdos ao clamor dos oprimidos; fazer com que esse clamor seja levado em todos os foros mundiais; conseguir que esse clamor encontre caixas de ressonância para que possa ser atendido com eficácia. A teologia da libertação, dentro da qual me inscrevo, procu­ra dar a sua contribuição. Assume solidariamente o lugar do pobre. Denuncia com os pobres a perversidade da po­breza. Associa-se às lutas dos pobres contra a pobreza, não em direção da riqueza que também é iniqua, mas na direção da justiça. O sonho reside nem em uma sociedade pobre nem em uma sociedade rica, mas numa sociedade fraterna, justa, solidária, democrática e sensível ao misté­rio que atravessa a existência humana e a totalidade da criação. Esse sonho pode ganhar um pouco de realidade. Se o sonharmos sozinhos, será ilusão. Se o sonharmos juntos, como diz uma canção das comunidades de base, é sinal de solução.

Então, companheiros, vamos sonhar juntos, sonhar ligeiro, sonhar em mutirão.

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APÊNDICE PEDAGÓGICO

Trazemos aqui um guia para tratar, pedagogicamen-te, em grupo, os estudos apresentados neste livro. O orientador do grupo preparará concretamente a sessão de trabalho. Neste guia, só pretendemos lhe oferecer subsídi­os que ele deverá escolher, rejeitar, ampliar, sintetizar ou reelaborar.

Embora os ensaios deste livro tenham sido coloca­dos em determinada ordem, cada grupo pode escolher a ordem que lhe seja mais eficaz.

1. Opção pelos pobres: síntese doutrinai (J. Lois)

Este primeiro ensaio trata de esboçar uma visão de conjunto da teoria da OP, com idéias "claras e distintas". Este objetivo pode ser abordado efetivamente ao princí­pio, para se fazer um marco claro de referência no qual situar-se mentalmente e eliminar, de entrada, possíveis malentendidos ou erros ou ao final, quando os diferentes aspectos parciais tenham sido abordados e se possa fazer melhor a síntese. O grupo escolherá entre as duas alterna­tivas.

O texto se presta, mais do que nenhum outro, a servir de guia de estudo, como se fosse um manual, em

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função de sua ordenação e clareza sintética. Assim, pode ser utilizado desta forma pelos membros do grupo: como um texto que estudam particularmente em sua casa e de­pois revisam comunitariamente.

Nesta revisão pode-se fazer uma crítica:

— É, efetivemente, um texto claro? Que pontos fi­caram obscuros para cada pessoa? (Ao transpor tais pon­tos em comum, os membros do grupo tratam de se escla­recer mutuamente, respondendo às dúvidas dos outros).

— Está bem sistematizado? Que críticas lhe faría­mos neste sentido? O que poderíamos melhorar?

— Este texto esclarece nossa realidade? Em quê? (Isto supõe que os membros do grupo compartilham a consciência de uma situação mais ou menos comum).

O grupo pode se aprofundar no texto sublinhando os pontos que lhe tenham parecido especialmente signifi­cativos. Sugerimos organizar uma conversação-debate so­bre alguns dos seguintes pontos, freqüentemente polêmi­cos:

• "Fazer a OP é um previlégio dos não-pobres, por­que os pobres não podem se propor a fazer tal opção".

• "Dimensão política da OP". Política e religião se juntam aqui? Não são duas coisas independentes? Que significa a frase "dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus"?

• Quem são, realmente, os pobres? Por que há mui­tos ricos (materialmente, em dinheiro e bens materiais) que, na realidade, são bem pobres (de valores morais, de fé, de felicidade, de esperança) enquanto que muitos po­bres são realmente felizes e ricos de esperança, de religio-

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sidade, de fé, de qualidades morais... A quais destes po­bres e ricos se dirige a OP? (tema dos destinatários da OP).

• OP e nova experiência política. (Se os membros do grupo puderam experimentar, efetivamente, uma nova experiência a partir de sua OP, pode-se compartilhar esta nova experiência política, as transformações que sentiram em seu itinerário biográfico pessoal).

• Em um nível mais teórico, para os grupos que queiram um aprofundamento mais exaustivo, intelectual­mente falando, pode ser interessante abordar o tema múl­tiplo dos "conteúdos", os "níveis" e as "motivações" da OP. O texto de Lois apresenta quatro elementos de con­teúdo, três níveis de significação e quatro motivações: satisfazem o grupo? Estão aí todos os elementos, níveis e motivações que têm uma realidade tão plurifacetada como a OP? Estão devidamente diferenciados e ordenados? Al­guém propõe algum outro elemento, nível ou motivação? Justificar, em cada caso, a proposta e debatê-la devida­mente.

• (Se resulta relevante ao grupo, por sua composi­ção de crentes e descrentes, ou pelo ambiente em que se move): o tema da vivência cristã e/ou não-cristã da OP. A OP é uma realidade cristã ou não-cristã? Faz falta ser cristão para optar pelos pobres? A fé cristã acrescenta algo à OP ou não acrescenta nada?

O orientador do grupo também pode sugerir que o texto possa ser aplicado à vida pessoal, como um texto sobre o qual fazer meditação e oração. Os textos referen­tes à multiplicação de aspectos da OP se prestam espe­cialmente a isto (os diversos elementos de conteúdo, os

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diferentes níveis de significação, as diversas motivações...) O indivíduo pode se perguntar, pessoalmente, na oração, se é consciente, se vive a fundo toda a riqueza da OP ou se fica inconscientemente somente em alguns aspectos parciais. Embora tenhamos nossa graça e nossas motiva­ções pessoais, é importante tomar consciência da riqueza sempre maior das realidades da graça que vivemos.

Assinalemos, finalmente, que este estudo de Júlio Lois pode se complementar consultando seu livro (do qual o texto de que tratamos é uma síntese parcial e muito resumida): Teologia de Ia Liberación: Opción por los po­bres. IEPALA, Madrid 1986. 506 pp. Existe também uma edição centro-americana, a cargo do DEI de São José da Costa Rica de 1988.

2. A opção pelos pobres e o Deus bíblico (J. Pixley)

Depois de apresentada a síntese doutrinai, este texto de Jorge Pixley trata de se aprofundar no fundamento que a OP tem na Bíblia e no Deus bíblico.

A este respeito podemos nos fazer várias perguntas. O orientador do grupo pode decidir se o grupo vai estabelecê-las antes ou depois de ler o texto de Pixley.

• Nosso encontro com a OP: Cada um pode contar — na medida em que se lembre — quando se encontrou com a fórmula "opção pelos pobres" e quando se encon­trou com a OP como realidade. Compartilhar estas expe­riências. Comentá-las.

• A Bíblia teve algo a ver com o descobrimento da OP? O quê? Como foi? Que textos se utilizaram? Como

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eram explicados? A que experiências práticas levavam aquelas reflexões bíblicas?

Ou, pelo contrário, nosso encontro com a Bíblia, em nossa formação cristã, nada nos esclareceu a respeito des­ta realidade da OP (ainda que sem este nome?)

• O Deus de nossa primeira experiência religiosa existia de forma neutra e imparcial para qualquer homem, para ser justo, ou existia de forma parcial para os pobres para ser justo? A imagem de Deus que nos foi transmitida em nossa primeira educação cristã fazia alguma referên­cia ao tema da pobreza, dos pobres? Em que sentido?

• Na apresentação da Bíblia que nos fizeram no início de nossa formação cristã, os aspectos sociopolíticos e socioeconômicos, a conflitividade histórica entravam em consideração? Por exemplo: no caso do surgimento de Israel, na luta de Jeová contra os ídolos, na vida de Jesus e a perseguição e morte de que foi objeto etc.

Pode ser importante para o grupo centralizar um debate em torno do tema que Pixley aborda: o nascimento do povo de Israel. Pixley apresenta uma visão do tema relativamente recente e habitualmente não muito conheci­da. Se não se tem mais dados a respeito pode ser útil que algum membro do grupo o estude e o apresente aos com­panheiros.

Sugerimos, para isto, a seguinte bibliografia do próprio Pixley: Pueblo de Dios en Ia tradición bíblica, "Concilium" 196 (nov. 1984) é artigo simples, acessível, que aborda o tema, embora não se centre nele. Também pode ser encontrada uma exposição breve mas clara do tema em J. PIXLEY-C.BOFF, Opción por los pobres. Paulinas, Madrid, 1986 pp. 39-48, História sagrada, his-

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tória popular, DEI, São José da Costa Rica, 1989 pp. 15-22, é um breve manual da história de Israel para estudan­tes, que introduz muito bem à história de Israel, conside­rada a partir da perspectiva dos pobres. Para uma investi­gação exaustiva, o texto fundamental é, sem dúvida, o de GOTTWALD, The tribus of Yaweh, Orbis Books, Nueva York, 1979; tradução brasileira: As tribos de Jeová. Uma sociologia da religião de Israel libertado. 1250-1050. Pau-linas, São Paulo, 1986. 932 pp.

Embora não se faça este debate, é recomendável aprofundar-se na imagem de Deus que a Bíblia nos apre­senta, nas origens de Israel. Se não se dispõe de informa­ção suficiente sobre o tema do nascimento histórico do povo de Israel (conforme a bibliografia anterior), poderá centrar-se o tema em torno dos relatos do êxodo. Embora nos baseemos, no primeiro caso, na história e, no segun­do, numa teologia, não há contradição porque a teologia do êxodo substitui, precisamente, como expressão simbó­lica da experiência histórica real vivida na terra de Canaã pelo nascente Israel.

Interessa descobrir a imagem do Deus bíblico do Antigo Testamento: um Deus da história (que escuta o brado de seu povo, que se faz presente na história...) um Deus que atua (Deus fala com os fatos, se comunica com ação mais do que com teorias ou doutrinas, convida a ação na história...) um Deus libertador (que torna sua a libertação de seu povo, que o incita à liberdade, que o conduz em direção ao futuro...)

Todos sabem que no "conflito de interpretações" há teologias que não fazem eco da parcialidade de Deus em direção aos pobres. Mais ainda, há teólogos que se esforçam em neutralizar esta parcialidade, como, por

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exemplo, os teólogos do IRD ("Instituto para a Religião e Democracia" do Departamento de Estado dos Estados Unidos). Pode ser esclarecedor para algum grupo concre­to ler e analisar as obras ou escritos de alguns destes teólogos. As mais difundidas são as de Michael Novak.

3. Opção pelos pobres e seguimento de Jesus (J. Sobrino)

Depois de ter abordado o aspecto bíblico do Antigo Testamento, Jon Sobrino nos apresenta o aspecto cristológico da OP. O tema é mais conhecido e, provavel­mente, será fácil ao orientador encontrar as formas de tratá-lo em grupo.

Um exercício útil, simples e muito bíblico pode ser procurar textos do Evangelho referentes às afirmações de Jon Sobrino, sejam textos que confirmem o que ele disse ou textos que pareçam contradizê-lo. Cada pessoa, por trás da leitura e estudo pessoal vai procurar estes textos, averiguando no texto do Evangelho. Na reunião de grupo, cada pessoa traz seus textos, que são comentados entre todos. É importante responder às objeções que alguns tex­tos talvez apresentem.

Outra forma de tratar este texto pedagogicamente é centrar-se em seus núcleos principais, ou em alguns deles, e articular um debate ou comentários, com a participação da comunidade, sobre eles. Sugerimos os núcleos que nos parecem os principais e mais fecundos (a comunidade pode selecionar ou tirar algumas coisas do texto de Sobrino).

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Centralidade do amor e os pobres. Está claro que o amor é o centro da mensagem de Jesus e parece ter estado sempre claro ao longo da história da Igreja. Este amor sempre foi visto, no entanto, como relacionado com os pobres? De que maneira? Esteve relacionado com a justi­ça? Considerou-se também a justiça como centro da men­sagem cristã? Os pobres ocupam (e sua libertação) o lu­gar central no amor que se prega como principal no cristi­anismo? Ocupavam o lugar central no cristianismo que nos ensinaram em nossa formação cristã inicial?

Relação Deus-pobres. Sobrino fala de uma "corre­lação transcedental". Que pode significar este conceito teológico? Em todo caso, como pensamos que é esta rela­ção? É essencial, primária, secundária, irrelevante, seme­lhante a que o próprio Deus tem com todos os outros homens?... Que pode querer significar a peculiaridade que se atribui a esta relação? A imagem que eu, pessoal­mente, tenho de Deus, tem esta "correlação transcendental" com os pobres ou será um Deus que pode ser invocado e adorado à margem de uma relação com os pobres? Tem esta correlação transcendental com os pobres a imagem de Deus que se transmite na catequese, na liturgia, nos outros campos da vida eclesial? Os pobres ocupam um lugar central em minha relação pessoal com Deus? A op­ção pelos pobres é para mim, um problema teológico ou uma questão "teologal", como diz Sobrino?

Quem são os pobres para Jesus. Sobrino afirma que são os "pobres socioeconômicos" e diz que a imensa maioria dos exegetas está de acordo. Dá-se semelhante acordo no teu grupo ou comunidade? E em nossa Igreja local? Trazer testemunhos a respeito (opiniões teológicas, textos de livros, testemunhos de espiritualidade ou de prá­tica eclesial...) Debater as diferentes opiniões.

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A visão que Jesus tinha da pobreza. É o tema da análise social. Sobrino afirma que Jesus não podia ter uma visão estrutural, mas se dava conta de que a socieda­de estava dividida em diversos grupos sociais e que "da atuação de uns se segue o tipo de vida pobre, miserável e indigna de outros". Em que isto se diferencia de uma visão estrutural da pobreza? O que é que Jesus não podia pensar, então, que nós podemos pensar agora, no final do século XX? Há uma análise social no Evangelho?

A práxis. Que práxis Jesus realizou? Jesus queria mudar a sociedade? No que podemos vê-lo? Jesus se cen­tralizou na práxis da palavra: o cristianismo tem de se centralizar na práxis da palavra? Seria a práxis (as ações concretas para incidir numa transformação social) um ele­mento essencial do cristianismo, do seguimento de Jesus?

Conflitividade. Qual é, em última análise, a causa do conflito que Jesus provocou? Foi algo acidental, for-tuito ou próprio e peculiar de Jesus como pessoa ou cau­sado por aquela sociedade concreta... ou foi um conflito inevitável, próprio da mensagem de Jesus, que se dará sempre que se repita a atuação de Jesus em qualquer soci­edade humana concreta? Na formação cristã que recebe­mos, nos apontaram o tema da conflitividade de Jesus (por que foi perseguido, por que o mataram?) Que relação tem a conflitividade de Jesus e o conflito social?

Universalidade e parcialidade. Em vários lugares do texto Sobrino fala de ambas as perspectivas complemen-tares. Ficam claras? A Salvação oferecida por Deus e seu chamado são para todos os homens? São do mesmo modo para todos os homens? Qual seria a diferença?

Conclusão. "Quem crê no Deus de Jesus, por essên­cia, tem de fazer a opção pelos pobres." Debater esta

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frase forte de Sobrino. Estamos de acordo? Por que sim ou por que não? E em que consiste esta opção?

4. Opção pelos pobres e espiritualidade (P. Casaldaliga)

O estudo desta abordagem de Pedro Casaldáliga pode ser levado ao grupo como os outros textos, com algumas questões para serem debatidas. O orientador poderá formulá-las facilmente, tendo em conta a "espiritualidade" de seu grupo. Nesta ocasião, no entanto, queremos propor algumas atividades de grupo, mais do que questões:

Compartilhar a espiritualidade. Depois que o grupo tenha tido acesso ao texto e o tenha lido, estudado e/ou meditado, num tempo adequado (o tempo de uma sessão de trabalho habitual do grupo pode não ser o mais propí­cio), o grupo pode tratar de compartilhar a própria espiri­tualidade. Será conveniente encontrar um ambiente ade­quado para que as pessoas possam falar com intimidade, confiança e com tempo suficiente para poder expressar-se e responder as perguntas esclarecedoras que os outros lhes façam.

Cada pessoa tratará de compartilhar sua espirituali­dade, tentando descrever quais são as motivações mais profundas de sua vida, a rocha em que se sustenta, a Causa pela qual luta, a esperança de sua vida... à luz da fé.

O grupo poderá propor a si mesmo enfatizar espe­cialmente o referente à opção pelos pobres: o que é para mim, que parte tem em minha fé, em minha relação com Deus, em minha vocação, em minha esperança, em meu compromisso, em minha luta...

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Formular um "exame de consciência ". No texto, Ca­saldaliga aborda, numa parte, o tema da "doutrina e místi­ca da OP". Assinala alguns elementos que poderiam com­por uma doutrina da OP. O exercício consistiria em o grupo elaborar sua própria descrição da "doutrina da OP". Trata-se, logicamente, de fazê-lo em forma aplicada tanto à realidade em que vive o grupo ou comunidade (primeiro mundo, terceiro mundo, ambiente rural, urbano etc.) como a suas próprias características (comunidade de vida, de apostolado, de trabalho, de formação etc.) Enumerar ele­mentos que, pelo julgamento dos membros da comunida­de, refletiriam uma prática doutrinária conforme a espiri­tualidade da OP. O texto poderia servir como guia para o exame de consciência tanto dos membros do grupo como do grupo em seu conjunto.

Oração e opção pelos pobres. O exercício consisti­ria em procurar, entre todas as características que a ora­ção tem, quando se vive a partir de uma espiritualidade da OP. Por exemplo: ter o ponto de partida sempre na reali­dade, ter o centro no desejo da chegada do Reino, não aceitar dualismo entre fé e vida, não aceitar dicotomia entre a história real e a história da Salvação etc. Esta procura se deveria fazer a partir das próprias experiências dos membros do grupo.

Celebração da fé. Concretamente, pode ser uma ce­lebração que dê espaço a quaisquer dos exercícios ante­riores, ou aos três. Com efeito, o exercício de compartilhar a própria espiritualidade pode se tornar o marco de uma celebração comunitária. Também pode-se utilizar o guia elaborado sobre a doutrina da OP, ou na forma de exame de consciência, para uma celebração penitencial, por exemplo. E também se pode fazer uma vigília de oração

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preparada comunitariamente a partir do modelo de oração esboçado pelo grupo em sua sessão de trabalho.

Para se aprofundar na parte final do texto de Casaldáliga que se centraliza no tema da Igreja dos po­bres, propomos fazer um debate, tomando como ponto de partida algumas destas frases fortes do texto (e outras que o grupo possa sentir como mais adequadas):

— "Se dizemos "Igreja hierárquica", podemos di­zer, com mais precisão, "Igreja popular."

— "Há quem não quer que o povo seja povo, que a Igreja se faça povo, que o povo se faça Igreja."

— "Uma Igreja burguesa já não seria a Igreja de Jesus."

— "Uma vida burguesa é uma vida estruturalmente pecaminosa."

— "Não é possível pensar que o Evangelho seja igual para todos. O pior que se pode dizer do Evangelho é que o Evangelho é neutro."

— "O rico, normalmente falando, está excluído do Reino dos céus. Só pode entrar nele se deixa de ser rico."

5. Opção pelos pobres: preferencial e não excludente?

(J. M. Vigil)

Este texto aborda o tema das implicações ideológi­cas que a OP tem no campo da análise da realidade social.

Pode-se, antes de tudo, tratar de caracterizar os dois grandes métodos de análise da realidade social. Para isto, o grupo pode tratar de procurar materiais de estudo, infor-

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mação etc; e depois compartilhá-lo na sessão de trabalho. O grupo deveria tratar de chegar a uma descrição o mais clara e exaustiva possível dos dois métodos fundamentais, suas características, sua origem, seus representantes má­ximos, sua filosofia de base, suas limitações etc.

Outro grande tema a ser aprofundado seria o da relação entre fé cristã e análise social. A análise é, em si mesma, um instrumento de conhecimento que pode ser ou não científico, mas que, em todo caso, pertence ao âmbito das verdades reveladas. No entanto, isto não significa que seja irrelevante para a fé, ou que um cristão possa adotar qualquer análise indiferentemente. Este é um ponto que pode ser debatido pelo grupo. É importante que alguém prepare, devidamente, o tema, para levar idéias claras ao plenário.

Um bom exercício de aprofundamento mediante a aplicação prática, pode ser o de analisar textos. O grupo é confrontado com textos escolhidos da literatura cristã, sem que conheça o autor, nem qual a época e tendência que representa. O grupo, em debate, deve descobrir que análi­se social está latente sob este texto. É bom que se esco­lham textos de literatura cristã, de espiritualidade, teolo­gia, pastoral etc; de forma que se veja claramente que, mesmo nos textos aparentemente mais assépticos, há uma conotação social e a presença de alguma ideologia.

O mesmo exercício se pode fazer deixando o grupo selecionar os textos e os testemunhos: a partir da relação do grupo com outras correntes religiosas e diferentes mo­vimentos espirituais, os membros do grupo selecionarão textos e testemunhos e os apresentarão no plenário, co­mentando-os, analisando qual é a sua idéia social, sua interpretação da realidade, o lugar social em que se situ-

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am. Os textos ou modelos apresentados não têm por que ser, necessariamente, "textos", mas podem ser, preferivel-mente, testemunhos, reflexos, orações, fatos de vida etc.

O tratamento pedagógico deste texto pode ser a oca­sião para que o grupo se defronte com a questão de qual é seu lugar social, qual a análise da realidade que utiliza e a análise da realidade que está subjacente em sua prática comunitária etc.

Comentar e debater, como resumo, a famosa frase: "Não se pensa da mesma forma numa cabana e num palá­cio".

6. Aspectos geopolíticos da opção pelos pobres (G. Girardi)

Sugerimos o aprofundamento em alguns grandes te­mas aos quais nos introduz o texto de G. Girardi. São estes:

Três níveis da OP: ético, político e geopolítico. De­finir quais são estes três níveis. Reduzir ao essencial qual a diferença gradativa que se dá entre cada um deles. Dis­tinguir os diferentes passos que intermediam entre um e outro. Pôr exemplos de pessoas, instituições (também mo­vimentos e grupos eclesiásticos), opiniões (também teolo-gias e espiritualidades) etc; que acreditamos que estão em um ou outro nível (no lado dos pobres ou não), e debater entre todos se tais exemplos são certos ou não e por quê.

A OP como opção cultural. Descrever a OP como opção cultural, como forma de ver o mundo, como pers­pectiva "epistemológica". Detectar, na forma habitual de ver o mundo e a realidade que tem nossa sociedade, os

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vestígios da cultura dos poderosos: assinalar ações con­cretas, as mais ligadas possíveis à nossa realidade diária. Inventariar quais são, na nossa opinião, as ações da cultu­ra popular ou da forma de ver dos pobres. Aplicar esta diversidade "epistemológica" a diferentes problemas ou temas que se debatem atualmente em nossa sociedade concreta (aplicá-lo, por exemplo, também, à visão dos 500 anos do "descobrimento, encontro, choque, conquis­ta?"...) da América, à problemática das etnias indígenas, à crise do socialismo, às relações norte-sul etc.

As duas interpretações do amor. Descrever, o mais exaustivamente possível, em que consistiria o amor se­gundo a concepção assistencial ou segundo a concepção participativa. Aplicar sem demora esta diferença funda­mental à OP e às mais diversas áreas da realidade humana e social: a visão da história, a pedagogia, a visão do que é a Igreja, o sacerdócio, a eucaristia etc.

O sentido da vida e a opção geopolítica pelos po­bres. É certo que o ponto de vista dos pobres é mais fecundo que o dos poderosos? É verdade que a partir dos pobres se vê melhor o sentido da história e, portanto, o sentido da vida? É certo que a definição do sentido da própria vida inclui definir-se frente aos pobres histórica e geopoliticamente? Incorporamos o sentido de nossa pró­pria vida à OP? Integramos a OP ao sentido de nossa própria vida de fé (a nossa concepção cristã da vida, a nossa espiritualidade?)

Também sugerimos pegar as frases mais fortes que há no texto de Girardi (as que mais chamam a atenção do grupo ou toquem os temas que o grupo mais necessita revisar) e constituí-las em tema de um comentário-debate. Sugerimos as seguintes:

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"Não se pode amar aos escravos sem optar por eles, sem enfrentar e lutar contra o opressor".

"A grande maioria dos cristãos, sem estar conscien­te disso, olha a história e focaliza os problemas a partir do ponto de vista dos mais fortes, o que muitas vezes, em nível dos problemas geopolíticos, quer dizer o ponto de vista etnocêntrico, o ponto de vista eurocêntrico."

"O Kairós da época atual é a possibilidade de redescobrir a realidade originária, de voltar a realizar este encontro entre o projeto de Jeová e a paixão pela liberda­de, que está ressurgindo na consciência dos homens e dos povos."

7. Opção pelos pobres e Vida Religiosa (V. Codina)

Este capítulo interessará menos a pessoas ou grupos que não vivam a vida religiosa. Fazemos estas sugestões pedagógicas pensando em religiosos e religiosas, de for­ma ideal, numa comunidade religiosa.

Compartilhar experiências. Este poderá ser um pri­meiro exercício: compartilhar as experiências que se te­nha a respeito, tanto sobre a opção pelos pobres em geral como em torno à inserção em particular. Se nossa comu­nidade não tem experiências neste terreno concreto, será bom que se ponha em contato com religiosos ou religio­sas que a tenham. Em muitos países da América Latina há uma rede de "religiosos inseridos em meios populares" (CRIMPO). Também na Europa, há redes de contato en­tre religiosos nesta linha.

Exame da inserção nas classes dominantes. Se nos­sa comunidade não é das "inseridas", até que ponto está

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inserida nas classes dominantes? "A serviço de quem" trabalha? Estamos realmente a serviço da causa dos po­bres? E se nosso serviço vai ser feito em bairros médios ou altos, ou com pessoas de classe média ou alta, como deve ser nossa mensagem, nossa atitude e nossa vida pes­soal e comunitária para que seja "boa nova para os po­bres?"

Aprofundamento teológico. Estudar e meditar a re­lação profunda que existe entre OP e seguimento de Je­sus, entre vida religiosa e inserção no mundo e na pers­pectiva dos pobres. Que podemos fazer para estudar me­lhor este tema? Como poderíamos torná-lo matéria de nossa reflexão e de nossa oração comunitária?

Aplicação a nossa comunidade concreta. Como nossa comunidade vive a OP? Que trocas concretas deve­ríamos introduzir? Que passos deveríamos dar?

8. Optar pelos pobres depois da crise do "socialismo real"

(Giulio Girardi)

Este capítulo será tratado com mais ou menos inte­resse segundo o ambiente em que se move o grupo, se­gundo a maior ou menor influência dos acontecimentos políticos em sua vida diária. Segundo tudo isto, o orientador poderá extrair mais uma ou outra orientação dentro do tratamento pedagógico do tema. Sugerimos quatro divisões possíveis:

A "crise" no ambiente. Tratar-se-ia de constatar que influência teve a crise em nosso ambiente. E isto se pode fazer em dois campos: o campo da opinião pública, cultu­ral, sociopolítica... por um lado, o campo eclesiástico,

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das comunidades cristãs ou da vida da Igreja em geral, por outro. O que se sente no ambiente com respeito aos "partidários dos pobres", às posturas políticas socializantes, à crítica do capitalismo, à opção pelos pobres, à teologia da libertação?... Dar exemplos de opiniões ouvidas ou de experiências vividas em nosso próprio ambiente. Em todo caso, também será bom que alguém do grupo que dispo­nha de mais informação possa apresentar, brevemente, um informe sobre isto mesmo em nível internacional, continental ou mundial (por meio de algum artigo, algum livro etc).

A crise em si mesma. Trata-se agora de abordar o tema da crise em si mesma, mais além do que se diz ou se pensa no ambiente. Seria um tratamento do tema da crise em nível de aprofundamento além da análise sociopolítica. Aqui, o grupo pode ir por seu próprio caminho, sobretudo se é um grupo experimentado em tais análises. Também pode trabalhar sobre a reflexão que Girardi faz sobre a crise: partir das "certezas" que entram em crise, a causa da crise de ditas certezas, a crise da possibilidade do pro­jeto alternativo, a crise dos sujeitos etc. Pode ser muito importante aprofundar no tema da influência da mentali­dade liberal, ou capitalista, ou consumista, a mentalidade dominante que combate contra nossos ideais em nosso ambiente concreto. Muito importante também é aprofun­dar o argumento principal: a crise do capitalismo como crise de civilização. E o tema da cultura da violência que está no fundo. E possível acrescentar um tema não abor­dado por Girardi: dá-se também uma crise de "civilização cristã?" Em que sentido?

A crise para os cristãos. Em que sentido esta crise sociopolítica e ideológica afeta os cristãos? Há ideologias

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entre os cristãos? (Relação entre política e fé, ideologia e fé.) Recordar e sintetizar a evolução ideológica dos cris­tãos nos últimos trinta anos. Fazer o mesmo em nível de nossa própria comunidade ou grupo (trazer para ele as próprias experiências). Em que crise afeta aos cristãos que fizeram a OP? Acabou a razão de ser da OP? Por quê? Quais são seus fundamentos? Distinguir as motiva­ções ideológicas ou políticas da OP e as motivações "éti­cas, religiosas e inclusive teologais" da OP. Aconteceu com Jesus algo semelhante com o que pode estar aconte­cendo hoje conosco? Qual é a atitude mais cristã nesta situação de crise? Quem obterá, adiante, a utopia, quando as "certezas científicas" se dividirem e o capitalismo se impuser em nível mundial?

A crise e nós. Em que medida nós, como pessoas, nos sentimos afetados? Compartilhar experiências e comentá-las. Qual era o fundamento da nossa OP? Apoiamo-nos em "certezas científicas", em estudos, em ideologia, em temperamento político somente ou também em razões de ordem ética ou moral e cristãs? Nossas mo­tivações perderam validade ou estão agora ainda mais vi­vas? Como as sentimos? E com respeito a nós mesmos, mas como grupo ou comunidade? Tudo isto afeta nossos delineamentos comunitários? Que atitude devemos tomar como comunidade?

9. Optar pelos pobres: síntese espiritual (J. M. Vigil)

Este trabalho pretende organizar numa síntese vital a espiritualidade da OP, juntando elementos tanto da rea­lidade como do desenvolvimento antropológico da pessoa

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e da perspectiva teológica. Parte da realidade e se encami­nha para a teoria. Começa pelo simplesmente humano-ético para passar, depois, sucessivamente, ao religioso, ao cristão e eclesial. Entre os elementos que se prestam a isto estabelece também certa ordem paralela ao cresci­mento ou maturação psicológico-evolutiva da pessoa hu­mana. Pretende, definitivamente, conseguir um ordena­mento lógico e internamente bem ligado de todos os ele­mentos que formam, na pessoa, o que poderíamos chamar a "espiritualidade da opção pelos pobres".

Por ser a espiritualidade algo tão profundo e tão pessoal, é indubitável que nenhuma ordenação concreta possa ajustar-se a todas as pessoas. Prescindindo, pois, das possíveis variações devidas à idiossincrasia pessoal individual, não podemos centralizar o debate na presença ou ausência dos elementos constitutivos da OP e sua co­nexão e ordenação lógica. Sempre haverá que ter em con­ta a legítima variação de uma pessoa a outra.

Questões para trabalhar individualmente:

— Ficou faltando algum elemento da espiritualida­de da OP que para mim é especialmente significativo? Qual? Em que ponto do texto o colocaria? Por quê?

— Que elementos, dos assinalados no texto, não foram relevantes para mim, em meu descobrimento da OP? Por quê? Que outros elementos supriram esta ausên­cia?

— Que perspectiva é, para mim, mais significatica vitalmente: o delineamento que brota da realidade, o deli-neamento ético, o religioso, o cristão ou o eclesial? Como interpreto esta resposta?

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Questões para trabalhar no grupo:

— Compartilhar a resposta às questões trabalhadas em particular. Assinalar as respostas mais comuns, a con­vergência que mais se assinala entre as respostas.

— Podemos dizer que nosso grupo (ou comunida­de) tem uma espiritualidade comum à OP? Quais são seus traços principais?

— Ir repassando o texto conjuntamente e comparti­lhar as experiências pessoais de fé vividas em torno aos itens do texto: qual foi a experiência pessoal mais signifi­cativa de abertura à realidade, de descobrimento da exis­tência da pobreza, de "indignação ética", do descobri­mento da "parcialidade de Deus" para os pobres, da conflitividade etc.

— É oportuno fazer de nossa própria síntese a de nosso grupo ou comunidade. Para isto, eliminar os ele­mentos não significativos e introduzir os elementos mais importantes para o grupo. Se o trabalho parecer interes­sante ao grupo, elaborar uma síntese totalmente nova, sem partir do texto apresentado, articulando um trabalho que pode abarcar várias sessões ou reuniões de grupo.

— Fazer uma celebração comunitária para compar­tilhar em nível da fé nossa opção pelos pobres.

10. Opção pelos pobres, Teologia da Libertação, e socialismo atual

(Leonardo Boff)

Leonardo Boff, partindo da pergunta "como fica a Teologia da Libertação depois da implosão do socialis­mo?", elabora uma reflexão prática e oportuna em torno

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de três eixos: o socialismo hoje, a Teologia da Libertação e a opção pelos pobres.

1. Fazendo uma releitura do socialismo a partir da queda do muro de Berlim, da introdução da perestroika e da glasnost na URSS e da crise geral do pensamento das esquerdas, focaliza uma série de interrogações para a prá­tica e a reflexão das Igrejas, e abre perspectivas novas para a sobrevivência da humanidade.

2. Diante dos questionamentos que a situação do socialismo coloca para a Teologia da Libertação, o autor reflete e reapresenta as raízes verdadeiras da Teologia da Libertação. Ela nasce, não do socialismo, mas de uma dupla experiência: uma política e outra teológica.

— A experiência política: levou a perceber que os pobres fundam um lugar social e epistemológico. Isto sig­nifica que sua causa, seus interesses, sua luta de resistên­cia e libertação e seus sonhos permitem uma leitura sin­gular e própria da história e da sociedade.

— A experiência teológica: nasceu quando as co­munidades cristãs aprofundaram e interpretaram as pági­nas da Escritura sagrada, confrontando-as com as páginas da vida. Apareceu então uma verdade que atravessa todas as Escrituras: a íntima conexão que existe entre Deus e os pobres.

3. A opção pelos pobres e a modernidade alternati­va integral: postula que se incorpore o imenso cabedal da ciência e da técnica com a democracia social, em benefí­cio de todos, numa consciência ampliada de um destino comum de toda a humanidade. Daí a necessidade de uma nova revolução mundial. Buscar uma democracia funda­mentada na articulação e co-existência de cinco forças

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fundamentais: a participação, a solidariedade, a igualda­de, a diferença, a comunhão.

Questões para trabalhar individualmente

— Ler individualmente o texto e sublinhar os pon­tos mais significativos para a nossa realidade e contexto.

— Anotar os pontos:

• com os quais se identifica e explicitar o porquê;

• com os quais concorda e especificar o porquê.

— Fazer uma breve síntese das idéias principais.

Questões para trabalhar em grupo

— Como fica a Teologia da Libertação depois da implosão do socialismo? Seus ganhos e suas perdas. O socialismo de fato implodiu? O que significa a expressão: "o socialismo fez a revolução da fome"?

— Como anunciar que Deus é vida e é Pai num mundo de miseráveis? O que existe na Teologia da Liber­tação que causa tanto medo ao sistema do capital?

— Considerar a necessidade e a possibilidade de uma modernidade alternativa e integral e a contribuição da Teologia da Libertação para isso.

— A partir da experiência de cada pessoa e do gru­po, o que poderia ser modificado ou enriquecido no texto em estudo?

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Page 89: Vigil Opcao Pelos Pobres

ÍNDICE

Apresentação 5

1. Opção pelos pobres: síntese doutrinai Júlio Lois 7

2. Opção pelos pobres e o Deus bíblico Jorge Pixley 21

3. Opção pelos pobres e seguimento de Jesus Jon Sobrino 37

4. Opção pelos pobres e espiritualidade Pedro Casaldáliga 55

5. Opção pelos pobres: preferencial e não excludente? José Maria Vigil 67

6. Aspectos geopolíticos da Opção pelos pobres Giulio Girardi 81

7. Vida religiosa e opção pelos pobres Vicíor Codina 97

8. Optar pelos pobres depois da crise do "socialismo real" Giulio Girardi 103

9. Optar pelos pobres: síntese de espiritualidade José Maria Vigil 121

10. Opção pelos pobres, Teologia da Libertação e socialismo hoje Leonardo Boff 133

Apêndice Pedagógico 153

Impresso na Gráfica de Edições Paulinas - 1992

Via Raposo Tavares. Km 19.145 - 05577-300 - S. PAULO